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A ÁRVORE DA VIDA E A ÁRVORE DO CONHECIMENTO O retorno de um mito em Grande sertão: veredas

Ernildo Stein*

I “O mundo era tão recente que muitas coisas não tinham nome e para mencionálas era necessário apontar com o dedo”. (G.Garcia Marques, Cem anos de solidão)

Procuramos separar aquilo que foi pensado em conceito, e é posto como geral pelo sujeito dos fatos singulares, daquilo que nos é dado como realidade. Assim, submetemos ao geral aquilo que é singular. Este comportamento é próprio do ser humano, ainda que se distinga em duas direções fundamentais. Na filosofia, a separação entre o geral e o singular recebeu uma justificação em vários tipos de teoria. As diferentes teorias que procuram justificar essa separação são denominadas teorias do conhecimento que se preocupam em trazer modelos teóricos, para pensar a relação entre o geral e os fatos singulares, os termos gerais e os termos singulares. Do ponto de vista do mito, o geral é representado através de algo individual na forma de um ser numinoso que atua em todos os objetos e relações singulares, ou neles está presente. É por isso que, do ponto de vista mítico, não existem termos singulares como simples caso de um geral abstrato, pois no mito o geral está presente de modo substancial, de tal modo que não existe algo puramente geral, porque o geral é sempre

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representado por um ser numinoso e individual. Podemos imaginar o quanto custou a Platão pensar esta relação de conceito e realidade no mito. Foi este filósofo que dedicou seus diálogos a uma interpretação lógica dessa relação que acontece no mito. Temos que usar aqui a palavra “mito” assim como usamos a palavra “ciência”, como uma estrutura do pensamento. É claro que os conteúdos desses dois conceitos são muito diferentes. Mas tanto o mito como a ciência possuem um fundamento ontológico, pois são um recurso que o ser humano utiliza, como sistemas da experiência, para experimentar a realidade e nela agir. II

O mito que aparece no livro do Gênesis(cap.2 e 3), que trata da árvore da vida e da árvore do conhecimento, pode ser considerado uma espécie de arquétipo para apresentar a separação entre o geral e o particular. O versículo 9 diz o seguinte: “E Deus, o Senhor, deixou crescer sobre a Terra todos os tipos de árvores, agradáveis de serem vistas e boas para comer, e a árvore da vida em meio ao jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal.” Logo adiante, diz Deus a Adão: “Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, tu não deves comer”(2, 17) No capítulo terceiro do mesmo livro, a Bíblia diz: “E Deus, o Senhor, disse: Veja, Adão se tornou como alguém dos nossos e sabe o que é o bom e o mau.Que agora não estenda sua mão e colha da árvore da vida e coma e viva eternamente”(3, 22). Segue-se, pois, que Deus não quer que o homem, que se apoderou do saber com o fruto da árvore do conhecimento, também não se alimente da árvore da vida. Portanto, fica interditado tanto tomar da árvore da vida como da árvore do conhecimento. Temos, assim, duas interdições, mas elas provem de razões diferentes. A primeira visa impedir que o homem conheça como Deus, e a segunda, impedir que o homem viva 2

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eternamente. Existe um universo de tensões nessa relação entre conhecer de maneira absoluta e viver eternamente. O mito bíblico fala de duas árvores diante das quais os pais da humanidade devem se precaver. Nunca saberemos toda a dimensão simbólica que se esconde nessa narrativa, pela qual se introduz uma diferença que podemos considerar como dois modos antropológicos fundamentais determinantes do ser humano. Não pretendemos aprofundarnos em exegeses das origens e do sentido desses primeiros textos do Antigo Testamento. O que nos importa é perceber nessa paisagem - que podemos denominar, com Valéry, uma “geografia do coração” - uma primeira divisão, por onde são manifestadas as duas principais formas do grande mito de origem da humanidade. Elas são apresentadas como árvores, ao lado de “todo tipo de árvores” (plantas prazerosas para se ver e gostosas de serem comidas). São árvores muito particulares, e de uma importância a que se liga o destino humano. Comer delas não é usufruir de um alimento, como no caso dos outros tipos de plantas. Portanto, nem as duas árvores, nem os dois modos de comer de seus frutos, é um simples alimentar-se fisicamente. Nesta “geografia do coração”, as duas árvores são lugares e ocasião de iniciação. Naturalmente, ainda expressos pelo mito, isto é, num mundo em que os fatos singulares não são simplesmente casos de um geral abstrato, onde esse é ainda representado por uma dimensão individual e numinosa. Nesse estado primordial, estão em jogo modalidades de experiência, já num primeiro esforço de sistematizar a condição primeira do ser humano, mediante uma diferença. Mas essa diferença não é ainda uma separação de conceitos em seu significado abstrato. É assim que temos que tomar o ser humano posto diante de uma situação que o humaniza, dado que deve decidir - e isso significa que ele é livre - sobre seu destino, sabendo fazer a escolha certa. O que efetivamente aconteceu como produto 3

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da decisão dos primeiros homens pode ser lido a contrapelo das correntes interpretações exegéticas. Há uma libertação no gesto de tomar e comer o fruto da árvore proibida. O aproximar-se da árvore do conhecimento, e saborear daquilo que nela se oferecia maduro, livraria o casal de humanos de um modo de se compreender a partir de uma interdição. O conhecimento resultado da transgressão torna os dois seres humanos capazes de se encaminharem para uma nova estrutura de pensamento, isto é, de produzirem uma diferença que teria sua consequência irreversível: não deverão comer do fruto da árvore da vida. Aliás, ao comerem do fruto da árvore proibida, era inevitável que entrassem no estado de quem comeu da árvore da vida, isto é, de descobrirem que eram mortais. Saber o que é bom e mau, pela experiência da árvore do conhecimento, combinado com o apanhar e comer da árvore da vida, deve ser interpretado ao contrário do “viver eternamente”. A diferença introduzida pelas ações dos dois seres humanos representa justamente os limites que lhes seriam mostrados pela consumação do fruto da árvore da vida. E esse está representado pela experiência de serem finitos. A expressão “e vivam eternamente” deve ser entendida como “queiram viver eternamente”, porque se sabem mortais, o que, após os acontecimentos primeiros, torna-se irreversível como desejo e irrealizável como experiência. Daí os dois despertarem para sua condição efetiva de seres mortais. Não fazemos menção do que ocorre com a intervenção da serpente. O demônio, o mal já havia. Foi introduzido pela desobediência o mal no mundo dos homens, para então se tornar um destino. O temor expressado pelo Senhor, de que agora também possam fruir da árvore da vida, pode ser entendido antes como uma primeira misericórdia: O ser humano a que se deu origem é mortal. Então se introduz uma segunda diferença: nas condições reais do ser humano, ser mortal e aspirar à imortalidade, esta é a tensão fundamental nascida da 4

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ousadia de o homem e a mulher comerem da árvore do conhecimento, e aí já descobrirem o que lhes traria comerem da árvore da vida. O que comumente é apresentado como queda original, e vivido como culpabilidade primeira, é propriamente o começo da história humana. Assim, o mito nos inicia na história original. Os gregos remetem essa história original a uma archè, como evento de um tempo sem data que se deu e sempre de novo se repete. Essa archè tipicamente grega se dá num espaço transcendente que, no entanto, vai se imprimindo nos humanos como um selo. No entanto, mesmo que essa archè leve à metafísica, esta é entendida como constante liberdade de pensamento teórico(théorein), mesmo que a metafísica, no final - como pensava Aristóteles - , tenha que ser uma ciência de Deus. Mas o filósofo acrescenta que esse Deus como pensamento de pensamento é vida. Já elevado à condição de pensamento racional (aparentemente liberado do mito), pelo seu arquétipo o ser humano vê surgir à sua frente, não mais a árvore do conhecimento e a árvore da vida, mas conhecimento e vida (nóesis noèsios e bíos). Olhada à luz do mito da árvore do conhecimento, a metafísica se apresenta, com relação a ele, como a cópia em relação à imagem originária que seria o arquétipo. Repete-se, assim, como que a “archè” desse mito na história da metafísica. “Visto assim, a irrupção do lógos grego no mundo do mito é uma parábola para o apanhar da árvore do conhecimento, por um lado, e por outro, o mito para o qual o lógos trouxe um fim, é uma parábola para uma relação ainda imediata do homem com o divino.” (Hübner, 1987, p.28)

III

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Entremos nas veredas do sertão dos Gerais. Riobaldo diz: “Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe.” (79) “Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera: digo.” (218) “Sertão: é dentro da gente.” (235) “O sertão tem medo de tudo”.(237)“Travessia, Deus no meio.Quando foi que eu tive minha culpa?”...“Sertão é o sozinho...eu sou muito do sertão?” “O São Francisco partiu minha vida em duas partes.” (235) “Travessia de minha vida.” “As grandes coisas, antes de acontecerem. Agora, o mundo quer ficar sem sertão.” (220) “Mas, tem horas em que me pergunto: se melhor não seja a gente tivesse de sair nunca do sertão. Aí era bonito, sim senhor. Não se tinha perigos em vista, não se carecia de fazer nada.” (218) “Digo ao senhor: tudo é pacto... O sertão tem medo de tudo.” (237) Com estas passagens, Rosa cria o cenário, desenha o ambiente e faz aparecer a sua “geografia do coração”. Riobaldo diria: “As coisas que eu tenho de ensinar à minha inteligência.” (270) É o mito que toma forma numa paisagem em que se acumulam diversas camadas, reunindo os ingredientes em que o personagem central se move e interpreta seu mundo. Não é mais o mito arcaico, onde o particular invade o geral; já temos algo do geral, certas “verdades” invadindo o particular. É por isso que Riobaldo diz “eu só queria era ter nascido em cidades (...) para poder ser instruído e inteligente!” (308) Temos assim o próprio personagem do mito, procurando e desejando sair da sua maneira de compreender as coisas. Riobaldo, tendo ouvido falar que Hermógenes tinha um pacto com o demônio, começou a remoer a idéia de que teria que fazer também um pacto semelhante para poder vencer esse inimigo. Mas suas condições para um pacto teriam que ser muitas vezes repassadas pela sua cabeça, pois já tinha um pacto com Deus. Seria compatível? Mas a tentação para o pacto

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era vista também porque, com o ir e vir dessa possível contradição em seu solilóquio, era visto como um caminho em busca de alguma certeza. Riobaldo tinha que passar ainda por essa tomada de decisão para a qual não tinha tido coragem. Essa experiência deveria levar à última e decisiva iniciação que viria a superar a fraqueza que lhe vinha apenas da vontade de saber. Riobaldo descreve assim, aquilo que ele deveria fazer num mundo em que “tudo é pacto”. Tinha que vencer aquilo que o amedrontava dentro do homem e que não compreendia. “Eu tinha medo de homem humano.” (307) Descreve, da seguinte forma, o que devia fazer para produzir essa última iniciação: “Aquilo, que eu não tinha sido capaz de executar. Aquilo, para satisfazer honra de minha opinião, somente que fosse. – ‘Ah, qualquer dia destes, qualquer hora...’ – era como eu me aprazava, o dum dia, duma noite. Duma meia noite. Só pra confirmar constância da minha decisão, pois digo, acertar aquela fraqueza. Ao que, alguma espécie aquilo continha? Na verdade real do Arrenegado, a célebre aparição, eu não cria. Nem. E, agora, com isto, que falei, já está ciente o senhor? Aquilo, o resto... Aquilo – era eu ir à meia-noite, na encruzilhada, esperar o maligno – fechar o trato, fazer o pacto!” (310) No meio dos Gerais atravessados pelas veredas, Riobaldo, atravessado por dúvidas e medos, procura entre os buritis, que ocupavam todo o espaço, um lugar adequado para a sua experiência. Era necessário encontrar ali, talvez numa elevação, o que povoa tantos mitos primordiais: a árvore. Desde o começo da obra aparecem as árvores: “Estas árvores: essas árvores. Ei, boto machado em toda árvore.” Assim como no mito primordial, era necessário que o evento transformador acontecesse debaixo de uma árvore, em um lugar muito especial, as “Veredas Mortas”. “Era no entardecer, sombra de sombra - é o que eu digo, chegava o lusco-fusco”. Riobaldo não cabia em si de tanto arrojo. Sobretudo, naquela hora e naquele dia. Nunca fizera nada semelhante. Eram “desordens que 7

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cabeça de homem não cogita.”(316) Diz “retrocedi de todos”, ainda que reconheça: “Somente com a alegria é que a gente realiza bem – mesmo até as tristes ações.”(316) Nesse estado de espírito, Riobaldo inicia sua caminhada: “Adjaz o campo, então eu subi de lá, noitinha – hora em que capivara acorda, sai de seu escondido e vem pastar. Deus é muito contrariado. Deus deixou que eu fosse, em pé, por meu querer como fui. Eu caminhei para as Veredas-Mortas (...) e eu ia estudando tudo. Lugar meu tinha de ser a concruz dos caminhos. A noite viesse rodeando. Aí friazinha. E escolher onde ficar.” (316-317) “O que tinha de ser melhor debaixo de um pau-cardoso – que na campina é verde e preto fortemente, e de ramos muito voantes, conforme o senhor sabe, como nenhuma outra árvore nomeada. Ainda melhor era a capa-rosa - porque no chão, bem debaixo dela, é que o Careca dança, e por isso ali fica um círculo de terra limpa, em que não cresce nenhum fio de capim; e que por isso de capa-rosa do judeu nome toma. Não havia. A encruzilhada era pobre de qualidades dessas. Cheguei lá, a escuridão deu. Talentos de lua escondida. Medo? Bananeira treme de todo lado. Mas eu tirei de dentro de meu tremor as espantosas palavras. Eu fosse um homem novo em folha. Eu não queria escutar meus dentes. Desengasguei outras perguntas. Minha opinião não era de ferro? Eu podia cortar um cipó e me enforcar pelo pescoço, pendurado morrendo daqueles galhos: quem-é-que quem me impedia?! Eu não ia temer. O que eu estava tendo era o medo que ele estava tendo de mim! Quem é que era o demo? O sempre-sério? O pai da mentira? Ele não tinha carnes de comida da terra, não possuia sangue derramável. Viesse viesse, vinha para me obedecer. Trato? Mas trato de iguais com iguais. Primeiro, eu era que dava ordem. E ele vinha para supilar o ázimo do espírito da gente? Como podia! Eu era eu – mais mil vezes – que estava ali, querendo, próprio para afrontar

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relance tão desmascarado. Destes meus olhos esbarrarem num ror de nada.” (317)

Assim preparado, Riobaldo entra na experiência que não se explica. Ao seu redor, tudo assusta. Acima dele, nenhuma constelação, nem o Órion nem as Três Marias. “Mas o Cruzeiro ainda rebrilhava a dois palmos, até que descendo. A vulto, quase encostada em mim, uma árvore mal vestida; o surro dos ramos. E qualquer coisa que não vinha. Não vendo estranha coisa de se ver.” (318) Então ele começa a expressar os seus desejos: “Eu queria ser mais do que eu.” (...) “Acabar com o Hermógenes!” E assim teve mais coragem: “Eu esperava, eh! De dentro do resumo e do mundo em maior, aquela crista eu repuxei, toda, aquela firmeza me revestiu: fôlego de fôlego – da mais força de maior coragem. A que vem, tirada a mando de setenta e sete distâncias do profundo mesmo da gente.” (319) Armado de suas certezas-incertezas, aparentemente firme nas suas intenções, munido de sua vontade, Riobaldo invoca Lúcifer, e então vive o que pediu, só que lhe vem a consequência da grande luta. Chega a dizer: “Porque a noite tinha de fazer para mim um corpo de mãe – que mais não fala, pronto de parir, ou quando o que fala a gente não entende?” (320) E então, desmaia. “Despresenciei. Aquilo foi um buracão de tempo.” (320) Saído do transe e da ausência de si, ele descreve a experiência que o faz exclamar, agarrado a uma árvore: “Posso me esconder de mim?” Se no mito adâmico o ser humano procura se esconder é de Deus, no mito moderno da subjetividade que se submeteu à prova, ele procura se esconder de si. Alcançou pelo pacto debaixo da árvore o que queria. Após essa longa noite de confrontos, Riobaldo exclama: “Eu fosse um homem novo em folha.” (317) “Eu queria ser mais do que eu...”(...) “Digo direi, de verdade: eu estava bêbado de meu.”(319) “Tudo agora reluzia com clareza”. “Tudo agora era possível.”(329) “Agora quem é que é o Chefe? Quem é que é o

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chefe?” (330) A essas exclamações ele houve a confirmação: “Tu o chefe, chefe, é. Tu o chefe fica sendo...” (330)“Tinham me dado em mão o brinquedo do mundo.”(332) Era, portanto, o poder que Riobaldo conseguira; o poder para comandar os jagunços na perseguição de Hermógenes. Mas era também o poder de quem na solidão da noite dos gerais recebera um novo modo de se compreender como um homem do sertão. “A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro...” (212) Algo semelhante temos no poema de Drummond “A máquina do mundo”. Riobaldo, passada a experiência, “entra numa alegria estrita, contente com o viver, mas apressadamente.” A exaltação que se apodera daquele que procurara o pacto, e suportara as consequências do medo debaixo da árvore, contrasta com a do poeta que também enfrentara a escuridão maior, vinda dos montes “e de meu próprio ser desenganado”, e topou com a máquina do mundo. “Abriu-se majestosa e circunspecta – sem emitir um som que fosse impuro-nem um clarão maior que o tolerável”. Mas o poeta recusa o que lhe iria mostrar de todos os segredos do mundo, a máquina do mundo. Ele não é tomado de euforia nem alegria, depois de passar pela experiência de tudo saber: “Baixei os olhos, incurioso, lasso desdenhando colher a coisa oferta – que se abria gratuita a meu engenho.”

IV

Não precisamos fazer longas considerações sobre a tentativa que Guimarães Rosa realiza com sua retomada do mito primordial do paraíso, para descobrirmos como, em meio às suas imagens retorcidas, emerge o antigo enigma que a Bíblia enfrenta com a árvore da vida e a árvore do conhecimento. É assim que essas páginas, que representam o núcleo de

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Grande Sertão:Veredas, podem ser consideradas como o lugar em que são repostas as grandes questões do bem e do mal que a humanidade enfrenta. Vamos traçar alguns paralelos que sirvam para introduzir a melhor compreensão das proximidades e das diferenças entre o mito do paraíso e o mido do grande sertão. Em ambos os mitos são apresentados os aspectos universais do enfrentamento do ser humano com seu destino. Podemos, assim, falar de um mito das origens e de um mito da conversão. Nesses dois mitos se desenrolam duas dramaturgias. De um lado, temos a dramaturgia da origem, e, de outro lado, a dramaturgia da conversão. Podemos lembrar, para melhor configurar o primeiro mito, a frase do Ivan Karamàzov de Dostoievsky: “Se Deus não existe, tudo é permitido.” É isso que é representado pela cena do mito do paraíso. As duas árvores representam a introdução da diferença como as árvores do conhecimento e da vida. Do fruto de nenhuma delas Adão e Eva podem usufruir. É Deus que, tendo-lhes dado tudo para sua felicidade, proíbe que comam da fruta da árvore do conhecimento, e, em consequência da não obediência, é-lhes vedado também que se alimentem da árvore da vida. Era a humanidade que iria tomar uma forma determinada de existência sob os cuidados do ser supremo. Mas os primeiros seres humanos tomaram uma decisão que deu outra direção ao modo de a humanidade existir na Terra. Com essa decisão foi inaugurada a dramaturgia das origens. Ela se desenrola no sertão do paraíso sob as árvores, onde entram em conflito as forças do bem e do mal, Deus e o demônio. Do centro do paraíso jorrava um rio que se espalhou pela Terra, desdobrando-se em quatro novos rios dos quais os dois últimos são o Eufrates e o Tigre. Podemos imaginar esse rio como o rio que divide o paraíso, e é sempre do outro lado dele que está o bem. Mas para chegar a ele era necessário iniciar a viagem da humanidade. Há um outro evento que

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nos lembra os dois lados do rio/mar cuja travessia traz a promessa da terra prometida onde corre leite e mel a terra sem males. No grande sertão, por outro lado, podemos ouvir o próprio Riobaldo dizer: “Se não tem Deus, então a gente não tem licença de coisa nenhuma!” (260) Assim como no sertão do paraíso, a dramaturgia das origens representa a ilusão dos seres humanos, de pensarem que Deus apenas morava com eles no paraíso para que nem tudo fosse possível. No paraíso do sertão, somos surpreendidos por um jagunço que aprendeu, no drama das incertezas dos gerais, a encarar a dramaturgia da conversão. Para Riobaldo, o ser humano está no sertão onde Deus espreita, na volta de alguma vereda. Mas ele está ali de um certo modo neutro: “Deus escritura só os livros-mestres.” Mas Riobaldo sabe que “sertão é dentro da gente”. É assim que Riobaldo enfrenta, na dramaturgia da conversão, o bem e o mal, não como interdição: “Travessia, Deus no caminho.” (...) “Deus nunca desmente. O diabo é sem parar”. É assim que o mito moderno de Guimarães Rosa introduz a ideia de um caminho: “Minha vida teve meio-do-caminho?” Também o sertão está marcado pelo nascimento de um rio: “O meu Urucuia vem, claro, entre escuros. Vem cair no São Francisco, rio capital. O São Francisco partiu minha vida em duas partes”. Na dramaturgia das origens, o rio nasce e se dispersa em rios. Na dramaturgia da conversão, o rio nasce e recolhe os outros rios. “Eu queria formar uma cidade da religião”, afirma Riobaldo. Sem ela, a sua vida, dividida em duas partes pelo São Francisco, estava sempre em dúvidas. Também o rio do sertão possuía duas margens, representando o bem e o mal. É nele que aparece a diferença entre os humanos e seu modo de existir. A margem esquerda é habitada pelos inimigos, pelo Hermógenes que Riobaldo irá combater. A margem direita é o lugar onde habita o bem. É ali que Riobaldo quer fixar moradia definitiva. É lá que ele percebe: 12

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“Deus é que deixa se afinar à vontade o instrumento, até que chegue a hora de se dançar. Travessia, Deus no meio. Quando foi que eu tive a minha culpa?” (235) Na margem direita, Riobaldo se prepara para a sua travessia, travessia do rio e travessia da vida, pois irá lutar e vencer o mal, que se encarna em seres humanos. “Mas o demônio não existe real.” O herói sabe que deve enfrentar a travessia, pois: “O real não está na saída (nas origens) nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.” (52) Riobaldo se prepara para a grande “luta” sob a árvore onde irá enfrentar o pacto, pois, como sabe, “tudo é pacto”. O jagunço, por isso, deve enfrentar aquela noite dos Gerais, debaixo da árvore, na luta para ver se o demônio é, e se ele tem força para enfrentá-lo. “É preciso de Deus existir a gente, mais; e do diabo divertir a gente com sua dele nenhuma existência”. “Deus está em tudo _ conforme a crença?” Assim como no sertão do paraíso Deus fez um pacto com os primeiros pais, e eles falharam debaixo da árvore da vida e do conhecimento, assim, Riobaldo enfrenta uma experiência nas Veredas-Mortas /Altas com um pacto, no qual ele, enfraquecido pela vivência da noite debaixo da árvore, sai fortalecido para a luta. A dúvida de Riobaldo continua não inteiramente aplacada, pois está diante de um impasse. Na verdade, não pode escolher, e, contudo, há dois pactos que parecem necessários para ele vencer o mal. O primeiro pacto, ele fez, na noite dos Gerais, debaixo da árvore. Mas aí ele se pergunta: “E se eu quiser fazer outro pacto, com Deus mesmo – posso? – então não desmancha no rás tudo o que em antes se passou?” (237) O que percebemos é que Riobaldo, aflito, na dramaturgia da conversão, não sabe se pode fazer o pacto debaixo da árvore para se vingar de Hermógenes com sucesso, sem que desfaça o pacto que já fez com Deus. É a grande dúvida diante da vingança.

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A árvore da vida e a árvore do conhecimento, e a árvore das Veredas-Mortas /Altas, foram o ponto de partida para a nossa análise filosófico-literária. Mas seja-nos permitido uma breve desconstrução das duas dramaturgias sob as árvores. Riobaldo mesmo nos autoriza: “Mas, por cativa em seu destinozinho de chão, é que árvore abre tantos braços.” (327) O mito das origens nos mostrou o nascimento dos primeiros humanos, singulares. Não havia o conceito de homem para Adão e Eva se compreenderem. No início de nossa exposição, fizemos a ligação entre o geral e o singular, e percebemos que, no mito adâmico, o singular invade e abafa o geral, e é por isso que não há ainda uma linguagem que se mova no embate entre termos gerais e termos singulares. Era o começo da linguagem, mas ela provinha do Ser supremo. Adão e Eva se alfabetizaram com ele e aprenderam a falar. Mas esse tipo de aprendizagem não levaria para além do mito, para dentro da história, se permanecesse apenas isto que os eruditos da linguística chamam de parataxe. A humanidade, quando surgiu, assim nos narram os livros mais antigos, aprendia com o começo de uma frase que dizia: “E então, o Senhor disse...” Aos homens apenas cabia repetir o que provinha dos senhores absolutos. No mito da conversão, a própria dramaturgia da conversão fez Riobaldo tomar consciência de que ele já estava imbuído de conceitos que aprendera, e de que, por diversos caminhos, chegara à linguagem com que falava do sertão. “Esta vida está cheia de ocultos caminhos.”(119) “Tenho meus fados. A vida da gente faz sete voltas – se diz. A vida nem é da gente...” Dissemos isto para termos ocasião de mostrar que o mito das origens é o mito da heteronomia, enquanto o mito da conversão é o mito da autonomia. Nele, a linguagem se torna hipotática. Riobaldo tem sua linguagem aprendida na dúvida, na pergunta, na contestação. Desse modo, a linguagem do mito da conversão apenas simula o que poderia ser 14

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chamado “a marca do mito das origens”. É por isso que Riobaldo mantém constantemente um diálogo com alguém ao qual diz: “mas, isso, o senhor então já sabe.” (234) Riobaldo não se submete ao interlocutor invisível, apenas o sustenta para conferir o que fala, a partir de sua própria análise e reflexão. Quando falo da dramaturgia da conversão, e do mito que descobri por trás da experiência de Riobaldo sob as árvores das Veredas-Mortas /Altas, procurei sugerir, nessa análise, a possibilidade de pensar a epopéia do herói de Guimarães Rosa, a partir de um novo centro de interpretação, até agora não explorado.

Referências HÜBNER, Kurt: “Die Metaphysik und der Baum der Erkenntnis”. In: Metaphysik nach Kant? Org. Dieter Hendrich; Rolf-Peter Horstmann. Stuttgart: Klett-Cotta, 1988, p.26-43. ROSA, João Guimarães: Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1967. STEIN, Ernildo: “A conversão mitopoética, chave hermenêutica de Grande sertão: veredas.” In: A instauração do sentido. Porto Alegre: Movimento, 1977, p.11-27. STEIN, Ernildo: “Grande sertão: veredas – verdade e método(o estranho e o familiar).”In: Anamnese – a filosofia e o retorno do reprimido. Porto Alegre: Edipucrs, 1997, p.135-151.

* Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCRS; [email protected]

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Veja, Adão se tornou como alguém dos nossos e sabe o que é o bom e o. mau.Que agora não estenda sua mão e colha da árvore da vida e coma e.

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