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EULÁLIO MOTTA E NINGUÉM: EDIÇÃO DE CARTAS AO LEITOR NO JORNAL O LIDADOR Pâmella Araujo da Silva Cintra* Patrício Nunes Barreiros** Resumo: O presente artigo apresenta a edição e estudo das cartas de Eulálio Motta publicadas no jornal O Lidador, com o peseudônimo Ninguém. As cartas forama publicadas na seção Cartas ao leitor do referido jornal. A edição das cartas traz á tona um dos perfis da identidade de Eulálio Motta e revela seu pensamento acerca de diversos temas. Trata-se de um estudo filológico que toma como base teórico-metodológica a Crítica Textual. Palavras chave: Eulálio Motta. Cartas. Pseudônimo. Resumen: El presente artículo presenta la edición y estudio de las cartas de Eulálio Motta publicadas en el periódico O Lidador, bajo el seudónimo Ninguém. Las cartas fueron publicadas en la seción Cartas ao leitor del referido periódico. La edición de las cartas pone en tela uno de los perfiles de la identidad de Eulálio Motta y revela su pensamiento acerca de diversos temas. Se trata de un estudio filológico que se base en los fundamentos teórico-metodológicos de la Crítica Textual. Palabras Claves: Eulálio Mota. Cartas. Seudónimos.

1 INTRODUÇÃO O escritor Eulálio Motta (1907-1988) adotou, ao longo de sua trajetória literária, alguns pseudônimos que revelam suas identidades. Ao adotar um nome para si por meio de pseudônimos, o sujeito institui uma nova identidade, transgredindo o que deveria ser constante em usa vida – o nome próprio. Para Bourdieu (2006, p. 186) o nome próprio é a única constância na vida do sujeito, tudo o mais sofre flutuações ao sabor dos ventos que o cotidiano sopra constantemente, confirmando que a identidade absolutamente integrada e coerente é uma quimera. Nesse sentido, a adoção de um pseudônimo é uma ação deliberada de institucionalização de uma nova identidade. A partir de uma pesquisa preliminar, foram identificados os seguintes pseudônimos utilizados por Eulálio Motta: Brás Cubas, Liota, João Ninguém, Ninguém e Zé Ninguém. Cada um desses pseudônimos apresentam características específicas. Os textos que revelam certa melancolia e desencanto diante da existência são assinados pelo pseudônimo Brás Cubas, inspirado no defunto autor de Memórias Póstumas. Assumindo, assim, uma postura fria e pessimista frente à vida, à existência humana, cheia de dessabores e sofrimentos. De um humor irônico, Liota foi mais um dos pseudônimos utilizados por Eulálio Motta. Essa identidade do escritor revela seu tom jocoso presente tanto na poesia quanto na prosa, com destaque para os textos de caráter político. Em seu poema Originalidade, percebe-se a forte ironia do escritor traduzida diante da crítica, inferida de seus versos, sobre o caráter da nova poesia dita modernista. O próprio título e os dois primeiros versos satirizam essa nova concepção de arte que, ao ver de Eulálio, não se sobrepõe à estética parnasiana. Vejamos alguns dos primeiros versos do poema abaixo: Originalidade Hoje amanheci com vontade de ser poeta original e escrevi este poema: Noite de inverno. Tac, taratatac, tac, tac, taratatac... (Fonte: Acervo do escritor Eulálio Motta, EA2.11.CV1.11.001, s.d., 5r) *

Estudantes de Letras da UEFS. Email: pamella [email protected]. Professor do Departamento de Letras e Artes da UEFS. Email: [email protected].

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Não só o pseudônimo Liota ganhou destaque na década de 1930, mas também Ninguém, pseudônimo da personalidade desiludida de um homem solitário, matuto e ao mesmo tempo intelectual, que se refugia no campo. Adriano Menezes (2013) realizou um estudo das cinco cartas assinadas pelo pseudônimo Ninguém que desconhecia o verdadeiro autor dos textos. Tais cartas foram publicadas no jornal O Lidador da cidade de Jacobina, fundado no ano de 1933. O Lidador é oriundo do jornal Mundo Novo, da cidade homônima que foi fechado devido aos impasses políticos ocorridos entre o proprietário Nemésio Lima e o então prefeito de Mundo Novo, Raul Victoria. Nemésio Lima mudou-se para Jacobina e fundou o jornal. Datadas do ano de 1934, hoje, já se sabe que Eulálio Motta é o autor das cartas. Isso porque foram encontradas no acervo pessoal do escritor, mantido e preservado na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), sob a responsabilidade do pesquisador e professor doutor Patrício Nunes Barreiros. Em relação à colaboração de Eulálio Motta ao jornal O Lidador, vale ressaltar que, segundo Barreiros (2015), Eulálio Motta deixou de publicar seus textos no O Lidador por conta de um episódio iniciado pela adesão do poeta ao movimento Ação Integralista Brasileira (AIB), fundado por Plínio Salgado, pautado basicamente em três princípios primordiais: Deus, Pátria e Família. Com isso, Eulálio Motta deixou de ser ateu, uma vez que se viu obrigado a seguir uma religião para que pudesse ser aceito como membro do partido. O que resultou na sua conversão ao catolicismo. Em 1937, ano em que Getúlio Vargas proibiu o funcionamento da AIB, os ex-integralistas não encontraram mais espaço nas gazetas e periódicos, mesmo quando os assuntos de seus textos não tinham relação com questões de ordem política ou religiosa. O governo de Vargas, durante o Estado Novo, ao impedir qualquer ato considerado subversivo de ataque aos ideais de seu governo, adotava medidas que iam desde a prisão e tortura dos “rebeldes”, até o fechamento de estabelecimentos, principalmente dos pequenos jornais do interior. Diante disso, Nemésio Lima negou-se a publicar os textos do amigo Eulálio Motta, este que o mesmo denominou de o integralista de convicção. Após assumir uma identidade católica no ano de 1940, Eulálio Motta passa a ser intolerante com outras religiões. Motivo pelo qual gerou a discórdia dele com o seu amigo de infância Eudaldo Silva Lima, pastor da Igreja Presbiteriana. Ao publicar uma carta aberta criticando o livro Cochilos de um sonhador, de Basílio Catalá Castro, Eulálio Motta contrai uma desavença religiosa com Eudaldo Lima que deixa de ser particular e passa a ser pública. O “palco” dessa calorosa desavença mediante cartas é O Lidador. Entretanto, eis que Eulálio Motta encerra sua colaboração ao jornal de Nemésio Lima por este tê-lo impedido de publicar uma crônica sobre o livro de Basílio Castro, uma espécie de carta resposta. Quanto ao fim da discórdia entre os dois amigos, Eulálio decide dá um ponto final se reconciliando com Eudaldo, através do seguinte texto: Meu amigo: Estive relendo nossa correspondência, sobre nossas divergências religiosas. Relendo suas cartas e as minhas. Relendo-as e meditando. Com o espírito de quem faz um exame de consciência. E cheguei à triste conclusão de que nossa correspondência está horrivelmente vazia de Cristo. A vaidade, o orgulho, a presunção, o pedantismo, o ódio, transbordam nas suas cartas; e as minhas tambem não podem receber melhor classificação. Daí o meu propósito de pôr um ponto final nestas discussões, nossa vaidade, nosso amor próprio, nossa presunção, falam muito mais alto que o nosso amor a Deus. Neste terreno acontece quase sempre esta desgraça: - nós falamos e Deus silencia. Ponhamo-nos em presença de Deus. E compreenderemos que as nossas discussões salpicadas de ódio são em desrespeito à sua presença. Quando discutimos, descambando para o terreno das agressões pessoais, esquecemos que Deus está presente! “Bem aventurados os mansos...” “Bem aventurados, os pobres de espírito...” (BARREIROS, 2015, p. 60).

Ao se dedicar ao ofício de escrever textos literários, o escritor teve a preocupação de guardar cada rascunho, as diferentes versões de um mesmo texto como se tivesse a plena convicção de que tudo o que produziu não ficaria aprisionado entre as paredes de um cômodo exilado de uma casa, parecia pretender que tamanha riqueza literária e cultural viesse ao conhecimento do mundo, o que tem sido possibilitado graças ao trabalho da Crítica Textual. A edição de textos aparece nesse cenário como uma forma de Anais do VIII Seminário de Estudos Filológicos – UEFS - 2016

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salvaguardar, ou mesmo, de perpetuar os textos, sejam eles manuscritos ou impressos, para que possam servir (como já vem acontecendo) de corpus para importantes e inesgotáveis estudos científicos. Assim, esse estudo além de apresentar uma das identidades assumidas pelo “poeta de água doce”, como também se denominava o poeta Eulálio Motta, busca contribuir, por meio da edição de 5 (cinco) documentos inéditos que seguem o método filológico da Crítica Textual, para o não apagamento de uma voz baiana que merece estar enquadrada no cenário literário brasileiro, devido a grandeza de suas obras contidas em seu acervo. 2 CARTAS DE NINGUÉM As cinco crônicas editadas revelam uma série de características de Ninguém, pseudônimo criado por Eulálio Motta. Através de uma voz lírica e poética que se manifesta quando fala de si mesmo, é possível perceber que o autor tenta estar sempre próximo do leitor como uma tentativa de fugir da solidão em que vive quando dialoga conosco em seus textos. Esse Ninguém é o homem do interior, desiludido, pessimista, saudosista, romântico e solitário. Homem simples e sensível, um intelectual que se expressa de acordo com a nova estética literária iniciada na década de 20. Renovação essa que encontrou na Bahia resistência por parte dos poetas conservadores que defendiam o tradicionismo dinâmico. Fato que fez com que escritores e poetas baianos aderissem tardiamente à nova estética e às temáticas do movimento modernista. A carta de Ninguém, publicada no dia 11 de fevereiro de 1934, trata da infelicidade do homem do campo que deseja viver nas grandes cidades. Embora tenha crescido e sempre vivido no mato, acredita encontrar ânimo estando nos grandes centros. Reclama do tempo que não passa, principalmente nos dias de domingo, um dia quase que interminável, prolongando assim o seu sofrimento gerado pelo tédio de sua vida parada, e, quiçá, pela ansiedade sentida por viver afastado do movimento literário que agitava a capital. O pássaro que ao final da narrativa aparece com o seu grito: Sofrê! Sofrê!, Sofrê!” parece conhecer bem o estado de amargura em que vive o autor. Na segunda carta de Ninguém publicada no jornal O Lidador, no dia 13 de fevereiro de 2014, o narrador-personagem nos conta como escreveu uma carta maluca e de onde surgiu a inspiração. Da leitura de crônicas da revista literária da Bahia, ele começa a achar graça por encontrar nelas palavras por ele utilizadas no seu tempo de rapazola, quando começou a escrever cartas poéticas. Diziam que sua escrita era “muito inteligente”. Eulálio, muito irônico, critica assim o padrão de escrita dominante. Em relação à formação intelectual de Ninguém, é possível supor que esse escritor fosse leitor das revistas literárias que tratavam da inquietação do Modernismo em Salvador, não sendo por acaso o fato das crônicas ou cartas de Ninguém perpassarem o “tradicionismo dinâmico” proposto por Chiachio, que buscava o equilíbrio a partir da pretensão de conciliar a renovação literária e o respeito à tradição e especificidades brasileiras. De modo que, a revista Arco e Flexa, fundada em novembro de 1928 por um grupo de jovens escritores e pelo médico, poeta e acadêmico Carlos Chiachio, tinha como lema a seguinte frase: “Modernidade, sim, mas com respeito à tradição”. Na terceira crônica, datada de 12 de fevereiro de 1934, temos a narração de um sonho de Ninguém com você (leitora). Vocês chegam a ter um filho, muito burrinho, e sonham que ele se torne doutor, para isso, mandam o menino para o colégio. A ironia acompanhada de crítica em relação à formação de seu filho, o qual só conseguiu o diploma em medicina devido a sua condição financeira, faz com que o pai do rapaz perceba que qualquer ninguém pode ser doutor, desde que tenha dinheiro para isso. Duas metamorfoses são descritas e geram o humor na crônica citada acima. A primeira acontece quando depois de muito se gargalhar pelos elogios e parabenizações feitas ao seu filho doutor, o pai perde a consciência e se vê ele próprio um doutor (logo ele, um ninguém!). A segunda, quando se encontra como caixeiro de venda e depois se torna sócio do seu patrão que era bom demais e, a mulher deste, boazinha. Final que leva ao riso depois da compreensão da ironia. Na quarta crônica, publicada em 17 de março de 1934, o narrador-personagem inicia o relato de um sonho que, logo, afirma serem recordações de algo que chegou a quase deixar de ser sonho, o romance Anais do VIII Seminário de Estudos Filológicos – UEFS - 2016

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interrompido do seu tempo de infância que se tornou uma paixão platônica pela “Fessôrinha”. O texto trata do passadismo romântico e pieguices sentimentais de um homem que se sente poeta e abre o seu coração para o leitor, sabendo que a sinceridade do coração de um poeta só pode gerar o riso para o outro. Ao final, confessa o desejo de que tal carta fosse lida pelos olhos da pessoa que não teria dúvida da veracidade dessa história, a “Fessôrinha”. Na última carta, do mês de março de 1931, temos mais um sonho do eu-lírico com traços fabulares. Ele rememora a infância ao sonhar que ficou surdo. Em sonho, sofre toda a sorte de pilherices um dia praticadas por ele a um velho surdo. Lembra-se, então, do Zé Véio, surdo e de coração bom, pois mesmo quando o eu-lírico e a meninada faziam brincadeiras grosseiras com o pobre senhor, este dizia: “Deus abençoe! Deus abençoe!”. No entanto, no término da crônica há o arrependimento e o pedido a Deus para abençoar o pobre velho. 3 O ACERVO PESSOAL COMO ESPAÇO DE CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES Os acervos pessoais inscrevem-se como labirintos a serem explorados [...] as fontes preservadas nos acervos não traduzem a realidade absoluta dos acontecimentos. Na documentação dos acervos estão encenadas as identidades dos sujeitos que o constituíram e emerge a intenção de construir uma imagem para si. (BARREIROS, 2015, p. 29).

Na citação acima, Barreiros (2015) chama a atenção para o fato do sujeito, um ser histórico e social que, ao viver em coletividade, tem a necessidade de auto-afirmar a sua identidade, muitas das vezes, forjada por ele mesmo. Na tentativa de se construir uma imagem para si, revelamos como queremos ser vistos e lembrados pelo outro. Registrar os acontecimentos foi a maneira encontrada pelo homem de preservar suas memórias e relembrar o passado. São essas memórias que nos constituem como sujeito e trazem as marcas da nossa identidade. Em relação aos acervos pessoais, os documentos encontrados assim como toda a sorte de objetos preservados compõem o que podemos chamar de memória selecionada, a memória manipulada com fins específicos. Não se trata, portanto, de uma memória viva e real, mas daquela em que o sujeito manipula a realidade, e não daquela que seguiu o curso natural da ação dos acontecimentos do tempo linear. Pensar em um acervo pessoal significa, assim como escrever um diário, que esse alguém deseja ser lembrado, uma vez que tudo aquilo que escrevemos e guardamos é com a intenção, mesmo que subjetiva, de que haverá um leitor para aquilo. E é exatamente essa consciência que faz com que a mente humana transcenda, a ponto de estabelecermos relações com o indivíduo e seus documentos como uma forma de produção do eu (BARREIROS, 2015). No acervo de Eulálio Motta, encontramos as diversas identidades por ele criadas, identidades essas que mereceram nomes, foram os pseudônimos: Liota, Braz Cubas, Ninguém e outros. “Pela natureza da documentação, esse rico acervo pode ser compreendido como um projeto autobiográfico, revelando-se como um caleidoscópio de onde se projetam diversas imagens do escritor” (BARREIROS, 2015, p. 30). Cada nova assinatura por ele utilizada, revela um ser peculiar, que lê a seu modo a sua época, a sociedade, o mundo. 4 CRÍTICA TEXTUAL E A EDIÇÃO DE TEXTOS DE PERIÓDICOS Mudam no tempo os materiais de suporte, desde a pedra gravada ate às tábuas de madeira ou de barro, para chegar finalmente aos códices de pergaminho e, enfim, de papel: o que não muda é o hábito de transmitir ou de fixar em forma rigorosamente manuscrita qualquer aquisição intelectual. (PERUGI; SPAGGIARI, 2004, p.15)

Como se sabe, a Filologia, com seu caráter erudito, nasceu na Biblioteca de Alexandrina, concentrando-se no texto, o seu objeto de estudo, a fim de explicá-lo e restituí-lo à sua genuinidade, preparando-o para ser publicado. Canonizando, assim, textos literários por meio de métodos e Anais do VIII Seminário de Estudos Filológicos – UEFS - 2016

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procedimentos consubstanciados na “Crítica Textual” (SPINA, 1994, p. 82). Desse modo, embora com um método de trabalho rudimentar, foram os filólogos alexandrinos os precursores da Crítica Textual. Nascida no século XIX, A Crítica Textual empreendida por Karl Lachmann voltou-se para a edição de textos bíblicos e de grandes autores clássicos. O método lachmaniano consistiu na busca do texto original perdido. Por muito tempo essa foi a única preocupação da Crítica Textual, o estabelecimento do texto sustentado na concepção de que somente um testemunho, o considerado ideal, deveria se tornar conhecido. Os demais testemunhos de um mesmo texto entravam na categoria de variante, como prova documental da veracidade do texto tido como ideal. McKenzie (2005), ao criticar as posturas editoriais por estas só levarem em consideração os códigos linguísticos nas edições realizadas dos ditos textos ideais, propõe uma nova visão para a atividade filológica. É na década de 1930 que a Crítica Textual assume uma nova fase, sendo classificada por McGann, 1992; Priego, 1997 como “Nova Crítica Textual” ou “Nova Filologia”. Ao lidar com textos autorais, o método lachmaniano foi questionado e adaptado às realidades textuais. O foco deixou de ser a busca pelo texto original perdido para dar lugar à recuperação do “ânimo autoral” em meio ao grande número de testemunhos autógrafos. No entanto, o objetivo maior continuou sendo o estabelecimento da unidade do texto, sem rasuras e borrões, decorridos da história da sua transmissão. (BARREIROS, 2015) As renovações observadas na Crítica Textual, no século XX, demonstradas através da valorização do texto em sua historicidade, quando finalmente a pluralidade de testemunhos autorais de um mesmo texto deixa de pertencer a categoria de variantes e ter “existência” e importância para elucidar os processos de produção, circulação e recepção do texto, quando entendidos como portadores de sentidos e respeitados em suas individualidades históricas, passamos a ter de fato uma edição crítica ao apresentar um denso estudo da história do texto. Esse novo olhar da Crítica Textual para o texto, em que o filólogo consegue cumprir a sua tarefa de fazer com que o texto deixe de ter um fim em si mesmo e possibilite a reconstituição da história de um povo ou comunidade de determinada época, permite o diálogo com diferentes disciplinas que se preocupam com a busca da compreensão do texto em seus diferentes aspectos: sociais, históricos e culturais, a exemplo da Nova História Cultural com seu caráter interdisciplinar e da História da Cultura Escrita. Em relação à interdisciplinaridade como forma de compreender as potencialidades de siginificações de um texto, Barreiros afirma: Os significados dos textos não estão apenas nos aspectos alfanuméricos que os transmitem, mas também nos suportes, nas formas materiais que garantem a sua existência, nas relações que mantêm com os seus diferentes testemunhos e nos usos que se fizeram deles ao longo do tempo. Por conta disso, compreender o texto em suas potencialidades de significações implica adotar um método interdisciplinar que concilie, ao mesmo tempo, a Crítica Textual e a história das práticas da escrita (BARREIROS, 2015, p. 161).

Como se vê, o estabelecimento do texto continua sendo válido e necessário, o que não se aceita mais é que tenha um fim em si mesmo. Interpretar o texto também constitui uma tarefa do filólogo e do crítico textual, que só pode ser bem realizada quando, ao propor uma edição crítica, não se ater somente aos códigos linguísticos do texto, e sim ir além, com um estudo sistemático que compreenda, também, os elementos paratextuais e prototextuais que integram os dossiês dos textos. O auge, ou seja, a época de grande desenvolvimento da Crítica Textual data do século XIX e ainda perdura nos dia de hoje. A chamada Crítica Textual ou Filologia Moderna baseia-se em métodos do ponto de vista científico. A nova filologia da escola italiana não só abriu caminho para uma revisão crítica do método lachmanniano, mas também para a publicação de autores modernos, não somente os medievais. (PERUGI; SPARGGIARI, 2004, p.52). Com a publicação de textos de autores modernos, tem sido possível, a exemplo do escritor Eulálio Motta, mostrar a produção literária de escritores do interior que não alcançaram projeção por viverem distantes dos grandes centros. Neste trabalho, a edição realizada atende à nova visão da Crítica Textual, de não apenas estabelecer a unidade do texto, mas favorecer por meio dessa edição a realização de outras Anais do VIII Seminário de Estudos Filológicos – UEFS - 2016

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em que se possa desenvolver um estudo que leve em consideração as diversas significações e modos de leitura do texto, atentando desde a sua materialidade. As edições científicas, tanto de textos impressos, a exemplo das Cartas de Ninguém publicadas no jornal O Lidador, quanto manuscritos, já contam hoje com aplicações de recursos informáticos que além de ajudar na estética do resultado final dessas edições, criam novas possibilidades de leitura e entendimento dos textos. Permitem ainda, a inserção de imagens, ampliação dos fac-símiles, visualização concomitantemente do texto impresso ou manuscrito e a sua transcrição (BARREIROS, 2015, p. 183). 5 A EDIÇÃO A edição adotada para o estabelecimento das Cartas de Ninguém, a fim de que esses textos sejam acessíveis ao público, não necessariamente a um público especializado, mas para o interesse de pessoas que queiram, por exemplo, apenas conhecer as histórias narradas, foi a edição semidiploamática, também conhecida como paleográfica, paradiplomática ou diplomático-interpretativa. (CAMBRAIA, 2005). Desse modo, optou-se pela edição monotestemunhal em razão das cartas encontradas apresentarem somente um único testemunho. Nas edições realizadas, é possível perceber um grau médio de mediação, isso porque quando se trabalha com a edição semidiplomática, a reprodução de textos a partir desse modelo se processa mediante modificações feitas objetivando tornar o texto mais apreensível para aqueles que porventura não seriam capazes de decodificá-lo, ou melhor, decodificar determinadas características originais, tal como a abreviatura. Assim, na edição semidiplomática, o crítico textual possui um maior grau interventivo frente ao modelo de edição diplomática, conforme aponta Cambraia: Enquanto na edição diplomática a mediação do editor se restringe à reprodução dos elementos do modelo, já na paleográfica o editor atua de forma mais interventiva, através de operações como desenvolvimento de sinais abreviativos, inserção ou supressão de elementos por conjectura, dentre outras [...] (CAMBRAIA, 2005, p. 95).

Para a edição das cartas de Ninguém foram utilizados os critérios abaixo, estabelecidos por Barreiros (2012). 1. Indica-se o fólio; 2. As linhas são numeradas de 5 em 5 à margem esquerda; 3. Transcreve-se o título como se encontra no original; 4. A rubrica do autor indica-se entre colchetes; 5. São mantidos as interpolações, os lapsos do autor, a ortografia, a acentuação, o uso de maiúsculas, a pontuação e registraram-se todas as correções, emendas, rasuras e acréscimos, através da utilização de símbolos. 6. A edição corresponde a uma transcrição linearizada acomodando as rasuras, substituições, correções e acréscimos na sequência lógica do texto (não obedecendo a topografia do original); 7. Serão utilizadas notas de pé de página para indicar informações complementares tais como: alternância da cor da tinta, rasgões, furos, manchas, colagens etc. Quanto aos símbolos, foram utilizados: 1. { } seguimento riscado, cancelado; 2. {†} seguimento ilegível; 3. {†} / \ segmento ilegível substituído por outro legível na relação {ilegível} /legível\; 4. { } / \ substituição por sobreposição, na relação {substituído} /substituto\; 5. { } [↑] riscado e substituído por outro na entrelinha superior; 6. { } [↓] riscado e substituído por outro na entrelinha inferior; 7. { } [→] riscado e substituído por outro na margem direita; Anais do VIII Seminário de Estudos Filológicos – UEFS - 2016

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8. { } [←] riscado e substituído por outro na margem esquerda; 9. [↑] acréscimo na entrelinha superior; 10. [↓] acréscimo na entrelinha inferior; 11. [→] acréscimo na margem direita; 12. [←] acréscimo na margem esquerda; 13. [↑{ }] acréscimo na entrelinha superior riscado; 14. [↑{†}] acréscimo na entrelinha superior ilegível; 15. [↑{ }/ \] acréscimo na entrelinha superior riscado e substituído por outro na sequência; 16. [↑{†} / \] acréscimo na entrelinha superior ilegível e substituído por outro na sequência; 17. [↓{ }] acréscimo na entrelinha inferior riscado; 18. [↓{†}] acréscimo na entrelinha inferior ilegível; 19. [↓{ }/ \] acréscimo na entrelinha inferior riscado e substituído por outro na sequência; 20. [↓{†} / \] acréscimo na entrelinha inferior ilegível e substituído por outro na sequência; 21. [*↑] parte do texto localizada à margem superior indicada pelo autor através de seta, linha ou números remissivos; 22. [*↓] parte do texto localizada à margem inferior indicada pelo autor através de seta, linha ou números remissivos; 23. [*→] parte do texto localizada à margem direita indicada pelo autor através de seta, linha ou números remissivos; 24. [*←] parte do texto localizada à margem esquerda indicada pelo autor através de seta, linha ou números remissivos; 25. [*(f. ou p.)] parte do texto localizada em outro fólio ou página indicada pelo autor a partir de números e letras remissivos ou anotações. Nesses casos, o número do fólio ou da página aparecem entre parênteses; 26. / * / leitura conjecturada; 27. ( ) intervenção do editor (acréscimos e informações); Abaixo, segue a edição de duas cartas de Ninguém, editadas de acordo com o modelo de edição semidiplomática, obedecendo aos critérios de edição do projeto das obras literárias de Eulálio Motta, estabelecidos pelo coordenador Barreiros (2005). 5.1 CARTA 1 Nessa carta a temática centra-se na infelicidade do homem do campo que tende a viver alheio à agitada transformação literária da capital. 5.2 5

CARTA CARTA DE NINGUEM (Para “O LIDADOR”) 5

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Domingo. Um domingo comprido, interminavel, ocioso, aborrecido. Você não imagina como é longo e sonolento um domingo no sertão! No relogio os ponteiros se arrastam com preguiça e o sol anda numa vagareza que faz raiva. Anais do VIII Seminário de Estudos Filológicos – UEFS - 2016

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Coisa insipida! Naci nos matos, me criei nos matos, mas não ha jeito de achar bôa esta vida do mato. Gosto das grandes cidades. Não sei viver as cidades. Mas gosto de vel-as viver. Minha sensibilidade já está cansada de viver esta “remansosa paz de rustica fazenda”. Para quem já esteja cansado de viver a cidade, talvez este contacto com a natureza seja um grande bem. Mas, para mim, só pode ser um grande bem, uma grande cidade. Sinto necessidade de cidades grandes. O sertão me entedeia, me faz mal. Estou doente de tedio. Ha mais de um século que amanheceu e nada de anoitecer. Fumo, leio, ando pelos caminhos olhando os matos, faço tudo para matar o tempo... Ha pouco apanhei um pacote de jornaes velhos, da Capital, e li tudo. Tudo. Até os anuncios. Mais ainda: até as cronicas literárias dos poetas da Bahia! Veja você até que ponto leva a gente um sonolento domingo no sertão! Sol quente. Vento. Numa pimenteira ao oitão da casa, bem perto da sala em que estou, um passarinho me “aperraça”, dizendo: “Sofrê!” “Sofrê!” “Sofrê!”. Invejo a sorte de um matuto, cuja voz estou ouvindo: “Meu cavalo tá selado “E hora d’ eu viaja. “Peguei na mão da morena “Ela se póis a chorá. “Não chóre, não chóre, meu [bem “Que eu vou mais torno vortá. “Dá um suspiro por mim. “Quando por mim se alembra”. Coisa interessante: estou achando bonita a voz do tabareo. Ha sentimento na sua voz. Dir-se-ia que o felizardo vae mesmo viajar, deixando, Anais do VIII Seminário de Estudos Filológicos – UEFS - 2016

179 8º SEF - ISSN: 2175-4985 por estes matos, alguma cabrocha... Tomei da pena para conversar com você, para lhe dizer tolices, para me fazer futil, para me preocupar com qualquer cousa que me fizesse esquecer... Mas nem isto consigo. Estou butocudo, estou burro, não sei pensar, não sei escrever, não sei fazer nada. Só sei é que vou matar o diabo deste passarinho que continua me aperraçando com o seu grito: “Sofrê!” “Sofrê!” “Sofrê!”. NINGUEM 11/2/934

Trata-se de uma narrativa a respeito de um sonho no qual viveu a experiência de estar no lugar do outro – um velho surdo. Memória da infância com arrependimento das ações passadas.

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Sonhei que estava surdo. Veja só: -“sonhei que estava surdo! Que coisa incomoda, sêo menino! Fiquei diferente. Dei pra andar desconfiado. Só me parecia que todo mundo, quando falava, era me criticando, me xingando, e eu, olhando sem responder, porque não ouvia, ficava com um ar de bobo. Você já notou isto? Todo surdo se torna, pelo menos aparentemente abobado. Eu me sentia assim. Com um pouco de bôbo e muito de desconfiado. Desconfiava de todo mundo. Principalmente porque me lembrava de um velho que conheci no arraial onde vivi a minha infancia toda. Era um velho surdo conhecido por Zé Véio, ou simplesmente Veio. Havia, numa das estradas que saiam do arraial, uma Anais do VIII Seminário de Estudos Filológicos – UEFS - 2016

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baixa de areia sólta, onde toda tarde eu brincava com a meninada do meu tempo. Essa baixa de areia era um corredor. (E ainda o é). O brinquedo da meninada quase que só consistia nisto: fazer montes de areia no meio da estrada, depois subir nas terras do corredor e saltar sobre os montes. Acontecia que toda tarde Zé Véio passava por ali, com seu “pilunga“, de volta da roça. Já andava meio curvu, arrimado ao “pilunga”. Enchergava pouco. Quando apontava na ladeira do corredor, era uma zoada alegre: “Lá vem Zé Véio! Lá vem o véio!”. E nos preparavamos para a traquinada. Era isto: fazíamos filas, ao longo da estrada, de um lado e de outro. E quando o velho passava pelo meio, a gente, de um em um, dizia, estirando a mão: - “Bêsta, Véio! Bêsta, Véio!” E ele com a mão, num gesto de arcebispo, abençoando, ia passando e dizendo: - “Deus abençõe! Deus abençoe!” Pobre velhinho! Já deve ter morrido. Deus o abençoe! NINGUEM Março, 931

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo realizado a partir da proposta de edição semidiplomática das Cartas de Ninguém possibilitou que tal edição seguisse os métodos da moderna Crítica Textual. A partir de critérios próprios de uma edição que visa tornar o texto inteligível ao leitor por meio do desdobramento de abreviaturas, percebe-se como o filólogo nesse tipo de edição possui uma ação interventiva mínima, ao passo que busca estabelecer um texto fidedigno, ou seja, o mais próximo possível do original. A edição das Cartas de Ninguém permitirá que pesquisadores e estudiosos possam desenvolver outros tipos de edições, de interesse maior aos especialistas do âmbito acadêmico. Entretanto, esse mesmo corpus trás em si possibilidades de novos estudos acerca do próprio conteúdo das cartas. Nelas, é possível perceber aspectos do estilo e da temática da poesia de Eulálio Motta e os seus diferentes perfis enquanto escritor.

Anais do VIII Seminário de Estudos Filológicos – UEFS - 2016

181 8º SEF - ISSN: 2175-4985

REFERÊNCIAS AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. Iniciação em crítica textual. Rio de Janeiro: Presença; São Paulo: Edusp, 1987. BARREIROS, Patrício Nunes. O pasquineiro da roça: a hiperedição dos panfletos de Eulálio Motta. Feira de Santana: UEFS, 2015. CAMBRAIA. César Nardelli. Introdução à crítica textual. São Paulo: Martins Fontes, 2005. CARVALHO E SILVA, Maximiano de. Crítica Textual: Conceito – Objeto – Finalidade. Disponível em: Acessado em: 17/06/2016. MENEZEZ, Adriano. Cartas de Ninguém por Ninguém. Disponível Acessado em: 11/05/2016.

em:

PERUGI, Maurizio; SPAGGIARI, Barbara. Fundamentos da Crítica Textual. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004. SPINA, Segismundo. Introdução à edótica: Crítica textual. 2. ed. revisada e atualizada. São Paulo: Ars Poética; Edusp, 1994.

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um sonho que, logo, afirma serem recordações de algo que chegou a quase deixar de ser sonho, o romance. Page 3 of 11. artigos-prontos-08-03-159-169.pdf.

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