Machado de Assis

DOM CASMURRO ANALISE ´ DA OBRA

IVAN TEIXEIRA

O GOSTO LITERÁRIO DA DÉCADA DE DOM CASMURRO De todas as tendências literárias da década de 1890, em que se escreveu Dom Casmurro, o Realismo-Naturalismo foi a que mais impregnou a literatura brasileira. O escritor que melhor representa o Naturalismo entre nós é Aluísio Azevedo. Foi também o mais lido entre 1880 e 1890. Depois de Machado de Assis, Aluísio Azevedo é autor do melhor conjunto de obras do período realista entre nós. Sua obra naturalista1 apresenta, basicamente, duas preocupações: promover um retrato vivo e crítico da sociedade do segundo reinado e analisar cientificamente casos extremos de patologia comportamental. Assim, quase todos os seus romances apresentam crimes, sangue, morte, homossexualismo, lesbianismo, incesto, ninfomania, ataques de histeria, tara por dinheiro e poder, etc. Nesse sentido, poderíamos dizer que o texto de Aluísio Azevedo é dominado pela hipertrofia Machado de Assis da descrição fisiológica, de que é exemplo o fragmento seguinte, extraído de O Homem (1887), capítulo 7: Pobre velha! consumia-se numa infernal complicação de moléstias; era intestino, era cabeça, eram pernas, era o diabo! Parecia uma decomposição em vida: fedia como coisa podre! Já se não alimentava pela boca; os seus gemidos eram arrotos de ovo choco, e os humores que ela expelia por toda a parte do corpo empestavam a casa inteira […] Camila rouquejava gemidos que iam se transformando num pigarro contínuo; as suas pupilas estavam já imóveis e veladas; escorria-lhe das ventas e da boca aberta, como um buraco feito na cara, uma grossa mucosidade esverdinhada e fedentinosa. Assim levou algum tempo, arquejando; até que afinal a respiração lhe foi aos poucos amortecendo na garganta, e até que os olhos espremeram a última lágrima e os pulmões sopraram o derradeiro fôlego. Além de inúmeras descrições fisiológicas como a do texto acima, O Homem apresenta outros tantos casos de sublimações eróticas, numa das quais a protagonista (Magdá) mantém relação sexual com Jesus Cristo, num sonho. O sucesso de O Homem foi tamanho que, em 1896, o romance já atingia a sua sexta edição. Nesse ano de 1896, Machado de Assis iniciava a redação de Dom Casmurro, totalmente indiferente ao espalhafato da literatura naturalista, que, entre outros, produzira o escândalo sexual de A Carne (Júlio Ribeiro, 1888) e O Bom Crioulo (Adolfo Caminha, 1895).

O estilo de Dom Casmurro Nesse período de popularidade do romance exibicionista, Machado de Assis manteve-se fiel às suas convicções estilísticas, sem fazer concessões ao gosto fácil do romance naturalista. 1

Aluísio Azevedo escreveu, alternadamente, romances românticos e romances naturalistas.

SISTEMA ANGLO DE ENSINO

• 65 •

ANGLO VESTIBULARES

O seu convívio com a sobriedade e discrição dos autores clássicos afastava-o da literatura de consumo imediato, limitando os seus romances a tiragens pequenas. Apesar disso, após as mais recentes investigações sobre o texto machadiano, tornou-se incorreto focalizar apenas o aspecto clássico de seu estilo: equilíbrio, clareza, simplicidade, harmonia, elegância, correção, agudeza, acabamento, concisão. Essas propriedades, Machado de Assis as possui todas em grande medida. Mas é preciso acrescentar que todas elas são dinamicamente atualizadas por inúmeras experiências formais, que tornam a frase sarcástica, brincalhona, obscura, com feições de ziguezague. Tais experiências, que aproximam Machado de Assis tanto do Barroco quanto das vanguardas contemporâneas, valorizam tipograficamente a página, com disposição visual dos vocábulos, como ocorre, por exemplo, no capítulo 14 de Dom Casmurro (“A inscrição”). Incorporam a paródia, a ironia, a digressão e o absurdo do humor disparatado, como aquele diálogo do narrador Bento Santiago com os vermes, pertencente ao capítulo 17 do mesmo romance. Os experimentos formais do estilo machadiano incorporam também o leitor incluso, que consiste no truque de trazer o leitor para dentro do romance e conversar com ele, como se fosse uma personagem a mais da história. O leitor incluso possui vida própria na ficção machadiana, com gestos, fisionomia e postura mental. Um caso famoso da presença do leitor incluso em Dom Casmurro é o do capítulo 119 (“Não faça isso, querida!”), em que o narrador promete mudar o rumo da história, por perceber que uma leitora não está gostando do enredo. Outro caso interessante é o do capítulo 129 (“A Dona Sancha”). Sancha é esposa de Escobar, o grande amigo do narrador Bento. Ela aparece o tempo todo como personagem do romance, mas a uma dada altura torna-se apenas leitora, a quem o narrador implora que suspenda a leitura do livro porque o final pode desagradá-la profundamente. À parte alguns casos extraordinários, que dão grande atualidade à obra, o leitor incluso em Dom Casmurro é sempre o destinatário da narrativa (o narratário), invocado pelo narrador como forma de dinamizar o texto através da simulação do diálogo (dialogismo).

latim. Depois de viajar muito, Luciano fixou residência em Atenas e Alexandria. Foi alto funcionário do Império Romano. Suas obras foram escritas em grego clássico e interessam tanto à literatura quanto à filosofia. Sendo um polígrafo2, Luciano escreveu diálogos satíricos e filosóficos, narrativas ficcionais e históricas, textos autobiográficos, ensaios, crítica e tratados de retórica. Libertário e fantasioso, seu estilo é baseado no uso sistemático da paródia. Sua obra mais conhecida são os Diálogos dos Mortos, cuja personagem central é o filósofo cínico Menipo de Gadara, do século III a.C. Depois de morta, essa personagem ridiculariza o mundo dos vivos. Machado de Assis inspirou-se nessa obra de Luciano para escrever as Memórias Póstumas de Brás Cubas, razão pela qual o romance ficou conhecido como sátira menipéia, isto é, sátira escrita à maneira de Menipo, na tradição luciânica. Outra obra famosa de Luciano é História Verdadeira, na qual se descreve a ilha dos Sonhos, aludida no capítulo 64 de Dom Casmurro (“Uma idéia e um escrúpulo”), reproduzido e comentado adiante. Luciano de Samósata sistematizou o uso da paródia e aplicou à obra literária uma lógica fantasiosa, que não coincide com a lógica da vida real. Em outros termos: a tradição luciânica não observa a verossimilhança exigida pelo verismo do romance tradicional oitocentista. Isso agradava muito a Machado de Assis, a tal ponto que foi levado a aplicar a lógica fantasiosa de Luciano às suas Memórias Póstumas de Brás Cubas, fazendo o protagonista falar depois de morto. Após essa experiência revolucionária em nossa literatura, Machado de Assis sempre retornaria à lógica luciânica, porque ela lhe faculta uma visão mais engraçada e verdadeira do real. Vejamo-la num trecho de crônica publicada em “A Semana”3 (seção mantida por Machado de Assis na Gazeta de Notícias, entre 1892 e 1897), com data de 5 de agosto de 1894: Não quero mal às ficções, amo-as, acredito nelas, acho-as preferíveis às realidades; nem por isso deixo de filosofar sobre o destino das coisas tangíveis em comparação com as imagináveis. Grande sabedoria é inventar um pássaro sem asas, descrevê-lo, fazê-lo ver a todos, e acabar acreditando que não há pássaros com asas… Conforme se vê por esse trecho genial, existem algumas camadas da obra de Machado de Assis que

A tradição luciânica

2

Luciano de Samósata é um escritor grego de origem síria, que viveu no século II de nossa era. Samósata era então uma província romana às margens do rio Eufrates, de formação helenística. Em Samósata havia duas línguas literárias: o grego e o

SISTEMA ANGLO DE ENSINO

3

• 66 •

Polígrafo: autor que escreve muito sobre vários assuntos e em vários gêneros literários Machado de Assis é o maior polígrafo da literatura brasileira, talvez até por sugestão de Luciano. Em Portugal, o grande polígrafo é Camilo Castelo Branco. As crônicas dessa seção jornalística foram reunidas em volume por Mário de Alencar com o mesmo título de A Semana, editado pela Livraria Garnier em 1914(?).

ANGLO VESTIBULARES

só se explicam à luz da tradição luciânica, apesar de sua filiação a alguns princípios do realismo oitocentista. Mas vêm da tradição luciânica os aspectos mais modernos de seu texto, como o riso, a ironia, a fusão de gêneros, a digressão e o pessimismo humorístico. Todos esses elementos compositivos fazem parte da estrutura de Dom Casmurro, conforme se demonstrará neste estudo. Luciano e seus seguidores, dentre os quais se destaca Erasmo de Roterdã, defendiam a obra aberta, sem conclusão explícita e definitiva. Tal noção é fundamental para a filiação de Dom Casmurro à tradição luciânica, não só pelo enigma geral do romance, mas também pelo capítulo metalingüístico “Convivas de boa memória” (cap. 59), que ratifica a noção de obra aberta.4

ENREDO DE DOM CASMURRO Origens de Bentinho Pedro de Albuquerque Santiago era casado com Dona Maria da Glória Fernandes Santiago e possuía uma fazenda em Itaguaí. Um dia, apareceu ali um sujeito chamado José Dias, apresentando-se como médico homeopata. Curou o feitor e uma escrava. Por isso o proprietário propôs-lhe ficar vivendo na fazenda, com pequeno ordenado. José Dias aceitou casa e comida sem outra remuneração, salvo o que quisessem dar por reconhecimento. O primeiro filho de Dona Glória nasceu morto, razão pela qual ela procurou a proteção de Deus para que o segundo vingasse. Fez promessa de tornálo padre, se nascesse varão e sadio. O filho nasceu saudável e foi batizado com o nome de Bento de Albuquerque Santiago, logo chamado Bentinho pela família. Dois anos após o nascimento do único filho, Pedro de Albuquerque foi eleito deputado e mudouse para o Rio de Janeiro com a família, instalandose numa casa assobradada na rua de Mata-cavalos, em cuja chácara, ao fundo, José Dias teve o seu quarto. Este se tornara um agregado querido e respeitável, proferindo sempre pomposos superlativos. Com o tempo, revelou ao dono da casa que não era médico. Tomara esse título para ajudar a propaganda da nova escola médica, a homeopatia. Mentira em favor da verdade. Pedro de Albuquerque não o despediu, e ele foi-se tornando cada vez mais aceito naquela família abastada. Quando Bentinho tinha 4 anos, seu pai faleceu. Dona Glória tomou a direção da casa e levou para morar consigo dois parentes igualmente viúvos: o

4

Para noções sistemáticas e seguras sobre Luciano e Machado, consultar REGO, Enylton de Sá. O Calundu e a Panacéia: Machado de Assis, a Sátira Menipéia e a Tradição luciânica. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1989.

SISTEMA ANGLO DE ENSINO

seu irmão Cosme (advogado gordo e bonachão) e a prima Justina (mulher magra e maledicente). Era a casa dos três viúvos.

Formação de Bentinho Embora modesta e bondosa, Dona Glória era matriarca de poderes. Tendo convertido a herança do marido em apólices, casas de aluguel e escravos, todos em casa obedeciam às vontades dela. José Dias lia romances para ela, alterando a voz segundo as situações do texto. Sendo muito religiosa e temente a Deus, divulgou a parentes e familiares a promessa de entregar o filho à Igreja, receosa de que, sem testemunhas, não cumprisse o prometido. Apesar disso, temia o dia em que haveria de se separar dele, a quem dispensava todo o mimo e atenção. Assim, para se afastar o mais tarde possível de Bentinho, contratou Padre Cabral, que sempre jogava gamão com tio Cosme, para que ensinasse o menino em casa. Ao lado da casa de Dona Glória, morava a família Pádua, formada pelo casal João e Fortunata, cuja filha, Capitolina — chamada Capitu —, era um ano mais nova que Bentinho. Sendo pobres e vizinhos, Dona Glória os protegera de uma enchente e tinha, desde então, uma certa ascendência moral sobre eles. Mandara rasgar uma porta no muro que dividia as casas, de modo a facilitar as relações de Bentinho e Capitu, que, desde tenra idade, foram criados em estreita união, quase como irmãos. Como não freqüentasse escola nem saísse à rua, Bentinho foi criado entre os adultos das duas casas, brincando exclusivamente com Capitu. Simulavam missas, nas quais a hóstia era sempre um doce arranjado por Bentinho. Bem cedo a menina se acostumou aos privilégios do vizinho rico e logo passou a comandar-lhe a vontade, o que em nada diminuía a sua íntima afeição. Os pais de Capitu, sentindo espontaneamente as conveniências daquela amizade, favoreciam a união dos meninos.

A revelação de José Dias Numa tarde de 1857, quando Bentinho estava com 15 anos e Capitu com 14, José Dias lembrou à Dona Glória que já era tempo de enviar o filho ao seminário, porque senão poderia haver uma grande dificuldade. Explicou depois que a dificuldade consistia em que Bentinho e Capitu ultimamente andavam de namoro pelos cantos; sempre juntos, em segredinhos. Bentinho, escondido atrás da porta da sala em que se dava a conversa, ficou estarrecido ao ouvir a denúncia de José Dias. Dona Glória, percebendo a iminência da separação, pôs-se a chorar. Bentinho saiu dali absorto com a revelação. De fato, ele amava Capitu, mas ainda não se dera conta disso. Inebriado pelo conhecimento de seu novo esta-

• 67 •

ANGLO VESTIBULARES

do, foi levado pelas pernas à casa da vizinha. Lá, encontrou Capitu escrevendo no muro, com um prego, o seu nome junto ao dela. Depois de olharem a inscrição, ambos, surpresos, foram dominados pela mesma e intensa emoção. Calados, deram-se as mãos. Os olhos procuraram-se e permaneceram enfiados uns nos outros. Somente a chegada do pai de Capitu pôde tirálos daquela mútua e intensa contemplação. Bentinho atrapalhou-se todo. Capitu dissimulou o ocorrido, e o pai nada percebeu ou fingiu não perceber.

O plano de Capitu Restabelecidos à solidão, Bentinho contou à namorada o perigo do seminário. Capitu irritou-se com a notícia, perdeu o equilíbrio e acabou xingando Dona Glória. Mas, depois, reassumiu o controle de si mesma e traçou um plano para evitar a separação. Bentinho deveria fazer ver a José Dias quem seria o futuro dono da casa. A partir daí, o agregado, se quisesse continuar em seu posto, deveria tomar o partido de Bentinho, no sentido de dissuadir a mãe do cumprimento da promessa. Em vez de padre, seria advogado por São Paulo. Bentinho procurou José Dias e falou-lhe conforme a orientação de Capitu. O agregado achou excelente a idéia de estudar leis, pois viu nela a hipótese de acompanhar o menino à Europa. Prometeu interceder em seu favor. Nessa mesma conversa, travada no Passeio Público, José Dias procurou rebaixar o vizinho Pádua, dizendo que os olhos da filha dele eram obra do diabo. Em seguida, criou a seguinte imagem para classificar os mesmos olhos: São assim de cigana oblíqua e dissimulada. Passados alguns dias do ajuste com o agregado, Bentinho quis espiar bem dentro dos olhos de Capitu, a ver se a imagem do outro conferia com o real. Mas o que encontrou foi um fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Quando tornou cá fora, isto é, quando se livrou do encanto dos olhos da amiga, preferiu classificá-los como olhos de ressaca, sem contudo jamais esquecer a imagem de José Dias. Em seguida à vertigem provocada pelos olhos da namorada, Bentinho fê-la sentar de costas para si e de frente para o espelho (um espelhinho barato). Queria pentear-lhe os longos cabelos escuros. Depois que ele os penteou, Capitu jogou bruscamente a cabeça para trás. Permaneceu nessa posição até que Bentinho a beijasse na boca. Nesse dia, Bentinho não teve aula, porque Padre Cabral fora nomeado protonotário apostólico5 5

Protonotário apostólico: dignatário da Cúria romana, encarregado do registro e da expedição dos atos pontificiais.

SISTEMA ANGLO DE ENSINO

e, para comemorar o título, deu folga ao menino. Bentinho voltou para a casa de Capitu e tentou roubar outro beijo dela. Dessa vez, ela recusou. Quando, depois de insistir muito, Bentinho desistiu da intenção, ela própria o beijou rapidamente. À noite, o namorado inquietou-se tanto que resolveu atalhar o trabalho de dissuasão iniciado por José Dias. Conseguindo estar só com a mãe, confessou que não tinha vocação para padre e pediu-lhe que desfizesse a promessa. Embora no íntimo ela desejasse o mesmo que o filho, Dona Glória não atendeu ao pedido e fixou o prazo de sua entrada no seminário, que seria dentro de dois ou três meses.

O juramento do poço No dia seguinte, custou a Capitu conter a cólera diante do prazo estipulado por Dona Glória. Ao perceber que Bentinho não se oporia à vontade da mãe, lançou-lhe na cara que ele ainda haveria de batizar o seu primeiro filho com outro homem. A briga se dera à beira do poço, no quintal da vizinha. Minutos depois, ela encaminhou a paz e ambos acabaram por jurar que jamais se casariam senão um com o outro.

No seminário Meses depois, Bentinho foi para o seminário de São José, com a condição de abandoná-lo no fim de um ano, caso a vocação eclesiástica não se revelasse espontânea. Tais termos foram negociados entre Dona Glória, Padre Cabral e José Dias, que ainda acalentava o projeto de acompanhar o patrãozinho em viagem de estudos à Europa. O seminarista visitava a família todo fim de semana, mas, durante sua ausência, Capitu entrou na intimidade de Dona Glória, que cedo passou a tratá-la por filha e cumulá-la de presentes e afeição. Nessas ocasiões, os olhos de Capitu não eram oblíquos, nem de ressaca, eram direitos, claros, lúcidos. No seminário, Bentinho teve impulsos literários e sexuais, mas nenhuma inclinação para a vida religiosa. Teve sobretudo ataques de ciúmes, provocados pela insídia de José Dias, que se referia a Capitu como uma leviana, sempre à cata de algum peralta que se casasse com ela. Os ciúmes levantados pelo agregado provocavam pesadelos e inseguranças no seminarista sem vocação. A intenção de José Dias era livrar Bentinho do seminário e conduzi-lo para a Europa. Possuía um antigo sonho de rever o Velho Mundo. Havia no seminário um outro jovem sem nenhuma inclinação religiosa, mas com verdadeira paixão pelo comércio. Chamava-se Ezequiel de Sousa Escobar. Viera de Curitiba. Identificou-se logo com Bentinho, e ambos se tornaram amigos e confidentes.

• 68 •

ANGLO VESTIBULARES

Um dia, Dona Glória ficou doente, razão pela qual Bentinho foi chamado a casa. Após o restabelecimento da mãe, não tornou imediatamente ao seminário. À saída da missa em que fora agradecer a melhora da mãe, esteve com Sancha, amiga de Capitu, cujo pai era viúvo e se chamava Gurgel. Retornando a casa, Bentinho teve a boa surpresa da visita de Escobar, que, mais tarde, ficaria impressionado com a beleza de Dona Glória e também com o seu dinheiro. A sua fineza, porém, fê-lo querido de todos. A própria prima Justina, normalmente áspera, não teve do que reclamar. Com o tempo, Dona Glória foi apreciando a união de Bentinho e Capitu. Num sábado, sugeriu ao filho que a fosse ver à casa de Sancha, aonde fora acudir a uma febre da amiga. Aí, Bentinho soube por Gurgel que Capitu era muito parecida com sua falecida esposa. Ressaltou que a semelhança, extensiva aos olhos e ao gênio, era esquisita. Já de volta, na Rua de Matacavalos, Bentinho foi comunicado da morte de Manduca, vizinho leproso com quem mantivera, por cartas, uma polêmica sobre a guerra da Criméia.

Saída do seminário Bentinho voltara ao seminário. Numa de suas visitas ao menino, José Dias insinuou que ele deveria simular sintomas de tuberculose para que buscassem melhores ares na Europa. Dona Glória já não escondia o desejo de libertar o filho do seminário, só não achava como liquidar a promessa. Escobar sugeriu que se financiasse a ordenação de um moço pobre. A promessa se cumpriria sem prejuízo de Bentinho. Assim foi feito. Ambos deixaram juntos o seminário de São José. Escobar entrou para o comércio, tendo tomado dinheiro emprestado com Dona Glória. Murmurouse que desejara casar-se com a viúva. Depois, casou-se com Sancha, a amiga de Capitu. Aos 22 anos, Bentinho era bacharel em Direito por São Paulo. Tornando ao Rio, casou-se com Capitu em 1865. Foram residir no bairro da Glória. Depois de casadas, Sancha e Capitu continuaram a antiga amizade. Da mesma forma, com Bentinho e Escobar, cuja filha se chamou Capitu, em homenagem à esposa do amigo do seminário. A intimidade dos casais tornou-se intensa. Ambos os maridos revelavam algum ciúme das esposas. Bentinho e Capitu viviam felizes, embora lamentassem a falta de um filho. Ambos rezavam com fé pelo complemento da família. A filhinha de Escobar já tagarelava e brincava, quando nasceu o filho de Bentinho, batizado com o nome de Ezequiel, em homenagem a Escobar (lembre-se que o nome completo deste era Ezequiel de Sousa Escobar). A essa altura, os pais de Capitu já haviam falecido, e tio Cosme não duraria muito.

SISTEMA ANGLO DE ENSINO

Escobar deixou Andaraí e mudou-se para o Flamengo, mais próximo do amigo. Ambos faziam gosto que os filhos crescessem juntos, como Bento e Capitolina. À proporção que Ezequiel crescia, revelava o hábito de imitar as pessoas. Fazia-o sobretudo em relação a José Dias, que também freqüentava a casa do Dr. Bento Santiago. Um pouco mais, e este começou a ver no filho as feições do amigo Escobar. Surgiram dúvidas sobre dúvidas. Tornou-se um homem desconfiado. Para ele, a mãe passou a evitar o convívio da nora e do neto. Uma noite, supôs que Sancha o desejara sexualmente, expressando-se com os olhos e apertos de mãos. Na manhã seguinte, Escobar morreu no mar, onde costumava nadar. Na despedida do corpo, supôs que Capitu chorara e mirara o defunto de modo especial. Concluiu daí que ela fora amante do amigo e que Ezequiel era, definitivamente, filho do outro e não seu. Apesar da convicção, teve de proferir um discurso à beira da cova de Escobar. Depois, tomou a decisão de suicidar-se, logo transformada em intenção de matar Capitu. Ocorreu-lhe também a idéia de assassinar o filho. Por fim, apenas negou explicitamente que era pai de Ezequiel e separou-se de Capitu, que partiu com o filho para a Suíça, onde morreu tempos depois. Ezequiel tornou ao Rio para conhecer o suposto pai. Antes disso, José Dias expirara, soltando um último superlativo. Após a morte de prima Justina, Ezequiel, que era arqueólogo, embarcou para a Palestina e lá foi abatido por uma febre mortal. Dona Glória faleceu antes de José Dias, e Bentinho fez gravar em seu túmulo apenas duas palavras: uma santa.

A velhice de Bento Sobrevivente único de uma razoável constelação de pessoas, Bento Santiago habituou-se à solidão. Quanto a amores, limitou-se, depois de viúvo, a relações superficiais com prostitutas. Tornou-se um homem solitário e recluso, metido consigo e calado, razão pela qual os vizinhos o apelidaram Dom Casmurro. Quando passava dos 50, Bento mandou construir no Engenho Novo uma casa igual àquela em que se criara na Rua de Matacavalos, obedecendo a detalhes de pintura, número e disposição de cômodos. O seu propósito, ao reconstituir a casa, era restaurar na velhice a adolescência. Não conseguiu. Em face disso, tentou recompor a vida mesma, mediante a narrativa que acabamos de resumir.

ELEMENTOS COMPOSITIVOS Fábula O resumo que acabamos de apresentar contém a fábula de Dom Casmurro, quer dizer, a síntese or-

• 69 •

ANGLO VESTIBULARES

denada dos acontecimentos em sua ordem cronológica. Temos ali o plano geral dos eventos e das causas que determinam a ação ou enredo do romance. Embora muito importante, o enredo não é o mais importante em Dom Casmurro, como de resto em nenhum dos cinco romances maduros de Machado de Assis. Apesar disso, a compreensão da fábula de qualquer romance contribui para tornar mais claros e apreensíveis os elementos mais importantes na composição de uma obra de arte literária. Mas, então, quais os elementos compositivos mais importantes que a fábula em Dom Casmurro? Muitos outros elementos têm mais importância que a fábula na composição de Dom Casmurro. Segue a relação desses elementos, na ordem em que serão estudados: • • • • • • • • •

o modo narrativo do romance; foco narrativo (ponto de vista); intriga; estilo; cosmovisão (visão de mundo); paródia e intertextualidade (estilo); personagens; espaço do romance; tempo do romance.

O modo narrativo Dom Casmurro é a autobiografia de Bento de Albuquerque Santiago — advogado abastado, viúvo solitário e cinqüentão circunspecto. Mais propriamente, trata-se de uma pseudo-autobiografia, pois tal personagem é fictícia; jamais existiu senão na imaginação de Machado de Assis. Em outros termos: Dom Casmurro apresenta uma personagem na condição de autor de um livro que, na verdade, foi escrito por Machado de Assis. Em Dom Casmurro, a dramatização do ato de narrar é um dos componentes essenciais do enredo e da vida do protagonista. Tal dramatização consiste no seguinte: em vez de simplesmente escrever uma história, Machado de Assis inventou uma personagem (um pseudo-autor) de quem nos é dado ver o ato de escrever o seu próprio romance. Com efeito, ao abrirmos o livro, não nos deparamos com o início de uma história propriamente dita, mas com as preocupações prévias de um homem prestes a iniciar o relato de sua vida. Tais preocupações compõem os dois primeiros capítulos e constituem-se numa espécie de preâmbulo, em que se explicam o título e a finalidade do romance. O título decorre do apelido do personagem-narrador ou pseudo-autor, considerado muito “casmurro” (ensimesmado) pelos vizinhos e amigos; a finalidade consiste na reconstituição de sua própria vida.

SISTEMA ANGLO DE ENSINO

Dom Casmurro pode também ser entendido como uma auto-análise de Bento Santiago, sobrevivente único de uma história de amor com final amargo: pois Bento julga-se traído pela esposa (Capitu) e pelo melhor amigo (Escobar), razão pela qual é um homem emocionalmente mutilado. Vários anos após a morte da esposa e seu suposto amante, decide escrever o livro para restaurar no presente o equilíbrio perdido no passado. Pretende exorcizar os demônios da memória e provar definitivamente, perante si e a posteridade, que não errou ao abandonar a mulher e negar paternidade a Ezequiel. Como o escritor francês Marcel Proust (18711922) em sua longa obra, Machado de Assis, em Dom Casmurro, estará sobretudo preocupado em formular um conceito sobre a vida a partir da busca do tempo perdido, trabalho em que a memória afetiva procura restaurar as sensações e impressões do passado — determinante básica de nosso presente. Barreto Filho, um intérprete importante da obra machadiana, assim descreve a estrutura de Dom Casmurro: “O livro é feito de pequenas cenas e incidentes, numa urdidura cerrada, obedecendo muito à estrutura de uma peça teatral, na entrada e saída das personagens, nos diálogos curtos e breves. Mas seria uma peça à qual se incorporou o trabalho dos bastidores, e as indicações da movimentação cênica. Isso lhe dá um aspecto único. É um gênero novo, estritamente machadiano”.6

Foco narrativo Concebido como continuidade das experiências estilísticas das Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Dom Casmurro retoma o foco narrativo em primeira pessoa, abandonado temporariamente por Machado de Assis em Quincas Borba (1891). O ponto de vista de Bento Santiago — protagonista e narrador — domina tudo na narrativa. Até mesmo as demais personagens não passam de projeções de sua alma. São lembranças de seu passado, que vão ressurgindo do subsolo da memória à medida que ele procura a reconstrução de si mesmo. Bento não conta objetivamente uma tragédia, apenas apresenta sua versão da vida que levara em família. E é até provável que essa sua visão pessoal e íntima das relações com os outros tenha causado a desgraça que resultou de seu amor por Capitu. Bento Santiago fala dos outros como condição para falar de si. O encontro consigo mesmo depende de sua compreensão das pessoas com quem conviveu, principalmente Capitu. Por isso esmerou-se muito em traçar para o mundo o perfil íntimo da 6

• 70 •

BARRETO FILHO. Introdução a Machado de Assis. Rio de Janeiro, Agir, 1947 p. 190.

ANGLO VESTIBULARES

própria esposa. Procurou reconstituí-la com o propósito de entendê-la. Resulta daí que Dom Casmurro é também um “perfil feminino”, como os de José de Alencar7, só que agora traçado pelo próprio marido. Ele foi sempre ciumento e inseguro e, por isso mesmo, jamais conseguiu captar inteiramente a essência de sua mulher. Vem daí que a ambigüidade dessa poderosa personagem machadiana dependa da maneira emocionada com que o marido a vê. Além disso, sendo um retrato moral bem feito, isto é, que procura insinuar a complexidade de um modo de ser, o perfil de Capitu jamais poderia ser preciso e unívoco.

A acusação de Bentinho Bento Santiago conviveu intimamente, em graus diferentes, apenas com duas mulheres: Dona Glória (a mãe) e Capitu (a esposa). Na verdade, foi substancialmente dominado por elas, e isso se percebe a cada linha de seu relato. Mas sua reação em face da imagem póstuma de cada uma não é a mesma. Ao contrário, é muito diferente. Ao morrer Dona Glória, o filho preocupou-se em preservar e divulgar a imagem querida da mãe, fazendo gravar-lhe no túmulo só duas palavras: “uma santa” (ainda que para isso tivesse de influir junto ao vigário responsável pelo Cemitério de São João Batista). Quanto à esposa, o livro inteiro busca demonstrar a sua insídia e infidelidade. Pois isso é o que Bentinho alcançou entender de Capitu. Mas não é difícil perceber que o desenvolvimento de Dom Casmurro possui alguns traços formais de “acusação jurídica” previamente assumida. Em outros termos: Bento simula buscar a verdade com seu discurso, quando, ao contrário, ela já a possui desde o princípio. Assim, o texto se inspira, de fato, num preconceito disfarçado, o que é extremamente fecundo como motivação literária, pois transforma o narrador num ser mais complexo, que às vezes é omisso, outras reticente, mas que se diz sempre sincero.8 O fato de Bentinho procurar disfarçar o preconceito contra Capitu é um dos índices de sua condição de narrador problemático. Com efeito, ele é daquele tipo de pessoa que sempre afirma o contrário do que sente. Em outras palavras, trata-se de um indivíduo irônico e enganoso, cuja expressão produz um texto insinuante e ardiloso.

7

8

José de Alencar chama “perfil feminino” aos romances em que procura delinear caracteres de mulheres complicadas ou com problemas psicológicos, como o fez em Lucíola (1862) e Senhora (1875). Nesse sentido, Alencar foi um modesto precursor de Machado de Assis. Consultar SANTIAGO, Silviano. Uma Literatura nos Trópicos. São Paulo, Perspectiva, 1978. pp.29-48.

SISTEMA ANGLO DE ENSINO

O problema do conhecimento O que acabamos de dizer deixa claro que o empenho de Bento em acusar não deixa senão uma série de dúvidas quanto a Capitu e outro tanto de certezas sobre si mesmo. Na infância e juventude, Bento foi um menino dócil, sempre inclinado a agir pela cabeça dos outros, tendo inclusive entrado para o seminário contra sua vontade. Na velhice, tornou-se um cético, com a mania das insinuações, reticências e ironias ardilosas. Além de esquecido e emotivamente prejudicado, Bento faz questão explícita de ser omisso em seu relato. No capítulo 59 (“Convivas de boa memória”) de sua narrativa, exalta os livros lacunares, sem significado único e autoritário. Os bons livros seriam aqueles cuja conclusão decorre também da imaginação interpretativa do leitor. Com efeito, esse capítulo induz o entendimento de Dom Casmurro como uma obra aberta, dentro da tradição luciânica. A tradição luciânica é, vimos, aquela inaugurada por Luciano de Samósata, cuja essência é a recusa do discurso tradicional e de um só significado. No capítulo 68 de seu relato (“Adiemos a virtude”), o Dr. Bento Santiago afirma: Ora, há um só modo de escrever a própria essência, é contá-la toda, o bem e o mal. Tal faço eu, à medida que me vai lembrando e convindo à construção ou reconstrução de mim mesmo. O trecho evidencia que escrever é conhecer-se. E essa é a razão pela qual Bento escreve. Assim, ao relatar que tomara a drástica decisão de separar-se de Capitu (cap. 140, “Volta da igreja”), Bento pondera: Acaso haveria em mim um homem novo, um que aparecia agora, desde que impressões novas e fortes o descobriam? Nesse caso era um homem apenas encoberto. Nessa passagem, Bento revela-se um pouco mais que na anterior, sobretudo quando afirma que impressões novas é que o levaram a consolidar o conhecimento de si e de Capitu. Vem daí uma pista importante para o entendimento de Dom Casmurro: tratase, efetivamente, de um livro que consagra a impressão como forma de conhecimento, razão pela qual deve, ao menos em parte, ser associado ao Impressionismo — tomado o termo aqui no sentido daquele tipo de processo imitativo que deforma a realidade por força do subjetivismo do narrador. Desse modo, além do problema do ciúme e da traição, Dom Casmurro coloca igualmente a questão da dúvida entre o que conhecemos das pessoas e o que elas realmente são.9 9

• 71 •

Consultar CANDIDO, Antonio. Vários Escritos, São Paulo, Duas Cidades, 1970. pp.25-6.

ANGLO VESTIBULARES

Era Capitu realmente do jeito que Bentinho a via? Isso jamais saberemos, porque dela só nos restam as impressões deixadas pelo marido — que diz serem a expressão da verdade. Lembre-se, porém, que muitas vezes as impressões de Bento se baralham com outras colhidas indiretamente, através de personagens como José Dias e prima Justina, que declaradamente não gostavam de Capitu.

rador interrompe a seqüência de acontecimentos presentes para relatar o que sucedeu antes do ponto em que iniciou. O passado das personagens secundárias, como os pais de Capitu, os pais e os familiares de Bentinho (inclusive José Dias), é igualmente apresentado em forma de flashback.

O narrador problemático

Ainda no que diz respeito ao modo de apresenta-ção dos eventos em Dom Casmurro, convém destacar também que a exposição da fábula, quer dizer, a escritura do livro que se lê, faz parte da própria fábula, porque é uma microsseqüência do enredo. Com isso, Machado de Assis adota uma forma radical de enfatizar a função metalingüística da comunicação verbal. Esse tipo de dramatização do ato de narrar pode ser exemplificado pelo capítulo 64 de Dom Casmurro (“Uma idéia e um escrúpulo”), transcrito adiante.

Conclui-se do que ficou dito acima que o advogado e ex-seminarista Bento é um narrador problemático. Problemático em duplo sentido: como entidade psicológica (um homem emotivamente mutilado) e como foco narrativo (fala sobre algo que não conhece bem). Ao escolher um narrador problemático para Dom Casmurro, Machado de Assis descobriu a chave para a densidade psicológica do romance e também para o seu inesgotável poder de sugestão. Tal se deve ao fato de que um ser problemático apresenta, quase sempre, maiores surpresas e incógnitas em sua expressão. Assim, através de Bento Santiago, Machado de Assis: a) problematiza a noção de romance convencional, pois o narrador não é um contador de histórias e sim um advogado que escreve por motivos psicológicos; b) questiona a noção de verdade absoluta, visto que jamais saberemos se Capitu traiu ou não o marido; c) produz um dos mais belos textos da literatura americana, sobretudo pela capacidade de o livro suportar sempre novas e diferentes interpretações, o que se deve ao fato de ser uma obra aberta, isto é, aquela cuja estrutura deixa o essencial do significado sob a sombra de uma dúvida.

INTRIGA Flashback Uma das posturas mais recomendáveis para o entendimento literário de romances como Dom Casmurro é a correta percepção da intriga ou trama, que consiste na maneira pela qual se apresentam os elementos da fábula. A trama ou intriga é a ordem adotada pelo autor na apresentação dos eventos que formam a fábula. Em outros termos: a intriga é o modo pelo qual o artista nos dá a conhecer as unidades mínimas do enredo. Nesse sentido, convém destacar que Dom Casmurro começa pelo fim da história, isto é, conhece-se primeiro a solidão trágica do viúvo Bento (dois capítulos iniciais), para depois se tomar conhecimento das causas e motivos que o levaram a semelhante estado. Tais causas e motivos são toda a história do livro. Isso quer dizer que a narrativa de Dom Casmurro é apresentada em flashback. Em outros termos: o nar-

SISTEMA ANGLO DE ENSINO

Metalinguagem

Dramatização do narrador Vejamos a posição desse capítulo no conjunto do romance. No capítulo anterior, Bentinho encontrase no seminário, recebendo visita de José Dias. Na conversa que mantêm, o seminarista mostra-se ansioso por saber notícias da vizinha. O agregado finge não perceber o interesse do menino por Capitu e fala mal dela, chamando-a tontinha, sempre à espera de algum peralta da vizinhança que case com ela. Nasce daí o primeiro lance de ciúme em Bentinho. O capítulo intitula-se precisamente “Uma ponta de Iago”. Iago é personagem da célebre tragédia Otelo, de Shakespeare. Tal personagem desperta ciúmes infundados em Otelo com relação à sua amada, Desdêmona. Ora, o título do capítulo 63 de Dom Casmurro associa José Dias a Iago, donde se conclui que suas notícias sobre o comportamento de Capitu são falsas, e os ciúmes de Bentinho, igualmente infundados. Mas, infundados ou não, à noite Bentinho tem um sonho, que é fundamental para o significado geral do romance. 10 Instigado pela insídia de José Dias, sonha que se colocou à espreita dos peraltas da vizinhança de Matacavalos. Um deles conversava à janela com Capitu. Este fora levar o resultado da loteria ao pai dela e logo sumira no sonho. A sós com Capitu, Bentinho segura-lhe as mãos e espera um beijo. Antes que o beijo se concretize, Bentinho acorda solitário no dormitório do seminário. Muito necessitado daquele beijo, o seminarista esforça-se por dormir de novo e reatar o sonho truncado. 10

• 72 •

Este sonho é importante porque revela que o inconsciente de Bentinho já está dominado pelo ciúme. Mais adiante, o ciúme virá à consciência.

ANGLO VESTIBULARES

ESTILO O procedimento digressivo (exemplo) Aquele é o conteúdo do capítulo 63, que serve de base para a reflexão (digressão) irônica do capítulo seguinte, “Uma idéia e um escrúpulo”: Relendo o capítulo passado, acode-me uma idéia e um escrúpulo. O escrúpulo é justamente de escrever a idéia, não a havendo mais banal na terra, posto que daquela banalidade do sol e da lua, que o céu nos dá todos os dias e todos os meses. Deixei o manuscrito, e olhei para as paredes. Sabes que esta casa do Engenho Novo, nas dimensões, disposições e pinturas, é reprodução da minha antiga casa de Matacavalos. Outrossim, como te disse no capítulo II, o meu fim em imitar a outra foi ligar as duas pontas da vida, o que aliás não alcancei. Pois o mesmo sucedeu àquele sonho do seminário, por mais que tentasse dormir e dormisse. Donde concluo que um dos ofícios do homem é fechar e apertar muito os olhos, e ver se continua pela noite velha o sonho truncado da noite moça. Tal é a idéia banal e nova que eu não quisera pôr aqui, e só provisoriamente a escrevo. Antes de concluir este capítulo, fui à janela indagar da noite por que razão os sonhos hão de ser assim tão tênues que se esgarçam ao menor abrir de olhos ou voltar de corpo, e não continuam mais. A noite não me respondeu logo. Estava deliciosamente bela, os morros palejavam11 de luar e o espaço morria de silêncio. Como eu insistisse, declarou-me que os sonhos já não pertencem à sua jurisdição. Quando eles moravam na ilha que Luciano12 lhes deu, onde ela tinha o seu palácio, e donde os fazia sair com as suas caras de vária feição, dar-me-ia explicações possíveis. Mas os tempos mudaram tudo. Os sonhos antigos foram aposentados, e os modernos moram no cérebro da pessoa. Estes, ainda que quisessem imitar os outros, não poderiam fazê-lo; a ilha dos Sonhos, como a dos Amores, como todas as ilhas de todos os mares, são agora objeto da ambição e da rivalidade da Europa e dos Estados Unidos. Era uma alusão às Filipinas. Pois que não amo a política, e ainda menos a política internacional, fechei a janela e vim acabar este capítulo para ir dormir. Não peço agora os sonhos de Luciano, nem outros, filhos da memória ou da digestão; basta-me um sono quieto e apagado. De manhã, com a fresca, irei dizendo o mais da minha história e suas pessoas.

Comentário à digressão do capítulo 64 Nesse capítulo, Bento Santiago suspende a narrativa de seu passado para se referir ao presente. É, 11 12

Palejavam: empalideciam. Luciano: Luciano de Samósata.

SISTEMA ANGLO DE ENSINO

vimos um exemplo notável de dramatização do ato de narrar, que implica o realce da função metalingüística da comunicação verbal. A ironia e a elegância insinuativa se fazem sentir em cada linha. O capítulo consta de três parágrafos, dos quais comentamos alguns pontos essenciais. §1. O narrador recapitula o motivo pelo qual reconstruiu no Engenho Novo a casa de Matacavalos, que é o de atar as duas pontas da vida. Fracassou. A reconstrução da casa é uma metáfora da reconstituição da própria vida, que se dá mediante a escritura do livro autobiográfico. Se a reconstrução da casa não atingiu o seu objetivo, escrever o livro também não ajudará Bento Santiago a encontrar a própria essência. Em seguida, o narrador compara o fracasso da reconstrução da casa com o da tentativa de reatar o sonho truncado no seminário. Por fim, expõe a idéia que hesitava expor no começo, por julgá-la banal, tão banal quanto o surgimento, todos os dias, do sol e da lua: uma das funções do homem é se esforçar por não deixar escapar os sonhos. É o que Bentinho fez na solidão do seminário, perdeu uma noite de sono na perseguição de um sonho. Trata-se de um parágrafo de fina ironia, porque o narrador chama de banal uma idéia que considera essencial. § 2. O narrador suspende a redação do capítulo para dialogar com a noite. Reproduz o diálogo que manteve com ela através do discurso indireto. Tendo-a interrogado sobre a fragilidade dos sonhos, a facilidade com que se rompem e não se cumprem, a noite respondeu que não sabia mais deles. Perdera o controle sobre os sonhos desde que a moderna psicologia os explica como reações cerebrais, relacionados com o passado e as condições físicas dos indivíduos. A noite sabia deles somente na Antigüidade, quando a imaginação literária de homens como Luciano de Samósata atribuía-lhe o poder de armazenar todos os sonhos humanos num palácio, localizado na ilha dos Sonhos, de onde os soltava segundo as necessidades do sonhador. Mas a ilha dos Sonhos deixou de existir, porque a Europa e os Estados Unidos desejam todas as ilhas para si. O parágrafo alude também aos cantos IX e X de Os Lusíadas, em que se descreve outra ilha de igual encanto, a dos Amores, dirigida por Vênus. § 3. Algumas noções desse parágrafo completam premissas do anterior, como a idéia da guerra das Filipinas (ou hispano-americana), travada na segunda metade do século XIX entre a Espanha e os Estados Unidos. Descoberto em 1521 por Fernão de Magalhães, já em 1571 o arquipélago das Filipinas era dominado pelos espanhóis. Trata-se de um conjunto de cerca de 7 mil ilhas, cujo nome deriva de Felipe II, rei da Espanha. Os Estados Unidos controlaram as Filipinas de 1858 até 1934, ano de sua independência. Ao término do parágrafo anterior, Bento Santiago ridicularizou o jogo dos imperialis-

• 73 •

ANGLO VESTIBULARES

mos europeu e americano. Mas tal foi dito por ironia, pois, como na abertura do capítulo, ele diz uma coisa pela afirmação do contrário, isto é, Bento afirma que não se interessa por política internacional, mas deixa clara sua repulsa pelos imperialismos intercontinentais. Contudo, a idéia mais importante desse parágrafo é a de que a velhice não carece tanto de sonhos quanto a adolescência. No seminário, Bentinho perdeu uma noite inteira de sono na busca de um sonho; agora, no Engenho Novo, o cinqüentão já não os deseja — nem sob a forma antiga e encantada de Luciano, nem sob a forma fisiológica da psicologia moderna. Contenta-se com o sono. Ao cabo, o narrador promete que, na manhã seguinte, abandonará o espírito digressivo daquele capítulo e retomará o fio linear de sua história.

O procedimento digressivo (explicação) O capítulo 64 é um desvio do fio central da narrativa. Embora a fábula de Dom Casmurro seja muito bem arquitetada, nem todos os seus capítulos narram acontecimentos. É muito freqüente a suspensão dos eventos do enredo, exemplificada nesse capítulo. Tal s dá lugar à digressão machadiana, processo compositivo iniciado nas Memórias Póstumas de Brás Cubas e retomado em Dom Casmurro e nos demais romances maduros de Machado de Assis. A digressão machadiana, ou o desvio para fora dos limites necessários da fábula, comporta sempre uma reflexão irônica sobre arte, história, política, filosofia ou sobre o próprio livro que está sendo escrito. Com efeito, o autor-narrador Bento Santiago suspende com freqüência o fluxo narrativo para discorrer sobre inúmeros assuntos, dos quais destacamos alguns, com a indicação de alguns capítulos em que ocorrem: • discussão e exposição do método adotado no livro (cap. 59, “Convivas de boa memória”); • comparação de assuntos da obra com outros estranhos a ela (cap. 17, “Os vermes”); • discussão de opiniões ou levantamento de hipóteses sobre uma possível reação do leitor em face de sua vida e de sua obra (cap. 119, “Não faça isso, querida!”); • composição de breves histórias ou apólogos paralelos à ação central do livro (cap. 9, “A ópera”); • esboços e perfis psicológicos de personagens alheias à fabula (cap. 127, “O barbeiro”). Digressões dessa espécie tornam ziguezagueante a estrutura de Dom Casmurro, porque o texto ora conta a história, ora tece comentários paralelos a ela. Com efeito, o estilo desse livro baseia-se na alternância de seqüências narrativas (a vida de Bentinho e Capitu) com seqüências digressivas (idéias do viúvo Bento). E as seqüências digressivas são tão importantes quanto as seqüências narrativas. Sendo assim,

SISTEMA ANGLO DE ENSINO

a melhor leitura de Dom Casmurro será aquela que souber estabelecer a perfeita relação entre os dois tipos de seqüências. Acrescente-se, ainda, que o conteúdo das digressões funciona sempre como um suporte teórico dos eventos narrados, ou contém uma conclusão conceitual extraída deles.

COSMOVISÃO Pessimismo e humor digressivos Como toda digressão bem caracterizada, o capítulo 9 de Dom Casmurro, “A ópera”, representa uma ruptura na ordem factual do romance. Tal ruptura deve ser entendida como uma suspensão estratégica no andamento da narrativa, com o propósito de apresentar uma alegoria ou apólogo que suporte filosoficamente todo o romance. Trata-se, portanto, de um capítulo doutrinal, que contém a visão de mundo segundo a qual Bento interpreta as pessoas e a vida. Tal cosmovisão é pessimista, pois entende como causa das ações humanas apenas a vontade pessoal e o interesse, nunca o amor ou o desprendimento. Trata-se de uma descrença na bondade dos homens, também chamada ceticismo. De um modo geral, essa é a posição filosófica de Machado de Assis em face do mundo. Mas ele a transfere a Bento Santiago com muita verossimilhança ficcional, porque o pessimismo ressentido dessa personagem decorre do desencontro amoroso que experimentou na maturidade. Na ficção machadiana, a idéia do predomínio do mal sobre o bem associa-se freqüentemente ao poder da astúcia do demônio diante da ingenuidade de Deus. Tal pode ser comprovado não só no entrecho do capítulo 9 de Dom Casmurro, mas também em contos como “A igreja do diabo” (Histórias sem Data) e “Adão e Eva” (Várias Histórias). Trata-se de textos alegóricos, que apresentam a humanidade como invenção do demônio ou convertida por ele às suas pregações. O centro do capítulo 9 é a idéia de que a vida é perversa, e a perversão decorre das próprias forças criadoras do universo. Essa idéia prende-se à imagem segundo a qual a vida é uma ópera, cujos papéis o destino impõe arbitrariamente aos homens. Marcolini, velho tenor13 desempregado e amigo de Bento, era quem costumava dizer isso. Um dia expôs ao viúvo a sua versão da origem dos males humanos. Deus deixou incompleta uma ópera colossal, tendo escrito apenas a letra. Deu-se a queda de Lúcifer, que roubou o libreto14 divino, indo musicá-lo no inferno. Após concluir o trabalho, Lúcifer apresentou-se a Deus e pediu licença para encenar a 13 14

• 74 •

Tenor: cantor de voz mais aguda numa ópera. Libreto: letra ou poema de uma ópera.

ANGLO VESTIBULARES

ópera. Insistiu tanto com o parceiro involuntário que o Senhor criou o planeta Terra para que servisse de palco ao espetáculo. Criou também todos os atores para a encenação, que são os habitantes deste planeta, cujos gestos e intenções, embora escritos por Deus, são regidos por aquele maestro das trevas.

Digressão e pessimismo: “O delírio” e “A ópera” Quem já leu as Memórias Póstumas de Brás Cubas há de se lembrar de que o seu capítulo 7 (“O delírio”) contém a doutrina do pessimismo irônico e relativista, que é a chave filosófica daquele romance. Pois então, “A ópera” exerce a mesma função na estrutura de Dom Casmurro. Tanto quanto “O delírio”, é um capítulo doutrinal, irônico e sob a forma de digressão. Demanda igualmente leitura cuidadosa.

to teve que proferir um discurso elogioso à beira da cova do amante da mulher (seu comborço).

Paródia de Otelo Ao aceitar a teoria de que a vida é uma ópera, defendida pelo tenor italiano Marcolini, o desencantado Bento Santiago não consegue mais se referir aos seus amores com Capitu senão como uma paródia ou imitação burlesca de uma encenação trágica. Com efeito, ele traça constantes paralelos entre sua vida passada e o andamento do teatro clássico, sobretudo da peça Otelo, por causa do tema do ciúme e da traição. Nesse sentido, convém reler com cuidado os capítulos: 10, “Aceito a teoria”; 72, “Uma reforma dramática”; 73, “O contra-regra”; e 135, “Otelo”.

Paródia do mito de Abraão e Isaac PAR ÓDIA E INTERTEXTUALIDADE O procedimento paródico A matéria de Dom Casmurro aproxima-se do trágico, pois relata a frustração de um grande amor, nascido espontaneamente na infância dos amantes. Mas essa quase tragédia não espanta o humor machadiano. Ao contrário, torna-o necessário à estrutura do romance, porque a história de Bentinho procura demonstrar que a vida é traição. Mas, em face disso, Machado de Assis prefere sorrir em vez de chorar. Assim, o seu pessimismo é sempre irônico e carregado de humor. E uma das formas mais agudas de seu humor sofisticado é a paródia. Paródia é a recriação burlesca de qualquer estrutura (um poema, um estilo, uma filosofia, um ritual) consagrada pela tradição. No caso de Machado de Assis, consubstancia-se freqüentemente na reescritura de textos famosos ou na imitação sarcástica de estilos solenes. Machado parodia também sistemas filosóficos e acontecimentos históricos importantes. Ele foi o primeiro escritor a adotar sistematicamente o procedimento paródico em nossa literatura, traço visivelmente contemporâneo de seu estilo.

Intertextualidade Paródia é também uma forma de estabelecer diálogo com os textos de tradição, isto é, uma forma de intertextualidade. Raro é o texto machadiano que não alude a outros textos do passado. Em Dom Casmurro, por exemplo, há três alusões importantes à Ilíada de Homero, nos seguintes capítulos: 17, “Os vermes”; 61, “A vaca de Homero”; e 125, “Uma comparação”. Este último é particularmente interessante: assim como Príamo, rei de Tróia, teve que beijar a mão de Aquiles, assassino de seu filho Heitor, Ben-

SISTEMA ANGLO DE ENSINO

A primeira parte da vida de Bentinho pode ser resumida nos seguintes termos: antes mesmo de o conceber, uma mãe promete o filho a Deus (seria padre, jamais casaria). Porém ele se apaixona por uma mulher justamente na ocasião de se iniciar nos serviços do Senhor (entrada para o seminário). Os amantes lutam por se manterem unidos. A mãe, obrigada em Deus e com o coração partido, determina a separação de ambos. Entretanto a ação da mulher que ama o filho predestinado (Capitu) consegue anular a promessa e remover o sacrifício. Os amantes unem-se. A mãe fica feliz. Pelo resumo da primeira parte da vida de Bentinho, pode-se concluir que sua história é uma espécie de paródia do mito de Abraão e Isaac, do Velho Testamento: Deus pede a um fiel servidor o seu filho em sacrifício. O servidor prepara-se para atender. Na hora de imolar o próprio filho, Deus suspende o pedido. O pai é salvo de matar o filho amado.

Paródia e universalismo O próprio autor-narrador Bento Santiago sugere a correlação de sua história com o mito de Abraão e Isaac, no capítulo 80 de Dom Casmurro, chamado “Venhamos ao capítulo”. A retomada desse mito bíblico ilustra o universalismo na obra de Machado de Assis. Tal universalismo consiste na investigação da estrutura do pensamento humano, isto é, sua ficção empenha-se na pesquisa de certas constantes transistóricas e transculturais de comportamento. No caso de Dom Casmurro, Machado de Assis focaliza a tradição do sacrifício humano em favor de crenças religiosas (um arquétipo), que pode ser observada tanto em culturas politeístas, quanto no monoteísmo do Velho Testamento e no cristianismo atual (a promessa de Dona Glória).

• 75 •

ANGLO VESTIBULARES

O universalismo destacado acima não indica que o pensamento machadiano seja metafísico, porque ele não parte de abstrações apriorísticas ou subjetivas. Ao contrário, o seu pensamento decorre da observação objetiva e da análise irônica de estruturas socioculturais concretas — tanto do passado quanto do presente.

PERSONAGENS Bentinho A personagem mais complexa de Dom Casmurro é Bento Santiago, que é ao mesmo tempo pseudo-autor, narrador e personagem. Trata-se de uma figura um tanto esquizóide15: no passado, dividia-se entre a mãe e a namorada; na altura em que escreve o livro, divide-se entre o passado e o presente. Tanto acusa quanto louva a falecida esposa. E quanto ao físico, sabemos algo de Bentinho? Nada, a não ser que era um pouquinho mais baixo que Capitu. Com o tempo, apanhou barba e cabelos brancos. Quando voltou de São Paulo para o Rio feito advogado, sua mãe exclamou: Mano Cosme, é a cara do pai, não é?

Capitu A maneira ambígua e parcial com que Bento retrata Capitu torna-a uma personagem densa, de comportamento insinuante e surpreendente. Tratase de uma das personagens femininas mais instigantes da literatura brasileira. Entretanto, pouco se sabe de seu físico. E o pouco que se sabe contém muito das impressões do retratista, muito mais preocupado com a reconstituição do perfil moral da esposa, isto é, com o seu modo de ser: Todo eu era olhos e coração, um coração que desta vez ia sair, com certeza, pela boca fora. Não podia tirar os olhos daquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciamlhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. As mãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas16 com amor; não cheiravam a sabões finos nem águas de toucador, mas com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula. Calçava sapatos de duraque17, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos. (cap.13, “Capitu”) 15

16 17

Esquizóide refere-se a esquizofrenia, cuja etimologia quer dizer espírito dividido. É nesse sentido que aplicamos o termo, no de personalidade dividida. Em psiquiatria, o termo designa uma doença mais complexa. Curadas: cuidadas. Duraque: tecido forte.

SISTEMA ANGLO DE ENSINO

A partir desses exíguos elementos físicos, Machado de Assis extraiu a poderosa personalidade de Capitu. Agripino Grieco, crítico de tiradas bem-humoradas, afirmou que, do ponto de vista físico, Capitu é descrita em linguagem de passaporte, realçando com isso a brevidade do traçado. Entretanto, Machado concebeu imagens fortes para esboçar o perfil moral de Capitu. Escolheu o motivo dos olhos, por onde se capta a essência das pessoas. Dizem que os olhos são o espelho da alma. José Dias não gostava de Capitu; tinha ciúmes da atenção dada a ela na casa de Dona Glória. Por essa razão procurou influenciar Bentinho, dizendo-lhe que os olhos da vizinha pobre eram de cigana oblíqua e dissimulada. Ao classificá-la assim, isto é, como ardilosa, maliciosa, sinuosa, astuciosa, fingida, hipócrita, José Dias nada mais pretendia que separar os dois adolescentes. Sabemos que Bentinho foi conferir a descrição de José Dias. Achou outra coisa: sentiu-se arrastado por aqueles olhos, como se possuíssem a força do refluxo das águas do mar. Por isso disse: são olhos de ressaca. Ressaca marítima, que, em sentido próprio, arrastará Escobar para a morte, no capítulo 121 (“A catástrofe”). Tanto Capitu quanto Bentinho são personagens esféricas, isto é, pertencem à tipologia de personagens cujos traços psicológicos não são apresentados de uma só vez. A fisionomia moral (espiritual) dessas personagens vai-se formando aos poucos na percepção do leitor, à medida que agem ou se expressam. São verdadeiros seres vivos. Dão a impressão de trazerem a vida para dentro do romance. Por isso surpreendem. As grandes personagens esféricas de Machado de Assis quase nunca são descritas fisicamente. Um ligeiro traçado físico, como aquele de Capitu, basta para sugerir as vastidões do mundo interior. São seres dotados de alma ou espiritualidade. Convencem pela interioridade e não pelo brilho da aparência. As personagens machadianas possuem densidade moral. Com isso, não se pretende exprimir juízo de valor, ou seja, não se cogita se são boas ou más do ponto de vista ético. Pretende-se, apenas, realçar sua força ou densidade psicológica. Bentinho, por exemplo, é uma grande personagem, mas nem por isso possui unidade de caráter ou coerência. Nem sempre foi justo ou bondoso: a cena em que arrasta Ezequiel para o internato (cap. 132, “O debuxo e o colorido”) demonstra uma frieza muito próxima da crueldade. Bento é, enfim, um ser fragmentado, roído pela dúvida e incerteza. Por isso faz tanta questão de ostentar convicção. Entretanto, que enorme criação literária! Sabemos que os nomes podem explicar a função das personagens na trama e no significado do romance. Nesse sentido, Bento não combina com Ca-

• 76 •

ANGLO VESTIBULARES

pitolina. Bento é nome cristão e quer dizer abençoado por Deus. Capitolina deriva de Capitólio, o templo pagão dos romanos.

Escobar Bentinho conheceu Escobar no seminário. Ambos se identificaram por não possuírem vocação eclesiástica. A relação deles foi tão afetuosa que levou os demais seminaristas a notar certos exageros de intimidade física. Um dia, depois de um abraço no pátio, um padre os repreendeu assim: A modéstia não consente esses gestos excessivos; podem estimar-se com moderação. Como resposta, Escobar apertou a mão de Bento às escondidas (cap. 94, “Idéias aritméticas”). Ficaram tão felizes ao se encontrarem pela primeira vez em Matacavalos, que Escobar esteve com a mão de Bento entre as suas cerca de cinco minutos (cap. 93, “Um amigo por um defunto”). O crítico Barreto Filho assinala que “o primeiro contato de Escobar com a família de Bentinho e com Capitu cria uma atmosfera diferente. É como se houvesse ocorrido a conjunção de astros maléficos”18. À despedida, quando Escobar tomou o ônibus, Bentinho confessa: Conservei-me à porta, a ver se , ao longe, ainda olharia para trás, mas não olhou (cap. 71, “Visita de Escobar”). Essas relações femininas entre os dois adolescentes no tempo do seminário, que lembram a atmosfera de O Ateneu, de Raul Pompéia, talvez tenham contribuído para a influência que Escobar exercerá sobre Bentinho para o resto da vida, inclusive depois do casamento. Convém lembrar, ainda, que o Dr. Bento tinha uma foto emoldurada do amigo no seu escritório de trabalho, junto com a de Dona Glória. Embora meio nebulosa, Escobar é uma figura decidida. Gostava do comércio e dedicou-se com êxito ao negócio de café. A narrativa de Bento insinua que ele tinha interesse na fortuna de Dona Glória (cap. 94, “Idéias aritméticas”). Prima Justina espreitava nele o desejo de se casar com a viúva de Matacavalos, apesar da grande diferença de idade. Depois de iniciar suas especulações com dinheiro emprestado pela mãe de Bento, Escobar disse, ao saldar a dívida: D. Glória é medrosa e não tem ambição (cap. 98, “Cinco anos”). Escobar tinha muita habilidade intelectual, tendo sido o responsável pelo casuísmo (jogo com regras) teológico que permitiu a Dona Glória livrar Bentinho do seminário, sem quebrar a promessa. Ele amava os números e fazia complicadas operações

aritméticas de cabeça, com incrível rapidez. No cômputo geral, porém, Bento deixa-nos dele a imagem de um grande traidor, por abusar de sua confiança e possuir Capitu. Bento já amava Capitu ao conhecer Escobar. Apesar disso, a impressão que este causou no seminarista foi espantosa, como deixa ver a imagem literária que provocou o velho Bento Santiago, ao compor o capítulo 56 de suas recordações, intitulado “Um seminarista”: A princípio fui tímido, mas ele fez-se entrado na minha confiança. Aqueles modos fugitivos cessavam quando ele queria, e o meio e o tempo os fizeram mais pousados. Escobar veio abrindo a alma toda, desde a porta da rua até ao fundo do quintal. Escobar tornou-se símbolo de pessoa esperta e calculista. Esse poder simbólico aproxima-o mais do tipo ou personagem plana que da espécie esférica, apesar do mistério que sugere. É possível que Machado de Assis tenha se inspirado no jesuíta espanhol Manuel da Costa Escobar para criar a sua personagem. Aquele jesuíta tornou-se famoso no século XVIII pela astúcia em resolver casos difíceis de Direito Canônico, isto é, o direito que regula a disciplina da Igreja. Numa crônica de 1883, Machado de Assis refere-se, sob o pseudônimo de Lélio, a uma intrincada questão entre irmandades religiosas, sobre a qual comenta: Aí está o caso em que nem o mais fino Escobar era capaz de resolver...19

José Dias José Dias é o melhor e mais acabado exemplo de personagem típica em Dom Casmurro. Os tipos geralmente são personagens planas, mas José Dias apresenta uma ligeira curvatura rumo à esfericidade, pois possuía alguma sutileza de caráter: E não lhe suponhas alma subalterna; as cortesias que fizesse vinham antes do cálculo que da índole. José Dias era agregado em casa de Dona Glória desde os tempos em que ainda era vivo o deputado Pedro de Albuquerque Santiago, seu marido. Representa as pessoas que viviam de favor junto a famílias abastadas do Brasil imperial, mas que acabavam influindo em algumas decisões dessas famílias, como, de fato, acontece com José Dias em relação à família Santiago. Após o casamento de Bentinho, dividia-se entre os jantares do advogado na Glória e os almoços em Matacavalos. Era um charlatão arrependido (apresentara-se como médico homeopata sem o ser) e pode ser tomado como um dos grandes parasitas que freqüentam abundantemente a obra machadiana. 19

18

BARRETO FILHO. op. cit,. p. 194.

SISTEMA ANGLO DE ENSINO

• 77 •

GOMES, Eugênio. O Enigma de Capitu: ensaio de interpretação. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1967. p..116.

ANGLO VESTIBULARES

Sendo um tipo, José Dias pode também ser considerado uma personagem de costumes, na acepção que o crítico inglês setecentista Dr. Johnson atribuía à expressão. Os traços da personagem de costumes são fixados de fora, isto é, pelo aspecto físico, e tendem para a caricatura. Com freqüência são personagens pitorescas e engraçadas. Possuem sempre uma característica marcante pela qual são imediatamente identificadas.20 O traço decisivo na caracterização de José Dias é o uso constante dos adjetivos no grau superlativo. Com isso, pretendia impressionar os ouvintes. O texto em que Machado de Assis apresenta José Dias é uma obra-prima de concisão retratística. Trata-se do capítulo 4 de Dom Casmurro, intitulado ironicamente “Um dever amaríssimo!”, transcrito a seguir. O capítulo seguinte a este (“O agregado”) cuida ainda da figura de José Dias, historiando o seu passado e o primeiro contato dele com a família Santiago. Veja-se o capítulo 4, com a atenção voltada para a enorme perícia de Machado em produzir retratos-miniaturas com grande poder de expressão: José Dias amava os superlativos21. Era um modo de dar feição monumental às idéias; não as havendo, servir a prolongar as frases. Levantou-se para ir buscar o gamão22, que estava no interior da casa. Cosime muito à parede, e vi-o passar com as suas calças brancas engomadas, presilhas, rodaque23 e gravata de mola. Foi dos últimos que usaram presilhas no Rio de Janeiro, e talvez neste mundo. Trazia as calças curtas para que lhe ficassem bem esticadas. A gravata de cetim preto, com um aro de aço por dentro, imobilizava-lhe o pescoço; era então moda. O rodaque de chita, veste caseira e leve, parecia nele uma casaca de cerimônia. Era magro, chupado, com um princípio de calva; teria os seus cinqüenta e cinco anos. Levantou-se com o passo vagaroso do costume, não aquele vagar arrastado dos preguiçosos, mas um vagar calculado e deduzido, um silogismo24 completo, a premissa antes da conseqüência, a conseqüência antes da conclusão. Um dever amaríssimo!25 José Dias era uma espécie de pajem de Bentinho. Quando Dona Glória adoeceu, ele foi buscar o menino no seminário. No caminho de casa, informou que o estado da doente era gravíssimo. Benti20 21 22 23 24

25

Consultar CANDIDO, Antonio et. al. A personagem de ficção. 2ª ed. São Paulo, Perspectiva, 1970. p. 61. Superlativos: adjetivos com a significação elevada ao mais alto grau. Gamão: jogo de tabuleiro para duas pessoas. Rodaque: espécie de casaco leve. Silogismo: raciocínio da lógica formal. Parte de duas premissas ou hipóteses para chegar à conclusão ou conseqüência. José Dias andava metodicamente, como se estivesse desenvolvendo um silogismo.

nho desatou a chorar na rua, e José Dias teve de acalmá-lo, descrevendo o verdadeiro estado da paciente. Muitos anos depois, relembrando tal episódio da adolescência, o velho Bento comenta, no capítulo 67 de suas memórias (“Um pecado”): Vi depois que ele só queria dizer grave, mas o uso do superlativo faz a boca longa, e, por amor do período, José Dias fez crescer a minha tristeza. Se achares neste livro algum caso da mesma família, avisa-me, leitor, para que o emende na segunda edição; nada há mais feio que dar pernas longuíssimas a idéias brevíssimas. Embora muito disfarçadamente, José Dias expressava alguma convicção política. Tinha simpatia pelo liberalismo do regente Feijó e pelas inovações dos primeiros atos de Pio IX como papa26. Citava também Robespierre27.

Dona Glória Nome completo: Maria da Glória Fernandes Santiago, filha de uma senhora mineira, descendente de outra paulista. Dona Glória é mãe de Bentinho e viúva de Pedro de Albuquerque Santiago, que fora fazendeiro em Itaguaí — cidade em que se desenrola a trama de “O alienista” (em Papéis Avulsos, 1882) — e deputado no Rio de Janeiro. Dona Glória enviuvou quando Bentinho tinha 4 anos. Manteve-se fiel à memória do marido, ocultando a beleza e a juventude até quando pôde, com roupas austeras e muito trabalho caseiro. Dedicou-se inteiramente à educação de Bentinho, mimando-o tanto quanto possível. Estava com 42 anos quando José Dias cobrou-lhe a promessa de enviar o filho ao seminário. Ela chorou nessa ocasião. Dona Glória soube preservar a boa herança do marido, a qual foi, mais tarde, transferida ao filho. O Dr. Bento considera-a uma boa senhora. Mandou gravar no seu túmulo: uma santa. Capitu, aos 14 anos, considerava-a Beata! Carola! Papa-missas! Vista de fora, é uma mulher egoísta, superprotetora, pois tenta tomar o filho como instrumento de seu extremado sentimentalismo religioso. Trata-se de um fiel

26

Pio IX (Mastai Ferretti) foi papa de 1846 a 1878. Os seus primeiros atos como pontífice sustentavam um catolicismo liberal que ele não foi capaz de manter por muito tempo.

27

Robespierre (1758-1794): um dos principais líderes da Revolução Francesa em seu período do terror. Cognominado o incorruptível, levou muita gente ao cadafalso, mas acabou ele próprio guilhotinado. José Dias cita-o para demonstrar cultura geral e por ter uma inclinação reprimida pela idéia de renovação, razão pela qual era adepto da medicina homeopática. John Gledson, estudioso de Machado na Inglaterra, considera José Dias um liberal ressentido, em seu livro Machado de Assis: impostura e realismo (São Paulo, Companhia das Letras, 1991).

Amaríssimo: superlativo do adjetivo amargo.

SISTEMA ANGLO DE ENSINO

• 78 •

ANGLO VESTIBULARES

retrato da mulher oitocentista brasileira, com a particularidade de ser uma matriarca poderosa que pode ser entendida como uma alegoria de D. Pedro II. Ver, a esse respeito, o tópico Mundo exterior e a alegoria de Matacavalos. O Dr. Bento Santiago conserva na casa do Engenho Novo a velha foto dos pais quando jovens. Tal foto domina-o agora quase tanto quanto na infância, em Matacavalos. A relação de Bento e Dona Glória é meio freudiana, lembrando em alguns casos um possível complexo de Édipo. Bento nada sente ao saber, por alto e tardiamente, da morte de Capitu (cap. 145, “O regresso”). Quanto à da mãe, expressa profunda emoção. Ler o capítulo 141 (“A solução”) de Dom Casmurro. À proporção que Ezequiel crescia, Dona Glória passou a evitar a família do filho, afirma o velho Bento Santiago.

Tio Cosme Igualmente a Dona Glória e José Dias, é apresentado em uma vinheta (pequena gravura bem trabalhada para ilustrar livros manuscritos), no início do romance. Possui pouca importância na trama, funcionando mais como elemento caracterizador do matriarcado da viúva Glória, sua irmã. Trabalhava como advogado criminalista, cujo desempenho era muito elogiado por José Dias, que o ajudava no vestimento da toga e na cópia de papéis e autos. Tio Cosme, sendo muito gordo, tinha enorme dificuldade em montar a besta (presente de Dona Glória) que o levava diariamente ao escritório. Foi perspicaz o bastante para perceber que a irmã educava mal o filho. Vivia com ela desde a morte de sua mulher.

Prima Justina Viúva e quarentona, prima Justina fora morar com Dona Glória por servir e ser servida. Era dotada de uma franqueza um tanto rude, que parecia provir antes do ressentimento de não ser amada do que do amor à verdade: Dizia francamente a Pedro o mal que pensava de Paulo, e a Paulo o que pensava de Pedro. Talvez essa propriedade de caráter tenha algo a ver com o seu nome: Justina, derivado de justa. Mas isso não passava de uma pretensão. Não vivera bem com o marido, mas, depois de morto, ele tornou-se um santo homem em sua opinião. Julgava que Capitu era um pouco trêfega e olhava por baixo. Igualmente a José Dias, tinha ciúmes da menina. Quando estava à beira da morte, prima Justina fez questão de ver Ezequiel adulto, certamente para certificar-se da semelhança entre ele e Escobar, pensa o velho Bento Santiago.

SISTEMA ANGLO DE ENSINO

Quando, no capítulo 22 do romance (“Sensações alheias”), prima Justina percebe o amor de Bentinho por Capitu, os olhos dela gozam no adolescente as antigas sensações dos próprios amores: Só então senti que os olhos da prima Justina, quando eu falava, pareciam apalpar-me, ouvir-me, cheirar-me, gostar-me, fazer o ofício de todos os sentidos.

Manduca Manduca era um leproso que morava perto de Bentinho. Depois da morte do doente, Bento Santiago nos relata a polêmica (por cartas) que mantivera com ele, cujo corpo carcomido teve oportunidade de ver e parcialmente descrever. Em certa medida, o cuidado em sugerir as condições de suas carnes deterioradas e malcheirosas lembra as técnicas naturalistas. Mas Machado não extrapola o seu gosto próprio, evitando a descrição direta da fisiologia, tão cara aos naturalistas. Na verdade, ele apresenta Manduca pelo processo da preterição, que consiste em negar aquilo que sugere. Trata-se de uma de suas muitas formas de ironia. A polêmica de Bentinho com Manduca foi sobre a guerra da Criméia (1854-1856), península ao sul da Rússia, no Mar Negro. Os russos foram vencidos pelos aliados (Turquia, França, Inglaterra e Piemonte) em Sebastopol (na Ucrânia) e não conseguiram tomar Istambul (Constantinopla), conforme desejava o Czar Nicolau. Bentinho tomou o partido dos russos. Manduca defendia os aliados, concluindo sempre seus longos e ardorosos escritos pela mesma frase profética: Os russos não hão de entrar em Constantinopla! Manduca, por não ter alternativa de diversão, punha toda a alma na polêmica. Bentinho sentia-se bem em distrair o outro. Essa guerra, no romance, pode ser uma alusão alegórica à guerra do Brasil com o Paraguai, conforme sugere John Gledson.

Pádua João Pádua era marido de Dona Fortunata e pai de Capitu. Funcionário público modesto, teve dois lances de sorte na vida: serviu dois anos como administrador interino (substituto) e ganhou na loteria, com cujo dinheiro pôde comprar uma casa assobradada com duas janelas de frente, ao lado da de Dona Glória, também assobradada, mas com três janelas. A sua terceira grande sorte foi casar a filha com Bentinho, o vizinho rico. Pádua colecionava passarinhos e era gastador. José Dias não gostava dele e chamava-o de “Tartaruga”, devido a uma ligeira corcunda que tinha. Sua esposa era resoluta e era ela quem tomava as grandes decisões da família. No físico, Dona Fortunata também se parecia com Capitu: era robusta e de olhos claros.

• 79 •

ANGLO VESTIBULARES

Sancha Sancha tornou-se amiga de Capitu na escola. Casou-se com Escobar, depois do que a amizade entre ambas tornou-se mais forte. No capítulo 118 (“A mão de Sancha”), ela tem uma participação especial: numa reunião noturna em sua casa, trocou olhares de desejo sexual com Bentinho, em presença do marido. No fim da reunião, à despedida, expressou o mesmo desejo num aperto de mão especial. Tal é afirmado pelo velho Bento no mencionado capítulo. Mas no capítulo 120 (“Os autos”), ele mesmo afirma ao recompor as sensações da manhã seguinte que as abominações da véspera não passaram de alucinações. Nessa mesma manhã, Escobar morre no mar. Depois, Sancha muda-se com a filha (Capituzinha) para Curitiba, onde residia a família do falecido esposo. No capítulo 129 (“A D. Sancha”), ela se converte numa simples leitora das memórias do velho Dr. Bento Santiago.

Ezequiel Ezequiel Albuquerque de Santiago, quando criança, exerce no romance a mesma função do lenço posto por Iago no quarto de Desdêmona, na tragédia de Shakespeare, Otelo: a prova do adultério. Tal é a conclusão (parcialíssima) de Bento. Depois disso, o menino é arrastado para o internato. Mas Bento julga-o tão parecido com o falecido amigo que decide matá-lo. Por fim, envia-o com a mãe para a Suíça. Aos 25 anos, Ezequiel retorna ao Rio para conhecer o suposto pai. Igualmente a Bento, Ezequiel é obcecado pelo passado, razão pela qual se formara em arqueologia. Mesmo depois de adulto, Bento continua vendo nele a cópia de Escobar. Depois de um jantar amigável, o suposto pai concorda em financiar uma viagem do moço para o Oriente. Bento, entretanto, expressa o desejo íntimo de que ele morra de lepra por aquelas bandas. Com efeito, o jovem arqueólogo é vitimado por uma febre tifóide, sendo sepultado nas imediações de Jerusalém. Os companheiros de expedição gravaram-lhe no túmulo as seguintes palavras bíblicas: Tu eras perfeito nos teus caminhos, extraídas do profeta Ezequiel. Ao tomar conhecimento da inscrição, Dr. Bento consultou a Vulgata (versão latina da Bíblia) e descobriu que a frase completa era: Tu eras perfeito nos teus caminhos, desde o dia da tua criação. Pensando na segunda parte da frase, Bento pergunta: Quando seria o dia da criação de Ezequiel? Quando Ezequiel tinha 5 anos, possuía o hábito de imitar as pessoas, principalmente Escobar e José Dias. Nessa altura, este referia-se ao menino como O filho do homem, expressão da Bíblia referente ao profeta Ezequiel. José Dias dizia também que o filho de Capitu era a terceira geração, evocando o fato de haver servido ao pai e à avó da criança. John

SISTEMA ANGLO DE ENSINO

Gledson interpreta tal expressão como uma possível alusão ao terceiro reinado brasileiro, o da princesa Isabel, que não se cumpriu. Dom Casmurro declara que, no dia em que recebeu a notícia da morte de Ezequiel, jantou bem e foi ao teatro.

ESPAÇO DO ROMANCE Mundo interior Apesar daquelas referências ao pitoresco urbano carioca, Dom Casmurro é, dominantemente, um romance intimista, interiorizado ou introspectivo. Trata-se de uma narrativa que desloca o interesse do cenário e da ação exterior para o íntimo das personagens. Não é à toa que boa parte de sua fábula se constitui de impressões e suposições de Bento Santiago. Sendo um romance muito mais preocupado com o modo de ser das pessoas do que com o que possam fazer, Dom Casmurro secundariza o enredo convencional em favor da análise das atitudes e situações vivenciadas pelas personagens. Decididamente, não estamos diante de um romance de ação. Ao contrário, Dom Casmurro é, basicamente, um romance de personagem, ou seja, um romance que prioriza a investigação moral ou psicológica do protagonista (Bentinho) e de outras personagens (Capitu, Escobar). Pode-se afirmar também que Dom Casmurro possui algo do chamado romance de drama, quer dizer, foi escrito de maneira que a ação e as personagens se fundissem num só corpo indivisível. Em outros termos: o discurso de Bento unifica tudo na narrativa, de tal forma a se poder pensar que tanto a ação quanto as personagens não passam de projeções de seu universo psíquico.

Mundo exterior Os principais lances da ação de Dom Casmurro transcorrem no apogeu do Segundo Reinado, no Rio de Janeiro, entre 1857, quando Bentinho descobre que ama Capitu (cap. 3, “A denúncia”), e 1871, ano da morte de Escobar (cap. 122, “O enterro”). Bento redige suas memórias no final da década de 1890, aos 55 anos de idade. Embora não seja um romance de costumes, Dom Casmurro registra, com fidelidade e minudência, diversos aspectos da paisagem urbana oitocentista do Rio de Janeiro: o mendigo do passeio público, o passeio de coche do imperador, a procissão do Santíssimo Sacramento, o oratório no interior das famílias, a leitura de romances em voz alta — à noite — para um auditório familiar, as conversas e os olhares ao longo e depois da missa, etc. Tais elementos representam uma discreta filiação de Machado de Assis à tradição do romance urbano de Manuel Antônio de Almeida.

• 80 •

ANGLO VESTIBULARES

Mundo exterior e a alegoria de Matacavalos A casa de Bentinho em Matacavalos pode ser interpretada como uma espécie de microcosmo da sociedade do Segundo Reinado. Com efeito, pode-se mesmo falar em matriarcado da viúva Glória, cuja vontade determina, como a do imperador para o Brasil, a atitude de todas as pessoas que a cercam. Nesse sentido, a namorada pobre de Bentinho pode ser interpretada como uma postulante ao poder, pois o casamento a faria mudar de classe. Da mesma forma, José Dias seria um fino e habilidoso político, cioso por manter o equilíbrio na corda bamba de sua frágil condição social. Veja-se o final do capítulo 94 das memórias de Bento (“Idéias aritméticas”), como exemplo da noção de que o seu discurso funde tudo: ação e personagem, personagem e narrador, passado e presente, incidente e impressão: Escobar apertou-me a mão às escondidas, com tal força que ainda me doem os dedos. É ilusão, decerto, se não é efeito das longas horas que tenho estado a escrever sem parar. Suspendamos a pena por alguns instantes… Essa passagem demonstra, ainda, que Dom Casmurro não é apenas romance da reconstrução de uma vida. É também um discurso lírico sobre o passado, uma busca do tempo perdido, que incorpora igualmente as sensações ou impressões do presente. Da mesma forma, a passagem em foco rompe com a velha noção de verossimilhança romanesca em favor da prática de um texto mais livre, mais poético e fantasioso. Um texto que seja expressão de um ser em processo de conhecimento e não apenas cópia das coisas externas.

Tempo do romance O tempo pode assumir duas formas principais num romance: 1) tempo cronológico ou histórico, que é marcado pelo fluxo das horas no relógio ou dos dias no calendário. Contém idéia de noite, semana, mês, ano, estação, etc. Trata-se do tempo em sua acepção objetiva. Tal noção de tempo é essencial aos romances de ação, como O Guarani, de Alencar, por exemplo. 2) tempo psicológico ou duração interior, que são as pulsações subjetivas provocadas nas personagens pelo transcorrer do tempo histórico. Este é o tempo da memória, cujo fluxo varia de pessoa para pessoa e pode assumir as mais diversas configurações, pois transcorre no íntimo do indivíduo. Tal noção de tempo confunde-se com o escoar de nossos

SISTEMA ANGLO DE ENSINO

pensamentos, idéias e sensações fugazes. Aproximase do monólogo interior ou fluxo da consciência28. Dom Casmurro, como os demais romances maduros de Machado de Assis, prioriza o tempo psicológico, porque se trata de um romance escrito sob o signo da memória ou da evocação sugestiva. Nesse romance, há uma espécie de presentificação do passado, sem deixar de haver também uma interferência do presente no passado. Esta última hipótese se observa quando o velho Bento interpreta, reinterpreta ou retifica antigas ocorrências da infância, da adolescência e da maturidade. As passagens seguintes contêm exemplos explícitos de apelo ao tempo psicológico ou duração interior. Estes pequenos trechos demonstram o quanto Bento Santiago cultua a memória afetiva, na constante busca da sensação perdida, da vivência espiritual pretérita, que preenchem o vazio interior do presente. Tal força do passado sobre o presente confirma a ressonância impressionista no estilo de Dom Casmurro: Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios. (cap. 32, “Olhos de ressaca”)

Imagina um relógio que só tivesse pêndulo, sem mostrador, de maneira que não se vissem as horas escritas. O pêndulo iria de um lado para outro, mas nenhum sinal externo mostraria a marcha do tempo. Tal foi aquela semana na Tijuca. (cap. 102, “De casada”)

Já agora creio que não basta que os pregões de rua, como os opúsculos de seminário, encerrem casos, pessoas e sensações; é preciso que a gente os tenha conhecido e padecido no tempo, sem o que tudo é calado e incolor. (cap. 60, “Querido opúsculo!”)

A preferência pelo registro das impressões, pela exploração da memória e pela análise das emoções leva Bento Santiago a abreviar ironicamente inúmeras seqüências da fábula do romance, desdenhando em absoluto a ação externa e o tempo histórico na composição do texto. Vejam-se dois trechos em que tal se evidencia: 28

• 81 •

Monólogo interior é tradução da expressão inglesa stream of consciouness, também conhecida por fluxo da consciência. Trata-se da manifestação verbal das idéias fugazes do espírito humano. O fluxo da consciência manifesta-se mais freqüentemente através do discurso indireto livre. O monólogo interior propriamente dito rompe com os padrões lógicos da linguagem e procura expressar o caos do inconsciente das personagens.

ANGLO VESTIBULARES

Aqui devia ser o meio do livro, mas a inexperiência fez-me ir atrás da pena, e chego quase no fim do papel, com o melhor da narração por dizer. Agora não há mais que levá-la a grandes pernadas, capítulo sobre capítulo, pouca emenda, pouca reflexão, tudo em resumo. Já esta página vale por meses, outras valerão por anos, e assim chegaremos ao fim. (cap. 97, “A saída”)

Ezequiel, quando começou o capítulo anterior, não era ainda gerado; quando acabou era cristão e católico. Este outro é destinado a fazer chegar o meu Ezequiel aos cinco anos, um rapagão bonito, com os seus olhos claros, já inquietos, como se quisessem namorar todas as moças da vizinhança, ou quase todas. (cap. 109, “Um filho único”)

Estas passagens demonstram também que Dom Casmurro não deixa de ser um anti-romance, isto é, aquele tipo de romance que rompe com o verismo da ficção tradicional e mostra (como nos exemplos acima) os componentes técnicos da composição da própria obra. O anti-romance conversa com o leitor. É como se dissesse: olha, isto aqui não é cópia verdadeira da vida, é apenas um discurso artístico e inventivo sobre ela. Todo anti-romance é também um romance poético, porque pretende ser mais apreciado pela arte da escrita do que pelos acontecimentos do enredo. Com efeito, a escrita artística de Machado é uma das muitas razões pelas quais Dom Casmurro deve ser considerado um dos textos mais atuais de toda a literatura americana.

LEITURA I — Do título Neste capítulo, o narrador Bento Santiago explica o motivo pelo qual chamou Dom Casmurro ao seu livro. Daí o capítulo denominar-se “Do título”, que quer dizer sobre o título. O nome do livro e todo o capítulo indicam tratar-se de um romance de personagem, isto é, um romance cujo principal interesse é analisar o caráter da personagem que dá título ao livro, o protagonista, que, no caso, é também o narrador. Bento apresenta-se meio narciso nessa abertura, mas nos próximos capítulos desvia a atenção de si para a reconstituição da personalidade de sua falecida esposa, Capitu. Mas, em tudo que afirma dela, revela indiretamente o seu próprio caráter. A releitura cuidadosa desse primeiro capítulo de Dom Casmurro deve conduzir-nos às seguintes conclusões: a) o narrador procura transmitir uma imagem urbana e civilizada de si mesmo; esforça-se por nascer normal; enquanto a análise do livro como um to-

SISTEMA ANGLO DE ENSINO

do demonstra que ele não soube conviver nem com a esposa nem consigo mesmo; b) o narrador é enganoso, pois procura convencer o leitor (e talvez a si próprio) de algo que sabe não ser seguro nem indiscutível; c) o último parágrafo do capítulo instaura um processo narrativo dialógico que persiste até o fim do livro, isto é, a narrativa é apresentada sob a forma de um diálogo simulado com um suposto leitor que se faz presente em todo o livro: não consultes dicionários; trata-se, neste caso, apenas de uma alusão ao destinatário, que às vezes se transforma em leitor incluso, conforme ficou explicado no início deste estudo; d) neste capítulo predominam as propriedades clássicas do estilo machadiano: clareza, concisão, simplicidade, harmonia de linguagem; em outros, aparecerão propriedades contrárias a essas; e) nos dois últimos parágrafos do capítulo anuncia-se a ironia humorística, que se mesclará com a atmosfera trágica do romance; f) o capítulo pode ser tomado como um preâmbulo metalingüístico, isto é, uma introdução em que o assunto é o próprio livro; a história (narrativa, fábula) começará apenas no capítulo 3. Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu29. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim30, falou da lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes31; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso. — Continue, disse eu acordando. — Já acabei, murmurou ele. — São muito bonitos. Vi-lhe32 fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos reclusos33 e calados, deram curso à alcunha34, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes: “Dom Casmurro, domingo vou jantar com você”. — 29

30 31 32 33 34

• 82 •

De chapéu: de cumprimento. Até uns cinqüenta anos atrás as pessoas se cumprimentavam com um ligeiro movimento de chapéu. Ao pé de mim: perto de mim, ao meu lado. Expressão lusitana. Fechei os olhos três ou quatro vezes: primeiro índice (sinal) de que o narrador é idoso, pois cochilava com facilidade. Vi-lhe: a construção mais usual seria vi-o. Reclusos: fechados, próprios de quem vive em convento, clausura ou prisão. Deram curso à alcunha: propagaram o apelido.

ANGLO VESTIBULARES

“Vou para Petrópolis, Dom Casmurro; a casa é a mesma da Renânia35; vê se deixas essa caverna do Engenho Novo, e vai lá passar uns quinze dias comigo.” — “Meu caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do teatro amanhã; venha e dormirá aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama; só não lhe dou moça.” Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo.36 Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos37 de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei 38 melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até ao fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto.39

(assunto recorrente) de A Ilustre Casa de Ramires, romance de Eça de Queirós, em que o protagonista (Gonçalo Mendes Ramires) só se reorganiza moral, psicológica e economicamente depois de restaurar, pela escrita, a história dos antepassados. O mesmo motivo reaparece num famoso conto do escritor americano Edgar Allan Poe (1809-1849) “A queda da casa de Usher” (The fall of the house of Usher), no qual a extinção de uma família tradicional é simbolizada pelo desmoronamento físico da mansão em que se criaram as gerações da família.

II — Do livro Este capítulo forma, com o anterior, o preâmbulo metalingüístico de Dom Casmurro, porque o seu assunto é ainda o livro (a linguagem) e não a história ou narrativa. “Do livro” quer dizer sobre o livro. Aqui, apresentam-se as razões pelas quais o Dr. Bento de Albuquerque Santiago resolveu escrever uma autobiografia. Ele diz que foi para se distrair, mas devemos entender que foi para se conhecer. Este capítulo evidencia sobretudo o caráter enganoso da escrita de Bento: ele sente uma coisa e escreve outra. Tal é um dos elementos essenciais do procedimento irônico. As notas ao texto do capítulo procurarão revelar as segundas intenções desse texto simples na aparência e tão complexo na essência. Porém, antes de tentar recompor a própria vida, Bento Santiago mandou reconstruir na velhice a casa em que foi criado. Nesse sentido, a reconstrução da casa é uma metáfora ou alegoria da restauração da família e do indivíduo que se perdeu ao sentir a destruição de sua linhagem. Tal pormenor temático de Dom Casmurro lembra uma tópica 35

36

37 38

39

Renânia: No texto, designa uma rua de Petrópolis, cidade criada por D. Pedro II, para as férias de verão da elite imperial. Fica a 68 km do Rio de Janeiro. Casmurro: além de pessoa calada e metida consigo, os dicionários registram o sentido de teimoso, obstinado, cabeçudo. Notar que Bento procura ocultar essas propriedades que o poeta do trem pode ter querido lhe atribuir. Afinal, este entrou (começou) a dizer nomes feios de Bento. O xingamento pode ter ido além do que Bento sugere. Fumos: fumaças. No texto, está por ares, atmosfera, aparência. Também não achei…: aqui, até o fim do capítulo, predomina a função metalingüística da comunicação verbal, isto é, o texto fala sobre si mesmo. E com pequeno… Há livros… esses dois períodos são mais que irônicos, são quase humorísticos. Insinuam que há autores que plagiam tudo quanto dizem seus livros.

SISTEMA ANGLO DE ENSINO

Páginas de rosto da 1ª- edição de Dom Casmurro. Fonte: SOUZA, J. Galante de. Bibliografia de Machado de Assis. Rio de Jaaneiro, INL, 1955. s.p.

Agora que expliquei o título,40 passo a escrever o livro. Antes disso, porém, digamos os motivos que me põem a pena na mão. Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria; fila construir de propósito, levado de um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, há bastante anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei41 na antiga Rua de Matacavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia42 daquela outra, que desapareceu. Construtor e pintor en40

41

42

• 83 •

Agora que expliquei o título…: recuperação da função metalingüística do capítulo anterior. A organização expositiva da narrativa de Bento nestes dois capítulos revela domínio na arte da disposição da matéria escrita, o que indica sua formação e prática de advogado. Reproduzir […] a casa em que me criei: atitute anormal, quase patológica, essa de reproduzir nos anos 1890 uma casa com estilo e modelo dos anos 1830. Bento procura apresentar tal esquisitice apenas como um desejo particular, pelo qual faz questão de declarar que sente um certo constrangimento, como forma de sugerir que sua esquisitice é voluntária. Tal desejo revela também o nível socioeconômico do narrador. Economia: disposição dos cômodos.

ANGLO VESTIBULARES

tenderam bem as indicações que lhes fiz: é o mesmo prédio assobradado, três janelas de frente, varanda ao fundo, as mesmas alcovas e salas. Na principal destas, a pintura do teto e das paredes é mais ou menos igual, umas grinaldas de flores miúdas e grandes pássaros que as tomam nos bicos, de espaço a espaço. Nos quatro cantos do teto as figuras das estações, e ao centro das paredes os medalhões de César43, Augusto44, Nero45 e Massinissa46, com os nomes por baixo… Não alcanço a razão de tais personagens. Quando fomos para a casa de Matacavalos, já ela estava assim decorada; vinha do decênio anterior. Naturalmente era gosto do tempo meter sabor clássico e figuras antigas em pinturas americanas47. O mais é também análogo e parecido. Tenho chacarinha, flores, legume, uma casuarina48, um poço e lavadouro. Uso louça velha e mobília velha. Enfim, agora, como outrora, há aqui o mesmo contraste da vida interior, que é pacata, com a exterior, que é ruidosa. O meu fim evidente49 era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui50. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só

43

44

45

46

47 48 49

50

César: Júlio César (100-44 a.C.), general romano que conquistou as Gálias, tendo escrito um livro clássico da prosa latina, os Comentários sobre a guerra aos gauleses (Commentarii de bello gallico). Morreu apunhalado pelo filho adotivo, Brutus, em pleno senado. No capítulo 31 de Dom Casmurro (“As curiosidades de Capitu”), a menina interroga José Dias sobre o significado dos medalhões. José Dias empolga-se com Júlio César, e Capitu espanta-se diante do fato de ele ter sido Um homem que podia tudo! que fazia tudo! Augusto: Otávio Augusto (63 a.C. – 44 d.C.). Iniciou a era dos imperadores em Roma. Auxiliado por Agripa e Mecenas, deu grande avanço às artes. O século em que viveu ficou sendo chamado o Século de Augusto, reconhecido como o período áureo da cultura latina. Nero: Lúcio Domício Nero Cláudio (37-68 d.C.) governou Roma entre 54 e 68 d.C. Embora fosse educado pelo grande filósofo Sêneca, notabilizou-se por sua crueldade: matou a própria mãe e duas esposas, perseguiu os cristãos e foi acusado de incendiar Roma. Massinissa (238-148 a.C.): rei da Numídia, região da África antiga. A princípio foi contra os romanos em sua expansão pela África. Depois, na segunda guerra púnica (218-202 a.C.), aliou-se a eles contra Cartago. Como aliado dependente, foi obrigado pelos romanos a envenenar a própria esposa, de origem sudanesa. No capítulo 145 de Dom Casmurro (“O regresso”), Ezequiel, já adulto, é surpreendido pelo Velho Bento a contemplar o busto de Massinissa na sala da casa do Engenho Novo. Todos os medalhões ocultam significados sutis no romance; tais personagens históricas estão ligadas a eventos que envolvem traição; a figura de Massinissa, em especial, pode ser uma alegoria de certas alianças políticas do período regencial brasileiro. Pinturas americanas: os pássaros, as grinaldas de flores e as figuras das estações. Casuarina: árvore que geme quando bate o vento. O meu fim evidente…: inicia-se aí um parágrafo de grande intensidade poética, em que Bento se revela quase inteiramente. Reler com atenção. O que foi: o que aconteceu; o que fui: minha participação no que sucedeu, minha essência no que aconteceu. Trocadilho de grande força expressiva e significativa.

SISTEMA ANGLO DE ENSINO

me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.51 O que aqui está é, mal comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias52; o interno não agüenta tinta. Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos-santos.53 Quanto às amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas crêem na mocidade. Duas ou três fariam crer nela aos outros54, mas a língua que falam obriga muita vez a consultar os dicionários, e tal freqüência é cansativa55. Entretanto, vida diferente não quer dizer vida pior; é outra coisa. A certos respeitos, aquela vida antiga aparece-me despida de muitos encantos que lhe achei; mas é também exato que perdeu muito espinho que a fez molesta, e, de memória, conservo alguma recordação doce e feiticeira. Em verdade, pouco apareço e menos falo56. Distrações raras. O mais do tempo é gasto em hortar, jardinar e ler; como bem e não durmo mal. Ora, como tudo cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me também. Quis variar,57 e lembrou-me escrever um livro. Jurisprudência, filosofia e política acudiram-me, mas não me acudiram as forças necessárias. 51

52 53

54

55

56

57

• 84 •

Se só me faltassem os outros, vá; […] e esta lacuna é tudo: chave para o entendimento da perda de identidade de Bento. Consolava-se da perda de toda a família e amigos, mas não se conformava com o desencontro consigo mesmo. Nas linhas seguintes ele prossegue dizendo que a aparência das pessoas pode ser alterada, mas nunca a essência. Autópsias: etimologicamente, quer dizer auto-análise, que é a pista mais certa para se interpretar Dom Casmurro. Os amigos que […] campos-santos: trata-se de uma perífrase irônica e eufemística. Os amigos antigos morreram, estão nas covas (estudando geologia) dos cemitérios (campos-santos). Duas ou três […] aos outros: algumas amigas, embora velhas, fariam algumas pessoas crerem na mocidade, pelos artifícios da maquilagem e outros cuidados. Mas a língua que falam […] e tal freqüência é cansativa: embora algumas amigas idosas enganem pelo disfarce da aparência jovem, suas palavras traem a idade, porque pela linguagem se revela a alma, a essência das pessoas. A idéia de consultar os dicionários é irônica. Pretende revelar que uma alma jovem não se comunica bem com outra idosa. Pouco apareço e menos falo: Bento é um misantropo, cuja solidão ele nos apresenta como voluntária e normal, mas que pode decorrer de uma aversão doentia ao convívio social. Mas o seu discurso procura seduzir o leitor pela exibição de um falso equilíbrio psicológico. Mais uma vez mostra-se enganoso. Quis variar: depois de tentar “restaurar na velhice a adolescência” com a reconstrução da casa de Matacavalos, Bento alega como motivo de sua autobiografia a superficial quebra da monotonia. Ora, sabe-se, pela análise do livro, que as razões pelas quais Bento escreve são muito mais complexas. A idéia de escrever para espairecer é um índice do interesse do narrador em parecer normal e seduzir o leitor para que acredite no que vai ser narrado ao longo do livro. É índice também da perícia retórica do advogado Bento.

ANGLO VESTIBULARES

Depois, pensei em fazer uma História dos Subúrbios, menos seca que as memórias do padre Luís Gonçalves dos Santos58, relativas à cidade; era obra modesta, mas exigia documentos e datas, como preliminares, tudo árido e longo. Foi então que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse alguns. Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o do Fausto59: Ai vindes outra vez, inquietas sombras…? Fiquei tão alegre com esta idéia, que ainda agora me treme a pena na mão. Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande César, que me incitas a fazer os meus comentários,60 agradeço-vos o conselho, e vou deitar ao papel as reminiscências que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que vivi, e assentarei a mão61 para alguma obra de maior tomo62. Eia, comecemos a evocação por uma célebre tarde de novembro, que nunca me esqueceu. Tive outras muitas, melhores, e piores, mas aquela nunca se me apagou do espírito. É o que vais entender, lendo.63

III — A denúncia O terceiro capítulo de Dom Casmurro contém a situação inicial da fábula propriamente dita: Bentinho está apaixonado, mas deverá ser enviado para o seminário. O termo denúncia do título do capítulo possui duas direções: José Dias acusa a Dona Glória o namoro de Bentinho e Capitu, ao mesmo tempo que faz com que este tome consciência de seu amor pela vizinha. A estrutura desse capítulo é basicamente dramática, isto é, aproxima-se muito do teatro. Por isso, predomina o diálogo em todo o texto. Os dois capítulos anteriores eram mais narrativos (sobretudo o 58

Luís Gonçalves dos Santos (1767-1844): cônego da capela imperial. Homem culto, versado em línguas e história, lutou pela independência do Brasil. O Dicionário bibliográfico brasileiro, de S. Blake, na relação de obras do cônego, omite esta referida por Bentinho. 59 Fausto: obra-prima de Goethe (1749-1832), cuja personagem central, o sábio e mago Dr. Fausto, entrega a alma ao demônio, Mefistófeles, em troca de juventude e prazeres. Com o pacto, Fausto passa a ter poderes de invocar a imagem dos mortos. Nessa passagem, Bento equipara-se ironicamente a Fausto, porque irá também ressuscitar, em sua narrativa , as sombras de pessoas mortas. 60 César, que me incitas a fazer os meus comentários: alusão irônica à obra-prima de Júlio César, Commentarii de bello gallico, cuja qualidade é sempre comparada com a de Cícero, que praticou a oratória. 61 Assentarei a mão: exercitarei a pena. 62 Maior tomo: maior vulto, maior tamanho e importância. 63 É o que vais entender, lendo: nova alusão ao leitor, que ainda não é propriamente o leitor incluso. Trata-se, aqui, de apenas um aceno ao destinatário da narrativa (narratário).

SISTEMA ANGLO DE ENSINO

primeiro) e mais dissertativos (sobretudo o segundo). O terceiro rompe com aquele ritmo meio lento dos anteriores e agiliza subitamente o romance, colocando com clareza e precisão o problema central da fábula. Mostra quase todas as personagens do romance em plena atividade, sem sequer as ter mencionado antes. Se os capítulos anteriores eram escritos e bem pensados, este é genialmente bem escolhido, extremamente dinâmico e muito econômico em seus termos, pois temos noção da psicologia de todas as personagens que participam do diálogo através de suas próprias falas e não através do narrador. O narrador aqui é uma espécie de bisbilhoteiro que registra com alguma objetividade o que vislumbra de seu esconderijo no corredor que conduz para a sala central da casa de Matacavalos. A passagem súbita da atmosfera reflexiva dos capítulos precedentes para o tom demonstrativo, de representação teatral desse terceiro capítulo indica o quanto Machado de Assis sabia da eficácia da mistura dos gêneros literários como elemento modernizador de um texto. Quer dizer: aqui a técnica narrativa do romance se mistura com a técnica demonstrativa do teatro. Nos capítulos seguintes, Machado adota a técnica das vinhetas (retratos em miniatura), apresentando o passado de todas as personagens que tomaram parte na cena de “A denúncia”. Ia entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir o meu nome e escondi-me atrás da porta. A casa era a da Rua de Matacavalos, o mês novembro, o ano é que é um tanto remoto, mas eu não hei de trocar as datas à minha vida só para agradar às pessoas que não amam histórias velhas; o ano era de 1857. — Dona Glória, a senhora persiste na idéia de meter o nosso Bentinho64 no seminário? É mais que tempo, e já agora pode haver uma dificuldade. — Que dificuldade? — Uma grande dificuldade. Minha mãe quis saber o que era. José Dias, depois de alguns instantes de concentração, veio ver se havia alguém no corredor; não deu por mim, voltou e, abafando a voz, disse que a dificuldade estava na casa ao pé65, a gente do Pádua. — A gente do Pádua? — Há algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia. Não me parece bonito que o nosso Bentinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaruga66, e esta é a dificuldade, porque se eles pegam de namoro, a senhora terá muito que lutar para separá-los. 64

65 66

• 85 •

O nosso Bentinho: pronome possessivo diante do substantivo indica afetação e sujeição de José Dias. Na casa ao pé: na casa ao lado (lusitanismo). Tartaruga: apelido de Pádua dado por José Dias.

ANGLO VESTIBULARES

— Não acho. Metidos nos cantos? — É um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Bentinho quase que não sai de lá. A pequena é uma desmiolada; o pai faz que não vê; tomara ele que as coisas corressem de maneira, que… Compreendo o seu gesto; a senhora não crê em tais cálculos, parece-lhe que todos têm a alma cândida… — Mas, Sr. José Dias, tenho visto os pequenos brincando, e nunca vi nada que faça desconfiar. Basta a idade; Bentinho mal tem quinze anos. Capitu fez quatorze à semana passada; são dois criançolas. Não se esqueça que foram criados juntos, desde aquela grande enchente, há dez anos, em que a família Pádua perdeu tanta coisa; daí vieram as nossas relações. Pois eu hei de crer…? Mano Cosme, você que acha? Tio Cosme respondeu com um “Ora!” que, traduzido em vulgar, queria dizer: “São imaginações do José Dias; os pequenos divertem-se, eu divirto-me; onde está o gamão67?” — Sim, creio que o senhor está enganado. — Pode ser, minha senhora. Oxalá tenham razão; mas creia que não falei senão depois de muito examinar… — Em todo caso, vai sendo tempo, interrompeu minha mãe; vou tratar de metê-lo no seminário quanto antes. — Bem, uma vez que não perdeu a idéia de o fazer padre, tem-se ganho o principal. Bentinho há de satisfazer os desejos de sua mãe. E depois a igreja brasileira tem altos destinos. Não esqueçamos que um bispo presidiu a Constituinte, e que o padre Feijó68 governou o império… — Governou como a cara dele! atalhou tio Cosme, cedendo a antigos rancores políticos. — Perdão, doutor, não estou defendendo ninguém, estou citando. O que eu quero é dizer que o clero ainda tem grande papel no Brasil. — Você o que quer é um capote69; ande, vá buscar o gamão. Quanto ao pequeno, se tem de ser padre, realmente é melhor que não comece a dizer missa atrás das portas. Mas, olhe cá, mana Glória, há mesmo necessidade de fazê-lo padre? — É promessa, há de cumprir-se. — Sei que você fez promessa… mas, uma promessa assim… não sei… Creio que, bem pensado… Você que acha, prima Justina? 67 68

69

Gamão: jogo de tabuleiro para duas pessoas. Tio Cosme era fã desse jogo. Feijó: Diogo Antônio Feijó (1784-1843), eclesiástico e político brasileiro. Ministro da Justiça em 1831, reprimiu severamente movimentos revoltosos desse período agitado do Império brasileiro (Regência). Em 1835, foi eleito regente do Império. Combatido pelos conservadores, abdicou em 1837. Tomou parte na revolta popular de Sorocaba. Capote: dar capote: vencer no jogo pelo dobro ou mais do dobro dos pontos alcançados pelo adversário. Dar uma “surra”.

SISTEMA ANGLO DE ENSINO

— Eu? — Verdade é que cada um sabe melhor de si,70 continuou tio Cosme; Deus é que sabe de todos. Contudo, uma promessa de tantos anos… Mas, que é isso, mana Glória? Está chorando? Ora esta! Pois isto é coisa de lágrimas? Minha mãe assoou-se sem responder. Prima Justina creio que se levantou e foi ter com ela. Seguiu-se um alto silêncio, durante o qual estive a pique de entrar na sala, mas outra força maior, outra emoção… Não pude ouvir as palavras que tio Cosme entrou a dizer. Prima Justina exortava: “Prima Glória! prima Glória!”. José Dias desculpava-se: “Se soubesse, não teria falado, mas falei pela veneração, pela estima, pelo afeto, para cumprir um dever amargo, um dever amaríssimo71…”.

LEITURA E EXERC´I CIOS 1. (FUVEST-97) Com essa história enjoada de traiu ou não traiu, de Capitu ser anjo ou demônio, o leitor de Dom Casmurro acaba se esquecendo do fundamental: as memórias são do velho narrador, não da mulher, e o autor é Machado de Assis, e não um escritor romântico dividido entre mistérios. Aceitas as observações acima, o leitor de Dom Casmurro deverá a) identificar o ponto de vista de Capitu, considerando ainda o universo próprio da ficção naturalista. b) reconhecer os limites do tipo de narrador adotado, subordinando-o ao peculiar universo de valores do autor. c) aceitar os juízos do velho narrador, por meio de quem se representa a índole confessional de Machado de Assis. d) rejeitar as acusações do jovem Bentinho, preferindo-lhes a relativização promovida pelo velho narrador. e) relativizar o ponto de vista da narração, cuja ambigüidade se deve à personalidade oblíqua de Capitu. 2. (PUCCamp-SP) Assinale a alternativa em que se analisam corretamente os conceitos de Realismo e Naturalismo. a) São caminhos antagônicos, esteticamente falando. O primeiro deriva do segundo, mas a ele se opõe quando retoma atitudes de estilo e ideologias que marcavam o Romantismo. b) No Realismo, importa sobretudo a realidade urbana, com os tipos burgueses dominando a cena; no Naturalismo, importa a Natureza, a vida simples e bucólica do campo. 70 71

• 86 •

Verdade é que cada um sabe melhor de si: tio Cosme está insinuando a maledicência de prima Justina. Amaríssimo: primeiro superlativo usado por José Dias no romance. Virão muitos outros.

ANGLO VESTIBULARES

c) São termos equivalentes, já que se referem ao mesmo fenômeno ou tendência artística: expressão subjetiva da realidade, captada nos detalhes que mais estimulam a imaginação. d) Realismo é um conceito genérico, denotando sobretudo uma reação anti-romântica e compromisso com a objetividade; Naturalismo é uma particularização científica e determinista do Realismo. e) São termos que se excluem: as idéias realistas defendiam o progresso do pensamento e as conquistas sociais; as idéias naturalistas tinham como base a nostalgia e a conservação de valores do passado.

taram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã. 3. Quanto à trama narrativa que envolve os dois trechos, podemos afirmar que: a) as lágrimas de Virgília e de Capitu são provocadas pelo mesmo motivo familiar. b) Virgília e Capitu se encontram em idêntica condição de viuvez. c) os dois trechos são mórbidos porque o desespero de Capitu é igual ao de Virgília. d) os narradores têm a mesma relação conjugal em ambas as narrativas. e) o choro de Virgília causa certeza, o de Capitu, uma suspeita.

(PUC-SP) Textos para os exercícios de 3 a 6:

Texto A No momento em que eu terminava o meu movimento de rotação, concluía Lobo Neves o seu movimento de translação. Morria com o pé na escada ministerial. Correu, ao menos durante algumas semanas, que ele ia ser ministro; e que pois o boato me encheu de muita irritação e inveja, não é impossível que a notícia da morte me deixasse alguma tranqüilidade, alívio, e um ou dois minutos de prazer. Prazer é muito, mas é verdade; juro aos séculos que é a pura verdade. Fui ao enterro. Na sala mortuária achei Virgília, ao pé do féretro a soluçar. Quando levantou a cabeça, vi que chorava deveras. Ao sair o enterro, abraçou-se ao caixão, aflita; vieram tirá-la e levá-la para dentro. Digo-vos que as lágrimas eram verdadeiras. Eu fui ao cemitério; e, para dizer tudo, não tinha muita vontade de falar; levava uma pedra na garganta ou na consciência. No cemitério, principalmente quando deixei cair a pá de cal sobre o caixão, no fundo da cova, o baque surdo da cal deu-me um estremecimento passageiro, é certo, mas desagradável; e depois a tarde tinha o peso e a cor do chumbo; o cemitério, as roupas pretas…

Texto B Enfim, chegou a hora da encomendação e da partida. Sancha quis despedir-se do marido, e o desespero daquele lance consternou a todos. Muitos homens choravam também, as mulheres todas. Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas. As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece que a tinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fi-

SISTEMA ANGLO DE ENSINO

4. No confronto, ainda, dos dois trechos, podemos afirmar que a criação de atmosfera emotiva diante do morto é: a) mais dramática no trecho A e a narrativa é mais diluída. b) menos intensa no trecho B onde a narrativa é mais densa. c) igual em ambos os trechos, visto que as emoções humanas são iguais. d) moderada no trecho A e intensificada no trecho B. e) igualmente insignificante porque o autor dos trechos é o mesmo. 5. O narrador do trecho B é: a) Dom Casmurro e se marca pelo ponto de vista de terceira pessoa. b) Brás Cubas e se caracteriza pela onisciência. c) o mesmo do trecho A e controla a impressão do leitor sobre o todo da obra. d) Bentinho e se marca pelo ponto de vista de primeira pessoa. e) Machado de Assis e delineia seu mundo com a pena da galhofa e a tinta da melancolia. 6. A referência aos olhos de Capitu, “grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã”, permite afirmar que eram: a) olhos de primavera. b) olhos de espanto. c) olhos de desespero. d) olhos de contemplação. e) olhos de ressaca. 7. (FATEC) Tudo o que contei no fim do outro capítulo foi obra de um instante. O que se lhe seguiu foi ainda mais rápido. Dei um pulo, e antes que ela raspasse o muro, li estes dois nomes, abertos ao prego, e assim dispostos:

• 87 •

ANGLO VESTIBULARES

BENTO CAPITOLINA Voltei-me para ela; Capitu tinha os olhos no chão. Ergueu-os logo, devagar, e ficamos a olhar um para o outro… Confissão de crianças, tu valias bem duas ou três páginas, mas quero ser poupado. Em verdade, não falamos nada; o muro falou por nós. Não nos movemos, as mãos é que se estenderam pouco a pouco, todas quatro, pegando-se, apertando-se, fundindo-se. Não marquei a hora exata daquele gesto. Devia tê-la marcado; sinto a falta de uma nota escrita naquela mesma noite, e que eu poria aqui com os erros de ortografia que trouxesse, mas não traria nenhum, tal era a diferença entre o estudante e o adolescente. Conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar; tinha orgias de latim e era virgem de mulheres. Assinale a alternativa que corresponda ao autor, à obra e à época do texto acima. a) José de Alencar — Senhora — Romantismo b) Júlio Ribeiro — A carne — Naturalismo c) Raul Pompéia — O Ateneu — Realismo d) Machado de Assis — Dom Casmurro — Realismo e) Joaquim Manuel de Macedo — A Moreninha — Romantismo (UnB-DF) Texto para os exercícios de 8 a 10. D. Glória Minha mãe era boa criatura. Quando lhe morreu o marido, Pedro de Albuquerque Santiago, contava trinta e um anos de idade, e podia voltar para Itaguaí. Não quis, preferiu ficar perto da igreja em que meu pai fora sepultado. Vendeu a fazendola e os escravos, comprou alguns que pôs ao ganho ou alugou, uma dúzia de prédios, certo número de apólices, e deixou-se estar na casa de Matacavalos, onde vivera os dois últimos anos de casada. Era filha de uma senhora mineira, descendente de outra paulista, a família Fernandes. Ora, pois, naquele ano da graça de 1857, D. Maria da Glória Fernandes Santiago contava quarenta e dois anos de idade. Era ainda bonita e moça, mas teimava em esconder os saldos da juventude, por mais que a natureza quisesse preservá-la da ação do tempo. Vivia metida em um eterno vestido escuro, sem adornos, com um xale preto, dobrado em triângulo e abrochado ao peito por um camafeu. Os cabelos, em bandós, eram apanhados sobre a nuca por um velho pente de tartaruga; alguma vez trazia touca branca de folhos. Lidava assim, com os seus sapatos de cordovão rasos e surrados, a um lado e outro, vendo e guiando os serviços todos da casa inteira, desde manhã até à noite. (Machado de Assis, Dom Casmurro)

SISTEMA ANGLO DE ENSINO

8. Todas as seguintes afirmativas sobre o texto de Machado de Assis estão corretas, exceto: a) Trata-se de um texto onde se alternam narração e descrição. b) Estão implícitos no texto aspectos da realidade socioeconômica da época descrita. c) O narrador apresenta a personagem de maneira irônica, ressaltando aspectos ridículos de sua indumentária. d) O emprego constante de verbos no imperfeito do indicativo confere ao texto certo tom memorialista que, de resto, predomina no romance de que foi extraído. 9. No primeiro parágrafo do texto, a idéia central é: a) “preferiu ficar perto da igreja em que meu pai fora sepultado”. b) “deixou-se estar na casa de Matacavalos, onde vivera os dois últimos anos de casada”. c) “era filha de uma senhora mineira, descendente de outra paulista, a família Fernandes”. d) “minha mãe era boa criatura”. 10. As características fundamentais ressaltadas pelo narrador na personagem D. Glória são: a) sua idade e ascendência. b) sua beleza física e elegância. c) sua bondade e caridade. d) sua modéstia e dedicação. 11. (ITA-SP) As afirmações abaixo referem-se à obra Dom Casmurro. Apenas uma delas é incorreta. Assinale-a: a) Quanto ao foco narrativo, o “eu” do narrador se identifica com a personagem central do romance, transformando-se numa espécie de diário íntimo da personagem Bentinho. b) Bentinho constitui a personagem que primordialmente realiza a função emotiva ou expressiva, pois o foco narrativo vem de Bentinho e dele derivam os sentimentos, as idéias e as sensações com relação às personagens que com ele entram diretamente em contato: Capitu, Dona Glória, José Dias, Escobar, Ezequiel. c) Machado de Assis, deslocando o foco narrativo para o narrador-protagonista, adota uma atitude que, aparentemente, retira do autor do romance a responsabilidade pelo que está sendo relatado. Ele como que se isenta da culpa do que ali vai sendo narrado, pois é a personagem Bentinho quem fala diretamente ao leitor. d) A ação é essencialmente psicológica e limitase ao processo da conquista realizada por Capitu e à conseqüente queda e destruição interior de Bentinho. e) A ação desenvolve-se em torno das tentativas de uma explicação do adultério cometido por Capitu, e esta dúvida é dirimida ao leitor no final do romance.

• 88 •

ANGLO VESTIBULARES

12. (PUCCamp-SP) Identifique o trecho em que o narrador de Dom Casmurro introduz o romance e considera seu sentido profundo. a) “Horas inteiras eu fico a pintar o retrato dessa mãe angélica, com as cores que tiro da imaginação, e vejo-a assim, ainda tomando conta de mim, dando-me banhos e me vestindo. A minha memória ainda guarda detalhes bem vivos que o tempo não conseguiu destruir.” b) “O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. É o que vais entender, lendo.” c) “Faz dois anos que Madalena morreu, dois anos difíceis. E quando os amigos deixaram de vir discutir política, isto se tornou insuportável. Foi aí que me surgiu a idéia esquisita de, com o auxílio de pessoas mais entendidas que eu, compor esta história.” d) “Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo.” e) “Sua história tem pouca coisa de notável. Fora Leonardo algibebe em Lisboa, sua pátria; aborrecera-se porém do negócio, e viera ao Brasil. Aqui chegando, não se sabe por proteção de quem, alcançou o emprego de que o vemos empossado.” 13. (UEL-PR) O romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, a) filia-se à corrente naturalista, uma vez que o autor, entusiasmado pelas teses cientificistas da época, elegeu o meio e a hereditariedade como as forças básicas de construção de seu universo ficcional. b) é considerado um representante tardio do romance social urbano, na linha inaugurada por José de Alencar, pelo tratamento ousado e direto dado ao tema do adultério. c) representa um dos pontos altos do realismo brasileiro, pois ultrapassa os limites de um banal caso de adultério e tem, na condição humana, captada pelo viés da ironia, a matéria de sua narrativa. d) deve ser encarado como uma produção independente em relação à nossa tradição literária, visto que inaugura a chamada prosa poética de cunho introspectivo, precursora do romance intimista dos anos 30. e) está comprometido com os postulados da estética pré-modernista, não só pela escolha corajosa do tema, mas também pela linguagem agressiva, de denúncia, que investe contra os valores burgueses.

SISTEMA ANGLO DE ENSINO

14. (UFPA) Os enredos dos romances Dom Casmurro e Senhora, do ponto de vista do leitor, remetem a: a) ratificação do papel submisso da mulher no século XIX, através das protagonistas. b) crítica da escravidão. c) uma visão da mulher que, conscientemente, quer ser agente do seu destino — é o caso de Capitu, em Dom Casmurro, e Aurélia, em Senhora. d) supervalorização do sentimento amoroso das protagonistas. e) construção de caricaturas femininas do século XIX, por isso Capitu, em Dom Casmurro, e Aurélia, em Senhora, aparecem transformadas e deformadas. (FGV-SP) Texto para os exercícios de 15 a 18: O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias; o interno não agüenta tinta. Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos-santos. Quanto às amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas crêem na mocidade. Duas ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam obriga muita vez a consultar os dicionários, e tal freqüência é cansativa. (Machado de Assis. Dom Casmurro. Rio de Janeiro, Aguilar, 1959.)

15. O personagem-narrador expressa no texto o desejo de: a) recompor sua experiência vivida. b) desligar a adolescência da velhice. c) separar sua vida presente da dos amigos que perdeu. d) unir sua vida presente à dos amigos que perdeu. e) ignorar que o passado e o presente se somam. 16. Segundo o autor-personagem: a) seus amigos eram estudiosos de Geologia. b) seus antigos amigos são os que lhe restam. c) os velhos amigos morreram. d) os novos amigos datam de quinze anos. e) são recentes as amigas que lhe restam. 17. No texto o autor expressa: a) a impossibilidade de se esconder a própria velhice. b) a possibilidade de enganar-se a si mesmo usando um documento falso.

• 89 •

ANGLO VESTIBULARES

c) a impossibilidade de se enganar os amigos usando um documento falso. d) a capacidade de falsear a idade sem uso de documentos. e) a capacidade de enganar estranhos que são falsos. 18. Segundo o autor: a) de suas amigas, todas se mantêm jovens. b) algumas de suas amigas parecem jovens mas traem sua idade usando vocabulário antigo. c) é cansativo consultar dicionários para procurar palavras novas. d) suas amigas são todas de longa data. e) é natural que suas amigas consultem os dicionários com bastante freqüência. 19. (FATEC-SP) A propósito do trecho a seguir, de Machado de Assis, e com as informações de que você dispõe sobre esse autor, assinale a alternativa CORRETA. A imaginação foi a companheira de toda a minha existência, viva, rápida, inquieta, alguma vez tímida e amiga de empacar, as mais delas capaz de engolir campanhas e campanhas, correndo. Creio haver lido em Tácito que as éguas iberas concebiam pelo vento; se não foi nele, foi noutro autor antigo, que entendeu guardar essa crendice nos seus livros. Neste particular, a minha imaginação era uma grande égua ibera; a menor brisa lhe dava um potro, que saía logo cavalo de Alexandre; mas deixemos metáforas atrevidas e impróprias dos meus quinze anos. Digamos o caso simplesmente. A fantasia daquela hora foi confessar a minha mãe os meus amores para lhe dizer que não tinha vocação eclesiástica. a) O trecho ironiza o conceito de imaginação, ao associar imaginação e égua, produção criativa e potro. b) Por suas características temáticas, é possível identificar o trecho com o realismo, já que trata do anticlericalismo. c) A metalinguagem (que pode ser definida como uma reflexão sobre o próprio ato de escrever) evidencia-se em trechos como “deixemos metáforas atrevidas e impróprias dos meus quinze anos” ou “digamos o caso simplesmente”, mas não é procedimento habitual de Machado de Assis. d) O trecho apresenta foco narrativo em primeira pessoa, em que um “eu” tudo julga, seja suas próprias emoções, seja a tradição literária clássica. e) O trecho relata objetivamente fatos ocorridos ao narrador quando tinha quinze anos; como o centro da narração é o ato de a personagem dizer à mãe que não irá ao seminário, pode-se identifica-lá com facilidade: trata-se de Bentinho, do romance Dom Casmurro.

SISTEMA ANGLO DE ENSINO

20. (UEL-PR) No começo do capítulo anterior informei-vos “quando” exatamente eu nasci; mas não vos informei “como”. Não; esse particular estava inteiramente reservado para um capítulo separado; além disso, senhor, como somos de certo modo perfeitos estranhos um para o outro, não teria sido de bom-tom fazer-vos saber, de uma só vez, tantas circunstâncias comigo relacionadas. O texto acima, do inglês Laurence Sterne, revela tom e procedimento que influenciaram a técnica narrativa: a) da novela picaresca de Manuel Antônio de Almeida. b) do folhetim romântico de José de Alencar. c) do romance realista de Machado de Assis. d) da prosa naturalista de Aluísio Azevedo. e) do discurso impressionista de Raul Pompéia. 21. Leia para responder: A fotografia Palavra que estive a pique de crer que era vítima de uma grande ilusão, uma fantasmagoria de alucinado; mas a entrada repentina de Ezequiel, gritando: — “Mamãe! mamãe! é hora da missa!” restituiu-me à consciência da realidade. Capitu e eu, involuntariamente, olhamos para a fotografia de Escobar, e depois um para o outro. Desta vez a confusão dela fez-se confissão pura. Este era aquele; havia por força alguma fotografia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno Ezequiel. De boca, porém, não confessou nada; repetiu as últimas palavras, puxou do filho e saíram para a missa. (Dom Casmurro, cap. 139)

Considerando que um dos objetivos da narrativa de Bento Santiago é provar sua inocência no processo de dissolução de sua família, responda: a) Qual é, na perspectiva do narrador, a principal declaração do capítulo 139 de Dom Casmurro? b) Há alguma outra passagem do romance que relativize a certeza da declaração contida no capítulo 139? 22. Leia para responder:

• 90 •

Chamado […] Não culpo ao homem; para ele, a coisa mais importante do momento era o filho. Mas também não me culpem a mim; para mim, a coisa mais importante era Capitu. O mal foi que os dois casos se conjugassem na mesma tarde, e que a morte de um viesse meter o nariz na vida do outro. Eis o mal todo. Se eu passasse antes ou depois, ou se o Manduca esperasse algumas horas para morrer, nenhuma nota aborrecida viria interrom-

ANGLO VESTIBULARES

per as melodias da minha alma. Por que morrer exatamente há meia hora? Toda hora é apropriada ao óbito; morre-se muito bem às seis ou sete horas da tarde.

ção daquele que fala. E Bento fala de Capitu, como condição para falar de si. Ao defini-la, não deixa de se definir também. A questão destaca, ainda, que os elementos que porventura o leitor possa atribuir ao narrador não devem exceder os limites do universo mental do escritor Machado de Assis, que, à maneira do que faria mais tarde Fernando Pessoa, inventou uma personagem e, depois, atribui a ela a autoria de um livro. Essas noções subjazem ao texto do enunciado, que se completa com o conteúdo da alternativa correta. As demais alternativas não consideram essa problemática, que pertence antes à esfera da teoria literária do que a D. Casmurro em particular. Por essa perspectiva, tudo o que chega ao leitor depende da sensibilidade do narrador, que é um velho emotivamente mutilado por julgar-se traído pela esposa. Decorre daí o caráter cambiante de seu enunciado, que, quase, sempre, significa o contrário do que afirma (ironia). Isso tudo, enfim, confere com o espírito da escola realista, mais preocupada com a análise dos caracteres do que propriamente com os mistérios folhetinescos.

(Dom Casmurro, fragmento do cap. 84)

a) O texto faz menção a Manduca. Quem é essa personagem em Dom Casmurro? Qual é sua posição no enredo do romance? b) Há no texto algo de irônico ou humorístico? Explique sua resposta. 23. Leia para responder: Otelo […] Cheguei a casa, abri a porta devagarinho, subi pé ante pé, e meti-me no gabinete; iam dar seis horas. Tirei o veneno do bolso, fiquei em mangas de camisa, e escrevi ainda uma carta, a última, dirigida a Capitu. Nenhuma das outras era para ela; senti necessidade de lhe dizer uma palavra em que lhe ficasse o remorso da minha morte. Escrevi dois textos. O primeiro queimei-o por ser longo e difuso. O segundo continha só o necessário, claro e breve. Não lhe lembrava o nosso passado, nem as lutas havidas, nem alegria alguma; falava-lhe só de Escobar e da necessidade de morrer. (Dom Casmurro, fragmento do cap. 135)

a) Tendo em vista a fábula de Dom Casmurro, explique a presença do veneno no bolso do narrador, acusada nesse fragmento do capítulo 135 do romance. b) Pode haver alguma relação entre o motivo por que o narrador destruiu, no fragmento acima, um dos textos que escreveu e o estilo adotado por Machado de Assis em Dom Casmurro? Qual é ela?

2. D

5. D

3. E

6. E

4. D 7. D Comentário: No texto apresentado para a questão percebe-se um lance visual na disposição das palavras, que foi utilizado com mais insistência nas Memórias Póstumas de Brás Cubas. No capítulo 145 de Dom Casmurro (“O regresso”), ocorre outro lance visual semelhante a este. 8. C 9. D 10. D

RESPOSTAS 1. B Comentário: Como se trata de um romance muito discutido, a banca optou por limitar o universo das possíveis interpretações, orientando o candidato para o modo mais atual de entendê-lo. Até os anos 60, D. Casmurro era lido como uma estória de adultério ou vilania feminina, surgindo daí o pseudoproblema sobre se Capitu traiu ou não o marido. Atenta contra essa leitura limitada do romance, a questão desloca o foco para a condição do narrador, absorvido pela necessidade de justificar a dissolução de sua família. Por isso, para se entender a narrativa, é preciso perceber a condição de quem a organiza, isto é, não se pode decodificar devidamente o romance sem a clara no-

SISTEMA ANGLO DE ENSINO

11. E Comentário: Seqüência de alternativas corretas forma um pequeno resumo de Dom Casmurro, com destaque para alguns elementos técnicos de composição. 12. B Comentário: Trata-se de um trecho do capítulo 2 (“Do livro”). 13. C 14. C Comentário: Senhora é um “perfil de mulher”, que exerceu razoável influência em Machado de Assis. Alencar foi o primeiro, com Lucíola (1862), a abordar o problema da mulher complicada em nossa literatura.

• 91 •

ANGLO VESTIBULARES

15. A

17. A

16. C

18. D

19. D Comentário: A alternativa a seria perfeitamente correta se não excluísse aquela característica da obra de Machado de Assis. 20. C Comentário: O trecho citado pertence ao romance Tristran Shandy, traduzido para o português por José Paulo Paes. Tal romance, quase ignorado no século XIX, exerceu enorme influência na ficção madura de Machado de Assis. Laurence Sterne é um dos mais ilustres e típicos representantes da tradição luciânica. 21. a) A principal declaração desse capítulo é a culpa de Capitu no processo de dissolução da família de Bento Santiago. Ele pretende convencer o leitor de que a confusão de Capitu diante da fotografia de Escobar revela a paternidade deste sobre Ezequiel. b) Há. Todas as passagens do romance em que Bento demonstra insegurança quanto à reconstituição do passado, como a do terceiro parágrafo do capítulo 2, relativizam a certeza sobre o que afirma no capítulo 139. Mas há ainda uma segunda semelhança em Dom Casmurro que também relativiza a certeza de Bento quanto à culpa de sua esposa: trata-se da semelhança da falecida esposa de Gurgel, pai de Sancha, com a própria Capitu, revelada no capítulo 83, cujo título é, curiosamente, “O retrato”. Duas semelhanças num só romance podem insinuar a presença do acaso.

SISTEMA ANGLO DE ENSINO

22. a) Manduca morava perto da casa de Bentinho. Era leproso e gostava de escrever. Manteve uma polêmica, por cartas, com o protagonista. Trata-se de uma personagem secundária, sem função no enredo. Sua presença pobre e doente contribui, no entanto, para adensar a atmosfera realista do romance. b) Sim, as últimas linhas do texto contêm uma boa dose de humor negro, isto é, geram a graça a partir da abordagem leviana de uma situação séria, a morte alheia. Bento não se acanha em expor o seu egoísmo irônico, ao desejar que a natureza alterasse o seu curso só para não quebrar a harmonia de sua alegria pessoal. 23. a) Tendo se convencido da traição da esposa, Bento Santiago decidiu suicidar-se. Comprou o veneno, guardou-o no bolso, foi à casa da mãe, jantou fora, assistiu a uma peça de teatro (a tragédia Otelo, de Shakespeare), e tornou a casa com a idéia de suicídio na cabeça. b) Bento rasgou um dos textos por ser “longo e difuso”, isto é, por ser prolixo, imperfeito estilisticamente. Manteve o outro por “conter só o necessário”, por ser “claro e breve”; quer dizer, correto estilisticamente. Assim é, em linhas gerais, o estilo adotado por Machado de Assis em Dom Casmurro.

• 92 •

ANGLO VESTIBULARES

Dom casmurro.pdf

Carne (Júlio Ribeiro, 1888) e O Bom Crioulo (Adolfo Caminha, 1895). O estilo de .... Em Portugal, o grande polígrafo é Camilo Castelo .... Dom casmurro.pdf.

272KB Sizes 2 Downloads 184 Views

Recommend Documents

Dom Quixote.pdf
Page 1 of 50. Page 1 of 50. Page 2 of 50. Page 2 of 50. Page 3 of 50. Page 3 of 50. Page 4 of 50. Page 4 of 50. Dom Quixote.pdf. Dom Quixote.pdf. Open. Extract.

Dom Flaherty CV.pdf
Ravensbourne College of Design. Foundation Diploma. Merit. Beths Grammar School. 3 A Levels. Beths Grammar School. 8 GCSEs including. English. Maths.

DoM - Westaway Sim Alzheimer's FINAL.pdf
Alzheimer's disease is a gradual. forgetting. ... genetic causes of early onset. Alzheimer's and some ... Page 2 of 2. DoM - Westaway Sim Alzheimer's FINAL.pdf.

dom: Consumer Sensitivity to Promotions with Negative Contextual ...
Oct 9, 2006 - Past research has shown that monetary promotions (e.g., discounts) are more likely to be processed relative to and integrated with the original ...

P.C. Cast Kristin Cast - Dom Nocy 02 - Zdradzona.pdf
P.C. Cast Kristin Cast - Dom Nocy 02 - Zdradzona.pdf. P.C. Cast Kristin Cast - Dom Nocy 02 - Zdradzona.pdf. Open. Extract. Open with. Sign In. Main menu.

Martin Kukučín - Dom v stráni.pdf
Page 1 of 230. Martin Kukučín: Dom v stráni. Martin Kukučín. Page 1 of 230. Page 2 of 230. Dom v stráni. Martin Kukučín. Digitalizátor: Viera Studeničová, Michal ...

P.C. Cast, Kristin Cast - Dom Nocy 01 - Naznaczona.pdf ...
Page 3 of 3. PHARMA COURSES CUTOFF RANK OF CET-2016 - R2 Extended ALLOTMENT ( General ) 26-07-2016. 28. 29. 30. 31. 32. 33. 34. 35. 37. 38. 39. 40. 41. 42. B028 Luqman College of Pharmacy Gulbarga. B029 M.M.U College of Pharmacy Ramanagara. B030 M.S.

P.C. Cast, Kristin Cast - Dom Nocy 01 - Naznaczona.pdf
P.C. Cast, Kristin Cast - Dom Nocy 01 - Naznaczona.pdf. P.C. Cast, Kristin Cast - Dom Nocy 01 - Naznaczona.pdf. Open. Extract. Open with. Sign In. Main menu.

Download PDF The Dark Tourist - Dom Joly - Book
imagine that it wouldn't have worked quite as well as in print. “It's the way he tells them!” It starts when he spots a photo in a Parisian magazine of a couple of ...