SIEERE II SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS ÉTICOS E RETÓRICOS EM EDUCAÇÃO

ANAIS Tarso B. Mazzotti, Renato José de Oliveira; Andrea Penteado (orgs) 1a. edição Rio de Janeiro FE-UFRJ - 2015 ISBN 978-85-89943-21-5

UFRJ

2

ANAIS DO II SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS ÉTICOS E RETÓRICOS EM EDUCAÇÃO Universidade Federal do Rio de Janeiro Reitor: Carlos Antônio Levi da Conceição Faculdade de Educação Direção: Ana Maria Ferreira da Costa Monteiro Universidade Estácio de Sá Reitor: Ronaldo Mota Vice-reitor de Pesquisa e Pós-graduação: Durval Corrêa Meirelles Comitê de Coordenação Dra. Andrea Penteado (UFRJ) Dr. Renato José de Oliveira (UFRJ) Dr. Tarso Bonilha Mazzotti (UNESA) Comitê de Organização Adriana Marins de Almeida Atanes (Prefeitura de Duque de Caxias) Edith Maria Magalhães – Doutoranda em Educação (PPGE/UFRJ) Glauria Janaína dos Santos – Doutora em Educação (PPGE/UFRJ) Helen Silveira Jardim de Oliveira – Doutora em Educação (PPGE/UFRJ) Jairo de Carvalho Guimarães- Doutorando em Educação (DINTER UFRJ/UFPI) Janaina Pires Garcia – Doutoranda em Educação (PPGE/UFRJ) Oldênia Fonseca Guerra – Doutoranda em Educação (DINTER UFRJ/UFPI) Rita de Cássia de Souza da Silva – Mestranda em Educação (PPGE/UFRJ) Silvia do Socorro Celusso – Mestre em Educação (UNESA) Vicente Estevam- Doutorando em Educação (PPGE/UFRJ) Comitê Científico Dra. Ana Ivenicki Dra. Ana Maria Ferreira da Costa Monteiro Dra. Andrea Penteado (De Menezes) Dra. Cristina Nacif Alves Dra. Flavia Maria Schlee Eyler Dra. Laelia Carmelita Portela Moreira Dr. Marcio Silveira Lemgruber Dr. Marcus Vinicius da Cunha Dra. Monica De Almeida Duarte Dra. Monica Rabello de Castro Dr. Renato Jose de Oliveira Dra. Rosalia Maria Duarte Dr. Tarso Bonilha Mazzotti Dr. Walter Omar Kohan

2015 II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

3

SUMÁRIO EIXOS: Cotidiano Escolar e Estudos de Currículo A DIFERENÇA QUE NOS IGUALA: UMA EXPERIÊNCIA SOBRE DIVERSIDADE NA EDUCAÇÃO INFANTIL....................................................... 5 APRENDIZAGEM ÉTICA E ADOLESCÊNCIA: IDENTIDADE EM MOVIMENTO.................................................................................................... 13 ARGUMENTAÇÃO NO DISCURSO DE EX-ALUNOS DA ESCOLA TIA CIATA SOBRE SUA PEDAGOGIA PARA MENINOS E MENINAS EM SITUAÇÃO DE RUA ........................................................................................ 25 ARTE, PEDAGOGIA E RETÓRICA NA OBRA DO PADRE ANTÔNIO VIEIRA ...........................................................................................................................38 EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: HIATOS E ASSIMETRIAS DE UNIVERSOS SIMBÓLICOS EM DISPUTAS ................................................... 49 EDUCAÇÃO MORAL E PERSONALIDADE: EXERCITANDO AS VIRTUDES NA INFÂNCIA .................................................................................................. 65 ENSINO DE ÉTICA POR MEIO DE GAMES DIGITAIS: DESAFIOS E POSSIBILIDADES ........................................................................................... 79 INCLUSÃO E AS VERTENTES QUE NOS LEVAM A RECONHECER O OUTRO COMO ALGUÉM DE DIREITOS......................................................... 89 POR QUE ENSINAR E APRENDER MÚSICA? UMA ANÁLISE RETÓRICA DOS ARGUMENTOS DE DIFERENTES REPRESENTANTES INSTITUCIONAIS ............................................................................................ 99 EIXOS: Formação de Professores e Políticas Públicas Educacionais DIDÁTICA: TEMPERO OU RECEITA DA PRÁTICA PEDAGÓGICA ............ 112 OS ESQUEMAS RETÓRICOS PREDOMINANTES NO PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO ................................................................................................... 126 TECNOLOGIAS DIGITAIS E FORMAÇÃO DE PROFESSORES NA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL: PROBLEMATIZANDO ASPECTOS TÉCNICOS, ÉTICOS E ESTÉTICOS ................................................................................. 139 TRABALHO DO PROFESSOR/SABERES DIDÁTICOS PEDAGÓGICOS É A ANTENA E O BOMBRIL ................................................................................ 153

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

4

EIXOS: Fundamentação Epistemológica e/ou Metodológica do Campo e Ensino Superior A RETÓRICA COMO INSTRUMENTO DE FORMAÇÃO DO CIDADÃO GREGO .......................................................................................................... 165 ANÁLISE RETÓRICA DAS MEMÓRIAS DE PASCHOAL LEMME ............... 178 EDUCAÇÃO MUSICAL NA CONTEMPORANEIDADE: UM ESTUDO DE CASO COMPARATIVO ENTRE O CONSERVATÓRIO ESTADUAL DE LEOPOLDINAMG E O INSTITUTO VILLA-LOBOS-RJ ........................................................ 192 ENTRE O FEIJÃO E O SONHO: UMA ANÁLISE DA RETÓRICA NETATIVISTA SOBRE A EDUCAÇÃO PÚBLICA DE QUALIDADE NO RIO DE JANEIRO. 207 ESCOLA EM DOMICÍLIO COMO TERMO I DA DISSOCIAÇÃO DA NOÇÃO DE ESCOLA ........................................................................................................ 220 ÉTICA E PAIXÕES: INTERFACES DE UMA EDUCAÇÃO ÉTICA- EMOCIONAL NA FORMAÇÃO DO SER NA CONTEMPORANEIDADE ............................. 231 GRADUADO EM ENGENHARIA, MAS FORMADO SOMENTE EM CÁLCULO....................................................................................................... 243 MARCOS DO DISCURSO DEWEYANO SOBRE A ARTE: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA PROBLEMATIZAR O ENSINO DAS LINGUAGENS ARTÍSTICAS................................................................................................... 256 O ESTUDO DAS METÁFORAS COMO FERRAMENTA DE ANÁLISE DE DISCURSO NA EDUCAÇÃO ......................................................................... 269 POR QUE UM ENSINO DA MATEMÁTICA COMO CÁLCULO? .................. 284 POR UM ESTUDO FILOSÓFICO DA FACE PROPRIAMENTE RETÓRICA DA METÁFORA ................................................................................................... 293 UM ESTUDO DAS INTERSEÇÕES ENTRE A NOVA RETÓRICA E O INTERACIONISMO SIMBÓLICO DE ERVING GOFFMAN ........................... 308

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

5

A DIFERENÇA QUE NOS IGUALA: UMA EXPERIÊNCIA SOBRE DIVERSIDADE NA EDUCAÇÃO INFANTIL Kaluany Honda Leone [email protected] Programa de Pós-Graduação em Educação – UFJF Gabriela Castro Andrade [email protected] Faculdade de Educação – UFJF Bolsista de Iniciação Científica - UFJF Lúcia Miranda Gouvêa [email protected] Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação e Diversidade – UFJF Karla Aparecida Gabriel [email protected] Programa de Pós-Graduação em Educação – UFJF

RESUMO Na história da humanidade, as relações sociais e morais foram estabelecidas e reguladas, partindo de meios controladores. Nossa história antropológica e sociológica foi sendo escrita, maculada por erros, muitas vezes irreversíveis, cometidos pelo homem e por sua busca incessante e indiscriminada por conquistas que o impeliam ao ter, em detrimento do ser. Com o tempo o homem lentamente percebeu que necessitava de um meio pelo qual suas convivências fossem conduzidas. O respeito a si mesmo e ao outro, fez nascer uma fonte de sustentação moral denominada ética. Nosso envolvimento com o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação e Diversidade da Universidade Federal de Juiz de Fora, nos proporcionou participar de discussões sobre a diversidade nas escolas e motivadas por tais discussões, embarcamos na viagem de conhecer a vivência da diversidade dentro do cotidiano escolar, sempre imersas nas questões relativas à postura ética frente à educação. Assim, estivemos presentes durante o ano letivo de 2014 em uma escola municipal da cidade de Juiz de Fora. A intervenção realizada em uma turma com alunos entre 4 e 5 anos, nomeada “Somos Todos Iguais na Diferença”, teve o objetivo de alterar a visão padronizadora e homogeneizadora que temos uns sobre os outros e assim produzir uma ruptura

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

6

paradigmática. Pensar a educação a partir desta lógica significa agir e fornecer possibilidades de transformação do mundo.

Palavras-chave: diversidade; diferença; ética; educação; prática.

Compreender inclui, necessariamente, um processo de empatia, de identificação e de projeção. Sempre intersubjetiva, a compreensão pede abertura, simpatia e generosidade. (MORIN, 2007, p. 95).

Ao longo da extensa história da humanidade, as relações sociais e morais foram estabelecidas, reguladas, perpetradas e execradas, partindo de meios controladores. Lutas físicas e psicológicas estabeleciam a vitória do mais forte, ainda que sua trajetória para atingi-la fosse escusa, arbitrária, inconsequente, inconsistente e até equivocada. Disputas de poder valorizavam o mais eloquente, o mais abonado, em suma, o que estabelecesse melhor envolvimento com o poder. Assim, nossa história antropológica e sociológica foi sendo escrita, maculada por erros, muitas vezes irreversíveis, cometidos pelo homem e por sua busca incessante e indiscriminada por conquistas. Conquistas essas, que o impeliam ao ter, em detrimento do ser. O tempo foi passando e o homem lentamente percebeu inúmeras vezes à custa de muito sofrimento, que necessitava de um meio pelo qual suas convivências sociais, afetivas, profissionais e mais do que tudo, suas verdades fossem conduzidas. O respeito a si mesmo e ao outro, fez nascer uma fonte de sustentação moral denominada ética. Os seres humanos, jovens e adultos, à medida que sua evolução histórica e comportamental avança, deparam-se com situações de vida, as quais os compelem em optar entre o certo e o errado, o bem e o mal. Essas escolhas estão impregnadas de tensão, visto que esses conceitos mutáveis e dinâmicos, ao longo dos tempos e em relação aos diferentes lugares do globo terrestre. O que parece ser correto para uma cultura pode não o ser em outra, da mesma forma que aquilo que parece bom, aceitável hoje, pode deixar de ser amanhã ou num futuro próximo. Nosso envolvimento com o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação e Diversidade da Universidade Federal de Juiz de Fora – NEPED/UFJF nos

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

7

proporcionou participar de discussões sobre a diversidade nas escolas e motivadas por tais discussões é que embarcamos na viagem de conhecer a vivência da diversidade dentro do cotidiano escolar, sempre imersas nas questões relativas à postura ética frente à educação. Cabe ressaltar que senso ético é algo que aprendemos ao longo da vida, através dos meios sociais e culturais aos quais pertencemos. Não nascemos com senso ético. Assim, aprendemos em casa, na escola, no clube, no mercado, no trabalho, na rua em que moramos, enfim, em todos os lugares que frequentamos. O nosso senso ético pode ser traduzido como os valores e condutas que orientam nosso modo de agir e pensar. Experiências vividas influenciam nosso senso ético. Além disso, talvez a compreensão do outro nos impulsione a desenvolver a ética. Nesse

sentido,

palavra compreender que

buscando

entender

“intelectualmente

o

significado aprender

da em

conjunto, comprehendere, abraçar junto (o texto e seu contexto, as partes e o todo, o múltiplo e o uno)” (MORIN, 2002, p. 95). Entendemos que essa compreensão passa por uma identificação com o outro, quiçá uma compreensão do outro como um ato de conhecimento da própria humanidade. Porém, nas palavras de Edgar Morin, a própria educação oferece obstáculos à compreensão, “uma vez que as barreiras exteriores à compreensão intelectual ou objetiva são múltiplas” (MORIN, 2002, p. 95). Compreender. Compreender o outro. Compreender os atores da escola. Compreender a vivência escolar na/com/para a diferença. Compreender o que desejam os sujeitos da escola em suas relações. Compreender a ética da vida escolar. Simplesmente, compreender. E foi buscando compreender tantas questões que estivemos presentes durante o ano letivo de 2014 em uma escola municipal da cidade de Juiz de Fora. Parte deste período foi caracterizado por uma observação de Iniciação Científica e outra parte por uma Intervenção ligada ao estágio curricular do curso de Pedagogia da Universidade Federal de Juiz de Fora. Uma escola de periferia, marcada pelas cicatrizes de uma sociedade mutiladora, caracteristicamente moderna. Acompanhamos uma turma de Educação Infantil, com alunos entre 4 e 5 anos.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

8

A intervenção nomeada “Somos Todos Iguais na Diferença”, teve o objetivo de alterar a visão padronizadora e homogeneizadora que temos uns sobre os outros e assim produzir uma ruptura paradigmática. Durante a intervenção os alunos ficaram atentos à leitura dos livros e participaram da conversa e dos diálogos que iam surgindo. Por viverem numa realidade com tantas diferenças já demarcadas, os alunos entendem a diversidade presente em seu cotidiano o que tornou a discussão ainda mais interessante. Os alunos tinham suas experiências pra contar e, em suas falas, era possível ver que já haviam sofrido algum tipo de preconceito ou que já estavam acostumados com situações de diferença no dia-a-dia. Queríamos, assim, quebrar aquele olhar que só vê a partir de um ponto de vista, que pode gerar racismo, xenofobismo e a concepção do Eurocentrismo. Nas palavras de Morin a possessão de verdades únicas e absolutas, de ideias arraigadas e os próprios discursos são produzidos para sustentar o preconceito e excluir. Edgar Morin vai recorrer “a vias intelectuais e éticas, que poderão desenvolver a dupla compreensão, intelectual e humana” (MORIN, 2002, p. 98). O egocentrismo cultiva a self-deception, tapeação de si próprio, provocada pela autojustificação, pela autoglorificação e pela tendência a jogar sobre outrem, estrangeiro ou não, a causa de todos os males. A sef-deception é um jogo rotativo complexo de mentira, sinceridade, convicção, duplicidade, que nos leva a perceber de modo pejorativo as palavras ou os atos alheios, a selecionar o que lhes é desfavorável, eliminar o que lhes é favorável, selecionar as lembranças gratificantes, eliminar ou transformar o desonroso (MORIN, 2007, p. 96). Nessa pesquisa, utilizamos a leitura dos livros de Todd Parr; “O livro da família” e “Tudo bem ser diferente” para realizarmos atividades e conversas com os alunos a fim de evidenciar nossas diferenças e mostrar que a partir delas somos todos iguais. Marques (2009) diz que a escola precisa refletir o momento histórico pelo qual está atravessando e considerar a diversidade como característica do sujeito em processo constante de transformação, a fim de oferecer uma educação para todos, visando o desenvolvimento integral e valorizando o sujeito sócio-histórico. Para tanto, fazemo-nos valer das palavras de Morin (2002, p. 55): II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

9

(...) a educação do futuro deve ser responsável para que a ideia de unidade da espécie humana não apague a ideia de diversidade e que a da sua diversidade não apague a de unidade. (...) Compreender o humano é compreender sua unidade na diversidade, sua diversidade na unidade. É preciso conceber a unidade do múltiplo, a multiplicidade do uno.

Pensando na complexidade de Morin (2000), como a capacidade de unir algo que não deveria ter sido separado, chegamos ao entendimento de que devemos promover uma maneira outra de nos relacionarmos com a diversidade no cotidiano escolar. Sobre a etimologia da palavra complexidade, Morin em sua obra “Introdução ao Pensamento Complexo” diz que tal palavra se refere à palavra complexus advinda do latim, cujo significado é “o que está tecido junto”. A complexidade é um tecido [...] de constituintes heterogêneas inseparavelmente associadas: ela coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Num segundo momento, a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo fenomênico (MORIN, 2005, p. 13).

Entendendo que a complexidade é parte inegável de nossa existência e buscando entender e encontrar um caminho pelo qual enveredar rumo ao estabelecimento da complexidade na vida do ser humano, Morin (2003) propõe uma auto-ética, que citamos: [...] surge certamente de uma moral banal. Mas o que me parece diferenciar minha auto-ética surge de três exigências: a preocupação autocrítica na ética-para-si; a consciência da complexidade e dos desvios humanos e uma moral da compreensão.

Morin (2001) diz que a auto-ética é prioritariamente benevolente, surge do horror pelo julgamento, da rejeição à exclusão e na esperança de salvação do indivíduo humano à perdição de sua condição humana. É uma proposta de autoconhecimento, uma construção, uma caminhada permanente de autoobservação que ao chegar ao final do túnel, encontra necessariamente com uma ética para o Outro, e que se faz indispensável em nossos dias (Morin, 2003). Em um caminhar ético, faz-se necessário o emergir da auto-ética, que segundo Morin (2003, p.76):

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

10

Significa que a ética se automatiza e funda-se apenas em si mesma, esta autonomia é obviamente, dependente das condições hierárquicas, sociais, culturais e psíquicas nas quais ela emerge.

As ideias propostas por Morin, de sua complexidade, de sua auto-ética, permitem pensar em uma prática. A compreensão do Outro e de todas as coisas a partir de um conhecimento que não nos pertence, significa enxergar com olhos que não são nossos, significa nos posicionarmos em um lugar onde “nós não somos” e a partir daí, tentar criar uma nova lógica através da qual se repense o quanto a educação é indissociável da sensibilidade e da empatia e o quanto ela pode suspender o julgamento. Suspender “um olhar que julga”. Talvez, na busca da suspensão do julgamento devêssemos buscar possibilidades de ver a diversidade com os olhos de uma criança, já que muita das vezes “priorizamos situações que não necessitam ênfase”. Quiçá fosse necessário refletir que a intolerância é nossa e não, necessariamente, do outro. E para não caímos na armadilha de estarmos falando uma grande mentira para nós mesmos, buscamos nas colocações de Edgar Morin, sobre compreender o outro na sua complexidade. a ética da compreensão pede que se compreenda a incompreensão... se descobrirmos que somos todos falíveis, frágeis, insuficientes, carentes, então podemos descobrir que todos necessitamos de mútua compreensão (MORIN, 2007, p. 100).

A auto-ética é uma forma de poder que existe a serviço do próximo. Sua vida pode ser “enfeitada” ou “enfeiada” mediante a prática da decência coletiva. Ao conseguirmos atingir esse patamar podemos entender a ética como a arte da compreensão do próximo, o que implica em respeitá-lo, aceitálo, questioná-lo, mas não excluí-lo e em uma perspectiva extrema, não eliminálo. As situações vividas e experienciadas na escola permitiram que pudéssemos perceber a necessidade de uma mudança na visão do próprio educador. Nesse sentido, a transformação da prática docente, coaduna com o respeito, o reconhecimento e a valorização da diversidade na sala de aula. Este é o modo de pensar que permite apreender em conjunto o texto, e o contexto, o ser e seu meio ambiente, o local e o global, o multidimensional, em suma, o complexo, isto é, as condições do comportamento humano. Permitenos compreender igualmente as condições objetivas e subjetivas (sefdeception, possessão por uma fé, delírios e histerias) (MORIN, 2007, p. 100).

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

11

Compreender a importância da educação para a compreensão é compreender a necessidade “da reforma planetária das mentalidades; esta deve ser a tarefa da educação do futuro” (MORIN, 2007, p. 104). Pensar a educação nessa lógica significa agir e fornecer possibilidades para transformar o mundo. REFERÊNCIAS MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: Repensar a reforma, reformar o pensamento. Trad. Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários a Educação do futuro. Trad: Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. 5a edição. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2002. MORIN, Edgar. Meus demônios. Trad. Leneide Duarte. 4ª. edição. Rio de Janeiro: Bertrand. 2003. MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2005. MORIN, Edgar. O método 6: Ética. Tradução Juremir Machado da Silva. 3. ed. Porto Alegre: Sulina, 2007. KALUANY HONDA LEONE – Mestre em Psicologia Cognitiva e Aprendizagem da Universidad Autónoma de Madrid. Mestranda em Educação do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora. Graduada em Pedagogia. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação e Diversidade da Universidade Federal de Juiz de Fora. GABRIELA CASTRO ANDRADE – Graduanda em Pedagogia. Bolsista de Iniciação Cientifica – BIC/UFJF. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação e Diversidade da Universidade Federal de Juiz de Fora.

LÚCIA MIRANDA GOUVÊA - Licenciada em Letras. Graduada em Pedagogia. Pós Graduada em Educação e Diversidade pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação e Diversidade – UFJF. Bolsista de Iniciação Científica – UFJF

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

12

KARLA APARECIDA GABRIEL - Mestranda em Educação do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora. Graduada em Pedagogia e em Economia. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação e Diversidade da Universidade Federal de Juiz de Fora.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

13

APRENDIZAGEM ÉTICA E ADOLESCÊNCIA: IDENTIDADE EM MOVIMENTO Ana Lidia Felippe Guimarães [email protected] Doutoranda do PPGE/FE/UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro Grupo de Pesquisa em Ética na Educação Thelma Taets [email protected] Mestre- Faculdade de Música/UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro Grupo de Pesquisa em Ética na Educação Luzia Cruz [email protected] Universidade Federal do Rio de Janeiro Grupo de Pesquisa em Ética na Educação Maria Judith Sucupira da Costa Lins [email protected] Professora Doutora da Faculdade de Educação/UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro Coordenadora de Pesquisa do Grupo de Pesquisa em Ética na Educação

RESUMO O presente trabalho diz respeito à pesquisa concluída em uma escola pública da Rede Municipal de Ensino do Rio de Janeiro em uma turma do 9º ano nas aulas de Educação Física Escolar intitulada: A aprendizagem de Virtudes e desenvolvimento moral nas aulas de Educação Física Escolar. Apresenta-se um recorte desta pesquisa, na qual se identificou a importância da aprendizagem ética na formação da identidade na adolescência. O objetivo geral foi identificar e analisar a aprendizagem ética na adolescência, por meio das virtudes da justiça, coragem, amizade e perseverança nas aulas de Educação Física. A filosofia Moral de Alasdair MacIntyre e a filosofia Theodor Adorno fundamentaram essa pesquisa no que tange á dimensão Ética. Quanto às questões ligadas à adolescência, destacamos a crise de identidade (ERIKSON, 1972) que desencadeará um processo de identificações com pessoas, grupos e ideologias. A metodologia dessa pesquisa de cunho qualitativo está apoiada na Escuta Sensível de René Barbier e os dados foram analisados a partir da técnica por Laurence Bardin. Palavras Chaves: Aprendizagem Ética; Adolescência; Educação Física; Escola

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

14

INTRODUÇÃO A função de professora de Educação Física Escolar na Rede Municipal de Educação da Cidade do Rio de Janeiro permitiu-me observar que há valores em conflito, o que leva à reflexão, frequentemente, sobre a Ética na educação. A preocupação e interesse acerca desse tema se dão sob a proposição de como a Ética se faz presente ou não na prática pedagógica da Educação Física. Aproximando a Educação Física Escolar da teoria do campo cultural, que remete à teoria crítica, entende-se que o processo educacional é mediado pela cultura, que carrega a marca da história, sendo, portanto, um processo histórico cultural. Dessa maneira, contou-se com muitas teorias formuladas em busca do conceito de cultura que compreendesse a natureza humana, decorrente de uma expansão cultural atual sem precedentes na história. Segundo Hall (2003), a cultura assumiu uma função primordial na história quanto à estrutura e organização das sociedades, em função de novas tecnologias, tendo como consequência a revolução das informações, trazendo maior produção, circulação e trocas culturais. A aprendizagem da Ética/Moral nas aulas de Educação Física não se limita às simples vivências ou cumprimento de regras no momento do jogo, mas que as transcenda e que tenha o sentido de construção da cidadania, identidade e constituição da pessoa humana. Quanto às questões ligadas à adolescência, destacamos a crise de identidade (ERIKSON, 1972) que desencadeará um processo de identificações com pessoas, grupos e ideologias que se tornarão uma espécie de identidade provisória ou coletiva, no caso dos grupos, até que a crise em questão seja resolvida para que uma identidade autônoma seja construída. Diante do exposto, a identidade é entendida como um processo localizado no âmago do indivíduo, entretanto, no núcleo central de uma cultura coletiva enunciando uma complexidade. Na dimensão Ética destacamos as ideias do filósofo MacIntyre (2001) em que há dois pontos fundamentais, que são: a) O estado de moralidade na atualidade designada como Desordem Moral em decorrência do Emotivismo e presente em diversas culturas no mundo; b) As Virtudes, que são apresentadas como proposta em oposição ao Emotivismo para que se possa viver uma vida ética na contemporaneidade. Salienta-se a filosofia de Theodor Adorno (2010), no qual a educação deve perseguir uma formação para a autonomia e para emancipação do sujeito

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

15

e o ideal de formação do sujeito é se tornar autorreflexivo, em uma formação para emancipação é fundamental o processo autorreflexivo. Para este autor, emancipação é romper com a educação enquanto mera apropriação de instrumental técnico, receituário para eficiência; esta orienta para o aprendizado aberto à elaboração da história e ao contato com o não idêntico, o diferenciado. CRISE NA ADOLESCÊNCIA: IDENTIDADE EM MOVIMENTO Na questão da adolescência ressalta-se Neira (2007) que faz a distinção dos termos adolescência e juventude. Adolescência vem do latim – adolescer -, que significa “crescer”, ou “crescer para a maturidade”, com a ideia psicobiológica. E o termo Jovem ou Juventude, também vem do latim - juvene ou juventude -, referindo-se à pessoa que não chegou à idade adulta, e juventude a uma série de características próprias destas pessoas. A palavra juventude é mais empregada quando se focaliza a categoria sociocultural como faixa da população, geração no contexto histórico ou como atores no espaço público. As questões ligadas à adolescência estão diretamente relacionadas à sociedade na qual este está inserido. De acordo com Lepre (2003) O período da adolescência que o indivíduo vai colocar em questão as construções dos períodos anteriores, próprios da infância. Assim, o jovem assediado por transformações fisiológicas próprias da puberdade precisa rever suas posições infantis frente à incerteza dos papéis adultos que se apresentam a ele. A crise de identidade é marcada, também, por uma confusão de identidade, que desencadeará um processo de identificações com pessoas, grupos e ideologias que se tornarão uma espécie de identidade provisória ou coletiva, no caso dos grupos, até que a crise em questão seja resolvida e uma identidade autônoma seja construída. (LEPRE, 2003, p. 5)

Diante do exposto, a identidade é entendida como um processo localizado no âmago do indivíduo, e também no núcleo central de uma cultura coletiva, enunciando uma complexidade. Concernente à identidade, é impossível separar o desenvolvimento do indivíduo da crise contemporânea das transformações históricas. De fato, toda a interação entre o psicológico e o social, entre o desenvolvimento e a história, para a qual a formação da identidade é de um significado prototípico, só pode se conceptualizada, como uma espécie de relatividade psicossocial. (ERICKSON, 1972, p. 22).

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

16

O autor faz referência à questão da exibição espetacular do que anteriormente era considerado um segredo íntimo, e para o qual a contemporaneidade depara com a indústria cultural, criando estruturas ideológicas, visto que o desenvolvimento histórico e as rápidas mudanças tecnológicas interferem na construção da identidade. Nesse sentido, apropria-se atualmente de outras dimensões tecnológicas de informação, porém se torna relevante o conceito de formação, que implica certos cuidados como: “o ensino deveria desenvolver aptidões críticas, conduzir as pessoas, por exemplo, a desmascarar ideologias” (ADORNO, 2010, p. 79). Portanto, a formação consiste em pensar a problemática dos conceitos de forma, a adquirir-se um juízo autônomo e independente a seu respeito. (ADORNO, 2010) Destaca-se a importância da aprendizagem e da compreensão da dimensão cultural e tecnológica concebendo-a como “herdeira crônica da Terra.” (ERICKSON, p. 31, 1972). Esta frase nos leva a pensar a ideologia da indústria, assumindo uma “herança civilizatória” (ADORNO, 1985, p.138) da qual a humanidade e suas instituições não conseguem escapar. No que diz respeito a crise da adolescência, frequentemente se trata como uma etapa árdua de conflitos internos, comportamento oscilante e, no que tange rao aspecto emocional, há instabilidade de maneira imprevisível. Mas o que é essa crise no processo de construção da identidade? A crise é cada passo sucessivo, passos de caráter potencial, devido à radical mudança de perspectiva. Crise tem o sentido de desenvolvimento para designar não uma ameaça de catástrofe, mas um ponto decisivo, um período crucial de crescente vulnerabilidade e, portanto, a fonte ontogenética da força e do desajustamento generativos (ERICKSON,1972, p. 96). Nesse sentido, enfatiza-se que: “atualmente a educação tem muito mais a declarar acerca do comportamento do mundo do que intermediar para nós alguns ideais preestabelecidos” (ADORNO, 2010, p.141) A emancipação necessita ser acompanhada de uma firmeza do eu (Adorno, 2010). As descontinuidades equivalem a uma crise que exige decisões e estratégias para reorganizar as ações, as quais acarretam compromissos e sentimentos de engajamentos crescentes, desse modo se torna parte da identidade, por meio de experiências com ajustamento psicossocial. Salienta-se as construções dos valores, que se apresentam em conjunto com a organização pessoal das emoções e sentimentos, como um elemento crucial na vida do adolescente.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

17

Aborda-se um dos eixos centrais referente a aprendizagem Ética e a construção da identidade no adolescênte, à consciência da regra, observa-se nessa fase que: “a regra é considerada como uma lei imposta pelo consentimento mútuo, cujo respeito é obrigatório, se deseja ser leal, permitindo-se, todavia, transformá-la, à vontade, desde que haja o consenso geral.” (PIAGET, 1977, p. 25) Durante o estágio de codificação das regras, a consciência da regra se transforma completamente como resultado de uma livre decisão e digna de respeito na medida em que é mutuamente consentida. As opiniões são permitidas, no entanto, os que as emitem têm o poder do convencimento e sua aceitação passa pelas vias legais. As inovações imorais em situações de jogo são eliminadas e nesse sentido vale para o adolescente o acordo entre os jogadores. Certamente, a dificuldade reaparece todas as vezes em que a criança, fiel a uma regra que a favorece, é tentada a deixar na obscuridade tal artigo da lei ou tal ponto do processo, que favoreça o adversário. Mas o caráter próprio da cooperação é justamente levar a criança à prática da reciprocidade, portanto, da universalidade moral e da generosidade em suas relações com os companheiros. (Piaget, 1977, p. 60)

A regra se torna para o adolescente a condição necessária para o entendimento, conduzindo à autonomia por meio do respeito à lei, mesmo com a modificação pela via democrática. O adolescente na construção da cooperação passa por um processo de descentralização do eu, assim o jovem se coloca em igualdade com os mais velhos, isso porque a sua personalidade está em formação, com sentido de vida nova para transformar o mundo (GALLEGO, 2006). Quando a relação passa a ser mais igualitária com outras pessoas, amplia-se a possibilidade de estabelecer uma moral da cooperação e da ética dos adultos. A ÉTICA NAS ELABORAÇÕES DE MACINTYRE E ADORNO O objetivo de trazer as ideias de Theodor Adorno é a existência de um possível diálogo com Aladair MacIntyre. Da desordem moral à barbárie, aproximando essas categorias, entendendo que há convergências que orientam para um lugar comum: a conscientização ou a racionalidade para uma vida emancipada e o bem comum. Vamos tratar a desordem moral decorrente do emotivismo, as virtudes e as práticas segundo Alasdair MacIntyre (2001). No que diz respeito à barbárie segundo Theodor Adorno (2010) enfatizaremos o poder da indústria cultural e o conceito de emancipação no processo educacional. Tanto a categoria de

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

18

desordem moral como da barbárie são de cunho contemporâneo e contemplam reflexões sobre a Ética no campo educacional. A filosofia de Adorno se apresenta como uma forma de pensar radicalmente a densa ideologia que oculta a contradição social e abrir caminho para a dura realidade. Adorno prefere argumentar que, se não podemos aduzir quais são as características da sociedade “perfeita”, podemos trabalhar na direção de identificação da barbárie atual, com o objetivo de poder transformá-la. Somente uma sociedade mais justa poderá propiciar condições para a propagação de um pensamento verdadeiro (Zuin, Pucci, Ramos-de-Olibeira, 2003, p.115).

Quanto ao pensamento verdadeiro, com sentido de uma racionalização para emancipação humana, Adorno (2010) faz alusão à teoria crítica e a função educativa, que neste caso é a reflexão com intuito de resgate do pensamento dialético. Sendo impossível pensar sem definir, determinar, buscar semelhanças. O conceito não se esgota na realidade. Para Adorno (2010) a barbárie está intrínseca no interior do processo civilizatório e compreende a barbárie como algo muito simples. O filósofo ressalta que a civilização humana, apesar de seu avanço tecnológico, tem no ser humano ainda um atraso em relação ao próprio estado civilizatório. A barbárie exposta por Adorno traz o conceito do Emotivismo de MacIntyre. Nesta perspectiva, MacIntayre (2001) descreve que a Desordem Moral existente na sociedade está especialmente ligada a um estado de Emotivismo no plano da vida ética. A teoria do Emotivismo tem como ideia central a emoção e suas explicações, que estão na polaridade entre o prazer e o racionalismo. As virtudes, enquanto qualidade, se apresentam como proposta fundamental em contraponto a esse estado de desordem moral. O Emotivismo é uma doutrina de juízos morais pessoais e que esses não passam de expressões de preferência, expressões de sentimento ou atitudes de prazer individual e de caráter valorativo. Adorno (2010) elabora a questão dos interesses particulares e específicos ligados à indústria cultural, que obscurece a razão emancipatória, favorecendo a fraqueza do eu e produzindo satisfação de interesses próprios, assim como mercadorias de uma sociedade consumista. Observa-se que o Emotivismo leva a formas diversas de barbáries, visto que não há critérios racionais orientando as ações das pessoas. Nesse sentido, o filósofo MacIntyre (2001) sugere o conceito de Virtude a partir das

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

19

interpretações das ideias de Aristóteles de se pensar sobre quais são e como são as virtudes para o nosso tempo. “A Virtude é uma qualidade humana adquirida, cuja posse e exercício costumam nos capacitar a alcançar aqueles bens internos às práticas e cuja ausência nos impede, para todos os efeitos, de alcançar tais bens” (MACINTYRE, 2001, p.321). Para tal, ressalta-se as Virtudes de Justiça, da Coragem e da Honestidade que estão presentes nas práticas para que sejam alcançados os padrões de excelência ou os bens internos. Nesse sentido, as metas nas práticas se transmutam ao longo da história da atividade e, portanto, as metas não são fixas. Assim, toda prática tem sua própria história e são simultaneamente orientadoras e dinâmicas no agir humano, diferentes do aprimoramento das capacidades técnicas. “Essa dimensão histórica é fundamental com relação às virtudes” (MACINTYRE, 2001, p. 326). A virtude da Amizade para MacIntyre, (2001) se evidencia por pessoas que compartilham uma prática, que pressupõem sinceridade e cooperação, visto que a lealdade entre as pessoas evidencia a busca dos bens comuns. A Virtude da Justiça, segundo MacIntyre (2001) demanda que as pessoas sejam tratadas com relação ao mérito ou demérito, de acordo com padrões uniformes e impessoais. No sentido aristotélico merecer é ter contribuído de alguma forma substancial para aquisição de bens, cuja divisão e busca em comum são alicerces da comunidade humana. A Virtude da Coragem é o cuidado e a preocupação que se tem com as pessoas, comunidades e causas, por isso é considerada diferente de outras virtudes e tão fundamental nas práticas. Para uma pessoa cuidar de outras pessoas, comunidade ou causa é preciso que esteja disposta a correr riscos e a agir com sinceridade ou interesse no cuidar. Desse modo, é no interior de determinada comunidade com formas próprias institucionais que se aprende ou não a exercitar as Virtudes.Com isso, as Virtudes são referências nos relacionamentos entre as pessoas, atuando no agir e na forma de ser destas. Nesse sentido, quando se trata da adolescência, que é o foco desse trabalho há certa vulnerabilidade dos jovens a essa característica hedonista, própria desta fase e acentuada no século XX e XXI, o qual poderá afetar sua formação enquanto pessoa humana. Fortalecer os laços para o adolescente é inseri-lo no processo de socialização, assim como ter referências que o reconheçam como integrante de uma comunidade, incentivando seu

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

20

desenvolvimento em experiências decisivas de ajustamento psicossocial. (ERIKSON, 1972). OBJETIVO Identificar e analisar como se desenvolve a aprendizagem da Ética na adolescência por meio das as virtudes da justiça, coragem, amizade e perseverança nas aulas de Educação Física. METODOLOGIA A metodologia seguiu a pesquisa-ação na perspectiva de René Barbier (1985), que descreve a pesquisa-ação como uma prática de compreensão e de explicação da práxis dos grupos sociais de uma instituição por meio da Escuta Sensível, que se apoia na aceitação do outro, na abertura e acolhimento do que é observado e sobre a totalidade complexa da pessoa. A população desta pesquisa se constituiu de vinte nove alunos do 9º ano do Ensino Fundamental. As técnicas utilizadas na coleta de dados foram a observação participante, oficina e a entrevista semi-estruturada. Os dados foram agrupados em categorias temáticas, e analisados à luz da fundamentação teórica desenvolvida por Laurence Bardin (1977) que permite determinar a significação do conteúdo estudado por meio das inferências realizadas. “A análise e a interpretação dos dados vão sendo feitas de forma interativa com a coleta, acompanhando todo o processo de investigação.” (ALVES MAZZOTTI e GEWANSDNAJDER 1999, p.162). RESULTADOS Os resultados obtidos foram os seguintes: A virtude da justiça apresentou maior incidência nas expressões “certa e errada” “cumprir” e “igualdade”. Estas incidências indicam a virtude de Justiça pautada em uma responsabilidade coletiva, um tipo de justiça que segundo Piaget (1977), se direciona ao desenvolvimento do igualitarismo, que se definirá como equidade, a qual consiste em reciprocidade, própria do respeito mútuo. Observa-se, ainda, a ênfase no conceito “certo e errado” (10) que aponta para uma preocupação do agir moral a partir de parâmetros objetivos. Na virtude da Amizade as maiores incidências foram “Ajuda/solidariedade/estar junto/apoio” seguido pela de “aceitação/respeito/amor” que segundo Aristóteles esta consiste mais particularmente em proporcionar afeto e o afeto parece ser o que distingue um bom amigo. II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

21

A

virtude

da

coragem

apresentou

as

maiores

incidências

em

“enfrentar/não ter medo” o que é crucial, pois remete à característica do ser adolescente e à crise de identidade em ter que enfrentar os medos. A segunda maior incidência “Vontade/força interior/não desistir/determinação” se aproxima da virtude da perseverança. A virtude da perseverança mostrou a maior incidência em se “Esforçar/conseguir o que quer/não desistir/determinação/correr atrás do objetivo”. Esta virtude moral da perseverança não pode ser vista e vivenciada isoladamente. Nesse sentido, a Coragem é expressa, conforme Aristóteles, pela pessoa corajosa que suporta ou teme as coisas certas e que mostra autoconfiança. Já a segunda maior incidência “Vontade/força interior/não desistir/determinação” se aproxima da Virtude da Perseverança, visto que para perseverar tem que ter coragem. Ressalta-se que por meio das incidências das virtudes da Justiça, Amizade, coragem e Perseverança, os alunos adolescentes diante de situações-problemas no cotidiano escolar tomaram decisões de cunho racional com base em critérios estabelecidos pelo professor. Constatou-se que houve uma contribuição para o desenvolvimento moral dos adolescentes com intuito de constituir sua identidade para uma vida ética. CONSIDERAÇÕES FINAIS Considera-se a aprendizagem Ética por meio das Virtudes como fundamental, pois estas são suportes sociais, que sustentam formas institucionais de práticas, tanto nas aulas de Educação Física como na escola e para a vida ética dos estudantes adolescêntes. Desse modo, na contemporaneidade orienta-se priorizar a perspectiva crítica com um intenso diálogo que favoreça as interações, mesmo com diferentes tendências curriculares avançando em torno de problemas e projetos referentes à prática pedagógica no que tange a aprendizagem da Ética. O Emotivismo presente em toda sociedade, do qual há reflexos nas instituições sociais, faz acreditar que há dilema moral. Dentro de uma comunidade, no caso da escola, os dilemas morais devem ser analisados segundo princípios de critérios para não ocorrerem decisões de juízos morais que não passam de preferências e expressões de sentimentos priveligiando um grupo em detrimentro de outro. Pode-se concluir que a relação professor-aluno faz a diferença, assim como seu aprofundamento teórico nos pressupostos axiológicos e na

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

22

constituição do desenvolvimento moral dos alunos adolescentes. No currículo da Educação Física salienta-se a importância de se pensar em como se organizam os conhecimentos e experiências nessas aulas, que envolve ter uma visão para além das prescrições e de reproduções que devem ser superadas. Pensar da Educação Física na contemporaneidade, se faz necessário conhecer em quais barbáries sociais e as desordens morais convergem no cotidiano escolar de formas diferenciadas. Nesse sentido, uma comunidade preocupada com o bem comum é uma comunidade na qual todos dão e recebem na justa medida, ou seja, o professor busca uma prática pedagógica consciente na tarefa de educar eticamente, em que sua ação moral seja coerente com o fazer pedagógico. REFERÊNCIAS ADORNO, T. W. Educação e Emancipação. Tradução Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010. ALVES-MAZZOTTI, A. J; GEWANDSZNAJDER, F. O Método nas Ciências Naturais e Sociais: Pesquisa Quantitativa e Qualitativa. 2. ed. São Paulo: Thompson, 1999. ARISTÓTELES. Ética a nicômaco. Tradução, textos adicionais e notas Edson Bini. BAURU:Edipro, 2009. BARBIER, R. A Pesquisa-ação na instituição educativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. ERIKSON, E. Identidade: juventude e Crise. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1972. GALLEGO, A.B. Adolescência e Moralidade: O professor que faz a diferença. 2006.Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. HALL, S. Da Diáspora: Identidade e Mediações culturais. SOVI L.(Org). Tradução Adelaine La Guardia Resende, Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da Unesco no Brasil, 2003. LEPRE, R.M. Adolescência e construção da identidade. Psicopedagogia.Educação em saúde,11 fev.2003.Disponível em: http://www.psicopedagogia.com.br. Acesso em: 05 set.2011.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

23

MACINTYRE, A. Depois da Virtude: um estudo em teoria moral. Tradução Jussara Simões. Bauru: EDUSC, 2001. NEIRA, M. G. Ensino de educação física. São Paulo: Thomson Learning, 2007. PIAGET, J. O Julgamento moral na Criança. 1.ed. São Paulo: Metre Jou, 1977.

ANA LIDIA FELIPPE GUIMARÃES - Doutoranda em educação - PPGE/UFRJ. requisitada pelo instituto municipal Helena Antipoff - equipe de formação continuada

e prof. regente de educação física em unidade escolar

e

pesquisadora do grupo pesquisa em ética na educação- GPEE/UFRJ.

THELMA TAETS - Mestre em Música pelo Programa de Pós Graduação da UFRJ. Integrante do GPEE da Faculdade de Educação da UFRJ. Voluntária no Educandário Social Lar de Frei Luiz, coordenou o Projeto Social "Esperança, estude Música", desenvolvido sob o patrocínio da Empresa Furnas Centrais Elétricas S.A. Professora da rede pública de ensino, idealizou e obteve aprovação da SME para a realização do Projeto para a Educação Infantil: "Música e Infância um caminhar de Esperança", realizado no Ciep Compositor Donga.

LUZIA CUNHA CRUZ - Mestre em Filosofia pela Universidade Gama Filho UGF, integrante do Grupo de Pesquisa em Ética na Educação - GPEE/UFRJ Coordenado pela professora Maria Judith Sucupira da Costa Lins, professora da Universidade de Nova Iguaçu ministrando aulas para os cursos de Pedagogia e Medicina, professora do Ensino Médio - Governo do Estado do Rio de Janeiro

MARIA JUDITH SUCUPIRA DA COSTA LINS - Graduada em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia do Recife (1969), mestre em Educação pela PUC do Rio de Janeiro (1972) doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996). Profª Associada do Departamento de Fundamentos da Educação da Faculdade de Educação da UFRJ. Coordenadora de pesquisas no Grupo de Pesquisas de Ética e Educação - GPEE da UFRJ.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

24

ARGUMENTAÇÃO NO DISCURSO DE EX-ALUNOS DA ESCOLA TIA CIATA SOBRE SUA PEDAGOGIA PARA MENINOS E MENINAS EM SITUAÇÃO DE RUA Ana Paula Simões da Mota [email protected] Universidade Estácio de Sá/UNESA-RJ Monica Rabello de Castro [email protected] Universidade Estácio de Sá/UNESA-RJ

RESUMO Esta pesquisa teve por objetivo analisar os indícios de representações sociais de ex-alunos da Escola Tia Ciata, ex-meninos e meninas em situação de rua, quanto à pedagogia diferenciada desenvolvida no período de 1984 a 1989, período em que atendeu prioritariamente este público, sendo reconhecida por órgãos oficiais da época por seu trabalho. O presente estudo faz parte de um conjunto de pesquisas que tem por objetivo resgatar a história da proposta pedagógica da Escola Tia Ciata. Para tanto foi utilizada a Teoria das Representações Sociais elaborada por Sergé Moscovici e Denise Jodelet como referencial teórico. A metodologia utilizada foi História Oral, com entrevistas orais semi-estruturadas que possibilitaram aos ex-alunos se expressarem, sendo assim possível observar e interpretar os dados. A análise dos dados utiliza o Modelo de Estratégia Argumentativa (MEA) proposta por Monica Rabello de Castro e Janete Bolite-Frant, que tem como base a Teoria da Argumentação. Os resultados parciais obtidos mostram que os ex-alunos da representam a pedagogia da Escola Tia Ciata sobre três pilares: o da aprendizagem, o da formação para o trabalho e da formação pessoal.

Palavras chaves: Representações Sociais; Pedagogia diferenciada; Exmeninos de rua; Escola Tia Ciata; Análise argumentativa

INTRODUÇÃO Crianças e adolescentes que têm a rua como referência apresentam especificidades muitas vezes ignoradas nas unidades escolares e na II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

25

formulação

de

metodologias

que

contemplem

suas

necessidades.

A

escolarização desses meninos e meninas em situação de rua ainda é um desafio para as políticas educacionais, o que contribui para tornar a escola ponto de exclusão social a partir do sentimento de não pertencimento ao espaço escolar, resultando na evasão. Ainda é frequente que procurem justificativas para o insucesso e evasão escolar desses educandos atribuindo-lhes a responsabilidade pelo fracasso escolar. É destacado o local onde vivem, à possível falta de interesse pela escola e à questão familiar, mas é preciso considerar que a estrutura da escola a partir de um ensino mecanizado, tende a favorecer aqueles que chegam à escola com o saber por ela valorizado.

Assim, dificilmente atenderá as

necessidades daqueles que possuem um saber prático para a sobrevivência, com

valores

e

referências

que

se

distanciam

do

modelo

forjado

tradicionalmente para perpetuar os conhecimentos que beneficiam os que sempre tiveram acesso a ela. De acordo com Mattia (2013, p. 51) não basta apenas ter acesso à escola, é necessário que se compreenda o que é ensinado, pois se o aluno não se reconhece no contexto do espaço escolar, irá fracassar. O fracasso acontece processualmente durante o ano letivo, quando os conteúdos trabalhados pelos professores não propiciam ou não despertam o interesse do aluno e a sua participação nas atividades escolares.

Meninos e meninas em situação de rua ao serem direcionados as escolas e se depararem com metodologias rígidas que em nada se relacionam com seus habitus livres, seus saberes e a realidade vivenciada acabam por abandoná-la por sentirem excluídos por suas “qualificações deficientes” e por não conseguirem se adaptar às normas escolares. Oriundos de classe econômicas pouco favorecidas, originários de favelas, subúrbios, ao entrar na escola são avaliados não somente pelo processo de aquisição da aprendizagem, mas também pelos aspectos externos como a linguagem oral e escrita, a postura corporal e a cultura geral (BOURDIEU; PASSERON, 1975). Esses fatores influenciam diretamente a sala de aula e as expectativas de aprendizagem, formando um cenário desfavorável para aquele que não vê a escola como referência e sim como um lugar

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

26

monótono e que se distancia do real vivido, nas gírias e nas estratégias de sobrevivência das ruas. Para Castro (1990), a baixa expectativa de aprendizagem por parte dos docentes de meninos e meninas em situação de rua constitui fator preponderante para o fracasso escolar. O pré-conceito formado a respeito dessa clientela faz com que esses alunos incorporem como natural e inevitável o insucesso na escola. Esse fator é atribuído a uma negação do saber que esse grupo traz consigo, sobrepondo a dificuldades sociais e fazendo delas obstáculos intransponíveis. Segundo da visão de Bourdieu e Passeron (1975), Castro (1990) e Patto (1990) pode-se desmistificar o fracasso escolar, antes visto como natural e chamar a atenção para um processo ligado aos fatores psicossociais. Quanto aos meninos e meninas em situação de rua esses fatores ficam ainda mais evidentes, devido o histórico de vida e suas condições sociais. São vistos a partir de uma ótica excludente pelos aparelhos sociais de transmissão e valorização do erudito. De acordo com Rizini et al (2011) são poucas as políticas educacionais públicas voltadas a atender às necessidades de meninos e meninas em situação de rua. Em contraponto, propostas de padronização do currículo escolar, visando alcançar os índices das avaliações educacionais externas vêm aumentando. Assim, a escola continua a constituir em sua maioria um espaço para a marginalização social: uma escola excludente e com dificuldades de implementar práticas que tenham significado e alguma relação com o cotidiano. Principalmente preocupadas com os meninos e as meninas em situação de rua, ou seja, uma escola que não vise somente transmitir conhecimentos, mas formar o sujeito para a vida, sendo um lugar de acolhimento. Esse cenário endossa a necessidade de revisitar experiências bem sucedidas que envolvam a escola, pois esse problema não se configura novo, mas crescente, indicando a relevância de estudos e reflexão sobre uma pedagogia alternativa que acolha os saberes e representações dessas crianças e adolescentes que vivem em situação de rua.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

27

Cabe, no entanto, ressaltar a experiência da Escola Tia Ciata implementada na década de 80 do século XX, que, apesar do tempo, perdura como um modelo atual e necessário no atendimento dessa clientela. Nas pesquisas de Castro (1990), Leite (1991) e Uchôa (2013) a Escola Tia Ciata é identificada como um lugar humanizado em que os professores atuavam com a consciência de que, para atender meninos e meninas em situação

de

rua,

era

preciso

oferecer

situações

de

aprendizagem

contextualizadas e que atendessem às suas especificidades. Para isso sua pedagogia era asseriada, apresentava flexibilidade e parceria com diversos órgãos públicos e pequenas empresas. Essa experiência trouxe contribuições para o atendimento dessa clientela, principalmente por sua metodologia que até hoje se mostra inovadora, sendo única como escola no Município do Rio de Janeiro a atender especificamente meninos e meninas em situação de rua, com metodologia e estratégia diferenciadas para suprir as necessidades não só em termos pedagógicos, mas também no sentido de oferecer oportunidades de inserção social, através de estágios remunerados, apesar da pouca escolarização dos alunos. A presente pesquisa faz parte de um conjunto de pesquisas do Projeto Os Herdeiros da Tia Ciata: uma experiência de educação com meninos de rua. Projeto este que visou resgatar a história da proposta pedagógica da Escola Tia Ciata, de 1983 a 1989 (LEITE, 2010), através da historia oral de seus professores, alunos e colaboradores, e documentos da época. Este projeto mais amplo constitui uma parceria Universidade Estácio de Sá (UNESA), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Universidade Federal Fluminense (UFF). Considerando a história da Escola Tia esta pesquisa tem como objetivo analisar os indícios das representações sociais dos ex-alunos da Escola Tia Ciata quanto à pedagogia diferenciada desenvolvida no período de 1984 a 1989.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

28

TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS (TRS) E ALGUNS CONCEITOS QUE AJUDAM A COMPREENDER A ESCOLA. Na busca de compreender e reconstruir significados construídos individualmente e coletivamente e suas formas simbólicas presentes nas relações ocorridas na Escola Tia Ciata. Essa pesquisa faz uso da Teoria das Representações Sociais em uma abordagem processual articulada a Teoria de Bourdieu e à análise argumentativa, tendo como sujeitos os ex-alunos da Escola Tia Ciata. Ex-meninos e meninas de rua, que hoje adultos olham para trás e se expressam, revelando representações que eram e/ou ainda são compartilhadas da pedagogia daquela escola e o que significou em suas vidas. As representações acerca dos sujeitos e objetos influenciam diretamente as relações entre os mesmos, na forma de ver a realidade e na orientação de suas práticas, sendo suporte para compreendermos o processo social, cultural e histórico presentes na análise dos dados da pesquisa. No quadro da Teoria das Representações Sociais foram trabalhados, sobretudo os conceitos de ancoragem e objetivação, a partir dos autores Moscovici (2012) e Jodelet (1989). Na teoria de Bourdieu, a relação entre habitus e campo será responsável pelas preferências, comportamentos, ações e visão de mundo, ou seja, a significação do social será mediada pelo habitus forjado em um grupo social. Em uma articulação entre a Teoria das Representações Sociais (TRS) e a Teoria de Bourdieu, Lima e Campos (2013) propõem olhar sobre as duas teorias a partir de seus pontos convergentes, visando contribuir para a compreensão das relações sociais que se desenvolvem no interior da escola, através

desses

processos

simbólicos.

Essa

articulação

acontece

na

aproximação entre o processo que ocorre na teoria de campos, espaço simbólico onde ocorrem as relações sociais, e o campo do objeto de representação,

local onde

o

objeto

é significado

na

produção

das

representações sociais. A superação da objetividade e da subjetividade presente nas duas teorias possibilita pensar a construção dos processos simbólicos em uma dialética entre o sujeito e o social, no qual o sujeito não é considerado como um indivíduo isolado, mas pertencente a um grupo social com posicionamento diante das situações sociais. O social passa a ser considerado uma construção II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

29

social em que os processos simbólicos ocorrem na dinâmica entre os grupos sociais e seus interesses. Na entrevista com os ex-alunos da Escola Tia Ciata, ex-meninos em situação de rua e oriundos de favelas no Rio de Janeiro, foi possível observar um habitus que valoriza o saber prático, voltado para o atendimento de suas necessidades básicas. Ao chegar às escolas regulares, relatam a dificuldade em aprender os conteúdos da forma como apresentados, pois para a maioria deles não apresentavam significado; o sentimento de revolta era gerado a partir da distância entre o habitus imposto e o sentimento de culpa por seus baixos desempenhos. Um dos ex-alunos entrevistados afirma “eu tive muita dificuldade no aprendizado porque não era compreendido, também não compreendia algumas questões que eram colocadas na escola.” Tal afirmação nos leva a pensar na importância de compreendermos os processos simbólicos que ocorrem no interior da escola.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Para o resgate da história da Escola Tia Ciata e a significação de sua pedagogia diferenciada foi utilizado o método de História Oral através de entrevistas orais semiestruturadas por valorizar a retórica como meio de reconstruir a realidade. Onde o sujeito histórico e ator social que deve ser ouvido, pois seu testemunho possibilitará resgatar detalhes de fatos históricos que poderiam ser esquecidos ou ignorados na escrita formal de documentos. Na análise dos dados foi empregado o Modelo de Estratégia Argumentativa (MEA) proposta por Castro e Bolite-Frant (2011) que tem como base a Teoria da Argumentação de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996). O MEA procura relacionar ‘o que se diz’ e ‘o porquê se diz’ e ‘como se diz’ e compreende como racional todo tipo de interação linguística” (CASTRO; BOLITE-FRANT, 2011, p. 72). O Modelo de Estratégia Argumentativa busca identificar as teses e seus argumentos na fala, recriando o contexto em que foram enunciadas, ou seja, os ‘momentos de negociação’, considerando os aspectos que caracterizam a cultura do locutor (CASTRO; BOLITE-FRANT, 2011). Os dados das entrevistas têm seu estudo a partir de esquemas argumentativos, possibilitando a

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

30

visualização e reconstrução dos argumentos que dão sustentação às teses e o resultado apresentado com base nas evidências buscadas no discurso. Por se tratar da análise do discurso, este estudo apresenta limitações, sempre sujeita a possibilidades de interpretação. No entanto, o que é inferido da utilização do MEA é resultado de um trabalho minucioso em que três critérios de validação foram utilizados. Um desses critérios foi à análise feita em um grupo de pesquisadores. Outra forma utilizada foi à verificação das inferências na estrutura do próprio discurso. A terceira foi à comparação dos resultados com trabalhos assemelhados.

ANÁLISE ARGUMENTATIVA DO DISCURSO DOS EX-ALUNOS DA ESCOLA TIA CIATA SOBRE SUA PEDAGOGIA DIFERENCIADA. O material foi organizado segundo seu caráter argumentativo. Foram selecionadas as teses levantadas pelos interlocutores que diziam respeito às questões levantadas por este estudo. Uma vez feitas às análises, verificamos indícios das representações sociais que os sujeitos compartilhavam sobre a metodologia diferenciada da Escola Tia Cita. Diferentes teses foram levantadas. Os resultados sugerem que os sujeitos representam a metodologia da escola entorno de cinco teses centrais. Abaixo apresentamos o esquema que posiciona estas afirmações umas em relação às outras.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

31

As teses mostram-se interligadas entre si em um círculo radial, ou seja, não existe uma ordem hierárquica entre elas, mas circulam entre si tendo igual valor. As teses T1, T2 e T3 estão interligadas por ligações que se fundam no real, isto é, as teses são defendidas a partir de suas próprias experiências. Essas teses enfocam os aspectos da aprendizagem, da formação para o trabalho e da formação pessoal, na qual podemos verificar a amplitude de atuação da escola e a ideia de formação integral e o atendimento as necessidades básicas dos ex-alunos. T4 e T5 são teses que permeiam todas as outras evocadas durante as entrevistas. Na defesa da Tese 1, A ESCOLA TIA CIATA FOI UM LUGAR DE APRENDIZAGEM DE QUALIDADE, é destacado o fato de não terem aprendido nada em outras escolas e referirem-se a Escola Tia Ciata como um lugar no qual aprenderam coisas que antes não conseguiam aprender. Na tese 2, A ESCOLA PREPAROU PARA O MUNDO DO TRABALHO, surge a partir das afirmações sobre suas atividades desenvolvidas na Escola Tia Ciata. Assim chamam a atenção para o fato de que, além das aulas regulares, também frequentarem aulas que contribuíram para uma possível qualificação para o mercado de trabalho. Demonstraram perceber, assim a escola como um ambiente preparado para o trabalho, em que suas atividades eram propostas a fim de ressignificar o tempo, favorecendo que seus alunos pudessem exercer um ofício. Na defesa da tese 3, A ESCOLA FOI UM PONTO DE APOIO, utilizam os acordos: - "minha família era desestruturada", na qual estava embutida a crença de que é necessária uma estrutura para que os membros de uma família se desenvolvam e também, na qual está revelado que a escola ofereceu essa estrutura - "eu passava o dia inteiro lá, lá eu fazia tudo", acordo que demonstra que a escola satisfazia todas as necessidades que consideravam básicas para se viver; - "a Tia Ciata pra mim era uma espécie de refúgio", onde transparece que o mundo em que vivia antes da escola era ameaçador e não sabiam como lidar com ele. A metáfora do refúgio utilizada faz menção da escola como um lugar seguro, em contraposição a alguma que ameaça. II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

32

Na tese 4, NÃO SOMOS PROBLEMÁTICOS, podemos verificar que surge a rejeição dessa classificação feitas por diferentes atores sociais. Os sujeitos não aceitam a premissa que os alunos da Escola Tia Ciata eram problemáticos, em virtude de, em sua maioria, apresentarem carências afetivas em função de serem jovens sem uma família estruturada ou com uma referência familiar diferente do modelo tido com padrão pela sociedade. Em T5, A ESCOLA TIA CIATA FOI UMA ESCOLA QUE DAVA OPORTUNIDADE, procuram mostrar que era necessária uma oportunidade, até então negada, para que os meninos das comunidades se desenvolvessem. A Escola Tia Ciata dava essa oportunidade. Assim, essa tese engloba três faces indissociáveis: a do trabalho; a da aprendizagem; e a do social. O trabalho e a aprendizagem são postos como faces intermediárias que apontam em direção ao aspecto social. Foi estabelecida a relação de causa/efeito entre trabalhar e estudar, utilizando-se de argumentos fundados sobre a estrutura do real, ou seja, com base em sua experiência. Através das análises dos discursos dos ex-alunos da Escola Tia Ciata é possível perceber que a forma como vêem a pedagogia diferenciada está diretamente relacionada a forma como vêem a escola. Tudo que vivenciaram através dessa pedagogia passou a identificar a própria Escola Tia Ciata. Em seu núcleo figurativo apareceram as palavras OPORTUNIDADE, TRABALHO, FAMÍLIA, MÃE, ACOLHIMENTOE RELACIONAMENTOS. Os termos mais utilizados para se referir à pedagogia diferenciada da Escola Tia Ciata pelos de ex-alunos podem ser divididos em dois grupos semânticos: um relacionado ao trabalho (maior incidência) e outro a relações familiares (grande incidência). Esses dois grupos revelam áreas ligadas as suas necessidades básicas na época em que estudavam na Escola. O trabalho está relacionado a sua sobrevivência e de certa forma a um caminho para o futuro. O trabalho, assim como a aprendizagem, são significados como uma oportunidade oferecida pela escola. ● [...] uma oportunidade de ser alguém amanhã ● Fiquei mais estudando pra poder ser contratado pra Comlurb. ● [...] por isso que a gente falamos: _ vamos estudar na Tia Ciata, porque através da Tia Ciata que vamos ter essa oportunidade. Aprender cada dia mais e mais. II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

33

O trabalho oferecido pela Escola Tia Ciata era uma oportunidade porque se distinguia da forma como conseguiam seu sustento nas ruas. Era reconhecido e dava possibilidade de ter coisas que antes não tinham. “[...] mas quando nós começamos a ver ele com uma roupinha bonitinha, aí começamos: ser gari mirim não é ruim não, era bom. Porque o ordenado lá também é bom”. Como meninos e meninas pobres, que não tinham opção na vida, o projeto oferecido pela Escola Tia Ciata representava uma chance de ter um futuro diferente, longe das infrações e das ruas. Por tudo que a escola proporcionou através de sua pedagogia diferenciada e pela forma como tratava os seus alunos, apesar de sua condição social, fez com que fosse ancorada na imagem de família. ● [...] a gente tinha ali bem dizer uma família Significado compreendido através do sentimento de afeto, cuidado e apoio entre

seus membros, ou seja, os alunos que ali estudavam, os

professores e os funcionários, indo ao encontro do suprimento da carência que tinham. Tal atributo conferido a Escola Tia Ciata pela maioria do grupo de ex-alunos afastava-se do próprio referecial de família que possuíam. ● Eu quero agradecer essa oportunidade que eu tive, porque quando todo mundo já havia desistido da gente nós encontramos alguém que nos acolheu, nos apoiou e nos fortaleceu de alguma maneira ● Eu to dizendo isso porque eu vi muitos pais desistirem dos filhos [...] e até mesmo desmotivar dizendo que o filho não era nada, que nunca ia ser nada. Professores e funcionários passaram a serem vistos como mães sociais através do laço de carinho e respeito. Importam-se com eles, mesmo diante do comportamento e da expectativa que todos fora da escola tinham a seu respeito, oportunizavam coisas que normalmente lhe seriam negadas, assim pode comparam o que faziam com o amor de uma mãe, incondicional. ● Vocês também era minha segunda mãe, né.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

34

● [...] os professores da Tia Ciata, acho que elas não eram só professores, era uma mãe. Nessa direção, os ex-alunos objetivam na metáfora refúgio que também está relacionada à família e as relações de afeto, a escola era o lugar onde se sentiam seguros e protegidos relacionando-a a figura da mãe.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Os resultados dessa pesquisa mostraram como através de sua pedagogia diferenciada, pensando as necessidades e especificidades de sua clientela, a escola pode se tornar referencial na história de vida de seus alunos. As relações interpessoais, o aprender juntos na prática cotidiana, os conflitos, a oportunidade, os projetos foram elementos que constituíram uma nova forma de se relacionarem com a escola. A aproximação entre seus habitus e o campo escolar foi seu grande diferencial. O modo de vida livre que estavam acostumados a viver e seus valores não eram excluídos do processo educativo. Assim, já não viam a escola como uma instituição não acolhedora de seus saberes, podiam compartilhar suas experiências e vivências. Sentiam-se respeitados na escola, um lugar que podiam contar. Um lugar de referência e apoio em suas vidas. A busca da Escola Tia Ciata por uma autonomia pedagógica e a construção de um currículo através de sua pedagogia diferenciada possibilitou contemplar os avanços e as necessidades desses alunos. Os indícios das representações sociais da pedagogia diferenciada da Escola Tia Ciata por seus ex-alunos nos levam a refletir sobre a importância de uma escola que vá além da transmissão de meros conteúdos. E nos encorajam a pensar em uma escola diferenciada para o atendimento das distintas realidades, através da autonomia pedagógica e dos ideais de participação coletiva, acolhendo os saberes e representações das crianças e adolescentes moradores de rua e das favelas cariocas. Ainda há uma necessidade de rever as políticas educacionais públicas desenvolvidas para aqueles que possuem a rua como referência, pois ainda tem sido proposto um esvaziamento no sentido da escola ao desconsiderar a subjetividade presente no seu caráter educativo.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

35

Diante do exposto é possível sugerir novas e desafiadoras políticas e práticas pedagógicas que se voltem para o rompimento das marcas sociais discriminatórias, trazendo para dentro da escola as narrativas, as angústias e os anseios dos diferentes grupos sociais. Uma escola que disponha de mecanismos que se transformem em oportunidades para seus alunos, afastando-os das situações de criminalidade que se impõem como modo de sobrevivência. Então se poderá dizer que a escola para esses meninos e meninas não se configura como um lugar de reprodução, mas referência, apoio e construção de uma autoimagem positiva. Creio ser esse estudo o início para novas pesquisas na área da educação para crianças, adolescentes e jovens em vulnerabilidade social.

REFERÊNCIAS BOURDIEU, P.; PASSERON, J. C. A reprodução: Elementos para uma teoria do sistema de ensino. Trad. de Reynaldo Bairão. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975. CASTRO, M. R.; BOLITE FRANT, J. Modelo da Estratégia Argumentativa: análise da fala e de outros registros em contextos interativos de aprendizagem. Curitiba: UFPR, 2011. CASTRO, Monica Rabello de. O avesso da lógica: aspecto da relação ensino aprendizagem na escola Tia Ciata.01/04/1990. 2v. 368 f. Dissertação (mestrado). Fundação Getúlio Vargas- Educação, Rio de Janeiro. 1990. ______, Projeto de pesquisa Os herdeiros da Tia Ciata: uma experiência de educação com meninos de rua, 2010. JODELET, D. Représentations sociales: un domaine en expansion. In: JODELET, D. (Ed.) Les representations sociales. Paris: PUF, 1989, pp. 31-61. Tradução: Tarso Bonilha Mazzotti. Revisão Técnica: Alda Judith AlvesMazzotti. UFRJ- Faculdade de Educação, dez. 1993. Disponível em Acesso em: 25 de setembro de 2014. LIMA, Rita de Cássia Pereira; CAMPOS, Pedro Humberto Faria. Aproximação conceitual entre a Teoria dos Campos de Bourdieu e a noção de grupo na Teoria das Representações Sociais: contribuições para a educação. In: Congresso Nacional de educação Educere, 11., Formação docente e sustentabilidade: um olhar transdisciplinar. Curitiba: PUC-PR, 2013 MATTIA, Mônica de. A importância da Escola Formal: a relação entre a educação escolar e a condição de apenado. / Mônica de Mattia. UNOESC,

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

36

2013. 100 f.; 30 cm. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Oeste de Santa Catarina. Programa de Mestrado em Educação, Joaçaba, SC, 2013. META INSTITUTO DE PESQUISA DE OPINIÃO. Primeira Pesquisa Censitária Nacional sobre Crianças e Adolescentes em Situação de Risco. Convênio N. 724549/2009, 2011. MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes, 2012. PATTO, Maria Helena Souza. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: T. A. Queiroz, 1996. UCHÔA, Ana Lúcia Muniz Baptista. Representações sociais da pedagogia diferenciada da Escola Municipal Tia Ciata por seus professores no período de 1984 a 1989. 2012 154f. Dissertação (mestrado). Universidade Estácio de SáEducação, Rio de Janeiro, 2013.

ANA PAULA SIMÕES DA MOTA - Mestre em Educação pelo Programa de Pós Graduação da Universidade Estácio de Sá- PPGE/UNESA

MONICA RABELLO DE CASTRO - Professora Adjunta do Programa de Pós Graduação da Universidade Estácio de Sá- PPGE/UNE

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

37

ARTE, PEDAGOGIA E RETÓRICA NA OBRA DO PADRE ANTÔNIO VIEIRA

Marcelo Bafica Coelho [email protected] Universidade Federal Fluminense Cristiane Ferreira de Souza [email protected] Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO O presente trabalho pretende avaliar algumas nuances da obra do Padre Antônio Vieira, através de parte de seus sermões, com destaque para o Sermão da Sexagésima, o mais famoso deles, com o objetivo de clarificar aspectos de uma pedagogia brasileira, marcadamente retórica em seu início. Nosso intuito será apresentar problematizações envolvendo características gerais da arte retórica, ampliando o debate em torno dos aspectos artísticos, persuasivos e pedagógicos da retórica partindo de análises sobre a obra deste grande propagador da fé católica. Palavras-chave: Retórica; Barroco; Padre Antônio Vieira; Arte e Educação. BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO: JESUS[1] NO BRASIL

A

CHEGADA

DA

COMPANHIA

DE

Ao chegarem ao Brasil em 1549, os Jesuítas só tinham nove anos de existência em Portugal, onde já se notava a presença da educação humanística. Em pouco tempo, a Companhia de Jesus conseguiu se expandir, pois contou com o favorecimento de Dom João III e a proteção oficializada no Concílio de Trento. Entretanto, quando desembarcaram no Brasil, os jesuítas encontraram um cenário desolador: índios sendo escravizados, corrompidos, enfraquecidos, manipulados pelos colonos. Isso gerava no nativo um sentimento de aversão ao colonizador, fazendo com que, por exemplo, o Padre Manoel da Nóbrega sugerisse a vinda do bispo para o Brasil. A presença de tal membro superior da igreja visava à moralização de todos, inclusive a do clero não jesuítico, que Nóbrega considerava conivente com os colonos. Além disso, tal missionário desejava o reconhecimento do papel dos jesuítas como articuladores capazes de pôr fim à situação de caos.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

38

A vinda crescente dos integrantes da Ordem de Loyola e a interação com os índios nas décadas que sucederam, já revelava, na segunda metade do século XVI, uma aparente contradição intelectual no Brasil. De um lado, os jesuítas vinculados à erudição e ao cultivo do latim e da retórica; do outro, “um regime pedagógico onde as línguas eram a espinha dorsal com aceitação de seu mundo cultural naquilo que pudesse ser canalizado para os objetivos da Companhia” (COUTINHO & COUTINHO, 2004 a, p.278). O governo real da época buscava agradar ora colonos ora os jesuítas em uma gangorra de poder. Entretanto, rapidamente isso se constituiu em um dilema graças aos objetivos comuns dos dois lados que se resumiam em garantir para si o domínio do gentio: através da escravização (colonos) ou da servidão persuasiva dos guias espirituais (Jesuítas). No meio do caminho, obviamente, ficavam os índios que cediam a uns e a outros, refugiavam-se cada vez mais para o interior ou eram exterminados nas consideradas “guerras justas”. (COUTINHO, 2004 a). Cabe recordar que, devido a um problema sucessório, de 1580 a 1640, a Coroa Lusitana ficou submetida à autoridade do rei da Espanha, Felipe II, período este designado como União Ibérica. Somente, algumas décadas mais tarde, quando Portugal deixou de estar sob o domínio da Coroa Espanhola, tiveram os jesuítas o apoio de D. João IV, monarca que assumira o trono dando origem à dinastia de Bragança. Foi nesse período que os jesuítas buscaram o estabelecimento de um Estado teocrático em várias partes do Paraguai, Uruguai e, por último, no Maranhão e no Grão Pará. Essa influência repercutiu nas demais províncias do Brasil e levou, inclusive, a uma tentativa separatista por parte de alguns paulistas. Dentro deste contexto, observa-se que apesar do apoio real, havia certa perda de poder político dos jesuítas, especialmente a partir da descoberta das minas (MG) e da lei de 1° de abril de 1680, no Maranhão, que, teoricamente, poria fim à escravização do indígena. Esclarecendo, é dentro desse panorama geral que encontraremos as ideias e as atividades do famoso pregador da fé apostólica, o Padre Antônio Vieira. Interessa-nos, assim, para este trabalho, compreender um pouco das articulações de seu legado retórico para os campos curriculares educacionais e literários.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

39

UM EXPOENTE DA CULTURA DO SÉCULO XVII EM TERMOS DE RELIGIOSIDADE, POLÍTICA, ESCRITA E ORATÓRIA É normal, nos textos que se referem ao Padre Antônio Vieira, encontrarmos qualificativos grandiosos que destacam seu caráter de homem de pensamento e de ação. Coutinho & Coutinho (2004 b), por exemplo, nos falam que este grande jesuíta tem “lugar considerável na história da civilização brasileira, para o qual cooperou com tamanha obstinação e desassombro” (p.80); Henriques (2008) o considera como “um dos mais exímios utilizadores da língua de Camões” (p.128). A mais importante glorificação, talvez, seja a do poeta Fernando Pessoa, frequentemente aludida, na qual o grande jesuíta é designado como “Imperador da língua Portuguesa”. [2] Antônio Vieira nasceu em Lisboa, em 6 de fevereiro de 1608. Chega ao Brasil ainda criança, em 1614, na Bahia, e, mais tarde, com 15 anos, ingressa como noviço na Companhia de Jesus. Em 1627, no Colégio de Olinda, passa a reger a carreira de retórica. Em 1635, recebe as ordens sacerdotais (COUTINHO & COUTINHO, 2004b). Para além dos méritos individuais do famoso missionário, é interessante perceber que toda sua formação de base se dá a partir da ordem jesuítica presente em solo nacional. Vieira, como grande pregador – e, porque não, exímio artífice da retórica -, é fruto de uma primeira pedagogia brasileira direcionada para parcelas da elite do Brasil colônia. É claro que esta pedagogia estava subordinada à tradição escolástica portuguesa, predominante no Colégio das Artes e na Universidade de Coimbra. Neste Colégio, dominado pelos jesuítas desde 1555, é que se faziam os estudos menores, inclusive os de retórica. “O controle tornou-se mais rígido a partir da introdução, em 1639, com a ratio studiorum, o método de estudo jesuítico, e durou até 1759, quando os jesuítas foram expulsos de Portugal e do Brasil.” (CARVALHO, 2000, p.130). [3] O Ratio Studiorum, segundo Franca (1952), era o plano de estudos da Companhia de Jesus e funcionou como um código de ensino através do qual se pautaram, durante cerca de duzentos anos, a organização e a atividade dos numerosos

colégios

da

Companhia

que,

tendo

como

objetivo

o

empreendimento evangelizador, souberam manter pragmaticamente alguma flexibilidade em sua missão educadora. À sombra desta sábia disposição os colégios dos jesuítas foram se adaptando na prática às novas condições dos tempos. Ao idioma vernáculo e

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

40

às ciências experimentais que se iam organizando e desenvolvendo abriu-se maior margem na organização dos currículos. Esta flexibilidade de adaptação de programas, aliada à fidelidade dos ideais e métodos pedagógicos permitiu aos estabelecimentos de ensino da ordem não só conservarem na vanguarda da instrução da juventude senão ainda crescerem, em ritmo ininterrupto, até a supressão da Companhia de Jesus (FRANCA, 1952).[4] A Ratio, segundo o autor, não é um tratado sistematizado de pedagogia, mas uma coleção de regras positivas e uma série de prescrições práticas e minuciosas. Assim, a partir dela, encontramos diversos níveis de ensino. Os denominados estudos inferiores ou menores abrangiam cinco disciplinas e constituíam o currículo humanista, correspondendo ao moderno curso secundário. Era composto de: retórica, humanidades, gramática superior, gramática média e gramática inferior. O currículo humanista dos estudos inferiores era seriado, caracterizando-se por “graus ou estágios de progresso”, com duração média de sete anos. Tinha como ápice a retórica: O grau da retórica é a expressão perfeita, em prosa e verso, e abrange os conhecimentos teórico e prático dos preceitos da arte de bem dizer e uma erudição mais rica de história, arqueologia, etc. Como se vê, o objetivo do curso humanista é a arte acabada da composição, oral e escrita. O aluno deve desenvolver todas as suas faculdades, postas em exercício pelo homem que se exprime e adquirir a arte de vazar esta manifestação de si mesmo nos moldes de uma expressão perfeita. As classes de gramática asseguram-lhe uma expressão clara e exata, a de humanidades, uma expressão rica e elegante, a de retórica mestria perfeitamente na expressão poderosa e convincente ad perfectam eloquentiam informat.( FRANCA, 1952).

A formação continuava através dos cursos de Filosofia e Teologia, denominados de estudos superiores. No geral, embora o alvo principal do ratio studiorum fosse a formação do bom cristão, na elaboração do seu plano de estudos é visível a influência clássica, em obras como a Retórica de Aristóteles, o De Oratore de Cícero, além de autores como Plutarco e Sêneca e Quintiliano etc. Os jesuítas tinham uma formação diversificada e profunda. No próprio Sermão da Sexagésima vemos Vieira aludir, direta ou indiretamente, a Aristóteles, Túlio, Quintiliano, Homero, entre outros[5]. Foi a partir do entusiasmo renascentista vigente, do qual não se furtaram os missionários inacianos, e das necessidades da contrarreforma que a ordenação geral dos estudos da Companhia de Jesus procurou criar uma síntese harmoniosa entre os diversos legados disponíveis à época. É desta

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

41

busca de síntese para um humanismo cristão da renascença que podemos falar, posteriormente, de um barroquismo da obra de Vieira. A RETÓRICA, O BARROCO E A ARTE NA OBRA DE VIEIRA A maioria livros didáticos[6] voltados para o ensino de Literatura no Ensino Médio traz, primeiramente, uma introdução dos conceitos de Barroco, juntamente com uma breve historiografia do período. Os escritores do período são apresentados aos alunos posteriormente. No caso específico do padre Antônio Vieira, essa apresentação se dá através do seu papel jesuítico na catequese dos índios e da defesa do domínio português por ocasião da invasão holandesa. Até mesmo em livros voltados para o Ensino Superior, a ordem seguida para se chegar ao nome dos autores de relevo, mais especificamente de Vieira, parece ser respeitada, assim como a importância da sua obra para o período. Um bom exemplo é como Alfredo Bosi (2006) inicia o nome de Vieira em seu livro Historia concisa da Literatura Brasileira: “A prosa barroca está representada em primeiro plano pela oratória sagrada dos jesuítas. O nome central é o do Padre Antônio Vieira.” (pág. 43). A classificação do jesuíta no estilo barroco deve-se, dentre outros fatores, a presença de duas características principais do período presentes em seus sermões: o conceptismo e o cultismo. O primeiro (do espanhol concepto, ideia) caracteriza-se, brevemente, por jogo de ideias, geradas por sutilezas de raciocínio e de pensamento lógico, analogias, parábolas. Já o segundo, trata do gosto pelo rebuscamento da forma e do vocabulário, ornamentado por jogos de palavras, forte presença de figuras de linguagem, efeitos sensoriais, imagens fortes e/ou fantasiosas. No Barroco, em geral, diz-se que há uma crise espiritual típica que torna o artista dual, dividido entre o paganismo, o sensualismo do Renascimento e a forte onda de religiosidade que lembrava o teocentrismo da Idade Média. São características do homem barroco o gosto pelo oposto, pelo conflito, pela contradição. Com isso, o texto torna-se repleto de antíteses, paradoxos, metáforas e demais figuras, que nos remetem ao sentimento de culpa cristão e às imagens de opostos: claro/escuro; vida/morte; fé/sensualidade. Embora Vieira seja um estrito semeador do evangelho, diversas características do período barroco podem ser encontradas em sua obra. Isso porque temos em Vieira, um homem envolvido com o seu tempo, com os problemas da sua época, mas também aflito com o Santo Ofício.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

42

No Sermão da Sexagésima, o padre constrói correspondências alegóricas tanto para a conversão das almas quanto para que um homem enxergue a si mesmo. São empregadas várias metáforas, como a semeadura, a semente do trigo, a pedra e o espinho, que num conjunto alcançam um significado “real” muito maior: representam a semeadura religiosa e a conversão das pessoas à religião católica. É claro que o conceptismo, por si só mais presente na prosa do que na poesia, encontra-se presente no texto de Vieira, uma vez que a sua preocupação maior é com o conteúdo, com a arte da persuasão. Para alcançar o objetivo planejado, o pregador valeu-se de raciocínios complexos e de analogias, mas sem descuidar da forma, da elegância do emprego vocabular e, por que não, do virtuosismo bem dosado que lhe é peculiar. Como os sermões tratavam de todos os assuntos que envolviam e preocupavam o seu público, pode-se dizer que os sermões de Vieira tornaramse expressão do Barroco em prosa sacra e uma das principais expressões da Contrarreforma pregada pela Igreja Católica. Neste aspecto, é comum encontrarmos autores que valorizam o aspecto mais persuasivo e, de certa forma, mais racional do pensamento de Vieira. Proença Filho (2012) ao se referir a um trecho do “Sermão do Mandato” do pregador jesuíta diz: “Como se percebe, o desenvolvimento do texto faz-se rigorosamente dentro de padrões lógicos de raciocínio...” (p.157) (grifos nossos). Ao mesmo tempo, encontramos a valorização de Vieira como artista da palavra. Nos termos de Bosi (2006) ·, “De Vieira ficou o testemunho de um arquiteto incansável de sonhos e de um orador complexo e sutil, mais conceptista do que cultista, amante de provar até o sofisma, eloquente até a retórica, mas assim mesmo, ou por isso mesmo, estupendo artista da palavra” (p.45). Historicamente, essas características, aliadas ao seu patriotismo, foram efetivamente úteis, principalmente no contexto da Restauração de Portugal. Como nos diz Henriques (2008), mostrando o equilíbrio entre forma, conteúdo e ação de Vieira, este serviu ao Reino como seu “ ‘embaixador’ em França, na Holanda e em Roma. O seu zelo patriótico aliado a uma poderosa dialéctica e à fina elegância no uso da língua foram fundamentais para granjear apoios.”( HENRIQUES, 2008, p. 129). Neste sentido, não haveria uma distância entre uma retórica ornamental e outra persuasiva na obra do insigne jesuíta, ambas servindo a um mesmo fim. Cabe, além disso, ressaltar que alguns autores consideram até mesmo a arte, em seu amplo aspecto, não mais do que:

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

43

Uma técnica, um método, um tipo de comunicação ou de relação; mais especificamente, é uma técnica de persuasão que deve levar em conta não só as próprias possibilidades e os próprios meios, mas também as disposições do público a que se dirige. A teoria dos afetos, exposta no segundo livro da Retórica [de Aristóteles], torna-se assim um elemento na concepção da arte como comunicação e persuasão. (ARGAN, 2004, p.35).

A partir destes fundamentos específicos, encontramos um enfoque no qual a arte estaria bem mais próxima da retórica, tornando os limites entre ambas bastante indiferenciados. O nosso interesse, no caso, é justamente destacar os méritos da obra deste grande orador e chamar a atenção para sua capacidade de integração entre forma e conteúdo, direcionados para os fins propostos. O próprio Sermão da Sexagésima é um exemplo disso. Todo sermão pode ser visto como uma crítica aos maus pregadores. Vieira censura o descompasso entre aquilo que é professado e a vida daquele que faz a doutrinação. E faz isso de forma gradativa, minuciosamente, sem perder a cadência ou o brilho. Entre várias passagens, podemos citar essa reprovação: “Antigamente convertia-se o mundo, hoje por que não se converte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obras são tiros sem bala; atroam, mas não ferem. ”( VIEIRA, 2014, p. 36). Em outra passagem, Vieira critica o estilo afetado e dificultoso de alguns sermões encontrados pelos púlpitos de seu tempo: Este estilo que hoje se usa, os que querem honrar chamam-lhe culto, os que o condenam chamam-lhe escuro, mais ainda lhe fazem muita honra. O estilo culto não é escuro, é negro, e negro boçal e muito cerrado. É possível que somos Portugueses, e havemos de ouvir um pregador em Português, e não havemos de entender o que diz?(id, p.40). [7]

O insigne jesuíta defende uma coesão do sermão, através da condução de um só assunto, de uma só matéria, num detalhamento rigoroso: De maneira que Jonas em quarenta dias pregou um só assunto, e nós queremos pregar quarenta assuntos em uma só hora?[...] Há de tomar o Pregador uma só matéria, há que defini-la para que se conheça, há que dividi-la para que se distinga, há de prová-la com a Escritura, há de declará-la com a razão, há de confirma-la com o exemplo, há de amplifica-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que hão de se seguir, com os inconvenientes que se devem evitar, há de responder às dúvidas, há de satisfazer às dificuldades... (id., p.42)

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

44

Uma questão interessante que devemos ter clara em nossa mente é a de que a argumentação religiosa não é, como alguns poderiam pensar, a representante direta do gênero epidítico.[8] Além do combate que a catolicidade efetuava contra seus opositores mais facilmente identificados, é preciso lembrar também que as diversas ordens religiosas disputavam constantemente a primazia entre si. A má pregação era comparada, por exemplo, pelo famoso Jesuíta, à comédia e à farsa. Pregando no Brasil, em Portugal e na Itália, Antônio Vieira tornou-se inclusive personagem de romance histórico ficcional da atualidade, Boca do Inferno de Ana Miranda. Nele, a narradora faz referência às inimizades do pregador. Além disso, vimos no campo político, claramente, a intenção dos primeiros educadores da Companhia de Jesus: desejo de exclusividade na ação de civilização dos índios, com método cuja chave não pretendiam dividir com ninguém, nem mesmo com os outros religiosos, nem com a metrópole portuguesa. Entre outros pormenores, a defesa dos índios com relação à escravização era notória ao passo que a dos negros era apenas descrita e a perspectiva de uma melhora em sua situação encontrava-se no pós-morte, que compensava o sofrimento tido por eles em vida.[9] Enfim, encontramos uma postura de luta com relação aos índios e de resignação com relação ao negro. (Sermão vigésimo sétimo). Tudo isso nos faz crer que a obra de Vieira é rica em desdobramentos e possibilidades de interlocução com o campo literário, retórico, pedagógico, entre outros. Um exercício curioso que podemos fazer é direcionar as recomendações encontradas no sermão da Sexagésima, diminuindo o caráter religioso, para políticos, professores e eruditos. Ao que parece, ainda precisamos muito aprender com as lições da retórica proposta por Vieira, pois, como vimos, “palavras sem obras, são tiros sem bala”. No alvorecer do século XX, autores como Oliveira Vianna, Manoel Bomfim, Sérgio Buarque de Holanda, denunciavam, principalmente, entre políticos e alguns intelectuais, a tendência para o bacharelismo, para o verbalismo, para a retórica pomposa, para a erudição míope, e afeita também às citações abundantes. Acreditamos, portanto, que muitos dos posicionamentos de Vieira ainda são bastante pertinentes e repletos de coerência para os políticos e, até mesmo, para alguns professores de hoje em dia.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

45

Para finalizar, retomamos o testemunho do recentemente falecido poeta brasileiro Manoel de Barros, que utilizamos, aqui, como uma recomendação: “em 1931, com 14 anos, um padre do Colégio São José me deu um livro de Antônio Vieira pra ler. Só daí em diante eu gostei de ler...” (BARROS, 2010, p.48).

REFERÊNCIAS ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e Persuasão: ensaio sobre o barroco. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. BARROS, Manoel. Manoel de Barros/ organização Adalberto Müller- Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010. ( Encontros). BOSI, Alfredo. História concisa da literatura Brasileira- 44 ed.- São Paulo: Cultrix, 2006. COUTINHO, Afrânio & COUTINHO, Eduardo de Faria. A literatura no Brasil: volume 1/Preliminares/Parte I/generalidades. 7ª ed.- São Paulo: Global, 2004 a. COUTINHO, Afrânio & COUTINHO, Eduardo de Faria. A literatura no Brasil: Volume 2/Parte II/ Estilos de Época/ Era barroca/ Era Neoclássica. 7ª ed.- São Paulo: Global, 2004 b. CARVALHO, José Murilo. História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura. Topoi, Rio de Janeiro, nº 1, 2000, pp. 123152. http://www.revistatopoi.org/numeros_anteriores/topoi01.htm acesso em 03/04/2015 CEREJA, William e COCHAR, Thereza. Literatura Brasileira: um diálogo com outras literaturas e outras linguagens. 4° ed. reform. – São Paulo: Atual, 2009. FRANCA, Leonel. O Método Pedagógico dos Jesuítas – O “Ratio Studiorum”. Rio de Janeiro: Livraria AGIR Editora, 1952. http://alexandriacatolica.blogspot.com HENRIQUES, Antônio. Padre António Vieira, sua vida e suas lutas. In: História e Cultura. julho 2008. 126-133. MESQUIDA, Peri. Catequizadores de índios, educadores de colonos, Soldados de Cristo: formação de professores e ação pedagógica dos jesuítas no Brasil, de 1549 a 1759, à luz do Ratio Studiorum. Educ. rev. [online]. 2013, n.48, pp. 235-249. ISSN 0104-4060. PROENÇA FILHO, Domício. Estilos de época na literatura- 20 ed.- São Paulo: Prumo, 2012.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

46

VIEIRA, Antônio. Sermões: Padre Antônio Vieira/ organização e introdução Alcir Pécora. – São Paulo: Hedra, 2014.

MARCELO BAFICA COELHO - Professor adjunto de Filosofia da Educação na UFF, Doutor em Ciências Humanas e educação pela PUC-Rio, Mestre em Educação, Licenciado e Bacharel em Ciências Sociais e Bacharel em Comunicação Social pela UFRJ. É pesquisador do grupo alteridade, psicanálise e educação, UFF. CRISTIANE FERREIRA DE SOUZA - Mestre em literatura brasileira pela UFRJ, Graduada em Ciências Economicas pela UERJ, Graduada em Letras Portugues Ingles pela Universidade Veiga de Almeida. Atualmente é professora das Redes Pública e Particular de ensino.

[1] Segundo Mesquida (2013) Companhia de Jesus, ou Societatis Iesu, foi uma ordem religiosa e educadora fundada em 1539 partir de um pequeno grupo de homens, estudantes da Universidade de Paris (Afonso Salmeron, Diogo Laines, Francisco Xavier, Nicolau Babdilha, Pedro Fabro e Simão Rodrigues), que se reuniam com Inácio de Loyola. “Na realidade, a Ordem é conhecida, seja por Companhia, seja por Sociedade. A primeira nomenclatura indica que os jesuítas estão a serviço do exército de Javé, constantemente prontos para o combate em favor do Evangelho e, é claro, contra o protestantismo e a ignorância; a segunda propõe uma associação de companheiros irmanados pela vocação da qual se dizem comissionados, a de contribuir para a expansão do catolicismo pelo Saber, ad majorem Deum gloriam! [para a maior glória de Deus!]. No ano seguinte, no dia 27 de setembro de 1540, o Papa Paulo III oficializou a Sociedade como ordem eclesiástica por meio da bula Regimini Militantis Ecclesiae. Dez anos mais tarde, em 21 de julho de 1550, a bula Exposcit Debitum, do Papa Júlio III, aprovou a Formula Instituti da Societatis Iesu, confirmando a Companhia de Jesus”( MESQUIDA, 2013, pp.237-238) [2] O poema que fala de Vieira está presente em “Mensagem”, único livro publicado em

vida: “O céu 'strella o azul e tem grandeza/ Este, que teve a fama e à gloria tem/ Imperador da lingua portugueza/ Foi-nos um céu também...” [3] Cabe destacar que a elaboração da Ratio Sutiorum, antes de sua implementação no Brasil, foi um processo gradativo e que, segundo Mesquida (2013), o Ratio definitivo é fruto de uma caminhada de meio século. “A Sociedade, ou Companhia de Jesus, procurou, desde a sua fundação, elaborar as bases teóricas da sua prática pedagógica, o método adotado e as regras que iriam nortear a ação educativa. Estas se consubstanciaram no que ficou conhecido por Ratio Studiorum tendo como modelo as Constituições, em especial o seu capítulo IV, os Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola, e o modus parisiensis como método capaz de ensinar de forma rápida e perfeita. O primeiro Ratio Studiorum deve-se a Jerônimo Nadal e foi elaborado em 1548, o segundo foi o Ratio de Aníbal Coudret, em 1551, o terceiro, o Ratio de Diego de Ledesma, de 1553 (De ratione et ordine studiorum collegii romani), o quarto é o Ratio de Borja, elaborado em 1573, tendo como título Summa Sapientia, a elaboração do quinto Ratio coube ao padre Cláudio Aquaviva, em 1586. Finalmente, aparece o Ratio de 1591, uma preparação para o Ratio definitivo publicado em 1599, depois de uma rigorosa consulta aos "doutos" da Companhia.”(p. 241). [4] O texto de Franca utilizado neste trabalho foi “FRANCA, Leonel. O Método Pedagógico dos Jesuítas – O “Ratio Studiorum”. Rio de Janeiro: Livraria AGIR Editora, 1952. http://alexandriacatolica.blogspot.com”. Tal texto, de fácil acesso pela internet, embora disponível para publicações educacionais, não se encontra com páginas numeradas. [5] “ Tudo o que tenho dito pudera demonstrar largamente, não com os preceitos dos Aristóteles, dos Túlios, dos Quintilianos, mas com a prática observada do príncipe dos Oradores Evangélicos...”( VIEIRA, 2014, p.42). “ O pregar é entrar em batalha com os vícios; e as armas alheias, ainda que sejam as de

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

47

Aquiles, a ninguém deram vitória.”( id, p.43). “Tomara ter aqui as comédias de Plauto, de Terêncio, de Sêneca, e vereis se não acháveis nelas muitos desenganos da vida e da vaidade do mundo, muitos pontos de doutrina moral, muito mais verdadeiros e muito mais sólidos , do que hoje se ouvem nos púlpitos.”(id,p.49). [6] Para fins de análise, será utilizado como referência o livro: CEREJA, William e COCHAR, Thereza. Literatura Brasileira: um diálogo com outras literaturas e outras linguagens. 4° ed. reform. – São Paulo: Atual, 2009. [7] Ele ainda recomenda: “Aprendamos com o Céu o estilo da disposição, e também o das palavras. Como hão de ser as palavras? Como as estrelas. As estrelas são muito distintas e muito claras. Assim há de ser o estilo da pregação, muito distinto e muito claro. E nem por isso temais que pareça o estilo baixo; as estrelas são muito distintas, e muito claras e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e alto; tão claro que entendam os que não sabem, e tão alto que tenham muito que entender nele os que sabem.”( VIEIRA, 2014,p.40). [8] O gênero epidítico pode ser entendido, de forma ampla, como uma ação levada a cabo como o intuito de intensificar a adesão, reforçar os valores que se procuram fazer predominar num auditório. Em geral não se espera que há haja combates argumentativos neste momento, o intuito do gênero é ser elogioso, voltando-se para a adequação e manutenção de valores já previamente estabelecidos. [9] A possível diferença no tratamento do índio e do negro nos sermões do jesuíta também é lembrada pelos livros didáticos, especialmente em CEREJA & COCHAR.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

48

EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: HIATOS E ASSIMETRIAS DE UNIVERSOS SIMBÓLICOS EM DISPUTA Rita de Cássia de Souza da Silva [email protected] Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO As grandes diversidades de visões de mundo, de opiniões e de diferentes posturas colocam os professores, que atuam na Educação de Jovens e Adultos, diante da necessidade de uma prática que possibilite o diálogo

e

a

problematização

dos

conflitos

gerados

pelos diferentes

posicionamentos éticos dos alunos. Na condução de nossa pesquisa, ouviremos as experiências de 10 professores que atuam no município de Duque de Caxias na EJA. Nosso objetivo é analisar se as práticas pedagógicas dos professores consideram os diferentes valores sociais e culturais dos alunos. Essa pesquisa é de cunho qualitativo, e nossa proposta metodológica é fazer a triangulação das entrevistas com as análises dos documentos: PNE (Plano Nacional de Educação) e o PME (Plano Municipal de Educação) de Duque de Caxias. Estaremos utilizando a Nova Retórica Perelman & OlbrechtsTyteca (2005) para analisarmos as entrevistas e os documentos oficiais. A fundamentação teórica compreende estudos com base em Freire (2011), Fávero (2013), Bourdieu (2010), Oliveira (2011), Perelman (2004) e Perelman & Olbrechts- Tyteca (2005).

Palavras chave: EJA; ética e argumentação

INTRODUÇÃO Atualmente no Brasil quando se pensa em Educação de Jovens e Adultos (EJA) e suas finalidades os temas alfabetização, educação compensatória

e

aceleração

são

imediatamente

relacionados

pelos

professores. Diferentes políticas educacionais ajudaram a reforçar essa mentalidade que atribui a EJA este caráter aligeirado, utilitarista e que procura dar o máximo de ensino, em um curto prazo de tempo, aqueles que não tiveram acesso na idade própria.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

49

Por outro lado, diferentes experiências por todo Brasil, em EJA, beberam nas fontes da Educação Popular (EP), que diferente do ensino oficial é vivenciado em espaços não formais. Essa identificação ajudou a configurar uma outra realidade na EJA: a preocupação com os saberes populares, o respeito as diferenças, o diálogo como elemento norteador da ação educativa, a valorização da formação dos educadores e a superação do carácter disciplinar da organização curricular, próprias dos estabelecimentos oficiais, como assinala Fávero (2013). Dividida entre uma prática institucionalizada, reguladora, controladora e experiências que se configuram em serem dialógicas e emancipatórias (Eiterer & Reis, 2009), a EJA se define e se reinventa numa dinâmica constante diante dos enfrentamentos de seus velhos e novos problemas. Um dos velhos problemas da EJA, sem dúvida, é a evasão. O afastamento de um público que tem em seu histórico a entrada e saída da escola por diversas razões, acaba configurando a evasão como uma das características “naturais” da EJA, e muitas das vezes, a falta de uma problematização ampliam os altos índices de abandono. Em contrapartida, um dos novos desafios é a inserção de um público cada vez mais jovem, que diferente daqueles que não tiveram acesso na idade própria, estão nos bancos escolares e enfrentam uma exclusão perversa que imprime a marca do fracasso, ainda no interior da escola Bourdieu (2011). Frente a esta triste realidade de exclusão e desvalorização dessa modalidade de ensino, a prática educativa, muitas das vezes, se configura como um espaço conflituoso. As grandes diversidades de visões de mundo, de opiniões e de diferentes posturas,

colocam os professores diante da

necessidade de uma prática que possibilite a negociação dos sentidos através do diálogo e a problematização dos debates e embates gerados pelos diferentes posicionamentos éticos dos alunos, que frequentemente sem voz no currículo escolar e com limitados espaços para expressar suas opiniões, manifestam suas insatisfações de forma unívoca e sem qualquer tipo de tolerância uns com os outros.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

50

JUSTIFICATIVA E QUESTÕES DE ESTUDO Nosso interesse nesse assunto se deve, primeiramente, por sermos professores da EJA no município de Duque de Caxias. Nos vários grupos de estudos, que são realizados nas escolas e nos encontros de formação oferecidos por essa rede, cresce um sentimento entre os professores que a configuração da EJA vem se modificando. Aumentam constantemente os embates entre os alunos e os professores resultante dos diferentes posicionamentos éticos e de posturas autoritárias tanto dos professores quanto dos alunos. Pelo fácil acesso que teremos ao município de Duque de Caxias realizaremos a nossa pesquisa nas turmas da etapa IV e V. As etapas finais foram escolhidas por apresentarem um grande número de jovens provenientes do ensino regular, que vem a procura da terminalidade, e de jovens e adultos que não tiveram esse acesso na idade própria. As seguintes questões de estudo nortearão nossa investigação: a inserção de jovens, que muitas das vezes, são excluídos do ensino regular, devido as muitas reprovações, altera a configuração da EJA? A interação de públicos tão plurais como os de jovens e adultos contribui para uma prática pedagógica enriquecedora ou potencializa a evasão? Estes “conflitos entre gerações” são decorrentes dos diferentes posicionamentos com respeito a valores sociais e culturais? Estamos desenvolvendo nossa pesquisa no Programa de PósGraduação (PPGE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Aprofundamos nossa discussão no Mestrado, mas especificamente, na linha de pesquisa Inclusão, Ética & Interculturalidade sob a orientação do professor Doutor Renato José de Oliveira. Sendo assim, perseguimos os seguintes objetivos:

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

51

OBJETIVOS O objetivo geral da pesquisa é: - Descrever e analisar se as práticas pedagógicas dos professores que atuam na EJA no município de Duque de Caxias consideram os diferentes valores sociais e culturais dos alunos. Os objetivos específicos são: - Identificar e analisar se as diferentes práticas dos professores se aproximam das realizadas no ensino regular diurno ou se são influenciados pelas experiências dos movimentos de Educação Popular; -Identificar e analisar se os professores associam a evasão dos alunos aos conflitos que emergem das relações intergeracionais. - Identificar as diferentes estratégias dos professores na mediação dos conflitos decorrentes dos diferentes posicionamentos acerca dos valores sociais e culturais.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Educação de Jovens e Adultos: um breve histórico As primeiras tentativas de educação de jovens e adultos como políticas de Estado, foram as Campanhas Nacionais de Educação de Adolescentes e Adultos (CNAA) a partir de 1947. A evolução, o desenvolvimento e os dados dessas campanhas, apesar de terem contribuído para a abertura e o funcionamento desses serviços em muitos municípios Fávero (2013), não atentou inicialmente para a formação dos professores, pois a composição destes profissionais eram de voluntários que baseavam suas práticas ao que era realizado no ensino primário, ou seja, nas suas próprias experiências enquanto alunos. Conforme Beisiegel (1997) por trás dessa iniciativa, o que se observou de fato foi uma tentativa de controlar as massas, o engrossamento das fileiras

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

52

eleitorais e a sustentação política de governos populistas que queriam manterse no poder. Os grupos que assumiram o poder após a Revolução de 1930 incluíram também as massas populares urbanas entre os diversos segmentos sociais em que procuravam sustentação política. As ações voltadas para a valorização das condições desses segmentos da população tinham seus fundamentos nessas necessidades políticas dos novos governantes (Beisiegel, 1997, p.209).

Os serviços prestados pelas campanhas de alfabetização apontavam para a precariedade do serviço e isso incluía a falta de infraestrutura dos estabelecimentos, a inadequação das práticas pedagógicas no atendimento desse público, a falta de formação dos professores, que era composto basicamente do voluntariado, e os altos índices de evasão. Esses fatores impulsionaram uma releitura da EJA ministrada nos estabelecimentos oficias. “Neste contexto, multiplicaram-se em todo país movimentos de educação popular, dentro de uma concepção que incorporava a perspectiva de transformação social, fato que evocou a influência das ideias de Paulo Freire.” (Soares & Vieira, 2009, p. 154). Segundo Oliveira (2004), os educadores Paulo Freire, em Pernambuco, e Moacir de Góes, no Rio Grande do Norte, começaram a desenvolver seus trabalhos de alfabetização ainda nos anos de 1950, buscando adequar seus métodos e objetivos as especificidades dos alunos. Uma das características principais apontada pela autora, é que ambos pensavam o fazer pedagógico da educação de jovens e adultos como ato político por excelência. Tendo como âncora a Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire principia em sua ação pedagógica uma educação voltada para criticidade das condições sociais e elege o diálogo como fio condutor das transformações humanas, negando assim, uma educação mecanizada e abstrata que servia apenas para atender as demandas da expansão industrial como afirma Freire (2014), A realidade social objetiva, que não existe por acaso mas como produto da ação dos homens, também não se transforma por acaso. Se os homens são os produtores desta realidade e se esta, na “inversão das práxis” se volta sobre eles e os condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa dos homens (FREIRE, 2014, p.51).

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

53

A Ditadura Militar, em 1964, deu fim aos movimentos que reconheciam na educação uma oportunidade para a criticidade da realidade em que se encontravam a população de jovens e adultos desfavorecidos do país. Através de um programa educacional mecanicista (MOBRAL), a ditadura militar tinha como objetivo o controle e a diminuição dos movimentos sociais que promoviam a integração dos trabalhadores e que auxiliavam na criticidade do sistema produtivo e produtor das desigualdades. Conforme Soares e Vieira (2009) o governo militar, sob o título de ensino supletivo, introduziu na lei 5692/ 71 a necessidade de atendimento à EJA, e apesar do caráter tecnicista da lei, dava ênfase na necessidade da formação dos professores no atendimento desse público, conforme assinala as autoras. Com a constituição de 1987, a EJA ganhou uma nova roupagem. Os direitos conquistados na constituinte estabeleceram as bases que garantiram o acesso de todos ao ensino fundamental, independentemente da idade. Os dispositivos legais firmados na Constituição ampliaram a obrigatoriedade da oferta para crianças, jovens, adultos e idosos, garantindo os recursos necessários, a assistência técnica para a sua implantação e prevendo as diretrizes

para

a

responsabilização

das

autoridades

devido

ao

não

cumprimento dos imperativos constitucionais. Nos anos de 1990, as diferentes políticas de governo transferiram as responsabilidades de encargos e assistência técnica para os municípios, as organizações

não

governamentais

e

a

sociedade

civil.

Havia

um

convencimento, nesses governos, que a universalização da educação básica iria, em médio prazo, corrigir as defasagens dos alunos e não haveria mais necessidade da EJA. Essas inciativas iam na contramão dos discursos de inclusão e democratização do ensino que se propagavam entres os governos, desde a abertura política, a partir dos anos de 1980. De acordo com Eiterer e Reis (2009, p.183), Na década de 1990, a EJA, gradualmente, perdeu os direitos assegurados em períodos anteriores. [...] Este abandono da EJA pelo poder público e, mais notadamente, pela União deve-se, dentre outros fatores, ao convencimento de que a solução em

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

54

médio prazo para o problema do enorme contingente de pouco ou não escolarizados seria o investimento na escolarização de crianças e jovens na idade escolar.

Segundo Rummert (2009) com o início do governo Luís Inácio Lula da Silva o rumo do político toma outros tons discursivos. Com a pobreza na pauta do governo, a educação de jovens e adultos passou a ser mencionada como uma das prioridades do governo. A Secretaria Extraordinária de Erradicação do Analfabetismo lançou o programa Brasil Alfabetizado, que segundo alguns críticos, era uma espécie de iniciativa como aquelas que foram desenvolvidas no passado como as Campanhas de Alfabetização e o MOBRAL. O lançamento, em 2003, do programa Brasil Alfabetizado, com a apresentação de uma proposta nos moldes de campanha, desvinculada da educação básica, não superando o viés das ações anteriores, deixou os educadores progressistas perplexos pela recorrência do equívoco. Questionava- se, desde o início, seu caráter de campanha, as bases de sua concepção, análogas às de tantas iniciativas fracassadas já implementadas em outros períodos históricos – como o MOBRAL (...) (Rummert 2007, p. 35).

Podemos concluir então, que os diversos programas e iniciativas por parte dos diferentes governos federais, sejam eles liberais ou progressistas, conservavam como política para a educação dos nossos jovens e adultos aspectos compensatórios, imediatistas, e muitos dessas propostas, destituídas de

elementos

dialógicos

em

prol

de

uma

educação

emancipatória,

transformadora e plural.

Pluralidade: caminhos de uma comunicação dialógica Os diferentes públicos encontrados na EJA nos colocam diante de discussões pós-modernas sobre pluralidade. Essas discussões são marcadas pela busca da valorização da diversidade, num constructo crescente ao estabelecer

o

homem

concreto

nas

diferentes

relações

sociais.

As

complexidades das relações acabam por estabelecer uma arena onde as diferentes

subjetividades,

culturas,

etnias,

religiões

e

os

diferentes

posicionamentos entram em constantes conflitos em busca de afirmações e voz em foros de debates políticos e sociais (Canen & Moreira, 2001).

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

55

A resolução nº 3, de 15 de junho de 2010 do Conselho Nacional de Educação, em seu artigo Art. 2º, observa as seguintes características para um melhor desenvolvimento da EJA: Cabe a institucionalização de um sistema educacional público de Educação Básica de Jovens e Adultos, como política pública de Estado e não apenas de governo, assumindo a gestão democrática, contemplando a diversidade de sujeitos aprendizes, proporcionando a conjugação de políticas públicas setoriais e fortalecendo sua vocação como instrumento para a educação ao longo da vida (Brasil, 2010, p. 66).

Quando se fala em “diversidades de sujeitos aprendizes” somos também levados

a

pensar

em

diferentes

posicionamentos

éticos.

Esses

posicionamentos norteiam o agir dos indivíduos na sociedade. Faz-se necessário que as práticas docentes na EJA contribuam para as diversas visões, e ajam a favor da criação de espaços que fomentam o diálogo do que deve ser uma real negociação em sociedade. Essas decisões são frutos das negociações argumentativas entre os sujeitos como explicita Oliveira: Ao estimular o debate e a problematização acerca de normas, hábitos e formas de conduta, o professor contribui para que o aluno reflita sobre o que pode ser considerado ético ou não ético e não apenas repita o que é dito por outros (Oliveira, 2010, p. 132).

O encontro de gerações, característico da EJA, pode criar um ambiente de troca das diferentes aprendizagens quando trabalhados através de uma prática plural, que fortalece as diferentes identidades e possibilita que os diferentes posicionamentos éticos firmem o comprometimento com o diálogo. Canen (2001) afirma que, Para que a educação destas camadas da população não represente mais uma instância de fracasso escolar, há que, acima de tudo, superar-se a tendência de se considerarem jovens e adultos como categoria homogênea. Ao contrário, a diversidade de raça, gênero, padrões culturais, e visões de mundo constituem o campo onde se dão as práticas educativas (Canen, 2001, p.104).

A EJA nesta ótica de inclusão das camadas historicamente excluídas, se apresenta como ponto de partida para dinamizar a participação da população na vida pública em suas mais diferentes manifestações. Mesmo porque, o fracasso escolar, em muitos casos, é visto como um fenômeno

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

56

natural dos excluídos, e essa triste realidade é compartilhada pela escola, que vê no aluno alguém desprovido de um certo “capital cultural” como afirma Bourdieu (2011). Segundo ele, a escola privilegia os alunos que mais se aproximam dos valores que ela elege como essenciais para o sucesso escolar. Se antes a escola levava o aluno ao abandono de seus muros, hoje a escola abandona dentro dos seus próprios muros. A seguir estaremos abordando a Teoria da Argumentação Perelman e Olbrechts- Tyteca (2005) como possiblidades de estabelecimento de acordos.

A Teoria da Argumentação: possibilidades de acordos Outra visão que vai em defesa do pluralismo e a criação de espaços argumentativos são as concepções de Perelman (2004); Perelman e OlbrechtsTyteca (2005). Ao resgatar e desenvolver a antiga retórica, os autores trabalham com o embate dos diferentes argumentos que iram desencadear inúmeras decisões mais ou menos plausíveis, pois são possíveis mediante aos acordos estabelecidos pelos diferentes interlocutores. Assumindo esse ponto de vista, Perelman (2004) levanta a bandeira do pluralismo como um posicionamento crítico contra os sistemas monistas que conduzem à intolerância e a rejeição de processos dialógicos, mediante ao alargamento das fronteiras culturais, sociais e os acordos baseados nas trocas discursivas. Os sistemas monistas são também denominados de filosofias primeiras, pois esses se constituem em serem explicações verdadeiras de qualquer problemática filosófica, sejam elas ontológicas, epistemológica ou axiológica. Esses sistemas se consideram verdades absolutas, e com isso, detém o monopólio da explicação da realidade Perelman (2004). Sobre isso o autor comenta que As filosofias primeiras sempre foram, a um só tempo, individualistas e universalistas, partindo das evidências de uma única mente para declará-las universalmente válidas; da mesma forma, as filosofias primeiras negligenciaram o aspecto historicamente condicionado do saber, considerando que lhes competiam as verdades eternas (Perelman, 2004, p. 137).

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

57

Ao desenvolver a Nova Retórica-NR, Perelman e Olbrechts- Tyteca (2005) estabelecem que os argumentos possibilitam trocas discursivas entre os diferentes interlocutores, e através dos acordos prévios se produz argumentos provisórios no comprometimento pela busca de possíveis soluções para os diferentes problemas. Para tanto, os autores consideram que toda a argumentação busca a adesão dos diferentes auditórios. Ao propor as trocas argumentativas os diferentes intelectos são chamados para o debate, assim, cada qual, pode apontar as possíveis alternativas, opiniões e discursos na promoção e tessitura de combinados para o bem estar de todos. Essa prática ouve e da voz nas trocas discursivas dos diferentes indivíduos, independente, de questões raciais, sociais ou intergeracionais. Mas quando se trata de argumentar, influenciar, por meio do discurso, a intensidade da adesão de um auditório a certas teses, já não é possível menosprezar completamente, considerando-as irrelevante, as condições psíquicas e sociais sem as quais a argumentação ficaria sem objeto ou sem efeito. Pois toda argumentação visa à adesão dos espíritos e por isso mesmo, pressupõe, a existência de um contato intelectual (Perelman & Olbrechts - Tyteca, 2005, p. 16).

METODOLOGIA Ao iniciarmos nossas estratégias metodológicas fomos até o banco de teses e dissertações da Capes e utilizamos como instrumentos de busca as seguintes palavras chave: ética, argumentação e EJA.

Feita a busca

encontramos apenas duas dissertações:  SCHMIDT, Eliane Maria Loebens. ÉTICA E MORAL NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS 01/09/2011 219 MESTRADOS ACADÊMICO em EDUCAÇÃO: Instituição de Ensino: UNIVERSIDADE DE SANTA CRUZ DO SUL Biblioteca Depositária: UNIS  OLIVEIRA, Marinézio Gomes de. CONSTRUINDO PONTOS DE V ISTA NO SIMPÓSIO UNIVERSAL: UM OLHAR SOBREA ARGU MENTAÇÃO DE ALUNOS DO ENSINO MÉDIO ' 01/05/2012 158 f. MESTRADOS ACADÊMICO em LETRAS Instituição de Ensino: UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE Biblioteca Depositária: UERN/BC CDD401.41

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

58

Ao lermos os resumos desses trabalhos, concluímos que as abordagens desses autores não apontam, necessariamente, para a problemática dos conflitos decorrentes dos diferentes posicionamentos éticos na sala de aula, e consequentemente, a evasão. Outra observação, é que um dos trabalhos o foco não está nas etapas finais da EJA (ensino fundamental), mas no ensino médio, e o outro aborda o ensino de ética e moral na EJA. Outra fonte que pesquisamos foi no WebQualis da Capes. Selecionamos 4 revistas: Educação em Revista, Educação e Sociedade, Cadernos de pesquisa e Revista Brasileira de Educação. As palavras chave usadas foram as mesmas da pesquisa no banco de teses da Capes. Nas quatro revistas não foram encontrados nenhum artigo que aborde a problemática da evasão, devido à falta de acordos na resolução dos conflitos que emergem dos diversos valores sociais e culturais dos alunos.

Abordagens teóricas – metodológicas: construindo um caminho Pesquisar numa perspectiva qualitativa não é só não optar por um enfoque que se apoia na leitura de dados quantitativos e mensuráveis, mas é estar ciente que a abordagem qualitativa procura compreender as diversas e múltiplas vivências das práticas sociais. É levar em conta a difícil tarefa que resulta na tentativa de olhar o outro, se admirar com o outro, travar embates que se instrumentalizam nas diferentes visões que irão surgir da relação pesquisador e objeto pesquisado Bakhtin (2011). Para essa compreensão é necessário que o pesquisador rompa com o pré - construído, com a ideia de um capital cultural hegemônico e a visão de um espaço idealizado, que em um primeiro olhar, acarreta na leitura de “verdades” que foram identificadas na construção do objeto de pesquisa. Bourdieu (2011) esclarece que [...] a primeira tarefa da ciência social – portanto, do ensino da pesquisa em ciência social – é a de instaurar em norma fundamental da prática científica a conversão do pensamento, a revolução do olhar, a ruptura com o pré-construído e com tudo o que, na ordem social e no universo douto – o sustenta, se seja condenado a ser constantemente sujeito de escrever um

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

59

magistério profético e de pedir uma conversão pessoal (Bourdieu, 2011, p. 49).

Alves Mazzotti e Gewandsznajer (2001) explicita que a pesquisa qualitativa é uma oportunidade de influência social pois, Investiga o que acontece nos grupos e instituições, relacionando as ações humanas com a cultura e as estruturas sociais e políticas, tentando compreender como as redes de poder são produzidas, mediadas e transformadas (Alves Mazzotti & Gewandsznajer 2001, p.139)

Local e Participantes Esta pesquisa será realizada com os professores das etapas IV e V da EJA no município de Duque de Caxias. O fato dos professores serem sujeitos plurais e atuarem em espaços públicos podem oferecer interessantes pontos de análises para nossa investigação. Através de suas argumentações, que são tecidas por suas experiências profissionais e diferentes visões de mundo, possibilitará a construção de uma certa compreensão da realidade. “Considerar a pessoa investigada como sujeito implica compreendê-la como possuidora de uma voz reveladora que a torna co- participante do processo de pesquisa” (Freitas, 2007 p. 29). Duas escolas do 3º distrito serão escolhidas para a realização da pesquisa. Após recebermos a liberação da SME (Secretaria Municipal de Educação) desse município, estaremos entrando em contato com a Escola Municipal Marcio Fiat e a Escola Municipal Roberto Weguellin de Abreu. Entrevistaremos 5 professores de cada escola. Essas escolas apresentam as etapas finais da EJA, sendo assim, teremos acesso a alguns professores, que além de trabalharem na EJA, também estão envolvidos com o ensino regular.

Instrumentos de pesquisa As estratégias que estaremos utilizando na condução de nossa pesquisa será a realização de entrevistas e análise documental. A entrevista é um instrumento bastante utilizado em pesquisas qualitativas, pois favorece uma visão dos diferentes atores e suas representatividades. A entrevista também é

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

60

uma forma bastante fecunda de interagir com o outro, pois é necessário se colocar atentamente na condição de ouvinte, e ao mesmo tempo avaliar as expressões, ritmos, e os tons que acompanham as falas dos entrevistados. Estaremos também analisando dois documentos oficiais: O Plano Nacional de Educação (PNE) 2014 no que tange as metas para a EJA e o Plano Municipal de Educação do município (PME) de Duque de Caxias. Na condução das entrevistas utilizaremos questões semiestruturadas com os 10 professores da EJA das duas escolas selecionadas. As entrevistas além de promoverem a aproximação com os agentes envolvidos, permitirá uma melhor visualização e percepção das experiências, dos diferentes olhares, sentimentos e conflitos que potencializam os saberes que envolvem entrevistador e entrevistado na troca de experiências comunicativas Freitas (2007). Nosso interesse é fazer a triangulação dos documentos oficiais e as falas dos professores, pois entendemos que os documentos oficiais também são vozes de professores, gestores, secretários municipais e estaduais que atuam na EJA. Gostaríamos de analisar, também, se os discursos apresentados

nos

conduzem

as

perguntas

necessárias

em

prol

da

transformação da realidade ou se apresentam propostas fechadas e diretivas, que silenciam e negam uma prática pedagógica que legitima a pluralidade.

Categorias de análises Estaremos utilizando a análise retórica desenvolvida (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2005) para analisarmos as entrevistas e os documentos PNE e o PME de Duque de Caxias. A Teoria da Argumentação nos auxiliará na compreensão dos diferentes discursos produzidos, e se esses são frutos de construções sociais oriundos dos diferentes posicionamentos éticos, culturais e filosóficos ou se são textos monistas. A análise desses documentos não será uma tarefa fácil, pois compreende a leitura crítica de falas, visões e as diferentes políticas que perpassam esses documentos. Essas práticas sociais ao serem produzidas na

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

61

coletividade tecem, através da linguagem, significados que se ressignificam em propostas e ações. Sobre isso descreve Rosalind (2014): O ponto central aqui é que não existe nada “simples”, ou sem importância, com respeito à linguagem: fala e textos são práticas sociais, e até mesmo afirmações que parecem extremamente triviais, estão implicadas em vários tipo atividades. Um dos objetivos da análise de discurso é identificar as funções, ou atividades, da fala e dos textos, e explorar como eles são realizados (Rosalind, 2014, p.250.)

Em relação as entrevistas, a teoria da argumentação tecerá um fio condutor nas análises e categorização das respostas e os argumentos dos professores. Nosso objetivo é entender se as diferentes falas se constituem em argumentos autoritários ou se são argumentos que estão sujeitos a revisões e que consideram os diferentes posicionamentos éticos dos alunos.

REFERÊNCIAS ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith; GEWANDSZNAJDER, Fernando. O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: Pioneira, 2001, p. 139.

BAAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo, Martins Fontes, 2011. BEISIEGEL, Celso Rui. Estado e educação popular. São Paulo: Pioneira, 1974, p. 209.

BRASIL, Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução 3/2010. Diário Oficial da União, Brasília, 2010, seção1, p.66.

BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 485.

________________. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011, p.49.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

62

CANEN, Ana. Avaliação da aprendizagem em sociedades multiculturais. Rio de Janeiro: Papel Virtual, 2001.p. 104.

___________, MOREIRA Antônio Flávio Barbosa (orgs). Ênfases e omissões no currículo. São Paulo: Papirus, 2001, p.15-16.

EIRETER, Carmem L, REIS, Sônia Maria. Educação de Jovens e Adultos: entre a regulação e emancipação. In: SOARES, Leôncio, SILVA, Isabel de Oliveira (orgs). Sujeitos da educação e processos de sociabilidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2009, p.183.

FÁVERO, Osmar. Paulo Freire, movimentos socias e educação de Jovens e Adultos. In: STRECK, Danilo R, ESTEBAN Maria Teresa (orgs). Educação Popular: lugar de construção coletiva. Petrópolis: Vozes, 2013.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014, p.51).

FREITAS, Maria Teresa, JOBIN, Solange, KRAMER, Sônia (orgs). Ciências humanas e pesquisa: Leituras de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Côrtes, 2007.

OLIVEIRA, Inês Barbosa. Educação de Jovens e Adultos. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.

OLIVEIRA, Renato José. A ética no discurso pedagógico da atualidade. Niterói: Intertexto, 2011. ___________________. A prática docente e a ética na escola. Unissinos, 2010, v.14, p. 126-133. ____________________, LEMGRUBER, Márcio Silveira (orgs). Teoria da Argumentação e Educação. Juiz de Fora: UFJF, 2011, p.14-53.

PERELMAM, Chaim. Retóricas. São Paulo: Martins Fontes, 2004.p.139-140.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

63

________________,

OLBRECHTS-TYTECA,

Lucie.

Tratado

da

Argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.16.

ROSALIND, Gill. Análise do discurso. In: MARTIN, W. Bauer, GASKELL, George (orgs). Pesquisa, qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 250.

RUMMERT, Sônia Maria. Políticas públicas para educação de jovens no Brasil: A permanente (re) construção da subalternização – considerações sobre os programas Brasil Alfabetizado e Fazendo Escola. Curitiba: Educar n.29, UFPR, 2007, p. 29 -45.

SOARES, Leôncio, VIEIRA,

Maria

Clarisse.

Trajetórias de formação:

contribuições da Educação Popular à configuração das práticas de Educação de Jovens e Adultos. In: SOARES, Leôncio, SILVA, Isabel de Oliveira (orgs). Sujeitos da educação e processos de sociabilidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2009, p.154. Documentos: BRASIL. Plano Nacional de Educação - PNE/Ministério da Educação. Brasília, DF: INEP, 2014. DUQUE DE CAXIAS. Plano Municipal de Educação – SME. Duque de Caxias, 2014. Site: < http://www.capes.gov.br > Acesso em novembro de2014

RITA DE CÁSSIA DE SOUZA DA SILVA - Professora da Rede municipal de Duque de Caxias; Licenciada em Pedagogia pela UFRJ; Mestranda em educação pelo PPGE/UFRJ. .

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

64

EDUCAÇÃO MORAL E PERSONALIDADE: EXERCITANDO AS VIRTUDES NA INFÂNCIA. Maria Judith Sucupira da Costa Lins [email protected] Universidade Federal do Rio de Janeiro Carla Cristina Silveira de Souza [email protected] Universidade Federal do Rio de Janeiro Marta Amaral Montes [email protected]

Universidade Federal do Rio de Janeiro Talita Adão Perini

[email protected] Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO Essa pesquisa investigou o desenvolvimento da personalidade de crianças de sete anos de idade, por meio das virtudes morais aristotélicas. Objetivou-se trabalhar com duas virtudes: amizade e temperança. As crianças foram expostas a histórias infantis conflitivas moralmente (dilemas) e após discussões e reflexões elaboraram uma moral para as histórias trabalhadas. Foi possível concluir através da pesquisa que, o trabalho de virtudes na infância, desenvolve nas crianças valores universais. O trabalho de discussão das cenas conflitivas eticamente propiciou às crianças uma tomada de decisão ética, fortalecendo o processo de escolhas morais.

Palavras-chave: Educação Moral; Virtudes; Personalidade; Infância

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Situar e delimitar a Educação Moral se faz necessário para que possamos discorrer pelo tema proposto. Na filosofia clássica, a ética representava a harmonia na sociedade grega constituída na prática de costumes em função do Bem Comum. A ética não era imposta, mas fazia parte de uma construção pessoal dentro da polis. Ainda no pensamento clássico, a moral estava relacionada às ações do cotidiano, à prática, às regras. II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

65

Segundo LINS (2007) o Ethos já se apresentava como uma construção de pensamento que nos remete hoje a moral. A autora explica que a moral está sempre relacionada à prática social, não existindo uma moral abstrata. Toda ação acontece na realidade concreta da vida em comum dos homens, num contexto de vida pública. É sempre um comportamento de responsabilidade individual mas que acontece na sociedade e que deriva de princípios éticos, mostrando concretamente qual é a moralidade constitutiva do sujeito. (LINS: 2007, p.20-21)

O conceito da Ética é social. Não há como desconsiderá-la mediante as variadas questões e situações resultantes do convívio entre indivíduos. A ética não se delimita a fatos, mas a atitudes. Toda ética é social e racional e vai se impondo pela vivência cotidiana. Para melhor entender a situação da ética, é possível remeter ao pensamento de SUCUPIRA (1980). O autor, na década de 80 já nos alertava para a necessidade de se trabalhar a Educação Moral. Conforme análise do referido autor, feita há trinta anos, já existia uma crise moral. LINS (1999) corrobora com o autor acima, complementando que o momento sócio-histórico no qual nos situamos não é mais aquele previsto pelos enciclopedistas do século XIX. Os tempos atuais se caracterizam para a autora, pela fragmentação em todos os sentidos o que de algum modo atingiu também as questões éticas. MacIntyre (2001) aponta a Desordem Moral existente na atualidade como consequência do Emotivismo conforme explicado por Stevenson (apud MacIntyre, 2001). MacIntyre explica que para o Emotivismo “tudo, seja o que for, pode ser permitido sob certas circunstâncias” (MACINTYRE, 2001, P.34). O autor completa ainda que essa perspectiva do Emotivismo organiza todos os juízos valorativos como expressões de preferência, expressões de sentimentos e de atitudes, ou seja, juízos particulares.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

66

Ainda no que se refere à Ética na modernidade, para MARQUES (2001), as instituições que mais sofreram desgastes, com a regressão moral instaurada, foram a família e a escola. Nessas, observamos uma educação de mosaico, superficial, ilusória e imediatista que nos mostra resultados problemáticos, por não fazerem referência à prática das virtudes, à construção de valores, à formação do caráter, ao desenvolvimento da personalidade. A ética defendida nesse trabalho refere-se ao conjunto de parâmetros norteadores que influenciarão na tomada de decisão baseada no exercício das virtudes. MACINTYRE (1998) afirma que a ética é um trabalho interior, embora os parâmetros que a definam sejam exteriores. Esse trabalho interior e a tomada de decisão necessária para tal nos remetem à ideia de unidade psíquica. O mundo vivido por cada um de nós, antes de existir corporificado em objetos e ações, ganha vida em nossos conteúdos internos, através das imagens que construímos individual e coletivamente. (JUNG, 1987) Para MacIntyre (2001) é importante para a sociedade do século XXI a retomada da prática das virtudes aristotélicas, evidentemente adaptadas ao novo contexto. A pesquisa em questão se justifica na profunda crise de valores na qual nos encontramos imersos. Segundo Rojas (1996) um momento onde três aspectos são muito peculiares: hedonismo, permissividade e materialismo, fazendo emergir o “homem light”. O termo light carrega implícita uma mensagem forte: tudo é leve, suave, descafeinado, ligeiro, aéreo, fraco...podemos dizer que estamos diante de um novo tipo de humano... (ROJAS: 1996, p.69)

Percebe-se nos dias atuais a ausência de referências axiológicas que estão escamoteadas pelas justificativas de que é danoso e rígido demais o estabelecimento de valores, pois os mesmos formatam e impedem o livre pensar. A liberdade então sugerida retira das crianças, ainda muito pequenas, todo o significado social em relação a regras, normas e conduta ética.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

67

Muito rapidamente vemos a pequena criança crescer e na vida adulta a aplicar os valores ou antivalores que, em sua trajetória de crescimento, aprendeu e engendrou. Daí a importância do hábito. A maneira habitual de agir imprime em nosso caráter um padrão de comportamento. Sendo assim, “o hábito constitui uma autêntica segunda natureza que, uma vez fixada, é quase impossível de alterar” (MARQUES, 2001, p.74). Uma criança que se habitua a viver moralmente, nas situações de decisão, tenderá a escolher pelo que é virtuoso. As virtudes não nascem conosco, elas são adquiridas com o tempo, nas interações e nos atos repetidos e aos poucos vão se tornando hábitos. Tanto os vícios, quanto as virtudes, são adquiridos pelo hábito, pela prática e vivência constante das mesmas ações. A vida virtuosa para Aristóteles (2007) é busca pelo bem, qualidades que permitem ao indivíduo atingir a eudaimonia, que é a felicidade. Agir virtuosamente não é, como mais tarde pensaria Kant, agir contra a inclinação; é agir com base na inclinação formada pelo cultivo das virtudes. A educação moral é uma “éducation sentimentale” (MACINTYRE, 2001, p.255).

As virtudes são diversas e podem ser organizadas de diferentes formas. Para Aristóteles há dois tipos de virtudes: as intelectuais (do pensamento) e as morais (do caráter). As virtudes não são adquiridas pelo ensino, são disposições voluntárias. Hooft (2013) conceitua dois tipos de ética: a do dever e a das virtudes. A ética das virtudes distingue-se da ética do dever. Para ele, a ética do dever está centrada no certo e errado, obrigatório e proibido, usando termos “deodônticos”, enquanto a ética das virtudes está mais preocupada com a constituição do caráter do indivíduo, fazendo referência a termos “aretaicos”. Para que um dia o adulto tenha discernimento nas escolhas, sabendo julgar as situações de modo a se posicionar eticamente, a prática das virtudes deve estar presente nas instituições de formação integral: família e escola. A Ética das Virtudes deveria permear todo o trabalho pedagógico que vise à formação integral dos indivíduos.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

68

O universo subjetivo encontra-se refletido na objetividade das trocas interpessoais, nas relações. Para Jung (1935/1995) as Funções Psicológicas (pensamento-sentimento, sensação-intuição) orientam a consciência e o agir. Portanto, só existirá equilíbrio nas potências humanas que são a inteligência, vontade e afetividade, se o indivíduo for educado para voltar-se para fora de sua subjetividade, descobrindo o outro. Para Aristóteles (2007), as potências humanas são componentes centrais que caracterizam o ser humano. Educação Moral implica em escolhas com base na ética e pressupondo o desenvolvimento da personalidade. Para Aristóteles, a educação do caráter que compõe o corpo das virtudes morais está correlacionada ao entendimento do funcionamento do processo psíquico. Como

desenvolver

uma

personalidade

ética

em

crianças?

Tal

questionamento é problema central da pesquisa referida. É na infância que se desenvolve a consciência. Nos primeiros anos de vida existem processos psíquicos, porém quase não há consciência. Conforme Jung (1972), aos poucos a consciência vai se formando a partir de agrupamento de fragmentos. A escola para ele é um meio que tem a incumbência de apoiar, de modo apropriado, o processo de formação da consciência e desenvolvimento da personalidade. Dedicar-se ao estudo do desenvolvimento da personalidade nas crianças não é tarefa fácil. A polissemia do termo e as múltiplas conceituações sobre a formação do indivíduo e sua mente, implicam numa definição clara e objetiva sobre o quadro teórico ao qual encaminharei esse artigo. Grande parte das definições teóricas sobre a natureza da personalidade é advinda da filosofia. As concepções sobre o homem delineadas pelos filósofos antigos, fisiologistas experimentais do século XIX e prática médica clínica, guiaram e nortearam os primeiros estudos da personalidade, dando origem a muitas teorias. (HALL-LINDZEY: 1984).

A teoria da personalidade

considerada neste trabalho será apresentada pela Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung (1875-1961).

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

69

Segundo Hall e Lindzley (1984), “o aspecto mais importante e característico da concepção de Jung sobre o homem seja o de combinar teleologia com causalidade. O comportamento humano é condicionado não somente pela sua história individual e racial (causalidade), mas também pelos seus alvos e aspirações (teleologia) ”. (HALL-LINDZEY, 1984, p.87) Jung considera que tanto os fatos passados, quanto os que estão por vir, potencializam e dirigem o comportamento presente. Para Jung (1972) o termo personalidade significa a expressão da totalidade do homem. Totalidade que se torna o ideal do adulto através do processo de individuação. Em paralelo, Aristóteles (2007) afirma que “a felicidade é algo absoluto e autossuficiente, e a finalidade da ação”. (ARISTÓTELES: 2007, p.26) A busca pela eudaimonia no sentido aristotélico, é o caminho pelo qual todos percorremos em nosso desenvolvimento psíquico e sociocultural. Sendo a escola muitas vezes o primeiro ambiente em que a criança se relaciona, além da família, Jung (1972) expõe que o professor precisa estar consciente de seu papel. Uma função que extrapola a mera exposição acadêmica de conteúdos. Ao professor cabe também “influir sobre as crianças, em favor de sua personalidade total. ”(Jung:1972, p.82) O educador deve sempre ter em mente que pouco adianta falar e dar ordens; o importante é o exemplo. (JUNG: 1972, p.191)

Nesse processo de influir, a educação poderia utilizar-se de muitas estratégias para tal. Em suas exposições teóricas, Jung (1972) distingue três espécies de educação: pelo exemplo, coletiva consciente e individual. A educação pelo exemplo ocorre por meio do contágio espontâneo ou inconsciente que acontece automaticamente ao observarmos e interagirmos com os exemplos dos outros. Ela é uma das propriedades que mais se destaca na psique primitiva e, por meio dela, herdamos a participação mística. A educação coletiva consciente está centrada nas regras, princípios e métodos. Espera-se que os indivíduos sejam formados a partir de parâmetros válidos e aplicáveis, resultando na uniformidade. Mais uma vez, encontramos

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

70

nessa modalidade de educação a importância do contágio psíquico enquanto agente formador moral. Quanto maior for o número de indivíduos semelhantes, ou formado de modo semelhante, tanto maior será a força coercitiva do exemplo que atua inconscientemente sobre outros indivíduos que até então haviam resistido eficazmente ao método coletivo, quer tivesse razão ou não. Como o exemplo de massa exerce essa influência coercitiva por meio do contágio psíquico inconsciente, com o tempo isso forçara a extinção ou pelo menos a sujeição de todos aqueles indivíduos que possuírem a média normal de força do caráter individual. Se for sadia a qualidade dessa educação, pode-se esperar bons resultados no tocante à acomodação coletiva do educando. Mas, mesmo que se trate da formação coletiva do caráter, a mais ideal possível, ainda assim pode haver danos gravíssimos para a índole individual. (JUNG: 1972, p.214)

Sendo a educação coletiva indispensável, há que se cuidar para que os valores coletivos não sejam alcançados à custa da índole individual, ultrapassando o nível adequado de uniformidade. Necessitemos de regras e princípios comuns, porém precisamos estar seguros em todas as situações que necessitam de decisão individual. A educação individual ocupa-se da formação da índole individual. Para Jung (1972) a criança se desenvolve lentamente do estado inconsciente para o consciente. As primeiras experiências são as mais fortes e ricas em consequência, mesmo permanecendo inconscientes. Porém, somente na consciência podemos corrigir fatos, impressões ou acontecimentos. Muitas vezes faz-se necessário trazer à consciência conteúdos inconscientes, trabalho direcionado aos psicólogos. Contudo, para Jung (1972) “enquanto os outros métodos educacionais forem eficientes e úteis, não precisaremos recorrer ao inconsciente”. (Jung: 1972, p.233) Há mais de quatro décadas atrás, Jung (1972) já denunciava o modismo do ideal pedagógico de educar para a personalidade, termo aqui entendido como a totalidade do ser humano. Uma educação que consiste na formação do indivíduo pleno, contrapondo-se a ideia de homem coletivizado promovido pelos processos de massificação.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

71

A personalidade se desenvolve no decorrer da vida, a partir de germes, cuja interpretação é difícil ou até impossível; somente pela nossa ação é que se torna manifesto quem somos de verdade...De início não sabemos o que está contido em nós que feitos sublimes ou que crimes, que espécie de bem ou mal. Somente o outono revela o que a primavera produziu e somente a tarde manifesta o que a manhã iniciou. (JUNG: 1972, p.243)

Nos pressupostos levantados por Jung (1972), ninguém pode educar para a personalidade se não tiver personalidade. E esse é um empreendimento que se inicia na criança objetivando o melhor desenvolvimento possível de sua totalidade ao longo de sua existência.

A PESQUISA O programa foi aplicado no período de seis meses, numa turma de 1º ano do Ensino Fundamental, na escola Federal Militar Fundação Osório, no Rio de Janeiro. As crianças da pesquisa tinham sete anos de idade. A hipótese que norteou essa pesquisa ancora-se na vivência de situações de aprendizagem cotidianas que propiciem à criança o desenvolvimento das virtudes morais aristotélicas. Por meio de situações conflitivas cognitivamente, acredita-se que seja possível discutir coletivamente e elaborar uma moral para tais situações. O objetivo da pesquisa foi aplicar um programa de Educação Moral que possibilitasse a construção estruturas psíquicas que favoreçam o processo de escolhas virtuosas, objetivando o agir ético. O programa de Educação Moral proposto consistiu em quatro conjuntos de pranchas ilustradas de cenas, abordando situações conflitivas do cotidiano das crianças, tendo como tema principal as virtudes escolhidas. Compondo o material seguiam duas fichas: uma para investigação do conceito da virtude e outra para ressignificação das cenas conflitivas.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

72

Foram escolhidas duas virtudes morais: a amizade e a temperança. Para Aristóteles, a amizade é uma virtude extremamente necessária à vida e a temperança é um meio termo em relação aos prazeres. Aristóteles discorre que em “A ética a Nicomaco” que a amizade além de necessária, é uma virtude nobre, pois bondade e amizade encontram-se na mesma pessoa. A temperança relaciona-se aos apetites, pois o temperante ocupa uma posição mediana aos objetos de desejo. Entendo que nesse período do desenvolvimento se faz de extrema importância a prática e vivência de padrões morais de comportamento, Piaget (1977) em seus estudos sobre o desenvolvimento da moral, identificou as etapas da mesma e suas adequações a cada estágio. Segundo Piaget (1977), por volta dos sete anos de idade, percebe-se na criança a necessidade de entendimento das regras do jogo. O divertimento do jogo passa a ser social, constitui-se no convívio e troca que estabelece com o outro. Há um interesse social no jogo, uma compreensão que ultrapassa o domínio psicomotor. Para Piaget, inicia-se uma intenção de cooperação, formando-se uma “moral provisória”. Nessa idade o interesse dominante dispõe-se no interesse pela regra. Nesta perspectiva, no decorrer da pesquisa, as crianças foram expostas a situações de interação social objetivando a reflexão sobre a problemática sugerida pelas histórias. Ao final, coletivamente chegaram a uma moral e individualmente ressignificavam sua impressões internas sobre as mesmas. Foi possível concluir através da pesquisa que, o trabalho de virtudes na infância, desenvolve nas crianças valores universais. O trabalho de discussão das cenas conflitivas eticamente propiciou às crianças uma tomada de decisão ética, fortalecendo o processo de escolhas morais. REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2007. HALL, Calvin e LINDZEY, Gardner. Teorias da Personalidade. São Paulo: EPU, 1984.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

73

HOOFT, Stan Van. Ética da Virtude. Petrópolis: Vozes, 2013. JUNG, C.G. O eu e o inconsciente. Petrópolis, RJ: Vozes, 1987. JUNG, C.G. O desenvolvimento da personalidade. São Paulo: Círculo do Livro, 1972. JUNG, C.G. Fundamentos de Psicologia Analítica. Petrópolis: Vozes, 1985. LINS, Maria Judith Sucupira da Costa. Educação e Contemporaneidade: Educação moral na encruzilhada. Revista FAEEBA, Universidade Federal da Bahia, v. 8, n.12, p. 97-112, 1999. LINS, Maria Judith Sucupira da Costa. Educação moral na perspectiva de Alasdair MacIntyre. Rio de Janeiro: Ed. Access, 2007. MACINTYRE, A. Depois da Virtude. Tradução de Jussara Simões, Bauru (SP): EDUSC, 2001, After Virtue- A study in Moral Theory - 2nd Edition University of Notre Dame Press – Indiana, 1984. MACINTYRE, A. A short history of ethics. New York: TOUCHSTONE, 1996. MARQUES, Ramiro. O livro das virtudes de sempre. Ética para professores. São Paulo: Landy, 2001. PIAGET, Jean. O julgamento moral na criança. Tradução de Elzon Lenardon. São Paulo: Mestre Jou, 1977. ROJAS, E. A educação da Vontade, Madrid : Ed. Temas de Hoy, 1996. SUCUPIRA, Newton. Ética e Educação. 1980

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

74

ANEXOS

Pranchas de Histórias

Virtude: Temperança

Título: Desenho na TV Lia gosta muito de ver televisão. Ela assistia seu programa predileto. Já era noite e no dia seguinte teria de levantarse cedo para ir à escola. Mamãe disse a Lia para desligar a TV. Mamãe foi dormir. Lia continuou vendo muitos episódios do desenho. Lia divertiu-se muito e dormiu tarde da noite. No dia seguinte, mamãe tentou acordar Lia. Lia estava muito cansada. Lia cochilou na hora da atividade.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

75

Título: A Caixa de Bombom Papai Julio chegou a casa com um embrulho. Era um presente para Murilo. Murilo empolgado abre o presente. Descobre que era uma deliciosa caixa de bombom. Papai adormece no sofá. Murilo come quase todos os bombons da caixa. Murilo acorda o papai porque está com dor de barriga.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

76

Virtude: Amizade

Título: Brincando Juntas Malu adorava brincar no parquinho pela manhã. Sua mãe costumava a levar antes de ir à escola. Lá ela encontrava Joana, amiguinha da sua sala. Joana e Malu brincavam e se divertiam muito. Ao chegar à escola, Malu não aceitava brincar com ninguém. Ela só queria ficar perto de Joana. Os demais amiguinhos ficavam muito tristes.

MARIA JUDITH SUCUPIRA DA COSTA LINS - Graduada em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia do Recife (1969), mestre em Educação pela PUC do Rio de Janeiro (1972) doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996). Profª Associada do Departamento de Fundamentos da Educação da Faculdade de Educação da UFRJ. Coordenadora de pesquisas no Grupo de Pesquisas de Ética e Educação - GPEE da UFRJ.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

77

CARLA CRISTINA SILVEIRA DE SOUZA - Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Graduada em Psicologia pela Universidade Gama Filho. Pós-Graduada em Psicopedagogia pela Faculdade Souza Marques. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Profª da rede pública federal e municipal.

MARTA AMARAL MONTES - Doutoranda em Educação pela UFRJ. Mestre em Educação pela UNESA, Pós-Graduada em Gestão de Recursos Humanos pela

Universidade

Cândido

Mendes.

Graduada

em

Pedagogia

pela

Universidade Federal Fluminense - UFF. Professora titular da Universidade Estácio de Sá. Pesquisadora na linha de ética e educação com foco na docência online.

TALITA ADÃO PERINI - Doutoranda em Educação pela UFRJ. Mestre em Educação Física pela UCB. Graduada em Educação Física pela UFRJ. Professora assistente do Centro Universitário Augusto Motta(UNISUAM). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa sobre Ética em Educação (GPEE- UFRJ).

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

78

ENSINO DE ÉTICA POR MEIO DE GAMES DIGITAIS: DESAFIOS E POSSIBILIDADES Luciene de Sousa Teixeira Vales [email protected] Doutoranda do PPGE-UFRJ/ Membro do GPEE-UFRJ Maria Judith Sucupira da Costa Lins [email protected] Professora do PPGE/ Membro do GPEE/UFRJ Leni Ferreira Theodoro [email protected] Mestranda do PPGE-UFRJ / Membro do GPEE-UFRJ Rodrigo Silva Magalhães [email protected] Doutorando do PPGE-UFRJ / Membro do GPEE-UFRJ

RESUMO Este artigo é uma produção da pesquisa de Doutorado em andamento cujo título é “Aretè: O Jogo Digital como Proposta para o Ensino de Ética para Crianças”, que analisa a produção de um Game Educativo denominado Aretè (virtude em grego), segundo a Metodologia Recursiva (OLIVEIRA; COSTA; MOREIRA, 2001) de produção de softwares. Neste artigo, especificamente, refletimos sobre o processo de construção do Game Aretè, identificando três momentos imprescindíveis do processo: a fundamentação teórica de ética e educação moral; os aspectos técnicos específicos da informática e de programação de games e o desafio de se promover a união dos aspectos educacionais fundamentais com os técnicos, de forma a produzir um Game que seja educativo e que ainda ofereça os atrativos essenciais para o seu uso. O Game tem como base o conceito teórico-filosófico da ética das virtudes de Aristóteles (1984). Concluímos, conforme o que estamos observando até o momento, que é possível a produção de um Game Educativo que auxilie o ensino de ética para crianças, mantendo as especificidades da informática e da linguagem dos Games.

Palavras-chave: ensino de ética; ensino fundamental; games na educação.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

79

INTRODUÇÃO Este artigo é uma produção da pesquisa de Doutorado em andamento cujo título é “Aretè: O Jogo Digital como Proposta para o Ensino de Ética para Crianças”. A pesquisa analisa a produção de um Game Educativo denominado Aretè (virtude em grego), que está em fase final de produção e que será disponibilizado para crianças de 6 e 7 anos na Escola Estadual de Ensino Fundamental República, localizada no subúrbio do Rio de Janeiro. A escola possui um histórico de uso de mídias em suas práticas pedagógicas, tendo realizado inúmeros Projetos Pedagógicos com o uso de mídias com crianças e professores. Esse histórico se mostrou favorável para a realização da pesquisa nesta instituição. As reações, sugestões e falas das crianças envolvidas durante a experimentação do Game serão consideradas na pesquisa como forma de aperfeiçoamento do mesmo, segundo a Metodologia Recursiva de produção de softwares (OLIVEIRA; COSTA; MOREIRA, 2001, p.97), que indica a testagem da versão beta de um jogo com usuários várias vezes, de forma a aperfeiçoá-lo e obter-se a versão definitiva do mesmo. A pesquisa tem como objetivo verificar se é possível a criação de um Game Educativo que possa auxiliar os professores no ensino de ética nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental e, depois da aplicação do mesmo em uma turma regular, se o seu uso realmente contribuiu com a educação moral das crianças envolvidas. Trata-se de uma pesquisa qualitativa cuja metodologia será a pesquisa-ação de Barbier (1985) e os dados serão observados conforme a análise de conteúdo de Bardin (2011). Neste artigo, especificamente, refletimos sobre o processo de construção do Game Aretè, identificando três momentos imprescindíveis do processo: a fundamentação teórica de ética e educação moral; os aspectos técnicos específicos da informática e de programação de games e o desafio de se promover a união dos aspectos educacionais fundamentais com os técnicos; de forma a produzir um Game que seja educativo e que ainda ofereça os atrativos essenciais para o seu uso, como os aspectos lúdicos, o entretenimento e a interatividade, que é o principal desafio enfrentado pelos produtores de Games Educativos atualmente, de acordo com Mattar (2010).

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

80

A ÉTICA COMO FUNDAMENTAÇÃO DO GAME EDUCATIVO No momento inicial da produção, o conceito teórico-filosófico de ética e as possibilidades de ensino e aprendizagem da ética na escola foram estabelecidos. A ética das virtudes de Aristóteles (1984) é a norteadora da pesquisa. De acordo com o filósofo grego, as virtudes são a prática da excelência para o equilíbrio na vida social. Elas se caracterizam pelo meio termo, de modo que o comportamento do cidadão não caia no extremo do excesso nem da escassez. A contemporaneidade do pensamento de Aristóteles é apresentada por Alasdair MacIntyre que denomina, identifica e analisa a “desordem social” (MACINTYRE, 2001) da atualidade. O autor apresenta um panorama dos estudos da ética contemporâneos, fundamentados em teorias morais fragmentadas e práticas morais desarticuladas, que resultam em tal desordem:

A hipótese que quero apresentar é a de que no mundo real que habitamos a linguagem da moralidade está no mesmo estado de grave desordem, da mesma forma que a linguagem das ciências naturais no mundo imaginário que descrevi. [...] Temos, na verdade, simulacros de moralidade, continuamos a usar muitas das suas expressões principais. Mas perdemos – em grande parte, senão totalmente – nossa compreensão, tanto teórica quanto prática, da moralidade. (MACINTYRE, 2001, p.15)

De acordo com essa compreensão de ética, o que deve motivar a existência humana é a busca da felicidade, que só poderá existir para o indivíduo quando existir para todos em seu meio. A prática das virtudes tinha como objetivo, portanto, o bem comum, de forma a se alcançar a felicidade, como descreve RAWLS:

...os antigos se perguntavam acerca do caminho mais racional para a verdadeira felicidade, ou para o sumo bem, e inquiriam sobre como a conduta virtuosa ou as virtudes enquanto aspectos do caráter – as virtudes de coragem e temperança, sabedoria e justiça, que são elas mesmas boas – relacionam-se com o sumo bem, quer como meios, quer como componentes, ou ambos. (RAWLS, 2005, p. 4)

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

81

O conceito de felicidade e o seu significado na teoria de Aristóteles, é complementado por Marques na seguinte afirmativa: ...a felicidade pode definir-se como um “agir bem”, isto é, de acordo com a virtude. Não é a sorte ou a riqueza que asseguram a felicidade, mas sim os atos virtuosos. A idéia de que a felicidade reside na vida virtuosa deixou marcas em toda a ética ocidental. (MARQUES, 2001, p. 27)

Na ética aristotélica, o ser humano deve atuar de forma a promover o bem comum. E para isso, é de extrema importância que ele desenvolva as virtudes. As virtudes para Aristóteles são as práticas de excelência para o equilíbrio na vida social. Assim, explicamos suficientemente que a virtude é um meio-termo, em que sentido devemos entender esta expressão, e que é um meio-termo entre dois vícios, um dos quais envolve excesso e o outro falta, e isso porque a natureza da virtude é visar à mediana nas paixões e nos atos. (Aristóteles) EN, II, 9, 20)

MacIntyre (2001) corrobora com essa perspectiva e traz para a atualidade a necessidade das virtudes na vida social. Ele ressalta a prática da virtude como elemento possível de se retomar a vida ética, opondo-se ao Emotivismo.

Emotivismo é a doutrina segundo a qual todos os juízos valorativos e, mais especificamente, todos os juízos morais não passam de expressões de preferência, expressões de sentimento ou atitudes, na medida que são de caráter moral ou valorativo. Os juízos particulares podem, naturalmente, reunir elementos morais e factuais. (MACINTYRE, 2001, p. 30)

Segundo MacIntyre, o Emotivismo é encontrado na sociedade contemporânea pós-moderna e representa a tomada de posição a partir de emoções individuais em vez de paradigmas externos ao eu. Seu pensamento influencia as análises de Marques (2011) sobre a ética na contemporaneidade, pois quando nos informa que: não é exagerado

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

82

afirmar-se que a ética aristotélica pode constituir um referencial seguro e realista para a procura da felicidade e de uma vida digna” (p.27), entendemos que os benefícios das práticas das virtudes contribuem para o desenvolvimento completo do ser humano. Com base nessa reflexão, observamos em Lins (2007) que a prática da virtude é um processo favorável ao sujeito para interagir na sociedade, uma vez que “A idéia é que sem a prática da Virtude não há como um ser humano venha a se realizar como pessoa, ficando preso a instintos que determinam os comportamentos próprios da espécie, e por isso incapaz de transcender” (p.28). Voltando nosso foco para a escola, percebemos que é neste espaço que as crianças experimentam novas situações, com professores e demais alunos, que devem ser consideradas na sua educação moral. Elas devem, portanto, optar por agir de acordo com as regras de convivência do grupo ou não. Encontramos uma grande contribuição na Epistemologia Genética de Piaget, que explica a necessidade do ensino dos valores morais às crianças que estão ainda na fase da heteronomia, isso é, que dependem de uma apresentação do que é certo e do que é errado proveniente da interação com outras pessoas. O desenvolvimento de uma pessoa exige que se lhe seja ensinada a moral, caso contrário ela não poderá sozinha chegar à plenitude da vida ética, isto porque “nenhuma realidade moral é completamente inata” (PIAGET, 1996, p.2). Embora tenha dedicado à maior parte da sua vida aos estudos do desenvolvimento da cognição, Piaget contribui com o tema em sua obra “O juízo moral na criança”. O autor analisou as crianças realizando jogos e observou como essas seguiam regras, criavam regras, obedeciam a novas regras e desta forma definiu que “toda moral consiste num sistema de regras, e a essência de toda moralidade deve ser procurada no respeito que o indivíduo adquire por essas regras” (PIAGET, 1994, p.23). Diante da constatação de que ninguém nasce ético, todas as crianças precisam aprender as virtudes (LINS, 2007), percebe-se que a escola também é responsável pelo ensino da ética e que esse ensino é viável de ser realizado por meio de jogos reais e também digitais.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

83

A ÉTICA NA LINGUAGEM DOS GAMES O início da produção do Game Aretè iniciou-se com a compreensão da educação moral segundo a ética aristotélica, no que esta se refere à possibilidade do ensino da virtude. Com isso, afirmamos que o Game tem como premissa a existência de valores universais que devem ser aprendidos e vivenciados por todas as pessoas, quaisquer que sejam as suas características culturais. Com base nessa premissa, o Game Aretè teve seu design elaborado de forma a mostrar às crianças de 6 e 7 anos momentos do seu cotidiano nos quais elas possam optar por agir de forma certa e errada. Foi escolhido um jogo estilo RPG (Role Playing Game), que permite à criança mover o personagem por um tabuleiro que sorteia situações específicas e comuns ao cotidiano escoar, nas quais ela deve fazer suas escolhas (figura 1).

Figura 1: Tela principal do Game Aretè

Produzir um game envolve várias etapas, muito semelhantes ao processo de produção de softwares, descritas na Produção em cascata de Davis (in: OLIVEIRA; COSTA; MOREIRA, 2001, p. 93-94). Produzir um game educativo

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

84

necessita de uma atividade prévia, que é o estabelecimento da fundamentação educacional do game que deverá influenciar todo o seu design instrucional. A programação do Game Aretè tem se desenvolvido de forma satisfatória, considerando-se que há uma semelhança entre esta concepção de ética, ocorrida na primeira etapa de produção, e a programação em informática. Embora existam atualmente inúmeras linguagens de programação, a origem de todas elas está no “sistema binário”. A linguagem da máquina, a única que o computador entende diretamente, utiliza o alfabeto binário que consta de dois únicos símbolos 0 e 1, denominados bits (abreviação inglesa de dígitos binários). (LANCHORRO; LOPEZ; FERNANDEZ, 1991, p. 153). Dessa forma, as respostas básicas são mais fáceis de serem programadas nos jogos de computador, como “sim e não”, “certo e errado”. Essa similaridade facilitou a elaboração do design gráfico do jogo, considerando que a criança deve escolher a opção mais adequada, tendo a resposta em seguida se a opção foi certa ou errada. Após a definição da fundamentação educacional, pensamos na estrutura do jogo e na interação do aluno com o personagem, de forma a produzir um game lúdico e atrativo.

Ao produzir games educacionais, não devemos pensar no design do conteúdo, mas em arquitetar experiências e ambientes para os aprendizes tomarem decisões e refletirem sobre as decisões tomadas. Nosso ponto de partida, portanto, não deve ser organizar o conteúdo, e sim como o aprendiz deverá atuar. (MATTAR, 2010, p. 82)

As questões referentes aos conteúdos de ética foram inseridas posteriormente, de forma integrada à narrativa escolhida. O autor identifica três fases de produção de games: pré-produção, produção e pós-produção. Na primeira fase é desenvolvido “o conceito do jogo e seu design, na produção ocorre sua implementação e na pós-produção, os testes”. (MATTAR, 2010, p. 87). O Aretè encontra-se na fase final de produção, mas como seu objetivo não é comercial e de entretenimento, a ênfase da análise nos testes da fase seguinte será a análise da aprendizagem das virtudes por parte dos alunos envolvidos. II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

85

Embora o processo de produção do Game Aretè ainda não tenha sido finalizado, percebemos que o desafio maior tem sido a manutenção dos aspectos primordiais de um game, de forma que os conteúdos e aspectos educacionais não o descaracterizem. Para que isso não aconteça, optamos por inserir uma breve narrativa introdutória, a partir da qual a criança é apresentada ao jogo e ao seu enredo, para somente depois ser conduzida ao tabuleiro no qual serão apresentadas as situações nas quais a criança deverá fazer suas escolhas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Concluímos, conforme o que estamos observando até o momento, que é possível a produção de um Game Educativo que auxilie o ensino de ética para crianças, mantendo as especificidades da informática e da linguagem dos Games. Esta experiência nos permite afirmar que, embora os conhecimentos da informática sejam importantes, a fundamentação teórica da educação, sobretudo da educação moral, é o aspecto mais importante a ser desenvolvido, pois é essa fundamentação que permeia todas as atividades do jogo, além da atuação do pesquisador com as crianças e as possibilidades de ensino e aprendizagem de ética durante a utilização do Game na escola. Diferentemente da maioria dos Games disponíveis na internet atualmente, o objetivo do Aretè não é de entreter as crianças e sim de promover a aprendizagem de virtudes. Não há demérito nas contribuições da produção de games comerciais à pesquisa, porém temos como diretriz os objetivos educacionais, pois entendemos que o convívio social apresenta constantes desafios de relacionamentos que oportunizam experimentar a práticas das virtudes.

REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Ética a Nicômano. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. SãoPaulo: Abril S.A. Cultural, 1984. BARBIER, René. A pesquisa-ação na instituição educativa. Trad. Estela dps Santos Abreu. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1985.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

86

BARDIN, Laurance. Análise de conteúdo. Trad. Luís Antero Reto, Augusto Pinheiro. São Paulo: Edições 70, 2011. DEVRIES, Rheta; ZAN, Betty. A ética na educação infantil: o ambiente sóciomoral na escola. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. LANCHORRO, Eduardo Alcaide; LOPEZ, Miguel Garcia; FERNANDEZ, Salvador Peñuelas. Informática básica. Tradução Sérgio Molina. São Paulo: Makron Books, 1991. LINS, Maria Sucupira da Costa. Educação moral na perspectiva de Alasdair Macintyre. Rio de Janeiro: ACCES, 2007. MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude. Bauru, SP: EDUSC, 2001. MARQUES, Ramiro. O livro das virtudes de sempre: ética para professores. São Paulo: Landy, 2001. MATTAR, João. Games em educação: como os nativos digitais aprendem. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2010. OLIVEIRA, C.C.; COSTA, J.W.; MOREIRA, M. Ambientes informatizados de aprendizagem: produção e avaliação de software educativo. São Paulo: Papirus, 2001. PIAGET, Jean. O juízo moral na criança. Tradução de Elzon Lenardon. 2. ed. São Paulo: Summus, 1994. ___________. Os procedimentos da educação moral. In: MACEDO, Lino de. (org.) et. al. Cinco estudos de educação moral. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996. RAWLS, John. História da Filosofia Moral. Tradução de Ana Aguiar Cotrim. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

LUCIENE DE SOUSA TEIXEIRA VALES - Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro do GPEE-UFRJ. É professora das Séries Iniciais da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro e professora de Educação Infantil da Fundação de Apoio à Escola Técnica do Estado do Rio de Janeiro.

MARIA JUDITH SUCUPIRA DA COSTA LINS - Professora Associada do Departamento de Fundamentos da Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenadora de pesquisas no

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

87

GPEE-UFRJ. Experiência na área de Filosofia da Educação, com ênfase em Ética e Educação Moral.

LENI FERREIRA THEODORO - Mestranda pelo Programa de Pós Graduação em Educação-UFRJ. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa sobre Ética na Educação (GPEE – UFRJ). Especialização em História da África e da Diáspora Africana no Brasil-Faculdades Integradas Simonsen. Professora de História do Ensino Fundamental e Ensino Médio, com ênfase em Escravidão no Brasil. RODRIGO SILVA MAGALHÃES - Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro do GPEE-UFRJ. É professor de História e Filosofia do Colégio Santa Mônica e professor de Formação Política do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

88

A INCLUSÃO E AS VERTENTES QUE NOS LEVAM A RECONHECER O OUTRO COMO ALGUÉM DE DIREITOS Iolanda da Costa da Silva [email protected] UFF Rejany dos S. Dominick [email protected] - UFF Alessandra Martins Franco Mattos [email protected] - FME Krýsthina Franco Sepúlveda de Abreu [email protected] - FME

RESUMO O presente texto tem como objetivo compartilhar um pouco das nossas experiências em uma escola da rede municipal de Niterói em 2014. Nossas ações se voltaram para um trabalho sobre respeito e igualdades com uma turma do quinto ano. Presenciamos algumas ações que as caracterizamos como Bullying. Foram alguns dos nossos objetivos: perceber o que leva o aluno a pratica de bullying; Descobrir quais metodologias e tecnologias contribuíam para trabalhar o respeito e olhar para além das diferenças. Como metodologia adotamos a pesquisa interativa e a interdisciplinar. O que nos possibilitou realizar um trabalho permeado de diálogos. Nos apropriamos, também, livros, filme e vídeos encontrados na internet. Palavras chaves: Inclusão; Bullying; Diálogo

INTRODUÇÃO Abordar a inclusão de alunos com Necessidades Educacionais Especiais (NEEs) demanda que tratemos dos temas respeito, direitos e deveres. Tais temáticas estão ligadas às distintas ações e dentre elas estão às inclusivas. Segundo Mantoan (2009)1 a “inclusão é o privilégio de conviver com as diferenças”. É oportunizar o convívio de pessoas com as mais diversas características no mesmo espaço. Proporcionando, assim, as trocas de

1

Entrevista no Blog Bengala legal (2009). Disponível no site: http://www.bengalalegal.com/blog/?p=32. Acesso em: 25/05/2012.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

89

experiências, o reconhecimento do outro, o respeito pelo próximo e as suas diferenças. A inclusão escolar de pessoas NEEs é um dos meios que favorece a relação com o outro que, por vezes, é visto como diferente, pois foge do padrão citado como “normal”, principalmente no ambiente escolar.

Sendo assim,

podemos afirmar que incluir é ter um olhar atento, objetivando igualdade de oportunidade a todos, independente de quem sejam esses sujeitos. Desta forma, as diferenças, seja ela social, étnica, sexual, dentre tantas outras, se tornam um dos pontos altos das distintas realidades vivenciadas no cotidiano inclusivo. Entretanto, abordar este tema em um mundo que tende a exalar exclusão é antes de tudo refletir e questionar: quem somos nós em um mundo com tantas divisões? Em que lado, verdadeiramente, estamos? Será que nunca excluirmos? E se excluirmos o que temos de diferente? Nosso trabalho começou cheio de interrogações e inquietações. Buscávamos estratégias que atendessem nossas necessidades, nos ajudando a trabalhar o respeito e a aceitação das diferenças em uma escola da rede municipal de Niterói, no ano de 2014. Trabalhamos com um grupo de referência que apresentava um número reduzido de estudantes, pois era uma turma diferenciada das outras. Grande parte dos estudantes apresentava dificuldade de aprendizagem2, entretanto, alguns tinham o perfil do grupo de referência. Não vamos mencionar muitos detalhes do grupo de referência por ética profissional. Este trabalho esteve vinculado ao projeto de pesquisa, extensão e docência “As ‘artes de fazer’: tecnologia e formação do pedagogo III”, coordenado por Rejany dos Santos Dominick. A iniciativa desse trabalho se deu devido aos constantes acontecimentos que definimos como Bullying.

Dalosto & Alencar (2013, p.364) explicitam que

“bullying é derivado do verbo inglês bully que significa intimidar”. As autoras relatam que “[...] a prática de bullying nas escolas pode se manifestar por meio de diferentes comportamentos agressivos, incluindo maus2

[...] o termo dificuldades de aprendizagem englobaria um grupo heterogêneo de transtornos que se manifestariam em dificuldades em tarefas cognitivas, podendo ocorrer em pessoas normais, sem problemas visuais, auditivos ou motores, além de, aparentemente, estarem relacionados a problemas de comunicação, atenção memória, raciocínio, entre outros, ou se manifestarem concomitantemente a eles. Podem ocorrer ainda dificuldades momentâneas e/ou em áreas específicas, abrangendo várias áreas de conhecimento. (BARTHOLOMEU, SISTO, RUEDA: 2006, págs. 139 - 140)

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

90

tratos e intimidações” (p. 368). As mesmas nos apresentam uma classificação que foi adotada por Silva 3 (2010). Desta forma, podemos perceber que as práticas do bullying podem ser: • Físico e Material: bater, chutar, espancar, empurrar, ferir, beliscar roubar, furtar ou destruir os pertences da vítima e atirar objetos contra pessoa. • Psicológico e Moral: irritar, humilhar e ridicularizar, excluir, isolar, ignorar, desprezar ou fazer pouco caso, discriminar, aterrorizar e ameaçar, chatear e intimidar, tiranizar, dominar, perseguir, difamar, passar bilhete e desenhos entre os colegas de caráter ofensivo, fazer intrigas, fofocas ou mexericos. • Sexual: abusar, violentar, assediar, insinuar. • Verbal: insultar, ofender, xingar, fazer gozações, colocar apelidos pejorativos, fazer piadas ofensivas e “zoar”. • Virtual: caluniar e ofender utilizando aparelhos e equipamentos de comunicação (celular e internet), também conhecido como ciberbullying. (p 368)

As diferenciações acima contribuem para que fiquemos alertas, pois algumas dessas manifestações podem passar despercebidas ou até ser ignorada e confundida com uma brincadeira de mal gosto. Ao refletirmos sobre as metodologias adotadas percebemos que trabalho com tais princípios de pesquisa demandam a elaboração de objetivos de ensino e de pesquisa, pois durante nossas ações no espaço escolar visando aprender e ensinar. Foram nossos objetivos de pesquisa: perceber o que levam os alunos as praticas de bullying; Descobrir quais metodologias e tecnologias contribuem no trabalho de inclusão social e humana de uma forma significativa. De ensino: trabalhar o respeito e olhar para além das diferenças; promover situações que os levassem a reflexão sobre os efeitos das nossas ações.

METODOLOGIA Para o desenvolvimento do nosso trabalho temos adotado princípios das metodologias interativas e dialogado com a interdisciplinaridade. Entre as pesquisas interativas está aquela que Thiollent afirma possuir “um caráter participativo pelo fato de promover ampla interação entre pesquisadores e membros representativos da situação investigada” (1997, p. 21), Sendo assim, a caminhada metodológica foi marcada pelo diálogo com todos os atores 3

SILVA, A.B.B. Bullying: mentes perigosas nas escolas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

91

escolares, tornando viável a participação dos diferentes sujeitos no processo. Fazenda (2008) explicita que a metodologia interdisciplinar tem como intuito “alicerçar-se no diálogo e na colaboração, fundar-se no desejo de inovar, de criar, de ir além e exercita-se na arte de pesquisar” (p.69). Com tais metodologias a interação aconteceu de forma significativa e possibilitou a ressignificação das ações, contribuindo, assim, na potencialização das interações culturais e subjetivas dos envolvidos no trabalho.

PRIMEIROS SINAIS DE ALERTAS E NOSSAS AÇÕES Logo nos primeiros meses do ano letivo percebemos alguns apelidos direcionados a dois estudantes que, por vezes, os deixavam chateados ou irritados, influenciando negativamente no desenvolvimento das aulas e na interação dos mesmos. Um discente era negro, apesar de não ser o único da sala e era chamado de “africano”. Outro discente era chamado de “ingoba”, “mona” e “biba”.

Diante dos constrangimentos das vitimas e da falta de respeito de alguns estudantes percebemos a necessidade de dialogarmos com o grupo de referência sobre respeito, sobre as diferenças humanas, dentre outras coisas. A princípio surtiu efeitos, mas com o tempo as brincadeiras voltaram e houve a necessidade de novas estratégias, pois as palavras começaram a aparecer com mais frequências e de forma mais agressivas. Achamos relevante explicitarmos que na sala de aula havia um aluno que apresentava deficiência motora, o que dificultava sua locomoção dentre outras coisas. A situação especial do discente nos deixou receosas divido aos supostos estranhamentos que poderiam acorrer e ocorreram. Entretanto, em nenhum momento este aluno foi excluído ou sofreu ações de Bullying. O discente foi bem recebido por todos. Tal receio nos levou a dialogar com Lopes (2005), nos ajudando a perceber as distintas características que podem fazer com que uma pessoa seja alvo das ações de Bullying e estas podem ser comportamentais, emocionais ou físicas. Podendo, assim, uma pessoa ser a vitima perfeita para os praticantes do Bullying ou dificultar a sua aceitação no meio. Entretanto, isso não significa que todos com tais características sofram bullying. Há algo mais que não compreendemos.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

92

Como a situação problema da sala começou a se agravar, resolvemos levar ao conhecimento dos participantes da reunião pedagógica da escola, com o objetivo de juntos encontramos uma melhor metodologia de trabalho, já que os constantes diálogos sobre respeito não estavam surtindo o efeito esperado. Indicaram-nos o livro: Bullying: o que fazer?, de Ricardo Brown, e o Filme: Um grito de silêncio. Começamos com a leitura do livro e este foi bem recebido pelos discentes. Com esse trabalho as práticas de bullying, novamente diminuíram. Entretanto, com o tempo toda a problemática voltou e resolvemos trabalhar o filme em 2 momentos. Primeiro momento: passamos o filme e pontuamos os acontecimentos relevantes do mesmo. Segundo momento: rememoramos a definição do bullying e quais eram as ações que podemos definir como bullying; as consequências dessas práticas para as vitimas e também para o agressor. Trabalhamos a importância de não se calar diante de ações de Bullying, tanto a vítima quanto aquele que presencia tais ações. Neto (2010), outro teórico com o qual dialogamos, faz outra classificação muito interessante do Bullying. O autor explicita que o “bullying é classificado como direto, quando as vítimas são atacadas diretamente, ou indireto, quando estão ausentes.[...]” (p.166). Neste grupo de referência percebemos a presença do Bullying direto e do indireto e isso foi debatido com os estudantes. A princípio os mesmos achavam que podiam falar dos alunos em sua ausência, pois não era falta de respeito e tão pouco Bullying. Afinal, as vitimas não estavam ali para ouvir. Este diálogo foi um pouco tenso, mas, ao termino, os estudante perceberam que o respeito ao outro independe da presença ou ausência deste. Durante o período em que nossas estratégias eram, unicamente, o diálogo com os estudantes, percebemos que alguns praticavam o bullying por não conseguirem aceitar as diferenças, levando algumas vezes a tentar mudar o outro. Mas, também percebemos que alguns praticavam sem nenhum motivo de intolerância aparente. Diante de tal situação, procuramos trabalhar com alguns vídeos sobre diversidade e tolerância que achamos na internet4. Tal 4

https://www.youtube.com/watch?v=8DXNWa1JOdc https://www.youtube.com/watch?v=SGwEp4Sm3w8

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

93

prática nos levou a utilizar com mais frequência o data show e o notebook, artefatos tecnológicos que ajudaram muito no processo. Encontramos em Barbieri (1990) uma reflexão que nos ajuda a definir o que é tecnologia. Suas raízes etimológicas apontam para o significado de tratado ou discurso (Iogya) das artes (thecné). “Do étimo grego thecné e do seu equivalente latino ars-artis derivam técnica e arte, que em sentido mais geral significam todo conjunto de regras capazes de dirigir uma atividade humana qualquer” (p. 10). As tecnologias têm sido produzidas pelo homem e Pierre Lévy (1999) questiona uma certa racionalidade que as apresentam como algo distinto de nós, algo não humano. Este pensamento cria resistências às interações com os novos artefatos que são produzidos. Percebemos que No processo tecnológico, revela-se o saber fazer e o saber usar o conhecimento e os equipamentos nas diversas situações cotidianas. Podemos afirmar que se trata de procedimento ou conjunto de procedimentos que têm como objetivo obter um determinado resultado e que inclui sempre elementos de criatividade dos indivíduos ou dos grupos que os geram ou usam. (Dominick, 2013, p.4)

Para além do diálogo com os artefatos tecnológicos, buscamos dialogar com a “tecnologia social”. Rodrigues e Barbieri (2008) afirmam que A preocupação com processo de produção da tecnologia social, embora não prescinda de aspectos gerenciais, volta-se prioritariamente para a emancipação dos atores envolvidos, tendo no centro os próprios produtores e usuários dessas tecnologias. Dito de outro modo, a tecnologia social implica a construção de soluções de modo coletivo pelos que irão se beneficiar dessas soluções e que atuam com autonomia, ou seja, não são apenas usuários de soluções importadas ou produzidas por equipes especialistas, a exemplo de muitas propostas das diferentes correntes da tecnologia apropriada [...]. (2008, p. 1075)

E foi com a apropriação de todas essas tecnologias que o nosso trabalho ganhou outro olhar. Foi um trabalho onde o diálogo teve um papel fundamental, a caminhada menos solitária e as opções de materiais foram surtidas. Principalmente quando resolvemos trabalhar sobre a diversidade e a tolerância. Ferreira (2013) relata que diversidade:

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

94

[...]É o termo que caracteriza a diferença, que pode ser encarada como negativa, positiva ou simplesmente diferente, dependendo da interpretação ou conveniência das circunstâncias e do tempo histórico, do ângulo ou da totalidade em exame, das intenções e finalidades[...]. (p.306)

E por vezes são essas diferenças que causam a exclusão. Pois o diferente tende a levarmos ao estranhamento. O que pode tornar-se negativo quando não conseguimos lidar com tal sensação. Contudo, estranhar faz parte do ser humano, até mesmo entre os próprios pares pode acontecer, certo, estranhamento. Desta forma, é algo que, por vezes, não conseguimos controlar, mas as consequências acreditaram que sim. E o mais relevante: o estranhamento não nos dá o direito de cometermos atos ilícitos contra outro. Podemos questionar, refletir, aceitar ou não as diferenças, mas antes de tudo devemos ver essas diferenças como um direito do outro ou em alguns casos como algo sem escolha. E percebemos que tais diferenças não fazem do outro alguém sem sentimentos, sem direito... Não temos o direito de anular ninguém. Para entendermos o que vem a ser tolerância recorremos a BARROCO (2014) e este explicita que tolerância é “... como uma relação social que supõe a existência de alguma diferença aceita como um direito: o direito de ser diferente. (ps. 470-71). Já a intolerância é a negação ao direito de ser diferente. O teórico em diálogo com Vázquez5 (1999) e explicita que o reconhecimento das diferenças alheia não significa anuir as opções do outro, muito menos tentar mudar ou interferir no jeito daquele que tolera ou do individuo que aos olhos alheios são diferentes. E estas foram algumas das realidades encontradas na escola. O que nos direcionou a realizar uma trabalhar sobre tolerância em ambos os lados. Trabalhar o direito que temos de estranhar e o aceitar o dito “diferente” com respeito. Pois se não aceitamos o direito de alguém discordar ou de estranhar algo, estamos excluindo do outro o direito de pensar e ver diferente. Reforçando o que foi dito anteriormente: o estranhamento não dá o direito de ninguém ceifar, anular, dentre muitas outras coisas. Entretanto, as pessoas que estranham, também precisam ser respeitadas, pois, fazem parte da diversidade. E para que esse trabalho acontecesse, por vezes, fazíamos um trabalho individual. 5

VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Entre la realidad e la utopia: ensayos sobre política, moral y socialismo. México: Fondo de Cultura Económica, 1999.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

95

Perfeito seria que todos gostassem de todos. Já que isso não é possível, o respeito ao próximo, assim como ele é, já é um bom caminho para uma vivência harmoniosa, instituinte e inclusiva.

CONCLUSÃO Percebemos que trabalhar a inclusão e o respeito é de suma importância. É o primeiro passo para uma boa convivência. Entretanto é lento e demanda distintas estratégias e metodologias. Há a necessidade de se tornar um trabalho interdisciplinar em diálogo com as distintas tecnologias. Instrumentos, estes, que ampliam nossas estratégias. Ao que se diz respeita as práticas do Bullying percebemos que os discentes compreenderam as temáticas trabalhadas, entretanto alguns nãos se apropriaram das mesmas. Algumas práticas de bullying aconteciam de formas isoladas. Quanto a algumas ações desrespeitosas percebemos que algumas aconteciam devido a dificuldade de tolerância ao que definimos como “diferente”. Dificultando a visualização do outro como alguém de direito também. Entretanto houve casos que tais ações aconteceram sem nenhum motivo aparente. Certo de que nada justifica tais ações. Ao refletirmos sobre o nosso trabalho percebemos dois fatos relevante: os constantes diálogos com os estudantes e o ato de compartilhamos nossas angustias com os atores escolares. Tais ações deram ao trabalho um olhar diferente e nos direcionou para um trabalho permeado de escuta, respeito e reflexão.

REFERÊNCIAS BARROCO, Maria Lucia S.. Reflexões sobre liberdade e (in)tolerância. Serv. Soc. Soc., São Paulo , n. 119, set. 2014 . Disponível em . acessos em 08 fev. 2015. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-66282014000300004 BARTHOLOMEU, Daniel; SISTO, Fermino Fernandes; RUEDA, Fabián Javier Marin. Dificuldades de aprendizagem na escrita e características emocionais de crianças. In: Psicologia em Estudo, Maringá, v. 11, n. 1, p. 139-146, jan./abr. 2006 . disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pe/v11n1/v11n1a16.pdf. acesso em: 25/03/2014

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

96

BARBIERI, José Carlos. Produção e transferência de tecnologia. São Paulo: Ática, 1990. DALOSTO, Marcília de Morais; L, Eunice Maria Lima Soriano de. Manifestações e Prevalência de Bullyng entre Alunos com Altas Habilidades/Superdotação. In: Rev. Bras. Ed. Esp., Marília, v. 19, n. 3, p. 363378, Jul.-Set., 2013. DOMINICK, Rejany dos S.. Projeto de Pesquisa As “artes de fazer” a educação em ciclos e as tecnologias na formação de Pedagogos III. Niterói: Universidade Federal Fluminense , 2013. FERREIRA, Naura Syria Carapeto. Diversidade e democracia: o nosso compromisso hoje. In: Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 7, n. 13, p. 305318, jul./dez. 2013. Disponível em: FAZENDA, Ivani Catarina Arantes. Interdisciplinaridade: História, Teoria e Pesquisa. 15. ed. Campinas, SP: Papirus, 2008 .Disponível: http://books.google.com.br/books?id=lESxUJsjE9YC&lpg=PA9&ots=8qTq8bmdJ&dq=interdisciplinaridade&lr&hl=ptBR&pg=PA47#v=onepage&q&f=true LÉVY, Pierre. CIBERCULTURA. São Paulo: Editora 34, 1999. LOPES NETO, A.A. Bullying: comportamento agressivo entre estudantes. Jornal de Pediatria, Rio de Janeiro, v. 81, n. 5, p. 164-172, 2005. Disponível em: . Acesso em: 08/02/2015. RODRIGUES, Ivete e BARBIERI, José Carlos. “A emergência da tecnologia social: revisitando omovimento da tecnologia apropriada como estratégia de desenvolvimento sustentável”. Rev. Adm.Pública [online]. 2008, vol.42, n.6, pp. 1069-1094. ISSN 0034-7612.http://dx.doi.org/10.1590/S003476122008000600003. THIOLLENT, M. Metodologia da pesquisa-ação. S. P: Cortez, 1994.

IOLANDA DA COSTA DA SILVA - Licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal Fluminense (2013). Atualmente é professora de apoio dos anos iniciais da FME – Fundação Municipal de Educação de Niterói.

REJANY DOS S. DOMINICK. - Licenciada em Educação Física (1984) e em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1986). Mestra em Educação pela Universidade Federal Fluminense (1993) e doutora em História,

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

97

Filosofia e Educação pela Universidade Estadual de Campinas (2003). Atualmente é professora da Faculdade de Educação da UFF, do Mestrado Profissional Diversidade e Inclusão (Instituto de Biologia) e editora da RevistAleph (www.revistaleph.uff.br/index.php/REVISTALEPH).

ALESSANDRA MARTINS FRANCO MATTOS - Licenciada em letras português e literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) 2004. Pós graduada em Mídias na Educação pela UERJ. Professora dos anos iniciais na Fundação Municipal de Niterói e professora de língua portuguesa no ensino médio do Estado do Reio de Janeiro. KRÝSTHINA FRANCO SEPÚLVEDA DE ABREU Licenciada em pedagogia pela Universidade Federal Fluminense. Pedagoga da Fundação Municipal de Niterói.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

98

POR QUE ENSINAR E APRENDER MÚSICA? UMA ANÁLISE RETÓRICA DOS ARGUMENTOS DE DIFERENTES REPRESENTANTES INSTITUCIONAIS Helen Silveira Jardim de Oliveira [email protected] Colégio Pedro II – Campus São Cristóvão I Escola de Música de Manguinhos

RESUMO A presente comunicação consiste num recorte de nossa tese defendida no ano de 2014. Ela tratou de estudo de caso de caráter qualitativo, que se propôs a investigar a natureza dos argumentos apresentados por discentes, docentes e representantes institucionais sobre a importância de ensinar e de aprender música. No entanto, para tal comunicação, pretendemos apresentar apenas os resultados e as reflexões realizadas a partir da análise retórica realizada com os representantes das instituições envolvidas. Tivemos como locais de pesquisa: o Colégio Pedro II (CPII), mais precisamente o Campus São Cristóvão II; uma escola pública federal do município do Rio de Janeiro; e também, a Escola de Música de Manguinhos (EMM), um projeto de pesquisa e extensão da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Convidamos os seguintes representantes institucionais para a pesquisa: a Chefe do Departamento de Educação Musical do CPII; a Coordenadora Administrativa da EMM; e um dos membros do Apoio Pedagógico da EMM. Os dados foram gerados por questionários que constaram de quatro perguntas abertas. Interpretamos diferentes visões abrangidas pela pesquisa, tendo como base as categorias do Tratado da Argumentação e outras categorias apresentadas pelos autores do campo da Educação Musical (FREIRE, 2011; PENNA, 2010; QUEIROZ, 2004, 2005; SEKEFF, 2007) do Currículo (MOREIRA; SILVA, 2011; MACEDO, 2003,2004) e do Multiculturalismo (CANEN, 2007).

Palavras Chave: educação musical; argumentação; ensino e aprendizado de música.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

99

INTRODUÇÃO A presente comunicação consiste num recorte de nossa tese defendida no ano de 2014, cujo título é: “Ensinar e aprender música: negociando distâncias entre os argumentos de alunos, professores e instituições de ensino”. A pesquisa tratou de estudo de caso de caráter qualitativo, que se propôs a investigar a natureza dos argumentos apresentados por discentes, docentes e representantes institucionais sobre a importância de ensinar e de aprender música em locais diferenciados. Para esta comunicação, pretendemos apresentar apenas os resultados e as reflexões realizadas a partir da análise retórica dos argumentos dos representantes das instituições envolvidas. Percebemos que, apesar de o quadro de desvalorização social relativo ao ensino de música estar sendo minimizado ao longo dos anos, constatamos que a Educação Musical ainda se encontra enquadrada num rol de disciplinas consideradas inferiores, secundárias, irrelevantes, pois não proporcionaria uma verdadeira “formação” aos estudantes. Vale ressaltar que estamos vivendo um período de transição em relação à promulgação da Lei 11.769/08. A referida lei altera o artigo 26 da LDB 9394/96 abordando a obrigatoriedade do ensino de música na educação básica, colocando a música como “conteúdo obrigatório, mas não sendo exclusivo” (BRASIL, 2008). Reconhecemos que a Lei é um avanço, mas entendemos que deve haver uma reflexão maior por parte da sociedade sobre os benefícios do aprendizado de música ao indivíduo, porque obrigatoriedade não implica em valorização social. Mas, por que aprender música é importante? Estudos e pesquisas na área de Educação Musical comprovam que a música auxilia o indivíduo a direcionar os seus sentimentos concretamente em formas expressivas, a se situar na sociedade, entendendo melhor suas vivências e experiências, a atribuir sentido e significado à vida, a compreender sua condição de indivíduo, além de incitar sua participação ativa como cidadão. Em suma, a música tem potencial para mediar a construção do diálogo do sujeito com a sua realidade

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

100

(FREIRE, 2011; PENNA, 2010; QUEIROZ, 2004, 2005; SEKEFF, 2007), contribuindo, portanto, para sua formação plena. Percebemos que, muitas vezes as pesquisas se propõem a ouvir docentes e discentes, mas não ouvem o que a instituição, por meio de seus representantes, tem a dizer sobre algum aspecto da realidade educacional. Sendo assim, acreditamos que todos os participantes do ambiente escolar devem ter vez e voz. Consideramos que a visão institucional, certamente expressa interesses e ideologias subjacentes, sendo revelada, em parte, por seu Projeto PolíticoPedagógico, que abrange suas concepções e conteúdos, seus objetivos (que pretendem

nortear

os

professores).

Entendemos

também,

que

os

representantes institucionais, que têm a função de garantir a integridade da proposta pedagógica junto aos sujeitos que coordenam, também revelam aspectos ideológicos implícitos. Quando pensamos em um representante institucional, isso nos traz à mente, alguém que tenha estabilidade, que tenha o reconhecimento, que seja confiável. Com base no Tratado da Argumentação, isso seria a concepção da ideia de pessoa. A ideia de pessoa coincidiria com o conjunto dos seus atos. “Em nossa concepção habitual, um ato é, mais do que um indício, um elemento que permite construir e reconstruir nossa imagem da pessoa [...]” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 338). Sendo assim, podemos dizer que os argumentos apresentados pelos representantes institucionais são balizados pelo prestígio que os mesmos possuem entre os auditórios com os quais lidam cotidianamente. “Certos tipos de argumentos se valem do prestígio do orador, invocando sua autoridade moral e/ou intelectual para subsidiar determinada tese” (OLIVEIRA, 2011a, p. 32). Estes são os argumentos de autoridade. Ainda sobre o assunto, Perelman e Olbrechts-Tyteca (Op. Cit., p. 345) assim consideram: “O prestígio é uma qualidade da pessoa que se reconhece por seus efeitos”. Muitas vezes a questão da autoridade e da ação de invocar o argumento de autoridade é algo questionado, todavia acreditamos, assim como Perelman e Olbrechts-Tyteca (Ibid., p. 350), que

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

101

O mais das vezes o argumento de autoridade, em vez de constituir a única prova, vem completar uma rica argumentação. Constata-se então que uma mesma autoridade é valorizada ou desvalorizada conforme coincida ou não com a opinião dos oradores [...]. O espaço do argumento de autoridade na argumentação é considerável. Mas não se deve perder de vista que, como todo argumento, ele se insere entre outros acordos.

Tivemos como locais de pesquisa: o Colégio Pedro II (CPII), mais precisamente o Campus São Cristóvão II; uma escola pública federal do município do Rio de Janeiro; e também, a Escola de Música de Manguinhos (EMM), um projeto de pesquisa e extensão da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que são os ambientes de trabalho da pesquisadora. Convidamos os seguintes representantes institucionais para a pesquisa: a Chefe do Departamento de Educação Musical do CPII no ano de 2013; a Coordenadora Administrativa da EMM; e um dos membros do Apoio Pedagógico da EMM, que estão exercendo suas funções até o presente momento.

REFERENCIAL TEÓRICO Nosso referencial teórico principal fundamenta-se na Nova Retórica, que reabilitou as opiniões dos sujeitos, trabalhando com um raciocínio não demonstrativo e concebendo as verdades como não absolutas, mas provisórias. Sendo assim, podemos utilizá-la como ferramenta teórica e metodológica que estimula o pensamento, a reflexão. Sobre o assunto, Oliveira (2011b, p.100) acrescenta: “[...] temos que ressaltar suas contribuições para uma melhor compreensão do homem e da sociedade e, nessa perspectiva, também para a educação”. De forma geral, podemos conceber o momento das aulas de música como um espaço de constante argumentação, em que as distâncias estão em constante negociação (MEYER, 2002), um local em que o questionamento deve ser incentivado a cada dia. Para Meyer, a “retórica é a negociação da distância entre os indivíduos a propósito de uma questão” (2002, p. 268). A

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

102

distância é sempre gerada por visões diferenciadas acerca de uma questão ou de um problema. Essa negociação ocorre, permanentemente, entre auditórios e oradores. Os “Oradores” são aqueles que proferem discursos com o objetivo de persuadir um

auditório.

“Auditórios”

são

grupos

heterogêneos

(destacamos

a

heterogeneidade cultural), sendo o conjunto das pessoas as quais o orador deseja

influenciar

com

sua

argumentação.

Segundo

o

Tratado

da

argumentação (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005), as categorias orador e auditório são flexíveis, sendo assim, os representantes institucionais ora podem ocupar a posição de oradores, ora podem ser considerados auditórios. A tipificação dos argumentos foi realizada com base no referido Tratado. Nessa obra, Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) tentam organizar o tipo de argumentação utilizado, e não limitar a argumentação a esquemas de classificação rígidos. Os esquemas argumentativos propostos pelos autores caracterizam-se pela ligação ou pela dissociação. Os processos de ligação são aqueles que buscam a solidariedade entre as partes, ou seja, buscam ligar elementos que, a princípio, estão separados na argumentação. A dissociação é justamente o inverso. A análise dos argumentos dos representantes institucionais não requereu apenas o recurso a uma teoria que estude o campo da argumentação propriamente dita, mas também às contribuições de outros autores, propiciando que se compreenda melhor o contexto em que o texto ou o discurso (argumentos sobre porque aprender e ensinar música) é desenvolvido. Interpretamos diferentes visões abrangidas pela pesquisa, tendo como base as categorias do Tratado da Argumentação e outras referendadas pelos autores da Educação Musical (FREIRE, 2011; PENNA, 2010; SEKEFF, 2007) do Currículo (MOREIRA; SILVA, 2011; MACEDO 2003, 2004) e do Multiculturalismo (CANEN, 2007). Consideramos que a Educação Musical deve valorizar os aspectos socioculturais encontrando, no diálogo, um caminho fértil para o entendimento

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

103

e para a articulação de diferentes culturas presentes nas aulas de música, procurando desenvolver um ambiente argumentativo. De acordo com a perspectiva desta pesquisa, devemos valorizar os saberes dos alunos e considerá-los no currículo, compreendendo que a sala de aula é um ambiente multicultural. Além disso, cremos que o currículo deve privilegiar as diferenças, sem transformá-las em desigualdade. O desafio é entender como articular diferentes culturas nos currículos.

METODOLOGIA A pesquisa se coadunou com um paradigma interpretativo, já que o intuito foi desvelar sentidos e compreender significados gerados pelos argumentos dos representantes institucionais. Como a ênfase foi na interpretação, a abordagem da pesquisa foi qualitativa por privilegiar a subjetividade (FREIRE, 2010). A abordagem de pesquisa escolhida foi o estudo de caso (YIN, 2010), pois desejamos investigar, aprofundar e descrever a complexidade de um fenômeno contemporâneo. Como já comentado na introdução, os locais da pesquisa foram: o Colégio Pedro II (CPII), mais precisamente o Campus São Cristóvão II e a Escola de Música de Manguinhos (EMM). O CPII é uma autarquia federal criada pelo decreto-lei nº 245, de 28 de fevereiro de 1967, existente desde 2 de dezembro de 1837, que oferece, na atualidade: Educação Infantil, Ensino Fundamental de nove anos, o Ensino Médio Regular e o Ensino Técnico Integrado à Educação Profissional, inclusive na modalidade de Educação de Jovens e Adultos. A EMM é um projeto de pesquisa e extensão da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nesse local, são ministradas aulas de música a crianças, jovens e adultos com o objetivo de promover a pré-profissionalização musical dos mesmos, contribuindo para a transformação social. O fato de escolher a EMM, que é também um projeto social, amplia a discussão sobre a

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

104

necessidade do ensino de música não apenas em escolas regulares, mas também em outros espaços. Os dados foram gerados por questionários. Os argumentos não foram tomados como “objeto” de pesquisa, mas como agentes na construção da mesma, pois, como já foi mencionado, o trabalho priorizou a qualidade e a interpretação das informações, e não o aspecto quantitativo. A análise dos argumentos foi fundamentada na contribuição teóricometodológica Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), autores do Tratado da Argumentação. [...] quando não estamos diante de provas irrefutáveis acerca da verdade ou da falsidade de um enunciado, o julgamento, a escolha, a decisão terão que ser feitos com base no caráter mais ou menos verossímil deste ou daquele argumento. Serão os indivíduos a quem forem dirigidos os argumentos, os avaliadores da força dos mesmos e para isso contarão a respeitabilidade e a confiança depositadas em quem fala (ethos), a construção argumentativa feita pelo falante (logos) e as disposições ou inclinações dos ouvintes (pathos). Esses são os três pilares da retórica, que ficaram conhecidos, respectivamente, como dimensões referentes ao orador, ao discurso e ao auditório (OLIVEIRA, 2011a, p. 18).

Atualmente, dispomos de vários métodos para realizar uma análise e leitura dos textos elaborados pelos sujeitos da pesquisa, porém, observamos que nossa opção foi por uma leitura retórica: A leitura retórica, por sua vez, não objetiva dizer que o texto tem razão ou deixa de tê-la. Nem por isso é neutra, pois não hesita em fazer juízos de valor, em mostrar que tal argumento é forte ou fraco, que tal conclusão é legítima ou errônea. Critica e pondera, sem se abster de admirar, tendo como postulado que o texto, tanto em sua força quanto em suas fraquezas, pode ensinar alguma coisa. A leitura retórica é um diálogo (REBOUL, 2004, p. 139).

O roteiro do questionário contou com quatro perguntas abertas. Eis as perguntas que foram destinadas para a Chefe de Departamento do CPII e para o membro do apoio pedagógico da EMM, que eram docentes: 1) A música é importante para você? (

) sim (

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

) não. Por quê?

ISBN: 978-85-89943-21-5

105

2) Você considera importante ensinar música nesta instituição? (

) sim (

)

não. Por quê? 3) Quais aperfeiçoamentos você considera que o ensino de música desta instituição poderia ter? 4) Você gostaria de fazer outros comentários e/ou observações sobre o ensino de música nesta instituição? (

) sim (

) não. Por quê?

Como a Coordenadora Administrativa não era docente, seu questionário sofreu pequenas alterações. Eis o roteiro de perguntas que a mesma respondeu: 1) A música é importante para você? (

) sim (

) não. Por quê?

2) Você considera importante a presença do ensino de música nesta instituição?

(

) sim (

) não. Por quê?

3) Quais aperfeiçoamentos você considera que a Escola de Música de Manguinhos poderia ter? 4) Você gostaria de fazer outros comentários e/ou observações sobre a Escola de Música de Manguinhos? (

) sim (

) não. Por quê?

Para complementar e aprofundar as informações geradas pelos questionários, foram utilizados os projetos político-pedagógicos de cada instituição e outros documentos institucionais. “Os documentos são usados no sentido de contextualizar o fenômeno, explicar suas vinculações mais profundas e completar as informações coletadas através de outras fontes” (ANDRÉ, 2004, p. 28).

ANÁLISE DOS RESULTADOS A maioria dos representantes institucionais valeu-se da interação ato e pessoa (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005) ao justificar a importância da música na sua vida. Para eles a música é importante por ser uma forma de expressão que pode ser captada por todos, que transforma e enriquece o indivíduo (Chefe do Departamento do CPII), por que seu desejo de aprender

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

106

música foi realizado na vida dos que se aproximam da EMM (Coordenadora Administrativa) e por ser uma das facetas mais importantes da sua vida do ponto de vista afetivo e profissional (membro do apoio pedagógico da EMM). Constatamos que os argumentos, de forma geral, convergiram para a valorização do desenvolvimento global do ser humano. Sobre a importância da música em cada instituição, a Chefe do Departamento de Educação Musical do CPII salientou que a música desenvolve o ser humano em todos os seus aspectos. A Coordenadora Administrativa da EMM observou que a música abre portas, sendo uma condutora de possibilidades, evocando a relação meio-fim. Já o membro do apoio pedagógico da EMM destacou a gratuidade, como forma de democratização do ensino de música a todos, valendo-se da argumentação pragmática. Sobre as sugestões de aperfeiçoamento, a Chefe do Departamento de Educação Musical do CPII abordou que todos nós devemos estar em permanente

transformação.

Ela

também

mencionou

a

respeito

da

contextualização que o trabalho deve ter, que as aulas de música devem estar associadas às experiências de vida dos alunos, que os conteúdos não devem ter fim em si mesmos e que a prática musical não deve estar desvinculada da teoria musical. Constatamos que a contextualização do trabalho e a aproximação com as vivências dos nossos alunos são aperfeiçoamentos importantes, que também são incentivados na EMM. Todavia, o argumento da Chefe do Departamento nos sugeriu que há uma diferença entre as metodologias de trabalho do CPII e na EMM em relação à articulação teoria e prática instrumental. No CPII, aparentemente, o trabalho teria como ponto de partida, os conteúdos teóricos, para depois haver maior investimento na prática musical,

ou

então,

que

essas

duas

vertentes

seriam

trabalhadas

paralelamente. Na EMM, o investimento inicial é na prática instrumental, pela imitação, oferecendo informações básicas. Gradativamente, são oferecidas informações teóricas. Ressaltamos que nosso intuito não foi de estabelecer

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

107

uma hierarquia entre essas abordagens, mas sim, de confrontar as perspectivas metodológicas. A Coordenadora Administrativa da EMM traz uma contribuição importante, que é o fato de atendermos nosso aluno em outros aspectos, além da prática musical. A EMM tem se preocupado, fundamentalmente, com os aspectos cognitivos, pedagógico, todavia, com base na mesma, há outros aspectos que poderiam ser contemplados: o psicológico e o assistencial. Consideramos que o desenvolvimento pleno do aluno envolve muitos aspectos, todavia, para atendê-los, a EMM precisaria de mais recursos financeiros para contratar profissionais na área, conseguir um espaço adequado para o atendimento e materiais necessários. O membro do apoio pedagógico da EMM comentou que os professores já estão compreendendo de melhor forma a metodologia do ensino coletivo, todavia, mas ainda apresentam dificuldades relativas à articulação da prática musical com a teoria musical. Cremos que a dificuldade esteja em como sistematizar os conteúdos musicais a partir da prática musical e que, gradativamente, essa dificuldade está sendo superada devido à formação e ao acompanhamento que a equipe pedagógica tem realizado com o grupo de professores, o que inclui a leitura de literatura sobre o tema. Em relação às observações e comentários livres, a Chefe do Departamento de Educação Musical do CPII descreveu que sua função é de dinamizar e articular ações. Ressaltamos que essas ações são integradoras e voltadas para a capacitação do corpo docente. Ela destaca a importância das reuniões, dos encontros, dos colegiados, dos projetos musicais desenvolvidos pelos professores e da integração com outras instituições. Com base em sua fala, entendemos que esses momentos propiciam uma troca de experiências ricas, diálogos fecundos, cursos de formação/capacitação, auxiliando no aprimoramento individual e coletivo do docente. Propiciar espaço para o diálogo suscita um ambiente argumentativo e de negociação de distâncias sobre as diversas opiniões a respeito do trabalho realizado e também a interação entre as culturas dos professores. O diálogo também é uma

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

108

ferramenta preciosa para realizar acordos e renová-los, a fim de aprimorar o processo pedagógico realizado (OLIVEIRA, 2011a, 2011b). A Coordenadora Administrativa da EMM ressalta como a escola é valorizada pela comunidade, pelos alunos e familiares, e que a mesma possui um ambiente de solidariedade. Com certeza, o espírito solidário é vital para que os alunos se sintam acolhidos, respeitados e encorajados a transformarem suas vidas através da música. Percebemos que a EMM pode ser considerada um modelo para a comunidade. A Coordenadora Administrativa e o membro do apoio pedagógico da EMM foram convergentes ao apontar que seria necessário maior apoio financeiro (outras parcerias) que pudessem ajudar a contemplar ainda mais as necessidades dos nossos alunos. Segundo nossa opinião, a solidariedade é fundamental para que haja um espaço promissor de argumentação e de diálogo entre culturas diferenciadas presentes na EMM. Por fim, o membro do apoio pedagógico da EMM aborda a relação entre ensino, pesquisa e extensão que ocorre nesse local. Tal fato contribui para que o docente seja mais bem preparado, beneficiando-se de uma formação docente mais sólida e diferenciada. Essa argumentação foi tipificada como pragmática (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005). Além disso, o mesmo destaca os momentos das apresentações públicas, como uma oportunidade de os alunos conhecerem práticas musicais diferentes, atuando de forma colaborativa com outros alunos e também, com os professores. Constatamos que o depoimento do respondente apresentou os aspectos positivos que a EMM tem, tanto na vida dos professores como na vida dos alunos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Acreditamos que um dos pontos mais valiosos da pesquisa foi apontar para

a

importância

que

representantes

institucionais

atribuem

ao

ensino/aprendizado da música, bem como a necessidade de os mesmos se ouvirem entre si. Tais percepções são importantes para que se negocie uma

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

109

proposta pedagógica que emane da coletividade, dando abertura à contribuição de todos e propiciando flexibilidade para a execução do trabalho. Entendemos que a escola deva ser um local privilegiado de interlocução e que somente através do diálogo o trabalho pedagógico pode crescer e se desenvolver. No entanto, não basta dialogar, deve-se agir, a partir de acordos concretizados. Cremos que o diálogo é um instrumento privilegiado para a negociação de distâncias apregoada por Meyer (2002). Admitimos que não é fácil dialogar, todavia se partirmos do pressuposto de que os acordos são provisórios e temporais, talvez isso atenue parte dos conflitos e das resistências que muitas vezes existem no espaço escolar. Consideramos vital que surjam outras pesquisas que se proponham a comparar instituições com características diferenciadas em relação ao ensino de música. Cremos que esse “confronto” de argumentos pode render bons frutos para o crescimento do trabalho em ambas as instituições, gerando também aperfeiçoamentos para a prática de ensino de música.

REFERÊNCIAS BRASIL. Presidência da República. Lei nº 11.769, de 18 de agosto de 2008. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação, para dispor sobre a obrigatoriedade do ensino da música na educação básica. Brasília, 2008. Disponível em: . Acesso em: 16 jan. 2014.

______. Presidência da República. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, 1996. Disponível em: . Acesso em: 02 fev. 2014.

ANDRÉ, Marli Eliza Dalmazo Afonso de. Etnografia da prática escolar. 11. ed. Campinas: Papirus, 2004.

CANEN, Ana. O Multiculturalismo e seus dilemas: implicações na educação. Comunicação & Política, Rio de Janeiro, v. 25, n.2, p. 91-107, 2007. II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

110

FREIRE, Vanda Bellard. Música e Sociedade: uma perspectiva histórica e uma reflexão aplicada ao Ensino Superior de Música. 2. ed. Florianópolis: Associação Brasileira de Educação Musical, 2011.

______. Horizonte da pesquisa em música. Rio de Janeiro: 7Letras, 2010.

MACEDO, Elizabeth. Currículo e hibridismo: para politizar o currículo como cultura. Educação em Foco, Juiz de Fora, v. 8, n. 1 e 2, p. 13-30, 2003/2004.

MEYER, Michel. A problematologia como chave para a unidade da retórica. In: MEYER, Michel; CARRILHO, Manuel Maria; TIMMERMANS, Benoit. História da Retórica. Lisboa: Temas e Debates, 2002. p. 265-298.

MOREIRA, Antonio Flavio; SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). Currículo, cultura e sociedade. 12. ed. São Paulo: Cortez, 2011.

OLIVEIRA, Renato José. A ética no discurso pedagógico da atualidade. Niterói: Intertexto, 2011a.

______. A Nova Retórica, a problematologia e a educação. In: LEMBRUGER, Márcio Silveira; OLIVEIRA, Renato José de (Org.). Teoria da Argumentação e educação. Juiz de Fora: UFJF, 2011b. p. 91-106.

PENNA, Maura. Música(s) e seu ensino. 2. Ed. Porto Alegre: Sulina, 2010.

QUEIROZ, Luis Ricardo Silva. Educação musical e cultura: singularidade e pluralidade cultural no ensino e aprendizagem da música. Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 10, p. 99-107, mar. 2004.

______. A música como fenômeno sociocultural. In: MARINHO, Vanildo Mousinho; QUEIROZ, Luis Ricardo Silva (Org.). Contexturas: o ensino das artes em diferentes espaços. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2005.

PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

111

REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

SEKEFF, Maria de Lourdes. Paulo: UNESP, 2007.

Da música: seus usos e recursos. 2.ed. São

YIN, Robert K. Estudo de caso: planejamento e métodos. Tradução de Ana Thorell. 4. ed. Porto Alegre: Bookman, 2010.

HELEN SILVEIRA JARDIM DE OLIVEIRA -

Doutora em Educação pela

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Música também pela UFRJ, especializada em Psicopedagogia pela Universidade Cândido Mendes e Educação Matemática pela Universidade Estácio de Sá. Atualmente é coordenadora pedagógica do Colégio Pedro II e integra a equipe de apoio pedagógico da Escola de Música de Manguinhos.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

112

DIDÁTICA: TEMPERO OU RECEITA DA PRÁTICA PEDAGÓGICA

Gabriela Clotilde dos Santos Monteiro [email protected] UNESA/USS Helenice Maia Gonçalves [email protected] UNESA

RESUMO Este estudo apresenta uma discussão sobre as representações sociais (RS) da disciplina Didática por alunos e professores de curso de Licenciatura em Pedagogia. O objetivo foi buscar indícios das RS da disciplina Didática elaboradas por professores e alunos de uma Instituição de Ensino Superior localizada em Maricá, Rio de Janeiro. Inicialmente empreendeu-se revisão de literatura sobre a disciplina desde a criação até os dias atuais. A análise dos dados baseou-se na Análise de Conteúdo de Laurence Bardin. Verificou-se que embora o foco da disciplina seja formação docente, ainda não estabelecem interrelação entre prática e conteúdos da sala de aula, além do desequilíbrio entre teoria e prática. Os resultados mostraram que professores consideram a Didática eminentemente instrumental. Quanto aos alunos, têm as mesmas expectativas em relação à disciplina, como capaz de dar suporte instrumental na atuação docente. Consideram que haja “receitas” para ministrar uma boa aula. Por meio da técnica de indução de metáforas, identificou-se as metáforas “Didática é como se fosse uma receita” e “Didática é como se fosse um tempero”, tanto professores quanto alunos atribuem à disciplina Didática um caráter instrumental, “aprender a fazer”.

Palavras-chave: Didática; Formação Docente; Pedagogia

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

113

INTRODUÇÃO A história da Didática tem sua gênese com o aparecimento do ensino no decorrer do desenvolvimento da sociedade e das ciências, como atividade planejada e intencional dedicada à instrução (LIBÂNEO, 1994). Está situada entre a teoria e a prática docente, tendo como objeto de estudo o processo de aprendizagem na sua totalidade. A Didática é o principal ramo de estudos da Pedagogia por investigar os fundamentos, condições e modos de realização do ensino, dos métodos, conteúdos e organização da aula, fornecendo embasamento

para

a

relação

ensino-aprendizagem,

eliminando

o

distanciamento entre teoria e prática. Estudos sobre a história da Didática no Brasil vêm sendo realizados em maior escala nos últimos anos devido a uma maior preocupação sobre questões educacionais e pela busca de ações educativas mais comprometidas com as problemáticas. Mas para isso há a necessidade de interligar as dimensões humanas, políticas, sociais e técnica. O objetivo desse trabalho é buscar crenças e valores, as vivências do grupo, consensos, os silêncios, os risos, figuras de linguagem e metáforas que pudessem unificar significados e indicar a visão de alunos e professores do curso de Pedagogia a respeito da disciplina Didática.

A DIDÁTICA NO CURSO DE PEDAGOGIA O Curso de Pedagogia no Brasil foi constituído pelo Decreto-lei n. 1190 de 1939, - que definiu as finalidades da Faculdade Nacional de Filosofia - como consequência da preocupação com o preparo de docentes para o Curso Normal. Visava-se à dupla função de formar bacharéis e licenciados para várias áreas, dentre as quais a pedagógica, seguindo a forma conhecida como “3+1”, em que as disciplinas de caráter pedagógico com duração de um ano estavam justapostas às disciplinas de conteúdo, com três anos. Assim, nos primeiros três anos formava-se o bacharel ou técnico em educação e, posteriormente, após a conclusão do curso de Didática, era conferido o diploma de licenciado em Pedagogia (CRUZ, 2009). Esse Decreto-lei vigorou por 23 II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

114

anos e manteve a organização curricular baseada na separação entre bacharelado e licenciatura, “causando a dicotomia entre dois elementos componentes do processo pedagógico: o conteúdo e o método, a teoria e a prática” (MARTELLI; MANCHOPE, 2004, p. 3). Com a licenciatura em Pedagogia, o recém-formado podia atuar como professor da Escola Normal, campo não exclusivo a pedagogos, uma vez que de acordo com o Capítulo V, Art. 49 da Lei Orgânica do Ensino Normal Decreto-Lei n. 8.530 de 2 de janeiro de 1946, que se refere aos professores de Ensino Normal, para lecionar nesse nível era suficiente o diploma de ensino superior. Podiam, também, lecionar História e Matemática no antigo ginásio. Com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei 4024 de 20 de dezembro de 1961, o Conselho Federal de Educação, por meio do Parecer 251/62, estabelece o currículo mínimo para o curso de Pedagogia. Logo após, o Parecer 292/62 que regulamenta as matérias pedagógicas para a Licenciatura, mantém a estrutura Bacharelado/Licenciatura, embora tenha tentado abolir o sistema “3+1”, instituindo-se o princípio da concomitância do ensino do conteúdo e do método. A duração dos cursos de Bacharelado e de Licenciatura passam para quatro anos respectivamente, sendo seis matérias obrigatórias (Psicologia da Educação; Sociologia Geral, Sociologia da Educação, História da Educação, Filosofia da Educação e Administração Escolar) e duas a serem escolhidas pela instituição de ensino entre Biologia, História da Filosofia, Estatística, Métodos e Técnicas de Pesquisa Pedagógica, Cultura Brasileira, Educação Comparada, Higiene Escolar, Currículos e Programas, Técnicas Audiovisuais de Educação, Teoria e Prática da Escola Primária, Teoria e Prática da Escola Média, Introdução à Orientação Educacional. Chaves (2004) esclarece, ainda, que Didática e Prática de Ensino deveriam ser acrescentadas obrigatoriamente para os alunos que estivessem interessados em Licenciatura. Com a reorganização do curso de Pedagogia em 1969, com as nomeações das “habilitações”, conforme determinava a Lei n. 5540/68, conhecida como Lei da Reforma Universitária. O Parecer 252/69 regulamentou cinco habilitações (Ensino das disciplinas e atividades práticas dos cursos

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

115

normais, Orientação Educacional, Administração Escolar, Supervisão Escolar e Inspeção Escolar) e aboliu a distinção entre o Bacharelado e Licenciatura em Pedagogia. Para qualquer uma das habilitações, o título obtido era o de licenciado, sendo a Didática matéria obrigatória do currículo no Núcleo Comum, sendo elas Sociologia Geral, Sociologia da Educação, Psicologia da Educação, História da Educação, Filosofia da Educação e Didática. Além disso, instituiu a obrigatoriedade da prática de atividades correspondentes às habilitações sob a forma de estágio supervisionado. O curso passou então a ser predominantemente formador dos denominados “especialistas” em educação (supervisor escolar, orientador educacional, administrador escolar, inspetor escolar), além de oferecer, na forma de habilitação, a licenciatura “Ensino das disciplinas e atividades práticas dos cursos normais” e uma formação alternativa para a docência nos primeiros anos do ensino fundamental, onde a disciplina de Didática estava inserida. A dicotomia presente no antigo modelo permaneceu: de um lado as disciplinas dos chamados fundamentos da educação e, de outro, as disciplinas das habilitações específicas. Nos anos 70, o Conselho Federal de Educação aprovou Indicações e Pareceres relacionados à formação para o magistério, que incluíam as funções docentes e não-docentes para o 1º e 2º Graus, em função da promulgação da Lei 5692 de 11 de agosto de 1971. O curso de Pedagogia continuou a formar docentes para o magistério pedagógico de 2º grau (Curso Normal) e especialistas não-docentes para a escola de 1º e 2º graus (CHAVES, 2004). Oliveira (2009) explica que a formação do professor, a partir do artigo 30 da Lei 5.692/71, é evidenciada por dois esquemas: (1) formação em cursos regulares e (2) formação regular acrescida de estudos adicionais. Esta última podia ser realizada por meio de cinco níveis de formação de professores: (a) em 2º grau para formar o professor para atuar nas quatro primeiras séries do 1º grau; (b) em 2º grau com um ano de estudos adicionais, destinada ao professor para lecionar até a 6ª série do 1º grau; (c) superior em licenciatura curta, para preparar para o magistério de uma área de estudos e tornar o professor apto a lecionar em todo o 1º grau; 4) superior em licenciatura curta mais estudos

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

116

adicionais, para preparar o professor de uma área de estudos com alguma especialização em uma disciplina dessa área, apto a lecionar até a 2ª série do 2º grau; 5) superior em licenciatura plena, destinada a preparar o professor de disciplina, apto a lecionar até a última série do 2º grau. Há então o desdobramento do curso, “ou seja, as antigas tarefas anteriormente concentradas no curso são transformadas em variadas alternativas de habilitações” (FURLAN, 2008, p. 6). Nos anos 80 e 90 os movimentos em prol da reformulação do curso de Pedagogia são intensos. Em 1981, uma proposta lançada pelo Comitê Pró-participação na Reformulação dos Cursos de Pedagogia e Licenciatura – Regional de São Paulo, indicava não apenas a redefinição do curso, como também do destino do bacharelado e da licenciatura. No período é vasta a produção acadêmica voltada para a aproximação dos campos de Didática e Prática de Ensino, tendo como marco o primeiro Encontro de Didática e Prática de Ensino (ENDIPE) realizado em 1982. Esse encontro teve como objetivo “revisar os conteúdos das áreas da Didática e Prática de Ensino de forma a contextualizá-los a partir dos determinantes sócio-político, econômico e cultural do país” (TORETTAZEN, 2006, p. 17). A grande preocupação nas últimas décadas era ainda com a formação docente, principalmente com a formação para atuar nas séries iniciais do Ensino Fundamental, e com o distanciamento entre teoria e prática pedagógica (GATTI, 2010). A Lei 9394 de 20 de dezembro de 1996 introduziu a formação didáticopedagógica para a docência para educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental. A Didática passa a ser entendida como elemento fundamental para o desenvolvimento do trabalho docente e foi identificada como um "saber fazer" (ANDRÉ; OLIVEIRA, 1997). As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia - Licenciatura (Resolução CNE/CP n. 1/2006), publicadas dez anos depois, enfatizaram a formação docente para o exercício do magistério e definiram atividades docentes como aquelas relacionadas ao “planejamento, execução, coordenação, acompanhamento e avaliação de tarefas e projetos

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

117

próprios dos setores educacionais e espaços não-escolares, como também produção e difusão do conhecimento científico-tecnológico educacional” (art. 4º, CNE/CP n. 1/2006). A estrutura do curso de Pedagogia deverá respeitar a diversidade nacional e a autonomia das instituições de ensino superior no âmbito de sua gestão pedagógica. Porém, “constituir-se-á de pontos em comum como núcleo de estudos básicos, núcleo de aprofundamento e diversificação de estudos voltados à área profissional e um núcleo de estudos integradores”. (art. 6º, CNE/CP n. 1/2006). Na estrutura do núcleo de estudos básicos no curso de Pedagogia, encontram-se disciplinas referentes à organização e ao desenvolvimento do trabalho docente, sendo a disciplina Didática uma delas, que tem como objeto de estudo o ensino e como objetivo levar à aprendizagem. Está inteiramente ligada à teoria da educação, às teorias da organização escolar, às teorias do conhecimento e à psicologia da educação, sendo considerada a base da prática educativa. Para Libâneo (1994), nos cursos de Pedagogia, a Didática deveria operar entre conhecimento teórico-científico e técnico-prático; como uma ponte que interliga a prática e a teoria. Libâneo (2009) reconhece que a Didática possui dois campos conexos e integrados com o saber e o ensino, e que para ensinar uma matéria não basta dominar os conteúdos ou ter domínio da prática de ensino dessa matéria. Para ele, a Didática investiga os fundamentos, condições e modos de realização do ensino, métodos, conteúdos e organização da aula. Na mesma direção Martins (2008) considera que a função básica da Didática é dar condições e preparar o futuro professor para criar e produzir conhecimentos, problematizando sua prática pedagógica, analisando, refletindo novas

possibilidades e

socializando

os conhecimentos

adquiridos.

A

especificidade desta disciplina está na busca de transformações das relações que o discente mantém com o saber, trazendo à tona questões do dia-a-dia escolar para serem analisados por alunos e professores. Deste modo, o ensino de Didática voltado apenas para a operacionalização do processo de ensino e aprendizagem desvinculado do contexto social contribui para a formação de um futuro profissional conservador, fundamentado em “receitas”, deixando de lado

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

118

possíveis conteúdos implícitos nas atividades trabalhadas. Já a Didática voltada apenas para um ensino crítico e transformador, acaba por deixar para trás o fazer pedagógico, os métodos de ensino. Segundo Libâneo (1994), a Didática está situada entre a teoria e a prática docente, tendo como objeto de estudo o processo de aprendizagem na sua totalidade, ligada à teoria da educação, às teorias da organização escolar, às teorias do conhecimento e à psicologia da educação. A Didática busca em outras áreas base para analisar e entender as ações no campo do conhecimento pedagógico e tem como foco central o “ensino” e suas relações no processo educativo. Libâneo (1994, p. 144) ressalta ainda que “a Didática não se limita ao fazer, só ação prática, mas também se vincula às demais instâncias e aspectos da educação formal”. A Didática contribui significativamente na fundamentação da prática educativa, de forma que os profissionais da educação possam ter um pleno “domínio das bases teóricas científicas e tecnológicas, e sua articulação com as exigências concretas do ensino” (LIBÂNEO, 1994, p. 28). Desta forma os profissionais da educação poderão estar revendo, analisando e aprimorando sua prática educativa. Para Martins (2008), a disciplina Didática no curso de Pedagogia deve facilitar o conhecimento da realidade para que o futuro professor possa interagir de forma consciente na sociedade. Esta disciplina não pode ser encarada apenas por seu caráter instrumental. Na verdade, o grande desafio da Didática é buscar superar a fragmentação dos saberes e conteúdos isolados desta área de conhecimento. Este parece ser também o posicionamento de Candau (1997, p.. 121) sobre a disciplina. De acordo com ela, a Didática

deve ser entendida como um “elo de tradução” dos conhecimentos produzidos pelas disciplinas de fundamentos da educação e a prática pedagógica. A Didática tem por objetivo o “como fazer”, a prática pedagógica, mas este só tem sentido quando articulada ao “para que fazer” e ao “por que fazer”.

A autora aponta ainda que o papel da Didática na formação de educadores tem fomentado uma intensa discussão, seja ela de forma positiva

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

119

ou negativa, mas que visa encontrar alternativas para os problemas apontados na prática pedagógica. Candau (2008) defende a disciplina Didática em uma perspectiva de multidimensionalidade do processo ensino-aprendizagem por meio de uma articulação entre três dimensões: técnica, humana e política, contextualizando a prática pedagógica. O ensino da Didática, ainda de acordo com ela, deve tomar como ponto de partida a totalidade do processo de ensinoaprendizagem. A competência técnica e a competência política do educador não podem se dissociar e a técnica da prática pedagógica deve ser pensada dentro do projeto político-social em que está embasada. A disciplina Didática na formação do profissional de educação visa à produção de um saber e um fazer competentes, uma competência técnica, porém não suficiente para uma prática política suficiente.

A PESQUISA E SEUS RESULTADOS O presente trabalho fundamentando-se na teoria das RS desenvolvida por Serge Moscovici. Inicialmente empreendeu-se revisão de literatura sobre a disciplina Didática desde a criação até os dias atuais, perpassando pelas legislações que amparam o curso de Pedagogia e autores os quais discutem a respeito. Trata-se de uma pesquisa qualitativa que objetiva investigar os indícios das representações sociais da disciplina Didática elaborada por alunos e professores de curso de Pedagogia e compará-las. Nas pesquisas qualitativas, os pesquisadores procuram entender e interpretar os fenômenos através da perspectiva dos participantes da situação pesquisada, tendo por objetivo traduzir e expressar o sentido dos fenômenos do mundo social. Para a coleta de dados foi utilizada uma abordagem multimetodológica, com a intenção de se aproximar do objeto sob diferentes perspectivas, o que permitiria penetrar na complexidade do objeto. Como a abordagem multimetodológica parte do princípio que não existe método específico que seja mais adequado (NARITA, 2006), foram usados diferentes instrumentos, tais

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

120

como entrevistas, questionários e análise documental, que reforçaram os aspectos qualitativos deste estudo, sem que a sua fidedignidade fosse perdida. A partir das informações coletadas nos documentos da IES, dos questionários aplicados e das entrevistas realizadas foi feita análise criteriosa dos dados. Buscou-se crenças e valores, as vivências do grupo, consensos, os silêncios, os risos, figuras de linguagem e metáforas que pudessem unificar significados e indicar o núcleo figurativo das representações sociais de alunos e professores do curso de Pedagogia a respeito da disciplina Didática. As análises empreendidas mostraram que os professores consideram que a Didática apresenta caráter instrumental, embora alguns deles apontem um caráter multidimensional da disciplina em suas falas. Ao retratarem a prática em sala de aula, a Didática é definida sempre como instrumental. Os alunos, em consequência, têm as mesmas expectativas em relação à disciplina e apontam a Didática como uma disciplina capaz de dar suporte instrumental ao que farão quando professores. É a disciplina onde são ensinados métodos e técnicas de “como dar aula”, de como “comportar-se em sala de aula”. Acreditam, então, que haja “receitas” de como ministrar uma boa aula. Portanto, é possível identificar também uma metáfora que condensa as representações sociais de Didática por meio da análise das falas dos alunos: “Didática é como se fosse uma receita”, muito próxima à metáfora associada à disciplina pelos professores. São os instrumentos que não podem faltar a qualquer professor. Tanto professores quanto alunos ancoram os significados atribuídos à disciplina na Didática Instrumental, cristalizada nos compêndios e manuais utilizados nos cursos de Pedagogia. Uma evidencia disso está presente nas falas dos sujeitos aos caracterizarem a Didática como uma disciplina voltada para o “aprender a fazer”, para a técnica. Com

relação

à

objetivação,

parece

que

professores

e

alunos

suplementam a função instrumental da disciplina e subtraem sua função reflexiva, distorcendo as informações que obtém da literatura mais recente sobre o tema.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

121

CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta pesquisa teve como objetivo buscar indícios das representações sociais da disciplina Didática elaboradas por professores e alunos de Curso de Pedagogia de uma Instituição de Ensino Superior (IES) localizada no Município de Maricá no Rio de Janeiro. As análises empreendidas mostraram que os professores parecem não perceber a relação entre teoria e prática proporcionada pela disciplina Didática e consideram mais seu caráter instrumental, embora alguns deles apontem a multidimensional da disciplina em suas falas. Ao retratarem a prática em sala de aula, a Didática é o que os ajuda a serem criativos, a temperarem o ensino. Os alunos, em consequência, têm as mesmas expectativas em relação à disciplina e apontam a Didática como uma disciplina capaz de dar suporte instrumental ao que farão quando professores. É a disciplina que ensina métodos e técnicas de “como dar aula”, de como “comportar-se em sala de aula”. Acreditam que haja “receitas” de como dar uma boa aula e é isso que gostariam de aprender. Portanto, é possível identificar também uma metáfora que condensa as representações sociais de Didática por meio da análise das falas dos alunos: “Didática é como se fosse uma receita”, muito próxima à metáfora associada à disciplina pelos professores. São os apetrechos que não podem faltar a qualquer professor para dar aula: a criatividade (o tempero) e os métodos e técnicas (a receita). Tanto professores quanto alunos ancoram os significados atribuídos à disciplina na Didática instrumental, cristalizada nos compêndios e manuais utilizados nos cursos de Pedagogia. Uma evidencia disso está presente nas falas dos sujeitos aos caracterizarem a Didática como uma disciplina voltada para o “aprender a fazer”, para a técnica e os métodos de como fazer. Com

relação

à

objetivação,

parece

que

professores

e

alunos

suplementam a função instrumental da disciplina e subtraem sua função reflexiva, distorcendo as informações que obtém da literatura mais recente sobre o tema.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

122

A disciplina Didática ministrada nesta IES tenta articular a teoria e a prática, ainda que, com pouca relevância. Esta articulação está mais evidente nas disciplinas Fundamentos Teóricos e Metodológicos, mas não na disciplina Fundamentos da Didática I, que tem equivalência com a Didática Geral. Todos os sujeitos envolvidos no processo de ensino aprendizagem da IES defendem que a disciplina Didática é fundamental para o curso de Licenciatura em Pedagogia, que é importante na formação docente por promover debates sobre aspectos educacionais relevantes, sobre métodos de ensino, técnicas e ações referentes ao trabalho docente. No entanto, o que prevalece é a instrumentalidade que a disciplina proporciona e que remete a o quê ensinar, como fazer, sob que condições e para quem se ensina, em detrimento das reflexões sobre a prática educativa. Mesmo informando que Didática não pode ser mais vista como um simples instrumento para ensinar as ações práticas a serem desenvolvidas em sala de aula, os professores a defendem dentro da perspectiva da racionalidade técnica. O que se propõe hoje para a disciplina é uma Didática voltada não só para a instrumentalização, mas também uma Didática que tem função social, humana e política, vinculada à prática de ensino. Porém, isso implica uma nova estruturação da disciplina, onde o professor possibilitará ao aluno reflexões acerca de suas crenças, ideais e valores e, sobretudo, sobre seu papel na sociedade. Faz necessário empreender esforços em busca de restituir à Didática o seu papel de mediação entre os conhecimentos técnico-científicos e os teórico-práticos inerentes ao trabalho docente, tomando a realidade do cotidiano escolar como ponto de partida. A Didática é uma disciplina imprescindível para a formação docente, uma vez que possui um corpo de conhecimentos próprios, que não é e nem pode ser importado de outras áreas do conhecimento. Seu objeto de estudo é a prática pedagógica – o “como fazer” – porém este só tem sentido quando entrelaçado ao “para que fazer” e ao “porque fazer”.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

123

REFERÊNCIAS ANDRÉ, M.E.; OLIVEIRA, M.R.N.S. Alternativas do ensino da didática. Campinas: Papirus, 1997

BRASIL, Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Conselho Pleno. Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia. Resolução CNE/CP nº 1, de 15 de maio de 2006. Publicada no Diário Oficial da União em 16 de maio de 2006.

CANDAU, V. M. Rumo a uma nova Didática. 18ª ed. Petrópolis: Cortez, 2008. _________. (Org.). A didática em questão. Petrópolis, Vozes, 1997.

CHAVES, E. O. C. O curso de Pedagogia: um breve histórico e um resumo da situação atual. 2004. Disponível em http://www.chaves.com.br/TEXTSELF/MISC/pedagogia.htm. Acesso em 18/04/11.

CRUZ, G. B. da. 70 anos do Curso de Pedagogia no Brasil: uma análise a partir da visão de dezessete pedagogos primordiais. Educ. Soc., Campinas, vol. 30, n. 109, p. 1187-1205, set./dez., 2009.

FURLAN, C. M. A. História do curso de Pedagogia no Brasil: 1939-2005. 2008. 14p. Disponível em http://www.pucpr.br/eventos/educere/educere2008/anais/pdf/164_885.pdf. Acesso em 16/03/11.

GATTI, Bernadete. Formação de Professores no Brasil: características e problemas. Educação e Sociedade, Campinas, v. 31, n. 113, p. 1355-1379, out.-dez. 2010 Disponível em http://www.cedes.unicamp.br

LIBÂNEO, J. C. Didática. São Paulo, Cortez , 1994. _________, José Carlos. Conteúdos, formação de competências cognitivas e ensino com pesquisa: unindo ensino e modos de investigação. Cadernos Pedagogia universitária – Universidade Católica de Goiás, out.2009.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

124

MARTELLI, A. C.; MANCHOPE, E. C. P. A história do curso de Pedagogia no Brasil: da sua criação ao contexto após LDB 9394/96. Revista Eletrônica de Ciências da Educação, v. 3, n. 1, 21p. 2004. Disponível em http://revistas.facecla.com.br/index.php/reped/article/view/517. Acesso em 24/04/11.

MARTINS, P. L. O.. O campo da didática: expressão das contradições das práticas. in Trajetórias e processos de ensinar e aprender: didática e formação de professores. XIV ENDIPE, 2008.

NARITA, S. Notas de pesquisa de campo em Psicologia Social. Psicologia Social, Porto Alegre, v. 18, n. 2, p. 25-31, maio/ago 2006.

OLIVEIRA, P. M. de S. Formação pedagógico-didática de professores do curso de pedagogia e desempenho docente. Dissertação de Mestrado em Educação 2009, Universidade Católica de Goiás, Goiânia 2009.

TORETTAZEN, Eliesér. Pedagogia da Terra: A Formação do Professor semterra. Dissertação de Mestrado em Educação 2006, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória - ES 2006.

GABRIELA C. S. MONTEIRO - Mestre em Educação pela UNESA/RJ-2012, Pós-Graduada em Psicopedagogia e Docência Superior pela UCAM e Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal Fluminense (1997). Atualmente é Orientadora Pedagógica da Prefeitura Municipal de Maricá, Professora Assistente II da Universidade Severino Sombra e Profª Inspetora Escolar SEEDUC/RJ.

HELENICE MAIA GONÇALVES - Pós Doutora em Educação: Psicologia da Educação/PUC-SP e FCC/SP, Doutora em Educação/UFRJ, Mestre em Ed. Brasileira/PUC-RJ, Especialista em Dificuldades de Aprendizagem (IPSP-RJ) e Bacharel em Pedagogia/USP. Atualmente é professora na Pós Graduação

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

125

(Mestrado e Doutorado em Educação) e graduação em Pedagogia da UNESA/RJ.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

126

OS ESQUEMAS RETÓRICOS PREDOMINANTES NO PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO Claudia Helena Azevedo Alvarenga [email protected], UNESA e UFRJ Tarso Bonilha Mazzotti [email protected], UNESA

RESUMO Em 2014 foi sancionado o Plano Nacional da Educação, que estabelece legalmente as metas para a próxima década com relação à educação escolar. Este documento apresenta os acordos, constituídos por determinação legal, acerca do que se diz preferível para a escolarização pela sociedade brasileira. A análise retórica deste documento permite examinar os raciocínios que buscam estabelecer as ações educativas, ao expor os valores afirmados e onde

se

sustentam

neste

contexto.

Os

discursos

se

estruturam

fundamentalmente em clichês e slogans fundamentados na repetição, amplificação e hipotitose como figuras predominantes.

Palavras chaves: Políticas Públicas; Legislação educacional; Retórica.

INTRODUÇÃO No Brasil, é da competência do Estado promover o ensino escolar em todo o território nacional visto que nas disputas em torno de como deveria ocorrer a educação escolar, predominaram as ideologias de centralização do processo de escolarização, desde a década de 1930, alternando maior e menor grau de centralidade (MAZZOTTI, 2008). Disto decorre o predomínio do exame de legislações tanto para as esclarecer quanto para orientar as ações com relação ao processo e percurso da educação escolar. Na última década, com a crescente utilização dos meios virtuais e do universo digital, o próprio Governo oferece canais que buscam prestar serviços e informar a sociedade acerca das ações governamentais neste campo. A finalidade é facilitar a comunicação entre a sociedade e o Estado. Assim, é possível acessar informações acerca

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

127

dos planos e ações na área da escolarização pelo Portal do Ministério da Educação (MEC).6 Recentemente foi aprovada a Lei nº 13.005, de 25 de Junho de 2014, que sancionou o Plano Nacional de Educação (PNE), o qual está disponível no sítio eletrônico do Ministério da Educação (MEC). Esta Lei estabelece as metas para a próxima década no que tange à educação escolar (BRASIL, 2014a). O menu que dá acesso ao PNE apresenta quatro itens conexos. Nosso interesse para esta comunicação se limita ao item “Conhecendo o PNE”7, que apresenta a Lei nº 13.005, propriamente dita, e o Caderno Digital das 20 metas deste Plano. Nossa análise se restringe ao exposto no Caderno Digital8, uma vez que cada meta estabelecida é seguida de um texto que a justifica. Sendo assim, os argumentos apresentados para cada meta permitem a exposição dos raciocínios, bem como dos acordos, dos objetos de crença e de representação referente ao que se considera preferível para a educação escolar, bem como os raciocínios que promovem a adesão.

FUNÇÃO DA ANÁLISE RETÓRICA Por meio da análise retórica, focalizam-se as técnicas discursivas e seus efeitos de persuasão, influência ou rejeição sobre o auditório, além dos significados dos argumentos. O PNE é uma deliberação acerca de decisões para o futuro da educação escolar, o que nos remete a um dos lugares sociais nos cenários de debate, dados pela função do auditório, descritos no campo da retórica por Aristóteles em Retórica, que é o da oratória deliberativa (BILLIG, 2008; PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005). A aprovação de uma Lei é decorrente de intensas discussões cujos debatedores buscam influenciar uns aos outros com suas argumentações e a análise do proposto expõe o que se diz preferível. Portanto, os documentos aprovados condensam o que é admitido pelos auditórios e organizam as condutas que orientam as ações dos grupos. Para Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 74), a definição do que seja objeto de acordo é ampla, pois abarca ainda as noções de "objetos de crença 6

Disponível em: . Acesso em: 11 mar. 2015. Disponível em: . Acesso em: 13 mar. 2015. 8 Disponível em: . Acesso em: 13 mar. 2015. 7

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

128

ou de adesão”. Igualmente o acordo abrange não apenas a escolha das premissas, ou seja, a formulação dos pontos de partida para início de qualquer debate

cujo

valor

também

é

argumentado,

mas

igualmente

a

sua

apresentação. Em meados do século XX, Perelman e Olbrechts-Tyteca pretenderam sistematizar as técnicas argumentativas que visam persuadir, a partir do resgate da retórica antiga proposta por Aristóteles, o que resultou na publicação do Tratado da argumentação: a nova retórica, em 1958. Nesta obra, os autores categorizam dois grupos de acordos relativos ao auditório que pretendem alcançar (universal e particular) e que operam as premissas: (1) os objetos de acordo que ponderam acerca do real (fatos, verdades e presunções) e pretendem ser válidos para todos e cada um, caracterizando o auditório universal; (2) os que ponderam acerca do preferível (valores, hierarquias e lugares do preferível), identificado com um determinado ponto de vista, o que caracteriza a noção de auditório particular. A concepção de auditório e sua amplitude, se universal ou particular, é relativa à busca incessante do orador pela adesão dos interlocutores às premissas de seus argumentos. Este aspecto apresenta também as questões relativas aos tênues limites entre gêneros discursivos. As decisões acerca do futuro requerem a revisão e a reafirmação dos valores que são comuns a orador e auditório no presente, o que

evidencia

a

confluência

dos

gêneros

discursivos

nas

práticas

comunicativas: o retórico, que argumenta pela disputa da adesão do auditório; e o epidítico, que argumenta para afirmar e fortalecer os laços de comunhão do grupo (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005). A análise retórica permite a apresentação dos raciocínios, isto é, a exposição dos objetos de acordo, dos temas controversos e de seus esquemas. Também possibilita o conhecimento das técnicas discursivas mais influentes em determinado contexto de debate, bem como das atitudes dos interlocutores frente às incompatibilidades que se apresentam. Por fim, se o auditório pode rejeitar ou admitir determinadas proposições, e os acordos se sustentam na adesão dos ouvintes, que é presumida pelo orador, pode-se afirmar que o corpus de objetos de acordo de determinado grupo se apoia em um fator de caráter psicossocial, uma vez que as negociações para os estabelecimentos de acordos se assentam sobre representações e crenças II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

129

que os grupos sociais têm acerca do mundo (BILLIG, 2008; PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005). Daí, a relevância de apresentar a análise retórica da Lei nº 13.005, que determina o Plano Nacional de Educação (PNE), uma vez que o documento aprovado é material empírico dos acordos constituídos e permite uma exposição preliminar do conjunto de desejáveis acerca da educação escolar.

AS 20 METAS Os 20 itens elencam as "metas estruturantes para a garantia do direito à educação básica com qualidade” (BRASIL, 2014b, p. 9), destacado com tipografia em negrito no documento original. As seis metas iniciais tratam do acesso ao ensino, e da ampliação e continuidade do atendimento escolar e das oportunidades de escolarização em vários níveis, valorizando os sistemas que incluem todos, isto é, minorias ou desfavorecidos de todo o tipo (econômico, intelectual,

racial

etc.).

A

noção

de

“universalização”

é

recorrente,

compreendida como uma necessidade. Meta 1: universalizar, até 2016, a educação infantil na préescola para as crianças de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade e ampliar a oferta de educação infantil em creches de forma a atender, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das crianças de até 3 (três) anos até o final da vigência deste PNE (BRASIL, 2014b, p. 9). Meta 2: universalizar o ensino fundamental de 9 (nove) anos para toda a população de 6 (seis) a 14 (quatorze) anos e garantir que pelo menos 95% (noventa e cinco por cento) dos alunos concluam essa etapa na idade recomendada, até o último ano de vigência deste PNE (BRASIL, 2014b, p. 9). Meta 3: universalizar, até 2016, o atendimento escolar para toda a população de 15 (quinze) a 17 (dezessete) anos e elevar, até o final do período de vigência deste PNE, a taxa líquida de matrículas no ensino médio para 85% (oitenta e cinco por cento) (BRASIL, 2014b, p. 10). Meta 4: universalizar, para a população de 4 (quatro) a 17 (dezessete) anos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, o acesso à educação básica e ao atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino, com a garantia de sistema educacional inclusivo, de salas de recursos multifuncionais, classes, escolas ou serviços especializados, públicos ou conveniados (BRASIL, 2014b, p. 11).

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

130

Meta 5: alfabetizar todas as crianças, no máximo, até o final do 3º (terceiro) ano do ensino fundamental (BRASIL, 2014b, p. 10). Meta 6: oferecer educação em tempo integral em, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das escolas públicas, de forma a atender, pelo menos, 25% (vinte e cinco por cento) dos(as) alunos(as) da educação básica (BRASIL, 2014b, p. 10).

Os raciocínios que versam acerca da universalidade afirmam o lugar da quantidade pela superioridade da maior quantidade como mais útil, eficaz e benéfica. Este é um lugar genérico, amplamente admitido pelos interlocutores, que costuma sustentar as democracias e o senso comum, logo, os acordos (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005). As três metas subsequentes seguem com o mesmo tema, porém, a ênfase é na elevação da qualidade e no aumento de índices de desempenho, além da diminuição de desigualdades entre subgrupos de brasileiros, por exemplo, negros e não negros. Meta 7: fomentar a qualidade da educação básica em todas as etapas e modalidades, com melhoria do fluxo escolar e da aprendizagem de modo a atingir as seguintes médias nacionais para o Ideb: 6,0 nos anos iniciais do ensino fundamental; 5,5 nos anos finais do ensino fundamental; 5,2 no ensino médio (BRASIL, 2014b, p. 10). Meta 8: elevar a escolaridade média da população de 18 (dezoito) a 29 (vinte e nove) anos, de modo a alcançar, no mínimo, 12 (doze) anos de estudo no último ano de vigência deste Plano, para as populações do campo, da região de menor escolaridade no País e dos 25% (vinte e cinco por cento) mais pobres, e igualar a escolaridade média entre negros e não negros declarados à Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (BRASIL, 2014b, p. 11). Meta 9: elevar a taxa de alfabetização da população com 15 (quinze) anos ou mais para 93,5% (noventa e três inteiros e cinco décimos por cento) até 2015 e, até o final da vigência deste PNE, erradicar o analfabetismo absoluto e reduzir em 50% (cinquenta por cento) a taxa de analfabetismo funcional (BRASIL, 2014b, p. 10).

Duas metas discorrem acerca da educação voltada para a formação profissional em nível técnico (BRASIL, 2014b, p. 10). Meta 10: oferecer, no mínimo, 25% (vinte e cinco por cento) das matrículas de educação de jovens e adultos, nos ensinos

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

131

fundamental e médio, na forma integrada à educação profissional. Meta 11: triplicar as matrículas da educação profissional técnica de nível médio, assegurando a qualidade da oferta e pelo menos 50% (cinquenta por cento) da expansão no segmento público.

As metas de números 12 a 14 tratam da ampliação ao acesso ao ensino universitário nos níveis de graduação e pós-graduação (BRASIL, 2014b, p. 13). Meta 12: elevar a taxa bruta de matrícula na educação superior para 50% (cinquenta por cento) e a taxa líquida para 33% (trinta e três por cento) da população de 18 (dezoito) a 24 (vinte e quatro) anos, assegurada a qualidade da oferta e expansão para, pelo menos, 40% (quarenta por cento) das novas matrículas, no segmento público. Meta 13: elevar a qualidade da educação superior e ampliar a proporção de mestres e doutores do corpo docente em efetivo exercício no conjunto do sistema de educação superior para 75% (setenta e cinco por cento), sendo, do total, no mínimo, 35% (trinta e cinco por cento) doutores. Meta 14: elevar gradualmente o número de matrículas na pósgraduação stricto sensu, de modo a atingir a titulação anual de 60.000 (sessenta mil) mestres e 25.000 (vinte e cinco mil) doutores.

Com exceção da última meta (nº 20), que trata do crescente aumento de investimento econômico na educação chegando a 10% do Produto Interno Bruto (PIB) ao final de dez anos, e da meta 19, que aborda o envolvimento e a participação da comunidade escolar em projetos político-pedagógicos, as metas de número 15 a 18 estabelecem orientações a respeito do profissional que ensina na escola, o professor. Propõe a valorização da carreira por meio de formação em cursos de graduação específicos e pós-graduação, e da existência de um plano de carreira e de melhores salários. “Fomentar a qualidade”, “elevar o número e a taxa”, “oferecer no mínimo”, “triplicar as matrículas”, “ampliar a proporção” - todos esses termos postos como ações a serem feitas são recorrentes no documento e expõem os esquemas próprios dos argumentos de superação dados pela utilização de hipérboles cuja expressão exacerbada tem a função de “dar uma direção ao pensamento, orientá-lo na apreciação dessa direção e, somente de modo indireto, dar uma indicação sobre o termo que importa” (PERELMAN;

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

132

OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 330-31). Os argumentos da superação se estruturam na continuidade e na progressão de um juízo de valor, de modo que cada colocação seja aproveitada para dar seguimento ao caminho ilimitado em uma certa direção. Esses discursos operam como clichês, dos quais trataremos mais adiante, e reforçam as representações que estabelecem o percurso escolar como determinável e determinado (MAZZOTTI, 2008).

ESQUEMAS RETÓRICOS QUE CONFEREM PRESENÇA E COMUNHÃO O texto do Anexo da Lei, além de estabelecer as 20 Metas a serem alcançadas, detalha estratégias para cada uma delas. No sítio eletrônico do MEC, também é possível obter o Caderno Digital que, com recursos visuais diferenciados, reapresenta as 20 metas do PNE contextualizadas e articuladas com índices e resultados de pesquisas em educação, além de outras legislações, e seus respectivos links de acesso, que visam esclarecer as proposições do Plano. A feitura de um Caderno Digital para reapresentar a Lei, prima facie parece-nos uma ideia redundante. Afinal, qual é o sentido de confeccionar um caderno que expõe novamente o que já foi promulgado por Lei, apenas com acréscimo de informações subjacentes ao tema? No entanto, a repetição, como figura que aumenta a presença, é uma estratégia que os retóricos conhecem bem, visto que a reexposição busca influenciar por uma apresentação que se julga eficaz, ao “fazer que prevaleçam certos esquemas interpretativos, a inserir os elementos de acordo num contexto que os torne significativos e lhes confira o lugar que lhes compete num conjunto” (PERELMAN; OLBRECHTSTYTECA, 2005, p. 161). Nesta perspectiva, o Caderno Digital visa persuadir o auditório de ouvintes/leitores e proporcionar uma interpretação da Lei, ao selecionar os dados adaptando-os para ampliar a adesão aos argumentos apresentados. As técnicas retóricas utilizadas ficam evidentes: (1) a palavra insistente e repetitiva, o que amplifica o discurso ao reapresentá-lo, trazendo à presença os elementos a que se deseja dar ênfase; (2) como desdobramento, a evocação de detalhes, que discorre acerca de fatos, verdades e condições sobre as quais as hipóteses argumentativas conduzem às deduções (tal qual na hipótese científica), em que as partes citadas nos reporta a uma argumentação quase II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

133

lógica, característica da amplificação; (3) os recursos visuais planejados, desde cores e tipografias variadas (ora destacam frases e expressões, ora os textos específicos da Lei, ora os que somente fornecem esclarecimentos ou dados complementares etc.) até a capa com a foto que sugere a biblioteca de uma escola, com um close-up de um menino negro, sorridente e compenetrado, que lê um livro cujo título “Yoté, o jogo da nossa história” refere-se ao resgate de uma brincadeira de matriz cultural africana. Estes são alguns meios para trazer à presença (hipotitose) o que se admite como relevante no contexto da apresentação da Lei. Trazer à presença é um dado de caráter psicológico, pois esta noção pretende mobilizar o leitor e atuar sobre sua sensibilidade. Neste caso, pretende influenciar para conquistar a adesão ao projeto de um futuro concebido, o que se diz desejável como política do Estado para a Educação pela sociedade (auditório universal). No Caderno Digital, a ordem dos argumentos ou arranjo (dispositio) das partes são tratados do mesmo modo que o discurso retórico tradicional, já conhecido na retórica antiga (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005): (1) introdução ou exórdio; (2) narração, quando há a exposição dos fatos; (3) prova, fornecida pela apresentação de dados de pesquisa; (4) refutação, no caso trata-se de uma refutação simulada para reforçar a adesão às premissas do documento; (5) epílogo ou conclusão. O Caderno tem uma capa cuja descrição já apresentamos e visa provocar uma disposição receptiva no leitor. A seguir, o texto introduz o tema sob o título Apresentação. Embora o exórdio, à primeira vista, pareça algo de menor relevância na exposição do discurso, pois ainda não aborda a matéria do discurso, Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) destacam que todos os retoristas antigos se ocuparam de estudar seu efeito persuasivo. É na introdução que o orador pede consentimento para ser ouvido e se apresenta à interlocução “para dar a conhecer sua competência, sua imparcialidade, sua honestidade” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 561). Assim, a Apresentação introduz o que é característico de um exórdio eficaz para capturar a atenção. Primeiramente, são assinaladas algumas questões relacionadas à educação que colocam desafios à sociedade no intuito de mostrar que existe um problema que interessa a orador e auditório, logo, afirma a existência de valores compartilhados: “o presente documento (…) traz II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

134

algumas análises e informações sobre cada uma das metas nacionais com o objetivo de aproximar, ainda mais, agentes públicos e sociedade em geral dos debates e desafios relativos à melhoria da educação(…)” (BRASIL, 2014b, p. 56). A seguir, explicita o propósito do documento, ou seja, informa o leitor para aproximá-lo da problemática: “o texto contextualiza cada uma das 20 metas nacionais com uma análise específica, mostrando suas interrelações com a política pública mais ampla, e um quadro com sugestões para aprofundamento da temática” (BRASIL, 2014b, p. 6). Ao final, conclui dirigindo-se à emoção para envolver todos em uma ação (BRASIL, 2014b, p. 6).

Vivemos atualmente um momento fecundo de possibilidades, com bases legais mais avançadas e com a mobilização estratégica dos setores públicos e de atores sociais importantes neste cenário. É possível realizar um bom trabalho de alinhamento dos planos de educação para fazermos deste próximo decênio um virtuoso marco no destino do nosso País.

ESQUEMAS RETÓRICOS IDENTIFICADOS COM SLOGANS As figuras de presença e comunhão como objeto de acordo entre orador e auditório frequentemente recorrem a clichês, uma vez que auditório e orador encontram-se pactuados por meio de valores e crenças compartilhadas. No entanto, os clichês apenas são apercebidos como tais, caso o auditório não se identifique com tais valores ou, pelo menos, vislumbre uma inadequabilidade de certas colocações por parte do orador. Segundo Perelman e OlbrechtsTyteca (2005), os clichês, usualmente expressos em máximas e provérbios e que abrangem figuras repetitivas e estereotipadas, também são apresentados como ilustração, e condensam os saberes do grupo e os meios eficazes de promovê-los, servindo muitas vezes de premissas para o desenvolvimento de raciocínios. Nesta perspectiva, nossa análise sustenta que outra característica do texto deste Plano é o discurso que se apoia em clichês e slogans (lema), tal como definido por Reboul (1984). Aqui é necessário descartar o significado pejorativo de caráter publicitário atribuído pelo senso comum ao termo slogan para considerá-lo no sentido ideológico cujo objetivo é impactar o auditório, neste caso por meio de hipérboles e argumentos de autoridade que visam persuadir o interlocutor para a adesão a uma causa. Assim, a eficácia do

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

135

slogan e do clichê se sustenta na dissimulação da sua função e de suas propriedades que abrangem o anonimato, a concisão e a polissemia. Reboul (1984), diferentemente de Perelman e Olbrechts-Tyteca, distingue o slogan do clichê. Enquanto o slogan tem por natureza a palavra chocante e impactante, o clichê recorre à impressão de clareza do exposto pela familiaridade. Assim, um argumento recorrente no documento busca justificar as metas propostas com base em informações numéricas e de caráter estatístico conforme alguns exemplos a seguir (BRASIL, 2014b): Resultados de estudos e pesquisas desenvolvidos nos mais distintos países, entre eles o Brasil, há muito vêm atestando a importância da educação das crianças (…) (p. 16) Ao observarmos os dados do Censo da Educação Básica de 2013 – que indicam que o Brasil possui 41.141.620 alunos matriculados (…) (p. 22) Dados do Censo Demográfico de 2010 revelaram que 15,2% das crianças brasileiras com 8 anos de idade que estavam cursando o ensino fundamental eram analfabetas (p. 26). Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/IBGE, 2012), o percentual de pessoas com no mínimo 12 anos de estudo entre 18 e 24 anos de idade é de 29,4% e das pessoas com 25 ou mais anos de idade é de apenas 4,1% (p. 33). Segundo estudo do IPEA (2012), a taxa de desocupação do homem negro é de 6,7%, e a da mulher negra 12,6%, enquanto a de homem e mulher não negros é de 5,4% e 9,3%, respectivamente (p. 34). Atualmente, as matrículas públicas totalizam apenas 27%, enquanto as privadas perfazem 73%, conforme o Censo da Educação Superior de 2012 (p. 41).

Nesta perspectiva, o dado numérico institui um argumento de autoridade, visto que o número é considerado um meio de prova científica. Segundo Boudon (1990, p. 14) mesmo “uma ideia duvidosa ou falsa tem maior probabilidade de se instalar - em nossa sociedade pelo menos - quando dotada de uma caução científica”. Sendo assim, é factível observar que o argumento que busca adesão se apoia na representação de cientificidade em que os números são considerados termos de caráter unívoco, expressão da verdade, logo, falam por si e são inquestionáveis. A influência pelo prestígio, posta pela expressão “estudos e pesquisas desenvolvidos nos mais distintos países, entre eles o Brasil” e as instituições IPEA, IBGE, entre outras, como autoras dos estudos feitos, busca mobilizar a II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

136

partir de pressupostos que se apoiam nas crenças daqueles que se pretende persuadir (REBOUL, 1984). Desse modo, reforçam-se os argumentos de autoridade, visto que afirmam-se fatos que nada provam. Que pesquisas são essas? Quais foram as escolhas de amostras e os critérios adotados? Quais os limites? Os números têm o intuito de impressionar as mentes. O anonimato também fica garantido pelas instituições reificadas como oradores autorizados, e “as pesquisas” asseguradas pelas instituições apresentam o consensual, neste caso, atestado pela verdade dos números que determinam a evidência do exposto de modo conciso. A polissemia, dada pelo excesso de significados de um slogan (REBOUL, 1984), fica acentuada pela polêmica que descreve uma situação vergonhosa e inconcebível na área da educação para, em seguida, apresentar o próprio PNE como meio para se alcançar um determinado fim, ou seja, a melhoria da educação. Por fim, outro distintivo de um slogan eficaz é constranger a refutação pela defesa de juízos de valor de caráter universal e abstrato que calam os opositores. Afinal, como se opor à proposição de universalização e melhoria de qualidade da educação escolar?

CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta breve exposição evidencia a relevância da análise retórica para as ciências sociais que lidam diretamente com a linguagem e os significados dos discursos. Assim, a construção dos argumentos que sustentam os documentos escritos, que criam as regras de funcionamento e orientam as ações dos grupos, é resultado de intensa atividade retórica, que consiste no conhecimento acerca dos "princípios segundo os quais atitudes são mantidas ou mudadas, como o público resiste a sugestões ou as aceita, como indivíduos que desejam ter um impacto devem se apresentar (...)" (BILLIG, 2008, p. 111). Os esquemas argumentativos utilizados com mais frequência no documento se estabelecem predominantemente sobre o lugar da quantidade em que o maior número é superior ao menor, e o todo é melhor que a parte. A escolha dos dados se apoia basicamente em figuras que buscam aumentar o sentimento de presença, como: a amplificação do discurso pelo uso da palavra insistente e repetitiva, especialmente no que diz respeito à apresentação de números e estatísticas; a hipotitose pela evocação de detalhes do que se II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

137

admite como relevante no contexto da apresentação da Lei e pelos recursos visuais que buscam atuar sobre a sensibilidade do leitor (auditório) intensificando sua adesão. Estes esquemas argumentativos fundamentam o discurso consensual, característicos dos slogans que permeiam os discursos na educação escolar brasileira.

REFERÊNCIAS BILLIG, Michael. Argumentando e Pensando: uma abordagem retórica à psicologia social. Tradução: Vera Lúcia Mello Joscelyne. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. (Coleção Psicologia Social). 408p. Título original: Arguing and Thinking. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. BOUDON, Raymond. L'art de se persuader des idées fausses, fragiles ou douteuses. Paris: Fayard, 1990. Tradução para uso escolar por T. Mazzotti, 2014. BRASIL. Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação - PNE e dá outras providências. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Brasília, DF, 26 de junho de 2014, Edição Extra, nº 120A, seção 1, ISSN 1677-7042, p. 1-8. 2014a. Disponível em: . Acesso em: 11 jan. 2015. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Articulação com os Sistemas de Ensino. Planejando a Próxima Década. Conhecendo as 20 Metas do Plano Nacional de Educação. Brasília: MEC/SASE, 2014. 55p. 2014b. Disponível em: . Acesso em: 11 jan. 2015. MAZZOTTI, Tarso Bonilha. Doutrinas Pedagógicas, máquinas produtoras de litígios. Marília - SP: Poïesis Ed., 2008. 128 p. PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. Tradução: Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 653 p. REBOUL, Olivier. Le langage de l’éducation. Analyse du discours pédagogique. Paris: Presses Universitaires de France (PUF), 1984 (Col. L’Édu cateur). Tradução: T. Mazzotti, 2000. Tradução não publicada.

CLAUDIA HELENA AZEVEDO ALVARENGA - Professora de música no Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

138

regente do Coral da ASA e bolsista da CAPES como doutoranda pelo PPG em Educação da Universidade Estácio de Sá (UNESA).

TARSO BONILHA MAZZOTTI - Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo. Professor Titular de Filosofia da Educação pela UFRJ. Atualmente é pesquisador associado da Fundação Carlos Chagas e professor adjunto da Universidade Estácio de Sá (UNESA).

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

139

TECNOLOGIAS DIGITAIS E FORMAÇÃO DE PROFESSORES NA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL: PROBLEMATIZANDO ASPECTOS TÉCNICOS, ÉTICOS E ESTÉTICOS Oldênia Fonseca Guerra – UFPI/CTBJ [email protected] Renato José de Oliveira – UFRJ [email protected]

RESUMO O presente trabalho pretende trazer uma reflexão a cerca do processo de formação de professores em articulação com as tecnologias de informação e comunicação digitais que, de tão presentes na vida moderna, estão remodelando identidades, culturas e práticas pedagógicas nos espaços intra e extraescolares. Como os professores, especialmente aqueles da educação profissional, estão se apropriando das tecnologias digitais em suas práticas pedagógicas é a questão direcionadora desse estudo que pretende problematizar aspectos relativos á dimensão técnica dessa utilização, as implicações éticas que essa inserção suscita, e, ainda, as múltiplas relações e sensações que o vasto universo digital pode possibilitar. Para isso, procuramos analisar o discurso atual produzido em torno do processo de formação docente, articulado com uma análise do papel que as chamadas tecnologias da inteligência desempenham na atualidade, tomando o campo da educação profissional como espaço de contextualização para as nossas reflexões. Este estudo, fruto de uma pesquisa de doutorado em educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, está sendo desenvolvida no Colégio Técnico de Bom Jesus, uma escola vinculada à Universidade Federal do Piauí. Como referencial teórico metodológico, nos apoiamos em autores como Pierre Lévy (2011, 2013), Perrenoud (2002, 2013), Nóvoa (2013, 2014), Perelman & Tyteca (2005), Oliveira

(2012,

2014), dentre outros.

As considerações que

apresentamos com base na discussão levantada não objetivam apresentar um modelo adequado de uma prática pedagógica articulada com as novas tecnologias digitais, mas contribuir para colocar essa problemática na agenda do discurso pedagógico atual.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

140

Palavras Chave: Formação de Professores; Tecnologias Digitais; Educação Profissional; Ética; Argumentação

INTRODUÇÃO Discutir as questões que perpassam a educação profissional na atualidade tem sido uma das nossas preocupações recorrentes na última década, período que coincide com um acentuado crescimento dessa modalidade de ensino em todo o país. Vivenciamos, recentemente, um conturbado período de disputa política onde a educação profissional, por meio de seus programas complementares como o PRONATEC (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e ao Emprego) ocupava centralidade nos discursos dos candidatos que disputavam a presidência da república, o maior cargo na hierarquia da política brasileira.

A retórica apresentada pelos

principais candidatos pôs em destaque uma modalidade de ensino que fora, por muito tempo, negligenciada no debate acadêmico nacional e acentuou, também, os desafios e as contradições que vem marcando a educação profissional ao longo dos tempos. Dentre os muitos desafios que instigam a educação profissional no momento presente, está a questão da formação de professores para a utilização das novas tecnologias de informação e comunicação no ambiente escolar e as implicações éticas que estas acarretam no contexto da formação e da produção profissional. A questão da formação de professores abarca uma amplitude temática considerável e tem sido levantada sob diferentes abordagens nos estudos realizados no campo das ciências sociais. Ao optarmos nesta pesquisa por fazer uma reflexão sobre como as Tecnologias de Informação e Comunicação TIC (mais especificamente as tecnologias digitais) estão sendo incorporadas à prática pedagógica desenvolvida no espaço da educação profissional, o fazemos a partir de uma perspectiva sociocultural, entendo que esse processo é reflexo de todo um contexto que tem marcado a história da formação e da prática docente ao longo do tempo. Mesmo justificando que a abordagem desenvolvida é uma escolha pessoal (nem tanto, pois é resultante de um conjunto heterogêneo de autores/obras estudadas), ela não nega as múltiplas

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

141

abordagens que caracterizam o discurso sobre formação na atualidade. Constituiu-se em torno desse campo um debate significativo nos anos recentes, conforme sinaliza estudiosos desse campo (NÓVOA, 2014; TARDIF, 2013, PERRENOUD, 2013). No entanto, ao investigarmos como se inserem as TIC no processo formativo dos professores, vemos que essa discussão tem sido pouco enfatizada na agenda escolar em geral, considerando especialmente a forma como as tecnologias digitais se fazem presente na vida particular das pessoas, o que nos faz acreditar que, de alguma forma, elas também estão adentrando os muros escolares. Arriscamos inferir que o silenciamento verificado no interior dos programas acadêmicos9 possa estar relacionado a uma concepção que via a introdução das novas tecnologias na educação como uma reprodução do que foi o tecnicismo num passado recente, onde a ênfase do processo pedagógico era dada aos meios instrumentais para transmissão dos conteúdos, esvanecendo, segundo tal concepção, a escola da sua missão de “ensinar e politizar o educando”. Essa corrente ganhou “terreno” no interior das IES e estendeu sua influência até a educação profissional, vista como uma educação que reproduzia a lógica da técnica a serviço da exploração do trabalhador assalariado. Quando trazemos a questão das TIC para o processo formativo do professor da educação profissional, vemos uma lacuna ainda maior, o que reforça nossa preocupação em trazer à tona essa discussão como forma de problematizar uma realidade que se apresenta a cada dia mais conectada com as mudanças que vêm ocorrendo nos espaços intra e extraescolares.

SER PROFESSOR EM CONTEXTOS DIGITAIS Vivemos hoje numa sociedade em que o conhecimento e a informação são veiculados numa rapidez impressionante. Diante de um mundo em rápidas e constantes transformações, o desenvolvimento científico tecnológico configura-se

como

impulsionador das mudanças que

vêm

marcando

significativamente esta nova era. De acordo com Lévy (2011), vivenciamos uma destas épocas limítrofes na qual toda a antiga ordem das representações 9

Em levantamento feito no banco de teses da CAPES, verificamos que constavam apenas 225 trabalhos listado no descritor TIC e formação de professores e apenas 17 sobre TIC e educação profissionalizante.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

142

e dos saberes oscila para dar lugar a imaginários, modos de conhecimento e estilos de regulação social ainda pouco estabilizados; um destes raros momentos em que, a partir de uma nova configuração técnica, quer dizer, de uma nova relação com o cosmos, um novo estilo de humanidade é inventado. Nessa nova configuração sócio cultural, o papel das tecnologias, sobretudo das tecnologias digitais, não pode ser desconsiderado. Não se trata de fazer nem uma apologia nem uma crítica ostensiva às mídias eletrônicas em geral,

mas

principalmente,

diante

do

reconhecimento

de

que

estes

instrumentos de comunicação estão invadindo os diferentes espaços de convivência humana, analisar como o contexto educacional está incorporando essas inovações tecnológicas ao processo ensino aprendizagem desenvolvido dentro e fora da escola. Toda vez que surge uma grande invenção (ou inovação) tecnológica, como o telégrafo, o telefone, a televisão o computador e a internet, por exemplo, as pessoas tendem a ficar encantadas com a tecnologia em si. No entanto, depois que passa a euforia do encantamento, o foco da atenção voltase para as possibilidades de usos dessas tecnologias. Quais os benefícios e os riscos que elas podem nos trazer? Quais as formas mais eficientes e interessantes de utilizá-las? Que implicações éticas e possibilidades estéticas elas proporcionam? Neste sentido, Aquilo que identificamos de forma grosseira como novas tecnologias recobre na verdade a atividade multiforme de grupos humanos, um devir coletivo complexo que se cristaliza sobretudo em volta de objetos matérias, de programas de computador e de dispositivos de comunicação. A qualidade do processo de apropriação, ou seja, a qualidade das relações humanas, em geral é mais importante do que as particularidades sistêmicas das ferramentas (LÉVY, 2011b:28)

Assim, podemos perceber que a historia das ciências e das técnicas encontra-se

inteiramente atrelada às significações que

lhes é

dada

socialmente, culturalmente. Nenhuma técnica tem uma significação intrínseca em si mesma. Uma inovação tecnológica é, principalmente, uma criação de significações. A tecnologia não é nem boa, nem má, nem neutra, nem imprescindível. Ela é uma dimensão material recortada pela mente, pelas

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

143

subjetividades humanas. É nesse sentido, que a utilização das TIC na educação está revestida de princípios éticos e perpassados pela dimensão estética. Por isso, “tanto para a perdição quanto para a salvação, o homem dispõe da ciência e da tecnologia: tudo depende do sentido e do uso responsável que delas fará” (GOERGEN, 2011, p. 120). Esse uso, cada dia mais socialmente difundido, inevitavelmente está chegando ou logo chegará a boa parte das salas de aula, nos diferentes níveis escolares. Resguardadas as diferenças existentes entre escolas que sequer possuem energia elétrica e outras que já estão alfabetizando as crianças utilizando lap top como instrumento obrigatório, pudemos perceber que a utilização de tecnologias digitais, apesar de ainda pouco presente nos discursos pedagógicos da atualidade, está cada vez próxima de professores e alunos no ambiente escolar. No Colégio Técnico de Bom Jesus, lócus escolhido para desenvolver a presente pesquisa, constatamos que a “invasão” de tecnologias digitais na sala de aula como notebook, tablete, smartphone, trazidas em grande parte pelos próprios alunos, tem sido apontado como um dos fatores que motivou os professores a utilizá-los na sua prática pedagógica, como podemos perceber nestes depoimentos: Apesar de ter cursado licenciatura, o nosso curso não nos preparou p usar essas tecnologias. Aprendi na prática e os alunos, eles te obrigam a utilizar. Eles já utilizam no dia a dia, então a gente acaba tendo que usar tecnologias habituais como computador, data show, notebook nas aulas mais teóricas e nas aulas práticas. Já é algo que eles usam habitualmente, então a gente acaba trazendo para a sala de aula como forma de incentivar melhor a discussão (orador 09). Fui alvo do incentivo de alunos para me adaptar ao uso das diversas tecnologias, como por exemplo as redes sociais existentes na atualidade. Tive que usar por iniciativa dos meus alunos. Agora aprender a usar o nosso curso (ciências da computação) não ensina (orador 10).

A aproximação das tecnologias de informação e comunicação com o campo educacional não é recente. Há bastante tempo se tem procurado incrementar o trabalho pedagógico utilizando recursos como rádio e televisão em projetos como MINERVA, MOBRAL, TV Escola, Telecurso segundo Grau, os quais visavam alcançar uma parcela da população que estava fora do

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

144

sistema regular de ensino. Nos anos mais recentes, com a ampliação do acesso ao computador e à internet, os setores público e privado têm investido em projetos de educação à distância, como os desenvolvidos por meio da Universidade Aberta do Brasil/ UAB, e e-tec Brasil, que oferece cursos técnicos à distância para alunos de todo o país por meio de instituições públicas e privadas credenciadas pelo MEC. Todavia, os recursos tecnológicos sempre suscitaram discussões a cerca dos aspectos éticos que acompanham os seus usos. Seja qual for a área de aplicação de técnicas e tecnologias (medicina, física, jornalismo, educação) o estudo da ética é sempre necessário, em virtude de que as pessoas se orientam por comportamentos de acordo com a realidade vivida em cada contexto. Considerando que a evolução das tecnologias da inteligência (LÉVY, 2011) tem remodelado o comportamento do ser humano no chamado ciberespaço, a ponto de se criar uma cibercultura, refletir sobre as implicações éticas do uso das TIC no âmbito da educação profissional apresenta-se como um desafio enorme, sobretudo se considerarmos a inexistência de normas de conduta ou um código de ética regulador em relação à internet, por exemplo. Mas o que pode ser entendido por comportamento ético no universo digital? Esse questionamento reiteradamente levantado por professores e alunos sempre que essa temática é posta em discussão conduz a uma reflexão oportuna para situar nossos discursos e práticas escolares em relação a essa questão bem como para compreender os tempos hipermodernos em que vivemos (LIPOVÉTSKY, 2004). Ao fazer uma análise do discurso pedagógico da atualidade, Oliveira (2011) conclui que não há um consenso a respeito da conceituação do que seja ética. Todavia, apresenta algumas pistas para um entendimento dessa questão. Para ele, a palavra ética surgiu na língua grega, com Aristóteles, cujo propósito seria o estudo do ethos. Por sua vez, esse termo possui duplo significado, podendo significar “as propriedades do caráter, isto é, as virtudes e os vícios e, em segundo caso, significa hábito ou costume”. Ao traduzir para o latim as obras de Aristóteles, Cícero criou então o termo moralis (moral) como correspondente do objeto de estudo aristotélico. A partir desta modificação

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

145

linguística, muitos estudiosos têm tentado conceituar os termos de forma separadas ou então como indissociáveis, como o faz Oliveira (idem) por entender que “ética e moral são tratadas como instâncias intercambiáveis que se referem aos mesmos objetos: valores, hierarquia de valores, princípios e hábitos que orientam as ações do homem no contexto de suas múltiplas relações” (p. 42). A pluralidade de concepções sobre as questões éticas no contexto das múltiplas relações estabelecidas no campo da virtualidade pode tornar-se um terreno fértil para práticas que privilegiam o diálogo, a argumentação, mas também podem estimular excessos que preocupam pais e educadores. Todavia, no desejo sempre presente do ser humano de estabelecer princípios e valores, devemos ter cuidado para não incorrer na tentação de pensar uma ética prescritiva, que dispensa o diálogo e o direito a controvérsia. O posicionamento marcado por Oliveira (2012) retrata bem essa preocupação: Na medida em que defendemos uma educação ética/moral cujos fins são a solidariedade e o respeito mútuo, entendemos que as práticas pedagógicas centradas no prescritivismo não contribuem para realiza-los. Isso porque as prescrições acerca do que é ou não ético não costumam ser problematizadas, levando o aluno a reproduzir a visão de mundo do professor, mas não necessariamente a agir eticamente. Nesse sentido, elas assumem um caráter doutrinário, e toda doutrinação, tenha a natureza que tiver- política, ética, ou religiosa, é uma prática de caráter monista que coloca o auditório na condição de objeto, cerceando-o como sujeito das próprias ações (p. 125).

Por estar contextualizada histórica, social e culturalmente, a concepção de ética tem perdido cada vez mais o estatuto de universalidade que a impregnou por muito tempo e ganhado novas abordagens no contexto atual, o que a torna uma noção confusa como bem disse Perelman (1996). Nesse contexto de mudanças céleres, concordamos com Goergen (2011) quando ele diz que o “código ético continuará sempre ambivalente, sem condição de harmonizar-se definitivamente. Não há garantias para a conduta humana. Precisamos aceitar a ideia de que o homem e a sociedade são sempre imperfeitos, cheios de ambiguidade e contradições” (p. 103). Nesse sentido, o

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

146

que se concebe como relativo à ética está continuamente sendo (re)construído sócio culturalmente. Se não há mais garantias para a conduta humana nem o chão firme das verdades absolutas, como assentar os alicerces que permitirão formar o educando de hoje? isso nos faz acreditar que precisamos colocar em discussão os valores que balizam os hábitos e as atitudes, sobretudo os exibidos pelos discentes da educação básica, em processo de formação identitária, onde o “certo” e o “errado” se impõe, muitas vezes, de forma autoritária e discriminatória. É nesse sentido que Oliveira (2014), embasado no pensamento de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca (2005), apresenta a ética argumentativa como um contraponto às visões dogmáticas dos juízos de valores, esperando que essa “contribua para o exercício coletivo do convívio democrático entre os diferentes sujeitos envolvidos nas práticas educativas” (p. 107). Essa concepção permite abordar problemas éticos a partir da relação dialógica estabelecida entre aquele que emite uma opinião (orador) e aquele que a quem esta se dirige (auditório), entendendo que esses papeis são permutáveis num processo argumentativo. É exatamente no contexto da educação profissional, desenvolvida sob o novo paradigma das tecnologias digitais, o qual impõe mudanças radicais na relação com a aquisição dos saberes e com o desenvolvimento de competências profissionais, que se levanta a discussão a cerca dos limites e possibilidades que essa virtualização oportuniza. Aliás, uma das competências que se coloca ao professor do século XXI é justamente “enfrentar os deveres e os dilemas éticos da profissão”, (PERRENOUD, 2002, p. 133), tarefa para a qual, em geral, não nos achamos devidamente preparados, conforme apontam pesquisas realizadas por estudiosos desse campo. Com isso, “o trabalho com a ética, em diferentes espaços sociais, requer daquele que se coloca como orador o confronto entre suas convicções mais claras (filosóficas, religiosas, políticas, estéticas) e as convicções do outro, do auditório, o que representa constantes desafios” (OLIVEIRA, 2011, p.165). A ética, dentro do espaço escolar ou dentro do universo tecnológico, não difere muito da ética fora desses contextos, pois parte do pressuposto que o

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

147

indivíduo, onde quer que esteja, estará circundado por costumes, valores e normas de conduta específicos de uma sociedade ou cultura. Cabe à este agir de acordo com seus princípios e valores morais, sejam estes considerados como “certos ou errados”, “para o bem ou para o mal”. O julgamento dessas ações, ressaltamos, precisa passar por um amplo processo de discussão onde não cabe a alguém isoladamente, mesmo que revestido de uma autoridade delegada, prescrever o que é ou deixa de ser ético. Negociar as distâncias entre o que pensa os diferentes sujeitos é uma tarefa da qual a escola, enquanto instituição, e o professor, enquanto agente institucional, não devem se furtar. Talvez pela própria complexidade em se definir taxativamente o que seja ética, especialmente no novo espaço da cibercultura, não exista um consenso com relação aos comportamentos, atitudes e valores estabelecidos nesse campo. A argumentação mais frequente que se ouve é que “é preciso ter bom senso” no uso das tecnologias digitais. Para isso, aponta-se o respeito ao próximo como elemento estruturante da conduta desejada. Retornando ao pensamento de oliveira(2011), ele sinaliza que é preciso buscar o meio termo, que no caso das atividades da alma não se caracteriza como média aritmética entre extremos, mas em ponto de transcendência único, determinado pela razão. Trata-se de um meio termo em relação ao próprio sujeito e não em relação ao objeto, o que sem dúvida traz, como reconhece Aristóteles, dificuldades em sua determinação (p.46).

Esse meio termo, como sugere este pesquisador, está diretamente relacionado ao saber ser, um dos pilares norteadores da educação neste novo século, que por sua vez está associado às relações interpessoais que se estabelecem no ambiente sócio cultural, que vai desde a nossa casa, a escola, a internet, o trabalho. Afirmar os valores éticos e estéticos que norteiam essas relações é uma responsabilidade das instituições de formação, em especial do CTBJ que descreve como missão “formar, por meio da educação, cidadãos éticos,

solidários

e

competentes,

para

intervir

com

criticidade

e

responsabilidade, na realidade em que vivem”. Empurrar a responsabilidade

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

148

da escola para casa ou vice-versa não contribui para alcançar a missão pretendida, conforme demonstra o discurso desse professor: Com relação à parte ética, acho que os alunos ainda estão um pouco imaturos. Por exemplo, a moda agora é o whats app. O facebook está caindo em desuso e ai o pessoal não tem aquela ética de usar o whatsapp de maneira correta. Ficam postando fotos sem roupa, namorando, coisas banais ficam usando para fazer a propaganda, se achando, então eles ainda não têm essa noção de que isso pode acabar prejudicando eles, do que é correto ou não nesse ambiente virtual. Principalmente a família deveria ensinar os princípios éticos. A educação se traz de casa. Muita gente coloca a educação na escola. Na verdade ela vem de casa, aqui na escola, ela apenas direciona para onde o aluno vai. Você não vai corrigir algo mal executado desde a infância, então se a educação já falha em casa, não vai ser a escola que vai corrigir (orador 05)

Nesse sentido, a prática pedagógica da escola, ou dos seus professores, é reveladora da educação moral que subjaz àquela instituição ou professor. Mais do que apresentar discursos argumentativos a favor de princípios como democracia, respeito, verdade, justiça, tolerância, igualdade, liberdade, fraternidade no ambiente escolar, ou no mundo virtual, uma prática alicerçada nesses valores pode promover mais significativamente o desenvolvimento de espíritos comprometidos com os valores éticos desejáveis para essa nova configuração social. Ressaltamos, no entanto, a importância de se discutir tais princípios e as formas de conduta que permeiam o ambiente escolar, numa perspectiva dialógica, evitando recair em atitudes dogmáticas e discriminatórias. Na medida em que a sociedade passa por profundas transformações, o que se entende por ética e moral também vai sendo reconstruído. Não cabe mais ao professor absolutizar o que é “certo” ou “errado”, sustentado apenas por valores universais que devem balizar o comportamento de todos. Por isso, Perelman enfatiza que “os diferentes princípios de moral não são contestados por homens que pertencem a meios de cultura diferentes, mas são interpretados de modos diversos, não sendo jamais definitivas essas tentativas de interpretação” (2005, p. 297). Em razão dessa elasticidade que envolve as questões éticas, propõe a argumentação como uma alternativa para discutir as diferentes concepções de mundo dos interlocutores e para firmar acordos, II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

149

ainda que provisórios. Dessa forma, uma prática ancorada na argumentação pode contribuir para modificar a concepção que exclui o aluno como sujeito (orador) dos processos dialógicos existentes (ou que deveriam existir) no interior da escola. Mesmo concordando que a significação dada à ética não é a mesma para todos os sujeitos, não podemos relativizar e achar que os valores e princípios que norteiam nosso comportamento seja meramente circunstancial. Pensamos que Retirar da ética o caráter universal e absoluto que a caracteriza como monismo não significa proclamar o relativismo axilológico; é, antes, um meio de chamar a atenção para o fato de que toda construção humana é controversa e, portanto, se torna objeto de dúvidas e questionamentos (OLIVEIRA, 2014, p. 108).

Lévy (2011) destaca que nem a salvação nem a perdição residem na técnica. Sempre ambivalentes, as técnicas projetam no mundo material nossas emoções, intenções e projetos. Os instrumentos que construímos nos dão poderes, mas, coletivamente responsáveis, a escolha está em nossas mãos. Cada grande inovação em informática abriu a possibilidade de novas relações entre homens e computadores. Códigos de programação cada vez mais interativos, comunicação em tempo real, novos princípios de interface, ambientes multifacetados, tudo, de uma forma ou de outra, reorganiza a visão de mundo de seus usuários e modifica suas condutas, suas sensibilidades, suas percepções estéticas. Nessa mesma linha de pensamento, Goergen (2011) apesar de expor um pensamento um tanto quanto pessimista em relação à chamada pósmodernidade, admite que

Não se trata, evidentemente, de diabolizar a mídia, fazendo dela o judas de todos os males. Os meios de comunicação podem ser benéficos ou nocivos à sociedade a depender dos objetivos a que servem. De resto, o mundo contemporâneo já não se concebe sem eles. Impõe-se então promover a responsabilidade da mídia e a consciência dos consumidores como dois movimentos que se imbricam e condicionam (2011, p. 126).

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

150

De fato, acreditamos que as atitudes morais em relação ao uso que se faz dos meios de comunicação sempre dependerão da autonomia do sujeito, daquilo que direciona sua consciência, sua subjetividade, suas paixões. Mas não podemos negligenciar a responsabilidade social implícita nesse processo, onde uma parcela significativa vai recair sobre a família e a escola, conforme percebemos nos argumentos apresentados pelos oradores desta pesquisa. Portanto, mesmo que a decisão seja individual, ela reflete um condicionamento social, uma vez que “ética, designa, antes de tudo, isso: acostumar-se ao ethos, aos costumes e valores vigentes na polis ou comunidade, como diríamos hoje” (GOERGEN, 2011, p. 104).

CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do exposto, vimos que o avanço das tecnologias digitais não interfere apenas na ecologia cognitiva desse novo tempo. Elas formatam novas identidades, novas subjetivações humanas. Há toda uma dimensão estética ou artística na concepção das máquinas e dos programas que suscita o envolvimento emocional, estimula o desejo de explorar novos territórios existenciais e cognitivos, conecta o computador a movimentos culturais, revoltas, sonhos. Longe de ser um terreno árido, a tecnointeração envolve pessoas com emoções, desejos, projetos pessoais e profissionais, sejam estes movidos por uma ética do “bem” ou do “mal”. Essa dimensão estética da tecnologia suscita emoções diversas nas pessoas, seja entre aquelas que se declaram “viciadas” em tecnologias, seja entre aquelas que as repelem veementemente. É nessa profusão de signos comunicacionais, recheados por linguagens híbridas que mesclam palavras, imagens, sons, vídeos, luzes, cores, ritmos que o educando encontra sua “praia”. Essas múltiplas formas de expressão e comunicação podem e devem ser contempladas no projeto político pedagógico da escola. Compreender os processos de interação e comunicação presentes na nova conjuntura educacional coaduna com o pensamento freireano que dizia que a educação é comunicação, é diálogo, na medida em que não é II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

151

transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados. Acreditamos que a reformulação e a ressignificação da prática pedagógica do professor, considerando domínio técnico e as implicações éticas e estéticas que o uso das tecnologias digitais suscita no âmbito escolar, passa por um novo processo de formação docente e pela gestão compartilhada dessa problemática, onde, O tratamento das questões éticas, na escola, pede um trabalho integrado entre docentes, gestores, e responsáveis pelos alunos. A construção de uma escola plural, democrática e comprometida com processos formativos voltados para a constituição de uma visão crítica sobre a realidade passa pelo respeito às diferenças de natureza filosófica, política, religiosa, etc., que caracterizam os sujeitos, pela compreensão de que há distâncias a negociar, pois o contexto escolar não é imune às relações de poder hierarquizadas existentes na sociedade, nem às influências das redes de interesse que as permeiam (OLIVEIRA, 2014, p. 113).

Dessa forma, um novo cenário se apresenta em relação à prática docente, no qual o professor é chamado a exercer um papel ativo na constituição de sua identidade profissional, capaz de responder às diversas exigências e à multiplicidade de situações que marcam a atividade pedagógica neste contexto. Assim, refletir sobre a própria prática, enquanto docente e especialmente, enquanto docente da educação profissional e utilizar e administra as questões relativas ao uso das novas tecnologias são algumas das habilidades requeridas aos professores em tempos de hipermodernidade. Tempos estes em que o professor não é mais visto como um “transmissor” de conteúdos, mas como um orientador da busca pelas informações e conhecimentos, os quais estão disponíveis em suportes digitais a partir de um simples clik. Sem dúvida, problematizar essas questões não é uma tarefa fácil, contudo parece-nos necessária se quisermos construir uma escola plural, democrática e mais sintonizada com as demandas apresentadas por essa enorme rede de pessoas que estão construindo um admirável mundo digitalizado.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

152

REFERÊNCIAS GOERGEN, Pedro. Educação para a responsabilidade social: pontos de partida para uma nova ética. In: Ética e Formação de Professores: política, responsabilidade e autoridade em questão. São Paulo: Cortez, 2011.

LÉVI, Pierre. As Tecnologias da Inteligência: O futuro do pensamento na era da informática. Tradução de Carlos Irineu da Costa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2011.

LIPOVEYSKY, Gilles. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarola, 2004.

NÓVOA, António. O regresso dos professores. Disponível https://escoladosargacal.files.wordpress.com/.../acessado em 22/11/2014.

em

NÓVOA, António(org). Vidas de Professores. Porto, Portugal: Porto Editora, 2013.

OLIVEIRA, Renato José. Reflexões sobre a Ética na Educação Escolar. Educação/Santa Maria, vol. 39, n. 11, p. 105-116, jan/abr 2014.

____, A ética no discurso pedagógico da atualidade. Niterói: Intertexto, 2011.

____, Contribuições da racionalidade argumentativa para a abordagem da ética na escola. Educação e pesquisa, São Paulo, v.38, n.1, p.115-130, 2012.

PERELMAN, Chaïm. OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

da

PERRENOUD, Philippe. Desenvolver competências ou Ensinar saberes. A escola que prepara para a vida. Tradução Laura Solange Pereira. Porto Alegre: Penso, 2013.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

153

TARDIFF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

OLDÊNIA FONSECA GUERRA - Licenciada em Letras, especialista em Metodologia da educação, Mestre em Educação, Doutoranda em Educação pela UFRJ, professora de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico da Universidade Federal do Piauí, Lotada no Colégio Técnico de Bom Jesus. Email: [email protected].

RENATO JOSÉ DE OLIVEIRA - Graduação em Engenharia Química e em Química; Doutor em Educação pela PUC/RJ e Mestre em Educação pelo IESAE/FGV. Professor Associado do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ; Pesquisador do Grupo de Pesquisa sobre Retórica e Argumentação na Pedagogia e do Grupo de Pesquisas Sobre Ética na Educação.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

154

TRABALHO DO PROFESSOR/SABERES DIDÁTICOS PEDAGÓGICOS É A ANTENA E O BOMBRIL

Viviane Corrêa Duro de Queiroz [email protected] Unesa Helenice Maia Gonçalves [email protected] Unesa

RESUMO O objetivo deste estudo foi identificar as representações sociais de saberes didático-pedagógicos de professoras dos anos iniciais do ensino fundamental à luz da teoria moscoviciana. Inicialmente foi realizada pesquisa piloto por meio de entrevistas com três professoras que atuavam nesse nível de ensino. A partir da análise das entrevistas foram propostas três categorias: formação docente, trabalho docente e saberes didático-pedagógicos, que orientaram a elaboração de um roteiro para a realização de três grupos focais e entrevistas com professoras de três escolas públicas municipais de Realengo, zona oeste do estado do Rio de Janeiro. Concluiu-se que para essas professoras esses saberes compõe uma rede de conhecimentos que vai sendo construída e reconstruída a partir das experiências vividas no cotidiano escolar, da troca entre colegas e entre professor e aluno(s), e que modificam o trabalho docente. Pode-se dizer que “prática” e “troca” são elementos que organizam uma rede de significados agregados aos saberes didático-pedagógicos, o que evidencia que estes saberes são articulados, construídos no dia a dia pelo professor durante seu trabalho, ocorrendo no fazer docente. Palavras chave: Saberes docentes; Representações Sociais; Professores do Ensino fundamental

INTRODUÇÃO Nos anos 80 do século passado, tem início no Brasil o processo de universalização do ensino fundamental e o acesso e a permanência dos alunos nas escolas é assegurado. Nas duas décadas seguintes, as diversas reformas

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

155

operacionalizadas na educação envolveram mudanças nos vários níveis e modalidades do ensino, com vistas à melhoria da qualidade da educação. A aprovação da Lei de as Diretrizes e Bases da Educação Nacional na década de 1990 indica o fim da primeira geração de reformas educacionais e as diretrizes curriculares, os sistemas de avaliação, os parâmetros curriculares e as políticas de financiamento marcam o início da segunda, cujo traço marcante é a busca do crescimento econômico com equidade social (MELLO, 2000). Esse enfoque passa a exigir um novo perfil de profissional e as políticas públicas se voltam à reconfiguração da formação de professores para a educação básica, entendida como fundamental para recompor a educação naquelas bases. Nesta perspectiva, as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de Pedagogia determinaram que a licenciatura em Pedagogia se destinasse à formação de professores para trabalhar na Educação Infantil e anos iniciais do Ensino fundamental, nos cursos de ensino médio, na modalidade normal, de educação profissional na área de serviços e apoio escolar e em outras áreas nas quais sejam previstos conhecimentos pedagógicos (BRASIL/CNE, 2006). Estes conhecimentos podem ser entendidos como os saberes construídos pelos professores em seu processo de formação inicial e continuada e que são necessários à sua prática pedagógica (NUNES, 2001). O professor tem como função a educação e o produto do seu trabalho é o aprendizado do aluno, o que exige do docente uma multiplicidade de saberes para que realize seu ofício. Tardif, Lessard e Lahaye (1991, p. 218), consideram que “a relação dos docentes com os saberes não se reduz a uma função de transmissão dos conhecimentos já constituídos; sua prática integra diferentes saberes, com os quais o corpo docente mantém diferentes relações” Para estes autores, é possível a produção de um conhecimento prático, pois o professor, na prática docente, mobiliza uma pluralidade de saberes que contribuem para seu desenvolvimento profissional. Os saberes utilizados pelos professores seriam os saberes das disciplinas, os saberes curriculares, os saberes da formação profissional e os saberes da experiência. Os professores são sujeitos de um saber e de um fazer, sendo compreendidos

como

profissionais

que

adquirem

e

desenvolvem

conhecimentos a partir da prática e no confronto com as condições da profissão. Como afirma Dias da Silva (1997), é necessário investigar seus II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

156

saberes de referência, suas próprias ações, crenças e pensamentos para compreender como eles, durante a formação e atuação constroem e reconstroem seus saberes de acordo com suas necessidades e experiências profissionais. Tais saberes podem se configurar como objeto de representação social quando compartilhados pelos professores. Portanto, a Teoria das Representações Sociais parece ser um caminho adequado para fundamentar este estudo, por ser tratar de “um sistema de valores, ideias e práticas” (MOSCOVICI, 2009, p. 21). Os saberes pedagógicos, compostos pelos saberes da experiência, dos saberes teóricos (conhecimento) e do saber didático-pedagógico – sendo este último foco dessa pesquisa - são entendidos como saberes estruturantes do conhecimento

profissional;

o

saber

que

antecede

a

produção

de

conhecimentos sobre a prática, que dá possibilidades ao docente de estabelecer um diálogo entre a teoria e a prática sendo, sobretudo, um conhecimento didático, metodológico, cultural: a base para a docência. Voltamos nossa atenção especificamente aos saberes didáticopedagógicos que se referem aos processos, às formas através das quais os conhecimentos

específicos

(os

conteúdos

curriculares,

os

saberes

disciplinares) se produzem na realização do trabalho docente; ao modo como estes conhecimentos precisam ser organizados para efetivar a produção do conhecimento do aluno. Por isso interessa investigar como professores que atuam nos anos iniciais no Ensino fundamental reconstroem e utilizam saberes oriundos da formação profissional em seu cotidiano de sala de aula.

REFERENCIAL TEÓRICO: TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES sociais A base da teoria proposta por Serge Moscovici é o pensamento social, como este se desenvolve e como se enraiza no comportamento de um grupo, “ajudando a forjar a identidade grupal e o sentimento de pertencimento do indivíduo ao grupo” (ALVES-MAZZOTTI, 2004, p. 21). Sua pesquisa se volta ao conhecimento do senso comum e como o conhecimento científico é apreendido pelos leigos. Em seu primeiro estudo buscou os significados que o público francês atribuía à psicanálise, procurando entender “como, através da assimilação dos conceitos psicanalíticos, os sujeitos sociais construiriam uma

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

157

nova realidade da vida psíquica, a sua e a dos outros” (HERZLICH,1991, p. 24). Para Moscovici (2012, p. 54), “representar uma coisa, um estado, não é só desdobrá-lo, repeti-lo ou reproduzi-lo, é reconstituí-lo, retocá-lo, modificarlhe o texto”. Como ele explica, a representação social tem duas faces indissociáveis como os dois lados de uma folha de um papel: a face figurativa e a face simbólica. Cada figura possui um sentido e cada sentido corresponde uma figura. A partir dessa ideia, ele desenvolveu os conceitos de objetivação e ancoragem, definidos como processos formadores de uma representação social, fundamentais para seu entendimento, porque têm “a função de recortar a figura e carregá-la de sentido, e de inscrever um objeto em nosso universo, isto é, naturalizá-lo e dar-lhe contexto inteligível, ou seja, interpretá-lo” (MOSCOVICI, 2012, p. 60). Objetivação é a transformação do abstrato em concreto; aquilo que está na mente é transformada em alguma coisa que está no mundo real. Nesse processo, o que é abstrato, desconhecido, vai ser transformado em algo mais acessível. É uma forma de dar nome a alguma coisa ou classificá-la. A ancoragem se refere à relação que o sujeito faz entre o que é estranho com o já conhecido, dar nome a “alguma coisa” num processo que não é neutro. O novo é integrado numa rede de categorias de pensamento já existente. A ancoragem se refere à função de duplicar uma figura por um sentido, interpretá-lo; à transformação de algo estranho e intrigante em familiar e conhecida da realidade do grupo, atribuindo ao objeto algo seu, classificandoo, dando-lhes nomes, estabelecendo alguma relação com o objeto após sua categorização. Denise Jodelet deu continuidade ao estudo de Moscovici e enfatizou que as representações sociais devem ser estudadas “articulando elementos afetivos, mentais e sociais, e integrando, ao lado da cognição, da linguagem e da comunicação, as relações sociais que afetam as representações e a realidade material, social e ideal (das ideias) sobre a qual elas vão intervir” (citado por ARRUDA, 2002, p. 138). Jodelet (2001, p. 22) define representações sociais como “uma forma de conhecimento socialmente elaborada e partilhada com um objetivo prático e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

158

social”. Ela explica que as representações sociais são importantes porque guiam o modo de nomear e agir no mundo, que é feito de objetos, pessoas, fenômenos que são compartilhados pelos sujeitos. As representações sociais são formas de pensamento prático orientadas para a comunicação entre as pessoas, facilitando a melhor compreensão, ajudando no domínio do ambiente social e designando uma forma de pensamento social. Entendemos que os professores elaboram representações sociais sobre seu trabalho, “construções simbólicas que levam as marcas do tempo, do espaço e das relações que definem e articulam as diferentes partes da totalidade social na qual aquele se opera” (MADEIRA, 2000, p. 03). É nestas construções que os saberes docentes se estabelecem tornando-se “um conjunto de saberes que o professor possui não só no que diz respeito aos conhecimentos já produzidos que ele transmite, mas também ao conjunto de saberes que integram a sua prática e com os quais ele estabelece diferentes relações” (BORGES, 1998, p. 51). Buscar as representações sociais de saberes didático-pedagógicos elaboradas por professores dos anos iniciais do ensino fundamental permitirá compreender como estes saberes foram construídos, são mobilizados numa determinada situação em sala de aula e implicam o trabalho docente.

SABERES DIDÁTICO-PEDAGÓGICOS Estudos que se debruçaram sobre fenômenos educativos e ações que os professores desenvolvem durante suas atividades práticas promoveram a criação da categoria saberes docentes “que busca dar conta da complexidade e especificidade do saber constituído no (e para o) exercício da atividade docente e da profissão” (MONTEIRO, 2001, p. 130). O saber dos professores está relacionado à sua vida pessoal, pré e pósdocência, às representações que construíram em relação à formação, à profissão, aos alunos, aos colegas, à legislação. Eles adquirem saberes de diversas fontes, da “formação inicial e contínua dos professores, currículo e socialização escolar, conhecimento das disciplinas a serem ensinadas, experiência na profissão, cultura pessoal e profissional, aprendizagem com os pares etc.” (TARDIF; RAYMOND, 2000, p. 212) e ao longo de sua vida pessoal e profissional. Em outras palavras, esses saberes vêm carregados de II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

159

diferentes marcas que modelam seu trabalho. Em nosso estudo, partimos do conceito de saberes da formação profissional elaborado por Tardif (2002) e, especificamente, aqueles que se referem às metodologias e às práticas de ensinar, os saberes didáticopedagógicos. Este é um saber articulado, construído cotidianamente pelo professor durante seu trabalho; ocorre na ação, a partir do próprio fazer do professor. Interessa-nos porque na história da formação dos professores foram sempre trabalhados desarticulados dos demais e por não se limitar ao saberfazer ou somente ao saber didático. Os saberes didático-pedagógicos se referem ao confronto entre prática, pesquisa e diálogo, sendo seu o objetivo promover a discussão da prática pedagógica. As representações sociais que os docentes dos anos iniciais do ensino fundamental têm de saberes didático-pedagógicos e que orientam suas práticas, concorrem para a construção de uma realidade comum a este conjunto de professores e prescrevem suas práticas pedagógicas. Por esta razão é relevante investigar tais representações com a expectativa de contribuir para a melhoria do ensino nas escolas.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Inicialmente foi realizada uma pesquisa piloto para que pudéssemos elaborar o roteiro para os grupos focais que seriam realizados com os professores. Para isso foi preparado um instrumento que foi aplicado a três docentes que também atuavam nos anos iniciais do ensino fundamental, mas que não lecionavam nas escolas selecionadas. Este instrumento continha perguntas relacionadas ao perfil do respondente e questões relativas à atuação do professor, focalizando: formação, experiência, saber didático e saber pedagógico, troca entre pares e dificuldades no cotidiano escolar. A análise do conteúdo das respostas dadas pelas professoras orientou a elaboração do roteiro de grupo focal. Esse roteiro continha 16 perguntas que se referiam à formação e ao trabalho docente, aos fazeres e saberes dos professores. As categorias de análise foram previamente estabelecidas a partir dos objetivos da pesquisa, da literatura sobre o tema e do referencial teórico adotado: (1) Formação Docente; II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

160

(2) Trabalho Docente; e (3) Saberes didático-pedagógicos, uma vez que estes aspectos estão profundamente imbricados na constituição da identidade profissional docente. Os grupos focais foram realizados em três escolas públicas municipais localizadas no bairro de Realengo, na zona oeste do Rio de Janeiro, contando com um total de 21 professores: oito professores na Escola Municipal Tenente Coronel PM Eduardo Villaça, seis da Escola Municipal Getúlio Vargas e sete da Escola Municipal Afonso Henrique Saldanha. A técnica do grupo focal foi utilizada porque seu principal objetivo é reunir informações que contribuam para compreender percepções, crenças, comportamentos sobre um determinado tema, ou seja, para que pudéssemos apreender, em condições de discussão, qual ou quais eram os procedimentos usuais dos grupos de professores e depreender que noção de saberes didático-pedagógicos circulava nesses grupos. Para aprofundar a compreensão dos sentidos agregados aos saberes didático-pedagógicos pelos professores durante as discussões em grupo focal, foram realizadas entrevistas individuais semi-estruturadas com 10 professoras que participaram daquelas sessões. Estas docentes foram escolhidas de acordo com sua participação nos grupos focais, isso é, foram escolhidas aquelas que mais se manifestaram durante as discussões. Foi elaborado um roteiro de entrevista contendo questões que visavam explorar as “falas” das professoras durante a realização dos grupos focais, para que pudéssemos melhor compreender os sentidos que elas agregavam a saberes didáticopedagógicos. A análise de todo o material coletado durante a realização dos grupos focais e entrevistas foi feita segundo a proposta de análise de conteúdo (cf. BARDIN, 2006) a partir das três categorias propostas: formação docente, trabalho docente e saberes didático-pedagógicos.

CONCLUSÃO Com relação à formação docente, as docentes que participaram dessa pesquisa destacaram o conhecimento adquirido ao longo da vida e o conhecimento da realidade dos alunos. No primeiro tipo de conhecimento, estão presentes a formação inicial e a continuada; no segundo, a importância II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

161

de entrar em contato com o mundo dos alunos, conhecer a eles e suas famílias, e também a comunidade onde vivem para trazer para a sala de aula o contexto onde se inserem os alunos. De acordo com elas, é na prática que se desenvolvem como profissionais e a prática faz grande diferença no seu trabalho. Afirmaram que é necessário mudar a formação inicial, pois o que é ali ensinado é pouco para que o futuro profissional precisa para trabalhar. Para mudar a formação, elas sugerem adaptações na teoria, aproximando-a da realidade das escolas e, consequentemente, da sociedade em que estas estão inseridas. Quanto ao trabalho docente, este foi relacionado ao ato de ensinar, dar aulas e trocar com colegas. Para essas professoras, a criação de estratégias com o intuito de promover um “bom ensino” é uma função do professor e a criatividade é entendida como uma forma de “variar” o ensino do conteúdo que devem “passar” para os alunos. O trabalho docente é uma atividade constante e o ato de planejar é inerente ao seu trabalho, pois, por meio dele, é possível analisar o nível de aprendizagem em que os alunos estão e o grau de dificuldade que pode ser apresentado. De acordo com as professoras, para ensinar não basta só experiência e conhecimentos científicos, mas também os saberes didático-pedagógicos, uma vez que estes saberes possibilitam ao professor dialogar com a teoria e a prática. No que se refere aos saberes didático-pedagógicos, as professoras afirmam que mobilizam diversos saberes para a realização da docência e que quando estão atuando em sala de aula, os saberes didático-pedagógicos se complementam, o que pode evidenciar que estas docentes entendem que estes saberes são articulados, construídos no dia a dia pelo professor durante seu trabalho, ocorrendo no fazer docente. Apontam que a relação entre professor e aluno também compõe os saberes didático-pedagógicos e esta deve ser pautada no diálogo. A troca entre eles, portanto, integra esses saberes, pois não há processo ensino-aprendizagem sem seus personagens principais, alunos e professores. Como elas afirmam, a transmissão do conhecimento deve ser pautada na confiança, afetividade e respeito mútuo. A análise dessa última categoria possibilitou identificar que as professoras parecem saber o que seriam saberes didático-pedagógicos, já que referem às formas pelas quais os conteúdos curriculares se produzem na II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

162

realização de seu trabalho. Consideram que esses conhecimentos precisam ser organizados para efetivar a produção do conhecimento do aluno e que o planejamento é fundamental para que isto ocorra. As professoras elaboraram uma rede de significados sobre os saberes didático-pedagógicos, relacionando o trabalho docente ao ato de ensinar, à troca com os colegas e com os alunos, sendo este um trabalho constante e referente a tudo que se faz na escola. Acreditamos que elas têm uma representação social de trabalho docente, como muitos estudos já mostraram (ALVES-MAZZOTTI, 2008, BARRETO, 2020, SOUSA et al, 2009, entre outros), onde a docência é central na organização deste trabalho. Quanto às representações sociais de saberes didático-pedagógicos pode-se dizer que “prática” e “troca” são elementos que organizam uma rede de significados agregados a esses saberes, o que evidencia que estes saberes são articulados, construídos no dia a dia pelo professor durante seu trabalho, ocorrendo no fazer docente. Podemos inferir que o reinterado distanciamento entre teoria e prática nos cursos de formação, a ênfase na socialização e na convivência social no âmbito do trabalho docente e a falta de articulação entre as disciplinas de formação específicas (conteúdos da área disciplinar) e a formação pedagógica (conteúdos da docência) acabaram por relegar os saberes pedagógicodidáticos a um segundo plano.

REFERÊNCIAS

ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith. Representação do trabalho do professor das séries iniciais: a produção do sentido de “dedicação”. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v.89, n.223, p. 522-534, 2008.

_____. Os sentidos de ser professor. Educação e Cultura Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 01, n. 01, p. 61-73, 2004.

ARRUDA, Angela. Teoria das representações sociais e teorias de gênero. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 117, p. 127-147, 2002.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

163

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2006.

BARRETO, Elba S. de Sá. Trabalho docente e modelos de formação: velhos e novos embates e representações. Cadernos de Pesquisa, v. 40, n.140, p. 427-423, 2010.

BORGES, Celia M. F. Saberes docentes: diferentes tipologias e classificações de um campo de pesquisa. Educação e Sociedade, v. 22, n.74, p. 59-76, 2001.

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CP n. 01 de 15 de maio de 2006. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação

em

Pedagogia,

licenciatura.

Disponível

em:

http://www.mec.gov.br. Acesso em: 03 de julho de 2012.

DIAS-DA-SILVA, Maria Helena G. F. Sabedoria docente: repensando a prática pedagógica. Cadernos de Pesquisa, n. 89, p. 39-47, 1997.

HERZLICH, Claudine. A problemática da representação social e sua utilidade no campo da doença. Physis, Revista de Saúde Caletiva, v. 01, n. 02, p. 2336, 1991.

JODELET, Denise. (Org.) As representações sociais. Rio de Janeiro: EdUerj, 2001.

MADEIRA, Margot. C. Representações sociais de professores sobre a própria profissão: à busca de sentidos. 13p. In: 23ª Reunião Anual da ANPEd. Caxambu, 24 a 28 de setembro de 2000. Anais... Disponível em http://www.anped.org.br/reunioes/23/trabtit2.htm#ge20. Acesso em 23 de junho de 2013.

MELLO, Guiomar. N. Formação Inicial de professores para a educação básica: uma (re)visão radical. São Paulo e Perspectiva, v.14, n. 01, p.98-110, 2000.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

164

MONTEIRO, Ana Maria F. C. Professores: entre saberes e práticas. Educação e Sociedade, ano XXII, n. 74, p. 121-142, 2001.

MOSCOVICI, Serge. A psicanálise, sua imagem e seu público. Petrópolis: Vozes, 2012. _____. Representações sociais:

Investigações em Psicologia Social.

Petrópolis: Vozes, 2009.

NUNES, Celia M. F. Saberes docentes e formação de professores: um breve panorama da pesquisa brasileira. Educação & Sociedade, v. 22, n. 74, p. 2742, 2001.

SOUSA, Clarilza P. et al. (Org.). Representações sociais sobre o trabalho docente. Aveiro: Universidade de Aveiro, 2009.

TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002.

_____; RAYMOND, Danielle. Saberes, tempo e aprendizagem do trabalho no magistério. Educação e Sociedade, v. 21, n. 73, p. 209-244, 2000. _____; LESSARD, Claude; LAHAYE, Louise Os professores face ao saber: esboço de uma problemática do saber docente. Teoria e Educação, n. 4, p. 215-233, 1991.

VIVIANE CORRÊA DURO DE QUEIROZ – Aluna da Univesidade Estácio de Sá

HELENICE MAIA GONÇALVES - Pós Doutora em Educação: Psicologia da Educação/PUC-SP e FCC/SP, Doutora em Educação/UFRJ, Mestre em Ed. Brasileira/PUC-RJ, Especialista em Dificuldades de Aprendizagem (IPSP-RJ) e

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

165

Bacharel em Pedagogia/USP. Atualmente é professora na Pós Graduação (Mestrado e Doutorado em Educação) e graduação em Pedagogia da UNESA/RJ.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

166

A RETÓRICA COMO INSTRUMENTO DE FORMAÇÃO DO CIDADÃO GREGO

Tatiane da Silva [email protected] Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Marcus Vinicius da Cunha [email protected] Universidade de São Paulo

RESUMO Este trabalho apresenta resultados parciais de pesquisa em andamento que pretende explicitar a posição dos Sofistas, especialmente Protágoras e Górgias, a respeito da discussão entre physis (a natureza cuja ordem independe da ação humana) e nómos (a convenção que está relacionada diretamente às decisões humanas), e a maneira pela qual esta discussão incidiu na definição de um novo ideal de formação humana amparado pela retórica. Ao questionarem a pretensão da filosofia em conhecer a verdade última das coisas, os Sofistas afirmaram que as doutrinas ou teorias dependem do que os homens consideram correto; a consideração de que a physis não pode ser fonte de valores permitiu o surgimento do conceito de uma natureza humana que pode ser aprimorada por meio da educação, contradizendo a ideia de um sangue divino como justificativa para educar somente os melhores cidadãos. A educação preconizada pelos Sofistas buscava formar por meio da retórica, tornando o homem capaz de lidar com o mundo sensível, produto do humano, uma vez que o lógos serve de instrumento para aperfeiçoar a natureza humana e integrar o homem na vida social.

Palavras-Chave: Sofistas; Educação Clássica; Retórica

INTRODUÇÃO Entre 450 e 400 a.C., a cidade de Atenas foi cenário de profundas mudanças sociais e políticas e de intensa atividade intelectual e artística.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

167

Dissolveram-se os padrões tradicionais de vida e experiência para dar lugar a novas perspectivas que permitiram o exercício da crítica às crenças e aos valores aceitos pelas gerações anteriores. Foi neste palco que surgiram os Sofistas, que atuaram na Grécia como professores de retórica, pensadores, oradores e intelectuais, especialmente na segunda metade do século V a.C. e início do século IV a.C. O nome Sofista está relacionado às palavras gregas sophos e sophia, comumente traduzidas por sábio e sabedoria, servindo para designar aquele que tem conhecimento de cada um dos problemas que dizem respeito ao homem e à sua posição na sociedade (KERFERD, 2003, p. 45). Por muito tempo os historiadores da filosofia olharam os Sofistas apenas pelos olhos de Platão e Aristóteles, adotando não só as suas informações como também os seus juízos de valor, o que contribuiu para desvalorizar o movimento Sofista (REALE; ANTISSERI, 2007, p. 73). Somente no século XX tornou-se possível realizar a revisão sistemática dos juízos até então emitidos, ocasionando uma reavaliação histórica que levou à conclusão de que os Sofistas representaram um elo essencial na história do pensamento antigo. 10 O “monismo extremado” de Parmênides e seus seguidores, desafiando a evidência dos sentidos e considerando irreal todo o mundo sensível, produziu uma “reação violenta nas mentes empíricas e práticas dos sofistas” (GUTHRIE, 2007, p. 49). Seus questionamentos provocaram uma mudança na reflexão filosófica, que não mais se ocupou com a natureza e a cosmologia, mas com a formação do cidadão e do sábio virtuoso, voltando-se para os temas da política, da ética e da teoria do conhecimento (CHAUI, 2002, p. 129). A preocupação central deixou de ser com a pesquisa do cosmo e com a definição de sua origem, constituição e finalidade, e passou a incidir sobre o homem. Foi o ponto de partida de reflexões que se irradiavam para a sociedade em geral, atingindo a política, a ética, a educação, o direito e a linguagem. A busca do “princípio inicial” (arché) abriu espaço para a investigação do homem em suas relações políticas e existenciais com seus concidadãos; o “natural” (physei) acomodou a seu lado a “convenção” (nómos), a escolha dos homens, enquanto a verdade, antes amparada pelos mitos, pela

10

Ver os trabalhos de Cassin (1990, 2005); Jaeger (2010); Kerferd (2003); Crick (2010a).

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

168

religião e pelos laços comunitários, entrou no “reino da dóxa (opinião) e da Sofia (conhecimentos vivenciados e fruídos como sabedoria)”, na “dimensão do movimento e do tempo” (OLIVEIRA, 1998). Essas mudanças ocasionaram um colapso na tradicional divisão entre inteligência prática e inteligência não prática, que por muito tempo marcou a vida grega. Libertos da crença no sangue divino, os indivíduos puderam usar seu “conhecimento e habilidades para subir na hierarquia social e também para alterar a sua própria estrutura”. Assim, as atenções voltaram-se para o desenvolvimento de um “ideal de inteligência prática”, visando “empregar os recursos do lógos para trazer novos e melhores estados de existência no mundo”; livres das “restrições das castas”, cidadãos e trabalhadores procuraram os “recursos disponíveis para avançar em um mundo incerto e em mudança” (CRICK, 2010b, p. 30).

O QUESTIONAMENTO DA PHYSIS Devido à extensão dos problemas que formulavam e discutiam, os Sofistas colocaram-se em posição de destaque na história do pensamento grego, profundamente envolvidos nos problemas morais e políticos da sociedade e influenciando o pensamento racional de seu tempo. Desse modo, criaram uma “atmosfera de educação multifacetada” cuja “consciência clara, ativa vivacidade e sensibilidade comunicativa” superou até mesmo a dos tempos de Pisístrato (JAEGER, 2010, p. 346-347).11 Os Sofistas introduziram em Atenas o ardor pela retórica e pela dialética e uma visão cética ante a pretensão da filosofia em conhecer a physis como “realidade originária e verdade última de todas as coisas” (CHAUI, 2002, p. 169). Dessa atitude questionadora decorreram mudanças importantes na sociedade grega, tanto no aspecto político quanto no educacional. Para Kerferd (2003, p. 194), seja onde e quando tenha surgido a antítese nómos e physis, devemos ter em mente que ela sempre envolveu um “reconhecimento da physis como uma fonte de valores”. O termo grego physis 11

Pisístrato foi um tirano de Atenas que governou entre 546 a.C. e 527 a.C.; tomou uma série de medidas na agricultura, comércio e indústria que em muito contribuíram para a prosperidade de Atenas.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

169

é comumente traduzido por “natureza” (KERFERD, 2003, p. 189), e nómos é tradicionalmente relacionado a “lei”, “convenção”, até mesmo “costume” (KERFERD, 2003, p. 190); “para os homens dos tempos clássicos”, nómos é “alguma coisa que nomizetai, em que se crê, se pratica ou se sustenta ser certo” (GUTHRIE, 2007, p. 57). Os pensadores que seguiam Parmênides e defendiam a physis como fonte de valores consideravam que as leis inscritas no cosmos eram “princípios naturais governando tudo o que existe”, e delas derivavam as “normas que deveriam reger tanto a vida individual como as estruturas da sociedade” (RODRIGO, 2014, p. 8). Temos um exemplo clássico desta forma nas teorizações de Platão, para quem a justiça e a lei “existem por si mesmas com seus próprios direitos e tudo que podemos fazer é tentar reproduzi-las tanto quanto possível, em nossas relações mútuas” (GUTHRIE, 2007, p.12). Os Sofistas podiam divergir entre si na avaliação e no valor relativo da antítese entre nómos e physis, porém nenhum deles sustentava “que leis, costumes e crenças religiosos humanos eram inabaláveis porque enraizados numa ordem natural imutável” (GUTHRIE, 2007, p. 49). Afirmavam que o natural não poderia e nem deveria estabelecer as regras sociais (nómos), pois o “determinado pelo nascimento é obra do acaso e não pode ser alterado”, enquanto o “definido pelas leis humanas pode ser mudado, é de livre escolha dos homens” (MAZZOTTI, 2010, p. 114). Ao afirmar que “o homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são e das que não são enquanto não são”, Protágoras promoveu uma verdadeira “translação” da “physei a nómos”, reconhecendo as leis como criação humana e aventando a possibilidade de a sociedade ser “alterada por planejamento” e as instituições humanas serem adaptadas “às necessidades do homem, necessidades mutáveis porque determinadas pelo processo histórico” (OLIVEIRA, 1998). Ao sustentar essa “relatividade do conhecimento” e alçar o homem como medida das coisas, Protágoras defendeu que as doutrinas e as teorias dependem apenas do que os homens consideram correto, verdadeiro, desejável (MAZZOTTI, 2011, p. 4), não de um ser idêntico

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

170

que transcende as aparências e pode ser universalmente conhecido por intermédio do pensamento. Protágoras afirma que, em “relação aos deuses, eu não estou em posição de saber se eles existem ou se eles não existem” e que “sobre cada assunto há dois logoi [discursos ou argumentos] opostos”. Vistas como “argumentos práticos e pedagógicos”, tais afirmações possuem o efeito de “mudar nossa atenção do divino para os negócios humanos, do transcendente para a experiência humana, da crença dogmática para o julgamento deliberativo”. A preferência de Protágoras pelo lógos pode ser entendida como “defesa (por intermédio da práxis) de uma nova maneira de pensar o mundo” (CRICK, 2010b, p. 33). A nova maneira de pensar o mundo postulada por Protágoras pode ser também apreciada no Tratado Sobre o não-Ser de Górgias. Ao tomar a ontologia de Parmênides e concluir que o não-Ser é, Górgias demonstra muito mais do que o equívoco desta forma de pensar defendida pelos eleatas, uma vez que, tomada literalmente, a ontologia permite concluir o oposto do que pretendia afirmar, mas também por meio desta crítica Górgias evidencia que à physis e ao Ser imutável dos eleatas se substitui agora o consenso, o nómos que o discurso cria (CASSIN, 1990, p. 76). Para Cassin (1990, p. 239), a discussão acerca da physis e do nómos travada pelos Sofistas contra os seguidores de Parmênides não opõe apenas duas modalidades discursivas, mas dois “modelos de mundo”: um modelo físico, em que se trata de “determinar os princípios da natureza imutável graças a demonstrações conformes a seu desdobramento”, e um modelo político, no qual se discorre sobre “produzir, ocasião após ocasião, valores comuns, permitindo a criação contínua de um consenso” que constitua a identidade da sociedade. Para Protágoras e Górgias, as leis e teorias não são obras da natureza, dos deuses ou de um Ser universal e imutável que o lógos tinha por tarefa dizer, mas formulações resultantes de um “consenso de opinião” (GUTHRIE, 2007, p. 129). Para esses filósofos, “todas as teorias são humanas, suficientemente humanas”, uma vez que o homem é a medida de todas as coisas (MAZZOTTI, 2011, p. 18); “as coisas são ou não são conforme os

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

171

humanos as façam ser ou não ser, ou digam que elas são ou não, segundo o nómos” (CHAUI, 2002, p. 170). Com tal questionamento, os Sofistas abriram terreno para a ideia de que a lei é “instituição meramente humana” que visa ir ao “encontro de necessidades determinadas”, não possuindo “nada de permanente ou sagrado em si”, podendo assim ser contraposta ou à ordem divina ou à ordem natural, ou a ambas (GUTHRIE, 2007, p. 128). Uma vez que as leis, costumes e convenções não fazem parte da “ordem imutável das coisas”, torna-se possível dar “nascimento a ideias de igualdade, de cosmopolitismo e de unidade do gênero humano”, pois agora passam a existir pessoas dispostas a “declarar que distinções baseadas em raça, nascimento nobre, status social ou riqueza, e instituições como escravidão” não têm “base na natureza”, existindo unicamente por nómos (GUTHRIE, 2007, p. 112). Até então, a areté colocava as qualidades de excelência humana na dependência de certos “dons naturais e até mesmo divinos que eram marcas do bom nascimento”, justificando a “prerrogativa da classe que nasceu para governar” (GUTHRIE, 2007, p. 29). Para os oligarcas, ser cidadão era “algo que se é por natureza, a virtude por natureza, a virtude cívica é inata (o ateniense é cidadão excelente por natureza) e não se pode ensinar a ninguém a ser cidadão” (CHAUI, 2002, p. 162). Com os questionamentos dos Sofistas a areté se desvincula da physis e é considerada um nómos, podendo então ser ensinada; deixa de ser um privilégio de classe ou da minoria de origem aristocrática. Em lugar do “sangue divino”, surge o conceito geral de “natureza humana com todos os acidentes e ambiguidades individuais”, mas também com toda a “amplitude superior da sua envergadura” (JAEGER, 2010, p. 357). Uma natureza que pode ser aprimorada por intermédio da educação, por uma paideia fundamentada na areté política que visa sobretudo à formação do cidadão, por meio da retórica, para atuar na polis democrática.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

172

A RETÓRICA COMO INSTRUMENTO DE FORMAÇÃO A paideia aristocrática havia instituído uma formação segundo os valores de uma nobreza fundiária e guerreira, baseada nos laços de sangue; visava à formação do guerreiro belo e bom, isto é, o “jovem perfeito de corpo e alma” destinado a realizar-se plenamente nos perigos da guerra e morrer na flor da idade nos campos de batalha (CHAUI, 2002, p. 156). Com as mudanças no cenário político e cultural de Atenas, que se caracterizava como sociedade urbana, comercial, artesanal e democrática, a antiga areté defendida pelos aristocratas já não fazia mais sentido (CHAUI, 2002, p. 157). A nova sociedade democrática ateniense que emergiu naquela época necessitava de um processo educativo mais adequado às suas necessidades, em decorrência da distribuição da responsabilidade dos negócios públicos entre uma parcela maior de cidadãos, o que até então era privilégio de uma aristocracia de sangue (SOUZA, 1969, p. 32). Diante da incorporação da massa de cidadãos livres ao Estado, tornava-se imperioso que a areté política se estendesse a um “círculo mais amplo de cidadãos” (RODRIGO, 2014, p. 23). Castoriadis (2002, p. 312) afirma que somente com a educação dos cidadãos enquanto tais é que se poderia dotar o espaço público de um “autêntico e verdadeiro conteúdo”. Tal educação consistia na “tomada de consciência, pelas pessoas, do fato de que a polis é também cada uma delas”, e que o “destino da polis depende também do que elas pensam, fazem e decidem”; ou seja, que a educação é participação na vida política. A cidade de Atenas certamente necessitava de guerreiros belos e bons, mas naquele momento uma cidade democrática precisava, antes de tudo, de bons cidadãos. Para o cidadão da democracia, a areté aristocrática era inaceitável, pois o seu fundamento residia nos privilégios de sangue e das linhagens (CHAUI, 2002, p. 157). Uma nova areté política, ética e moral tornava-se necessária para a formação do cidadão para atuar na direção da polis. Não mais associada à ideia de “sangue divino”, mas à ideia de natureza humana, segundo os Sofistas, especialmente Protágoras, a aréte poderia ser desenvolvida por intermédio da educação. Os Sofistas oferecem, então, uma

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

173

resposta positiva à pergunta magistral de Sócrates: “As virtudes podem ser ensinadas?”. Indagar se a virtude poderia ser ensinada era o equivalente a indagar se a educação era possível, “não como mera mudança externa de comportamento, mas principalmente como poder de influência sobre a interioridade do homem, seus valores e modos de pensar” (RODRIGO, 2014, p. 70). Protágoras considerava a vida um processo de educação ética e social, e acreditava que a natureza humana precisava ser desenvolvida pela educação, para que o homem alcançasse a areté (KERFERD, 2003, p. 215). Para Protágoras, a capacidade natural que justificava a formação apenas dos “melhores cidadãos”, os aristocratas, não consistia em algo distribuído com base na hereditariedade (KERFERD, 2003, p. 248). A capacidade natural não era fonte de “superioridade inata ou natural, herdada dos pais mais capazes” (MAZZOTTI, 2010, p. 114). Esse posicionamento emerge claramente do que Protágoras (327c) diz sobre os flautistas no diálogo platônico que leva seu nome: “os filhos dos bons flautistas se tornariam melhores tocadores do que os filhos dos maus? Penso que não, muitas vezes o filho de um bom tocador de flauta viria a ser um mau instrumentista, e igualmente frequente o filho de um mau instrumentista pode se tornar um bom tocador de flauta”. Para Cassin (1990, p. 95), a natureza humana se define nesta parábola “não por um dom hereditário, mas por uma superioridade, uma diferença, uma distância que aumenta ao ser cultivada”. A natureza humana contém a possibilidade de avanço moral, sendo possível aprender as virtudes, mas a “sua efetivação depende da experiência e, particularmente, de educação” (RODRIGO, 2014, p. 73). A nova paideia proposta pelos sofistas postulava uma educação com base em três fatores: a natureza, o estudo e a prática (JAEGER, 2010, p. 1084). Essa “trindade pedagógica” é transmitida por Plutarco por intermédio do exemplo da agricultura, encarada como o caso fundamental do cultivo da natureza pela arte humana: uma boa agricultura requer uma terra fértil, um lavrador competente e uma semente de boa qualidade; no campo da educação, o terreno é a natureza humana; o lavrador é o educador e as sementes são as doutrinas, e os preceitos, os nómos estabelecidos pelos homens para a vida em sociedade (JAEGER, 2010, p. 363).

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

174

Quando as três condições se realizam com perfeição, o resultado é extraordinariamente bom, pois quando uma natureza “escassamente dotada” recebe os cuidados adequados, as suas deficiências podem ser em partes compensadas. Em contrapartida, mesmo uma “natureza exuberante” decai e se perde, quando deixada ao abandono. É isto o que torna indispensável a arte da educação. O que se obtém da natureza com esforço torna-se estéril, se não é cultivado, chegando mesmo a ser pior do que era por natureza. Uma terra não tão boa, mas trabalhada com perseverança a inteligência, acaba por dar os melhores frutos (JAEGER, 2010, p. 364). A comparação com a agricultura cria uma nova metáfora: a educação humana é “cultura espiritual” (JAEGER, 2010, p. 364). Cultura espiritual não no sentido de educar o homem apartado do mundo no qual está inserido, mas de uma verdadeira conversão, voltando-se os olhos do educando do mundo das Ideias e dos seres imutáveis para um mundo sensível, em mudança, formado por nómos; retirando-se o educando de seu “estado de autocentrado para o descentrar, integrar na vida social, compartilhando os conhecimentos estabelecidos”. A educação do homem por intermédio da retórica assume importância crucial nesse mundo marcado pelo nómos, uma vez que as “decisões acerca da vida em comum, da ética, não podem ser resolvidas de uma vez para sempre” (MAZZOTTI, 2011, p. 19). A problematização da realidade pelo lógos retira o conhecimento do distante mundo das ideias; o conhecimento passa a ser visto como “tecido no mundo dos homens”, o que introduz um “depende” insuportável para o racionalismo de Parmênides, pretensamente universal e eterno (LEMGRUBER; OLIVEIRA, 2011, p. 27). Os sofistas evidenciaram que nada era afinal tão “simples e nítido” como parecia antes, e que a virtude humana, a harmonia de uma cidade e a ordem do universo se “embaralhavam em uma rede inextricável de logoi” (SOUZA, 1969, p. 32). A retórica torna-se então o principal instrumento de cultivo da natureza humana, não por capacitar o homem a persuadir pessoas, levando-as a pensar o que se deseje que pensem, mas por constituir numa “arte prática” que ajuda o homem a resolver problemas nesse mundo social contingente e em mudança

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

175

(CRICK, 2010b, p. 27). É por meio da retórica que o homem consegue lidar com esse “material imperfeito” produto do nómos, pois a retórica nasce e renasce onde as ideologias desmoronam; aquilo que era objeto de absoluta certeza torna-se problemático e é submetido a discussão (MEYER, 1998, p. 11). A retórica consiste na negociação da distância entre os homens em torno de uma questão ou problema, o qual pode uni-los ou até mesmo opô-los, mas sempre os reenvia a uma alternativa (MEYER, 1998, p. 27). A retórica vincula a intrínseca capacidade de transformação da linguagem em vista de situações particulares que requerem a interrupção da convenção e o afloramento da inspiração, do sentimento, bem como o mapeamento de caminhos para novas possibilidades de experiência compartilhada. A retórica contém o poder transformador da linguagem em direção ao um futuro incerto que fala conosco quando nos sentimos jogados nas águas turbulentas do presente (CRICK, 2010b, p. 11).

CONSIDERAÇÕES FINAIS A discussão a respeito da antítese entre nómos e physis travada pelos Sofistas contra os filósofos seguidores do pensamento de Parmênides revelam duas visões de mundo distintas. A primeira, defendida pelos eleatas, via a physis como fonte natural da qual derivavam as normas que deveriam reger tanto a vida individual quanto as demais estruturas da sociedade; a segunda, defendida pelos Sofistas, afirmava que a physis não poderia ser a fonte de valores de que derivavam as leis, pois as leis não possuem nada de sagrado e imutável, e as distinções baseadas em raça, nascimento nobre, status social ou riqueza existiam somente por nómos, não por natureza. As mudanças ocasionadas pelo processo histórico em Atenas somadas aos questionamentos dos Sofistas abriram caminho para a defesa de uma nova paideia, não mais sustentada na justificativa do bom nascimento para educar os melhores cidadãos, mas sustentada no aprimoramento da natureza humana independente de algum dom hereditário. Por intermédio da analogia elaborada por Plutarco, podemos perceber que para os Sofistas não basta apenas ter a melhor natureza, ou a melhor

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

176

semente; se o lavrador não possuir uma boa técnica de cultivo, poderá colocar tudo a perder. A analogia evidencia que para cultivar corretamente a natureza humana, o educador/lavrador deve lançar mão de um instrumento profissional, a palavra, sobre a qual se baseavam as relações político-sociais da sociedade ateniense naquela época. Para os Sofistas, a Retórica torna-se a melhor técnica de cultivo da natureza humana, pois constitui uma arte capaz de auxiliar na resolução dos problemas em um mundo contingente e em mudança. Se educação é participação na vida política, é por meio da retórica que essa participação é efetivada de maneira consciente, pois muito mais do que uma arte que capacita o aprendiz a persuadir pessoas, a retórica é uma arte prática que auxilia o homem a considerar diferentes opiniões e buscar soluções por meio da discussão e da formação de consensos perante os problemas impostos a eles nesse mundo sensível, contingente e em mudança. Essa discussão iniciada há séculos pelos Sofistas dá ensejo a algumas indagações acerca da educação atual: a escola de hoje desenvolve em seus alunos a capacidade argumentativa, considerando que compartilhar um modo de pensar e participar das discussões públicas é condição primordial da existência de uma sociedade democrática? Em uma sociedade pluralista, condição sine qua non da existência da retórica, formamos nossos alunos para o debate, para buscar consensos e soluções a partir de opiniões divergentes a respeito dos assuntos públicos? A continuidade da pesquisa cujos resultados foram aqui relatados buscará elementos para construir uma resposta, ainda que provisória, a estas indagações. O lançamento desta reflexão com base nos Sofistas tem por objetivo debater os cânones que orientam as doutrinas pedagógicas; esperamos que esta iniciativa sirva para converter os olhares das certezas absolutas pretendidas por algumas ideologias para um debate que leve em conta a formação do homem concreto enquanto membro de uma sociedade democrática.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

177

REFERÊNCIAS

CASSIN, Bárbara. Ensaios sofísticos. Tradução Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Siciliano, 1990.

CASSIN, Bárbara. O efeito Sofístico. São Paulo: 34, 2005.

CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto: os domínios do homem, Vol. II. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

CHAUI, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles – vol. I. 2. edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

CRICK, Nathan. Democracy and rhetoric: John Dewey on the arts of becoming. Columbia: University of South Carolina, 2010a.

CRICK, Nathan. The sophistical attitude and the invention of rhetoric. Quaterly Journal of Speech. 96 (1), 2010b.

GUTHRIE, William Keith Chambers. Os sofistas. 2 edição. São Paulo: Paulus, 2007.

JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. Tradução de Arthur M. Parreira. 5. edição. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

KERFERD, G. B. O movimento sofista. Tradução Margarida Oliva. São Paulo: Loyola, 2003.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

178

LEMGRUBER, Marcio Silveira. OLIVEIRA, Renato José. Argumentação e educação: da ágora às nuvens. In: LEMGRUBER, Márcio Silveira. OLIVEIRA, Renato José (orgs.). Teoria da argumentação e Educação. Juiz de Fora: UFJF, 2011.

MAZZOTTI, Tarso. Da filosofia da educação à sofística renovada. Itinerários da Filosofia da Educação. n. 8, jan./jul., 2010.

MAZZOTTI, Tarso. Seria possível ensinar as virtudes políticas (éticas)?. Revista Teias. v. 12, n. 25. mai./ago. 2011.

MEYER, Michel. Questões de retórica, linguagem, razão e sedução. Lisboa: Edições Setenta, 1998.

OLIVEIRA, Newton Ramos de. Tempo dos sofistas, tempo de ruptura? Uma leitura da história a contrapelo. Multiciência; 1 (3), 1998.

PLATÃO. Protágoras (ou Sofistas). In: PLATÃO. Diálogos I. Tradução de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2007.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. A sofística e o deslocamento do eixo da pesquisa filosófica do cosmo para o homem. In: REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga – vol. I. Tradução Ivo Storniolo. 3. edição. São Paulo: Paulus, 2007.

RODRIGO, Lidia Maria. Platão e o debate educativo na Grécia Clássica. São Paulo: Armazém do Ipê, 2014.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

179

SOUZA, José Cavalcante de. Caracterização dos sofistas nos primeiros diálogos platônicos. São Paulo: EDUSP, 1969.

TATIANE DA SILVA - Graduada em História e Pedagogia; Mestre em Educação pela Universidade de São Paulo; doutoranda em Educação na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. É membro do Grupo de Pesquisa Retórica e Argumentação na Pedagogia (USP/CNPq) e autora do livro A presença da filosofia platônica na Pedagogia do Estado Novo (Editora Poiesis).

MARCUS VINICIUS DA CUNHA - Doutor em História e Filosofia da Educação, professor da Universidade de São Paulo e líder do Grupo de Pesquisa Retórica e Argumentação na Pedagogia (USP/CNPq). É autor de John Dewey, uma filosofia para educadores em sala de aula (Editora Vozes) e coautor de “Pragmatism in Brazil: John Dewey and education” (In Pappas, Pragmatism in the Americas, Fordham University Press).

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

180

ANÁLISE RETÓRICA DAS MEMÓRIAS DE PASCHOAL LEMME Roberta Aline Sbrana Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – USP [email protected] Marcus Vinicius da Cunha Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – USP [email protected]

RESUMO Vinculado ao Grupo de Pesquisa Retórica e Argumentação na Pedagogia (USP/CNPq) e subsidiado pela FAPESP, este trabalho investiga o discurso memorialístico de Paschoal Lemme, educador que atuou no Brasil entre as décadas de 1920 e 1960 no âmbito do movimento escolanovista. As fontes primárias são os livros de memórias escritos pelo autor e publicados pela Editora Cortez/INEP na década de 1980. O exame do discurso memorialístico de Lemme é feito por intermédio da análise retórica, metodologia fundamentada em Perelman e Olbrechts-Tyteca, que investiga o caráter (ethos) do autor/orador, as disposições (pathos) dos leitores/auditório e as articulações do próprio discurso (logos). O objetivo do trabalho é mostrar que as narrativas autobiográficas podem ser compreendidas por meio da análise retórica. Para isso, são examinadas as concepções políticas e educacionais de Lemme, buscando identificar os argumentos centrais e as estratégias argumentativas por ele utilizadas, e situando o intuito persuasivo de seu discurso no contexto de sua produção. A conclusão remete à discussão sobre as características da audiência de Lemme, os educadores que atuavam nos anos de 1980.

Palavras-chave: Memória; Análise Retórica; Educação brasileira.

INTRODUÇÃO A primeira parte deste trabalho expõe as vantagens e os problemas envolvidos na utilização de autobiografias em pesquisas historiográficas, e

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

181

apresenta a análise retórica como alternativa metodológica para o exame desses materiais. A segunda parte expõe a autobiografia de Paschoal Lemme, educador que atuou no âmbito do movimento escolanovista brasileiro entre as décadas de 1920 e 1960. São focalizados os fatos por ele descritos, com destaque para a autoimagem que deles aflora e para as suas principais teses políticas e educacionais. A terceira parte faz a análise retórica do discurso do autor, destacando as estratégias argumentativas por ele empregadas e evidenciando a sua semelhança com as características típicas da geração de intelectuais que atuou no Brasil no período de 1920 a 1940. A seção final traz algumas indicações para o estudo da audiência visada por Lemme ao publicar suas memórias na década de 1980, época marcada por intensa disputa entre proposições educacionais distintas.

A NARRATIVA MEMORIALÍSTICA E A ANÁLISE RETÓRICA A utilização de memórias como fontes em pesquisas historiográficas alcançou notável adesão no Brasil na década de 1990 (AMADO; FERREIRA, 2006, p. 9). Para alguns autores, as narrativas memorialísticas representam importante contribuição para a pesquisa historiográfica porque a memória, como afirma Le Goff (2003, p. 419), possibilita “conservar certas informações”, constituindo um “conjunto de funções psíquicas” que permite ao homem “atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas”. Segundo Le Goff (idem, p. 471), a memória busca “salvar o passado para servir ao presente e ao futuro”; na memória “cresce a história, que por sua vez a alimenta”. Para Alberti (2004, p. 33) “conceber o passado não é apenas selá-lo sob determinado significado”; não é somente elaborar uma interpretação, mas também “negociar e disputar significados e desencadear ações” presentes na memória dos sujeitos que vivenciaram fatos e processos já ocorridos. As narrativas memorialísticas contêm dados e informações que não podem ser acessados por outros métodos de investigação. François (2006, p. 4) entende que o trabalho pautado em fontes historiográficas alternativas, como são as memórias, tem o intuito de “dar atenção especial ‘aos dominados’, aos

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

182

silenciados e aos excluídos da história”, firmando assim uma concepção de caráter inovador perante a abordagem convencional, em que tais questões são normalmente relegadas à margem. Apesar

das

inegáveis

contribuições

das

memórias

à

pesquisa

historiográfica, alguns autores apresentam objeções ao uso desse tipo de fonte em investigações dedicadas a esclarecer o passado, pois as informações e os dados assim obtidos exprimem traços marcantes de subjetividade, sendo, em última análise, a expressão do ponto de vista de um narrador que, na maioria das vezes, tem ou teve compromisso com os fatos descritos. Sobre essa questão, Le Goff (2003, p. 29) afirma que a história é “não só a projeção que o homem faz do presente no passado, mas a projeção da parte mais imaginária do seu presente”; é também “a projeção no passado do futuro que ele escolheu”, resultando assim em “uma história-desejo às avessas”. Bourdieu (2006, p. 184-185) assinala que o “relato autobiográfico se baseia sempre, ou pelo menos em parte, na preocupação de dar sentido, de tornar razoável”, como também na necessidade de “extrair uma lógica ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva, uma consistência e uma constância”, a fim de estabelecer “relações inteligíveis, como a do efeito à causa eficiente ou final, entre os estados sucessivos”, os quais são “constituídos em etapas de um desenvolvimento necessário”. As narrativas memorialísticas contêm uma inclinação do autor a mostrar-se como “o ideólogo de sua própria vida”, elegendo, “em função de uma intenção global, certos acontecimentos significativos e estabelecendo entre eles conexões para lhes dar coerência”. Uma solução aventada para os problemas indicados seria confrontar a narrativa autobiográfica com outros documentos de igual valor histórico, o que significaria simplesmente interpor uma narrativa a outra, sem a garantia de que a nova fonte, trazida para confirmar ou infirmar a memória, não seja igualmente marcada pela subjetividade. Nessa vertente argumentativa, considera-se que a verdade histórica é sempre uma versão de fatos, pois as “estruturas de poder de uma sociedade”, que inclui “o poder das categorias sociais e dos grupos dominantes”, deixam “testemunhos suscetíveis de orientar a história num ou

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

183

noutro sentido”, e assim acabam influenciando a construção de quaisquer documentos (LE GOFF, 2003, p. 110). Desta forma, não é lícito julgar a veracidade das memórias, mas é possível buscar compreendê-las pela elucidação do contexto em que são produzidas e publicadas. Segundo Bourdieu (2006, p. 190), “não podemos compreender uma trajetória sem que tenhamos previamente construído os estados sucessivos no campo o qual ela se desenrolou”. O pesquisador deve se ocupar com “o conjunto de relações objetivas que uniram o agente considerado ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço dos possíveis”. Assim, “os acontecimentos biográficos se definem como colocações e deslocamentos no espaço social”, de acordo com as “diferentes espécies de capital que estão em jogo no campo considerado”. Seguindo Le Goff (2003, p. 110), podemos concluir que todo documento deve ser examinado, pois “nenhum documento é inocente”. Sejam “conscientes ou inconscientes (traços deixados pelos homens sem a mínima intenção de legar um testemunho à posteridade)”, as “condições de produção do documento devem ser minuciosamente estudadas”. Mediante essas considerações, faz-se necessário encontrar recursos de investigação que possibilitem compreender as memórias em seu contexto de produção e veiculação. A análise retórica, tal qual adotada pelo Grupo de Pesquisa Retórica e Argumentação na Pedagogia, possui instrumentos teóricos e metodológicos adequados a essa finalidade, uma vez que tal método abrange o estudo dos qualificativos (ethos) do autor, envolvendo o contexto de enunciação e exposição do discurso; o discurso (logos) propriamente dito; e as disposições (pathos) intelectuais e emocionais dos leitores a quem o autor se dirige. A análise retórica não pretende emitir juízos valorativos sobre nenhum desses elementos, mas desvendar as estratégias argumentativas utilizadas pelo autor/orador na argumentação que tece com o intuito de persuadir seus leitores/auditório e, assim, desencadear ações voltadas a manter ou a transformar determinada situação. O exame de um texto por intermédio dessa metodologia privilegia o estudo do autor/orador e suas relações com os leitores/auditório, buscando

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

184

revelar as circunstâncias históricas que envolvem esses dois elementos, o que denominamos contexto. É por meio desse estudo que se pode atribuir “sentido e veracidade” à análise do discurso (CUNHA, 2010, p. 16). Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 7), todo discurso (logos) é construído com vistas a persuadir um auditório, inclusive o discurso escrito. Para Aristóteles (Retórica I, 1356a5), a persuasão pode ocorrer pelo próprio discurso, pela adesão efetiva das disposições da audiência ao discurso apresentado ou pelo caráter do orador, notadamente quando o discurso remete à impressão de que a pessoa que o proferiu é digna de confiança. Sendo assim, as autobiografias constituem uma forma extremada de buscar a adesão e a consequente mobilização da audiência, utilizando-se de elementos subjetivos, uma vez que veiculam uma “visão especial” de fatos ocorridos em determinado momento histórico, elaborados do ponto de vista único de uma pessoa. Aquele que conta a sua própria história edifica não só uma imagem de si mesmo, mas agrega, na mesma narrativa, um juízo acerca dos fatos que vivenciou, dos atos que praticou e das ideias que defendeu (HÜTTENBERGER, 1992, apud ALBERTI, 2004, p. 34).12

A NARRATIVA MEMORIALÍSTICA DE PASCHOAL LEMME Em sua autobiografia, Paschoal Lemme (1904-1997) narra a sua intensa participação em diversos momentos relevantes da história da educação brasileira, bem como as suas concepções políticas e educacionais; os episódios por ele narrados vão de sua infância ao ano de 1982. Ao descrever os diferentes momentos de sua vida, Lemme procura mostrar-se como um homem altamente interessado em questões educacionais, que desde a infância já havia descoberto sua vocação, a carreira como educador, fato que o teria levado a enfrentar inúmeros obstáculos em sua vida. Apesar das dificuldades enfrentadas, Lemme (1988a, p. 114) afirma que tal “vocação” se confirmava a cada dia, o que o fez persistir em sua luta para se tornar professor. Em 1924, 12

HÜTTENBERGER, Peter. Überlegunger zur Theorie der Quellen. In: RUSINEK, Bern-A; ACKERMANN, Volker; ENGELBRECHT, Jörg (Orgs.). Einführung in die Interpretation historischer Quellen. Shwerpunkt: Neuzeit. Paterborn, Ferdinand Shöning, 1992.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

185

formou-se no curso de magistério da Escola Normal do antigo Distrito Federal; posteriormente, ingressou no serviço público como professor. Foi nessa época que assumiu junto aos escolanovistas a missão de renovar a educação para transformar o Brasil em uma nação moderna. Em 1926, Lemme tornou-se sócio da Associação Brasileira de Educação, ABE, por concordar com os princípios gerais defendidos pelos que pretendiam renovar a educação brasileira. Entre 1928 e 1930, participou da reforma empreendida por Fernando de Azevedo no Distrito Federal, a qual, segundo ele, apresentou “atividades criadoras”. Em 1932, foi um dos signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, encarregando-se de recolher as assinaturas que consolidaram o histórico documento. Ainda no Distrito Federal, atuou na reforma do ensino liderada por Anísio Teixeira entre os anos de 1931 e 1935, assumindo inúmeros cargos e funções. De acordo com Lemme (1988b, p. 134), mesmo apresentando “possíveis ‘pecados’ da ‘americanização’”, tal administração pode ser considerada “a mais criativa, corajosa e também controvertida administração de ensino” ocorrida no país. Nesse período, Lemme passou a ter contato com as teses da filosofia marxista, as quais passaram a conduzir seu ideário. Durante os anos de 1936 e 1937, Lemme esteve preso no DOPS sob a acusação de ser adepto do comunismo. Após ser inocentado desse crime, o autor retornou à vida pública e enfrentou inúmeros obstáculos com o início do Estado Novo, época de preceitos educacionais e políticos diversos daqueles defendidos por ele. Em 1938, trabalhou no Instituto Nacional de Estudos Pedagógico, INEP, afastando-se do cargo logo em seguida por discordar das diretrizes políticas de seu diretor, Lourenço Filho. Entre os anos de 1950 e 1960, atuou como professor de História e Filosofia da Educação. Permaneceu no serviço público até 1960, quando se aposentou. No intuito de continuar contribuindo com a educação, entre 1974 e 1982 Lemme passou a redigir e enviar cartas aos principais jornais diários do Rio de Janeiro, o Jornal do Brasil e O Globo, “para serem divulgadas”, caso fossem “consideradas úteis e oportunas”; aliás, todas foram publicadas (LEMME, 1988c, p. 189).

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

186

Em suas memórias, Paschoal Lemme explica as influências de ordem política que definiram a constituição de seu ideário, sempre norteado pelo valor da coisa pública, em benefício da nação e de seu povo. O autor deixa transparecer em seu discurso uma imagem de obstinação, uma certeza de princípios inabaláveis que visavam transformar a educação brasileira a fim de beneficiar os que mais necessitavam de escolarização. Contudo, seu esforço transformador assumia uma discordância doutrinária fundamental em relação aos líderes escolanovistas, em razão de adotar convicções declaradamente embasadas no marxismo-leninismo, filosofia política que considerava a “verdadeira interpretação do universo”, bem como “do homem e de sua vida em sociedade” (LEMME, 2004, p. 164). Contrariando os demais educadores de sua época que acreditavam que a renovação do ensino poderia determinar alterações na vida social e econômica, Lemme defendia a tese de que somente a transformação radical das bases econômicas e sociais poderia levar às almejadas transformações no âmbito escolar. Apesar das dificuldades enfrentadas perante tal divergência, Lemme mostra em sua narrativa que nunca deixou de expor suas ideias; ao contrário, buscou defendê-las mesmo nos momentos mais delicados, como durante sua prisão e no decorrer do Estado Novo, exibindo a imagem de um homem decidido, obstinado, inabalável em seus princípios. Sua permanência entre os escolanovistas, apesar de contrariar as ideias da maioria deles, pode ser justificada, segundo o autor, pela necessidade de exercer a sua vocação, descoberta na infância, e de cumprir a missão que compartilhava com os demais intelectuais de sua geração – lutar em prol da nação brasileira.

ANÁLISE RETÓRICA DAS MEMÓRIAS DE PASCHOAL LEMME Em sua narrativa autobiográfica, Paschoal Lemme descreve a si mesmo como possuidor de uma inclinação descoberta na infância para lidar com temáticas educacionais; incansável diante dos obstáculos que lhe foram impostos, o autor mostra grande disposição para se tornar professor, e assim lutar pela renovação do ensino e pela transformação do país. Lemme surge das páginas de sua autobiografia como um homem imbuído de uma missão, de

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

187

uma inegável vocação, o que constrói uma autoimagem messiânica – termo cuja conotação remete à ideia de missão a ser cumprida por alguém movido por ideais inabaláveis. No desenvolvimento de seu discurso, essa autoimagem positiva é associada à defesa de suas ideias, as quais se beneficiam sobremaneira por serem abraçadas por alguém dotado de qualidades excepcionais. Nota-se, aqui, o uso da estratégia argumentativa que consiste em transferir as qualidades de uma pessoa aos atos por ela praticados ou às teses por ela defendidas (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 341). A construção de uma autoimagem messiânica permite que Lemme angarie prestígio perante sua audiência, sendo visto como um indivíduo singular, portador de concepções a serem seguidas. Essa forma de articulação discursiva permite que as atitudes do orador assumam o caráter de superioridade perante os demais indivíduos, fazendo com que as suas atitudes sejam aceitas como necessárias. Os posicionamentos de Lemme ante os problemas sociais e educacionais ganham a aparência de imprescindíveis à modernização do país (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 345). Nas narrativas compostas pela exposição de uma trajetória, nota-se, segundo Billig (2008, p. 56), o uso da “metáfora teatral”, recurso discursivo em que o orador descreve os episódios de sua vida como se fossem integrantes de uma peça de teatro, a qual, sendo de sua autoria, tem por objetivo posicionar os seus atos no centro no enredo. Ao colocar si a mesmo como protagonista do drama vivido pelo país no campo da educação, Lemme transforma as suas teses em exemplo para os leitores de suas memórias. Para ser efetivamente persuasivo, esse recurso discursivo deve ser moldado segundo algumas características fundamentais. Uma delas é a forma de exposição dos acontecimentos feita pelo narrador: discursos que descrevem trajetórias ordenadas sequencialmente visam enfatizar o sentido de continuidade e difundir a ideia de unidade, pois a fragmentação é vista socialmente como indício de desordem, de fraca articulação psicológica. Deve-se evitar que a trajetória de vida soe confusa, sem sentido (BILLIG, 2008, p. 61-62). É possível notar essa característica na autobiografia de Lemme, que é composta por volumes temáticos abrangendo sua vida pessoal e profissional, e

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

188

reflexões sobre documentos de sua autoria; cada volume é dividido em capítulos que exibem ao leitor a ascensão do autor em busca de cumprir sua missão, elaborando, pouco a pouco, a imagem de um homem obstinado e persistente. A figura do herói mítico vai sendo forjada em episódios permeados por problemas, dentro de uma cena adversa à concretização de seus ideais messiânicos; apesar do contexto adverso, o protagonista não esmorece, pois as suas qualidades e habilidades superam todos os entraves. Como em muitos enredos teatrais, a narrativa apresentada contém certa polarização de ideias, as quais repercutem na conduta dos personagens. Ao discorrer sobre a causa das mudanças no campo da educação, Paschoal Lemme sobrepõe os “fatores econômicos” aos “fatores educacionais”, coerentemente com a filosofia marxista que adota. O escolanovismo, por sua vez, é caracterizado como adepto de outra concepção, privilegiando os fatores educacionais como causadores de mudança, o que justifica a discordância de Lemme perante seus pares. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 500), essa forma de discursar é caracterizada pela “dissociação de noções”, estratégia que tem por base pares antitéticos, termos que a argumentação situa em oposição; uma vez hierarquizados, tais termos constituem um par filosófico, revelando a preferência do autor por uma forma de argumentar, em detrimento de outra. Considerando sua forma de argumentação, o discurso de Paschoal Lemme pode ser identificado como pertencente a um modo de expressão típico de homens que ilustraram a vida brasileira nas primeiras décadas do século XX. Segundo Pécaut (1990, p. 6), tais homens eram oriundos das elites, portadores de diplomas de cursos superiores, fato que os diferenciava da massa populacional. Os intelectuais eram vistos como os únicos capazes de conduzir a “formação da sociedade”, colocando-se a serviço do conhecimento, em sintonia com a “realidade nacional”. Apesar de suas diferenças de idade, ideias e objetivos, os intelectuais do começo do século XX exibiam traços de pensamento e atuação semelhantes, o que permite classificá-los como pertencentes a uma geração (GOMES,1996, p. 38).

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

189

Paschoal Lemme iniciou sua trajetória no magistério na década de 1920, época caracterizada pela busca da “gênese do Brasil Moderno”, expressão que qualifica aquele momento como palco da introdução de ideias e diagnósticos que passaram a orientar uma geração. Os anos de 1920 conheceram o clamor dos intelectuais que questionavam as “concepções tradicionais” e as instituições fundadas pela república, tidas como alheias à realidade do país devido ao predomínio das oligarquias. A defesa da modernização do Brasil caracterizou a geração que se constitui nessas primeiras décadas do século (LAHUERTA, 1997, p. 93). Segundo Lahuerta (1997, p. 94-95), foi no início dessa década que a ideia de missão, já existente nos meios intelectuais desde o início da República, adquiriu novos significados e abrangência, tornando o messianismo a principal característica daquela geração. Martins (1986, p. 16) considera que a construção da imagem messiânica incluía atribuir a esse grupo de intelectuais o status de “heróis modernizadores” capazes de cumprir a “missão” de transformar um país atrasado, doente e analfabeto, em uma nação moderna, sadia e alfabetizada. A elaboração dessa autoimagem permitiu justificar as ações daqueles homens, cujas ideias foram então posicionadas como condutoras das aspirações do povo brasileiro. A análise das memórias de Paschoal Lemme revela o uso dessa mesma estratégia discursiva – a transferência das qualidades pessoais do orador às ideias por ele defendidas. O emprego desse recurso pelos homens daquela geração tinha o intuito de garantir-lhes o reconhecimento de sua condição de intelectuais e ver legitimada a sua “liderança moral”. O intelectual daquela geração posicionava a si mesmo como “herói modernizador”, dotado da missão de reconstruir a nação brasileira, colocando no centro de suas preocupações a tarefa da “organização nacional”. Essa caracterização também permite incluir Lemme na referida geração, cujo plano de ação consistia em denunciar as estruturas “rígidas e atrasadas” do Brasil (MARTINS,1986, p. 16). Na década de 1930, com a instalação do governo provisório de Vargas, a influência dos intelectuais foi reduzida, e a sua missão modernizadora na esfera educacional tornou-se dependente de alianças com o Estado. Sua

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

190

divisão em várias vertentes políticas promoveu sua dispersão e distanciamento de sua função missionária (MARTINS, 1986, p. 18-19). Durante o Estado Novo, a situação foi agravada pela centralização das iniciativas de reforma da educação, decretando o fim do prestígio daquela geração de intelectuais. Suas narrativas, no entanto, sobreviveram ao tempo, servindo de contribuição para as gerações seguintes (MARTINS,1986, p. 22). Antes de publicar suas memórias, Paschoal Lemme não figurava entre os heróis dessa geração que atuou no Brasil entre os anos de 1920 e 1940. Ao publicar sua autobiografia, seu nome foi inscrito definitivamente naquele conjunto de intelectuais, podendo, como eles, legar à posteridade as suas contribuições. Esse é um dos objetivos das autobiografias: orientar os que vivem o presente, em especial quando a atualidade não oferece perspectivas claras para a ação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Com esta análise, buscou-se mostrar que as características do discurso de Paschoal Lemme são comuns à geração que atuou no Brasil entre os anos de 1920 e 1940. Ao publicar suas memórias na década de 1980, Lemme almeja adquirir autoridade moral para discursar perante os educadores que viviam o conturbado cenário político e educacional naquele momento. Esta reflexão remete à necessidade de examinar a audiência do autor, o que viria completar a análise retórica de seu discurso, segundo os parâmetros metodológicos adotados neste trabalho. Entretanto, para alcançar essa meta seria preciso realizar uma investigação específica, dedicada a compreender o contexto vivido pelos educadores da década de 1980, o que não seria viável no âmbito desta pesquisa. É possível, no entanto, apresentar algumas reflexões sobre o tema, considerando as análises realizadas da autobiografia de Lemme. É plausível supor que, ao publicar suas memórias, o autor tenha buscado preencher uma lacuna nas concepções dos educadores daquela década, marcada pelo fim do período ditatorial e o início da redemocratização do Brasil. Neste contexto, pautado por diferentes posicionamentos frente à relação educação-sociedade,

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

191

tornou-se propício o debate sobre concepções políticas diante dos novos tempos que se anunciavam. Uma alternativa apresentada ao ideário da Escola Nova era o marxismo. A autobiografia de Paschoal Lemme pode ter representado um importante elemento de persuasão dos educadores dessa década, ao promover a desqualificação do escolanovismo em benefício de outra visão acerca dos problemas educacionais do Brasil.

REFERÊNCIAS ALBERTI, Verena. Ouvir e contar textos em história oral. Rio de Janeiro: FGV, 2004.

ARISTÓTELES. Retórica. Tradução Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2011.

AMADO, Janaína; FERREIRA, Moraes Marieta. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 2006.

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Moraes Marieta (Orgs.). Usos e abusos da história oral. 8. edição. Rio de Janeiro: FGV, 2006.

CUNHA, Marcus Vinicius. História da Educação e Retórica: ethos e pathos como meios de prova. In: SILVA, Marilda; VALDEMARIN, Vera Teresa (Orgs.). Pesquisa em educação: métodos e modos de fazer. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.

FRANÇOIS, Etienne. A fecundidade da história oral. Tradução Luis Alberto Monjardim, Maria Lúcia Leão Velloso de Magalhães, Glória Rodriguez, Maria Carlota C. Gomes. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Moraes Marieta (Orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 2006.

GOMES, Ângela de Castro. História e historiadores: a política cultural do Estado Novo. Rio de Janeiro: FGV, 1996.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

192

LAHUERTA, Milton. Os intelectuais e os anos 20: moderno, modernista, modernização. In: LORENZO, Helena Carvalho; COSTA, Wilma Peres (Orgs.). A década de 1920 e as origens do Brasil moderno. São Paulo: UNESP, 1997.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução Irene Ferreira, Bernardo Leitão, Suzana Ferreira Borges. 5. edição. Campinas: UNICAMP, 2003.

LEMME, Paschoal. Memórias: infância, adolescência, mocidade. São Paulo: Cortez, 1988a.

LEMME, Paschoal. Memórias: vida de família, formação profissional, opção política. São Paulo: Cortez, 1988b.

LEMME, Paschoal. Memórias: reflexões e estudos sobre problemas da educação e ensino. Perfis: Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Heloísa Alberto Torres, Humberto Mauro, Sousa Silveira. São Paulo: Cortez, 1988c.

LEMME, Paschoal. Memórias: estudos de educação, participação em conferências e congressos; documentos. 2. edição. Brasília: INEP, 2004.

MARTINS, Luciano. A gênese de uma intelligentsia: os intelectuais e a política no Brasil, 1920-1945. Tradução Yamara Villalobos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Paris, v. 2, n. 4, p. 1-25, jun. 1986.

PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. Tradução Maria Júlia Goldwasser. São Paulo: Ática, 1990.

PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. Tradução Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2. edição. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

ROBERTA ALINE SBRANA – Licenciada em Pedagogia (USP); Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP – USP). Bolsista FAPESP.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

193

MARCUS VINICIUS DA CUNHA – Doutor em Educação (USP); Livre-Docente em Psicologia da Educação (UNESP); Professor Associado da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP). Pesquisador do CNPq.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

194

EDUCAÇÃO MUSICAL NA CONTEMPORANEIDADE: UM ESTUDO DE CASO COMPARATIVO ENTRE O CONSERVATÓRIO ESTADUAL DE LEOPOLDINA-MG E O INSTITUTO VILLA-LOBOS-RJ Vicente Estevam

[email protected] UFRJ Renato José de Oliveira [email protected] UFRJ

RESUMO Este artigo apresenta as primeiras reflexões da tese referenciada em sua fase inicial. Trata-se de um estudo de caso comparativo de caráter qualitativo, que propõe investigar a natureza argumentativa dos projetos políticos pedagógicos, das vozes discentes, docentes e representantes institucionais envolvidas entre o nível técnico do Conservatório Estadual de Leopoldina no estado de Minas Gerais e o Instituto Villa-Lobos no estado do Rio de Janeiro em face do advento da lei 11.769/08 e as diversas tensões, conflitos e contradições teóricas patenteadas pelos eventos científicos e legais em âmbito Nacional na contemporaneidade. Este estudo apoia-se nas visões abrangentes dos referenciais teóricos da teoria da argumentação como campo de pensamento em Perelmann (2005); da interdisciplinaridade em Fazenda (1991, 1994, 2013) como inciativa proativa e coetânea; das categorias apresentadas pelos autores do campo da educação musical em Freire (1992, 2013) ou da educação articulados à musica como o Multiculturalismo em Canen; Ética, Currículo e inclusão em Oliveira (2002, 2011, em diálogo com autores que concebem ou não a inseparabilidade da sociedade, da cultura e educação na contemporaneidade como: Lyotard (1989), Freire (2000, 2013), Maffesoli (1998), Lipovetsky (2004, 2103). Percebe-se que o caráter qualitativo e comparativo desta investigação possibilita a construção de uma metodologia de coleta dos dados aplicada à análise retórica dos Projetos Políticos Pedagógicos,

de

questionários

semiabertos

das

vozes

envolvidas

institucionalmente, bem como a sua triangulação interativa e dialógica. Concluise, assim, neste primeiro momento, que além da contribuição da articulação da área musical e a da análise retórica, a perspectiva deste estudo em andamento

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

195

propicia subsídios para a construção de noções e conhecimentos confiáveis que, por sua vez, contribuem para superar as dificuldades de ensino e aprendizagem nestas Instituições na contemporaneidade.

Palavras-Chave: Educação Musical; Teoria da Argumentação; Análise Retórica e Contemporaneidade. INTRODUÇÃO A principal preocupação da presente pesquisa é direcionar novo olhar sobre a Educação musical na contemporaneidade, não como uma forma passiva, mas sim como um fenômeno ativo, observada disciplinar e pedagogicamente por um estudo de caso comparativo entre o Conservatório de Música de Leopoldina do Estado de Minas Gerais e o Instituto Villa-Lobos do estado do Rio de Janeiro. Nesse sentido, em meio ao que as transformações tecnológicas mais acentuadas, neste momento propiciam, como por exemplo: o surgimento de novos paradigmas perceptivos que traz à tona novas discussões sobre o atual estado de cultura entendido como hipermodernidade e pós-modernidade, bem como novas questões sobre o papel e o significado da educação musical em suas novas configurações políticas, sociais e culturais, que se apresentam e, nem sempre, tem acompanhado essas transformações, o que talvez explique o fenômeno de toda problemática em discussão na atualidade. (ESTEVAM, 2010, 2013; FREIRE, 1997, 1999, 2011) Assim, com o advento da lei 11.769/08, que outorga em seus sete anos de existência, o ensino da música na rede regular do ensino fundamental e básico nacional, traz em si uma árdua tarefa de se adaptar, de entender e tentar responder as diversas preocupações e questionamentos referidos acima. Destacam-se como principais preocupações a serem consideradas para a área da educação musical na contemporaneidade: (a) o que Souza (1997, 2004) aponta como uma mudança na concepção sobre a educação musical pelo grande espaço intervalar entre a frustação de um projeto de mundo e de outro

construído

sobre

novas

relações-culturais,

sociais,

políticas

e

econômicas; (b) o que Freire (2013) percebe como novas formas de relação, por um lado, vivenciam novas experiências espaço-temporais ligado aos

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

196

avanços, à multiplicação dos recursos tecnológicos e à industrialização da cultura; (c) o que Queiróz (2005, p. 55) preconiza como a necessidade na contemporaneidade de se buscar alternativas que ampliem o sentido de suas preocupações metodológicas, técnicas e curriculares, para valores de vivência de expressão artística, social e cultural; (d) o que Makigut (1999) preconiza como a importância de entabular discursos, em todos os sentidos, no sistema educacional, pois promove o diálogo e o diálogo potencializa a criação de valores e Ikeda (2001, p. introdução; 2010, p.11) que a educação deve encorajar o potencial precioso que os alunos possuem e manifestar sua personalidade com entusiasmo e vigor através do diálogo, bem como a educação revitaliza-se ao exigir de todos nós uma postura de mudanças radicais ao encontro do diálogo com todas as camadas sociais. A partir dessas noções iniciais Fazenda (1994) apresenta a possibilidade de considera-las pela perspectiva interdisciplinar e, assim permitir compreender como os conhecimentos musicais são produzidos e possibilitam mudar ou reduzir atitudes, crenças ou valores que orientam os seus Projetos Políticos Pedagógicos. Ainda, a teoria da argumentação de Chaïm Perelman que se apresenta, segundo Oliveira (2011), como campo de pensamento, bem como possibilita fazer reflexões e análises sobre fenômenos humanos sociais e identificar segundo Cunha (2011) todo ideário dogmático que superestima as teorias em detrimento da experiência, ou eleva à condição de verdade inquestionável às filosofias advindas da modernidade, designando pejorativamente as reflexões contemporâneas.

OBJETIVOS DA PESQUISA A partir das considerações acima, os objetivos principais da pesquisa são: Investigar em que sentido as questões da contemporaneidade apresentam-se nos discursos dos PPP’s e nas práticas pedagógicas das duas instituições escolhidas para o desenvolvimento desta pesquisa como o CEL e a EMVL, bem como apontam para o desenvolvimento de abordagens interdisciplinares com significados e valores multiculturais.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

197

Objetivos Específicos • Analisar e comparar os PPP’s do CEL e da EMVL pela visão da teoria da argumentação e da interdisciplinaridade; • Compreender que se entende por estado de cultura atual nos PPP’s em estudo; • Identificar nas vozes docentes, discentes e da coordenação pedagógica destas instituições em que me medida as práticas pedagógicas privilegiam possíveis hierarquizações, cristalizações e homogeneizações nos conteúdos destas instituições;

PRESSUPOSTOS TEÓRICOS Com perfil qualitativo, a construção de conhecimento sobre uma perspectiva curricular flexível e abrangente nesta pesquisa tomará como referencial

teórico

a

visão

da

teoria

da

argumentação

e

da

interdisciplinaridade, conforme já mencionado em seção anterior, por ambas considerarem aspectos para o desenvolvimento de uma visão de mundo pelo viés de uma reflexão analítica, a partir da qual o discurso educacional pode ser discutido. (OLIVEIRA, 2011). A esta escolha, somam-se as contribuições de Lipovetsky (2004, 2005), Maffesoli (2012, 2014) e Freire (1994), que trazem discussões importantes para o desenvolvimento inicial deste projeto, no que refere à configuração na contemporaneidade em uma visão de mundo hiper ou pósmoderna. Há entre os três autores um ponto de convergência que contempla um caráter mutável, interativo e dialógico que se apresenta na sociedade contemporânea. Por um lado, Lipovetsky (2005) concebe esse caráter mutável não como ruptura, mas como o desenvolvimento de uma nova versão sociocultural individualista pós-moralista e democrata, em contraponto ao seu primeiro processo ambíguo e contraditório da era moderna voltado á cultura do sacrifício e do dever. Surgem ideologias coletivistas que contradizem os seus próprios princípios democráticos modernos individualistas, ou seja, uma sociedade que traz um comportamento desenvolvido pela individualidade sem cultuar o dever, fixando um novo mecanismo social de avaliação dos critérios morais. II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

198

Para o autor, as décadas finais do século XX presenciaram a aceleração da modernidade e não a sua derrocada. Nesse contexto, cabe citar: proliferação cada vez maior de bens de consumo e da oferta de serviços individualizados, crescimento vertiginoso da comunicação de massas, esgarçamento do respeito às normas disciplinares de cunho autoritário, cepticismo em relação às propostas revolucionárias de mudança social, hedonismo e culto da estética, etc. Lipovetsky (2004, p. 53) pergunta então:

Hipercapitalismo, hiperclasse, hiperpotência, hiperterrorismo, hiperindividualismo, hipermercado, hipertexto – o que mais não é hiper? Ao clima de epílogo segue-se uma sensação de fuga para adiante, de modernização desenfreada, feita de mercantilização proliferativa, de desregulamentação econômica, de ímpeto técnico-científico, cujos efeitos são tão carregados de perigos quanto de promessas.

Por sua vez, Maffesoli (2012) concebe essa mudança como um estado de saturação relacionada à infecundidade da matriz de pensamento da era moderna para com este novo modelo de convergência entre o velho e o novo. Critica o modelo filosófico herdado da tradição monoteísta, a qual afirma que só existe um verdadeiro Deus, imanente do universo ou criador de tudo que existe. Tal visão é própria da tradição semítica que não se adequa a uma forma politeísta, a um modo de viver policultural caracterizado pela situação atual. No que diz respeito à interação de opostos, a tradição por sua vez trata:

[...] de preservar, por medo, por dogmática, os valores que se elaboraram em um dado momento (Séculos XVII e-XIX) em um dado lugar: Europa. Valores próprios ao “contrato-social” e que se apresentam como sendo universais, aplicáveis sem distinção, em todos os lugares e em todos os tempos. (MAFFESOLI, 2012, p.5)

Esboça-se neste panorama uma tensão conflitante que transcende a questão econômica pela conquista de um projeto de futuro na concepção do aqui e agora e, assim, de novos valores, quais sejam, obter o que for possível no imediatismo do momento presente. Maffesoli (2014) denomina esta tensão como uma crise “Societal”:

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

199

Conceito que expressa a natureza dos fenômenos sociais observados na pós-modernidade. Designa, portanto, os fenômenos ligados à ocupação de novos territórios, a emergência de novos valores que levam os indivíduos a eternizarem o instante, vivendo-o com toda a intensidade possível. Enquanto a vida social se apega a projetos futuros (melhores condições de trabalho, de saúde, de habitação, de alimentação, etc.), a vida societal busca o que almeja no aqui e no agora. Tudo o que for projetado para o depois não serve, pois o presente é o tempo de fazer, sentir e conquistar o que for possível.

Maffesoli (2014) salienta ainda que essa crise societal estabelece as suas novas interrelações como uma Proxemia:

Conceito que expressa as novas relações que os grupos comunitários ou tribos estabelecem com os espaços e ambientes nos quais circulam. Tais relações podem ser de natureza integradora (convivência pacífica com outras tribos) ou discriminatória, quando determinadas tribos buscam excluir os diferentes dos espaços que frequentam.

Aponta, também, outro aspecto importante da característica do pensamento pós-moderno: A vida quotidiana se apresenta pela exploração econômica, imposição moral, simbólica e ideológica. O senso comum passa a conceber o mundo humano-social em contraponto às metanarrativas, que são discursos apoiados em um formalismo de caráter dogmático que credita à razão a explicação por todo conhecimento e toda verdade absoluta, em contraponto a uma cultura enraizada do dia-a-dia no espaço da socialidade, um concretismo cultural que se opõe à civilização racional. Desenvolve-se o sincretismo filosófico, o levar em conta o “não racional” (grifo do autor), mas sem que isso signifique tornar-se irracional. (MAFFESOLI, 2012; OLIVEIRA, 2013). Freire (1994), dentro dessa discussão, relaciona alguns aspectos importantes do pensamento pós-moderno, no que compete a música, sociedade e educação integrada à pesquisa científica: relação sujeito-objeto; relativização dos conceitos, inclusive os de conhecimentos, de verdade e de música; valorização da concepção dos sistemas abertos em redes pluralistas,

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

200

ao invés de sistemas fechados e estruturas estáticas e generalizáveis; valorização da transitoriedade e transformação como processos permanentes; redimensionamento dos conceitos de espaço e tempo, relativizando o enfoque cronológico; valorização do subjetivismo, das diversidades e das minorias; em detrimento de relatos universalistas, sem perda de perspectiva total. Freire (1994) preconiza ainda que tratar de música dentro do pensamento pós-moderno significa repensar alguns aspectos específicos fundamentais pelo fato de não se tratar apenas de uma troca de rótulos e sim de rediscutir todos os limites e reducionismo. Nesse sentido defende que haja:

(a) Revisão e relativização do campo de pesquisa, de muitos conceitos e métodos e dos próprios limites das pesquisas; (b) Valorização da heterogeneidade (inclusive das culturas); (c) Valorização da subjetividade, abrindo maior espaço para as percepções dos diferentes sujeitos que interagem nos processos (críticos, compositores, ouvintes, intérpretes, editores, produtores musicais, professores e alunos, etc) e expressam diferentes visões de mundo; (d) Qualidade dos questionamentos (questões que abordam aspectos que dão espaço à subjetividade), Flexibilidade metodológica (os métodos e referenciais teóricos não são necessariamente totalmente pré-definidos), Utilização de conceitos e metodologias com abertura de espaços para a heterogeneidade e a diversidade cultural.

Dentro de uma visão da contemporaneidade que contemple um contraponto filosófico à razão como critério de conhecimento e a lógica formal como sustentáculo da objetividade, a teoria da argumentação pode dialogar com as abordagens feitas sobre a interdisciplinaridade, pois Fazenda (1991, p.15) defende que para o olhar interdisciplinar “nenhuma forma de conhecimento é em si mesma exaustiva. Tenta, pois o diálogo com outras fontes de saber, deixando-se irrigar por elas”. Fazenda (2013, 1991) esclarece ainda que a interdisciplinaridade, por esta linha de pensamento, assume uma atitude de ousadia e busca frente ao conhecimento pensar aspectos que envolvem a cultura do lugar onde se formam professores. Desta forma, vai em busca de alternativas para conhecer mais e melhor, abrir frente a possibilidade de desvendar novos saberes. Em relação à elaboração de novos saberes a interdisciplinaridade é considerada por Oliveira & Mazzotti (2002) como a coordenação de diversas

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

201

disciplinas com vistas a tratar mais adequadamente tópicos comuns a cada uma delas, coordenando contribuições de cada uma delas. Esta concepção contrapõe-se em relação a concepção limitada da interdisciplinaridade como uma ciência unificável. Na esteira desse pensamento, o escopo desse projeto caracterizar-se-á pelo aspecto qualitativo e buscará dialogar com autores afinados com essa ótica e até mesmo com autores desafinados nesse diapasão, evidenciando o processo argumentativo pelas possibilidades de reflexões e de análises sobre fenômenos humano-sociais. (OLIVEIRA, 2011).

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Dentro dessas linhas preliminares esta pesquisa caracterizar-se-á pelo aspecto qualitativo, empregando uma metodologia que opta e adota uma visão dinâmica e abrangente, visando analisar processos e fenômenos dentro de uma totalidade. Para tanto, é pertinente, o uso de questionários abertos ou semiabertos, entrevistas e triangulação. (ANDRÉ, 1995) Sobre a importância da pesquisa qualitativa, Santos Filho (1997), esclarece os pontos básicos principais:

(a) Visão de mundo ou premissas subjacentes: As definições individuais ou coletivas constroem a realidade social, concebendo o homem como sujeito e ator; (b) Relação entre o pesquisador e o objeto pesquisado: Por entender a realidade criada ou moldada pela mente do sujeito, a perspectiva qualitativa não contempla a distância entre o investigador e o investigado”; (c) Relação entre fatos e valores; A concepção de mundo baseia-se nos interesses e situações do indivíduo, considerando que a construção da realidade é influenciada e refletida pelos interesses e propósitos das pessoas; (d) Objeto da pesquisa: Considera a compreensão ou a interpretação do fenômeno social como objeto principal da pesquisa com base nas interações da própria vida dos atores (e) Foco: O foco da pesquisa dá prioridade à experiência individual, , bem como ao, processo pelo qual são construídos seus significados (f) Método: A partir dos dados, são definidas as características II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

202

principais do processo, analisa-se em que relações de propriedade os conceitos são validados resumindo em uma síntese holística e/ou análise comparativa; (g) Papel do pesquisador: Caracteriza-se pela imersão do pesquisador no fenômeno a ser interpretado (SANTOS FILHO, 1997, p. 39-45).

O estudo de caso, segundo Trivinõs (1987), é uma das tendências existentes pertinentes à pesquisa qualitativa. A escolha pelo estudo de caso nesta pesquisa se deu porque a intenção é realizar um estudo descritivo e interpretativo de situações educacionais específicas: no conservatório de Leopoldina (CEL) e na Escola de Música Vila Lobos. Quanto a interpretação dos dados coletados nas entrevistas, Triviños (1987), comenta que o papel do pesquisador consiste não em captar a realidade, mas em analisar com propriedade todos os elementos coletados na mesma. Quanto à pertinência do uso de questionários na pesquisa, Triviños (1987) esclarece que a escolha é admitida pela pesquisa qualitativa:

Talvez sejam as entrevistas semi-estruturadas, a entrevista aberta ou livre, o questionário aberto, a observação livre, o método clínico e o método de análise dos conteúdos os instrumentos mais decisivos para estudar os processos e produtos nos quais está interessado o investigador qualitativo [...] Essa multiplicidade de recursos de que pode lançar mão o investigador qualitativo na realização de seu estudo permite que alguns autores falem de técnicas da triangulação. (TRIVIÑO, 1987, p. 138).

Com esses caminhos metodológicos e o referencial teórico adotados, a pesquisa se apoiará na triangulação das informações levantadas, buscando uma aproximação mais profunda com o fenômeno analisado. Triviños (1987) esclarece que a triangulação de dados é uma técnica, empregada na pesquisa qualitativa, com o objetivo de atingir o máximo de amplitude na descrição, explicação e compreensão do foco em estudo. Trivños considera também que o interesse na triangulação de dados deve

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

203

estar dirigido aos seguintes elementos:

(a)Processos produzidos centrados no sujeito (produzidos pelo pesquisador): as percepções do sujeito, verbalizadas através de questionários, entrevistas, comportamentos e ações; (b)Elementos produzidos pelo meio: documentos ( internos e externos das organizações, instrumentos legais, como leis, decretos, pareceres, resoluções, regulamentos e regimentos; instrumentos oficias, como código de ética, diretrizes, propostas, memorandos, atas de reuniões, políticas de ação e históricos escolares; (c) Processos e produtos originados pela estrutura socioeconômica e cultural do macro-organismo social no qual está inserido o sujeito: refere-se aos modos de produção, às forças e relações de produção, à propriedade dos meios de produção e às classes sociais.

Dessa forma, a triangulação a ser adotada como técnica qualitativa na coleta de dados buscará um diálogo entre diferentes vozes envolvidas (da instituição, dos discentes e dos docentes), procurando, assim, entender, as incompatibilidades

e

as

contradições

nesses

projetos

pedagógicos,

considerando a perspectiva de promover uma formação de responsabilidade social mais consciente e integrada ao mundo tecnológico, globalizado e socioculturalmente diversificado no século XXI. Buscar-se-á construir, a partir da percepção de contradições e conflitos, revelados pelas vozes ouvidas, um conhecimento

sobre a questão,

valorizando as diferentes subjetividades envolvidas e propiciando a criação de subsídios que possam contribuir para superar as tendências de: cristalização, homogeneização e hierarquização no âmbito pedagógico. Alguns conceitos adotados embasarão esses procedimentos, como o conceito de música, entendido não como um significado abstrato, mas como elemento atuante na construção da sociedade. Sob esse panorama teóricometodológico, os seguintes passos serão percorridos: (a) revisão de literatura (b) análise documental (projeto pedagógico); (c) questionários abertos e ou semi abertos (professores e

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

204

alunos dos Conservatórios de Leopoldina e de Juiz de Fora); (d) entrevistas (coordenadores, professores e alunos das duas Instituições Musicais selecionadas); (e) análise crítica das informações levantadas.

Com base no que foi exposto a investigação pretende desenvolver uma análise comparativa do caso estudado. Pretende gerar, também, subsídios para análise de outras situações similares, ou seja, a partir dos estudos centrados no Conservatório de Leopoldina e na Escola de Música Villa Lobos, construir subsídios aplicáveis a outras instituições voltadas para a educação musical.

REFERÊNCIAS ANDRÉ, Marli Eliza D. A. de. A abordagem qualitativa da pesquisa. In: Etnografia da prática escolar. Campinas, São Paulo. 11ª edição. Ed. Papirus, 1995, p.15-25.

CUNHA, Marcus Vinícius da. Ciência, Educação e Retórica na pósmodernidade. IN: Teoria da Argumentação e Educação. (ORG) Márcio Silveira Lemgruber & Renato José de Oliveira. Editora UFJF, Juiz de Fora, MG. 2011 p. 71-89.

ESTEVAM, Vicente. Ensino de música e evasão escolar em conservatório de Minas Gerais: Dois estudos de caso. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro. UFRJ. 2010.

_________________. Evasão no ensino de música em conservatórios de Minas Gerais: O conflito entre tradição versus inovação. Curitiba. Eds. Appris/Prismas. 2013.

FAZENDA, Ivani C. Arantes. Interdisciplinaridade: História, Teoria e Pesquisa. 15ª edição - São Paulo: Papirus, 1994.

FAZENDA, Ivani Catarina A. Interdisciplinaridade: Um projeto em parceira. 5ª ed. Rio de Janeiro, ed. LOYOLA 2002; 1ª ed. Edições LOYOLA, 1991.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

205

FAZENDA, Ivani Catarina A. O que é interdisciplinaridade?. (Org) Ivani Fazenda. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2013.

FREIRE, Vanda Lima Bellard. Ensino de Música e Pós-Modernismo. I encontro regional Sul da ABEM. Londrina-PR,1997, s/p.

FREIRE, Vanda Lima Bellard. Música, Globalização e Currículo. Anais do VII encontro anual da ABEM. Curitiba, 1999. s/p.

FREIRE, Vanda Bellard. Música e Sociedade: Uma perspectiva histórica e uma reflexão aplicada ao ensino superior de música. 2ª. Ed. Ver.. e Ampl. Florianópolis. Associação Brasileira Educação Musical. 2011.

IKEDA, Daisaku. Educação Soka: uma perspectiva budista. São Paulo. Ed. Brasil Seikyo. 2010.

LIPOVETSKY, Gilles; CHARLES, Sébastien. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004.

LIPOVETSKY, Gilles. A sociedade pós-moralista: O crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos tempos democráticos. Tradução: Armando Braio Ara. Barueri, SP: Manole, 2005.

LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Lisboa: Trajectos, 1989.

MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: O declínio do individualismo nas sociedades de massa. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998

MAFFESOLI, Michel. O tempo retorna: formas elementares do pósmodernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.

MAKIGUTI, Tsunessaburo. Educação para uma vida criativa: Ideias e propostas de Tsunessaburo Makiguti da Soka Gakkai. Tradução de Eliane Carpenter – 4ª tiragem – Rio de Janeiro: Record, 1999.

MAZZOTTI e OLIVEIRA. Tarzo Bonilha e Renato José. Ciencia(s) da

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

206

Educação. (ORG’s) Tarzo Bonilha Mazzotti & Renato José de Oliveira – Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

_______________________. A nova retórica, a problematologia e a educação. In: Teoria da Argumentação e Educação. (ORG). Lemgruber & Oliveira. Juiz de Fora. ED. UFJF. 2011.

_______________________. Revisitando Estratégias de Ensino na Educação Básica-respostas atuais. Comunicação apresentada no VI Simpósio de Educação da UFRJ/III Simpósio de Educação Musical da UFG, dezembro/2013.

PESSANHA, José Américo M. A teoria da argumentação ou nova retórica. IN: Paradigmas Filosóficos da Atualidade. (ORG) Maria Cecília M. de Carvalho. Papirus. 1994.

LIPOVETSKY, Gilles. Pós-modernismo e Hipermodernidade. Disponível em < http://educacao2010.criarumblog.com/blog-REJOLI-b1> último acesso em 17 de maio de 2013.

PERELMAN, Chaim. Tratado da Argumentação. (ORGs) Chaim Perelman & Lucie Olbrechts-Tyteca; Tradução Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão; ( Revisão da Tradução por Eduardo Brandão)-2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005: - (Justiça e Direito).

QUEIRÓZ, Luís Ricardo Silva. Contexturas: O ensino da arte em diferentes espaços. (Orgs) Vanildo Mousinho Marinho & Luís Ricardo da Silva Queiróz. Ed. da UFPB. 2005.

SANTOS FILHO, J.C. Pesquisa qualitativa versus pesquisa quantitativa: o desafio paradigmático. In. SANTOS FILHO J.C.; GAMBOA, S. S. Pesquisa educacional: quantidade-qualidade. São Paulo: Cortez, 1997.

SOUZA, Jusamara. Transformações globais e respostas da Educação Musical. In: Anais do I Encontro Regional Sul da ABEM. Londrina, 1997.

(Org). Música, cotidiano e UFRGS. 2000. Porto Alegre: RS. 2004. P-7-11.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

educação.

Porto Alegre:

ISBN: 978-85-89943-21-5

207

TRIVIÑOS, Augusto N.S. Introdução à Pesquisa em Ciência Sociais. São Paulo: Atlas, 1987.

VICENTE ESTEVAM - Doutorando em Educação pela FE/UFRJ; Mestre em Musicologia pela UFRJ;

Pós-Graduando (MBA) em Perícia Criminal e

Ciências Forenses pelo Instituto de Pós Graduação de Goiana; Habilitado e licenciado para o ensino Médio, Básico e Fundamental para o Ensino de Música pelo CBM_CEU e UCAM-AVM; Perito Judicial pela Escola de Administração Judiciária do TJRJ (ESAJ); técnico em Administração pelo C.E. Amaro Cavalcanti; técnico em Educação Artística e Violão erudito e popular pelo Conservatório Estadual de Leopoldina-MG; Guia de Turismo pelo SENAC

RENATO JOSÉ DE OLIVEIRA – Doutor em Educação pela PUC/RJ. Mestre em Educação pelo IESAE/FGV. Licenciado em Química pela UERJ. Professor Associado do Departamento de Fundamentos da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFRJ.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

208

ENTRE O FEIJÃO E O SONHO: UMA ANÁLISE DA RETÓRICA NETATIVISTA SOBRE A EDUCAÇÃO PÚBLICA NO RIO DE JANEIRO Rosa Maria Cardoso dos Santos [email protected] Márcio Silveira Lemgruber [email protected] niversidade Estácio de Sá

RESUMO O presente artigo tem por objetivo estabelecer uma reflexão sobre o discurso de professores netativistas acerca da educação pública no Rio de Janeiro, investigando, a partir da análise retórica, as crenças, valores, visões e práticas que servem de base para as argumentações adotadas por esse grupo. Além disso, teceremos uma análise acerca das possibilidades e limites da eficácia dessa retórica praticada online, para fins de mobilização social e política. Palavras-chave: Netativismo; Educação Pública; Retórica; Argumentação

INTRODUÇÃO Em agosto de 2013, os professores da rede pública municipal e estadual do Rio de Janeiro uniram, pela primeira vez, as lutas de suas categorias, e usaram as redes sociais online a fim de dar visibilidade às suas reivindicações, convocarem para greves e protestos nas ruas. A principal pauta de ambos os seguimentos era o fim do sistema de meritocracia ou plano de metas. De acordo com os professores municipais e estaduais, com esse tipo de sistema, os docentes estão perdendo autonomia de ensino, uma vez que precisam ensinar apenas o necessário para atenderem às necessidades do mercado, exigidas pelos exames externos impostos pelo governo. As escolas que atingem a meta são premiadas com bonificações e as que não a atingem, por sua vez, são responsabilizadas e pressionadas. Os professores que se recusam a participar desse processo são individualmente punidos e perseguidos. Esse procedimento, de acordo com os docentes, gera uma divisão na categoria, não melhora o nível da educação no estado e município e aumenta a insatisfação dos professores com a profissão.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

209

Mesmo após esse episódio, que não resultou no fim do sistema questionado, os professores mantiveram suas discussões na internet, principalmente em grupos no Facebook, valendo-se da rede para lamentar, denunciar e criticar as atuais políticas públicas educacionais, sugerir propostas de melhorias para as condições de trabalho, estrutura das escolas, organização do sindicato, comportamentos, convocar para manifestações e greves, elaborando argumentações que envolvem os problemas enfrentados na realidade e as expectativas em torno do sistema educacional público no Rio de Janeiro. A internet é usada como uma ágora virtual para o ativismo realizado por parte desses usuários, também chamados de “netativistas” ou “ciberativistas”, que se envolvem em ações coletivas online, demandando transgressão e solidariedade para a consecução de um objetivo comum (BATISTA, 2012), que, neste caso, é questionar a atual política pública educacional adotada no Rio de Janeiro e angariar a adesão para suas lutas em prol do que chamam de uma “educação pública de qualidade”. Araújo (2012) afirma que os estudos acerca dos movimentos ativistas demonstram que estes são mobilizados principalmente em busca de mudanças simbólicas na sociedade. Consequentemente, as construções discursivas destes grupos possuem grande relevância entre suas atividades e esse panorama se acentua nas manifestações netativistas, pois diante do ambiente de rede, as construções discursivas passam a ser uma ferramenta muito eficaz de mobilização e geração de apoio e colaboração. O mesmo autor, em um levantamento feito sobre o estado da arte das pesquisas acerca do netativismo no Brasil (ARAUJO, 2011), aponta que os aspectos relativos à construção discursiva como arma de mobilização são levados em consideração em poucos trabalhos sobre o tema. Dessa forma, analisar a retórica e argumentação de professores engajados em ativismo nas redes sociais online em prol da educação pública nos parece de extrema relevância para a pesquisa sobre práticas netativistas e os discursos adotados para fins de mobilização política e social na área educacional. O presente artigo é resultado de uma pesquisa de doutorado, em andamento, cujo objetivo é realizar uma análise retórica dos discursos adotados por professores em grupos de discussões no Facebook que lutam por II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

210

uma educação pública de qualidade no Rio de Janeiro, investigando suas crenças, valores, visões e práticas que servem de base para suas argumentações, com o propósito de angariar adesão aos seus ideais e causas. Além disso, tecemos uma análise acerca das possibilidades e limites da eficácia dessa retórica praticada online, para fins de mobilização social e política na área educacional.

REFERENCIAL TEÓRICO Castells (2013) explica que os movimentos sociais que repercutiram no mundo inteiro nos últimos anos, tais como a Primavera Árabe, nos países do Norte da África e Oriente Médio, os movimentos Occupy nos Estados Unidos e outros na Europa, como os Indignados de Barcelona, apresentam diversas características em comum. Dentre elas, está o fato que, embora geralmente se iniciem nas redes sociais da internet, esses movimentos online se tornam posteriormente um movimento de ocupação do espaço urbano. Obviamente, os blogs, Facebook ou Twitter não causam revoluções, mas fornecem a infraestrutura que estabelece laços de comunicação e capacidade de organização entre os grupos de ativistas, antes que os protestos de rua se formem. Ugarte (2008) descreve que o netativismo, hoje, está baseado no desenvolvimento de três vias unidas: o discurso, as ferramentas e a visibilidade. Para o autor, um netativista é alguém que utiliza a internet para difundir um discurso e colocar à disposição pública ferramentas que devolvam às pessoas o poder e a visibilidade que costumam ser monopolizadas pelas instituições midiáticas e governamentais. Para o autor, o discurso como prática netativista é de extrema importância, uma vez que são as construções discursivas que estabelecem os componentes identitários elaborados pelos grupos ativistas diante do ambiente distribuído da internet. Os usuários da rede, ao se identificarem com o sujeito destinatário da enunciação e seu discurso, podem se engajar na causa netativista, facilitando “a comunicação entre pares desconhecidos sem que seja necessária a mediação de um ‘centro’, ou seja, assegura o caráter distribuído da rede e, portanto, sua robustez de conjunto” (idem, p. 57). A extensão da ação netativista depende da

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

211

quantidade de enunciadores que se identifiquem com a identidade criada pelos ativistas através do ato de linguagem adotado na rede. Esta empatia criada entre os netativistas e seus enunciadores remete-nos às noções de ethos e pathos apresentada na Retórica, de Aristóteles, que, segundo

Lemgruber

e

Oliveira

(2011),

seriam,

respectivamente,

as

características do orador e do auditório. Além disso, inclui-se na tríade retórica o logos, ou seja, a racionalidade do discurso, que tem o propósito de persuadir o auditório a aderir a uma tese, por meio dos diferentes tipos de acordos e dos tipos de argumentos que expressam a intenção do orador e os efeitos que pretende sobre seu auditório. Enquanto que Aristóteles, na Retórica Clássica, se preocupava em analisar a estrutura da argumentação em discursos grandiloquentes, na Nova Retórica, Perelman e Olbrechts-Tyteca enfatizaram a modalidade escrita, devido à importância que ela adquiriu na sociedade moderna. Na atualidade, a retórica novamente se adapta às inovações tecnológicas dos homens, e, por isso, ela tende a se renovar. Diante de diferentes hábitos e comportamentos comunicativos diversos, a retórica também sofre modificações e emerge no espaço real e virtual de comunicação com outra roupagem. O formato e outras características típicas das mídias e tecnologias digitais criam um ambiente propício ao surgimento de uma novíssima forma de retórica, já chamada de Retórica Digital (XAVIER, 2010), que permite a evolução dos argumentos para além daqueles conhecidos e praticados na oralidade e na mídia impressa, como, por exemplo, a possibilidade de inclusão de imagens em movimento, sons, entre outros recursos. No entanto, mesmo com todas as suas evoluções, a boa e velha Retórica, independente de como, onde e para quem é propagada, guarda características, técnicas e estruturas que são recorrentes, e que, em conjunto, asseguram a sua eficácia. Perelman (1999) afirma que o objetivo de toda argumentação é aumentar a adesão dos espíritos às teses apresentadas. Para o autor, uma argumentação eficaz é a que consegue aumentar a intensidade de adesão, de forma que se desencadeie nos ouvintes a ação pretendida (ação positiva ou abstenção) ou, pelo menos, crie neles uma disposição para a ação, que se manifestará no momento oportuno.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

212

Ferreira (2001) explica que uma das regras a ser levada em conta nas novas mídias é a da economia da significação “que consiste em otimizar a eficiência da mensagem e de adaptá-la às necessidades do meio de comunicação, com o mínimo de esforços de forma a obter a maximização dos efeitos” (FERREIRA, 2001), alcançando, assim, da melhor forma, o possível auditório no ciberespaço. Esse objetivo resulta em uma mensagem com um número relativamente restrito de caracteres e signos e que, ao mesmo tempo, expresse muita informação. Os netativistas, por exemplo, com o propósito de darem mais visibilidade às causas defendidas, utilizam-se, muitas vezes, de uma linguagem atrativa e alarmista - semelhante à da publicidade e propaganda nos meios de comunicação em geral - que chame a atenção da sociedade civil em meio a uma profusão acelerada de informações disponibilizadas no espaço virtual a todo momento (MARQUES; NOGUEIRA, 2012). Rodriguez (2014), por exemplo, tece uma crítica aos discursos ativistas nas redes sociais online, por darem a impressão de que, ao se apropriaram da linguagem da publicidade e utilizarem palavras e imagens de impacto, além de slogans e clichês, na maioria das vezes, acabam reforçando o senso comum ou defendendo ideologias, de esquerda ou de direita, prontas para o consumo rápido, parecendo que há mais propaganda do que militância na internet. A preocupação excessiva com a visibilidade, concisão, e a “venda” de uma ideia, em detrimento da obtenção de juízos de valores razoáveis, ainda que provisórios

e

circunstanciais,

passíveis

de

reformulação,

que

são

extremamente importantes para a vida social (MAZZOTTI, 2011) podem causar o esvaziamento dos debates em geral e, especialmente os educacionais, objetos dessa pesquisa. Por outro lado, Marques e Nogueira (2012) chamam a atenção para o fato de que os ativistas normalmente não se sentem obrigados a discutir com aqueles que divergem de seus interesses. A principal tática de combate é protestar fora dos âmbitos em que ocorrem deliberações institucionalizadas (sobretudo as redes sociais online), de modo a fazer com que o amplo público se torne consciente de erros e injustiças. Essa atitude ativista não é deliberativa no sentido de trocar argumentos em debate, mas ela serve para

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

213

comunicar ideias e valores específicos ao público, desafiando os discursos hegemônicos.

METODOLOGIA Os dados para a pesquisa estão sendo coletados, desde 2013, em grupos de discussões de professores no Facebook. Optamos por restringir nossa pesquisa às discussões relacionadas à educação pública no Rio de Janeiro, resultantes do questionamento em relação à adoção do sistema de metas, imposto pelos governos municipais e estaduais, e a luta desses docentes em prol da “educação pública de qualidade”. Como os dados da pesquisa são organizados em argumentos na modalidade escrita, a tipologia utilizada para essa análise é a sugerida na Teoria da Argumentação (TA) que “cobre todo o campo do discurso visando convencer ou persuadir, qualquer que seja o auditório ao qual se dirija, e qualquer que seja a matéria sobre a qual se sustenta” (PERELMAN, 1999). De acordo com a TA, os objetos de acordo são os pontos de partida para o debate, que são escolhidos na própria argumentação, uma vez que a ambiguidade não pode ser excluída, a princípio. Por esse motivo, os acordos são hipóteses que o locutor adota a partir das quais seu raciocínio se desenvolverá durante a argumentação. Os tipos de objetos de acordo podem se referir ao real (fatos, verdades e presunções) ou se basearem no preferível (valores, hierarquias e lugares do preferível). Para os que se referem ao real, fatos são situados no tempo; verdades se referem a situações atemporais, consideradas não controversas e as presunções remetem ao que é esperado (normal) e ao plausível. Com relação ao preferível, destacam-se os valores que acabam tendo a mesma força dos fatos ou verdades quando são reconhecidos por um grupo social, pois influenciam a tomada de decisões e orientam as ações. Existem também as hierarquias de valores, que fundamentam as preferências, assentando-as nos lugares que julgamos preferíveis. Assim que estabelece os objetos de acordo, o orador se vale de técnicas discursivas para persuadir, e a argumentação pode ser categorizada em esquemas. Os argumentos podem se apresentar por ligação ou dissociação de ideias. Na apresentação por ligação de elementos do raciocínio, busca-se a transferência das premissas para a conclusão, ou seja, a união entre II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

214

elementos do discurso, enquanto a dissociação visa o oposto, a ruptura. Perelman (1999) ressalta que ambas as técnicas, na realidade, são complementares, pois um argumento que dissocia uma noção visa solidarizar outros elementos, e vice-versa. Observamos que a dissociação de noções tem sido usada como base para a criação dos conceitos de qualidade da educação pública adotados pelos grupos pesquisados, conforme apresentado nos resultados parciais. Nesse esquema, o orador separa os elementos do discurso para uma melhor exposição, pois, em conjunto, estes parecem incompatíveis. A dissociação de noções divide para comparar seus termos, sendo o segundo termo aquele que expõe as qualidades consideradas superiores, expressando o que se considera preferível fazer ou ter, instituindo uma hierarquia entre os significados das coisas, o que vale mais e o que vale menos. Além disso, Perelman (1999), seguindo a divisão Aristotélica, classifica os gêneros retóricos em três tipos: deliberativo, judiciário e epidítico. Na presente pesquisa, observamos que o gênero epidítico é amplamente utilizado, conforme apresentado nos resultados parciais. Esse gênero retórico tem como principal objetivo louvar e/ou censurar uma ação, e tem o papel de intensificar a adesão a valores sem os quais os discursos que visam à ação não comoveriam e persuadiriam seus auditórios. Por fim, utilizamos o MEA – Modelo da Estratégia Argumentativa (CASTRO; FRANT, 2011) como instrumental de apoio à análise e interpretação dos argumentos coletados da pesquisa, que resumidamente, se apresenta em três momentos: a) organização dos dados, com a codificação, categorização e construção do corpus de análise; b) estudo comparativo dos dados, esboço dos resultados e interpretação, buscando destacar os acordos e as controvérsias e tornar as informações encontradas de fácil compreensão para os leitores; e c) apresentação dos resultados, sendo as interpretações sustentadas por uma argumentação, ou, seja, tudo o que sugerimos que os sujeitos da pesquisa disseram deve ser apoiado por alguma evidência retirada do próprio discurso.

RESULTADOS PARCIAIS Os resultados parciais da pesquisa mostram que o discurso netativista adotado nos grupos de discussões no Facebook pelos professores tem como II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

215

objetivo principal criticar as políticas educacionais públicas atuais adotadas no Rio de Janeiro, que, segundo os docentes, transformaram a escola pública em uma mercoescola, ou seja, introduziram na escola a lógica da empresa, centrada nos valores da competição, da produtividade, da eficiência, da eficácia e da avaliação seletiva e classificatória, na quantificação e no produto final, com uma gestão baseada na política de meritocracia e bonificação por metas. Além disso, os professores (oradores) têm como finalidade angariar adesão às suas lutas a favor do que acreditam ser a verdadeira escola pública de qualidade, que se baseia na concepção de escola cidadã, enfatizando a solidariedade,

criticidade,

cooperação,

autonomia

moral

e

intelectual,

humanização e avaliação com ênfase nos processos, tempos e ritmos dos alunos, como visto nas falas dos professores a seguir: P1: Quando a educação pública deixar de ser um negócio para seus administradores gestores ou seja lá o nome que queiram dar e mais que isso, forem efetivamente fiscalizados por aquele que é o custa legis (MP), talvez nesse dia nasça a tão esperada e necessária qualidade de ensino, mas enquanto isso não acontecer seguiremos fingindo que ensinamos, os alunos fingindo que aprendem e os gestores felizes da vida com os números estampados nos jornais. P2: Vejam quem se preocupa de fato com uma educação de Qualidade! Muito bom esse relato. Por tudo isso eu também desobedeço as orientações da secretaria de educação, prefiro dar aulas de verdade! Não aplico o SAERJ, nem currículo mínimo, nem lanço nota, e prefiro ser uma boa professora! Dou aula inovadoras! Busco uma formação Cidadã! Faço Greve! E estou na luta por uma Educação Pública Gratuita, Laica, de qualidade e emancipatória! P3: A campanha poderia ser coletiva para a não adoção de material da fundação Roberto Marinho e da Ayrton Senna. Uma percepção que tenho é que não guiamos a nossa militância pela legislação em vigor (ldb, parâmetros e diretrizes curriculares, pareceres), como também não provocamos o Ministério Público com essas questões. Todas as pesquisas sobre educação de qualidade apontam para duas realidades: o papel dos gestores e a autonomia da escola para realizar o seu projeto.

Dessa forma, podemos constatar que as práticas voltadas para a qualidade da educação pública apresentam-se, nessas discussões no Facebook, cindidas entre: a) mercadológicas, que são adotadas pelos

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

216

governantes, e altamente censuradas pela maioria dos docentes e b) cidadãs, que são louvadas pelos professores: P4: A qualidade do ensino público é ruim. Com aprovação automática, desvalorização do professor,o que esperar? Não somos mágicos. Mais um absurdo com objetivo de impedir o projeto de democracia escolar e educação de qualidade. A concentração do poder nas mãos de uma categoria nos levará a uma escola esquizofrênica, habitada por duas castas absolutamente separadas: professores e gestores. Receita perfeita para uma fábrica sob o capital, desastre para um centro de cultura. P5: Desde sempre dizemos que os nossos governantes não acreditam nos planos que eles próprios fazem para a Educação pública. Se acreditassem, seus filhos estudariam na escola pública. E agora a prefeitura do Rio solta na imprensa uma propaganda que mostra alunos apáticos sentados em cadeiras que são carregadas por uma esteira como na linha de produção de uma fábrica. Acabaram deixando escapar o que tinham escondido há tanto tempo: que o objetivo deles é simplesmente formar mão de obra barata, apática e sem nenhum senso crítico.

O esquema argumentativo adotado é o da dissociação de noções, em que o orador separa os elementos do discurso para uma melhor exposição, pois, em conjunto, estes parecem incompatíveis. Uma mesma noção é cindida para separar o que é real do que é aparente ou enganoso. Ao solucionar incompatibilidades, a dissociação reorganiza as concepções do real, divide para comparar seus termos, sendo o segundo termo aquele que expõe as qualidades consideradas superiores, expressando o que se considera preferível fazer ou ter, instituindo uma hierarquia entre os significados das coisas, o que vale mais e o que vale menos (PERELMAN, 1999). A constatação dessas visões dicotômicas nos remeteu ao romance “O Feijão e o Sonho” (LESSA, 2000), que aponta a exacerbação entre o Discurso Utilitário e o Estético – isto é, de um lado o ser racional, representado por Maria Rosa, preocupada com o feijão que alimenta o corpo e, do outro, o ser sonhador, representado pelo poeta Campos Lara. Maria Rosa censura o comportamento do marido, enquanto que Campos Lara enfrenta o dilema de querer viver de sua arte, mas se vê obrigado a dar aulas para manter sua família e abrir mão de seu sonho. Podemos constatar, por meio das discussões analisadas, que uma parcela significativa dos professores vive um dilema, entre “o feijão e o sonho”,

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

217

pois defende mudanças nas atuais políticas públicas, clama, no mundo virtual, pelo fim da meritocracia, bonificação e outras medidas adotadas pelos atuais governos estadual e municipal no Rio de Janeiro, participando ativamente das discussões online, porém, acaba cumprindo o que é imposto pelo governo por medo das represálias, conforme se observa na fala a seguir: P6: Estou vivendo uma crise existencial dentro da minha profissão. A categoria tem horror deste governo e de tudo o que ele representa de negativo para a educação. Não precisamos relatar todos os atropelos, covardias e desmandos contra nossa categoria nestes últimos 8 anos. (...) Mas como pode falar mal do governo e cumprir currículo mínimo, lançar nota num sistema que desvia dinheiro da educação, aplicar uma prova que mascara o sistema e ainda alimenta a justificativa falsa de se estar empregando verbas na melhoria da qualidade do ensino público? Se alguém puder me explica, por favor o faça. Eu só vejo incoerências.

Além disso, quando há convocações para assembleias e adesão às greves, passeatas e manifestações no mundo “real”, boa parte dos professores se omite, por não acreditar mais em mudanças ou por temer ser punido com o não pagamento da bonificação, inúmeros descontos na folha de pagamento, perda da antiguidade e lotação em suas escolas de origem, como podemos ver nos comentários abaixo: P7: O que angustia é que no momento da greve e das lutas mais difíceis, muitos colegas que aqui estão preocupados com bônus, lançamentos no conexão etc. se mantem em silêncio, estão nas escolas adiantando tempo vago por grevistas, fazendo o papel de "bons profissionais" e de que não estão nem aí (sempre falo isso: é mais cômodo fingir que está tudo bem). O silêncio é ensurdecedor! Vejo as postagens aqui diariamente, e esses mesmo colegas não fazem nenhum pronunciamento durante a greve. P6: Será um imenso prazer ver colegas que já nos acompanharam no movimento de greve, no momento em que se abstém da luta, curtir, comentar ou compartilhar as postagens que fazemos, pois o silêncio deles dá a impressão que não estamos juntos na mesma luta!!! o nosso inimigo comum é o governo e não o colega!! estamos do mesmo lado!!

Ao priorizarem o “feijão” em detrimento do “sonho”, os docentes, que participam das discussões online, mas que não aderem aos movimentos offline de transgressão das regras, acabam sendo vistos como traidores por parte

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

218

daqueles ativistas que correm riscos reais, atuando fora do mundo virtual, gerando uma divisão no grupo e enfraquecendo o movimento. Observamos também que o tipo de retórica adotada em grande parte dos discursos é do gênero epidítico. O gênero deliberativo também é encontrado em diversos exemplos, entretanto, percebemos que o grupo opta por priorizar, nessa etapa das discussões, o gênero epidítico, na tentativa de reforçar a disposição à ação, censurando os atos de governos e colegas e elogiando as práticas que consideram superiores em relação às criticadas. Ao amplificarem os valores louváveis, que não são postos em discussão, os ativistas têm a intenção de promover a coesão social do grupo, criando um consenso entre seus membros, exaltando o que é belo e virtuoso e censurando o que consideram o mal, o vício, alicerçando uma “comunidade de espíritos” (BRANDÃO, 2011).

CONCLUSÃO DOS RESULTADOS PARCIAIS Apesar do aparente fracasso da retórica adotada pelo grupo de professores ativistas no grupo de discussões do Facebook para fins de mobilização social e política, pois muitos, apesar de participarem ativamente das discussões, acabam não aderindo às ações offline, acreditamos que ela não deve ser considerada ineficaz, uma vez que, na maior parte das vezes, adota o discurso retórico do gênero epidítico, ou seja, aquele que louva e/ou censura uma ação, e que tem o papel de intensificar a adesão a valores sem os quais os discursos que visam à ação não comoveriam e persuadiriam seus auditórios. Nele, o auditório não é mero espectador, mas é chamado a reagir, a dar uma resposta: aderir a ou rejeitar a luta pela educação pública de qualidade defendida pelos oradores do grupo. Seu objetivo não é necessariamente suscitar uma ação imediata, mas sim criar uma disposição para a ação futura, ao reforçar a comunhão em torno de certos valores. Comunhão essa que não se constrói do dia para a noite, mas que, futuramente, poderá servir de suporte para persuadir e motivar a tão esperada ação offline em massa dos professores, para além do mundo virtual.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

219

REFERÊNCIAS ARAUJO, W. Ciberativismo: levantamento do estado da arte na pesquisa no Brasil. 2011. Disponível em: http://abciber.org.br/simposio2011/anais/Trabalhos/artigos/Eixo%207/10.E7/193 -300-1-RV.pdf. Acesso em: 12 de junho de 2014. _________. “Quanto custa mudar o mundo?” análise da dimensão discursiva do ciberativismo na WikiLeaks. 2012. Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/fronteiras/article/view/fem.2012.142.05. Acesso em: 21 de fevereiro de 2014. BATISTA, J. Apropriações Ativistas em Sites de Redes Sociais: Cartografia das Ações Coletivas no Twitter. 2012. Disponível em: http://meriva.pucrs.br/dspace/handle/10923/2242. Acesso em 28 de outubro de 2014. BRANDÃO, H. H. N. . O discurso epidítico: emotividade, persuasão e ação. In: Análises do Discurso Hoje. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, v. 7, p. 47-67. CASTELLS, M. Redes de Indignação e Esperança. Zahar, Rio de Janeiro, 2013. CASTRO, M; FRANT, J. Modelo da Estratégia Argumentativa. Editora UFPR, Curitiba, 2011. FERREIRA, I. Retórica na época da Internet. 2001. Disponível em: www.bocc.ubi.pt/pag/ferreira-ivone-retorica-internet.pdf. Acesso em: 05 de novembro de 2013. LEMGRUBER, M; OLIVEIRA, R. Argumentação e Educação: da ágora às nuvens. In: LEMGRUBER, M; OLIVEIRA, R (Org). Teoria da Argumentação e Educação. Editora UFJF, Juiz de Fora, 2011. LESSA, O. O Feijão e o Sonho. Global Editora, São Paulo, 2000. MARQUES, A; NOGUEIRA, E. Estratégias de Visibilidade Usadas por Movimentos Sociais na Internet. 2012. Disponível em: http://www.mundodigital.unesp.br/revista/index.php/comunicacaomidiatica/articl e/viewFile/209/135. Acesso em 15 de outubro de 2014. MAZZOTTI, T. Análise retórica e dialética de discursos acerca da educação. 2011. Disponível em: http://www.mazzotti.pro.br/styled/downloads/files/analiseretdialtmazzotti.pdf. Acesso em: 20 de novembro de 2013. PERELMAN, C. O Império Retórico. ASA Editores, Lisboa, 1999. RODRIGUES, J. O Ativismo Virtual é Inútil? Disponível em http://terramagazine.terra.com.br/jose-rodrigo-rodriguez/blog/2014/05/27/oativismo-virtual-e-inutil/. Acesso em: 23 de junho de 2014.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

220

UGARTE, D. O poder das redes. Porto Alegre, EDIPUCRS, 2008. XAVIER, A. A retórica (digital) nas redes sociais. 2010. Disponível em: www.nehte.com.br/.../anais/.../Mesa-Redonda_Antonio-Carlos-Xavier.pdf. Acesso em: 21 de setembro de 2013

ROSA MARIA CARDOSO DOS SANTOS - Graduada em Letras (portuguêsinglês) pela UFRJ (1989) e Mestrado em Educação pela Universidade Estácio de Sá (2010). Atualmente cursa o 4o. período do Doutorado em Educação na Universidade Estácio de Sá e é professora de ensino básico, técnico e tecnológico no Colégio Naval, instituição de Ensino Médio da Marinha do Brasil, em Angra dos Reis, RJ, na área de língua inglesa.

MÁRCIO SILVEIRA LEMGRUBER - Professor adjunto do Programa de PósGraduação em Educação da Universidade Estácio de Sá e coordenador da linha TICPE. Professor associado aposentado da Universidade Federal de Juiz de Fora. Organizador, juntamente com Renato José de Oliveira, do livro Teoria da Argumentação e Educação.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

221

ESCOLA EM DOMICÍLIO COMO TERMO I DA DISSOCIAÇÃO DA NOÇÃO DE ESCOLA Morôni Azevedo de Vasconcellos [email protected] Universidade Estácio de Sá Tarso Bonilha Mazzotti [email protected] Universidade Estácio de Sá

RESUMO No Brasil a escola é hegemonicamente considerada o único espaço legítimo de ensino e aprendizagem. Assume-se que as instituições escolares reguladas por normas estatais produzem a educação de qualidade. Mas, existem outras formas deste fazer,dentre elas a escolarização doméstica (homeschooling). Essa concepção hegemônica sustenta-se na dissociação da noção de escolarização/educação, em que o termo I é a homescholing e o termo II a escola controlada pelo Estado. O termo II estabelece e controla os significados do que se diz ser “educação de qualidade”, o desejável, o Estado educador do povo. Logo, o termo I, escola domiciliar, aparece como carente das boas e superiores qualidades que se diz serem da escola regular, controlada direta e indiretamente pelo Estado. Analisando o que torna a homeschooling tão indesejada, é factível entender o que realmente se espera da educação como seu oposto e o que torna tão persuasivo o discurso associado ao termo II anteriormente apresentado.

Palavras-chave: Homeschooling; Doutrinas Pedagógicas; Análise Retórica, Discurso.

INTRODUÇÃO As ideologias são organizadoras das práticas dos grupos por “fornecer um sistema geral de objetivos ou justificativas para as ações do grupo” (MOSCOVICI, 2012, p. 72), no campo pedagógico se manifestam como doutrinas pedagógicas que organizam e justificam as diferentes formas de escolarização em disputa, conforme expostas por Mazzotti (2008). As doutrinas

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

222

pedagógicas em disputa operacionalizam-se em representações sociais, constituída em torno de uma dissociação na noção de escolarização. […] a dissociação, divide em dois termos uma noção usualmente unida, em que o primeiro termo carece das qualidades que se diz serem completas e superiores do segundo. Assim, quando se afirma que alguém é um pseudo médico, sustenta-se que não possui as qualidades superiores do verdadeiro. (MAZZOTTI, 2014, p. 223-224)

Os defensores da escolarização estatalmente regulada entendem que o termo I da dissociação da noção de escolarização é a homeschooling, o carente das qualidades superiores. O termo II, visto como portador de maiores virtudes, é a educação guiada pelo Estado, totalmente planificada, mesmo quando realizada em instituições privadas. Esta representação hegemônica ou ideológica da escolarização é a expressão da doutrina do Estado educador do povo, o qual deve efetivar o “caráter nacional brasileiro” (MAZZOTTI, 2008, p. 68). A homeschooling, no Brasil, opõe-se à escolarização controlada pelo Estado, portanto os seus defensores expõem as razões que têm para afirmarem as suas posições; da mesma maneira, os defensores da escolarização usual expressam o que lhes parece valioso ao censurarem as posições dos que defendem a escola em domicílio. Tem-se, então, um embate que permite apreender as representações sociais de "escolarização", em uma situação social definida. A escolarização é considerada um bem em si, segundo um conjunto de valores que foi constituído a partir dos meados do século XIX e consolidado depois da II Guerra Mundial. Trata-se de uma ideologia operacionalizada por meio de seus duplos ou suas representações sociais, as quais, nesta proposta de pesquisa, serão analisadas a partir das situações sociais em que a escolarização é posta em questão. Dada a escassez de publicações e artigos acadêmicos sobre o tema no Brasil e a disputa envolvendo diferentes interpretações da legislação em relação à escolarização das crianças, esta comunicação é um primeiro passo para expor o litígio acerca da escolarização estatal, por meio a disputa ente

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

223

ideologias

incompatíveis

organizadas

em

torno

da

dissociação

de

escolarização estatal e a escolarização doméstica.

A LEGISLAÇÃO COMO CONDENSADORA E DIFUSORA DE UM MODO DE PENSAR A EDUCAÇÃO Apesar de perpassar pela legislação Brasileira de todas as épocas, a liberdade de ensinar e aprender nunca se consolidou seja por incoerências na legislação (que afirmava essa liberdade ao mesmo tempo que a restringia), mas principalmente pelas ideologias que permeiam o gênero retórico parlamentar e que sustentam as decisões. Por ser deliberada em um embate retórico e influenciar na difusão das ideologias, seja pela vencedora (que conseguiu maioria parlamentar) definir as normas de conduta ou pela perdedora (que não alcançou a hegemonia) que sofrerá as sanções legais que impedirão ou dificultarão que coloque em prática seus ideais e eventualmente façam a difusão dos mesmos, a legislação pode muitas vezes sofrer influências de sofismas e falácias que como “Por exemplo, recorrer à falácia da autoridade pode ser eficaz para tomar decisão em uma assembleia” (MAZZOTTI, 2015, p. 11). Mazzotti (2008) analisou os discursos dos opositores da liberdade de ensino no Brasil durante os debates sobre a Reforma Rivadávia Corrêa, os quais basicamente se sustentaram em torno de duas críticas contra a desregulamentação da Educação: 1) O povo brasileiro é um povo mestiço, sendo assim o Estado precisa educar o povo para que ele chegue a um estágio superior (branqueamento mental), ou nas palavras do deputado federal João Pandiá Calógeras: mentalidade fraca do produto cruzado; facilidade extrema de desvios sentimentais por insuficiente preponderância desse raciocínio peculiar que a disciplina cerebral imprime nas raças definitivamente constituídas; tais são os motivos que advogam a existência de um regime de transição, [pelo] qual se prepare a maturidade mental das novas gerações (apud MAZZOTTI, 2008, p. 64).

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

224

2)

A falta de controle estatal permitiria que a Igreja Católica Apostólica Romana, dado seu poder e influência, manipulasse a educação em favor próprio e até de um possível retorno da monarquia. o perigo de um conflito entre os laicos e os católicos, pois estes, organizados em suas congregações e escolas, lutavam pela derrocada da República, com o objetivo de restaurar a Monarquia. Assim sendo, Estado republicano precisava preparar sistematicamente seus quadros (MAZZOTTI, 2008, p. 64)

A ideologia do Estado educador do povo, que derrotou a ideologia liberal pregada pela Reforma Rivadávia Corrêa, se consolidou plenamente durante o governo de Getúlio Vargas com duas sucessivas reformas: Francisco Campos e Capanema. Não por acaso até os dias atuais os políticos que reivindicam uma herança getulista defendem uma maior centralização da Educação nas mãos do governo federal, chegando ao ponto do senador Critovam Buarque (PDT-DF) defender que todas as escolas públicas se tornem federais (BUARQUE, 2006), chegando ao ápice daquilo que tanto criticam os opositores

da

escolarização

estatal:

Uma

educação

cada

vez mais

uniformizada de forma arbitrária, ignorando a grande diversidade dos educandos nos mais diferentes estados psicológicos, socioeconômicos, geográficos ou culturais. Dallabrida e Tieve (2012, p. 49) recordam que: A instituição do Ministério da Educação e Saúde Pública, no final de 1930, foi uma inovação do Governo Provisório chefiado por Getúlio Vargas, que concorreu para a centralização e nacionalização do sistema de ensino brasileiro e a tonificação do Estado educador.

Esta centralização absoluta da educação na Era Vargas reflete o próprio ideário getulista de um nacionalismo populista baseado em um socialconservadorismo. Assim sendo a educação neste período passou a ser enfatizar uma formação patriótica (DALLABRIDA; TEIVE, 2012) e ao mesmo tempo acabou com toda a autonomia regional, sendo esta última vista como inimiga da formação de uma identidade nacional e favorecedora de insurreições. Esta visão getulista estava pautada em uma Obsessão de construir uma normalização nacionalizada da sociedade brasileira. Ele anulou o caráter federativo da República, determinou a proibição de falar as línguas alemã (CAMPOS, 1998), italiana e japonesa e asfixiou por meio de uma legislação rigorosa, as chamadas escolas étnicas,

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

225

especialmente as escolas teuto-brasileiras. (DALLABRIDA; TEIVE, 2012, p. 54)

Verifica-se que os argumentos em favor do Estado como educador do povo não se alteraram profundamente desde os debates sobre a Reforma Rivadavia Corrêa (1911) até a Era Vargas.Esta concepção acerca do papel do Estado sustenta-se na necessidade da construção de uma identidade nacional uniforme (seja por questões raciais ou não) e para evitar que a autonomia pedagógica sirva como ferramenta para a sedição (Seja por parte de grupos monarquistas ou de separatistas). A grande mudança está nos defensores de tais teses, já que durante a Reforma Rivadavia Corrêa os católicos eram os maiores interessados na autonomia para fugir ao controle dos positivistas, já na era Vargas os católicos, agora representados no governo pelo ministro Gustavo Capanema, defenderam o fim de qualquer autonomia pedagógica local por terem recuperado forte influência na educação imposta pelo getulismo (DALLABRIDA; TEIVE, 2012). Curiosamente, esta inversão de posições deixará os educadores católicos em uma situação um tanto confusa, afinal tradicionalmente defenderam uma educação liberal (nas artes liberais) como era na pedagogia medieval, focada no debate constante como formador do pensamento, porém ao aderirem a visão do Estado Educador e doutrinador acabam adotando um discurso com muitas incompatibilidades já que defendiam a importância do educador ser um profissional altamente capacitado (ANISIO, 1955) sustentando a mesma metáfora da educação como gestação/maternidade pregada por outros defensores do Estado educador do povo: “a educação é processo vital, verdadeira geração moral.” (ANISIO, 1955, p.56). Ainda sim, os católicos continuaram a criticar a escolarização com base em materiais que não ensinam a pensar e apenas enchem a cabeça dos educandos: “aumenta-se o número de horas de trabalho escolar e não se deixa os alunos o tempo sequer para estudar, pensar, assimilar a matéria do programa.” (ANISIO, 1955, p. 135) esta crítica dos católicos se deve a sua ligação histórica com o trivium e o quadrivium que por sua vez acaba sendo uma porta aberta para o homeschooling (BLUEDORN; BLUERDORN, 2001), ensino esse baseado em poucas matérias e em grande liberdade pedagógica, diferente do ensino comeniano onde o ensino “é uma massa indigesta, ministrado às pressas, com

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

226

o afã de vencer o extenso programa do ano, sem que nada fique assimilado” (ANISIO, 1955, p. 135). A legislação continuará a impor a ideologia do Estado educador durante os governos seguintes, apesar de todas as trocas de regime pelas quais o Brasil de lá para cá. Uma prova disto é que no governo de João Goulart (exministro de Getúlio Vargas) o pedagogista Lauro de Oliveira Lima ocupou alguns importantes cargos de confiança em relação à educação pública federal: Membro Conselho Nacional de representação e consulta do Movimento de Educação de Base, Diretor do Ensino Secundário e posteriormente, já na ditadura militar que derrubou o presidente João Goulart, foi promovido ao cargo de Inspetor Federal do Ensino Secundário. Demonstrando assim que as políticas educacionais não sofreriam uma ruptura neste sentido com a tradição legada por Vargas. Vale lembrar que nem sempre foi assim já que, como nos lembra Illich (2007, 31), “até o século passado, as 'crianças' das famílias da classe média eram formadas em casa com ajuda de preceptores”, sustentando a tese de que a educação deve ser feita fora da escola e longe do controle institucional, prezando a liberdade do educando e do educador.A escola é vista como “campos de concentração preventivos para pré-delinquentes seria um lógico aperfeiçoamento do sistema escolar” (ILLICH, 2007, p. 16). Tanto Illich (2007) quanto Mazzotti (2001) demonstram que Karl Marx não considerava a escola como a formadora das crianças, servindo apenas para transmitir alguns conhecimentos específicos, pois o seu tempo livre e o trabalho é que as formariam como pessoas. Lima (1975) contra Illich (2007) desenvolve a argumentação de a família ser incompetente para educar seus filhos, pois “ou a mãe é incompetente e não deve educar seus filhos ou, ou é competente e deve educar os seus e os filhos das outras” (LIMA, 1975, p. 101), através da metáfora da escolarização como maternidade (gestação extra-uterina) processo civilizacional, ao afirmar que desescolarizar seria o mesmo que impedir a criança de ser civilizada, em consonância com o pensamento de Tahan (1967, p. 7) de que “O professor é um dos esteio da sociedade moderna”, e que

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

227

a destruição da escola como local de encontro obrigatório, onde o conhecimento e os valores são postos em questão... é voltar à sociedade primitiva sem dimensão histórica (retribalização). (LIMA, 1975, p. 104)

Essa crença na capacidade do Estado e na incapacidade da família, inverte a noção da pátria potestas (pátrio poder) herdada da Roma antiga (SÃO JOSÉ, 2014) e que aparece em muitos argumentos em defesa da homeschooling como nos apresentados por Bluedorn (2001), em que a família é a detentora do direito de educar seus filhos como desejar e o Estado não pode ter ingerência nisto. Foi o rei Frederico Guilherme I quem inaugurou o sistema de educação compulsória prussiano, o primeiro sistema nacional na Europa. Em 1717, ele ordenou a frequência obrigatória para todas crianças nas escolas estatais e, em atos posteriores, seguiu com a disposição para a construção de mais escolas (ROTHBARD, 1999, p. 25 apud CELETI, 2001)

A SOCIALIZAÇÃO ESCOLAR Um dos principais argumentos apresentados pelos detratores da escolarização doméstica é o de que as crianças privadas da educação escolar estatal seriam prejudicadas na sua socialização, já que a escola “pode vir a ser o último ponto de encontro em que seja possível a comunicação face a face, antes da chegada da aldeia eletrônica retribalizada” (LIMA, 1975, p. 103). Porém, essa socialização tem seus críticos. Bluedorn (2001) afirma que justamente a socialização forçada com pessoas de má índole e sob valores escolares equivocados pode ser prejudicial para as crianças na medida que podem sofrer bullying por não se enquadrarem, ou podem ser influenciadas pelos colegas de comportamento negativo. Que a escola seja um ambiente socializante não há dúvidas. Entretanto, os críticos do homeschooling parecem tomá-la como o único ambiente socializante. Mesmo que a escola não seja o único ambiente possibilitador de socialização, não é claro o motivo de este ser o melhor e mais desejável. (CELETI, 2001, p. 77)

Se alguns defensores da escolarização estatal defendem que o professor deve ter uma conduta exemplar, assim “o educador deve ter presente em seu espírito o exemplar do homem de bem, o modelo da retidão moral e da virtude.” (ANISIO, 1955, p. 47).Resta saber se o aluno estará com uma melhor

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

228

influência na escola com o mais virtuoso professor e alguns colegas de conduta reprovável ou se no seio familiar. Bluedorn (2001) argumenta que “As escolas se tornaram orfanatos cheios de crianças que foram educacionalmente abandonadas pelos seus próprios pais.” Sendo assim, a escola estatal compulsória acaba por atrapalhar a socialização por simplesmente desunir a família, separando pais e filhos e ao mesmo tempo que retira dos pais a responsabilidade da educação dos seus filhos.

UMA REPRESENTAÇÃO SOCIAL DE ESCOLARIZAÇÃO? Pais, políticos e professores são constantemente chamados a expressar suas opiniões sobre a educação dos filhos/alunos, independente do nível de conhecimento pedagógico que tenha, devem decidir qual é o modelo de educação é desejável e o que faria este modelo educacional ser adotado em detrimento das demais. Neste momento, especialistas e militantes usam as técnicas retóricas para persuadir o auditório a aderirem a escolarização pregada pelos próprios. Através dos discursos, dos debates e embates é possível compreender o que sustenta cada posição ao se observar os seus críticos. A abordagem retórica, proposta por Billig (1991) e por Mazzotti (2008; 2014), entende que as representações sociais são encontradas pela análise dos discursos, por meio da comparação dos argumentos opostos que explicitam as ideologias e crenças que sustentam as metáforas e metonímias, bem como as dissociações de noções que orientam as diferentes tomadas de posição. Aparentemente é possível falar que a hegemonia conquistada pela doutrina do Estado como Educador do povo, passando inclusive por décadas de imposição legal de tal pensamento sobre a educação, forma uma representação social de escolarização através de uma dissociação onde o termo I (visto como inferior) seria a educação sem o controle do Estado e o termo II (tido como superior) seria a educação dentro dos padrões exigidos pelo Estado.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

229

CONCLUSÃO Os resultados preliminares mostram que a hegemonia parece que se tornou uma representação social que reconstituios conhecimentos pedagógicos e psicológicos, para os ajustar à ideologia do Estado educador do povo. O que se faz por meio da dissociação escolarização em uma escolarização vista como precária, perigosa, incompleta (TERMO I) e uma outra vista como racional, científica, superior (TERMO II) como é a escolarização doutrinada pelo Estado educador. Esta representação social de escolarização, se sustenta em argumentos que passam pela incapacidade dos pais, receios de uma manipulação religiosa até falta de controle sobre a qualidade da mesma (LIMA, 1975) e toma como obsoletos ou perigosos os argumentos opostos como o da necessidade da liberdade para um real aprendizado (ILLICH, 2007) ou de que a família é o organismo educador por excelência cabendo a ela a educação das crianças e a escolha dos valores a serem passados (BLUEDORN; BLUEDORN, 2001). Esta ideologia estadocêntrica se perpetua e se firma entre as pessoas com menor conhecimento de causa, muitas vezes até entre profissionais da área que eventualmente nunca se debruçaram mais profundamente sobre o tema como o explicitado por Mazzotti (2014) ao demonstrar as distorções da teoria darwinista na mentalidade geral e de profissionais da biologia (formando uma representação social do darwinismo), que acabam tendo que tomar uma posição sobre o assunto e buscam os oradores que acreditam serem os mais autorizados para que ele traduza o conhecimento científico presente em debates argumentativos para a situação retórica (MAZZOTTI, 2015) que exige uma certa didática (já que o auditório não é conhecedor profundo do tema) e brevidade na exposição (por vezes recorrendo ao uso de slogans e outras frases feitas de fácil apreensão pelo público). Parece evidente que a legislação, forjada no debate entre as diferentes doutrinas litigantes, ratifica a vitória das táticas persuasivas de uma doutrina em detrimento da outra (salvo nos casos em que a disputa permanece com eventuais formações ou não de acordos entre as partes), ao mesmo tempo ela serve como mecanismo inibidor da outra doutrina pela força do Estado ou pela

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

230

difusão do modelo pedagógico de certa doutrina e que se tornou lei (referência).

REFERÊNCIAS ANISIO, Pedro. Tratado de Pedagogia. 4 ed. Rio de Janeiro: Organização Simões, 1955. 590 p.

BILLIG, Michael. Ideology and Opinions: studies in rhetorical psychology. London: Sage Publications, 1991. Tradução: Claudia Helena Alvarenga e Tarso Mazzotti

BLUEDORN, Laurie; BLUEDORN, Harvey. Teaching the Trivium: Christian Homeschooling in a Classical Style. 1 ed. Muscatine: Trivium Pursuit, 2001. 637 p.

BUARQUE, Cristovam. A revolução do lápis. In: Revista Conjuntura Econômica, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, v. 60, n.12, p. 36-39. dezembro 2006 3 p.

CELETI, Filipe Rangel. Educação não-obrigatória: Uma discussão sobre o Estado e o Mercado. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2011. 93 p. DALLABRIDA, Norberto; TEIVE, Gladys. Humanidades, Nacionalismo e segregação de gênero na lei orgânica do Ensino Secundário In: ZARBATO, Jacqueline. Educação, História e Cultura: Reflexões, experiências e diálogos educativos. 1 ed. Blumenau: Ed. Nova Letra, 2012. p. 49-62. ILLICH, Ivan. Sociedade Desescolarizada. 1 ed. Porto Alegre: Deriva, 2007. 114 p.

LIMA, Lauro de Oliveira. O Enfant Sauvage de Illich numa sociedade sem escolas. 1 ed. Petrópolis: Vozes, 1975. 104 p.

MAZZOTTI, Tarso. Educação da classe trabalhadora: Marx contra os pedagogos marxistas. In: Interface – Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu: Universidade Estadual Paulista, v. 5, n.9, p. 51-65. 2001 14 p.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

231

MAZZOTTI, Tarso. Doutrinas Pedagógicas, máquinas produtoras de lítigios. 1 ed. Marília: Poïesis, 2008. 128 p.

MAZZOTTI, Tarso. Retórica e Argumentação na Pedagogia. 1 ed. Marília: Poïesis, 2015. 113 p. Não Publicado

MAZZOTTI, Tarso. Ensino de conceitos Científicos ou de suas Representações Sociais? In: CAMPOS, Pedro Humberto Faria; CHAMON, Edna Maria Querido de Oliveira; GUARESCHI, Pedrinho Arcides. Textos e Debates em Representações Sociais. 1 ed. Porto Alegre: ABRAPSO, 2014. p. 199-234. MOSCOVICI, Serge. A Psicanálise, sua imagem e seu público. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2012. 456 p.

SÃO JOSÉ, Fernanda. O homeschooling sob a ótica do melhor interesse da Criança e do Adolescente. 1 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2014. 256 p. TAHAN, Malba. O mundo precisa de ti, professor.. 1 ed. Rio de Janeiro: Vecchi, 1967. 176 p.

MORÔNI AZEVEDO DE VASCONCELLOS - Mestrando em Educação pela Universidade Estácio de Sá, licenciado em Geografia e pós-graduado (especialista) em Geografia do Brasil. Professor da rede municipal do Rio de Janeiro e ex-professor das redes municipais de Valença, Belford Roxo e Queimados.

TARSO BONILHA MAZZOTTI - Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo. Professor Titular de Filosofia da Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é pesquisador associado da Fundação Carlos Chagas e professor adjunto da Universidade Estácio de Sá.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

232

ÉTICA E PAIXÕES: INTERFACES DE UMA EDUCAÇÃO ÉTICAEMOCIONAL NA FORMAÇÃO DO SER NA CONTEMPORANEIDADE.

Glauria Janaina dos Santos [email protected] Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia – IFBA - Brasil

RESUMO A presente pesquisa investigou as interconexões entre os campos da retórica, da ética e das paixões dentro do contexto de formação profissional. Nessa investigação o campo retórico assume dois papéis, o de teoria e de metodologia de análise. Desse modo, nesse estudo o objetivo foi compreender a partir da análise retórica dos argumentos dos estudantes, docentes e coordenadores, em que medida a escola poderia contribuir para o desenvolvimento de uma educação/formação que favorecesse a construção de princípios éticos e o entendimento das questões emocionais (paixões), isto é, uma dimensão ética-emocional conjuntamente com a formação já instituída no currículo de formação profissional. Dadas as premissas inaugurais, nos ancoramos na Teoria da Argumentação: Nova Retórica, apresentada por Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca; nos estudos de Michel Meyer e Olivier Reboul e nos conceitos de Aristóteles sobre ética e paixões, através de um estudo de caso, cujo campo de pesquisa foi o CEFET- RJ, um centro de educação pública federal, referência para a área de formação profissional no Brasil.

Palavras-chave: Educação.

Ética;

Paixões;

Retórica;

Dimensão

ética-emocional;

PONTO INICIAL PARA REFLEXÃO A Educação é uma atividade eminentemente relacional de interação entre sujeitos. Neste contexto, se apresenta uma rede de múltiplas conexões, que se estabelece para dar sustentação ao sistema educacional. Atualmente vivenciamos um cenário marcado por uma fragilidade nessa rede de interconexões bem como, nas relações entre os sujeitos. Podemos afirmar

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

233

então, que atravessamos um momento onde o discurso pedagógico nos aponta para uma crise que apresenta, além dos problemas que tangem à melhoria dos instrumentos e índices de desempenho pedagógicos, um crescimento abrupto dos conflitos de valores éticos, um recrudescimento da violência, do preconceito racial, social, religioso ou mesmo de gênero praticados dentro e fora da sala de aula, atingindo professores, alunos e demais funcionários desse contexto. A partir desse panorama, muitos questionamentos surgem no sentido de entender as interconexões dessa crise na sala de aula e os reflexos na formação. Na busca pelo entendimento, observamos que independente das situações conflitantes, o sujeito, ator social desse processo, está atravessado por suas paixões. Desse modo, nesta pesquisa propus estabelecer uma conexão entre ética e paixões, utilizando a retórica como base teórico-metodológica de análise para investigar as interfaces entre essas categorias no contexto de formação profissional. O objetivo central foi compreender a partir da análise retórica dos argumentos dos estudantes, docentes e coordenadores, em que medida a escola poderia contribuir para o desenvolvimento de uma educação/formação que favorecesse a construção de princípios éticos e o entendimento das questões emocionais (paixões), isto é, uma dimensão ética-emocional conjuntamente com a formação já instituída no currículo de formação profissional. Como o interesse da análise deu-se no recorte da formação profissional, a pesquisa de campo foi desenvolvida no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca - CEFET-RJ, tendo em vista ser este um centro de referência nacional pública, na modalidade de ensino técnico profissionalizante. No que tangeu ao aporte teórico para sustentar os objetivos pretendidos, assumi nesta pesquisa a definição de Aristóteles (2005) para as paixões, que, segundo o filósofo, estão no campo do conhecimento retórico, ou seja, conhecimentos negociáveis, não lógico-formais, “e são todos aqueles sentimentos que, causando mudanças nas pessoas, fazem variar seus julgamentos, e são seguidos de tristeza e prazer, como a cólera, a piedade, o temor e todas as outras paixões análogas, assim como seus contrários”. As II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

234

paixões têm uma função intelectual, epistêmica; operam como imagens mentais: informam sobre o sujeito e sobre o outro tal como ele age consigo (prazer/sofrimento). Adotei nessa investigação o conceito de ética de Oliveira (2009) como sendo “relativo aos objetos, valores, princípios, normas e hábitos que orientam as ações do homem no contexto de suas múltiplas relações”. As aproximações entre ética e paixão foram estabelecidas a partir da Teoria da Argumentação: nova retórica, desenvolvida por Chaïm Perelmam & Olbrechts-Tyteca (2005) apresentada no livro Tratado da Argumentação na segunda metade do século XX, que possibilita estudar e compreender os diferentes discursos (político, ético, científico, educativo, entre outros) presentes na vida social. Ancorei-me também nos estudos de Michel Meyer (2007) e em Olivier Reboul (2004), visando não só a utilização da taxonomia elaborada, mas também o entendimento da retórica “como negociação das distâncias entre os sujeitos”. A nova retórica é uma retomada da arte retórica de Aristóteles rompendo com os ditames da razão pura, é um tratado sobre a arte de persuadir por meio do discurso. A retórica tem um caráter multidisciplinar e plural, e é importante instrumento para analisar e compreender os argumentos presentes nos mais variados campos das sociedades. Parto da premissa que aprender sobre as paixões – senti-las, diferenciálas, compartilhá-las, entendê-las– é um ato profundamente ético, uma vez que tudo que podemos fazer para aproximarmo-nos de um entendimento das paixões é interpretá-las a partir de nossos valores, histórias, bagagens, o que nada mais é do que trabalhar sobre os juízos de valores possíveis a partir das paixões. Assim sendo, aprender sobre as paixões e compartilhá-las necessita o desenvolvimento de posturas éticas não normativas e não coercitivas que permitam a professor e alunos a argumentação. Outrossim, ao entendermos que a ética é a construção de acordos que reverberam a partir de um debate que respeita os juízos de valor válidos para um grupo social, a ética, em si, é recheada de paixões, já que os valores não podem ser explicados em bases puramente racionais. Compreender sobre suas paixões pode ajudar o homem a ter um domínio de si, a busca por uma Areté. II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

235

UM OLHAR PARA O DISCURSO PEDAGÓGICO Nas últimas duas décadas do século XX assistiu-se a grandes mudanças tanto no campo socioeconômico e político quanto no da cultura, da ciência e da tecnologia. Essas transformações, principalmente as de cunho tecnológico, forjaram um novo tempo, a era da informação, cuja moeda social é o conhecimento. Com a capacidade de romper barreiras e construir redes de conexão inimagináveis, essas mudanças também trouxeram em seu bojo uma parte de desestruturação, considerando a velocidade com que essas transformações se apresentam e o pouco tempo para que possam ser entendidas e absorvidas pela sociedade. Desse modo, ao mesmo tempo em que os benefícios dessas mudanças surgem, se apresentam as dificuldades também capazes de gerar desde atitudes discriminatórias à segregação e violência, pautadas em sua grande maioria pela ausência de princípios éticos que norteiem essas novas configurações, em todos os segmentos da sociedade. A discussão sobre a ética tomou o cenário nos tempos atuais, devido à extensão de denúncias sobre ações de violência, prevaricação, discriminação em todos os âmbitos sociais, inclusive em grandes proporções ocorridas no campo da educação. No Brasil, na tentativa de atender a essa necessidade emergente sobre as questões éticas nesse contexto educativo, foi defendido por meio de documentos oficiais como os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental (PCN) e as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) a inserção da ética nos conteúdos de todas as disciplinas como tema transversal. Contudo, mesmo sendo considerada importante a questão da ética, seja pelas denúncias de ausência ou por sua regulamentação por meio de documentos oficiais, uma questão se fez presente e me motivou na construção dessa pesquisa. Qual a relação existente entre a ética e as paixões, considerando que todas as ações evidenciadas anteriormente como a violência, discriminação, segregação, antes de serem ações puramente racionais, também foram sentidas e, portanto são ações emocionais?

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

236

A ESCOLHA METODOLÓGICA Buscando discutir os aspectos expostos anteriormente e optando por uma metodologia para o estudo, busquei o caminho da argumentação, por ser uma proposição dialógica. Mesmo não tendo sido formulada com a finalidade de estudar a educação, vejo no escopo da proposta - que visa discutir os elementos orador, auditório e discurso, alicerces da argumentação - um suporte, considerando que esses elementos estão inseridos em todos os campos do conhecimento. Segundo Meyer (2001) a retórica é o encontro dos homens e da linguagem na exposição das suas diferenças e das suas identidades. De acordo com o autor, Eles afirmam-se aí para se encontrarem, para se repelirem, para encontrarem um momento de comunhão ou, pelo contrário, para evocarem essa impossibilidade e verificarem o muro que os separa. Ora, a relação retórica consagra sempre uma distância social, psicológica, intelectual, que é contingente e de circunstância, que é estrutural porque, entre outras coisas se manifesta por argumentos ou por sedução (MEYER, 2001, p.26).

Em face ao proposto por Meyer, e trazendo essa discussão para o processo educativo precisamos ensinar nossos estudantes a arte da argumentação, ferramenta indispensável para aprenderem a negociar consigo mesmo e com os outros, considerando que a argumentação parte de uma adesão – o acordo prévio para as discussões sem, contudo, estabelecer um roteiro rígido e pré-definido. A prática da retórica é antiga, no século V a.C. na Grécia já se praticava com uma dupla função: a) ser uma arte produzindo discursos persuasivos b) ser um estudo que explicite as regras dessa arte, no sentido de interpretar o que é persuasivo no discurso. A nova retórica, porém, se apresenta como interessada na interpretação, diferente da anterior que tinha como objetivo a produção do discurso. A retórica se faz presente no discurso sempre que se deseja persuadir alguém de alguma coisa. A retórica é composta por três dimensões, éthos (está vinculado ao caráter – e às paixões - do orador), logos (é a razão na argumentação, está vinculado ao discurso) e pathos (está diretamente ligado às paixões, ao

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

237

caráter do auditório), que juntas estruturam todo o sistema retórico. Conforme define Meyer: O ethos é a qualidade do orador que nos faz acreditar nele, confiar em seu juízo, aceitar o que ele diz sem pôr em causa as respostas (MEYER,2001, p.277); O pathos designa o auditório com as suas paixões e os seus problemas. (Op.Cit. p.278) e; O logos é a dimensão que traz a linguagem, o discurso. É assinalar aquilo de que é questão e dirigi-lo à atenção de um auditório. (MEYER, 2007b, p.65)

A retórica foi vista durante muito tempo como de menor categoria, principalmente por Platão, que atribuía a sua má utilização aos sofistas, reduzindo-a ao intuito de enganar. Perelman & Olbrechts-Tyteca, a partir de Aristóteles, revisam esse conceito e na sua abordagem atribuem um novo significado à retórica, veem-na como um meio de pensar argumentativamente, tornando possível pensar e estudar a argumentação na construção da vida cotidiana, na vida comum, o que nos dá amplitude para estudar os contextos educativos. A argumentação tem como objetivo provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se apresenta. Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) propõem uma articulação constante entre o pensamento e a ação. A argumentação nos proporciona um leque de opções, entre o que é ou não é. Essa abertura de opções se apresenta segundo Perelman e OlbrechtsTyteca (Op. Cit. p.74) por que: A concepção que as pessoas têm do real pode, em largos limites, variar conforme as opiniões filosóficas professadas. Entretanto, na argumentação, tudo o que se presume versar sobre o real se caracteriza por uma pretensão de validade para o auditório universal. Em contrapartida, o que versa sobre o preferível, o que nos determina as escolhas e não é conforme a uma realidade preexistente, será ligado a um ponto de vista determinado que só podemos identificar com o de um auditório particular, por mais amplo que seja.

Dessa forma, a força de um argumento vai depender do apoio do auditório, isto é, do quanto apoiem as premissas propostas na argumentação, sua relação próxima ou distante e sua pertinência para com as concepções desse auditório. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (Op.Cit. p. 35), a força dos argumentos variará, pois, conforme os auditórios e conforme o objetivo da

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

238

argumentação. Assim, o argumento pode ser amplo, porém nunca infinito, pois haverá sempre limites sociais, econômicos, psicológicos, emocionais e éticos. A importância da retórica pode ser mensurada a partir da causa a que se destina, o que irá dar à mesma o parâmetro sobre sua maior ou menor validade, considerando os meios que foram utilizados na ação e nos sentimentos que mobiliza e que gera nos interlocutores uma maior liberdade para agir e se posicionar. Nesse estudo o caminho metodológico escolhido foi o da pesquisa qualitativa, por meio de estudo de caso, onde pretendeu-se analisar os argumentos dos estudantes, isto é, os sujeitos escolares. A via qualitativa é o caminho que mais se adequou à problemática, considerando que a argumentação é qualitativa por excelência já que opera com juízos de valor. Desse modo, um estudo de caso atendia ao objetivo proposto, pois envolvia uma horizontalidade maior na coleta de dados. Desse modo, tendo em vista a delimitação do campo empírico, a pesquisa foi situada na rede pública de ensino da cidade do Rio de Janeiro, de âmbito federal, o Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca - CEFET-RJ, que oferece a modalidade de ensino técnico. A escolha da escola se deveu em primeiro plano ao fato de ser pública, isto é, ser mantidas pelo Estado, que tem como premissa básica garantir a educação para a sociedade. O universo investigado compreendeu os estudantes das turmas do 3º ano do ensino técnico, por considerar que essas turmas já estariam em fase de finalização de seus cursos, portanto, já teriam cumprido quase que totalmente a grade curricular e, assim, poderiam ter mais argumentos a apresentar frente às questões propostas na pesquisa quanto à análise que fazem de sua formação. É importante ressaltar que os sujeitos escolhidos para a pesquisa foram os alunos, foco dessa investigação, contudo, foram selecionados também depoimentos

de

professores

e

coordenadores

para

complementar

a

investigação e fornecer dados para uma triangulação da análise. Segundo Denzin & Lincoln (2006), “o uso de múltiplos métodos, ou da triangulação, reflete uma tentativa de assegurar uma compreensão em profundidade do fenômeno em questão”. Cabe salientar que as teses dos alunos sobre a escola II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

239

não deixam de ser articuladas com as teses de seus professores, seja no sentido de reforçá-las ou no de contra-argumentá-las. Com relação aos instrumentos de coleta de dados foi aplicado um questionário aberto, composto por questões relacionadas aos objetivos propostos no estudo, onde os respondentes (estudantes, docentes e coordenadores) apresentaram seus pontos de vista. A análise das informações obtidas na pesquisa de campo foi realizada qualitativamente, por meio da análise retórica dos argumentos dos alunos e dos professores. A análise retórica é fundamentada na teoria da argumentação, de Perelman & Olbrechts-Tyteca (2005), que ao mesmo tempo é teoria e metodologia, por ser uma proposição dialógica. Possui uma taxonomia vasta e admite fazer a análise dos discursos orais e/ou escritos de forma abrangente. Como proposto pelos autores, o discurso foi analisado pela tipificação dos argumentos, as técnicas argumentativas inseridas na argumentação, que visam à adesão de um auditório às teses determinadas, as quais auxiliam e nos servem para ver o que o orador se utiliza para persuadir.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta pesquisa, conforme já dito anteriormente, teve como objetivo compreender em que medida a escola pode contribuir para o desenvolvimento de uma educação/formação que favoreça a construção de princípios éticos e o entendimento das questões emocionais, isto é, de uma dimensão éticaemocional, conjuntamente com a formação já instituída no currículo. Para tanto, a partir do questionário aplicado, foram analisados os argumentos/respostas dos estudantes, docentes e coordenadores do CEFETRJ, sobre essa questão, com o propósito de atender ao objetivo em referência. O ponto de partida foi investigar as noções que os sujeitos têm sobre as categorias, ética e paixões, norteadoras da pesquisa. Os resultados indicaram que, em sua maioria, estudantes e docentes, compartilham o mesmo conceito sobre ética, ou seja, para ambos a definição é notadamente normativa; isto implica em dizer que a visão ética é mais coercitiva, pautada em normas, que devem ser tomadas como um padrão a ser seguido.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

240

Já os coordenadores, utilizaram preferencialmente a definição descritiva, que traduz o conceito de ética como um fato. Com relação às paixões, os resultados mostraram duas visões distintas: uma, dos estudantes e outra que reúne os docentes e coordenadores. Na primeira a percepção dos estudantes sobre as paixões revela um cunho positivo, atribuem às paixões certo poder transformador, revelaram o amor como sendo sentimento de transformação, e estão imbricadas dentro de um pensamento do senso comum que relaciona proeminentemente ao amorromântico; na segunda visão, os docentes e coordenadores, usaram preferencialmente a definição de condensação, de forma breve e sucinta, notase claramente a pouca familiaridade com o tema. É importante destacar, que as definições nos servem como indícios das predisposições sobre a ação desses sujeitos, considerando que elas convergem todo o esforço em justificar algo que está intrinsecamente ligado aos seus juízos de valor. Outro ponto significativo a ser destacado nos resultados, diz respeito a relação que os sujeitos investigados estabelecem entre ética e paixões. As respostas apresentaram um dado comum para os sujeitos investigados. Tanto os estudantes, quanto os docentes e coordenadores, estabeleceram uma conexão entre ética e paixões, para esses sujeitos, ambas as categorias se interralacionam. Entretanto na justificativa os grupos divergem com relação ao teor dessa conexão. Para os estudantes a relação é positiva, porém as respostas foram agrupadas em dois núcleos, um que ancora essa relação na ética, dando mais importância e reforçando o papel da ética; e outro que transporta a relevância para as paixões. Mas em ambos há uma relação que se apresenta de forma positiva. Essas respostas são explicadas a partir da utilização de argumentos com ênfase na hierarquia. Um exemplo de ênfase nas paixões pode ser visto na resposta “E044: a paixão é um estimulante para questões de ética, quanto mais paixão, mais a capacidade de respeito”. O grupo dos docentes e coordenadores utilizaram em suas justificativas, de um modo geral, o mesmo argumento, de ruptura de ligação, ou seja, mesmo tendo afirmado que há uma relação entre os termos, no momento da explicação, separam os termos e dão ênfase a ética em detrimento as paixões, que são apontadas como um valor negativo. Como podemos visualizar nas II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

241

respostas, “D06: Uma vez que a paixão nos faz esquecer os limites, podemos ter nossas atitudes focadas em conceitos morais e legais comprometidos” e “C06: pela força das paixões, alguns comportamentos e pensamentos podem mudar para não éticos”. Com relação à importância de discutir as questões referentes a ética e às paixões na escola, os professores foram unânimes em dizer confirmar essa importância, nessa justificativa utilizaram preferencialmente o argumento pragmático, quando associaram a uma consequência positiva, no caso colaborar na formação de cidadãos melhores. Essa adesão a uma visão que atribui um valor positivo a dimensão emocional, por parte dos docentes, por ser percebida pelos resultados, onde os mesmos afirmam abordagem essas questões em suas disciplinas. Da mesma forma, os coordenadores também confirmaram que também consideram importantes que essas questões sejam abordadas no curso, para tal justificaram utilizando com maior frequência o argumento da inclusão da parte no todo, onde sinalizam para a indissolubilidade entre ética e paixões. Também informaram que os cursos que coordenam, algumas disciplinas abordam essas questões. As disciplinas citadas pelos docentes e coordenadores, foram do mesmo modo, citadas pelos estudantes, reforçando a existência de uma abordagem para essas questões mesmo com pouca expressividade. Nos

discursos

dos

estudantes,

encontrei

explicitamente

o

posicionamento favorável a abordagem das questões éticas e emocionais, que a maioria considera imprescindíveis para sua formação profissional, mas principalmente para a sua formação pessoal. Em muitas respostas, atribuem a esse conhecimento uma oportunidade de se tornarem melhores, mais completos e conscientes. Tendo em vista os dados apurados nas análises, é possível dizer que a ética e as paixões são campos pouco explorados na escola, e são atravessados por noções oriundas do senso-comum que os colocam em lugares diametralmente opostos. Assim, na percepção dos respondentes, ética e paixões são hierarquicamente diferenciados; a ênfase positiva está na ética, e a visão negativa é vinculada às paixões.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

242

Nesse sentido, temos como primeira resposta para objetivo geral, que tanto a análise teórica quanto a empírica, nos revelam que não existe uma medida exata e pré-definida, pois não se pode prescrever um trajeto único e linear, para um espaço de aprendizagem que congrega sujeitos e situações ímpares e com pouco ou nenhum contato com a dimensão ética-emocional. Mas os dados do campo também revelaram que existe uma lacuna, e consequentemente, uma demanda latente para essas questões, que foram expressas nos discursos dos respondentes. Nota-se claramente, no discurso dos estudantes, docentes e coordenadores, a existência desse espaço para o debate. Desse modo, a não existência de modelo pronto, nos sugere buscar um caminho diferenciado. Encontramos assim no conceito aristotélico de meio termo (MT), uma via razoável para se pensar sobre a contribuição que a escola pode oferecer aos estudantes, que contemple a dimensão ética-emocional conjuntamente em sua formação. Para tanto, podemos utilizar a proposta da nova retórica que busca romper com o primado absoluto da razão que em seu cerne estabelece parâmetros pré-fixados e respostas absolutas, e nos apresenta uma flexibilidade e olhar para as questões que fogem ao absoluto. É uma forma aberta de se construir conhecimento que viabiliza ao estudante raciocinar sobre o seu processo de maneira não coerciva. Segundo Perelman & OlbrechtsTyteca, “o campo da argumentação é do verossímil, do plausível, do provável, na medida em que este último escapa às certezas do cálculo” (2005, p.1), essa então, é uma via confiável para se discutir a ética e as paixões. A retórica é uma via para romper com a prescrição e aceitar que existem medidas adequadas a cada auditório. Não é uma proposta de disciplina, é um conhecimento que pode trazer para a educação a sua natureza argumentativa por vezes esquecida.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

243

REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Retórica das paixões. São Paulo: Martins Fontes, 2000. DENZIN, N. K. & LINCOLN, Y. Introdução: a disciplina e a prática da pesquisa qualitativa. In: Denzin & Lincoln (orgs.). O planejamento da Pesquisa Qualitativa: teorias e abordagens. SP: Ed. Artmed, p.p. 15/41, 2006. ESPINHEIRA Gey. Educação para uma nova sociedade. Conferências do Fórum Brasil de Educação. Brasília: Conselho Nacional de Educação, MEC; UNESCO, 2004. MEYER, Michel. O filósofo e as paixões. Portugal: Edições: ASA, 1991. _____. Questões de linguagem, retórica, razão e sedução. Lisboa: edições 70, 2007. _____. A retórica. São Paulo: Ática, 2007 a. _____. Questões de retórica, linguagem, razão e sedução. Portugal: Edições 70,2007 b. PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005. PERELMAN, Chaim. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

GLAURIA JANAINA DOS SANTOS - Professora Titular do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia – IFBA. Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro- UFRJ. Mestre em Educação pela Universidade Federal da Bahia - UFBA. Especialista em Psicopedagogia pela Universidade Federal da Bahia - UFBA.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

244

GRADUADO EM ENGENHARIA, MAS FORMADO SOMENTE EM CÁLCULO

Adriano José Garcia [email protected] Tarso B. Mazzotti [email protected] Universidade Estácio de Sá

RESUMO Em diversos discursos informais, a engenharia é reduzida ao cálculo, como pode ser constatado pela categorização do curso no grupo das ciências exatas ou quando se diz que foi “um erro de cálculo” ao se identificar uma falha de projeto. Essa situação torna-se um problema quando é assumida pelos envolvidos no ensino de engenharia, resultando em engenheiros graduados que não possuem o conjunto de competências necessárias para o pleno exercício profissional. Utilizando a análise retórica, investigaremos discursos acerca do ensino de engenharia, com o objetivo de identificar quais são os acordos que levaram a organização atual dos cursos de graduação em engenharia e de eventuais representações sociais que condicionam as práticas docentes e podem interferir nesse processo ensino-aprendizagem.

Palavras

chave:

retórica;

argumentação;

psicologia

social;

educação;

engenharia

INTRODUÇÃO Nossa pesquisa, que está em andamento, tem o objetivo de entender a escolarização da engenharia, analisando a necessidade do domínio do cálculo para a graduação, e compará-la com o caráter das engenharias. Nessa comunicação, trataremos de alguns aspectos teórico-metodológicos que fundamentam a investigação e apresentaremos os resultados de uma pesquisa exploratória cuja conclusão afirmou a existência do problema de estudo proposto.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

245

Como as análises que realizaremos envolvem conceitos de Engenharia, Educação, Psicologia Social e Retórica, que são matérias aparentemente distintas, procuraremos expor a possibilidade da transdisciplinariedade que é necessária para que os raciocínios sugeridos sejam plausíveis. Reconhecemos os desafios dessa exposição, pois são evidentes as diferenciações praticadas quando o “fazer" é glorificado pela Engenharia e o “saber", pela Educação. E que apesar das iniciativas para aproximação, a Psicologia Social e a Retórica ainda não foram harmonizadas. Essa composição teórica é necessária, pois pretendemos responder por que o cálculo predomina no ensino se ele não é tão relevante na prática das engenharias, o que envolve acordos entre grupos sociais que são expostos em seus discursos. Por que a ideologia que sustenta a profissão impede que o cálculo seja questionado? Por que os cursos de engenharia ensinam cálculo tendo por objetivo aperfeiçoar o raciocínio? Será que aquela ideologia é traduzida para uso escolar? Então seria uma representação social? As respostas para essas perguntas dependem tanto de um exame da teoria de conhecimento científico e tecnológico que sustenta a engenharia quanto a teoria do conhecimento da engenharia sustentada pelas autoridades que determinam o currículo. A primeira teoria centra-se no caráter do modo de produzir e aplicar conhecimentos confiáveis, os quais podem ser comunicados por meio de modelos, principalmente os algébricos. A segunda, torna o cálculo o fundamento das operações intelectuais do engenheiro, para o qual não existe negociação de significados. Em outras palavras, a teoria do conhecimento científico das ciências naturais e sociais propõe a reconstrução dos fenômenos por meio de modelos e metáforas, os quais podem ser comunicados por meio de alguma álgebra, quando for o caso. Portanto, a essência do conhecimento científico está no modo de produzir modelos e metáforas pertinentes aos fenômenos, não na álgebra, ainda que esta possa ser adequada para comunicar e eventualmente produzir “experimentos mentais”, os quais só têm valor caso se mostrem pertinentes.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

246

Já a teoria do conhecimento que sustenta o ensino parece ser uma redução significativa daquela outra, pois não se ensina o modo de produzir modelos, mas os processamentos dos modelos como simples algoritmos algébricos. Nossa hipótese é que o ensino de engenharia é uma duplicação das ciências e tecnologias escolhidas para o currículo do curso, ou seja, as aulas são orientadas por representações sociais das disciplinas ou por ideologias que doutrinam as práticas docentes. Para

verificação

dessa

hipótese

utilizaremos

a

análise

das

argumentações, identificando os elementos dos discursos e interpretando-os com base na Teoria das Representações Sociais e nos conceitos subjacentes oriundos da Psicologia Social e da Retórica. Essa possibilidade epistêmica, que podemos relacionar à Psicologia Retórica, ampara-se nas abordagens de Tarso Mazzotti (1998, 2002, 2014) e Michael Billig (1991, 2008).

GRADUAÇÃO EM ENGENHARIA Baseadas nas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Engenharia e influenciadas pelas avaliações nacionais, as instituições de ensino superior (IES) distribuem os conteúdos científicos e tecnológicos em disciplinas, criam suas ementas e estruturam os modelos de ensino. Os professores, condicionados pelas orientações institucionais e por suas crenças, elaboram suas aulas. São os conteúdos das aulas e as práticas educativas dos professores que diretamente afetam a formação dos estudantes. Institucionalmente e com o amparo do senso comum, o ensino de engenharia é desproporcionalmente voltado para o domínio de cálculos. Em oposição, a prática profissional exige competências diversas e os poucos cálculos, quando necessários, são executados com o auxílio de equipamentos e sistemas computacionais. A ideologia da redução da engenharia ao cálculo pode ser constata nos discursos informais, desde a categorização do curso no grupo das ciências

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

247

exatas até quando dizemos que foi “um erro de cálculo” quando percebemos uma falha num projeto. Reconhecemos o poder de persuasão de um resultado exato. Os cálculos bem executados atuam como fortes argumentos das soluções que eles propõem, mesmo que partam de premissas equivocadas. O cálculo substitui a negociação de significados que é característica da atuação profissional. O enfoque calculista pode ser evidenciado na Revista de Ensino de Engenharia da ABENGE (Associação Brasileira de Ensino de Engenharia), como no texto de Menestrina e Moraes (2011) que relaciona o baixo desempenho dos alunos no curso de engenharia às dificuldades nas disciplinas matemáticas causadas pela falta de proficiência para executar cálculos básicos. Como solução, eles propõem um curso de matemática básica para os novos ingressos nos cursos de engenharia. Se o objetivo for diminuir a evasão da graduação em engenharia, que em grande parte é causada pelas dificuldades com a abordagem das disciplinas que utilizam a linguagem matemática, levando potenciais bons engenheiros a desistirem do curso, ou que os alunos tenham melhor desempenho nas avaliações das disciplinas ou nos exames nacionais, cursos complementares de matemática podem ser adequados, mas certamente não garantirão uma melhor formação. A imersão nessa matemática desqualificada é ao mesmo tempo causa e consequência das aulas que abandonam a demonstração dos fenômenos para exaustivamente exercitarem processamentos de cálculos mal contextualizados. O distanciamento entre o ensino de engenharia e a atuação prática na área aparece no conjunto de disciplinas, nas aulas e nas avaliações nacionais que as orientam. Ressaltamos que esse contexto é o resultado dos acordos internos aos grupos sociais e entre diferentes grupos. Portanto, para entender essa dinâmica é necessário investigar os aspectos psicossociais que afetam tais tomada de posição.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

248

RETÓRICA E PSICOLOGIA SOCIAL A retórica é uma arte, estruturada como uma ciência, que reúne os conceitos e técnicas para persuadir a audiência utilizando a comunicação organizada de maneira eficaz. Na retórica tradicional ocidental, são caracterizados três meios de persuasão: a ethos, baseada na credibilidade do orador; a logos, que é o conjunto de argumentos empregados; e a pathos, a emoção que é despertada na audiência. Essa persuasão objetiva preservar o indivíduo, seu grupo e seus interesses. É uma reação emocional que consciente ou inconscientemente direciona a fala e os gestos dos indivíduos com o objetivo de influenciar determinada situação. A retórica depende de uma relação interpessoal, de um trabalho cooperativo para efetivar a comunicação, por isso é fundamental que a audiência coopere com o orador, pois sem essa cooperação, os significados não serão compartilhados. Por isso, a compreensão das relações sociais, de como os grupos se organizam e de quais são as comunicações e práticas aceitáveis, ou seja, quais são os acordos e desacordos presentes no meio social, é necessária para entendermos como as argumentações são construídas e para orientar a construção dos nossos próprios argumentos. As relações sociais têm como consequências a formação de grupos sociais, a influência nas identidades dos indivíduos, cuja componente social é inevitável, e é a condição para surgimento de representações sociais. Esses fenômenos estão intimamente vinculados, pois a constituição de um depende dos demais. O grupo é delimitado pelas coincidências entre seus indivíduos e pela diferenciação dos outros grupos, aspectos oriundos da identidade social de seus

membros,

e

essas

condições

criam

representações

sociais

compartilhadas acerca dos objetos do entorno do grupo. A identidade social que delimita o grupo é constituída no relacionamento intragrupo e no contraste com os demais grupos. A necessidade pelo

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

249

reconhecimento no grupo prescreve as práticas dos indivíduos e condiciona as atitudes e as comunicações possíveis. As representações sociais são conhecimentos compartilhados e sustentados

pelos

grupos

que

determinam

as

maneiras

viáveis

de

comunicação e as condutas aceitas pelo grupo. Essas representações sociais são criadas para que os eventos relevantes que ocorrem no campo social no qual o grupo está inserido tornem-se familiares e que, dessa maneira, possibilitem a existência numa realidade consensual (MOSCOVICI, 1988). Quando as pessoas deparam-se com fenômenos sobre os quais ainda não possuem conhecimento pleno, buscam maneiras imediatas de torná-los acessíveis, reduzindo-os a categorias conhecidas e aproximando-os de imagens comuns. As referências utilizadas para apreensão desses novos objetos são as noções presentes na memória coletiva e os lugares do preferível, portanto evidentes para o grupo. Cada um desses fenômenos permanecem em equilíbrio instável, que não se consolida e sofre tensões regulares para a mudança desse estado. Novas informações, a evolução das relações humanas, a necessidade de práticas sociais discretamente diferentes das permitidas ou exigências de mudanças abruptas, podem causar ruptura nos grupos, esvaecimento do sentimento de semelhança com os demais integrantes do grupo e a novas maneiras de representar o entorno. Além dos fatores culturais amparados na memória coletiva, outros dois tipos de fatores influenciam as representações sociais: os fatores ligados ao sistema de normas e valores e os fatores ligados à atividade dos indivíduos. E as práticas desenvolvidas pelos sujeitos são prescritas por esses fatores, pois não é possível agir de maneira que não pareça aceitável para o sistema de valores e o sistema de antecipações e expectativas, gerado pelas representações, agem sobre a realidade e estão na origem das práticas. Como as práticas sociais são condicionadas pelos grupos de pertença dos indivíduos que aderem a elas afim de reforçar suas identidades sociais, todos os profissionais desenvolvem suas atividades para serem aceitos e reconhecidos por seus grupos sociais (MOSCOVICI, 1981).

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

250

Considerando a prática profissional como interesse primário dos indivíduos, sua relevância é indiscutível, fazendo com que os indivíduos assumam um posicionamento e, portanto, identifiquem-se com grupos sociais específicos e orientem-se por crenças e valores compartilhados pelos membros dos grupos. As

profissões

estabelecidas

pelo

conhecimento

prático,

cujas

competências são desenvolvidas apropriando os conhecimentos desenvolvidos por cientistas e/ou experts, conciliando-os com práticas assimiladas dos mentores ou desenvolvidas ao longo da própria atividade profissional, que é o caso da docência, são prescritas pelas ideologias e representações sociais da profissão. Analisando esses fenômenos, pode-se compreender os interesses, as dificuldades, as frustrações e as potencialidades da comunidade de professores e preparar maneiras efetivas para que a formação docente seja um processo que traga melhores resultados.

ANÁLISE RETÓRICA O conhecimento desenvolvido pela ciência ou normatizado pela regulamentação não aparece numa aula regular. O professor, ao preparar sua aula, maneja os lugares do senso comum acerca dos assuntos abordados pela disciplina. Os esquemas retóricos, que são as opções de escolha e organização das informações visando a adesão do auditório ao discurso, construídos pelos professores são determinados pelas formas como eles entendem a docência e pelas comunicações que eles estão aptos a executar. Em nossa pesquisa, procuraremos focar no aspecto argumentativo da retórica. A invenção e organização dos argumentos, os lugares preferíveis pelos grupos que podem servir de base para as premissas dos discursos, a lógica da argumentação e eventuais paralogismos, e demais fatores que permitem entender os propósitos da construção de um discurso e os interesses que levam à sua aceitação.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

251

A

estruturação

da

retórica

depende

de

cinco

momentos,

os

denominados "cinco cânones da retórica": 1) invenção, que é o momento da criação, o planejamento do conteúdo (ideia) e a preparação dos argumentos; 2) arranjo,

ou

organização

do

conteúdo

de

uma

maneira

estruturada

(principalmente considerando proêmio, narração, provas e epílogo); 3) estilo, que é a determinação da forma adequada de apresentação, que pode receber adornos artísticos; 4) memorização do discurso; e 5) declamação (delivery), que consiste no controle da comunicação, pela escrita, pela entonação vocal, pela utilização de gestos adequados ou de qualquer meio que expresse adequadamente o discurso. Essas cinco dimensões podem ser reconhecidas no processo de criação de discursos, de documentos, de leis, de filmes, de campanhas publicitárias, de artes visuais e de aulas, portanto é perfeitamente adequada a análise retórica dessas comunicações. Cada uma dessas intervenções visam não apenas comunicar ideias, e sim afetar determinada situação atingindo os resultados esperados pelo orador. A análise retórica, referenciada em Perelman e Olbrechts-Tyteca (2000) e (MAZZOTTI, 2002), pode ser aplicada às entrevistas de professores, aos documentos das entidades de classe, às aulas gravadas em vídeo e às demais formas de apresentação dos discursos acerca da docência, possibilitando a identificação dos elementos centrais do discurso e a maneira como eles são organizados para dar significado aos objetos relevantes ao grupo social, ou seja, como os professores representam as práticas educativas. O procedimento de análise retórica inicia-se pela identificação de quem está falando e de quais atributos qualificam esse orador perante o grupo, de qual é o auditório, o grupo ou grupos que são afetados pelo discurso e do propósito do discurso. Em seguida, são relacionados os acordos dos quais partem as premissas. Alguns deles baseados no real, ou seja, em fatos, verdades e presunções aceitos hegemonicamente, e outros baseados no preferível, que são os valores e lugares reconhecidos pelo grupo social para o qual o discurso é direcionado.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

252

Os argumentos podem ser apresentados literalmente ou serem ditos por analogias. Por isso é fundamental entender os predicados que estão sendo transferidos de um foro para o tema pelas metáforas e metonímias, e quais remanejamentos conceituais estão presentes em eventuais dissociações de noções. Especialmente na Educação, os discursos comumente são organizados por diversos slogans, que, ao mesmo tempo, condensam significados e dão oportunidades de interpretações múltiplas. Com a observação atenta também pode ser possível identificar ironias que vêm em construções sutis e somente são percebidas com o aprofundamento da análise e o entendimento dos contextos. Após a identificação do conjunto de premissas e argumentos, encaminha-se a análise da estrutura lógica do discurso, verificando os silogismos e entimemas e a coerência das conclusões apresentadas. Dessa maneira, podemos identificar os elementos presentes nos diversos discursos e, como são declamados por oradores autorizados, desvelamos as representações sociais que viabilizam tais comunicações e as posições que elas denotam. A análise dos dados coletados resultará na identificação das eventuais associações e/ou dissociações e servirá de base para propostas de alinhamento de propósitos, afinal pressupõe-se que a expectativa do Conselho Nacional de Educação, que os interesses das empresas e que os conhecimentos efetivamente adquiridos pelos formandos em cursos de engenharia convirjam para um conjunto de competências comum.

PESQUISA EXPLORATÓRIA Na pesquisa exploratória, foram analisados 7 vídeos de aulas de Física que tiveram mais de 20.000 visualizações, exposição suficiente para que os professores possam ser considerados oradores autorizados de seus grupos. Nessas aulas, dois acordos foram regularmente observados, um relacionado ao conteúdo apresentado pelas disciplinas e outro relacionado à persuasão para dedicação ao estudo da Física.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

253

Quanto ao conteúdo, a discussão acerca dos fenômenos físicos praticamente não é utilizada e o foco conceitual é dado na demonstração das fórmulas que descrevem os fenômenos. Com isso, a Física como ciência é substituída por expressões algébricas que formalizam aspectos pontuais e simplificados dos fenômenos. Ensinar Física torna-se ensinar a álgebra que opera com variáveis nomeadas pela Física. Os argumentos amparados na álgebra tornam-se falácias, pois o professor não consegue descrever um fenômeno e a partir dele formalizar uma equação. A equação torna-se uma petição de princípio, não tendo justificativa fora do jogo algébrico construído. Os discursos explicitam esse lugar-comum, como no caso do professor que justifica sua primeira aula dizendo: "É um capítulo mais ou menos teórico, eu vou fazer muito de conversa e pouco, ou quase nada, de contas" (YOUTUBE, 2014a). Como se deixasse de ser uma aula de Física quando fazse poucas contas. Também podem ser observados apresentação de outro professor que diz:

erros

conceituais,

como

na

Imagine que você vai fazer uma viagem. Você sai da sua casa, vai até a Baixada Santista e volta para sua casa. Veja que você foi e voltou. A sua posição inicial: sua casa, sua posição final: a sua casa, veja que o delta "S" é zero. Você fez uma viagem sem se deslocar (YOUTUBE, 2014b).

Nesse caso, ou o professor foi traído pelo abuso no uso da equação ou ele não entende os fundamentos teóricos de movimento da Física básica que tenta ensinar. Quanto à persuasão, para que o aluno dedique-se aos estudos da Física, os argumentos são organizados em torno da necessidade de conseguir nota na prova. Perde-se a oportunidade de vincular os conhecimentos adquiridos na disciplina à realidade percebida pelos alunos e às aplicações quotidianas, que seriam objetos de acordo mais eficazes para quem dedica sua energia à aquisição de conhecimentos. Os professores de Física não exploram com eficácia as experiências, as demonstrações ou os exemplos de aplicações como elementos persuasivos.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

254

CONSIDERAÇÕES FINAIS Os discursos dos professores de Física, área que abrange diversas disciplinas de fundamentação e que ocupa parcela considerável da carga horária da graduação em engenharia, evidenciam dois acordos principais: (1) os fenômenos físicos devem ser explicados utilizando-se expressões algébricas, mesmo que para isso sejam necessárias simplificações da realidade observada, e (2) a aprovação na disciplina é suficiente para persuadir os alunos, negligenciando-se as aplicações dos conceitos. Esses acordos podem ser condicionados por representações sociais ou por ideologias, e indicam que para uma formação efetiva em engenharia, são necessárias alterações na organização e condução dos discursos. O processo ensino-aprendizagem, seja na abordagem tradicional, que tem o professor como agente do ensino, ou nas visões contemporâneas, que colocam o professor como líder e mediador que auxilia os alunos no processo de aquisição de conhecimentos e no desenvolvimento pessoal, exige mais do que a simples demonstração de teorias. É essencial que os alunos entendam a importância de desenvolver as habilidades e competências propostas pelas disciplinas de maneira que sejam úteis na prática profissional e que sejam persuadidos a dedicar seus esforços ao longo processo de aprendizagem. Os próprios meios sociais onde os alunos vivem exercem pressões quanto à importância dos estudos, determinando a formação acadêmica como o principal objetivo da vida do aluno. Mas, para que um aluno decida dedicar-se a uma disciplina em detrimento de todas as demais alternativas para uso de seu precioso tempo, incluindo as demais disciplinas, outras exigências quotidianas e os necessários momentos de lazer, o professor precisa persuadilos a isso. Portanto é necessário um esquema retórico adequado para que essa negociação seja bem-sucedida. O esquema retórico preparado pelos professores poderia ser construído considerando a ciência ou tecnologia que fundamenta a disciplina, as diretrizes curriculares e os fatores organizacionais, e incluindo elementos e práticas para influenciar os alunos.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

255

A Engenharia oferece muitas possibilidades para que as práticas educativas explorem a realidade percebida pelos alunos e que sejam relacionadas com situações do quotidiano da profissão. Identificando os aspectos principais dos discursos acerca do ensino das disciplinas que compõem o curso de engenharia, é possível repensar o processo de formação docente para que o curso de graduação possibilite a efetiva formação de engenheiros.

REFERÊNCIAS ___________. Social Representation and Rhetoric. In: BILLIG, Michael. Ideology and opinions: studies in rhetorical psychology. Capítulo 3, pp. 57-78. Tradução de Claudia Helena Alvarenga. London: Sage Publications, 1991. ___________. Argumentando e pensando: uma abordagem retórica à psicologia social. Tradução de Vera Lúcia Mello Joscelyne. Petrópolis, Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2008. (Coleção Psicologia Social) BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional da Educação. Resolução CNE/CES 11, 2002. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Engenharia. Brasília, DF, 2002. Disponível em . Acesso em 01 jun. 2013. MAZZOTTI, Tarso B. Representaciones sociales, ‘habitus’ e epistemología genética: contribuciones de la lógica de las significaciones y de la lógica de las acciones a la lógica natural. CUARTA CONFERENCIA INTERNACIONAL SOBRE LAS REPRESENTACIONES SOCIALES. Ciudad de México. 25-28 ago. 1998. ___________. Núcleo figurativo: themata ou metáforas? Revista da Psicologia da Educação, São Paulo, n. 14/15, 2002. ___________. Ensino de conceitos científicos ou de suas representações sociais? In: CHAMON, Edna Maria; GUARESCHI, Pedrinho; CAMPOS, Pedro Humberto (Orgs.). Textos e debates em representação social. Capítulo 7. pp. 199-233. Porto Alegre: ABRAPSO, 2014. MENESTRINA, Tatiana C.; MORAES, Anselmo F. Alternativas para uma aprendizagem significativa em engenharia: curso de matemática básica. In: Revista de Ensino de Engenharia, v. 30, n. 1, p. 52-60, 2011. Disponível em: < http://www.abenge.org.br/revista/index.php/abenge/issue/view/23>. Acesso em 18 mar. 2014. MOSCOVICI, Serge. On social representation. In: FORGAS, J. P. (Ed.). Social Cognition (pp. 181-209). London: European Association of Experimental

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

256

Social

Psychology/Academic

Press,

1981.

___________. Notes towards a description of social representations. European Journal of Social Psychology, v.18, p. 211-250, 1988. Tradução de Glaucia Alves Vieira. PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

da

YOUTUBE. Aula do curso regular de graduação Física Geral I. Instituto de Física Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Campinas. Apresentado por Prof. Luiz Marco Brescansin. Disponível em: . Acesso em: 30 mar. 2014. YOUTUBE. Física - Cinemática - Aula 1. Portal Stoodi. Apresentado por Prof. Wanys Rocha. Disponível em: < http://youtu.be/WUUdb-ptaI0>. Acesso em: 30 mar. 2014.

ADRIANO JOSÉ GARCIA - Doutorando em Educação pela UNESA e mestre em Engenharia de Produção Global pela University of Michigan - USA. Atua como professor e coordenador de cursos de gestão e de engenharia. Investiga a formação de engenheiros utilizando a análise retórica e estuda as artes da Argumentação como instrumental de pensamento necessário para a docência no ensino superior.

TARSO BONILHA MAZZOTTI - Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo. Professor Titular de Filosofia da Educação pela UFRJ. Atualmente é pesquisador associado da Fundação Carlos Chagas e professor adjunto da UNESA.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

257

MARCOS DO DISCURSO DEWEYANO SOBRE A ARTE: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA PROBLEMATIZAR O ENSINO DAS LINGUAGENS ARTÍSTICAS Erika Natacha Fernandes de Andrade [email protected] Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – USP

RESUMO O objetivo deste trabalho é apresentar alguns aspectos da filosofia de John Dewey sobre a arte e a estética, visando mostrar em que medida o pensador contribui para a construção de argumentos acerca do ensino das linguagens

artísticas.

Por

meio

da

abordagem

teórico-metodológica

denominada análise retórica, busca-se elucidar os marcos discursivos presentes nos escritos deweyanos sobre arte, o que diz respeito a modos próprios de argumentar por meio de estratégias discursivas que visam à persuasão dos leitores. A primeira parte do texto contextualiza a arte no âmbito do pensamento filosófico deweyano; a segunda é dedicada à apresentação do marco discursivo concernente ao uso de uma estratégia argumentativa de hierarquização, por meio da qual Dewey apresenta a arte como forma superior de linguagem, e, consequentemente, como o principal meio comunicacional e educativo. A conclusão traz algumas inferências sobre a relação de Dewey com sua audiência, além de considerações sobre a relevância de investigar as dimensões argumentativas do discurso deweyano sobre arte e estética.

Palavras chave: John Dewey; Análise retórica; Filosofia da arte; Ensino da arte.

INTRODUÇÃO John Dewey (1859-1952), um dos fundadores do Pragmatismo, formulou proposições filosóficas e educacionais e debateu a centralidade da noção de democracia no processo de desenvolvimento humano, oferecendo as bases do movimento de renovação de teorias e práticas pedagógica ocorrido desde o

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

258

início do século XX. Ampliando os alicerces de seu ideário, Dewey abordou variadas temáticas, fazendo importantes incursões nos domínios da arte. No Brasil, nas décadas de 1920 e 1930, as formulações deweyanas sobre a arte foram interpretadas e apropriadas de diversas maneiras, em particular na educação, esfera em que se tentou transformar os seus pressupostos em práticas e métodos de ensino. O interesse pelo estudo das formulações deweyanas sobre a experiência estética ainda se mantém, atualmente, em particular nas áreas de epistemologia e história da arte, em que também se discutem as suas potencialidades educacionais. Vários pesquisadores destacam a relevância das teorizações de Dewey para a promoção de uma pedagogia poética, na qual se integram aspectos intelectuais, emocionais, éticos e estéticos. Em outra vertente, Dewey é criticado por arte-educadores que analisam o fato de suas ideias não contribuírem para estabelecer vínculos claros entre estética e educação. Considera-se, por exemplo, que os conteúdos apresentados pelo filósofo na obra Arte como experiência são insuficientes para equacionar os problemas relativos à formação artística dos indivíduos. A Ana Mae Barbosa (1998; 2002) contraria esse ponto de vista e sugere que os escritos deweyanos sobre arte constituem, por si mesmos, uma celebração da educação artística e estética. Tomando por base as apreciações de Barbosa, buscamos investigar em que medida Dewey, ao elaborar uma filosofia da arte, constrói sólida argumentação sobre o ensino da arte. Por meio da metodologia denominada análise retórica, apresentaremos os marcos discursivos presentes nos escritos deweyanos sobre arte, o que diz respeito a identificar seus modos próprios de argumentar por meio de estratégias retóricas, visando à persuasão dos leitores. Com este método, torna-se possível identificar as maneiras autorais pelas quais é territorialisada a defesa de algumas teses, o que auxilia no esclarecimento de proposições em que não se evidencia, à primeira leitura, a presença da temática educacional (SILVA, 2013). As análises realizadas até o momento permitem identificar dois marcos discursivos relevantes nos textos deweyanos. O primeiro concerne ao uso de uma estratégia argumentativa de hierarquização: considerando a arte uma forma superior de linguagem, Dewey a apresenta como o principal meio II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

259

educativo existente e destaca as obras de arte como imprescindíveis para a formação da humanidade e para o cultivo da imaginação. O segundo remete a uma estratégia argumentativa de retorno às origens, cujo uso possibilita discorrer sobre a gênese da arte na experiência humana, abordando a educação do ato expressivo, da percepção estética e do fazer artístico. Além de contextualizar a arte no âmbito do pensamento filosófico deweyano, o presente trabalho discorrerá somente sobre o primeiro desses marcos. Com esta pesquisa, vinculada às produções do Grupo de Pesquisa Retórica e Argumentação na Pedagogia (USP/CNPq), espera-se contribuir para a elucidação dos princípios deweyanos relativos ao vínculo entre arte e educação, sem ter a pretensão de decodificá-los em métodos, o que poderá ser feito oportunamente. A intenção, neste momento, é estabelecer referenciais teóricos para problematizar o ensino das linguagens artísticas no âmbito de estudos empíricos em instituições escolares, como também fornecer elementos para que os educadores desenvolvam autonomia para decidir quanto a propostas artísticas na educação escolar.

A ARTE NO PENSAMENTO FILOSÓFICO DEWEYANO Elaborando o conceito de experiência, central em seu ideário, John Dewey explica que a interação entre o organismo do homem e seu meio de vida é o que possibilita a elaboração humana, no que inclui a constituição dos significados, conhecimentos e valores válidos em uma comunidade. O filósofo discute as relações entre experiência e arte diversas vezes ao longo de sua vasta obra, mostrando que a experiência verdadeiramente educativa – e, portanto, humanizadora – é aquela que se apresenta enriquecida em possibilidades de significação, habilitando as pessoas para novas experiências, e também a que se reveste de um componente estético, favorecendo a melhoria e o aproveitamento das vivências. Na perspectiva deweyana, a arte remete à ação intencional de criação, envolvendo manuseio, refinamento, combinação, montagem etc. de materiais e energias, até que tais elementos atinjam um novo estado e uma nova forma, proporcionando ao criador uma satisfação não sentida quando tudo ainda se encontrava em estado bruto; a estética remete às paixões e aos prazeres que são suscitados quando as pessoas veem, ouvem, tocam, movimentam ou II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

260

apreciam algo natural ou decorrente de produção humana, que expressa – ou leva a pessoa a sentir – a coordenação e a unificação de qualidades antes separadas, concorrentes e difusas. Para o filósofo, a produção artística está profundamente ligada ao sentido estético, e vice-versa, uma vez que há paixão em toda criação, assim como há possibilidades de imaginação e criação toda vez que o homem participa de experiências estéticas (DEWEY, 1958/1925; 1959/1916; 2010/1934). Relacionando tais domínios à vida do homem comum, Dewey mostra que, quando uma experiência qualquer é concebida artística e esteticamente, ela não é um mero fazer ou uma atividade mecânica. Nas experiências com qualidade artística – que unificam as dimensões intelectual, emocional e prática –, a ação humana direciona intencionalmente os eventos, quer usuais, naturais, ou

fortuitos,

até

alcançar

significações

capazes

de

proporcionar

o

enriquecimento interior, bem como o sentimento de satisfação. A preparação de uma refeição, a programação de uma viagem, ou a realização de um projeto sobre cultura africana com crianças de seis anos são experiências artísticas, se no decorrer de todo o processo a consciência regular os movimentos até atingir situações significativas e satisfatórias, as quais serão instrumentos para futuras experiências

também

consumatórias,

vívidas

e

educativas

(DEWEY,

1958/1925; 1959/1916; 2002/1922). Dewey (1958/1925; 2010/1934) acrescenta que a qualidade estética de uma experiência está presente tanto no estágio de sua finalização, em que se dá a elaboração ou a reconstrução de significados e o consequente contentamento, quanto no decorrer de todo processo de percepção e/ou produção que regula as atividades. Nas experiências estéticas, uma unidade enriquecida penetra toda a vivência, a despeito da diferença de suas partes constitutivas, fornecendo às pessoas a sensação de terem explorado ao máximo todas as possibilidades de ação. Uma refeição, um banho, a escuta de uma história, o encontro de um amigo, e até mesmo um ato de pensamento são experiências estéticas quando levam os indivíduos a se envolverem em suas atividades mentais e corporais, até obter um desfecho coordenado, porquanto significativo. Identificando a funcionalidade das qualidades artística e estética na vida humana, John Dewey defende, em consonância com seu ideário pragmatista, a II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

261

indissociabilidade entre investigação científica ou reflexão filosófica e arte/estética, contrariando alegações acerca da superioridade da contemplação em detrimento da ação prática, as quais afirmam a gênese transcendental do pensamento reflexivo. Dewey prefere ver a mente como produto dependente das relações e interações do organismo com o ambiente. Assim, sugere que os procedimentos humanos – científicos, morais, técnicos etc. – não decorrem de prescrições, competências inatas ou forças superiores, mas de processos dinâmicos, interativos, contextuais, que levam em conta a racionalidade e as paixões, bem como as regras acordadas e as possibilidades de transgressões, abrindo portas para novas criações e para a concretização do idealizado (DEWEY 1953/1933; 1958/1925; 1959/1916). O exame das características artísticas e estéticas da experiência leva Dewey a uma série de reflexões no domínio da arte. Em 1895, após ingressar na Universidade de Chicago, Dewey dirigiu uma inovadora escola de ensino elementar, tendo por objetivo testar a aplicabilidade de suas teses filosóficas, psicológicas e educacionais, e promover novos métodos para o ensino (CUNHA, 2010).13 O currículo da Escola Elementar da Universidade de Chicago, também conhecida como Escola Laboratório, foi organizado por meio de três eixos integradores de conteúdos, sendo um deles denominado “instrumentos de expressão e comunicação”, com a valorização da arte como meio de significação imprescindível (TEJADA, 2002, p. 77). O interesse de Dewey pela arte e os seus conhecimentos nessa área foram aprimorados pelo estreito contato que manteve com seus pares na Universidade de Columbia, como Meyer Schapiro (1904-1966), historiador da arte; Irwin Edman (1896-1954), filósofo que atuou como vice-presidente do Instituto Nacional de Artes e Letras, atual Academia Americana de Artes e Letras, com sede em Nova York; e Sidney Hook (1902-1989), filósofo pragmatista que foi membro da Academia Americana de Artes e Ciências. No ano de 1924, John Dewey recebeu convite para ser o primeiro presidente e diretor educacional da Fundação Barnes, cujo objetivo era promover a apreciação das artes e da horticultura e oferecer programas de 13

John Dewey iniciou sua carreira universitária na Universidade de Michigan, em 1884, indo para a Universidade de Chicago em 1894. Ingressou em 1905 na Universidade de Colúmbia, em Nova York, integrando-se ao Teachers College, importante centro especializado em assuntos educacionais, onde se aposentou em 1930 (CUNHA, 2010).

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

262

arte-educação. Na companhia de Albert C. Barnes (1872-1951), estudioso e colecionador de arte, criador da referida Fundação no ano de 1922, Dewey concebeu um programa educacional em arte, cujo princípio era auxiliar as pessoas

de

variadas

etnias

e

classes

sociais

a

conhecerem

arte,

desenvolverem sua consciência estética e alcançarem autonomia para analisar e interpretar os significados de suas percepções, tendo em vista o enriquecimento da vida pessoal e a possibilidade de integração em uma democracia participativa (JOHNSON, 2012). A partir de uma série de dez conferências na Universidade Harvard sobre a filosofia da arte no ano de 1931, John Dewey elaborou a obra Arte como experiência, publicada em 1934, para explicitar os princípios de sua concepção artística e estética. A título de aprofundar a discussão dessa temática, também elaborou alguns ensaios sobre arte e sobre a relação entre arte e educação, além de revisões críticas de livros que tematizavam a história, a filosofia e o ensino da arte. As concepções de Dewey sobre nessa área são constantemente

examinadas,

evidenciando

a

sua

contribuição

para

incrementar reflexões no campo da estética e do trabalho artístico.

HIERARQUIZAÇÃO: A ARTE COMO FORMA SUPERIOR DE LINGUAGEM John Dewey (1953/1933) concebe que, para além do discurso oral e escrito, os gestos, figuras, monumentos, imagens visuais, movimentos dos dedos etc., quando usados de modo a sugerir alguma coisa, expressando uma ideia, tornam-se sinais convencionais, podendo ser entendidos como formas de linguagem. Dewey destaca a centralidade da linguagem nos processos educativos, políticos e democráticos, postulando que a comunicação veiculada pelas diferentes formas linguísticas garante a existência e a continuidade da sociedade, integrando seus pretensos membros e os transformando em seres pertencentes a dado agrupamento social (CUNHA, 2005; ANDRADE, 2014). No que tange à educação escolar, Dewey ressalta que a linguagem é o que possibilita a comunicação dos saberes científico-culturais construídos historicamente pela humanidade, visando conservar e transmitir o que as gerações passadas construíram de melhor. O compartilhamento de saberes concernentes a valores, atitudes, condutas etc., que exercem igual influência na formação dos hábitos de pensamento e comportamento, também constitui II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

263

objetivo da educação como forma de comunicação, pois amplas experiências linguísticas ajudam os educandos a manterem abertos os canais da imaginação e da ousadia, com vistas à superação dos padrões estabelecidos (CUNHA, 2005). Em Arte como experiência, Dewey (2010/1934) hierarquiza a arte como um tipo superior de linguagem. Sem desprezar a relevância de outras formas linguísticas como a oralidade e a escrita, que constituem a base e a origem de todas as atividades e relações que permitem a união interna dos seres humanos entre si, o filósofo afirma que a arte corresponde à modalidade mais universal de linguagem, tanto por sua capacidade de agregar em aspirações comuns individualidades diferentes e provenientes de lugares distantes, quanto por possuir um caráter cosmopolita que impede sua afetação por uma multiplicidade de formas mutuamente ininteligíveis, tal como pode ocorrer nos idiomas falados. Em defesa da arte como forma proeminente de linguagem, Dewey (2010/1934) afirma que a comunicação mais efetiva advém do campo artístico. Aquilo que é comum, por estar presente na experiência de diversas pessoas, tornando-se um bem consciente grupal, é compartilhado de forma mais efetiva por meio das obras de arte, mais do que por outro meio. É pelas obras de arte, pelos objetos utilizados em rituais, ou pelas manifestações culturais cantadas, dançadas e dramatizadas, que os significados e os acontecimentos partilhados por

uma

duradouros,

comunidade passíveis

recebem de

serem

uma

expressão

transmitidos,

objetiva,

tornando-se

possibilitando

assim

a

continuidade da cultura, inclusive na mudança de uma civilização a outra. Dewey (2010/1934) reconhece que as diferentes formas de expressão artística – indígenas, africanas, orientais, bizantinas, góticas, renascentistas etc. – precisam ser conhecidas, para que as pessoas entendam o que a arte de um povo distante pode significar para a totalidade de sua experiência atual. Sobre a impossibilidade de reproduzir a experiência de povos distantes, o filósofo acredita na viabilidade da apreciação autêntica de qualquer arte produzida pela humanidade, indicando como caminho o afastamento das meras imitações e a participação em vivências interessantes que possibilitem a captação de elementos dos contextos e das atitudes de outras experiências artísticas; por meio da imaginação e das emoções suscitadas, as pessoas II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

264

podem harmonizar e ressignificar tais elementos em sua própria experiência, tornando-se artistas que integram o conhecimento passado na criação do presente. Abordando a relevância da linguagem artística para a formação da individualidade, Dewey (2010/1934) assevera que os signos e significados veiculados pelas artes fundam as tradições culturais e influenciam os desejos, interesses, crenças, objetivos ou satisfações, enfim, todo o material do pensamento das pessoas. Por isso, o oferecimento de amplas oportunidades para que as pessoas conheçam as formas objetivadas de expressão humana é condição para a ocorrência de inúmeras modificações no eu, não somente para a aquisição de mais habilidades, mas principalmente para a obtenção de um capital de significados – conteúdos e valores – que influencia o modo com que a pessoa observa, sente, cuida, focaliza sua atenção e elabora projeções. Dewey (2010/1934) considera que o processo de desenvolvimento da capacidade de imaginação dos indivíduos também depende da riqueza do capital mental adquirido, pois uma experiência imaginativa acontece quando vários materiais de qualidade emocional, sensorial e perceptual, adquiridos em experiências passadas, são mobilizados e reunidos na formulação de algo novo. O acesso à cultura permite que o fazer artístico seja aprimorado e que a contemplação dos objetos artísticos se desvincule da simples admiração dominada pelas sensações, desejos ou apetites imediatos, tornando-se uma contemplação carregada de valor; os sentidos mobilizados no presente associam-se a sentidos e saberes experienciados anteriormente, levando a pessoa a viver uma emoção conectada a um conteúdo, o que lhe permite alcançar um sentimento de equilíbrio e uma percepção plena e consciente. Dewey (2010/1934) reflete sobre a possibilidade de um desenvolvimento pessoal mais amplo e saudável, o que vai além da formação do artista sem preconceitos culturais, capaz de utilizar os saberes e elementos do mundo de maneira autoral. Sobre esse tema, afirma que as vivências em meio às linguagens artísticas favorecem a construção das capacidades pessoais de sublimação, isto é, de redirecionamento dos impulsos, emoções ou memórias identificados como geradores de conflitos internos, uma vez que a qualidade integradora e expressiva da arte é fator que auxilia as pessoas a comporem as diferenças na personalidade, ajudando-as, também, na eliminação de II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

265

isolamentos e conflitos entre os elementos do eu, redirecionando tais oposições para a construção de uma personalidade cada vez mais rica. O filósofo defende, por fim, que as linguagens artísticas possuem singularidades que representam um desafio ao pensamento sistemático denominado filosofia. De modo sui generis, as expressões artísticas e estéticas existem porque a imaginação evoca e organiza materiais e significados, os quais saem do estado de devaneio e se materializam em produto artístico, sempre que um propósito controla a escolha, o uso e o desenvolvimento de todos os elementos envolvidos. Outro aspecto peculiar aos processos artísticos diz respeito a uma fusão que implica o conhecimento adquirido, bem como a adaptação do eu aos materiais existentes, e também o ineditismo da individualidade, levando os indivíduos à superação das exigências externas, as quais são incorporadas e/ou transformadas em meio às expressões individuais. Esse amálgama entre adaptação e transgressão e essa condução de meios e fins com vistas à consecução de um propósito, encontrados de modo incomparável nas linguagens artísticas, provoca a evolução do saber, de tal modo que os novos conhecimentos tornam-se instrumentais para o enriquecimento da experiência (DEWEY, 2010/1934). Dewey (2010/1934) entende que a filosofia, tal como a arte, é impulsionada pela mente imaginativa, envolve a elaboração de propósitos, encerra o controle de meios para o alcance de fins mais harmônicos, e, ainda, busca a renovação, a superação das condições objetivas existentes, mediante atos que integram conhecimentos adquiridos, regras estabelecidas e a expressão individual. Dewey considera que a arte é a experiência em que se integram o novo e o velho, o material objetivo e a resposta pessoal, o individual e o universal, a realidade e a possibilidade etc., tendo por meta a transfiguração

dos significados elaborados socialmente

e a

contínua

reconstrução da experiência. Sendo assim, a linguagem da arte é a que possui a maior potencialidade para proporcionar ensinamentos para as aventuras imaginativas da filosofia. Hierarquizando, portanto, a arte como forma superior de linguagem, e destacando

o

poder

comunicacional

dos

produtos

artísticos,

Dewey

(2010/1934, p. 581) sustenta que a arte é “o órgão incomparável da instrução”. A imaginação e as emoções mobilizadas no contato com as artes promovem a II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

266

participação dos indivíduos nos valores de diferentes formas de vida, proporcionando-lhes o conhecimento de mais significações. Assim, abrem-se portas para a expansão da experiência pessoal e coletiva, o que promove mais aprendizado e mais educação. Infelizmente, considera o autor, costuma-se dissociar a arte da ideia de educação, ora elevando a primeira a um patamar tão acima das experiências humanas, ora supondo que instruir é agir por métodos literais, e mecânicos, que excluem a primazia da imaginação e não tocam nos desejos e nas emoções humanas. É possível inferir que, apresentando a arte como elemento sine qua non da educação, o filósofo amplia sua defesa da relevância da comunicação para os processos civilizatórios e educativos, especialmente para a consolidação de uma educação escolar de qualidade. O filósofo sugere essa ideia ao indicar que a arte é o meio que melhor assegura o acesso aos signos e significados construídos pela humanidade, os quais propulsionam o desenvolvimento da imaginação, levando as pessoas à elaboração de propósitos, atos de criação, percepções mais plenas, reelaborações contínuas do próprio eu, e também à formulação de sonhos esperançosos relativos a amplas trajetórias de desenvolvimento, quer pessoais ou comunitárias. Tais considerações possibilitam extrair do discurso deweyano alguns princípios relativos ao ensino das artes. Primeiramente, pode-se posicionar a arte como conteúdo essencial e indispensável nos espaços de educação informal e, principalmente, nos programas das escolas formais, uma vez que a arte é um veículo para o conhecimento dos signos, significados e instrumentos elaborados pela humanidade, sendo capaz de promover o enriquecimento da experiência humana. No âmbito específico das instituições educacionais, esse princípio implica a participação dos educandos em variadas linguagens artísticas, não por obrigação curricular, de modo compartimentado, em horários específicos e apartados de tudo o que é aprendido ou vivido no cotidiano escolar. O ato de imaginar e criar pressupõe a formação de um capital mental que não é adquirido por vias inatas, fortuitas, rápidas ou isolada, sendo necessários variados esforços para o cultivo consistente do interesse. As ideias de John Dewey sugerem que certas condições sejam asseguradas para que a arte cumpra sua função comunicacional e instrucional. Uma delas é a valorização do multiculturalismo, entendido como prática de II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

267

apresentar aos educandos as diferentes expressões produzidas culturalmente. Outra condição é a organização de processos de ensino que não sejam pautados no mero repasse de informações históricas, técnicas, formais etc., mas que promovam situações interessantes capazes de levar os aprendizes a conhecer os símbolos, significados, instrumentos, modos de produzir etc. das diferentes linguagens artísticas, havendo, também, oportunidades cativantes de utilizar os conhecimentos para enriquecer a própria experiência. Por fim, uma terceira condição remete à valorização das formas pessoais de expressão, uma vez que a apropriação de saberes e a transgressão constituem fatores que se complementam no contexto artístico, mobilizando o pensamento reflexivo, os propósitos criativos e a transformação das condições estabelecidas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A estratégia retórica utilizada por Dewey para destacar o valor da arte consiste em valorizar, inicialmente, todas as formas de linguagem, para em seguida hierarquizá-las, posicionando a linguagem artística em plano privilegiado perante as demais. Desse modo, o filósofo mobiliza a atenção de sua audiência para as experiências artísticas ou estéticas, defendendo sua relevância para a formação e o desenvolvimento humano, bem como para a continuidade da vida social. Dewey opõe-se a tendências modernas e contemporâneas que enclausuram a arte em um plano superior, como se ela tivesse uma existência apartada da experiência humana, desnecessária ao cotidiano do homem comum. O filósofo utiliza a hierarquização das linguagens para argumentar que a arte e os sentidos estéticos resultam da relação dos homens com o mundo, sendo o meio mais adequado para provocar a humanização e o contínuo enriquecimento da vida. O estudo das dimensões argumentativas de John Dewey sobre a arte contribui para enriquecer os debates realizados na atualidade acerca das práticas educativas, em especial no que tange à formação de professores, gestores e pesquisadores. Ainda que o paradigma filosófico deweyano sobre a arte não contenha, em sua origem, a intenção de influenciar as teorias e as práticas educacionais, a elucidação de suas bases pode beneficiar a articulação de princípios relativos à arte-educação. Como afirma Billig (2008), “investigações antiquárias”, formulações tecidas por teóricos de outras épocas II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

268

ou há muito esquecidos e negligenciados, podem contribuir para elucidar o presente. As teses de Dewey revelam os primórdios de explicações atuais ditas inéditas e, desse modo, permitem o exame mais acurado de premissas hoje aceitas. Nesse aspecto, a discussão feita por Dewey pode avalizar tendências vigentes e, ao mesmo tempo, auxiliar na formulação de novas práticas educativas relevantes para a vida das pessoas e o futuro da coletividade.

REFERÊNCIAS ANDRADE, Erika Natacha Fernandes. O homem e o desenvolvimento humano nos discursos de Aristóteles e John Dewey. 2014. 184f. Tese (Doutorado em Educação Escolar) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara, 2014. BARBOSA, Ana Mae. Tópicos utópicos. Belo Horizonte: C/Arte, 1998. ________. John Dewey e o ensino da arte no Brasil. 5a. edição. São Paulo: Cortez, 2002. BILLIG, Michael. Argumentando e pensando: uma abordagem retórica à psicologia social. Tradução Vera Lúcia Mello Joscelyne. Petrópolis: Vozes, 2008. CUNHA, Marcus Vinicius. Comunicação e arte, ou a arte da comunicação, em John Dewey. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 86, n. 213/214, p. 9-20, maio/dez. 2005. ________. John Dewey, biografia intelectual. Educador e filósofo da democracia. Revista Educação: História da Pedagogia, n. 6, p. 6-17, dez. 2010. DEWEY, John. Como pensamos. Tradução Godofredo Rangel. São Paulo: Nacional, 1953. ________. Experience and nature. New York: Dover, 1958. ________. Democracia e educação: introdução à filosofia da educação. Tradução Godofredo Rangel e Anísio Teixeira. 3. edição. São Paulo: Nacional, 1959. ________. Human nature and conduct: an introduction to social psychology. New York: Prometheus Books, 2002. ________. Arte como experiência. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

269

JOHNSON, Margaret Hess. John Dewey’s socially instrumental practice at the Barnes Foundation and the role of “transferred values” in aesthetic experience. Journal of Aesthetic Education, vol. 46, n. 2, p. 43-57, Illinois, 2012. SILVA, Tatiane. A presença da filosofia platônica na pedagogia do Estado Novo. 2013. 137f. Dissertação (mestrado em Educação). Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, 2013. TEJADA, Maria del Coro Molino. Concepto y práctica del currículo em John Dewey. Navarra: Eunsa, 2002.

ERIKA NATACHA FERNANDES DE ANDRADE - Doutora em Educação pela Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara – UNESP; educadora do curso de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – USP.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

270

O ESTUDO DAS METÁFORAS COMO FERRAMENTA DE ANÁLISE DE DISCURSO NA EDUCAÇÃO

Arthur Vianna Ferreira [email protected]

RESUMO O presente trabalho, parte da metodologia de investigação utilizada em uma tese de doutorado sobre identidade profissional de educadores sociais e representações de educando-pobre (2011) tem como objetivo ressaltar a importância do estudo das metáforas existentes nos discursos epidíticos dos profissionais em educação como ferramenta de análise para a busca de possíveis modelos figurativos de representações sociais no campo da educação. Assim sendo, se busca inferir a utilização da filosofia retórica, segundo o corpus teórico aristotélico, dos discursos epidíticos produzidos socialmente pelos grupos de educadores, a relevância do estudo das metáforas para a descoberta de campos figurativos vividos pelos grupos que constituem ações educacionais e a possíveis organização de seus elementos para

pesquisas

de

abordagem

psicossocia

a

partir

da

Teoria

das

Representações Sociais. Ao utilizar-se o referencial teórico da argumentação filosófica, a partir de Aristóteles em seu livro ‘A arte retórica’ e os seus conceitos de discurso epidictico articulados a teoria da argumentação de Olivier Reboul, Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca buscamos entender que os grupos em seus relacionamentos sociais produzem, constituem e expressam as suas ideias, valores, escolhas e ‘modus vivendi’ a partir de diversas figuras retóricas. Esta lógica aplicada a pesquisas realizadas a partir da teoria das representações sociais auxilia na investigação de como estas representações são, não somente transmitidas, mas também organizadas pelos sujeitos dos grupos sociais em suas relações de trocas simbólicas. Neste contexto, uma análise retórica focada na busca de metáforas que constituam o sentido dos discursos dos sujeitos em seus grupos sociais, como propõe Tarso Bonilla Mazzotti, se torna pertinente para encontrarmos os campos figurativos das representações sociais e como estes são constituídos e transmitidos pelos

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

271

grupos, e seus indivíduos, no ambiente de troca simbólica social. Assim, os discursos de gênero epidictico se tornam um campo fértil de investigação de pesquisas de abordagem psicossocial com a teoria das representações sociais, pois a compreensão das suas diferentes articulações categoriais expressas nas diversas figuras de sentidos metafóricos indicariam as possíveis justificativas para as práticas sociais organizadas pelos sujeitos e seus pares, assim como a constituição de sua pertença grupal nas distintas situações da vivência destes mesmos sujeitos em sociedade.

Palavras-Chaves: Análise do discurso epidicticos; Representações sociais; Metáforas; Campos figurativos

INTRODUÇÃO Este presente artigo tem como objetivo ressaltar a importância do estudo das metáforas existentes nos discursos epidíticos dos profissionais em educação como ferramenta de análise para a busca de possíveis modelos figurativos de representações sociais no campo da educação. Assim sendo, se busca inferir a utilização da filosofia retórica, segundo o corpus teórico aristotélico, dos discursos epidíticos produzidos socialmente pelos grupos de educadores, a relevância do estudo das metáforas para a descoberta de campos figurativos vividos pelos grupos que constituem ações educacionais e as possíveis organizações de seus elementos para pesquisas de abordagem psicossocial a partir da Teoria das Representações Sociais e da Teoria da Identidade Profissional de Claude Dubar. Este artigo nasce da fundamentação teórica utilizada na tese de doutorado de Ferreira (2012), “Diz-me quem educas, e eu identificarei que educador tu és!”, que estudou as relações entre as representações sociais e a formação da identidade profissional do educador no terceiro setor. Desta forma, o artigo encontra-se dividido em duas partes: a filosofia retórica de Aristóteles e a articulação desta técnica com a teoria das representações sociais e da identidade profissional.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

272

A ARTE DA RETÓRICA E A SUA IMPORTÂNCIA NA FORMAÇÃO DO DISCURSO DO GRUPO A importância do discurso como forma de análise que ajuda a identificar os sujeitos e seus grupos no meio social possui suas raízes na Grécia antiga com o filósofo Aristóteles14 de Estagira (384- 322 a.C.). Em seu escrito ‘A Arte Retórica’, de aproximadamente 338 a.C., composta de três livros, Aristóteles apresenta a retórica como uma técnica própria do espírito homem enquanto ser racional que, ao possuir capacidade de raciocínio (noûs) e de produzir discurso (lógos), se movimenta a partir de figuras de convencimento e persuasão no convívio social. De fato, a retórica se torna uma arte (techné), ou seja, um elemento necessário e de ordem prática entre os sujeitos para a sua participação na sociedade como cidadão ateniense. Assim, o bom uso do ‘lógos’ comunicava um tipo de vivência real (ou ao menos pretendida) dos sujeitos em seus grupos sociais que continuamente buscavam reconhecimento e bom posicionamento no contexto social da época. A arte poética de Aristóteles possui um propósito totalmente prático, constituindo-se em um manual para o orador identificar os tipos de discursos proferidos pelos sujeitos, a partir de seus grupos, assim como a sua organização na transmissão do raciocínio lógico de seus oradores em relação ao auditório formado pelos diferentes grupos na sociedade. Como o próprio Aristóteles (1998, p.39), nos livros I, III, 1, reconhece, “um discurso comporta três elementos: a pessoa que fala (éthos), o assunto de que se fala (lógos) e a pessoa a quem se fala (pathos), sendo que o fim do 14

Aristóteles, filósofo grego, nasceu em Estagira em 384 a. C e morreu aos 62 anos na ilha de Eugéia em 322 a. C. Aos 18 anos, entra para a academia de Platão, onde ficou até a morte do Mestre. Foi preceptor de Alexandre da Macedônia. De volta a Atenas, em 335, treze anos depois da morte de Platão, Aristóteles fundava, perto do templo de Apolo Lício, a sua escola. Daí o nome de Liceu dado à sua escola, também chamada peripatética devido ao costume de dar lições, em amena palestra, passeando nos umbrosos caminhos do ginásio de Apolo. Aristóteles foi essencialmente um homem de cultura, de estudo, de pesquisas, de pensamento, que se foi isolando da vida prática, social e política, para se dedicar à investigação científica.As obras doutrinais de Aristóteles podem ser divididas da seguinte maneira: Escritos lógicos, cujo conjunto foi denominado mais tarde como Órganon; Escritos sobre a física: abrangendo a cosmologia e a antropologia; Escritos metafísicos: a Metafísica distribuida em catorze livros; Escritos morais e políticos: com os escritos Ética a Nicômaco, Ética a Eudemo, a Grande Ética e a Política; e os Escritos retóricos e poéticos: compostos pelos livros a Retórica e a Poética. As obras de Aristóteles manifestam um grande rigor científico, sem enfeites míticos ou poéticos, exposição e expressão breve e aguda, clara e ordenada que servem de estudo e aplicação filosófica até os dias atuais.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

273

discurso refere-se a esta última, que eu chamo de ouvinte e a quem se pretende persuadir com o discurso.” Desta forma, aquele que discursa organiza o seu conteúdo lógico, para que, na relação com o ouvinte, possa persuadi-lo ou convencê-lo de que o que está em seu conteúdo seja a realidade de algo. Aquele que ouve o discurso possui o papel de “expectador e juiz” simultaneamente (idem, p.39), ou seja, ao mesmo tempo em que ele escuta o discurso proferido pelo orador, ele julga se o conteúdo do discurso é relevante ou não, pois, uma vez que o sujeito adere a um determinado conteúdo, partilha, diretamente ou indiretamente, de um conjunto de significados e de representações, sobre determinados assuntos, com os sujeitos presentes em seus grupos de pertença. Portanto, Aristóteles identifica, no livro I, III, 1, três gêneros de discursos oratórios que se organizam entre os sujeitos na sociedade: o gênero deliberativo (symbouleutikón), o gênero judiciário (dikamkón) e o gênero epidíctico (epideiktikón). Para ele, cada auditório pede um discurso específico. Neste caso, o estudo da retórica permite o melhor conhecimento das ferramentas argumentativas utilizadas para a persuasão do auditório sobre determinado assunto, a parte do tempo histórico que é próprio do discurso e a finalidade da utilização do gênero. O gênero deliberativo é o discurso que leva o ouvinte a deliberar sobre determinado assunto, a partir do aconselhamento do orador. Este gênero comporta em si aquilo que é conveniente ou não ser aderido pelo ouvinte. Esta adesão está relacionada a assuntos de interesse particular e/ou público. Aristóteles, no livro I, IV, 2, indica que o gênero deliberativo é utilizado, principalmente, para assuntos que envolvam os interesses públicos e políticos e cita como os cincos assuntos do discurso deliberativo as finanças, defesa nacional, importações, exportações e a legislação. Este discurso busca evidenciar o futuro, uma vez que o aconselhamento se dará buscando associar as categorias do futuro com a deliberação a ser tomada pelo ouvinte. O gênero judiciário é o discurso que pleiteia a respeito do cometimento ou não de questões de injustiça. Neste, o orador se aparelha da palavra a partir de um estratagema (stratégos) que busca provas para alicerçar os silogismos

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

274

retóricos. Este gênero discursivo, característico da oratória forense, deve se debruçar sobre três temas fundamentais: as causas da injustiça; o estado daqueles que cometem a injustiça e as pessoas que sofrem e contra quem são cometidas as injustiças. (cf. ARISTÓTELES, I, XII). Ele comporta em si a acusação ou defesa, uma vez que o seu discurso está montado a partir desta temática e evidencia o passado, já que toda a argumentação incidirá sempre sobre os fatos pretéritos. O gênero epidíctico, também conhecido como demonstrativo, é o discurso que busca sacramentar os valores da temática exposta pelo orador. Ele persegue a virtude (aretês) como uma faculdade de produzir e conservar todos os outros bens produzidos nas relações dos sujeitos em sociedade, como a justiça (diskaiosyne), a coragem (andría), a sabedoria prática (swphrosyre),

a

magnificência

(megaloprépeia),

a

magnanimidade

(megalopsychía), a liberalidade (eleutheriòstes), a calma (praòtes), a prudência (phrónesis) e a sabedoria (sophía). (cf. Aristóteles I, IX, 5) Este discurso comporta em si o belo ou a censura, ou seja, aquilo que é elogiável no contexto do orador e do ouvinte. Assim sendo, o discurso evidencia o presente, pois, para louvar ou censurar algo, por mais que utilizemos a lembrança do passado ou presumamos o futuro, sempre apoiamo-nos no estado presente das coisas. Há dois pontos teorizados por Aristóteles sobre o discurso de gênero epidíctico e que merecem ser resgatados na análise desta práxis discursiva: os signos de elogio e o recurso de amplificação. Segundo Aristóteles IX, II, 14, os signos (semeîe) são obras e/ou lugares comuns, reconhecidos pelos oradores e pelos ouvintes através do discurso, como dignos de elogio por congregarem em si os valores da virtude. Desta forma, a ação da virtude sobre um tema vivido e compartilhado pelos sujeitos se transforma em um ‘signo’ capaz de transmitir ao grupo a sua compreensão sobre a temática e o que deve ser realizado para que algo seja belo (ou bom), uma vez que tudo o que produz a virtude é necessariamente belo e digno de ser elogiado. E para Aristóteles IX, IV, 33, o elogio é “um discurso que mostra em todo seu esplendor a grandeza da virtude. Convém mostrar que os atos são

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

275

deveras produzidos pela virtude.” Ou seja, o elogio reafirma a virtude assumida pelos sujeitos através de suas práticas sociais. Este ‘signo’ da práxis virtuosa social se apresenta no discurso epidíctico dos sujeitos como uma marca identitária do seu grupo que, ao assumir o elogio sobre determinado tema, reconhece-se e é reconhecido no contexto social através da articulação de seu discurso e da sua realidade. Veja-se este exemplo de Aristóteles IX, II, 26-27 a respeito do signo e do belo que ele representa para aqueles que aderem ao signo discursivo. São belos igualmente os usos peculiares a cada povo e tudo quanto manifesta as práticas estimadas no seio de cada comunidade; por exemplo, em Lacedemônia, é belo crescer o cabelo: é esse o distintivo de um homem livre, pois não é fácil a um homem de cabelo comprido entregar-se a um mister servil. É belo não exercer nenhum mister, porque um homem livre não deve viver para servir outrem. (Ibidem, p.63)

Assim sendo, o ‘signo’ no discurso retórico epidíctico não representa somente o discurso sobre determinada questão da realidade, mas também aquilo que foi escolhido como preferido para o grupo, a ser vivido e partilhado em suas relações interpessoais e, por isto, passa a ser digno de ser elogiado por todos. Ou seja, para Aristóteles uma análise deste discurso possibilitaria a descoberta das técnicas que os sujeitos utilizam para expressar o lugar comum (tópoi kónoi) que eles ocupam e como organizam as suas diversas práticas. Neste caso, os elogios aos signos – produzidos pelas virtudes – articulado no discurso epidíctico tem a função social de buscar persuadir o auditório (pathos) para que, ao aderir ao ‘signo’ (semeîe) do orador, através do raciocínio lógico do discurso (lógos), legitime a sua idéia e de seu grupo no contexto social. Para que este ‘signo’ cumpra o que o discurso epidíctico se propõe, a amplificação (aúxesis) é apontada por Aristóteles como um dos recursos mais utilizados na prática discursiva epidíctica. Se os ‘signos’ são feitos virtuosos do modo de ser dos sujeitos, a própria conduta moral do sujeito também deve ser elogiada. Para este tipo de elogio sobre a conduta é que Aristóteles recomenda a amplificação, que funcionará como uma espécie de ‘figura’ do discurso que

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

276

ligará as obras da virtude com o próprio (psyché) de cada sujeito. Como Aristóteles (I, VIII, 40) expõe, “entre as formas comuns a todos os discursos, a amplificação é, em geral, a que melhor se presta aos discursos epidícticos, porque nela o orador toma os fatos por aceites e só lhe resta revesti-los de grandeza e de beleza.” Por isso, ao sublinhar o papel da amplificação no discurso epidíctico, não se pode deixar de falar do recurso da comparação como um dos meios de obtenção de conceitos relativos ao valor de uma ação virtuosa – e, consequentemente, da personalidade do elogiado – atribuída a alguém, com aquela praticada por um outro. A amplificação enquadra-se logicamente no elogio, porque estribada na superioridade e a superioridade está no número de coisas boas. Pelo que, não havendo possibilidade de comparar alguém com as pessoas de renome, ao menos convirá compará-lo com outras pessoas, visto que a superioridade parece revelar o mérito. (ARISTÓTELES, IX, VII, 39)

Esta comparação aparece através de distintas figuras utilizadas no discurso dos sujeitos sempre com o intuito de construir um discurso epidíctico encômio sobre determinado tema, possibilitando aos sujeitos a capacidade de ‘elogio’ ou ‘censura’, ou seja, ‘adesão ou exclusão’ dos ouvintes a respeito das obras e, consequentemente, do grupo de que faz parte aquele que profere o discurso. (cf. ARISTÓTELES, IX, VIII, 41) Se os dois primeiros livros da Retórica de Aristóteles compreendem-se como um manual técnico sobre a arte da retórica, abordando o discurso em si, os seus gêneros, suas finalidades e suas projeções, o terceiro livro preocuparse-á com a prática do discurso, na qual a entonação da palavra, a orientação, a disposição dos argumentos e outros elementos passam a ser fundamentais para a expressividade do discurso. Na temática deste livro, interessa-nos a ordem do discurso. A ordem (táxis) do discurso para Aristóteles é dividida em duas partes: a exposição (próthesis), preocupada em apresentar o objeto do discurso e a persuasão (pístis), que procura convencer o ouvinte acerca do objeto apresentado, segundo a finalidade do orador. Aristóteles reforça que a

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

277

identificação destas estruturas básicas dá a claridade para entender os objetivos pelos quais o orador busca convencer o seu auditório, podendo ser admitido no máximo o exórdio (brooímion) e o epílogo (epílogos) como parte do discurso. Qualquer outra divisão do discurso não passará de “palavreado oco e simples.” (ARISTÓTELES, III, XIII, 5) O exórdio introduzirá o tema a ser discursado pelo orador, que ele compara ao prólogo, na poesia, e ao prelúdio, na aulética 15. Este pode ser utilizado em todos os gêneros discursivos. No discurso epidíctico, as fontes do exórdio são o elogio e a censura sobre determinado assunto; no deliberativo, dizem respeito aos conselhos que induzem a fazer uma coisa ou não; no judicial, são as provas apresentadas com o efeito de buscar a conciliação do juiz em determinado processo. Em todas estas, o exórdio está direcionado ao ouvinte com o fim de sensibilizá-lo com o tema que será proferido, ou seja, a preocupação deve ser de fazer o auditório mostrar-se “atento às coisas que se revestem de importância, que pessoalmente lhe dizem respeito, ao que provoca admiração e causa de agrado” (ARISTÓTELES, III, XIV, 7) Desta forma, o filósofo chama atenção do orador para que suscite no auditório a sensibilidade psicológica no exórdio e que refletiu sensivelmente no sucesso persuasivo. Logo após, segue-se a narração (diégesis), que tem por objetivo apresentar o objeto do discurso segundo a finalidade do orador em relação ao seu auditório. No gênero epidíctico, a narração não pode ser contínua, pois deve ir versando as ações uma de cada vez, para que componham um fundo discursivo. A narrativa não deve ser nem tão longa, que provoque cansaço ao auditório, nem tão curta que não ajude na valorização do fato em si. Aristóteles fala da justa medida que “consiste em dizer tudo o quanto ilustra o assunto, ou prove que o fato se deu, que constitui um dano ou uma injustiça, numa palavra, que ele teve a importância que lhe atribuímos.” (ARISTÓTELES, III, XVI, 4) No discurso judiciário, a recomendação é que a narrativa seja breve, evitando discorrer acerca daquilo que parece ser comumente aceito, preocupar-se em demonstrar se o fato existiu ou não, não permitindo que

15

Cf. Aristóteles III, XIV, 1, aulética é o mesmo que ‘música de flautas.’

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

278

cause algum tipo de injustiça. No gênero deliberativo, a narrativa limitar-se-á a fatos pretéritos, com o objetivo de relembrá-los, para que os ouvintes possam deliberar melhor sobre o porvir. Como Aristóteles diz sobre este tipo de narrativa, “neste caso, o orador não assume o papel de conselheiro. Se os fatos narrados são custosos de se acreditar, deve prometer dar a razão deles sem tardar e entregar-se à decisão daqueles que o auditório quiser designar.” (ARISTÓTELES III, XVI, 11) Em seguida apresenta-se a exposição retórica que se faz por meio da persuasão (pístis). No discurso judicial, a questão das provas que deverão ser incisivas e atacar diretamente o litigioso. Os entimemas (enthymema), ou seja, o silogismo retórico que serve como prova de persuasão, não devem ser alinhados uns após aos outros, mas sim entremeá-los. (cf. ARISTÓTELES, XVII, I, 6) Desta forma, recorrer ao passado comporta uma certa necessidade para constituir a ordem dos acontecimentos que estão em juízo. Neste tipo de discurso, ainda poderão ser utilizadas a interrogação e a facécia 16, como formas de reforçar as provas utilizadas pelos oradores do discurso. No discurso deliberativo, a exposição pode incidir nos seguintes pontos: ou a coisa que se aconselha não acontecerá ou, mesmo que aconteça, não será tão útil ou importante como se tenta persuadir. As provas deverão cuidar para que aquele que discursa não relate alguma informação falsa que prejudicará na decisão que advirá no futuro dos ouvintes. No discurso epidíctico, é importante a inserção de elogios episódicos. Desta forma, amplificação possui a sua funcionalidade em demonstrar que os fatos e ações são virtuosas, belas e úteis para os ouvintes. Elas servirão como provas para que se obtenha a adesão do auditório sobre o tema. Raramente precisará demonstrá-las, uma vez que o discurso panegírico bastará para persuadir o auditório, salvo se estes se apresentem como inacreditáveis ou que um outro tenha sido acusado por os haver praticado. (cf. ARISTOTELES, III, XVII, 3) E, encerrando a ordem do discurso, apresenta o epílogo ou peroração, dividindo-o em quatro partes: dispor o ouvinte em favor ou contra o adversário; 16

Facécia é uma figura de pensamento semelhante à Ironia.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

279

amplificar ou minimizar o tema discursado; excitar as paixões do ouvinte e recapitular os pontos principais do discurso para clarificar o pretendido com o discurso. (cf. ARISTOTELES, III, XIX, 1). Esta parte é comum a todos os gêneros do discurso. Enfim, após esta breve conceituação da arte retórica por Aristóteles em suas finalidades, seus gêneros e a ordem dos discursos, entendemos que a ordem discursiva (taxis) dos profissionais da educação visam persuadir (pistis) seu auditório sobre os contextos vividos em sua relação de alteridade com os outros grupos que fazem parte da sua formação identitária como profissionais da educação. A narração (diégesis) sobre a sua formação identitária e seu processo de atribuições e pertenças grupais é expressa nas nos discursos dos indivíduos através de signos (semeie) que tentam demonstrar, entre outras coisas, o ‘lugar comum’ (tópoi kónoi) que eles ocupam, e as suas escolhas, individuais e coletivas, enquanto profissionais da educação. Assim sendo, o ‘logos’ do discurso dos professores ou educadores podem expressar como eles conseguem organizar a sua vivência com os grupos sociais formadores da sua identidade. E para isto eles se utilizam de amplificações do discurso com o intuito de convencimento da importância de suas escolhas e pertença grupal. Esta amplificação, como diz Aristóteles, servirá para o educador como uma forma de associar a virtude das obras (areté) com a própria individualidade (psiche) de cada um. Portanto, as figuras do discurso utilizadas pelos educadores organizam, não somente o seu conceito sobre o seu grupo, mas falam da sua relação pessoal e da pertença grupal deste sujeito.

AS

METÁFORAS

COMO

ELEMENTOS

DE

ANÁLISE

DE

REPRESENTAÇÕES NOS DISCURSOS RETÓRICOS EM EDUCAÇÃO Mazzotti (2003) propõe, na realização de uma análise retórica em busca das representações sociais, que as metáforas, ao coordenarem e condensarem os discursos dos membros se constituem em modelos figurativos das representações contidas nos discursos dos sujeitos pesquisados. Elas são locais onde se encontram os significados e as predicações de afirmativas entre

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

280

os seus pares, pertencentes a um grupo. Desta forma, as metáforas condensam aquilo que se torna preferível (lugar comum) a ser realizado pelos sujeitos e seus grupos, refletindo muito de sua prática social, seja a respeito de suas atividades no interior do grupo, seja ao relacionamento dos grupos sociais. Uma vez que os grupos reflexivos desenvolvem suas representações por meio de conversações, visando assimilar e acomodar novos objetos que lhes são apresentados, então é necessário examinar o processo argumentativo realizado nos grupos, e, ao mesmo tempo, avaliar as representações sociais por meio das figuras argumentativas. (Ibidem, p.91)

Para Mazzotti (2008, p.138), os procedimentos de produção de metáforas e metonímias coincidem com os de objetivação e ancoragem, uma vez que “a precedência dos valores é examinada, em cada caso, segundo o lugar dos preferíveis, ou seja, esquemas gerais de pôr em relação o que se considera melhor ou pior, fazer ou ter.” Isto não quer dizer que as metáforas sejam as representações sociais, mas que elas trazem em si processos cognitivos explicativos sobre determinados temas a serem conhecidos e internalizados pelos sujeitos. A partir de sua relação estrutural entre o tema I e o tema II das metáforas no discurso epidíctico dos educadores, alguns elementos heterogêneos têm as suas diferenças reduzidas com o intuito de produzir certa similitude entre eles. Desta forma, torna-se mais fácil assimilar alguns conteúdos e significados partilhados entre os sujeitos no grupo a respeito de determinado assunto social. Assim sendo, as articulações entre elas se constituem em possíveis núcleos figurativos das representações sociais de um grupo em relação a um tema ou objeto no contexto social. Por isto, Mazzotti (2003) também nos alerta que não basta identificar as metáforas que caracterizam determinado grupo social, mas sim deve haver uma investigação cuidadosa das significações das mesmas, junto aos entrevistados que a ele pertencem. Esta investigação pode – e deve – auxiliar no processo de análise, para que se encontre a predicação presente na

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

281

metáfora, e o pesquisador verifique a atitude do grupo em relação ao que foi preferível ou não pelo grupo, e que se encontra expresso nas metáforas usadas em seu discurso. As metáforas, por serem analogias condensadas, podem ser examinadas de maneira a expor o esquema analógico utilizado pelos entrevistados, viabilizando uma interpretação mais controlada de seus argumentos. As técnicas usuais ou da hermenêutica ou da teoria da argumentação retórica são adequadas para a realização da análise das metáforas e de outras figuras argumentativas e de linguagem presentes nas representações sociais, permitindo maior controle das interpretações produzidas pelos pesquisadores. (Ibidem, p.101)

Uma vez que as analogias encontradas nas metáforas, através de suas estruturas argumentativas, são construídas a partir do vivenciado pelos grupos sociais, elas se constituem como uma prova do que é vivenciado por um auditório, expresso através de uma semelhança de relações. As metáforas são eficazes no discurso argumentativo por serem redutoras na apresentação do foro e do tema que constitui a analogia condensada neste discurso. Portanto, elas são capazes de ser mais convincentes, traduzindo, a partir de semelhanças, a identidade vivida por aquele grupo em determinada situação do social. Assim, podemos dizer também que as metáforas, por terem este caráter congregacional entre as atividades e os relacionamentos dos seus sujeitos, também são indicadores importantes do processo de formação identitária dos grupos profissionais. A partir do momento em que os discursos dos sujeitos carregam esta forma de organização dos sujeitos e o funcionamento de seus grupos, as figuras nos ajudam a entender o preferível como marca identitária e que pode coincidir, ou não, com as representações partilhadas entre os sujeitos no processo de negociação identitária. As metáforas e outras figuras retóricas podem expressar as relações e atividades no campo profissional dos sujeitos, constituindo-se num caminho possível para a descoberta, também, das atribuições realizadas pelos sujeitos, de que forma elas são aceitas ou não por eles e como elas expressam a pertença dos mesmos aos seus grupos sociais. Por isto, este tipo de análise, realizado por Mazzotti, tornou-se pertinente nesta pesquisa sobre as II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

282

representações e o processo identitário do educador social, pois se pôde encontrar no discurso epidíctico do educador, sobre a atribuição e pertença ao grupo social nas instituições caritativas, figuras que condensam a sua cognição sobre os temas básicos que constituem a sua identidade enquanto educador social e sua pertença ao grupo institucional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Este artigo buscou fazer um recorte sobre a utilização da filosofia de Aristóteles, a organização do discurso retórico no campo da educação e a utilização

das

metáforas

na

prática

de

investigação

da

teoria

das

representações sociais. De maneira particular em nossa análise, atentou-se às figuras retóricas de sentido, uma vez que, utilizando como base os estudos sobre as representações sociais de Mazzotti, buscamos as metáforas como locais comuns da organização cognitiva dos sujeitos a determinada temática social, em uma atenção especial ao seu tema e foro, que indicou possíveis conexões entre os sujeitos e a sua participação em uma representação social que auxilia na sua própria construção identitária. Aristóteles (1998) diz que a metáfora é uma das formas mais simples de argumentação e que ela é a única expressão a ser usada por todo tipo de gente, em todo tipo de discurso, seja na conversação corrente, seja nos discursos retóricos mais elaborados. (cf. Livro III, II, 6). De fato, ele nos diz que. A metáfora é o meio que mais contribui para dar ao pensamento, clareza, agrado e o ar estrangeiro de que falamos; nem é possível tomá-la de outrem. Devemos, portanto selecionar epítetos e as metáforas que se adaptam ao assunto, para o que guiar-nos-emos pela analogia; sem isso, corremos o risco de desagradar por falta de conveniência, uma vez que os contrários são particularmente sensíveis quanto postos em paralelo. (ARISTÓTELES, III, II, 8b-9)

Desta forma, ao organizar as metáforas em temas, estamos fazendo o processo inverso do orador, buscando nos aprofundar sobre o significado que o orador atribuiu às figuras discursivas, refletido na escolha das figuras

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

283

selecionadas por ele para dar um peso maior de persuasão sobre a temática que ele busca comunicar em seu grupo ou sobre seu grupo. As metáforas, para aqueles que se dedicam ao estudo das representações sociais se apresentam como fundamentais na análise do discurso epidícticos do ambiente educacional, uma vez que elas cumprem a função de instruir sujeitos e grupos a respeito de suas dinâmicas internas, podem colocar as contradições, ou não, vividas pelos grupos a respeito do tema e se mostram importantes na compreensão do funcionamento interno e externo dos sujeitos no grupo, da mesma forma que lhes reforçam a pertença grupal.

REFERÊNCIAS ARISTOTELES. Arte Poética e Arte Retórica. Rio de Janeiro: EDIOURO, 1998.

DUBAR, Claude. A socialização – Construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

FERREIRA, Arthur Vianna. Representações Sociais e Identidade Profissional – elementos das práticas educacionais com os pobres. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2012.

MAZZOTTI, Tarso Bonilha. Metáfora: figura argumentativa central na coordenação discursiva das representações sociais. In: CAMPOS, Pedro Humberto Farias. LOUREIRO, Marcos Correa da Silva (orgs). Representações Sociais e Práticas Educativas. Goiânia: Ed. UCG, 2003. p. 89-102.

_____. Valores en las representaciones sociales. In: VIII INTERNATIONAL CONFERENCE ON SOCIAL REPRESENTATIONS – social representations: media & society, 8.2006. Roma. Anais… Rio de Janeiro, 2006.

_____. Para uma pedagogia das representações sociais. In: Revista Educação & Cultura contemporânea. Rio de Janeiro. v 6. n.11. jul-dez/2008. p. 121-142

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

284

MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais Psicologia Social. Petrópolis: Vozes, 2003.



Investigações

em

REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

ARTHUR VIANNA FERREIRA - Doutor em Educação: Psicologia da Educação – PUCSP. Professor Adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ/FFP

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

285

POR QUE UM ENSINO DA MATEMÁTICA COMO CÁLCULO? Maria Inmaculada Chao Cabanas [email protected], UNESA Tarso Bonilha Mazzotti [email protected], UNESA

RESUMO A concepção de matemática como cálculo parece sustentar-se no que a instituição escolar (escolas, pais, gestores, legisladores, examinadores, livros, revistas, etc.) consideram como desejável, ou seja, ser bom em matemática é ser hábil calculista. Nos discursos acerca da matemática verificase uma divisão desse termo em “mau matemático” e “bom matemático”, como dois termos dessa mesma noção – a de matemática. A análise retórica inicial destes discursos possibilita identificar acerca do que os matemáticos e o ensino consideram preferível fazer ou ter, os valores desejáveis, e, se para os matemáticos é desejável ou preferível a matemática como cálculo. Palavras Chave: ensino de matemática; matemáticas; retórica.

INTRODUÇÃO A dependência entre a qualidade de ensino das matemáticas e resultados de exames que são realizados nos diferentes níveis, desde os escolares até os de larga escala como, por exemplo, o ENEM tem mostrado que estes determinam e expressam o aproveitamento dos alunos na disciplina escolar de matemática. Deste modo, nos deparamos com um ensino de matemática

coordenado

por um

sistema

de

seleção

que

determina

hierarquizações (MAZZOTTI, 2014) como o da escola eficaz e o do fracasso dos alunos, no aprendizado da matemática. Esta problemática, que é parte da pesquisa em andamento, nos levou à necessidade de melhor entender o que condiciona e determina o fazer dos professores bem como os valores – os preferíveis, e que constituem relações sociais imutáveis, da mesma forma que entes matemáticos, especialmente o cálculo.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

286

Deste modo, quando os professores declaram que para aprender matemática é necessário ser hábil em cálculos, estão apoiando-se em hierarquias – valores que determinam “lugares do preferível” e que estão presentes nos discursos dos professores, estudantes, pais, etc. Para tanto, o referencial utilizado é o Tratado da Argumentação de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, e que sustenta a análise retórica dos argumentos organizadores dos discursos acerca da matemática, do seu ensino, do exame do que é desejável.

SE O ENSINO É EFICAZ O ALUNO SABE CALCULAR Esta dependência entre qualidade de ensino e resultados de exames mostra que estes determinam e expressam o aproveitamento dos alunos. E, embora o sistema de ensino de matemática, coordenado por um sistema de seleção, traduzido em exames escolares, se diga eficaz, os alunos fracassam. Por outro lado, se o “ser bom em matemática” é determinado pelos exames, então identificar nas suas diretrizes os conteúdos avaliados pode situar a representação da disciplina no ensino em nosso país. É fato que os PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais), mais especificamente os PCN Matemática - 1º e 2º ciclos (1997) condensam as ideias que influenciam e são incorporadas pelas propostas curriculares de Secretarias de Estado e Secretarias Municipais de Educação, “havendo experiências bem sucedidas que comprovam a fecundidade delas” (BRASIL, 1998). Mas, o discurso apresentado por esses referenciais é vago e apela a valores como “direcionamento do ensino fundamental para a aquisição de competências básicas necessárias ao cidadão e não apenas voltadas para a preparação de estudos posteriores” (p. 20), ou ainda, na “importância de um papel ativo do aluno na construção do seu conhecimento” (p. 21). Deste modo, ao promover valores sobre os que há concordância, apresenta-se um discurso epidítico cujo papel é fazer “apelos a valores comuns, não contestados embora não formulados, e por alguém qualificado para fazê-lo; com isso,

o reforço da

adesão a esses valores, tendo em vista ações posteriores possíveis” (PERELMAN E OLBRECHTS-TYTECA, 2005: 59). É interessante observar que este discurso genérico da matemática como instrumento de mudança social, está presente com frequência nos compêndios II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

287

pedagógicos, referenciais de ensino ou qualquer proposta de ensino quando procuram justificar a relevância da matemática na "formação do cidadão crítico e participativo". No entanto, o caráter de "instrumento de mudança" está na aceitação das verdades inquestionáveis representativas do conhecimento matemático e que, pela análise retórica, é possível situar os discursos que persuadem os professores para práticas e métodos de ensino. Por outro lado, a distinção mais ampla entre as ciências as divide entre as formais, ou construtivas e as demais reconstrutivas. As formais são as Matemáticas e as Lógicas, em que seus construtores operam livremente no estabelecimento de seus axiomas e teoremas, sem qualquer preocupação com a aplicabilidade ou referência às coisas do mundo desde que utilizem de maneira adequada e correta os instrumentos formais disponíveis. (MAZZOTTI, 2013). O que nos leva a considerar, ainda sob a perspectiva do mesmo autor, que “o ensino das disciplinas científicas conduz a considerar a diferença especifica entre as ciências construtivas e as reconstrutivas... ensinar Física como se fosse Matemática é a expressão da representação social do modo de produzir conhecimento nesta disciplina”. O que seria então ensinar Matemática como se fosse Cálculo? A matemática escolar nos remete, então, aos objetivos do seu ensino e que são projetados para esta área do conhecimento na suposição de que na escola se aprenda as representações do que seja essa disciplina escolar. As práticas educativas têm por objetivo modificar crenças e condições cognitivas dos indivíduos para os conduzir e um estado de menos a mais educado, um processo de transposição da ignorância à sabedoria ancorado na metáfora percurso. Ainda sobre o problema especifico de como as ideias científicas tornam-se representadas na consciência popular Billig (1991, p. 66) afirma que “as ideias cientificas são alteradas de um modo especifico pela sua transmissão”. Dessa maneira, como os professores de matemática adaptam os conhecimentos científicos? Ao tornar as matemáticas disciplinas, estas sofrem adaptações para atingir a necessidade dos alunos (páthos) feitas pelos autores de livros didáticos, professores, etc. O que orienta estas adaptações? Será a matemática o mesmo que o cálculo? Se for, então podemos afirmar que as calculadoras são matemáticas. II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

288

É comum os estudantes perguntarem aos professores, quando o ensino da matemática se reduz ao cálculo, a relevância e utilidade do que estão apreendendo. Estes questionamentos geram constrangimentos nos professores que acabam buscando justificativas evasivas e pouco convincentes para os estudantes, como por exemplo, “a vida da gente não exige mais que quatro operações ou mais que uma calculadora de cinco reais”17. Estas adaptações (transposições) demandam a necessidade de uma justificativa que é requerida pelos estudantes e expressa na pergunta “para que serve“, no caso a matemática. Como resposta, geralmente é dito que serve pela sua relevância em aprender a pensar, para desenvolver o raciocínio lógico, etc. O que vemos é uma justificativa por uma sabedoria (ideologia) quando, na verdade, essa adaptação ao ocorrer no âmbito da própria ciência – as matemáticas – implica numa revisão de conceitos, de argumentos e corroborando com a “inexatidão” dinâmica que possibilita rever os conteúdos científicos e melhorá-los. Esta adaptação da matemática como cálculo faz desta disciplina escolar estática e doutrinária ao ser apresentada como verdade absoluta. No entanto, a representação do fracasso da aprendizagem dos conceitos científicos supõe que estes estão perfeitamente delimitados, claros, estáveis e codificados em seus livros textos, os quais fornecem os quesitos dos exames extra escolares (MAZZOTTI, 2013). Além disso, vale ressaltar que, ao considerar as representações sociais como “sistemas de opiniões, conhecimentos e crenças” particulares a uma cultura, a uma categoria social ou a um grupo com relação aos objetos no ambiente social (ABRIC,2001, p.18) temos contribuições que podem ajudar a entender para que serve a matemática, na crença de determinados grupos. A MATEMÁTICA DA FORMA COMO A CONCEBEMOS – ETERNA E IMUTÁVEL As matemáticas tendem a ser representadas como eternas e imutáveis e que parece ter a sua origem na perfeição e imutabilidade declarada a elas desde a antiguidade (TASIC,2000,p.10). Os enunciados matemáticos para os platônicos (seguidores espirituais de Apolo) eram eternos e imutáveis, 17

Artigo disponível em: http://www.revistacalculo.com.br/eu-nao-entendi-isso-ainda/ . Revista Cálculo, edição 41, de junho de 2014, página 60.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

289

incorruptíveis, apesar do tempo de uso. Seu enunciado é sempre perfeitamente íntegro e acessível diretamente à razão - entender um enunciado matemático é descobrir de algum modo uma verdade concebida divinamente. Bem, se a matemática é divina, quem ousaria opor-se a ela? As verdades matemáticas são incontestáveis, dessa forma, não há o que colocar em dúvida. Ao dizer-se como divina invoca uma autoridade, cujo valor não pode ser contestado sem descartá-lo como irrelevante (PERELMAN E OLBRECHTS-TYTECA, 2014, p. 348). As qualidades de pura, perfeita e exata, geralmente atribuídas à “boa matemática”, e que (TASIC, 2001) denomina como intocada pelo tempo e livre de ambiguidades, parecem ser o “pano de fundo” das supostas dificuldades e posterior fracasso, dos alunos. Por outro lado, para os professores, é motivo de reconhecimento pelo fato de possuírem algo perfeito e intocado. AS MATEMÁTICAS COMO ”INSTRUMENTO” DE MUDANÇAS SOCIAIS Esta relação parece ter surgido no século XVII, quando Leibniz, por meio destas mesmas verdade imutáveis, de uma ordem objetiva e divina, pode estabelecer a paz universal (TASIC, 2001). Ou seja, essa linguagem (matemática), como assim é denominada pelo autor, "fará com que os argumentos e os cálculos sejam uma mesma coisa". Ao denominar como mesmo objeto a argumentação matemática e os cálculos, no contexto da linguagem matemática, parece ser um indício do momento em se tornou percussiva a noção de os os cálculos serem o mesmo que matemática. O “MAU MATEMÁTICO” E O “BOM MATEMÁTICO” A dissociação da noção de matemático institui uma oposição em que o termo 1, “mau matemático” é desprovido das qualidades do termo 2, “bom matemático”, e que expressa o que é desejável, o que é preferível fazer ou ter, ou seja, os valores (PERELMAN E OLBRECHTS-TYTECA, 2014) e, estes valores, são reconhecidos como verdades, uma vez que influenciam decisões e orientam ações. O ponto central do que se diz a respeito da “boa matemática” é a sua imutabilidade, que é expressa nos cálculos fora de seus contextos. Este parece

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

290

ser o desejável - constituir relações sociais imutáveis, como seriam os entes matemáticos especialmente o cálculo. Assim, ao expressar uma atitude favorável a algo, estamos no campo dos valores e os qualificativos de exata, eterna, imutável, atribuídos às matemáticas e expressos por cálculos, indicam que estas não são consideradas de forma igualitária. E, mesmo quando a comparação não se encontra explícita estamos no domínio dos valores, ou seja, o que é preferível, o que é desejável ou o que se valora, já pode estar constituído em hierarquizações prévias – hierarquias. A hierarquia tem a ver com os valores e a superioridade de uns em relação a outros que é determinada pela adesão dos grupos ao que consideram preferível ou desejável (PERELMAN E OLBRECHTS-TYTECA, 2014). O segundo termo dessa dissociação afirma que o “bom matemático” é o exímio calculista, ou seja, ao que é preferível fazer, portanto, às práticas das pessoas. Desse modo, o ensino da matemática centrado no cálculo, na memorização de fórmulas e praticado pela maioria dos professores, é preferível ao que só é proveitoso em situações particulares e menos duradouras, como o pensar criativo do estudante. Isto, porque, se é desejável ser capaz de realizar cálculos nos exames, então, nas escolas, os professores devem ensinar a calcular, incentivar a memorizar o uso de fórmulas – a boa matemática. Desse modo, apresenta-se a matemática escolar aos alunos como imutável, perfeita sem lugar para qualquer tipo de dúvida a respeito de suas verdades que se mostram absolutas. A hierarquização, superioridade do cálculo sobre o pensar criativo é determinada pela adesão dos grupos ao que consideram desejável ou preferível. Para expor o que se diz sobre essa ciência e o desejável dos matemáticos apresentamos a recente entrevista de Artur Ávila18 ganhador da medalha Fields19 considerado o Premio "Nobel" da Matemática, publicada em site de referência na área educacional. É dito que: 18Entrevista

disponível em: http://agencia.fapesp.br/nova_geracao_da_matematica_brasileira_se_reune_em_congresso_em_sao_pa ulo/20405/ 19 Premio quadrianual atribuído pela União Internacional de Matemática (IMU), no decurso do Congresso Internacional de Matemáticos (IMC), concedido a no máximo quatro matemáticos. Declaração disponível em: http://g1.globo.com/educacao/noticia/2014/08/vai-motivar-pessoas-diz-brasileiro-sobre-premiomaximo-de-matematica.html

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

291

Um grande obstáculo para o desenvolvimento da Matemática no Brasil, apesar de todos os avanços já conquistados, é fazer com que todas as pessoas a percebam para além da docência e conheçam a existência da pesquisa na área, que ainda é tratada de forma obscura. A pesquisa brasileira na área está em evidência e de uma maneira positiva, mostrando aos mais jovens que existe e é reconhecida, importante. A Matemática é viva e cheia de entusiasmo. Os mais novos entendem que se trata de algo “formulaico” e de mera memorização, de seguir regras sem questioná-las e com pouco espaço para a imaginação, quando é o oposto disso e foi o que me atraiu para a Matemática.

O discurso presente no primeiro trecho da entrevista opera uma dissociação do matemático segundo o seu campo de atuação: a pesquisa ou docência. Ao comparar o desenvolvimento da matemática no Brasil com a pesquisa na área desqualifica a docência. Ou seja, a pesquisa é superior docência. Neste caso o termo 1, o docente, não apresenta as qualidades do pesquisador (termo 2) e que deste depende o desenvolvimento da Matemática. A seguir, por meio da metáfora “Matemática viva e cheia de entusiasmo” atribui qualidades à pesquisa que a colocam numa posição de “evidência” entre os jovens (estudantes) e, mais uma vez, apresenta um conjunto de qualidades explicitadas por metáforas (“viva” e “entusiasmo”) que parecem faltar na docência. No trecho final do discurso, volta a dissociar o matemático do docente agora, situando o ensino como “formulaico”, “memorização” e “regras” sem espaço para a “imaginação”, ou seja, a “má matemática”. No entanto, transfere as qualidades (opostas a estas) para o que o fez matemático (a boa matemática). Este juízo de valor atribuído à docência e ao ensino de matemática parece “inverter” a relação entre a “boa matemática” e a “má matemática” que é considerada pelos diferentes auditórios e orientada pelos exames, autores de livros didáticos, etc. O matemático sustenta em seu discurso que a matemática é “boa” quanto mais próxima estiver da pesquisa atribuindo a esta qualidades (“viva” e cheia de “entusiasmo”) que estão ausentes da matemática que é ensinada nas escolas - a “formulaica”. Se para ser acreditado um discurso o orador deve inspirar confiança (PERELMAN E OLBRECHTS-TYTECA, 2014, p.362), no caso de Artur Ávila, a confiança está situada em sua autoridade como matemático representativo e

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

292

valorizado pela comunidade de matemáticos. Diante disto, refutar as suas afirmações, seria um absurdo. Afinal, para que servem os conhecimentos matemáticos ensinados na escola?

CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta análise preliminar e breve enuncia um argumento de autoridade que se sustenta no caráter das matemáticas e que nos leva a crer que as matemáticas escolares distorcem, desfalcam e suplementam as matemáticas. O que se valoriza, o que se considera desejável, é estritamente “escolar”: passar nos exames que se enunciam como critérios de classificação dos estudantes. Sendo assim, os exames são os que organizam o que vai ser ensinado e também meios para selecionar os “melhores” alunos.

Mas,

melhores no quê? Melhores em passar nos exames que representam as matemáticas mas, que são distorcidas e reduzidas a cálculos sem significados e fórmulas vazias, desfalcando a disciplina de seu caráter criativo, lúdico e belo.

REFERÊNCIAS

ABRIC, Jean-Claude. Prácticas sociales y representasciones.Tradución José Dacosta Chevrel y Fátima Flores Palácio. Ediciones Coyoacán, S.A. de C.V. México, 2001.

BILLIG, Michael. Social Representation and Rhetoric. In: BILLIG, Michael. Ideology and opinions: studies in rhetorical psychology. Capítulo 3, pp. 57-78. Tradução de Claudia Helena Alvarenga. London: Sage Publications, 1991. BRASIL, Secretaria de Ensino Fundamental/MEC. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental – Matemática. Brasília: MEC/SEF, 1998 MAZZOTTI, Tarso Bonilha. Ensino de Conceitos Científicos ou de suas Representações Sociais? Universidade Estácio de Sá, 2013.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

293

___________. Retórica e Argumentação na Pedagogia. Universidade Estácio de Sá. Programa de Pós-graduação em Educação. Tópicos Especiais(Geral). 2014. PERELMAN, Chaïn; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

da

TASIC, Vladimir. Una Lectura Matemática del Pensamiento Postmoderno. Colihue, 2001.

MARIA INMACULADA CHAO CABANAS – Professora e coordenadora nos cursos de Matemática e Pedagogia na Universidade Estácio de Sá (UNESA), doutoranda pelo PPG em Educação da Universidade Estácio de Sá (UNESA). TARSO BONILHA MAZZOTTI – Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo. Professor Titular de Filosofia da Educação pela UFRJ. Atualmente é pesquisador associado da Fundação Carlos Chagas e professor adjunto da Universidade Estácio de Sá (UNESA).

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

294

POR UM ESTUDO FILOSÓFICO DA FACE PROPRIAMENTE RETÓRICA DA METÁFORA Diogo de França Gurgel [email protected] Universidade Federal Fluminense (UFF)

RESUMO No presente trabalho, procuro mostrar que um esclarecimento prévio acerca do papel da metáfora nas barganhas de significado é elemento imprescindível para a constituição de uma Filosofia da Retórica. Para tanto, recorro ao tratamento precursor conferido por I.A. Richards ao tema da metáfora na obra intitulada The Philosophy of Rhetoric e proponho complementações ao mesmo a partir de uma concepção de aprendizado da linguagem de orientação wittgensteiniana.

Palavras-chave: metáfora; retórica; semântica

INTRODUÇÃO

É notório como pesquisadores provenientes das mais diversas áreas vêm, nas últimas décadas, convergindo para o estudo da Retórica. Autores como Chaïm Perelman, Stephen Toulmin e os integrantes do Grupo μ contribuíram imensamente para a revitalização do campo e a leitura de seus textos tem entusiasmado gerações de estudiosos. Contudo, creio que, ao discutirmos os caminhos sugeridos por esses precursores, temos dado, de um modo geral, pouca atenção a uma das obras mais contundentes no que diz respeito aos serviços prestados em favor dessa revitalização20. Refiro-me a The Philosophy of Rhetoric, de I.A.Richards. Suponho que uma das razões para essa negligência resida no fato de que o mais célebre canal de divulgação da obra foi estabelecido por Max Black, em um artigo seminal sobre o tema da metáfora, mas pouco meritório no tocante ao velamento imputado ao projeto de

20

E tal contundência se deve tanto ao seu caráter precursor (a obra foi publicada em 1936) quanto à força de seus argumentos.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

295

Richards como um todo. Black, em seu artigo intitulado "Metaphor", a um só tempo alinha-se com a teoria interacionista da metáfora fundada por Richards e isola essa teoria de todos os demais desenvolvimentos argumentativos presentes em The Philosophy of Rhetoric – negligenciando as contribuições de Richards para a inserção da metaforologia no seio de uma Retórica reestabelecida como campo promissor para investigações de cunho semântico. Diante desse quadro, interessa-me fazer notar como o trabalho de Richards é orientado na contramão de toda uma tradição de "amputação" da Retórica – para usar os termos de Paul Ricoeur em La Métaphore Vive (RICOEUR 1975, p.13). Refiro-me a uma tradição teórica que foi destituindo gradativamente a metáfora da relevância filosófica de que gozava na obra de Aristóteles e que, na mesma medida, foi reduzindo a Retórica a um mero estudo dos tropos, a uma mera teoria da elocução. Trata-se de um processo que tem início já na leitura que retores latinos como Cícero e Quintiliano fazem do estagirita e que encontra sua culminância no pretenso embargo promovido por renomados filósofos (dentre os quais John Locke21) à metáfora em seus escritos teóricos. Richards procura resgatar a dignidade filosófica da Retórica ao tomá-la como um estudo da compreensão e da incompreensão verbal (RICHARDS 1965, p.23). A Retórica, segundo o autor, deve ser vista como a arte do discurso, i.e., como uma disciplina filosófica que almeja o domínio das regras fundamentais de uso da linguagem e não apenas como um conjunto de artimanhas que parecem funcionar eventualmente. De modo sucinto, pode-se afirmar que a obra de Richards é dedicada a reestabelecer os direitos do discurso no cenário do estudo da linguagem. Assumo que é somente nesse contexto de reabilitação da Retórica que se pode compreender devidamente a definição de metáfora elaborada por Richards e aclamada por Black. A discussão do texto de Richards, como veremos, conduz naturalmente a uma aporia acerca do estatuto semântico da metáfora, abrindo espaço para um segundo objetivo que persigo neste trabalho, a saber, o de contribuir para o estudo dos liames entre metaforologia e Retórica a partir da apresentação de certas operações peculiares que certas 21

P.ex.: LOCKE, Essay Concerning Human Understanding, III, 10, p.34.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

296

metáforas desempenham nos conflitos e barganhas de significado ocorrentes em nossas práticas linguísticas. É preciso perguntar: o que faz de uma recategorização, de uma inovação semântica via metáfora, um recurso retórico significativo? Nesse momento do trabalho, lançarei mão – ainda que com ressalvas – da concepção de aprendizado da linguagem desenvolvida por Wittgenstein nas Investigações Filosóficas e, nessas bases, procurei mostrar o quão promissora pode ser a ideia richardiana de que metáforas são formas discursivas que possibilitam transações entre contextos (RICHARDS 1965, p.94).

A RETÓRICA SEGUNDO RICHARDS Examinemos alguns pontos-chave de The Philosophy of Rhetoric. Penso que o primeiro ponto a se enfatizar é que o título já diz bem a que vem a obra. Trata-se de um projeto de resgate da dignidade de um certo campo das pesquisas filosóficas. A Retórica, essa disciplina que já foi tomada por Aristóteles como contraparte da dialética (ARISTÓTELES 2000b, 354a 1), como lugar de um tipo específico de argumento dedutivo, como lugar de análise de formas de discurso caríssimas à vida pública, como o são os discursos deliberativo e forense, veio sendo gradativamente rebaixada, chegando finalmente à classe das disciplinas periféricas de estudo de ornatos e floreios de linguagem. A tropologia moderna, com seu estudo do estilo, já não fazia jus, nos séculos tidos como modernos, nem mesmo ao estudo clássico da léxis, o qual, por sua vez, fora somente uma parte da Retórica em toda a sua envergadura. Richards reconhece na nascente filosofia da linguagem e na crítica literária de sua época a lacuna a ser preenchida por uma perspectiva de análise da linguagem que, originalmente, cabia à Retórica. Assumindo para si a incumbência de denunciar e desfazer, dentro do possível, esse desserviço histórico, Richards propõe, já na primeira página do livro que a Retórica seja tomada como "o estudo das incompreensões e de seus remédios" (RICHARDS 1965, p.3). A distinção entre a boa é a má comunicação, sugere ele, não pode se dar senão no seio de um estudo de Retórica, de um estudo filosófico que procura pelas leis fundamentais que regem o uso da linguagem (RICHARDS 1965, p.3). O autor assume (fazendo II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

297

coro ao Arcebispo Whateley) que a Retórica não é uma arte do discurso, mas a arte do discurso e complementa, mais à frente, dizendo que a persuasão é apenas uma dentre as finalidades do discurso. Ela caça as outras – especialmente aquela da exposição, a qual procura estabelecer uma visão e não persuadir pessoas a concordar ou a fazer qualquer outra coisa que não examiná-la. (RICHARDS 1965, p.24).

Perceba-se que, com esse posicionamento, Richards dá a entender que nem mesmo Aristóteles – o qual assumia que a persuasão é a espinha dorsal e a finalidade última da Retórica – considerou essa disciplina em toda a sua potência. Fica clara também a intersecção traçada por Richards entre Retórica e Semântica nas diversas passagens em que assume que recai sob o escopo da Retórica, tal e qual ele a compreende, a lida com a questão "Como palavras significam?" (p.ex., p.23). Em uma dessas passagens ele diz: O resultado é que uma Retórica ressuscitada, ou estudo das compreensões e incompreensões verbais, deve ela mesma protagonizar sua própria investigação sobre os modos do significado – não apenas tal e qual a velha Retórica, em uma escala macroscópica, discutindo os efeitos de diferentes disposições de largas partes do discurso – mas também em uma escala microscópica, valendo-se de teoremas sobre a estrutura das unidades de significado conjecturais fundamentais e sobre as condições por meio das quais surgem elas e suas interconexões. (RICHARDS 1965, pp. 23-24)

Esse tratamento retórico do problema semântico do significado leva Richards à seguinte tese: "o que uma palavra significa são as partes faltosas dos contextos a partir dos quais elas traçam sua eficácia delegada" (RICHARDS 1965, p.35). Um problema de que padece essa definição é a vagueza do termo "contexto". Convenhamos que a definição técnica de contexto fornecida por Richards como "grupo de eventos recorrente" está longe de ser satisfatória para os fins de uma semântica das metáforas, mas deixemos esse ponto para a terceira seção do presente trabalho.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

298

Penso que os apontamos que fiz acima, ainda que breves, são suficientes para que tenhamos uma ideia geral do projeto richardiano de reabilitação e enriquecimento da Retórica. Passemos agora a uma consideração da teoria da metáfora por ele desenvolvida e de sua articulação com a totalidade do projeto.

A METÁFORA COMO RECURSO RETÓRICO EM RICHARDS Em primeiro lugar, é preciso notar que o estudo da metáfora decorre naturalmente, no desenvolvimento da obra – a qual é, na verdade, uma reunião de palestras, de lectures –, de uma crítica da superstição do significado próprio (“uma relíquia que remonta à crença em nomes mágicos” – RICHARDS 1965, p.71) e de uma preocupação com o desenvolvimento de um método de estudo que nos permita acompanhar as mudanças de significado próprias das línguas vivas. Ao fim da Lecture IV, Richards deixa o cenário preparado para a tematização da metáfora e de suas funções didáticas – já antecipadas por Aristóteles (ARISTÓTELES 2000b, 1412a 30-35) – ao propor uma breve discussão sobre "as razões para a escolha de palavras" e ao apontar para um vasto campo de estudo em que se pudesse trabalhar com vistas a transformar essa discussão em uma disciplina central dos saberes educacionais (RICHARDS 1965, p.86). Em segundo lugar devo deixar claro que Richards não busca uma taxionomia dos tipos de metáfora – tarefa considerada infrutífera para quem, como ele, não perde de vista que a linhagem está em constante mutação –, mas sim uma clarificação de nossa habilidade de compreensão da metáfora. A definição mais célebre de metáfora fornecida pelo teórico inglês (corroborada por Max Black e fundadora de toda uma corrente de teóricos da metáfora) é a seguinte: “quando nós usamos uma metáfora, nós temos dois pensamentos sobre coisas diferentes concomitantemente ativos e operando em uma palavra, ou frase, cujo sentido é a resultante de sua interação” (RICHARDS 1965, p.93). Mais adiante no texto, ele apresenta uma elucidação complementar, dizendo que a metáfora é uma “transação entre contextos” (RICHARDS 1965, p.94). A proposta do autor para a efetuação de uma análise devida dessa transação, conforme ela ocorre na sentença, é de que

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

299

denominemos “conteúdo” (tenor) a ideia subjacente e “veículo” (vehicle) a ideia a partir da qual a primeira é apreendida. Deve-se notar, porém, que a metáfora como Richards a concebe não se deixa reduzir nem ao conteúdo nem ao veículo, ela não é senão a interação entre os dois. Ou seja, na grande maioria dos casos, “metáfora” é nome que devemos usar para nos referirmos às sentenças em que ocorre essa transação entre contextos, essa interação entre pensamentos que se expressa na linguagem por meio de proferimentos em que a predicação é impertinente aos hábitos gramaticais de uma determinada comunidade. Assim, de acordo com Richards, ao apresentar uma metáfora, o emissor joga com os hábitos linguísticos de seu(s) interlocutor(es), concedendo um significado literal (canônico, habitual) a pelo menos um dos termos que compõem a sentença metafórica e forçando o emprego do(s) outro(s) termos em um contexto que não lhes é próprio, de modo a produzir um sentido sentencial inusitado, fruto de uma predicação transgressora. O estudo da metáfora empreendido por Richards, como se vê, é parte de sua agenda de investigação das vias diversas pelas quais logramos obter o compartilhamento de significado, evitando certas falhas de comunicação. É preciso ainda ressaltar uma série de outros méritos de Richards no que tange às suas contribuições para as teorias contemporâneas da metáfora: ele foi, por exemplo, um dos precursores na crítica da semelhança como critério de composição e compreensão da metáfora (RICHARDS 1965, pp.107108). E seu trabalho é digno de reconhecimento não somente por apresentar uma abordagem da metáfora que a põe na ordem do dia da filosofia da linguagem, mas também por deixar evidente que um enriquecimento da Retórica envolve necessariamente uma revisão minuciosa dos tratamentos dados ao tema da metáfora. Contudo, é também imperativo fazer a denúncia de uma grave ausência remanescente nesse projeto. A teoria da metáfora desenvolvida por Richards deixa sem resposta uma questão crucial acerca do estatuto semântico das metáforas, a saber: como certas recategorizações funcionam e outras não? Como distinguir, por exemplo, uma boa metáfora de uma má metáfora no que tange à compreensão da linguagem? E agrava essa lacuna o fato de Richards

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

300

contestar textualmente Aristóteles por ter esse último afirmado na Poética que o “olho para semelhanças” é um dom natural (RICHARDS 1965, p.89). Ele dispara a crítica e, no entanto, não faz mais no sentido de suprir a carência teórica constatada do que afirmar que a metáfora nos permite “tornar nossas recognições implícitas em distinções explícitas” (RICHARDS 1965, p.95). Mas ganhemos um pouco mais de clareza com relação ao problema que temos em mãos. A perplexidade em que caímos ao tentarmos determinar as razões pelas quais certas metáforas funcionam e outras não pode ser demarcada com as seguintes questões: como pode uma transgressão gramatical ser significativa? E neste sentido, a teoria de Richards, com suas metáforas da metáfora – tais como “veículo” e “interação” –, não pode nos prestar muitos serviços. Diante desse impasse, sugiro uma revisão das definições de metáfora elaboradas por Richards na obra em exame. Uma revisão que nos conduz, assim penso, a uma crítica do polissêmico conceito de contexto a partir das concepções apresentadas por Wittgenstein nas Investigações Filosóficas. Suspeito

que

procedendo

dessa

forma,

conseguiremos

importantes

esclarecimentos acerca do modo como um estudo retórico pode ser feito de modo a solucionar o problema dos erros categoriais calculados promovidos pelas metáforas.

CONTRIBUIÇÕES DE WITTGENSTEIN PARA UMA COMPREENSÃO DA METÁFORA COMO RECURSO RETÓRICO Uma advertência deve ser feita para que se possa avaliar devidamente a pertinência da tese que exponho abaixo: o problema dos limites da recategorização via metáfora é um problema semântico de grande envergadura e não tenho pretensão de apresentar nenhuma solução exaustiva e cabal para o mesmo no presente trabalho. Digo isso até mesmo porque não me parece plausível o projeto de se encerrar em uma só fórmula todos os diversos tipos de construção linguística que vêm recebendo e podem receber o nome “metáfora”. Ficarei sumamente satisfeito se o tratamento que venho desenvolvendo até o momento para esse problema se mostrar promissor para

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

301

a compreensão de certas metáforas que envolvem no mais alto grau o que Paul Ricoeur chama de “veemência ontológica” (RICOEUR 1975, p.321), i.e., se esse tratamento nos permitir ganhar alguma clareza sobre como funcionam metáforas que objetivam fazer vacilar nossas convições e nossa compreensão do que seja o verdadeiro22. Esse é o caso de muitas sentenças metáforicas empregadas em práticas linguísticas de cunho político, tais como “Estamos do mesmo lado” ou, para mencionar um célebre exemplo fornecido por Lakoff e Johnson em Metaphors We Live By, “Discussão é guerra” (LAKOFF; JOHNSON 2003, p.4). Feita essa advertência consideremos os ganhos que obtemos ao abandonarmos o conceito de contexto e ao passarmos a trabalhar com o conceito de jogo de linguagem em nosso estudo de Retórica. Tomemos como fio condutor de nosso raciocínio a concepção wittgensteiniana de que compreender o significado de um signo é compreender seus usos nos jogos de linguagem em que ocorre – levando em conta que trabalhar com a mesma implica em se assumir que o estudo de semântica envolve o estudo do aprendizado do uso dos signos (PI, §43, §138). Dado que uso não é senão comportamento linguístico, investigar o que possa ser comprender o sentido de uma sentença p requer investigar as regras de uso de signos que vigora nas práticas linguísticas em que tal sentença ocorre. A essas práticas linguísticas Wittgenstein dá o nome de “jogos de linguagem” (WITTGENSTEIN 2006, §7)23. Munidos desse conceito, podemos evitar recorrer ao sempre obscuro conceito de contexto em nossa investigação sobre o poder de recategorização das metáforas. Por seu emprego excessivo em teorias as mais diversas, sendo mesmo algumas delas antagônicas entre si, o termo “contexto” tornou-se demasiadamente vago. Tornou-se difícil encontrar modos de preservar o

22

Trataremos, pois, de um certo tipo de metáfora em que a exigência de recategorização se faz muito forte, i.e., um certo tipo em que a consideração efetiva da sentença metafórica como asserção, como descrição de fatos, é um imperativo para a compreensão. Não são metáforas que admitem paráfrases literais. Não admitem o "como". Elas têm traços de catacrese, preenchem lacunas semânticas e, ao mesmo tempo, têm traços de metáforas de invenção, transgridem as regras de uso habitual dos signos.Refiro-me a sentenças metafóricas que, postas na fórmula aristotélica simples, “S é P” não querem senão dizer “S é P”, efetivamente, ou seja, que se comprometem com a asserção feita nos termos em que ela é feita. 23 Refiro-me aqui a uma acepção do conceito de jogo de linguagem que abarca práticas linguísticas complexas, como contar uma piada ou celebrar uma missa e não estou trabalhando com outras acepções também presentes na obra. Não tenho em mente, por exemplo, jogos de linguagem forjados, os quais funcionam como objetos de comparação.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

302

conceito a ele relacionado de empregos comprometidos com a ideia de que os aspectos semânticos de uma sentença podem ser analisados isoladamente de aspectos pragmáticos e fonéticos – o que conduz, em geral, a algum tipo de mentalismo semântico. Além disso, a determinação dos domínios de um jogo de linguagem é consideravelmente mais precisa do que a determinação dos domínios de um contexto: podemos nos focar nos verbos de ação, como faz Wittgenstein nas Investigações Filosóficas:

(...) O termo “jogo de linguagem” deve aqui salientar que o falar da linguagem é uma parte da uma atividade ou de uma forma de vida. Imagine a multiplicidade dos jogos de linguagem por meio destes exemplos e outros: Comandar, e agir segundo comandos – Descrever um objeto conforme a aparência ou conforme medidas – Produzir um objeto segundo uma descrição (desenho) – Relatar um acontecimento – Expor uma hipótese e prová-la – Apresentar os resultados de um experimento por meio de tabelas e diagramas– Inventar uma história; ler – Representar teatro – Cantar uma cantiga de roda – Resolver enigmas – Fazer uma anedota; contar – Resolver um exemplo de cálculo aplicado – Traduzir de uma língua para outra – Pedir, agradecer, maldizer, (WITTGENSTEIN, 2006, §23)

saudar,

orar.

(...)

Ao nos valermos dos métodos de investigação gramatical desenvolvidos por Wittgenstein, encontramos um modo de abordar o tema da metáfora por uma perspectiva do discurso (do jogo de linguagem) – afastando-nos das

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

303

abordagens limitadas ao nível da palavra desviada ou ao nível da predicação impertinente – e esse é um fator decisivo. A metáfora aparece como lance no jogo de linguagem (WITTGENSTEIN, 2006, §49) – antecedida e sucedida por outros lances. Essa pode ser, assim penso, uma contribuição valiosa do pensamento de Wittgenstein para um projeto de reabilitação e enriquecimento da Retórica. Apresentada essa ideia, pretendo agora sofisticar um pouco nossa compreensão do conceito de jogo de linguagem de modo que possamos ver como ele nos auxilia com nosso problema da metáfora. Proponho considerarmos os jogos de linguagem não pela perspectiva do simples aprendizado da regra canônica, mas, sobretudo, pelo ponto de vista da equivocidade e da barganha de regras que encontramos em jogos mais complexos do que a grande maioria dos jogos descritos por Wittgenstein em seus escritos de maturidade24. Ao invés de nos focarmos na convergência de certos comportamentos linguísticos, deixemo-nos instigar por pesquisadores que se aventuraram a pensar os conflitos normativos presentes em nossas práticas linguísticas, tais como Davidson e Bakhtin25. Trabalho sob a regência de uma suspeita, a suspeita de que a impertinência de predicação envolvida nas asserções efetuadas por certas metáforas seja uma marca de conflito normativo entre jogos de linguagem ou entre diferentes níveis de um mesmo jogo, os quais podem ocorrer simultaneamente26. Essa concepção de metáfora, ao partir da revisão do 24

Não nos ocuparemos aqui, portanto, com jogos de linguagem simples como o da compra de maçãs (WITTGENSTEIN 2006, §1), os quais foram construídos por Wittgenstein com o intuito de investigar certas regras envolvidas em uma prática linguística definida e não tendo em vista possíveis regras latentes, cuja entrada em vigor permitiria um deslocamento entre práticas linguísticas. 25 Refiro-me especificamente aos textos "A Nice Derangement of Epitaphs", de Donald davidson e Marxismo e Filosofia da Linguagem, de Bakhtin. O artigo “Idiolect and Context”, de Carlo Penco, também faz grande contribuição a esse tema. 26 Para termos um bom exemplo da concomitância entre jogos de linguagem, basta considerarmos dois ou mais dos jogos enumerados por Wittgenstein na passagem reproduzida acima ocorrendo a um só tempo: um padre conta uma piada (jogo 1) que exige uma tradução entre duas línguas (jogo 2) em meio a uma missa (jogo 3). Para termos um bom exemplo de multidimensionalidade do jogo de linguagem, i.e., do fato de um jogo apresentar diversos níveis normativos, posso tomar de empréstimo uma passagem do belo texto de Umberto Eco, Seis Passeios pelos Bosques da Ficção. Refiro-me ao momento em que Eco menciona a “piscadela” que o autor de Pinóquio, Carlo Collodi, dá para seu público adulto – e exclusivamente para esse público – em meio a uma narrativa para crianças. Ao começar a narrativa dizendo: “Era uma vez... um rei!, dirão de imediato meus pequenos leitores. Não, crianças, estão enganadas. Era uma vez um pedaço de madeira.”, Collodi atua em dois níveis diferentes do jogo de linguagem da narração de histórias. Ele narra o conto de fada às crianças e promove essa quebra de expectativa que “poderia indicar [aos adultos] que deveriam ler a história sob uma luz diferente e, ao mesmo tempo, fingir-se de crianças para compreender os significados alegóricos da narrativa” (ECO 2004, p.16).

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

304

pressuposto infundado de que só operamos com um sistema normativo a cada prática linguística, permite-nos dar conta do surgimento de novos significados, respeitando a distinção entre os mesmos e o mero nonsense. Nosso quadro se completa se somarmos a essa concepção de jogo de linguagem um resgate do interacionismo de Richards na medida em que ele nos permita investigar o tipo de metáfora que nos interessa aqui. Perguntemonos: o que se pode querer dizer quando se emprega expressões como "transação entre contextos" (RICHARDS 1965, p.94) ou "dois pensamentos concomitantemente ativos" para falar de metáforas? Se considerarmos que metáforas podem ser recursos discursivos que estabelecem transações entre jogos de linguagem (e aqui a preposição deve ser devidamente enfatizada) e que a concomitância de pensamentos não é senão concomitância de dois sistemas normativos distintos em uma mesma sentença, temos o seguinte: a metáfora se mostra recurso de transferência de regras de uso dos signos de um sistema descritivo para outro. O lance de linguagem metafórico começa em um jogo de linguagem e termina em outro (ou em outro nível do mesmo jogo). Ocorre nesse tipo de metáfora o que Nelson

Goodman

certa

feita

denominou

"erro

categorial

calculado"

(GOODMAN 1976, p.73). E o cálculo consiste nisso: Eu lhe apresento propositalmente o termo que ocupa a posição de sujeito, numa acepção que lhe é familiar, mas aplico a ele um predicado defectivo, transgressor, mas não incompreensível. Por essa perspectiva de análise, decifrar o enigma da metáfora não é senão tornar-se capaz de ver o jogo de linguagem em que ela é literal como o jogo atual (se não falo necessariamente em se deixar convencer pela metáfora, falo, ao menos, em compreender sua implicação direta: a de que tal já era o jogo em questão, ainda que se ignorasse o fato). Mas para que se compreenda como pode uma tal transgressão ser significativa, precisamos levar em conta o que nos diz Wittgenstein acerca do aprendizado da linguagem (WITTGENSTEIN 2006, §§ 5-9; WITTGENSTEIN 1965, p.77). Em geral, não aprendemos o significado de palavras a partir do fornecimento de definições cabais. Adquirimos o hábito de usar um certo signo de um tal modo a partir de exemplos de uso que nunca nos dão uma noção completa e precisa da extensão desse signo. A vagueza impera e abre brechas

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

305

para a inovação semântica. Tendo isso em vista, defendo que são usos alternativos permitidos em certos jogos de linguagem (muitas vezes jogos de linguagem primitivos) e posteriormente desabilitados em outros jogos, que são resgatados via metáfora. Esses usos alternativos são usos não canônicos do ponto de vista de nossas práticas linguísticas mais frequentes, as quais são, em geral, as posições a partir das quais avaliamos. Exemplos são sempre bem-vindos em meio a argumentações abstratas como essa, e assim, proponho que tomemos como modelo a metáfora “Discussão é guerra”. Neste caso, uma certa extensão de "guerra", senão própria, pelo menos admitida em um jogo de linguagem Y (admitida dentre as convicções que alicerçam esse jogo), é resgatada para fins da recategorização a ser promovida em um jogo de linguagem X (ou isso pode se dar em níveis X e Y de um mesmo jogo), no qual o termo “discussão” é habitualmente usado em suas formas canônicas. Assim, dizer que o emissor da metáfora calcula o erro categorial que pretende imprimir equivale a dizer que ele determina os meios para suprir uma determinada lacuna semântica com a qual se depara. Trata-se de um procedimento cuja execução depende da seguinte competência: perceber quais são os conjuntos de regras que devam ser desabilitados e os termos que, uma vez resignificados, permitam tal desabilitação. Se esse tratamento dado ao tema procede, elucidam-se alguns pontos intrincados que vêm, tradicionalmente, assolando pesquisadores. Dentre eles, aquele que formulei acima da seguinte forma: Com que bases pode um falante diferenciar uma predicação impertinente significativa de outra não significativa? Diante dessa questão, agora podemos dizer que nenhum deus ex machina é necessário para respondê-la. A pura e simples consideração de nosso aprendizado da linguagem pela perspectiva de sua vagueza endógena – i.e., das lacunas normativas produzidas por esse processo – e, é claro, das habilidades envolvidas na identificação desses efeitos, já nos proporciona o material de que precisamos para a elucidação.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

306

CONCLUSÃO Após duas seções em que fiz uma breve apresentação do projeto richardiano de reabilitação e enriquecimento da Retórica, procurei defender a tese de que metáforas comprometidas com a recategorização (dotadas de veemência ontológica) podem ser vistas como recursos de deslocamento normativo entre jogos de linguagem ou entre níveis de um mesmo jogo de linguagem. Espero ter deixado claro que o primeiro e mais fundamental ponto de contato entre as obras de Richards e Wittgenstein – e que me permite ver pertinência nessa complementação do trabalho de um com o trabalho do outro (ou com uma extensão do mesmo) – está na postura comum de que o estudo da estrutura semântica de uma sentença (metafórica ou não) só pode se dar de modo satisfatório quando se contempla a articulação entre essa sentença e as demais sentenças que compõem o discurso em que a primeira está inserida. Essa perspectiva de análise que contempla o discurso como um todo, levando em conta as regras da interlocução, é classicamente atribuída à Retórica e à Dialética, como disciplinas irmãs que são. Gostaria de explorar um pouco mais essa ideia agora que caminhamos para o desfecho do trabalho. Pensar a metáfora como uma estratégia discursiva situa-nos no seio de um estudo que Richards certa feita chamou de “estudo da incompreensão e de seus remédios” (RICHARDS 1965, p.3) – assumindo-se que, dentre estes remédios, devem estar presentes as estratégias discursivas de transição entre jogos de linguagem e entre seus diversos níveis. É esse o ponto de vista que a Retórica nos faz assumir com relação ao estudo da linguagem: o ponto de vista que toma cada proferimento como um ato na totalidade do discurso (como um lance no jogo de linguagem). Esse é, a meu ver, o ponto de vista peculiar que funda Aristóteles, ao abrir a Retórica afirmando que esse campo do saber é a contraparte da dialética e deixando entrever, como nota Ricoeur, “um vínculo entre o conceito retórico de persuasão e o conceito lógico de verossímil” (RICOEUR 1975, p.17). Ao fazê-lo o filósofo deixa entrever que tanto a Dialética quanto a Retórica tratam da interlocução e colocam em primeiro plano os recursos de condução do pensamento que se mostram nas escolhas de vocabulário (nas seleções de aspectos relevantes). Ambas subsumem a

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

307

exposição de pensamentos à comunicação, onde o que está em jogo são os papéis dos proferimentos no discurso como um todo. Certas metáforas reivindicam o posto de descrições de fatos, de asserções e são usadas como tais. A que disciplina compete estudar essa reivindicação? Um estudo dos diversos tipos de descrição compete à Retórica, na medida em que podemos ver, em cada um deles, seleções de aspectos relevantes para um determinado jogo de linguagem. O estudo dos modos de edição é um estudo retórico, é o estudo das técnicas de condução envolvidas no discurso. A Retórica, pensada desta maneira, permite-nos abordar a linguagem a partir dos jogos de linguagem em sua forma enriquecida, i.e., contemplando a concomitância e a multidimensionalidade dos mesmos. E, ao tratar de descrições, trata não apenas de descrições feitas em jogos de linguagem, mas também das descrições sobre jogos de linguagem e sobre a transição entre jogos de linguagem. Vimos que Richards defende um alargamento da metáfora tanto rumo à dimensão da semântica e da sintaxe (filosofia da linguagem) quanto rumo à dimensão do discurso político e dos demais gêneros discursivos (incluindo-se o especulativo ou científico) e, do modo como compreendo, as complementações que proponho para esse projeto, a partir de Wittgenstein, não são senão uma tentativa de torná-lo ainda mais contundente.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Poetics. Trad. Stephen Halliwell. 2.ed. London: Harvard University Press, 2000a. (In: Loeb Classical Library, v.199)

_______. Art of Rhetoric. Trad. J. H. Freese. London: Harvard University Press, 2000b. (Loeb Classical Library, v.193)

BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.

BLACK, M. “Metaphor”. In: JOHNSON, M. (Org.) Philosophical Perspectives on Metaphor. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2011, pp. 63-82.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

308

DAVIDSON, D. “A Nice Derangement of Epitaphs”. The Essential Davidson. Oxford: Oxford University Press, pp.251-265, 2006.

ECO, U. Seis passeios pelos bosques da ficção. Trad.: Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

GOODMAN, N. Languages of Art: An approach to a Theory of Symbols. Indianapolis: Hackett, 1976.

LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metaphors We Live By. Chicago: The University of Chicago Press, 2003.

LOCKE. An Essay Concernig Human Understanding. Chicago: Encyclopædia Britanica (William Benton Publisher), 1952. (Great Books of the Western World, v. 35)

PENCO, C. “Idiolect and Context”. In: AUXIER, R.E.; HAHN (Eds.). The Philosophy of Michael Dummett. Chicago: Open Court, 2007, pp.267-590 (The Library of Living Philosophers, v.31)

RICHARDS, I.A. The Philosophy of Rhetoric. Oxford: Oxford University Press, 1936.

RICOEUR, P. La Métaphore Vive. Paris: Éditions du Seuil, 1975.

WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus; Tagebücher 1914-1916; Philosophische Untersuchungen. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2006. (Suhrkamp taschenbuch wissenschaft, v.501)

_______. The Blue and Brown Books. Oxford: Basil Blackwell, 1969.

DIOGO FRANÇA GURGEL - Professor adjunto de Filosofia da Universidade Federal Fluminense. Possui doutorado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem experiência de docência em Ensino Médio e Superior (graduação e pós-graduação) na área de Filosofia, com ênfase em linguagem e teoria do conhecimento. Suas mais recentes pesquisas tematizam as teorias da metáfora.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

309

UM ESTUDO DAS INTERSEÇÕES ENTRE A NOVA RETÓRICA E O INTERACIONISMO SIMBÓLICO DE ERVING GOFFMAN Marcelo Bafica Coelho [email protected] Universidade Federal Fluminense Marcia Santos [email protected] Uni-Rio

RESUMO O presente trabalho tem seu foco dirigido para a análise das proposições teóricas do cientista social Erving Goffman, mais precisamente para suas observações sobre as interações cotidianas, a partir dos termos e conceitos criados por ele, com o objetivo de encontrar pontos de diálogo entre a sua temática e as formulações provenientes da Nova Retórica, com destaque para as questões pertinentes ao campo educacional.

Palavras-chave: Retórica; Nova Retórica; Argumentação Interacionismo Simbólico; Erving Goffman.

O INTERACIONISMO SIMBÓLICO DE ERVING GOFFMAN O interacionismo simbólico é uma corrente teórica surgida, entre as décadas de 1930 e 1940, da visão de pensadores da pragmatista Escola de Chicago, como George Mead, considerado o precursor do movimento, Herbert Blummer, criador do termo, e Erving Goffman, apenas para citar alguns. Os interacionistas argumentam que, para alcançar uma compreensão ampla do processo social, o observador precisa se apropriar dos significados que são experimentados pelos participantes em um dado contexto. Erving Goffman, especialmente, privilegia o estudo do significado como um dos mais relevantes componentes para a análise e entendimento do comportamento humano e suas interações. Sua abordagem compreende o

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

310

mundo social como uma rede de intersubjetividades resultante de ações dirigidas de um sujeito a outro. Estas ações adquirem sentido porque os atores sociais compartilham do significado dos sinais trocados na interação. Mais ainda, tais significados podem ser entendidos compondo uma rede de sentimentos compartilhados na forma de compreensão e expectativas em comum. Há interação, portanto, porque todos os atores envolvidos compartilham os significados dos sinais/códigos (gestos, palavras – conscientes ou não). Para analisar esses sinais ou códigos, o autor cria alguns conceitos a partir de uma analogia com o teatro, com a ação dramática. Sua visão entende a relação social entre indivíduos como uma “representação dramática do eu” em tais situações. Assim, para aprofundar a análise das relações sob sua ótica, interessanos, inicialmente, conhecer como ele distingue os elementos constituintes deste panorama, ainda que o próprio autor os considere insuficientes. Os três principais são: palco, atores, plateia. Palco é o espaço da ação, que “apresenta coisas que são simulações” (GOFFMAN, 2011, p.9), o lugar no qual as pessoas constantemente manipulam seus gestos de modo a sustentar uma autoimagem desejada pelos outros e atender às exigências normativas da situação; atores são os indivíduos da ação, aqueles que se comunicam, que interagem; e plateia todos os demais participantes da ação, que são, também, atores. Dentro de sua abordagem, existem ainda outros importantes elementos. Papel é a ação a ser desempenhada pelo ator ou atores, o que eles querem, precisam ou podem comunicar, pelas formas verbais e, para Goffman, principalmente pelas não-verbais; Cenário são os elementos presentes no palco, que podem influenciar a ação, a arrumação do espaço, os objetos ali presentes, sua simplicidade ou suntuosidade, ou mesmo a situação em si, como uma festa ou um velório; e Bastidores, lugar onde os indivíduos tiram suas

máscaras,

posto

que

estão

livres

das

exigências

sociais

comportamento.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

de

311

Para explicar o desenvolvimento das interações a partir desses elementos, Goffman acrescenta, ainda, mais dois termos basilares: Fachada e Linha. Juntos, estes elementos promovem a “representação”. Assim, temos que fachada é “o equipamento expressivo de tipo padronizado intencional ou inconscientemente empregado pelo indivíduo durante sua representação” (GOFFMAN, 2011, p. 29). Linha diz respeito ao padrão de ações verbais e nãoverbais escolhido pelo indivíduo para expressar sua opinião sobre a situação, sobre si mesmo e sobre os outros participantes. (GOFFMAN, 2012). Grosso modo, fachada estaria mais ligada à aparência física e à postura escolhida, agressiva ou cordial, elegante ou desleixada, por exemplo, e linha, ao comportamento propriamente dito, expresso nas palavras, gestos e expressões. Uma interação pessoal bem sucedida, portanto, implicaria uma harmonia entre todos esses elementos, que estariam alinhados entre si: fachada e linha nivelados, e em consonância com o cenário e a expectativa do púbico.

ALGUMAS CORRELAÇÕES DA ABORDAGEM DE GOFFMAN COM OS POSTULADOS RETÓRICOS Neste estudo, entre pontos do Interacionismo Simbólico expressos por Erving Goffman e as formulações provenientes do campo de estudos da Retórica, inicialmente, cabe destacar que ambos os referenciais apropriam-se de exemplos privilegiados, paradigmáticos, que utilizam como elementos auxiliares da compreensão do querem transmitir. Goffman, como vimos, trabalha com a metáfora dramatúrgica. Analogamente, a retórica utiliza-se dos gêneros oratórios deliberativo, jurídico e epidítico para caracterizar ações similares às assembleias políticas, aos litígios jurídicos e aos elogios fúnebres da Grécia Antiga, respectivamente. É a partir destes discursos que temos as noções retóricas de ethos, logos e pathos. Uma grade variedade de interações humanas pode, então, ser analisada através dos ferramentais analíticos de ambas as teorias. Na perspectiva de Goffman, o agente é comparado com o ator, enquanto que na classificação da retórica o chamaremos de orador. É este que possuirá um ethos, entendido

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

312

como a dimensão que reúne as características que marcam aquele que profere o discurso, predispondo ou não a receptividade dos interlocutores. O público para Goffman, conforme descrito anteriormente, é designado como plateia, enquanto que na arte originária dos gregos tais destinatários são chamados de auditório. No caso, é o termo pathos que diz respeito justamente às características do auditório, suas disposições e expectativas, podendo ir: do próprio orador, no caso de uma deliberação íntima, quando se trata de tomar uma decisão delicada, até a humanidade inteira, ou pelo menos aos membros que são competentes e razoáveis e que eu qualifico como auditório universal, passando por uma variedade infinita de auditórios particulares.(PERELMAN, 1993, p.34).

É com o recurso destes instrumentais analíticos que diversas interações sociais podem ser analisadas. Goffman, em geral, parte do pressuposto de que as pessoas estariam constantemente, consciente ou inconscientemente, manipulando seus gestos (sinais/códigos) de modo a sustentar uma autoimagem desejada, para si próprio ou para os outros, e atender às exigências normativas de uma determinada situação. Comparativamente, é como se houvesse em suas formulações uma ênfase nas características do gênero epidítico, entendido, de forma ampla, como uma ação levada a cabo como o intuito de intensificar a adesão, reforçar os valores que se procuram fazer predominar num auditório. O agente, assim, na maior parte das vezes, procuraria conhecer o pathos do auditório e aperfeiçoar seu ethos dirigindo-o para atender de forma mais eficaz as exigências normativas de uma dada situação. Goffman

toca

em

questões

interessantes

para

a

análise

dos

comportamentos que, se estudadas isoladamente, poderiam derivar diferentes trabalhos, como: o grau de controle necessário para que o sujeito sustente a fachada concebida, e os aspectos que não podem ser manejados pelo indivíduo, estando, portanto, fora de seu controle; a crença ou não na mensagem que está sendo emitida, que pode alterar a emissão dos sinais, comprometendo a recepção e a leitura por parte da plateia; a coerção social exercida por um dado ambiente sobre o ator, que o força à utilização de

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

313

determinada máscara; como um ator escolhe um determinado papel ou máscara, quando ele se vê frente a uma plateia formada por públicos diferentes, que lhe demandariam diferentes atuações; qual o nível de consciência, interpretação e/ou naturalização presentes nessas interações; ou, ainda, sobre a dificuldade que um ator teria em reverter, ou abrir mão de um papel estereotipado e construído por outros, ao qual ele aceitou se enquadrar por um determinado tempo e do qual quer, ou precisa, se libertar, entre outras. Do mesmo modo, podemos dizer que o campo retórico também poderia trabalhar, se não todos, pelo menos, com a maioria destes temas. Como se sabe, Chaïm Perelman define a Nova Retórica como o estudo dos meios de argumentação, não pertencentes à lógica formal, que permitem obter ou aumentar a adesão de outrem às teses que se lhe propõem ao seu assentimento. Em vários momentos de sua obra, o autor indica que seus estudos localizam-se em uma fronteira que tem como limites, de um lado, a lógica formal e de outro, as teorias psicológicas. Ou seja, é ampla a gama de possibilidades. Uma diferença de ênfase entre as duas perspectivas é que a retórica trabalha muitas vezes com os processos discursivos, verbais enquanto que o interacionismo simbólico privilegia os elementos não verbais das interações. Cabe sublinhar, no entanto, que esta distinção não é rígida. Ela resulta dos objetivos iniciais, do processo histórico e de percurso traçado pelos autores de cada tradição. Embora não sejam redutíveis um a outro, estes campos de estudos têm interseções interessantes que podem ser exploradas.

UMA PERSPECTIVA DE ANÁLISE Ao que parece, e em síntese, na visão de Goffman, o indivíduo, diante dos diversos processos de socialização nos quais se estabeleça algum tipo de relação pessoal entre atores, tende, ou está apto, a se encaixar num papel, idealizado, ou pré-estabelecido por uma situação ou pelos participantes desta e, neste caso, então, não se daria propriamente a elaboração de uma fachada pelo ator, e sim, apenas a escolha de uma dentre aquelas possíveis,

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

314

elaboradas previamente (pelo ator, em parceria com a sociedade, que lhe fornece a fôrma, na qual ele deve se encaixar). Quase todo indivíduo é sabedor, ou está habilitado a perceber qual a fachada necessária para uma determinada situação. Pensando retoricamente, podemos dizer, igualmente, que, de forma mais ou menos consciente, todo orador forma uma imagem, quando argumenta, do auditório ao qual dirige seu discurso. Tomemos como exemplo uma festa, cuja frequência é de pessoas de classe social e educação formal elevadas. Em um cenário como este, é sabido que não se deve falar alto, sentar-se de modo desleixado, comer de maneira grotesca, gargalhar espalhafatosamente, entre outras normas de bom comportamento instituídas. À exceção de sujeitos que não passaram por nenhum tipo de socialização, a grande maioria dos indivíduos de uma mesma sociedade, ainda que de diferentes classes sociais ou grau de instrução, traz consigo algum tipo de cognição, mesmo que inconscientemente, sobre o comportamento adequado, ou correto, para um evento como esse, e tentará se adequar à conduta majoritária, caso seu interesse seja ser aceito pelos demais. Podemos supor, assim, que cada indivíduo seja possuidor de tantas fachadas, ou personas, ou papéis, ou máscaras sociais quanto o número de grupos que ele tem interesse em corresponder às expectativas, influenciar ou impressionar. Esse tipo de conduta costuma se dar de forma naturalizada, e até mesmo imperceptível para os atores envolvidos, demonstrando o grau de adaptação, e consequente controle sobre os impulsos, desejos, opiniões dos sujeitos, como forma de ceder espaço, de forma segura, a cada uma das personagens que ele necessita para as diferentes atividades e públicos. Goffman atesta que existe uma natureza, uma persona natural que, mais ou menos conscientemente, escolhe (e conduz) as características de sua atuação. Ou seja, o sujeito elabora uma determinada concepção de si mesmo frente às relações com outros, e essa concepção, inicialmente forjada, vai se “naturalizando”, tornando-se parte integral da personalidade. Entretanto, se é possível notar um relativo domínio do sujeito sobre suas ações verbais, o mesmo não ocorre com aquelas de natureza não verbal que,

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

315

por não serem conscientes para o ator, estão fora de seu controle, e, no entanto, são de fácil percepção para o interlocutor, ou plateia/auditório, colocando o ator/orador em desvantagem frente ao público, pelo risco que corre de um “comportamento expressivo involuntário”. Então, se é fato que o indivíduo atua com o interesse de manipular ou atender expectativas - ou nos termos do autor, “dar a entender”, “fazer crer”, “dar a impressão de” - e que ele conta com ferramentas e aptidão para isso, o que o levaria a trair-se, dando aos interlocutores uma impressão contrária àquela desejada? Existe uma gama diversa de gestos involuntários e acidentes capazes de mudar o curso da interação e a impressão desejada, por suscitarem desconfiança ou dúvida na audiência: perda do controle muscular, ou uma queda, tropeço, espirro, bocejo, que podem transmitir uma impressão não condizente com a ação pretendida; expressões e gestos decorrentes de tensão ou nervosismo, como gesticular em excesso ou riso fora de propósito, comprometem a percepção do público quanto ao nível de interesse ou envolvimento do ator. É certo que existe, também, conflito entre o “eu humano” e o “eu socializado”, que é o ator, e que pode ser tensionado e maximizado em um cenário ou situação de desconforto, levando o ator a uma incompatibilidade interna. Goffman acrescenta ao debate o conceito de ator “cínico”, que contrapõe ao de ator “sincero”. Neste, existe a crença no papel que irá desempenhar em oposição àquele que não crê na sua atuação, e que pode representar “cinicamente”, a) por interesses próprios, intentando, de forma calculada, enganar a plateia; b) porque, mesmo não acreditando na encenação, tem a convicção de que ela é a apropriada para a ocasião, c) porque acredita que a plateia não quer que ele seja, e não lhe permitirá ser sincero, e d) porque isso protegeria “sua personalidade íntima do contato com o público”. Novamente, de forma comparada, o cinismo corresponderia a uma redução que o senso comum muitas vezes efetua ao utilizar a expressão “retórica” apenas associada ao seu emprego vulgar. Isto revela apenas uma hipertrofia de um de seus aspectos.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

316

O que se denomina comumente de demagogia, por exemplo, representa uma supervalorização do pathos, numa espécie de bajulação, de aliciamento do auditório com fins estritamente eleitoreiros, na qual o orador só fala o que o público quer ouvir. Não devemos confundir, contudo, este tipo de argumentação particularíssima e muitas vezes nefasta, com a retórica como um todo, cujas dimensões são muito mais amplas. (COELHO, 2009, p.21).

Se uma atuação cínica não decreta necessariamente a ocorrência de descontrole dos espasmos, gestos e expressões, ela, com certeza, instaura um ambiente muito mais frágil para os atores, porque nela estaria implícita uma desarmonia entre os elementos constituintes da representação.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A EDUCAÇÃO Se quisermos, no entanto, aplicar o já exposto à área da Educação, podemos selecionar, como exemplo, entre tantos possíveis, uma sala de aula de um curso de graduação e as interações possíveis neste cenário. Para isso, seria preciso, destarte, incluir nas nossas observações as considerações de Goffman relativas às relações entre equipes.27 Tendo uma sala de aula como palco, podemos observar, num primeiro momento, a possibilidade de interação entre um ator principal/orador (docente) e uma plateia, formada por diferentes atores, que interagem, também, entre si, que são os discentes. Mas, este cenário pode ser visto, ainda, como uma interação entre duas equipes, sendo uma formada pelo professor, o ator principal, responsável pela difícil tarefa de concentrar em si três papéis, a saber: o seu eu individual, a fachada que escolhe para atuar como professor, e a fachada da instituição a qual representa, no caso a Universidade, que Goffman chamaria de “organização social”.

27

Um pouco mais complexas, as análises do autor partem de estudos e comparações empíricas sobre os comportamentos em equipe e, embora o universo acadêmico pareça rico o suficiente para uma investigação, Goffman volta sua atenção mais precisamente para os setores comercial, hospitalar e esportivo. Ainda assim, podemos utilizar sua contribuição para tentarmos esboçar uma análise do ambiente citado.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

317

A outra equipe apresenta-se com uma espécie de fachada coletiva, e é formada pelos alunos, cuja ligação entre si acontece por meio de uma “dependência recíproca e recíproca familiaridade”. [...] não precisa ser algo de natureza orgânica, que se desenvolve vagarosamente com o tempo em comum, mas é antes um relacionamento formal, automaticamente ampliado e recebido, tão logo o indivíduo tome lugar na equipe. (GOFFMAN, 2011, p.81).

Essa familiaridade promoveria a conivência e a cumplicidade da equipe. Agreguemos à discussão algumas particularidades deste cenário, que são: 1) o caráter hierárquico, inerente à condição de docente, que lhe dá o privilégio de certo controle sobre a situação; 2) o caráter recorrente da encenação, já que, diferentemente do modelo casual das considerações anteriores, as interações em sala de aula se dão continuamente, por certo tempo; 3) o fato de que a plateia pode ser formada por diferentes equipes, dada a possibilidade, na graduação, da participação em uma mesma turma, de alunos de diferentes turmas ou períodos, e 4) que o professor tem, a priori, a proteção de um discurso pré-definido, que é o conteúdo disciplinar. Em sala de aula, a interação costuma ser estabelecida, inicialmente, a partir da linha de ação de cada docente, que tende a condicionar a linha recíproca de conduta dos demais atores. Levando em conta que cada aluno é um ator em particular, e considerando a hipótese de haver mais de uma equipe em uma mesma sala, podemos supor a existência de diversas linhas de interação, que se manifestam: entre professor e equipe (s); entre equipe e equipe (s); entre cada um dos atores individualmente; e de cada um destes com o professor. Entretanto, embora, por razões hierárquicas e institucionais, o docente detenha um maior controle do cenário, podendo definir a linha de ação que irá determinar o tipo de interação, é importante atentarmos para Goffman, quando este afirma que: [...] a definição da situação projetada por um determinado participante é parte integral de uma projeção alimentada e mantida pela íntima cooperação de mais de um participante. (GOFFMAN, 2011, p.76).

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

318

Esta afirmação parece dizer que, qualquer que seja a linha determinada pelo ator/orador/docente, ela necessita ser legitimada por outros atores da encenação para que possa ser mantida, o que, de certa forma, reduz o poder de controle da situação pelo docente. Podemos pensar nos limites deste poder, uma vez que este pode ser reduzido se pensarmos que, ao emitir o que deseja, o ator/orador o faz para todos, que recebem a comunicação enquanto equipe, mas, também, enquanto atores/indivíduos, podendo cada um, devido à subjetividade imanente à interação, fazer uma leitura diferente dos sinais emitidos. 28 Duas coisas, no entanto, parecem contribuir para a manutenção das fachadas e das interações entre equipes dentro de sala: a continuidade dos encontros, que acabam por promover a naturalização dos acordos recíprocos, bem como um alinhamento nos mecanismos de defesa dos atores; e o discurso, ou conteúdo disciplinar que, funcionando como o texto dramatúrgico, possibilita a sustentação da representação sem exigir maior exposição pessoal dos atores. Ambas facultam algum grau de previsibilidade à encenação. Resumindo, do exposto até aqui, é possível apreender que o indivíduo goffmaniano interage com os outros indivíduos a partir de fachadas e linhas de atuação, nas mais diversas situações, nas quais pode ser verificada uma aceitação consensual temporária, das fachadas e linhas uns dos outros. Em cada situação posta, o ator (ou atores), ao introduzir fachada e linha determinadas - tidas como legítimas e validadas pelos outros atores - conduzirá as demais atuações, dando seqüência ao grande teatro que são as relações sociais, construto dos diversos atores, e que tende à eficácia contínua, desde que não haja ruptura nos acordos e consensos, provocada por uma mudança abrupta e inesperada na linha de um ator, ou por imprevistos e acidentes fora do controle dos atores, e desde que cada ação seja capaz de responder à 28

Assim, se, por exemplo, na plateia, dois atores/alunos cochicharem entre si, esta ação poderá suscitar desconforto no ator/orador/professor, provocando uma ruptura no compartilhamento de significado dos códigos e uma alteração no curso da interação. Além disso, podemos, ainda, observar quebra na harmonia consensual da interação em ocasiões diversificadas. Como exemplos, temos, entre outros: 1) se alguém na plateia se dispuser a contradizer o ator principal/orador; ou 2) se o ator/orador se dirigir a alguém da plateia de forma inapropriada. Esses casos explicitariam uma ruptura no acordo tácito de compartilhamento dos códigos aceitos e pré-definidos de conduta, e tenderiam a provocar reações inesperadas dos diversos atores/equipes, criando uma relação conflituosa, tendo em conta a heterogeneidade da plateia sugerida aqui, para a situação.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

319

pergunta tácita e permanente, presente em todas as interações: o quê significa isso? No que tange ao objetivo de encontrarmos uma ligação entre o interacionismo e os estudos sobre retórica é importante ressaltar que, no interacionismo, pelo menos no de Goffman, o foco se centra mais, e quase que na totalidade, na maneira escolhida e nas ferramentas utilizadas pelo ator na emissão do que pretende comunicar, e menos nos argumentos ou discursos, que, não raro, objetivam convencer ou alterar um status quo instaurado. Assim, postulamos que, embora não sejam limites rígidos, há uma ênfase nos estudos de Goffman na parte não verbal do processo comunicativo, enquanto a retórica privilegiaria os aspectos verbais, discursivos. Com relação aos aspectos educativos, com destaque neste trabalho para as interações na academia, vimos que as interações se tornam mais estruturadas, regulares, diferentes das relações esporádicas, corriqueiras, características da abordagem goffmaniana. Apresentamos, para tal enfoque mais estruturante, o seu conceito de equipe. Para finalizar, gostaríamos de deixar algumas impressões, apontamentos, ou mesmo, interrogações. Pelo que foi exposto no trabalho, podemos inferir que a gama de interações cotidianas, ordinárias e corriqueiras que travamos não acontece num quadro de total espontaneidade. Elas estão sempre inseridas dentro de um contexto social mais amplo, através do qual são classificadas a partir de regras sociais prévias, muitas vezes, implícitas. Cenários, figurinos, fachadas, linhas etc. condicionam a dramatização de cada indivíduo, fazendo com que seu comportamento social se efetue dentro de determinados parâmetros, afirmadores ou negadores de normas. O que acontece, no entanto, é que as interações face a face, por serem episódicas, parecem mais fluidas, menos sujeitas às regras. Mas esse aspecto é enganoso. O interacionismo simbólico vem justamente nos mostrar todo um continente de sutilezas e condicionamentos a que estamos expostos. Do mesmo modo, estas sutilezas se fazem presentes também em ambientes mais estruturados. Na academia, para além das interações mais

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

320

óbvias, há sempre um conjunto naturalizado de acordos recíprocos que frequentemente passam despercebidos e não problematizados. É interessante, muitas vezes, explicitar esses acordos tácitos, pois já que interações sociais são mediadas por regras, estas, uma vez estabelecidas, tendem a se tornar estáveis, coagindo a participação dos integrantes . Em cada domínio, estas normas tendem a se cristalizar, tornando-se familiares, mas isto não quer dizer que sejam “naturais”, definitivas. Esta pode ser uma das explicações de porque mesmo os padrões sociais sendo francamente desfavoráveis a alguns dos membros do grupo social, os incômodos muitas vezes acabam não sendo expressos, inclusive no campo acadêmico. (COELHO, 2013, p.26).

Esperamos, assim, através da aproximação destas duas vertentes teóricas ter contribuído para o debate sobre a clarificação dos pressupostos de algumas interações humanas significativas. Para nós, é interessante entender a Educação dentro desse diálogo. Acreditamos que essa aproximação dos estudos da retórica e do interacionismo simbólico ainda poderá frutificar em novos e diversificados trabalhos.

REFERÊNCIAS COELHO, Marcelo Bafica. Por uma análise retórica das práticas educativas em programas de pós-graduação em educação / Marcelo Bafica Coelho. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009.98f.

COELHO, Marcelo Bafica; BANNELL, Ralph Ings. Argumentação no Ensino Superior. Pós-Graduação: O local da Razão? Rio de Janeiro, 2013. 241 p. Tese de Doutorado - Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana; tradução de Maria Célia Santos Raposo. 18a. edição – Petrópolis - RJ, Vozes, 2011.

________________. Ritual de interação: Ensaios sobre o comportamento face a face; tradução de Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. 2 a. edição – Petrópolis RJ, Vozes, 2012.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

321

PERELMAN, Chaïm. O império retórico: retórica e argumentação. Porto – Portugal, Edições ASA – 1ª edição 1993.

MARCELO BAFICA COELHO - Professor adjunto de Filosofia da Educação na UFF, Doutor em Ciências Humanas e Educação pela PUC-Rio, Mestre em Educação, Licenciado e Bacharel em Ciências Sociais e Bacharel em Comunicação Social pela UFRJ.

É pesquisador do grupo alteridade,

psicanálise e educação, UFF.

MARCIA SANTOS - Graduada em Artes Cênicas pela UNIRIO e atualmente conclui graduação em Ciência Política, na mesma instituição. Em 2014 trabalhou

na comunicação do programa

do

candidato

Aécio

Neves

à

presidência, como coordenadora da relação com as candidaturas dos demais estados do Brasil.

II SIEERE – RIO DE JANEIRO, 2015

ISBN: 978-85-89943-21-5

Anais+do+II+SIEERE+.pdf

Janaina Pires Garcia – Doutoranda em Educação (PPGE/UFRJ). Oldênia Fonseca Guerra – Doutoranda em Educação (DINTER UFRJ/UFPI). Rita de Cássia de ...

2MB Sizes 2 Downloads 289 Views

Recommend Documents

No documents