O erotismo como potência na obra de Heli Heil

Cristine Bhadram Heli Heil é uma artista autodidata que trabalha com diversas técnicas. Nasceu no município de Palhoça em 1929 e atualmente reside em Florianópolis onde criou o museu Mundo Ovo. Começou a trabalhar com arte em 1962 após uma longa enfermidade que a deixou de cama. Participou de exposições em diversos Países e suas obras estão espalhadas em acervos de Santa Catarina, França dentre outros. A artista afirma em seu site que seu processo são “vômitos de criações” onde dá vida a seres que são gerados dentro dela, como uma gravidez de mundos e seres fantásticos que ela chama de “monstrinhos” e que dá a luz constantemente, como em um parto. Como Heil afirma: “O processo criativo e a técnica despejam-se dentro de mim, como fios coloridos, prontos para serem executados. Não me interessa se estava certo ou errado, simplesmente vomitava (criações). Não parava mais, a ponto de ter visões”.1 Por meio da fala da artista, ve-se que seu processo de criação poderia se assemelhar a uma catarse pois, de acordo com o conceito da palavra dado por Aristóteles, a catarse refere-se à purificação da alma por meio de uma descarga emocional, no caso, sua arte e que esta é provocada por um drama.2  Apesar de Heli Heil não ter participado da semana de arte de 22, dado que nasceu alguns anos depois e fora do circuito artístico Rio–São Paulo, o contexto e os preceitos da arte moderna no Brasil influenciaram sua produção artística pois, suas pinturas apresentam um rompimento com os padrões acadêmicos vigentes na época, herdados dos conceitos estéticos Europeus. Em suas obras, a artista parece estar o tempo todo alterado a realidade e criando outras por meio do seu mundo ovo, lugar feito para que seus seres possam habitar/participar desta realidade. Segundo Freud, só os artistas, as crianças e os loucos estão sujeitos as regras da alteração3. Prova disto, são as diversas realidades paralelas criadas por Heil em suas imagens. Também, a sensibilidade da artista em criar um colorido forte, por vezes cenas conturbadas com seres de corpos contorcidos que parecem estar flutuando, não se enquadram nos padrões de proporção do renascimento e não seguem o ideal de beleza e do que era considerado belo na pintura. Portanto, poderia se considerar que a artista altera todo o tempo a sua realidade. Ainda, por tais tratamentos das suas composições, há autores que assemelham sua obra ao expressionismo de Van Gogh. Disponível em http://www.eliheil.org.br/

1

Freire, António. A catarse em Aristóteles: Volume 6 da Colecção “Pensamento filosófico”.

2

Faculdade de Filosofia, 1982. 204 p. vol. 6. I

FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

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Imagem 1: Heli Malvina Heil. Casal nu. Acrílico sobre tela e eucatex, 1996. 40x50cm. Fonte: Acervo do MASC.

Completa dizendo (ibidem, p. 95) que o erotismo não está ligado à consciência de gerar. Quanto mais o gozo erótico é pleno, menos se está preocupado com a geração de filhos.5 Portanto, poderia se pensar que Heli Heil quando gera involuntariamente esses corpos em sua imaginação, como o do casal acima, não está necessariamente preocupada com a reprodução e geração de um ser como um fim de fato mas, que talvez esteja em uma busca incansável pelo sentimento do gozo, do prazer da expulsão de seus filhos libertando-os para esta realidade que conhecemos. 4 BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM,1987. p.15 5 idem, ibidem, p. 95.

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Refletindo mais sobre a questão da representação dos corpos, ve-se na imagem abaixo, intitulada “Casal Nu”, um possível questionamento quanto a questão do gênero, dado que uma das figuras apresenta seios e pênis ao mesmo tempo, os orgãos genitais são mostrados sem pudor e libertos de uma preocupação com o nu,o que denota um tom erótico pois, de acordo com a definição de Bataille (1987, p.15), o erotismo seria uma forma particular da atividade sexual de reprodução, o que não é necessariamente o ato sexual em si. O autor explica que o homem, diferente do animal, transformou essa atividade sexual em erótica.4

O despertar da sensibilidade nos desenhos de Hugo Mund Júnior Hugo Mund é um artista plástico e escritor catarinense nascido em 1933 na cidade de Mafra-SC. Cursou a Escola Nacional de Belas Artes. Atualmente participa de exposições de desenho, gravura e poesia visual no Brasil e exterior. È membro da Academia Catarinense de Letras, ilustrou poemas de Cruz e Souza. Segue um de seus desenhos.

Idem, ibidem, p. 14. Idem, ibidem, p. 17.

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Também, o parto destes “monstrinhos”acarreta em uma continuidade do seu ser/artista, mesmo ele não estando ou pertencendo mais a este mundo pois, conforme Bataille (ibidem, p. 14), a reprodução sexual que, na base, faz intervir a divisão das células funcionais, leva a uma nova espécie de passagem da descontinuidade à continuidade. O espermatozóide e o óvulo são, no estado elementar, seres descontínuos, mas que se unem e, em conseqüência, estabelece-se entre eles uma continuidade que leva à formação de um novo ser, a partir da morte, do desaparecimento dos seres separados. Ou seja, a reprodução está intimamente associada à morte, e é desta relação entre a continuidade e a morte que surge a fascinação que domina o erotismo.6 Assim, na pintura de Heil, a descontinuidade poderia estar no âmbito que separa criador e criatividade, seres descontínuos. O processo de criação seria como a união e passagem da descontinuidade a continuidade que, em suas mortes, geram um novo ser, a obra, que dará continuidade as partes descontínuas que se uniram em prol da geração da obra de arte. E, da relação entre criador, criatura e criação surge a fascinação que fala Bataille que o erotismo causa. Como na arte moderna brasileira houve um desejo por rupturas e a ruptura está intimamente ligada com o fato de transgredir, o contexto da modernidade como um todo inaugurou a ideia do novo e de que estamos sempre rompendo. A obra de Heli Heil é transgressora pois, apresenta elementos que Bataille considera como transgressores dentre eles a nudez. Sobre a nudez, Bataille diz que a ação decisiva para preparar a fusão dos corpos é o desnudamento, de acordo com o autor (ibidem, p. 17) “a nudez se opõe ao fechado, isto é, ao estado de existência descontínua”7. Logo, quando se despem de seus conceitos e normas estéticas, criador e criatividade, iniciam a fusão, a continuidade que se materializará na pintura. A nudez é, aqui, objeto de um rito que comunica sua essencialidade, isto é, seu erotismo. A pintura moderna de Heli Heil como uma arte transgressora ocupa bem este papel pois, vai contra as normas e crenças sociais construídas com o tempo pelas sociedades onde a representação do corpo nu, principalmente o feminino, deixou de ser algo tido como sagrado para ser algo que conduz ao pecado. Contudo, o erotismo presente nas pinturas acima, explicitado pelo corpo nu, que está diretamente associado a ideia do ato sexual em si, vem afirmar o potencial de criação que o erotismo possui na obra de Heli Heil.

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Imagem 2: Hugo Mund Júnior. Sem título. Nanquim sobre papel, 1961/62. 19,9x11cm. Fonte: Acervo do MASC.

No desenho de Mund, o traço vagueia entre o limite do claro e do confuso. Muitas vezes a forma é somente sugerida com linhas que parecem nervosas e rápidas. Sua composição com um esqueleto ao centro e caveiras ao redor pelo chão, nos fala da carga simbólica desta imagem. Toma-se o significado da palavra caveira para iniciar uma possível significação da obra. De acordo com o dicionário dos símbolos a caveira significa a  vida.8 Já no dicionário espírita, ela é símbolo do caráter transitório, da morte e do tempo pré –determinado da existência humana no planeta terra.9 É o elemento básico da mudança, da transmutação. E era justamente a mudança dos paradigmas estéticos o que se buscava no Modernismo. No entanto, não cabe aqui se chegar a conclusão alguma com relação a um possível significado da obra, sendo que isto a tornaria fechada e restrita. Cabe sim, refletir e criar possibilidades de leituras. Como a caveira significa o estado efêmero das coisas, poderia se pensar que o artista induz CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário dos Símbolos. 11. ed. Rio de Janeiro : José Opympio, 1997. 9 Encontrado em: http://www.dicionariodesimbolos.com.br/caveira 8

o espectador a aflorar sua sensibilidade para ver e sentir aquilo que muitas vezes parece oculto a um primeiro olhar. Quanto à sensibilidade, Márcia Tiburi10 a define como:

Mund poderia estar buscando despertar nas pessoas por meio de sua arte uma sensibilidade vivenciada inicialmente pelo sentido da visão, onde cause no observador sentimentos voltados a vida em sociedade e suas relações. Conforme Tiburi (2006, nº106): “O sentimento é, por sua vez, o mais íntimo de cada um, algo que não se pode comunicar, por isso, os artistas procuram “expressões” para eles. O esforço de compreensão dos sentimentos é sempre poético e intuitivo.” As possíveis interpretações e sensações que o desenho do artista podem causar, são algo que dependerá do alinhavar que cada um irá tecer de acordo com a sua experiência e conhecimentos de mundo. A caveira ao centro poderia ser o símbolo de um tipo social, como a prostituta que, após passar por várias fases de lagarta se metamorfoseou em borboleta, transformando sua realidade social. Assim como, as caveiras ao chão, sem corpo, poderiam ser a representação das lagartas (prostitutas) que ainda estão em busca de sua libertação/transformação de suas vidas. O artista poderia ter como intuito neste desenho sensibilizar o presenciador quanto a este tipo social, a meretriz, que tantos julgam e condenam mas, que faz um papel ha muitos séculos de satisfazer o prazer das pessoas e muitas vezes escutar aqueles que se sentem sozinhos. Porém, estas são apenas interpretações que partem das experiências e dos cruzamentos de cada um ao experienciar a obra de arte pois, as imagens e termos simbólicos, via de regra, representam conceitos que não se pode definir com clareza ou compreender plenamente. Para Jung, O símbolo representa a situação psíquica do indivíduo e ele é essa situação num dado momento. Aquilo a que se chama de símbolo pode ser um termo, um nome ou até uma imagem familiar na vida diária, embora possua conotações específicas além de seu significado convencional e óbvio. Assim, uma imagem é simbólica quando implica alguma coisa além de seu significado manifesto e imediato11, que seria as caveiras e o esqueleto. O desenho acima tem um aspecto inconsciente mais amplo que não é nunca precisamente definido ou plenamente explicado.

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Encontrado em http://www.espiritualismo.info/simbolos.html

Idem, ibidem.

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Chamamos sensibilidade ao conjunto de nossos sentimentos e sensações e modo como os experimentamos. (...) Ela (a sensibilidade) é a base, a via de acesso ao mundo externo ao nosso corpo, o modo como se estabelece nossa relação com as coisas, justamente por ser um modo como experimentamos nosso corpo e os demais corpos. É o modo como olhamos para as coisas, como ouvimos, mas também como as pensamos.

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Imagem 3: Hugo Mund Júnior. Sem título. Nanquim sobre papel, 1961/62. 17,7x13,7cm. Fonte: Acervo do MASC.

Na Imagem 3, novamente a retomada dos traços confusos e frenéticos do artista, quase sugerindo as figuras, mostra duas mulheres nuas e um homem no canto direito com aparências desoladas. Ainda pensando um simbolismo da imagem, toma-se outra definição de símbolo. De acordo com Durrand (1988): ”Ser tocado pelos símbolos é se envolver num mundo de realidades invisíveis por trás de algo visível, buscando estabelecer-se um sentido”. As realidades invisíveis seriam os possíveis significados, e o visível é aquilo que é dado, a representação da cena. Na imagem acima, novamente poderia ser atribuído um significado com relação ao tipo social da prostituta. No desenho, duas mulheres que parecem cansadas da vida que levam, suas feições mostram apatia e infelicidade. Seus corpos parecem gastos, tortuosos e esqueléticos como se estivessem cansadas de tanto dar ao outro (prazer), e nada receber em troca além de preconceitos e exclusão social. Seus seios gastos e decaídos. A magreza de suas figuras poderia simbolizar a escassez de recursos que possuem para trocar

O espaço da extimidade na obra “A sonâmbula”

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suas realidades por outras onde pudessem ser mais felizes. O homem no canto da composição, também não tem uma aparência contrária a apatia. Talvez, ele poderia ser o tipo social do boêmio que não encontra mais sentido na vida, entorpecendo seus sentimentos com divertimentos passageiros e vazios. Ou o tipo social do homem moderno que vive um momento onde não se reconhece mais, não se sente mais confortável em lugar nenhum e quer fugir deste mundo pois, as possibilidades são tantas que não o deixam escolher, o mundo já não lhe é mais suficiente. Como também, com relação a modernidade, a composição do corpo não mostra nenhuma intenção em estabelecer uma relação de verossimilhança com a realidade, dado que, aquilo que é posto muito explicitamente não gera tantas possibilidades de atribuição de significados. Contudo, percebeu-se que as imagens de Hugo Mund poderiam ser um retrato dos tipos sociais da modernidade Brasileira e buscam tocar de algum modo, aqueles que as veem, despertando para uma sensibilidade quanto a uma dada realidade social. Em seus desenhos, se faz presente o sentimento de humanidade daquilo que é exposto. Quase se pode sentir a dor das figuras, o peso do ambiente na cena e a angústia dos seus seres em busca de uma sociedade mais igualitária e humana. Mund poderia estar nos trazendo uma arte que tem sede de justiça e denuncia aquilo que o ser humano finge não ver. Aquilo que vive nas sombras da sociedade.

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Imagem 4: Rodrigo de Haro. A sonâmbula. Gravura em metal, s/ data. 30x39cm. Fonte: Acervo do MASC.

Rodrigo de Haro é um pintor, desenhista, gravador e escritor que nasceu na França em 1939 e logo veio estabelecer-se em Florianópolis, local de nascimento de seu pai, também artista. Neste ensaio irá se relacionar a obra escolhida acima com o conceito de Lacan de Extimidade. A um primeiro olhar mais superficial ve-se um rosto de uma figura feminina com os olhos semiabertos, o que nos leva de imediato a fazer uma relação com o título A sonâmbula, devido a abertura dos olhos da mulher. Segundo o portal virtual abc.med que define o sonambulismo como: O sonambulismo (do latim somnus = sono + ambulare = marchar, passear) é um transtorno comportamental do sono em que, tipicamente, a pessoa realiza atividades motoras complexas, como andar, dirigir ou escrever uma carta, das quais de nada se lembra depois de acordar (...) Pode-se dizer que no sonambulismo “as funções motoras despertam, mas a consciência continua a dormir”. (...) Ao contrário do que muitos acreditam, o sonambulismo não é um sonho atuado. Ele ocorre antes do estágio REM do sono (onde acontecem os sonhos), em que as conexões motoras entre a mente e o corpo estão interrompidas.12

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Encontrado em http://www.abc.med.br/p/324025/sonambulismo+o+que+saber+sobre+ele.htm

FREUD, Sigmund. Conferências introdutórias sobre psicanálise (1915-1916), parte I e II, vol. XV. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

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Como no estado de sonambulismo “as funções motoras estão despertas mas a consciência continua a dormir”, é como se esta obra trouxesse o questionamento de uma dualidade que precisa ser vista por dois ângulos ao mesmo tempo, pois os dois se complementam. Tanto com relação a um estar presente fisicamente, como o corpo da figura feminina e do pássaro o estão, quanto uma ausência da consciência (não estar), dado que esta permanece “adormecida”. Essa atitude de adormecimento, ainda não de sonho, poderia ser pensada como um limite que impede o livre curso do sonhar. Como se toda a cena representada estivesse mergulhada em um adormecimento, uma falta de sentir. E isto impossibilitaria a figura feminina de poder sonhar. O pássaro que deposita seu bico nos lábios da mulher, poderia ser o símbolo daquele que oferece a possibilidade de saír deste adormecimento da consciência e lhe alimenta com a seiva do sonho. A representação é muito semelhante a forma com que os pássaros se utilizam para alimentar seus filhotes no ninho, transferindo o alimento guardado em seu bico para o do filhote. Quão poderosa é esta ave por conter dentro de si o alimento que permite adentrar no labirinto dos sonhos. E o que é o sonhar senão deixar fluir livremente os pensamentos sem a sensura da mente? Segundo Freud (1915), sonhos são fenômenos psíquicos onde realizamos desejos inconscientes13. Portanto, nos sonhos ha a possibilidade de libertar de uma certa forma, os desejos contidos e liberá-los da necessidade deste desejo ser ou não moralmente aceito pela sociedade. Este pássaro poderia então estar justamente oferecendo esta seiva da possibilidade de sonhar e libertar estes desejos contidos. O desejo da figura feminina poderia ser a sede do desconhecido que se apresenta sob a forma de inúmeros caminhos feitos pelos seus fios de cabelo que inundam a paisagem. Assim como os fios de cabelo o são as possibilidades de caminhos, tantos e infinitos. Inúmeros que alguns, só os trilhamos nos sonhos. Como também, poderia fazer uma relação da obra “A sonâmbula” com o Surrealismo. Porém, sabe-se que o que se teve de mais próximo do surrealismo Europeu em Santa Catarina, foi a relação da obra com o onírico. Mas, esta estética não se restringiu apenas a temática dos sonhos, há também outros elementos de tratamento como a aleatoriedade e o acúmulo de coisas na cena. No entanto, estas são apenas possibilidades de leitura da obra de De Haro dado que, de acordo com Merleau-Ponty (1964a, p. 300) ver é sempre ver mais do que se vê (...) É preciso compreender que é a visibilidade mesma quem comporta uma não visibilidade. Cada indivíduo a partir das suas experiências e sensações irá construir um sentido ou uma interpretação a partir desta invisibilidade, deste mais além. Este algo que está aquem do sentido da visão, que sentimos ser algo tão íntimo de nós mas que o encontramos fora de nós, Lacan chamou de “extimidade”. segundo ele, uma “exterioridade íntima, uma extimidade”, um mais além interno onde em volta dela, organiza-se o mundo subjetivo do inconsciente em relações significantes (LACAN, 1959-60, p.173). Este espaço imaterial da Extimidade se compõe de duas partes opostas, como o yin e yang, interno e externo. Estas duas formas de vida caminham, se entrelaçam e se dividem como em uma mitose transitando entre territórios e desterritorializando os mundos internos e externos

A sensibilidade geométrica em “Raízes”

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ao artista. Não é mais algo do artista ou do mundo, a extimidade é esse espaço que está onipresente e em harmonia com o todo, por mais que não a percebamos a todo momento, ela está lá. É neste local que tomamos nossos pensamentos mais subjetivos e inconscientes e construimos relações significativas para cada um de nós. Portanto, qualquer pessoa que estabeleça uma relação com a imagem acima, poderá ou não, sentir nela, algo de tão íntimo encontrado na figura da mulher que está em um estado de adormecimento, no pássaro que a alimenta com a seiva do sonho ou com qualquer outra forma da cena encontrado no exterior. Rodrigo de Haro poderia ser o pássaro de sua própria obra pois é ele que nos alimenta com a possibilidade de reconhecer no exterior da imagem representada algo de tão íntimo em cada um de nós.

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Imagem 5: Raízes. Jarina Menezes. Nanquim e ecoline sobre cartão, s/ data. 70x50cm. Fonte: Acervo do MASC.

Jarina Menezes, criadora da obra acima, se dedicou muito ao desenho embora tenha trabalhado com outras técnicas como óleo, xilogravura e capas de livros.

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Mais informações em http://jarinamenezes.com.br/

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Iniciou como autodidata e, conforme produzia, foi buscando conhecimentos relacionados ao mundo da arte. Tinha muito interesse em utilizar o papel como suporte de criação. De acordo com sua biografia, disponível em seu site, iniciava seu trabalho com a construção de manchas aleatórias nas diversas cores, como se vê acima e, em um segundo momento, delineava formas com o auxílio do nanquim e bico de pena14. A artista partia da cor (mancha) para com ela chegar a forma e não o contrário como seria de costume. Vê-se que a geometria em raízes não é tratada de forma racionalista, fria e tão pouco matemática. Ela está acima de rigores racionais, pois que se rende a poética, nasce da cor e é dotada de emoção. No tratamento da pintura apresentada e conforme relatos do processo de criação da artista, poderia se pensar que a mesma caminha para um descolamento da figuração, abrindo mão do representacional em prol de um repertório que, apesar da sugestão dada pelo título, permeia o abstrato. Não somente a ligação de sua arte com uma possível despreocupação com a figura como também poderia se fazer um paralelo do quadro de Jarina com o Concretismo dado que, conforme o site do itaú cultural, esta estética defendia uma autonomia da arte em relação ao mundo natural. A obra não teria o compromisso de expor a realidade mas, evidenciaria estruturas, planos e conjuntos que, relacionados, falariam por si mesmos. Ou seja, Raízes poderia estar nos falando de seu universo próprio por meio de sua linguagem plástica. Com relação ao espaço ocupado pela pintura, para que se possa refletir um pouco sobre ele, toma-se um pensamento de Foucillon (1934, p.95), em que afirma que a arte, “é criadora de ambientes imprevisíveis [...] inventa um mundo”. Portanto, Jarina cria um ambiente a partir de uma não racionalidade no que tange a construção da forma e inventa o seu mundo neste universo de silêncio e vazio, que é o papel, de onde nascem os formatos e desenhos com suas infinitas leituras. Tornando a obra, segundo Foucillon, verdadeiros objetos “criadores de espaço” pois, do nada, do vazio, nasce um lugar que passa a existir e ser ocupado com as linhas que se enamoram, se acasalam e se unem fechando-se entre si e dando a luz a uma geometria de puro ritmo e poesia, que é acolhida pelas fibras do papel, assim como as raízes acolhem os nutrientes do solo. Ainda, estabelecendo um paralelo com a teoria da Gestalt que procura explicar como chegamos a compreender aquilo que percebemos (BOCK, 2004, p. 50), poderia haver aqui uma ligação do fenômeno da Gestalt com o processo de criação da artista pois, segundo a fala de seu filho em comunicação no MASC, a artista gostava de ficar olhando as nuvens e vendo desenhos nelas. Depois, por meio de um registro desta experiência em sua memória buscava representar estes desenhos. De forma que poderia se pensar que em seu procedimento ela tentava compreender e expressar aquilo que percebia no céu que eram as nuvens se deslocando. Como também, fazendo um bordado com relação ao título da obra, poderia se pensar que as raízes, no seu sentido físico, tem as funções de dar sustentação, captar, armazenar e distribuir o alimento a todos as partes da planta e permitir a comunicação entre os meios interno e externo. Assim, poderia se pensar que uma

Referência BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM,1987. BOCK, Ana Maria. Psicologias. Uma introdução ao estudo de psicologia. São Paulo: Saraiva, 2004. CHEVALIER, Jean ; GHEERBRANT, Alain. Dicionário dos Símbolos. 11. ed. Rio de Janeiro : José Opympio, 1997. DURRAND, Gilbert. Imaginação Simbólica. São Paulo : Cultrix, 1988. FABRIS, Anna Teresa (org). Modernidade e Modernismo no Brasil. S.P: Mercado de letras, 1994. FOUCILLON, Henri. A vida das formas. Rio de janeiro: zahar,1934. Freire, António. A catarse em Aristóteles: Volume 6 da Colecção “Pensamento filosófico”. Faculdade de Filosofia, 1982. 204 p. vol. 6. I FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. Rio de Janeiro: Imago, 1996. FREUD, Sigmund. Conferências introdutórias sobre psicanálise (1915-1916), parte I e II, vol. XV. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006. LACAN, Jacques. (1959-60) O Seminário. Livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1959-60.  MERLEAU-PONTY, Maurice (1964a) . Le visible et l’invisible. - Paris: Gallimard. TIBURI, Márcia. O Que É Sensibilidade?Jornal do Margs (Abril 2005 / Nº 106).

Sites http://www.eliheil.org.br http://www.poetaslivres.com.br http://www.psiqweb.med.br http://www.dicionariodesimbolos.com.br/caveira http://www.espiritualismo.info/simbolos.html

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geometria que parte da emoção e não da racionalidade também é algo pelo qual a obra de arte vai se servir como uma raíz de onde tudo ganhará vida. As formas farão o mesmo papel das raízes possibilitando uma comunicação entre o mundo interno e externo ao seu criador. O artista se nutre da linha e com ela estabelece comunicações entre toda a composição. Seus sentidos captam sensações do meio externo que são traduzidas por cores, formas circulares e abstrações, como as folhas captam sensações do ambiente e as leva até a coluna central da planta para então chegar a raiz. Contudo, a obra pictórica apresentada nos mostra que pode haver na geometria uma sensibidade que nasce da união dos elementos plásticos e nos mostra uma geometria que nasce da invisibilidade de algo além do traço na sua mais pura essência.

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http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=artistas_ biografia&cd_verbete=3203&cd_idioma=28555&cd_item=1 http://www.abc.med.br/p/324025/sonambulismo+o+que+saber+sobre+ele.htm http://jarinamenezes.com.br/

Sobre o acervo iconográfico do MASC, exercícios de leitura

Os textos que compõem esta seleção constituem-se em trabalhos de graduandos do Curso de Artes Visuais– CEART/UDESC que cursaram as disciplinas Teoria e História da Arte IV no primeiro semestre de 2014 e Teoria e História da Arte V no segundo semestre do mesmo ano. Trata-se de jovens em formação artística que olham e tentam pensar artistas reconhecidos em diferentes momentos de sua produção e que fazem parte do acervo permanente do MASC. Foram produzidos como exercícios de leitura para que o repertório das vanguardas artísticas ganhasse um pouco mais de amplitude e pudesse ser compreendido como criação de problemáticas relacionadas à poética e à fatura, a qual continua reverberando até a atualidade e em diferentes lugares.

Organização de textos: Rosângela M. Cherem Editoração e diagramação: Fernanda do Canto

10 O erotismo como potencia.pdf

Como Heil afirma: “O processo criativo e a técnica despejam-se den- tro de mim, como fios coloridos, prontos para serem executados. Não me interessa.

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2017-2018 All State Junior Chorus Audition Selections. O. Mu sic, sweet mu sic, thy prai ses we will sing. we will mf. -. -. -. 5 tell of the plea sures and hap pi ness ...

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convención y en ella se oculta. Pero, ¿qué obliga al único a temer al vecino, a pensar y. actuar como lo hace el rebaño y a no sentirse dichoso consigo mismo?

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La situación va generando una tensión agridulce que llenará todo el relato, acercamientos y. desplantes, esperanzas y dolor. Atenta a lo cotidiano, la prosa de ...

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