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Heather Terrell

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PRÓLOGO Observei as cortinas do meu quarto esvoaçarem ao vento que soprava pela janela aberta, marcando o início do outono. A noite acenava para mim, e eu respondi ao seu chamado. Levantei as cobertas, andei em direção à janela e flutuei rumo à escuridão da meia-noite. O vento se agitou atrás de mim enquanto eu flutuava pelas ruas obscuras da cidade. Enquanto ziguezagueava entre as casas de telha tão familiares, onde meus vizinhos dormiam, me deleitei com o prazer absoluto do voo e o segredo da minha jornada. Estava tão absorta que não notei o alto campanário da igreja do século XVIII da minha cidade surgir inesperadamente diante de mim. A torre alongada e caiada de branco da igreja me impediu de continuar, fazendo com que perdesse altitude por um instante e pairasse no ar diante da janela de vidro com manchas circulares da igreja. Embora a janela fosse opaca no escuro da noite, eu poderia jurar que ela me encarava como um padre no púlpito, me julgando. Como eu nunca a vira antes, em Outros sonhos? Sem aviso, o vento ganhou força e me açoitou o rosto. Era frio e úmido, trazia o perfume do mar. De repente, a igreja e a cidade, até mesmo as ruas, me pareceram minúsculas, e ansiei pela amplitude do oceano. Ergui e aprumei as minhas costas, posicionando os membros de maneira aerodinâmica, para ganhar velocidade. Com uma curva acentuada à esquerda para desviar da igreja, fui em direção ao mar, revigorante e libertador. A cidade desapareceu conforme acelerei ao longo do penhasco recortado e das praias rochosas da costa do Maine. O vaivém das ondas do oceano gigantesco se chocando com a costa sob mim começou a me atrair cada vez mais para o mar.

4 Notei um raio de luz brilhante batendo no promontório rochoso que me chamou a atenção. Apesar da noite sem luar, a luz surgiu, inexplicavelmente brilhante, e me tirou do encantamento hipnotizante que a maré exercia sobre mim. Desci até o promontório para investigar o significado daquela mudança inesperada em meu sonho. Conforme me aproximava do pico rochoso, vi que a luz na sua superfície não vinha de fogo nem de um farol, mas do cabelo dele, tão branco que reluzia na penumbra da noite. A figura encarava o mar, com a mão nos bolsos da sua calça jeans. Sua aparência era jovial; tinha mais ou menos dezesseis anos, como eu. Voei um pouco mais para perto, mas não me aproximei muito. Queria vê-lo, mas não queria que ele me visse. Apesar de seu rosto estar pouco nítido por causa da escuridão, me senti fortemente ligada a ele. E atraida. Seus olhos eram verdes, e sua pele, surpreendentemente queimada de sol. Com um cabelo tão claro, esperava que também tivesse a pele bem clara. Ele mudou de posição e então pude ver melhor seus olhos em forma de amêndoa e o queixo com uma covinha no centro. Porém, quanto mais observava seu rosto, mais ele mudava. Os olhos agora pareciam azuis, e não verdes; o nariz tinha um aspecto um pouco mais alongado, e os lábios, mais carnudos. Ele já não aparentava ser tão jovem quanto eu nem mais velho como meus pais; parecia não ter idade. Seus traços se tornaram mais bem feitos e angulosos, a pele cada vez mais pálida, quase como se sua pele humana estivesse se transformando em mármore, liso e frio. Parecia que um escultor esculpira uma criatura etérea onde antes havia um ser humano. Então ele se virou e me encarou, como se soubesse que eu estava lá o tempo todo. E deu um sorriso horripilante e astuto. Seu rosto perfeito já não lembrava a escultura de um anjo, mas a de um demônio, e então eu percebi que tinha olhado para o rosto do demônio em pessoa. Abri a boca para soltar um grito de horror. E então caí.

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UM Cai no chão, fazendo um barulho surdo. Ou pelo menos foi o que pensei que tivesse acontecido. Abri os olhos e vi minha cama. Estava deitada em minha cama marquesa; o sol fraco do início da manhã atravessava a persiana. O sonho tinha sido tão real que eu esperava me encontrar estatelada no promontório, e não debaixo das cobertas quentinhas, em minha casa. Mesmo assim, o sonho não saía da minha cabeça. Esfreguei os olhos para afastá-lo e ouvi uma voz conhecida me chamando das escadas. — Ellie. Sentia como se eu estivesse entorpecida pelo sonho. Mexi os lábios para responder, mas só consegui emitir um grunhido. — Ellspeth? É hora de levantar. O encanto do sonho desapareceu no momento em que a voz da minha mãe ficou mais alta e ela me chamou pelo meu nome inteiro. Ela só me chamava de Ellspeth — um nome antiquado, que ela sabia que eu detestava quando estava muito irritada comigo. Minha voz voltou, e respondi: — Já desço em um minuto! Saí debaixo das cobertas, pulei da cama e caminhei até a cômoda, onde separei a roupa que ia usar naquele dia. Tremi; podia ver minha respiração no ar. Por que estava tão frio?

6 Examinei o quarto e notei que a janela estava entreaberta. Havia apenas uma pequena abertura, mas suficiente para deixar entrar o frio da manhã outonal do Maine. Não me lembrava de tê-la deixado aberta antes de me deitar. Era estranho, mas às vezes eu me distraía. Fechei a janela, peguei minhas roupas e percorri o pequeno corredor até o banheiro. Fechei a porta e liguei o chuveiro — bem quente. Depois ensaboei a esponja úmida com o sabonete de limão e me olhei pela primeira vez no espelho. Ignorei o máximo que pude meus olhos azuis claros, quase translúcidos, me olhando de volta no espelho: a cor estranha e perturbadora daqueles olhos não me trouxera nada além de olhares por anos. Em vez disso, me concentrei nas coisas que podia controlar. Examinei meu rosto, imaginando pela milésima vez como iria domar meu cabelo castanho rebelde e obstinadamente liso. Peguei a escova e comecei o processo doloroso e demorado de desfazer todos os nós, bocejei e despertei devagar para enfrentar a manhã ensolarada. O brilho do sol afastou o final aterrador do meu sonho e me animou um pouquinho. Pensei que talvez eu conseguisse, no final das contas, chegar até o fim do meu primeiro dia no colégio. E, depois disso, eu ainda provavelmente desejaria apertar um botão e pular toda a baboseira que havia na escola — os corredores e as classes repletos de pessoas cheias de pose e fofoqueiras que nos tiram a concentração dos estudos — e passar direto para a faculdade. Dentro de uma hora, lá estava eu, cambaleando pelos corredores lotados de calouros e veteranos conhecidos. Aproximei-me do meu novo armário pedindo em silêncio: ‚Por favor, por favor, ao menos uma vez permita que o arm{rio da Piper não fique perto do meu‛. Por um golpe infeliz do destino, eu tinha que aguentar a superpopular Piper Faires em casa — ela era minha vizinha — e na escola. Por causa de nosso sobrenome — Faires e Faneuil, — meu destino também era ser vizinha de armário de Piper para sempre. Ela sempre me ignorava na escola, mas fingia ser minha amiga em casa, o que tornava a situação ainda mais desagradável. Mas eu tinha de admitir: nossa proximidade inevitável na escola e nossa amizade em casa me deixavam um tanto imune às brincadeirinhas do seu grupo de amigos. Não precisei examinar os armários com muito cuidado e nem por muito tempo para achar meu número, vinte e quatro, e perceber que minhas preces não tinham sido atendidas. Lá estava Piper, com seu séquito de amigos, como abelhas em volta de sua rainha, Missy. Bem bronzeados, vestiam calças jeans perfeitamente desbotadas e calçavam chinelos coloridos; eram radiantes e despreocupados — e jovens — de um jeito que eu nunca tinha sido. Meus pais tinham participado de várias missões ambientais em países pobres, por isso me imbuíram de um grande senso de responsabilidade em relação ao mundo, o que nunca permitiu que eu me sentisse realmente despreocupada. Se eu tivesse um minuto livre, sentia como se devesse passar mais tempo no meu trabalho voluntário, oferecendo sopa para os pobres da região, em vez de me divertir. Eu sabia que não deveria ligar para o bando de Piper e, na maioria das vezes, não ligava mesmo. Afinal, Piper tinha me ‚convidado‛ para fazer parte do seu grupo de amigos mais chegados no ensino médio e eu não aceitara. Eu não teria estômago para fazer parte de um

7 grupo que costumava votar em quais amigos deveriam ser ‚excluídos‛ da mesa de almoço e realocados em alguma mesa escondida, destinada aos ‚perdedores‛, até que eles os aceitassem de volta. Mesmo assim, tão próxima do brilho daquelas pessoas, eu não conseguia deixar de me sentir um buraco negro, com meu cabelo e meus jeans escuros. Missy, a mais malévola do grupo, apoiou-se no armário vinte e quatro. Revirei os olhos só de pensar que teria de enfrentar a maldade de Missy para chegar ao meu armário antes de o sinal tocar. Ela percebeu meu gesto, e me preparei esperando alguma reação sua. Mas, em vez disso, Missy jogou os cabelos castanhos dourados sobre os ombros e disse, com um sorriso: — E aí, como foi seu verão? Olhei para trás para ver com quem ela estava falando. Por causa da minha amizade com Piper, Missy não se incomodava em me espezinhar, mas tampouco se incomodava em ser simpática. Ela repetiu: — Como foi seu verão, Ellie? — Legal — respondi, com cautela, enquanto abria o armário. Ocupei-me arrumando vagarosamente meus livros dentro do armário, torcendo para que ela tivesse sumido quando eu acabasse. Não deu certo. — Para onde você foi dessa vez? — perguntou Missy enquanto eu espiava de dentro do armário. — Para o Quênia — contei, fechando o armário. Para mim, não fazia sentido ela assumir que sabia meu nome e o fato de que eu costumava viajar para o exterior no verão. — Você tem tanta sorte de seus pais levarem você em suas viagens ao exterior. Eu fiquei presa aqui em Tillinghast o verão inteiro. Não sabia o que dizer a ela, especialmente porque Piper e o resto do grupo de eleitos estavam assistindo à conversa com um sorriso no rosto, em sinal de expectativa. E especialmente porque eu tinha certeza de que a visão glamorosa que Missy tinha das minhas viagens pelo terceiro mundo não combinava com a realidade. Portanto, não disse nada. Missy ficou em silêncio. — Eu e as meninas estávamos combinando de nos encontrar ao meio-dia para almoçar. Quer ir com a gente?

8 Eu estava prestes a perguntar o porquê do convite quando Ruth caminhou até mim pelo corredor. Ruth diminuiu o passo e tencionou os ombros quando me viu conversando com Missy. Ela sabia que teria de passar por Missy para chegar a mim e que a imunidade que minha amizade com Piper me trazia não se estendia a ela, mesmo sendo minha melhor amiga. Vi quando Ruth corajosamente ajeitou os ombros, colocou o cabelo ruivo comprido atrás da orelha e se aproximou de mim. Em comparação ao bronzeado perfeito de Missy e seus amigos, Ruth não parecia nada atraente, com sua pele branca, óculos de aros grossos e camiseta e jeans básicos. Eu sabia, contudo, que por trás daquela camuflagem havia uma beleza escondida; o problema era que ela detestava chamar a atenção, mesmo que de uma maneira positiva. — Acho que o sinal já vai tocar, Ellie — disse Ruth. Nossa primeira aula era de inglês avançado, e todos diziam que a senhorita Taunton era rígida quanto aos horários. Antes que eu pudesse responder, Missy golpeou o ar, perguntando à pequena platéia: — Vocês ouviram alguma coisa? As outras meninas riram. Olhei rapidamente para Piper, que estava surpreendentemente quieta. Não esperava que Piper defendesse Ruth, mas fiquei feliz em ver que ela não estava participando. — Não? — Incitada pela risada das amigas, Missy fez outro gesto no ar e continuo com seu showzinho. — Deve ser alguma mosca nojenta. — O que você acabou de dizer para Ruth? — perguntei sem conseguir esconder a raiva na minha voz, o que me deixou brava comigo mesma. O grupinho de Missy adorava depreciar aquelas que não podiam — ou não queriam — usar o jeans skinny ‚perfeito‛ ou namorar o atleta mais velho ‚perfeito‛. Quanto pior a reação dos outros, melhor para eles. Não gostava de agradá-los — ou dar corda para seus joguinhos — com nenhum tipo de reação. Ainda mais porque Ruth era perfeitamente capaz de se defender na classe e nos corredores, se quisesse. E naquele dia ela não queria. Missy agitou a mão novamente e, dessa vez, quase bateu no rosto de Ruth. Senti a raiva percorrer meu corpo como uma onda, algo que prometi à minha mãe, que odiava brigas, evitar porque tinha me metido em uma discussão desagradável no verão com um membro mal-intencionado da nossa missão. Senti minha pele branca ficar vermelha e algo estranho aconteceu: minhas escápulas se ergueram e se aprumaram. Sem pensar, agarrei o pulso de Missy. De repente, o corredor da escola sumiu diante de mim e tive uma visão muito vívida de Missy aos seis anos. Ela estava à beira da piscina do clube

9 de campo chique de Tillinghast de que ela tanto falava. Na imagem, um grupo de meninos e meninas caçoava dos seus dentes proeminentes e joelhos tortos. Missy se virou para procurar a proteção e o consolo da mãe. Ela estava mesmo olhando para a filha, mas, em vez de responder ao seu olhar, que pedia ajuda, pegou o copo de gim-tônica e foi até seu grupo de amigos, muitos deles pais das crianças que zombavam de Missy. A mulher continuou fingindo nunca ter visto a fraqueza nos olhos da filha. Naquele momento, a pequena Missy prometeu a si mesma nunca demonstrar fraqueza novamente. Em vez disso, jurou fazer com que os outros se sentissem frágeis e se arrastassem aos seus pés. Comecei a ter outra visão, mais recente. Missy estava abraçada fortemente a um rapaz. Ao olhar através dos olhos de Missy, não conseguia ver o rosto do rapaz, mas pude ouvir sua voz grave e baixa sussurrando em seu ouvido. No começo, não conseguia escutar o que ele dizia, mas podia sentir um leve calor percorrendo a espinha de Missy. Então as palavras começaram a ficar mais nítidas e posso jurar que ele disse ‚Ellie‛. Só Missy poderia ter dito meu nome ao garoto, mas por que ela se importaria em falar com ele sobre mim? Eu ainda estava pensando nisso quando Ruth me trouxe de volta à realidade ao tentar tirar minha mão de Missy e sussurrar: — Vamos, Ellie, não vale a pena. A imagem desapareceu tão rapidamente quanto surgiu, me trazendo de volta à presença terrível e real de Missy adolescente. Porém, das duas imagens, a cena da infância permaneceu tão vívida para mim que experimentei os sentimentos e pensamentos que Missy teve aos seis anos como se eu fosse ela, e senti muita pena. Não era a primeira vez que eu tinha esse tipo de visão (como eu as chamaria depois). Elas vinham acontecendo mais frequentemente depois do meu décimo sexto aniversário, em junho, apesar de, quase sempre, não significarem nada muito importante. Em geral, eu via o que as pessoas comiam no almoço ou o que elas pensavam sobre a roupa dos amigos. No começo, pensei que era minha imaginação, mas não demorou muito para eu perceber que o que eu ouvia e via na minha cabeça não era invenção. Era verdade. Uma das primeiras vezes em que tive uma visão, imaginei a garota que se sentava atrás de mim na aula de espanhol pensando se terminava ou não com o namorado; alguns segundos depois, ela se virou para a amiga sentada ao seu lado e perguntou se deveria terminar o namoro. Mas a quem eu poderia contar meu segredo sem acabar presa, como uma maluca? Apesar de Ruth tentar me afastar de Missy, apertei ainda mais o seu punho enquanto meus sentimentos por ela variavam da compaixão à raiva. Ela não se mexeu; acho que estava atordoada, com medo de que eu a insultasse, como ela costumava fazer, ou mesmo arrancasse sua mão. Ficamos paradas até que senti a mão de Ruth tirar meus dedos do punho de Missy e me levar dali.

10 — O que você está pensando, Ellie? Você sabe que eu sei me cuidar quanto a esses idiotas — sussurrou Ruth enquanto me empurrava para a classe. Notei que ela estava mais zangada porque me coloquei em risco; Ruth sempre foi muito protetora comigo. — Desculpa, Ruth, eu sei que você sabe se cuidar. Não sei o que me deu — sussurrei de volta. Ficamos em silêncio enquanto ziguezagueávamos pelo corredor lotado. Senti alguém me encarando e me virei, torcendo para que não fosse Missy ou seu bando atrás de nós, prontos para nos dar o troco. Não era. Um garoto alto e inacreditavelmente loiro estava apoiado na moldura da porta, me encarando. Ele deu um sorriso irônico como se tivesse assistido à cena com Missy e companhia, mesmo sendo impossível ter testemunhado tudo de seu lugar privilegiado. Sua beleza não era convencional, mas aparentava ser mais velho que a média do pessoal do ensino médio. Ele parecia à vontade de um modo que eu nunca havia visto antes em outros caras. Em geral, eu odiava gente arrogante, mas aquilo era diferente. Ele tinha uma autoconfiança natural que me atraiu na hora, e me surpreendi com isso. Eu tinha certeza de que não o conhecia — algo difícil, considerando que eu havia nascido na cidade e conhecia quase todo mundo. O sinal tocou. — Ai, meu Deus, não podemos nos atrasar no primeiro dia com a senhorita Taunton — exclamou Ruth, e então acelerei o passo. Deixei-a me arrastar para longe daquele olhar penetrante. E do meu próprio coração acelerado.

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Dois Esqueci o garoto durante a semana seguinte na escola. Essa foi a mentira que contei a mim mesma enquanto embarcava nas aulas de inglês avançado, história, química, espanhol e cálculo, todas cheias de atividades para fazer, supostamente para nos preparar para a faculdade no ano seguinte. Mas a verdade era que eu não conseguia me concentrar em nada. Procurava por ele em todos os lugares. O fato de nossa escola ser relativamente pequena — tinha apenas cem alunos do penúltimo ao último ano do ensino médio — tornava sua ausência ainda mais estranha. Parecia que eu o tinha inventado na minha imaginação. Eu não podia perguntar a Ruth se ela também o tinha visto. Ela não ia parar de falar no assunto. Durante anos, eu demonstrei ser indiferente e imune aos garotos da nossa idade. Eles sempre me pareceram bobos e egocêntricos, e nunca achei que tivesse algo em comum com eles. Ou eles comigo. Na sexta-feira, na hora do almoço, examinei as mesas e a fila do refeitório em busca dele. Podia ouvir o murmurinho de vozes à minha volta, mas minha atenção estava em outro lugar. O fato de eu estar exausta não me ajudava. Meus sonhos eram cada vez mais vívidos e, quando eu levantava de manhã, parecia que tinha passado a noite toda acordada. Conforme o dia passava, os detalhes dos sonhos iam ficando cada vez mais confusos, mas toda noite eu voltava para o céu e voava sobre a cidade. — Ellie, você está me escutando? Virei-me para Ruth.

12 — Desculpe, o que você disse? — Juro, esses dias você anda parecendo um fantasma. Onde você está com a cabeça? Pensei em uma maneira de responder à pergunta. Deveria contar a ela sobre as tentativas suspeitas de Missy e companhia em serem simpáticos e dizer que estava distraída pensando nisso? Eu sabia que Ruth não ligava muito para a panelinha de Missy, mas ninguém gosta de ser ignorado, e eles a estavam excluindo, apesar de Ruth e eu sermos unha e carne. Ou deveria dizer que estava preocupada por causa do excesso de estudos? Eu não queria colocar a culpa em um garoto misterioso que vi no corredor. — Desculpe, acho que os professores falam tanto em faculdade que me distraí. O que você estava dizendo mesmo? — Estava falando sobre faculdades. Nossa, você está mesmo com a cabeça em outro lugar, né? Conheceu algum cara no Quênia e não me contou, é? A ideia de Ruth era ridícula diante da dura realidade do verão que eu passara no Quênia, e quase ri. Até eu notar sua expressão. Ela parecia realmente chateada diante da ideia de que eu pudesse ter escondido alguma coisa dela. Eu deveria ter pensado que minha melhor amiga durante sete anos — praticamente a irmã que eu nunca tive — perceberia que havia alguma coisa. Mas Ruth era complicada. Qualquer um próximo a ela percebia que ela era esperta, inteligente, confiável e tão leal que, às vezes, se tornava meio possessiva. Era preciso se aproximar dela para conhecer todas as suas qualidades maravilhosas, mas isso não era fácil. Ruth perdera a mãe vítima de câncer quando estava no primeiro ano do ensino fundamental — apenas alguns meses antes de nos conhecermos, por isso não permitia que os outros se aproximassem, pois temia perdê-los, como ocorrera com a mãe. Para se proteger, ela erguera enormes barreiras entre ela e as pessoas, portanto, não era fácil se tornar sua amiga; eu fui umas das únicas que conseguiu trespassar esses muros. — Não, juro. Fique fazendo compostagem e lidando com estrume de animal africano o tempo todo. — Não era uma atmosfera muito glamorosa para se conhecer um cara. Ruth riu. — Que nojo! Mas, conhecendo seus pais, não fico surpresa. Satisfeita, ela começou a falar sobre sua lista de faculdades preferidas e os critérios de admissão, quem entrara e que notas tiraram, essas coisas. Desejei que Ruth não se preocupasse tanto; tinha certeza de que ela saberia escolher a melhor faculdade quando chegasse a hora, mesmo que tivesse de contar com uma bolsa de estudos e com financiamento para pagar as mensalidades. O salário de seu pai, que trabalhava como jardineiro na universidade, não daria para pagar o curso.

13 Levamos nossas bandejas e combinamos de nos encontrar no café após a escola. Fui até meu armário para deixar os livros de inglês e pegar os de espanhol, torcendo para não encontrar Missy e seus amigos. Suspirei de alívio ao me aproximar do número vinte e quatro sem avistar o rabo de cavalo castanho avermelhado de Piper, sua marca registrada. De repente, avistei aquele garoto parado em frente ao meu armário. Não era possível que ele estivesse me esperando, só podia ser uma coincidência. Não importava a razão; desejei ter parado no banheiro depois do almoço para, ao menos, pentear o cabelo. Ele era ainda mais bonito de perto, apesar de ser mais marcante que propriamente bonito. Seus olhos verdes e claros eram perturbadores, assim como, logo percebi, os meus. Era a primeira vez que via algo como aqueles olhos em outra pessoa. Quase não conseguia falar quando cheguei ao armário. Mas não era preciso dizer nada. Em poucos segundos, ele disse: — Você está diferente. Lembrei a mim mesma que não conhecia aquele garoto. O que ele queria dizer e quem ele pensava que era para falar comigo com tanta intimidade? — Diferente do quê? Não consigo imaginar como posso estar ‚diferente‛, j{ que nunca nos vimos antes — falei, me enfiando dentro do armário. — Nos vimos, sim. Três verões atrás. Na Guatemala. Parei ao ouvir aquela frase. Eu já tinha ido para a Guatemala. Para ganhar tempo e pensar em algo, fiquei mexendo nos livros. Três verões antes eu tinha ido com meus pais, que participavam de um programa de treinamento da universidade em que trabalham, até uma área rural e longínqua da Guatemala. Meus pais eram professores universitários especializados em agricultura biológica e, durante os verões, eles organizavam viagens para vários destinos do mundo todo, com o intuito de ensinar aos agricultores locais como aumentar a produção de uma maneira ecológica. Não era exatamente uma sofisticada viagem pelo mundo, como Missy imaginava. Eu pretendia arregaçar as mangas como os outros professores, estudantes e agricultores locais, por isso conhecia muito bem todo mundo envolvido no programa. Mas não me recordava daquele garoto. E ele era o tipo de garoto de quem eu me lembraria. Só podia ser alguma brincadeira. Talvez fosse um plano alternativo de Missy para me humilhar, já que suas tentativas de amizade falsa tinham dado errado. Por que mais um aluno novo, estudante do último ano e bonito se aproximaria de mim, mentindo me conhecer do passado? Não que me achasse sem graça, imagine, mas eu não era do tipo que um estudante do último ano bonitão escolheria.

14 Eu não deixava me fazerem de boba, especialmente os idiotas que se achavam populares. Como se esse rótulo tivesse alguma importância no final das contas. Bati a porta do meu armário e falei: — Não sei do que você está falando. Quando comecei a me afastar, ouvi-o dizer: — Você não se lembra do programa de extensão agrícola da Universidade do Maine, na Guatemala? Três verões atrás? Nós dois estávamos acompanhados dos nossos pais. Sua voz parecia meio confusa. E ele conhecia detalhes da viagem. Não havia como Missy saber daquilo tudo. Piper não se lembraria de tanta coisa, mesmo que eu tivesse contado algo em nossas poucas conversas como vizinhas. Virei-me. Ele de fato parecia magoado. Estava quase arriscando uma conversa, quando Riley — um dos alunos do último ano mais populares e uma estrela dos esportes — veio e agarrou o braço do garoto. Se ele era amigo de Riley, eu definitivamente não fazia seu tipo. Presumindo que aquilo não era uma brincadeira, é claro. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, Riley o puxou pelo corredor. — Vamos, Chase. Vamos nos atrasar para o treino.

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TRês — Vocês se lembram de um garoto chamado Chase? De uma de nossas viagens de verão? — perguntei, como quem não quer nada, durante o jantar daquela noite. Mantive os olhos baixos e brinquei com o macarrão no prato para não olhar para os olhos perspicazes dos meus pais. Não costumava guardar-lhes segredo; não havia nada interessante para esconder. Mas fazer a pergunta em voz alta fez com que eu me sentisse estranhamente exposta. — Chase? — quis saber minha mãe. Não tirei os olhos do prato, mas jurei ouvir um tom alarmante em sua voz, geralmente serena. Ela quase nunca se alterava, o que era bem irritante; entre os dois, minha mãe era a mais durona. E, a propósito, exasperadamente bonita, apesar de sua aversão assumida a maquiagem ou a qualquer coisa que parecesse ‚da moda‛. Somente nos dois anos anteriores apareceram algumas rugas em seu rosto totalmente natural e poucos fios brancos em seus cabelos cor de chocolate. De todos os seus colegas e amigos, apenas meu pai era tão bonito quanto ela; era muito irritante ter pais tão atraentes. — Sim, Chase. — Acho que não conheço — afirmou ela. Meu pai lançou, quase casualmente: — Também não me lembro de nenhum Chase. Por que a pergunta? — Porque ele veio falar comigo na escola hoje. É aluno novo. Disse que se lembra de mim da viagem à Guatemala.

16 Pelo canto do olho, vi meu pai olhar para minha mãe. — Pensando bem, esse nome não me é estranho. Chase, você disse? — Sim. — Hummm, lembro de um casal bonito que tinha um filho. Acho que os pais eram etnobiólogos. Chase era o sobrenome deles, se não me engano. Soltei um grunhido. — Agora me sinto uma completa idiota. — O que você quer dizer com isso? — Quando esse garoto, Chase, veio falar comigo, me deu um branco. — Bem, faz três anos, e aquela equipe era grande. Na verdade, foi um de nossos maiores projetos, com muita gente, por isso não me surpreende que você não se lembre dele — interveio rapidamente minha mãe. — Sua mãe está certa, Ellie — falou meu pai ao se levantar da mesa e começar a limpar os pratos. — É muito estranho que eu não me lembre dele de jeito nenhum, especialmente porque, em geral, não há garotos da minha idade nessas viagens. Vocês se lembram do primeiro nome dele? — quis saber. — Michael, acho — respondeu meu pai. Ele tossiu, limpando a garganta, e ligou a água da pia. — Esse Michael, se for esse mesmo o nome dele, disse por que sua família se mudou para Tillinghast? — Não conversamos muito. Fiquei com vergonha porque não lembrava quem era ele, mesmo ele afirmando que nos conhecíamos, então fui meio grossa. Bem grossa, na verdade. — Grunhi mais uma vez. — Me sinto péssima agora. — Não se preocupe com isso, querida. Sempre é possível pedir desculpas. — É verdade. Levantei e comecei a ajudar meu pai com a louça. Quando lhe passei um prato para que ele o colocasse na máquina de lavar louças, encostei o dedo levemente em seu braço e pensei que eu nunca tinha tido uma visão sobre meus pais ao tocá-los — todas as minhas visões ocorriam quando eu tocava outras pessoas. Mas logo voltei a pensar em Michael. — Para responder à sua pergunta, aposto que os pais dele trabalham na universidade. Quero dizer, onde mais eles trabalhariam como etnobiólogos em Tillinghast?

17 Apesar de Tillinghast ter tido uma indústria de chapelaria bem movimentada nos anos 1800, agora era uma cidade sem muita oferta de emprego. Quase todos trabalhavam na universidade fazendo uma coisa ou outra — como professores, donos de lojas ou algo assim. — Não acho que tenha visto o nome deles na lista de professores visitantes. Você viu algum Chase na lista, Hannah? — perguntou meu pai à minha mãe. — Não, Daniel, não vi. — Ela falou, calmamente, permanecendo sentada em vez de se levantar para nos ajudar a limpar a cozinha, como costumava fazer. ‚Por que ser{ que ela estava se comportando de um jeito tão estranho?‛, pensei. Foi tão esquisito assim perguntar sobre um garoto? Era melhor eu nunca ter tocado no assunto. Talvez eles só estivessem sendo inábeis, como de costume; eles sempre pareciam interpretar o papel de pais, procurando, sem muita certeza, pelo caminho certo. Eu achava que isso acontecia porque eles eram muito acadêmicos — não viviam totalmente no mundo real. — Bom, provavelmente você está certa, Ellie. Tenho certeza de que eles vieram para cá por causa da universidade. Nós, provavelmente, vamos esbarrar nos pais do Michael nos corredores a qualquer momento — explicou meu pai. — Tenho certeza de que vamos encontrar a família toda logo, logo — completou minha mãe, finalmente se levantando da mesa. — É uma cidade pequena, afinal de contas. Enquanto eu continuava a limpar os pratos e a passá-los para meu pai, me senti pequenininha por dentro ao pensar na minha conversa com Michael. Por um lado, fiquei aliviada em saber que ele não estava enganado, mas, por outro, eu sabia que teria de pedir desculpas a ele na próxima semana. O telefone tocou. Meu pai atendeu e conversou um pouco antes de me passar o aparelho. — É a Ruth, querida. Antes que eu dissesse ‘alô’, Ruth lançou: — Onde você estava? Liguei no seu celular, mandei mensagens e nada. Acabei voltando para casa. Isso não foi legal, Ellie. — O que você quer dizer com isso? — eu estava realmente confusa. — O Daily Grind? Depois da escola? Aturdida, pensando em Michael, acabei me esquecendo que combinamos de nos encontrar no café. Entrei na sala para que meus pais não ouvissem a conversa. — Ai, Ruth, me desculpa. Esqueci completamente. Você me desculpa?

18 Senti-me péssima. A experiência de Ruth com a perda da mãe fez que ela se preocupasse muito com o bem-estar das pessoas. — É claro. Não seja ridícula. Mas você me deixou preocupada. Você nunca esquece nada. O que está acontecendo com você? — A culpa é do ‚jet lag‛. Voltamos de viagem menos de uma semana atr{s. — Eu tentava achar uma desculpa de todo o jeito, qualquer desculpa. — Tá bom, mas, por favor, me prometa que vai andar com seu celular, ok? Ruth se irritava muito porque eu sempre esquecia de ligar o celular. Ninguém me ligava a não ser Ruth e, em caso de emergência, meus pais. — Prometo. — Agora não vai esquecer nossos planos de ir ao cinema amanhã à noite, né? Ri de alívio ao ouvir a bronca, em tom de brincadeira, de Ruth. — É claro que não. E eu perderia o último filme de Audrey Tautou, por acaso? Nós duas adorávamos filmes estrangeiros, embora por razões diferentes, e íamos ao cinema quase todo final de semana. Ruth adorava ver como as diferentes culturas contavam histórias, enquanto eu me atraía pelos cenários exóticos. Ruth nunca entendeu por que eu não achava minhas viagens de verão suficientes. Não adiantava explicar, ela não compreendia que lidar com agricultura em uma área rural do Quênia ou da Guatemala não tinha absolutamente nada a ver com a cultura dos cafés parisienses. — Tá certo. Te vejo às sete no Odeon.

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Quatro Na segunda-feira, esperei que Michael, ao passar pelo corredor, me tratasse, no mínimo, com frieza. Na verdade, não me surpreenderia se ele me acusasse de grosseira; sua atitude seria justificável. Certamente eu não merecia — e não poderia prever — que veria Michael me esperando com um sorriso amável no rosto. Mas lá estava ele. Ele me aguardava apoiado na parede perto do meu armário de maneira tão casual que, mais uma vez, pensei que talvez não estivesse me esperando. Mas então ele acenou e sorriu para mim. Um forte rubor se espalhou pelas minhas bochechas brancas quando notei que ele me esperava. Como sabia onde ficava meu armário? Apesar de sorrir e acenar de volta com timidez, fiquei ainda mais ansiosa ao caminhar em sua direção. Michael vestia um jeans comum e uma camiseta preta, mas parecia diferente, talvez mais maduro que a média dos rapazes de Tillinghast. E eu ainda precisava me desculpar com ele. O sorriso caloroso de Michael tornou meu pedido de desculpa bem mais fácil. Encarei-o e disse: — Ei, me senti muito mal por não ter reconhecido você logo na sexta-feira... Ele me interrompeu. — Não precisa. Já faz três anos e nós dois estamos diferentes. Você, especialmente — ele falou com um olhar compreensivo que me fez corar. Eu odiava ficar vermelha. Ele pareceu notar meu incômodo e tentou me deixar mais relaxada, brincando:

20 — Espero estar diferente do que era há três anos, também. Melhor talvez? Ri um pouco, mas não soube o que dizer depois. Nunca sabia o que dizer aos garotos, só falava sobre as tarefas da escola e agricultura orgânica. Obviamente nenhum dos assuntos rendia uma conversa muito animada, mas eu, em geral, não ligava para isso. E, de qualquer maneira, ainda sofria daquela amnésia estranha que não deixava me lembrar de Michael na Guatemala e não sabia como evitar o assunto em uma conversa, já que só tínhamos a viagem em comum. Um silêncio incômodo, que me pareceu eterno, se abateu sobre nós. Para evitá-lo, andei pelo corredor e ele rapidamente me seguiu. Mas o silêncio sumiu quando eu disse impulsivamente: — Então, seus pais querem salvar o mundo, hein? — Imaginei que ele pudesse me contar se seus pais o arrastavam às missões remotas na Guatemala, como faziam os meus. — Algo assim — respondeu amavelmente. Talvez eu tivesse vencido o primeiro obstáculo da conversa. — Sem dúvida viajamos para muitos lugares por causa do trabalho deles. — Seus pais mudaram para cá para trabalhar na universidade, M...? — disse, quase pronunciando seu nome, e então recuei. Tecnicamente, ainda não havíamos nos apresentado, e eu não queria confessar de jeito nenhum que tinha falado sobre ele com meus pais, então deixei por isso mesmo. — Nos mudamos para Tillinghast para passar o verão, para meus pais trabalharem em um projeto especial. — Então é uma mudança temporária? — Mesmo sem conhecê-lo direito, fiquei decepcionada com o fato de ele talvez ficar pouco na cidade. — Vamos ficar aqui até o projeto terminar, eu acho. Antes que pudesse fazer outras perguntas educadas, ele se virou para mim com um sorriso largo e indagou: — Então, aonde estamos indo? — Para a aula de inglês. — O que você está lendo? — Orgulho e preconceito. — Tive de ler esse livro para o curso de inglês no ano passado. Achei que minha professora não ia parar de falar no livro nunca mais.

21 — Acho que ela ainda procura o seu senhor Darcy. Ri. Eu tinha ouvido falar a mesma coisa sobre minha professora de inglês, a senhorita Taunton. Começamos a falar sobre o livro, que eu tinha lido nas noites quentes e longas do Quênia, quando não havia muito o que fazer. Na verdade, havia lido todo o Orgulho e preconceito para a escola e me dedicado à obra de Jane Austen no verão. Ele me perguntou o que eu achara do romance. Eu adorara, e ele confessou que o achava meio lento e pouco interessante. No entanto, disse isso com um sorriso que me fez perdoá-lo por ter uma visão tão negativa do livro que eu amara. Nunca tinha tido uma conversa como aquela com outro garoto. Na verdade, com ninguém além de Ruth. Meus pais e seus colegas só liam textos científicos e sobre os problemas que acometiam o mundo, e meus outros amigos eram muito superficiais. E, mesmo que discordássemos, era tão bom encontrar um garoto com quem conversar — depois de tanto tempo fingindo para mim mesma e para os outros que eu não ligava por não saber falar a ‚língua‛ dos meninos da minha idade. Logo chegamos à entrada da minha classe de inglês; parei perto da porta. Eu não sabia bem como interromper a conversa. Será que eu pareceria uma garota dos anos 1950 se eu lhe agradecesse por ter me acompanhado até a classe? — Bom, foi muito legal te ver de novo... — deixei a frase escapar enquanto pensava se devia dizer seu nome ou não. Tive esperança de que ele não tivesse percebido. Ele percebeu, é claro. — Michael. Michael Chase — ele interveio e deu aquele sorriso desarmador novamente. — Caso você esqueça. — Tá certo. Obrigada, Michael. Meu nome é... — Sei seu nome, é Ellie Faneuil. Ele começou a caminhar pelo corredor em direção à sua classe, mas virou-se de repente, com um sorriso meio malévolo, e falou: — Na verdade, seu nome é Ellspeth Faneuil, né? — E então acenou e desapareceu.

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Cinco Para minha surpresa, Michael me procurou todos os dias da semana. Era só eu sair da classe e lá estava ele, me esperando. Quando eu deixava o refeitório após o almoço, ele surgia e me acompanhava pelo corredor até meu armário. Sua presença constante nunca me pareceu estranha. Na verdade, ele tinha um jeito tão tranquilo e nossas conversas fluíam tão bem — na maioria das vezes, falávamos sobre as aulas — que sua companhia me parecia natural. Na tarde da sexta-feira, todas as reservas que eu tinha em relação a ele haviam desaparecido. Pouco antes das duas da tarde, eu esperava por Ruth atrás do ginásio para nos sentarmos juntas na primeira reunião do ano letivo com o diretor. O lugar estava lotado de bancos e cadeiras, substituindo o material esportivo de sempre. Os estudantes continuaram a chegar aos montes. Vi que Missy e seu séquito costumeiro se aproximavam de onde eu estava e não queria ter de falar com eles, portanto, me dirigi a um canto escuro, próximo aos bancos. De lá, podia ver as portas do ginásio e chamar a atenção de Ruth quando ela chegasse, mas não teria de enfrentar Missy e sua tentativa chata de se tornar minha amiga. Enquanto observava o ponteiro pequeno do relógio aproximar-se do dois, vi que os assentos estavam quase todos ocupados e fiquei imaginando onde Ruth estaria. Ela era sempre pontual e organizada, quase nunca chegava atrasada. Não a um evento como aquele. Não ousei me sentar em uma das poucas cadeiras disponíveis sem ela; ela ficaria brava em ter de ficar sozinha. Ruth. Ao pensar nela lembrei que não havia lhe contado sobre Michael. Tínhamos horários distintos, portanto, ela não me vira com ele. E eu ainda não tivera vontade de lhe

23 contar sobre nossas conversas. Ruth era superprotetora, e eu não queria contrariá-la, ainda mais porque nem tinha certeza de que havia algo entre mim e Michael de que Ruth precisaria me proteger. Quando o ponteiro marcou duas horas, o diretor atravessou o palco. Estiquei o pescoço e examinei o ginásio para me certificar de que não tinha visto Ruth. O local estava cheio de alunos, mas Ruth não estava entre eles. Sentei em meu cantinho e esperei. Eu ia lhe dar mais um minuto, depois me sentaria em um dos poucos assentos livres perto de mim. Ela teria de entender. Sem aviso, senti alguém ao meu lado. Não tinha visto ninguém se aproximar, então estranhei a sensação. Olhei em volta. Não havia ninguém do lado esquerdo nem do direito. Então senti uma mão nas minhas costas. A leve pressão da mão me fez sentir calafrios na espinha, e meu coração disparou. Nem precisei me virar para saber quem era. De algum modo eu sabia que Michael estava atrás de mim. Ele tirou as mãos das minhas costas e se aproximou: — Tem alguém sentado aqui? — sussurrou enquanto se esgueirava ao meu lado. Nunca havíamos ficado tão perto um do outro. Eu mal podia respirar, quanto mais responder. De onde vinha essa atração física tão forte? Nos últimos dias, eu começara a gostar dele de verdade, mas nunca tinha sentido nada como aquilo. Com ele ou com quem quer que fosse, aliás. — Não — consegui, por fim, responder, engolindo a seco. — Legal. Acho que vou só ficar do seu lado, não vou me sentar, assim podemos sair mais cedo. — Claro — respondi com uma voz que me esforcei para fazer parecer calma, apesar de não me sentir nada tranquila. As luzes diminuíram, tornando nosso cantinho ainda mais escuro. O diretor começou a mexer nos papéis no pódio. Ele bateu no microfone, fazendo um ruído estridente. Eu e Michael nos olhamos, tapamos os ouvidos e rimos. Então nos aproximamos em um silêncio cúmplice enquanto o diretor começava o discurso. Ouvi o diretor Robbins dar as boas-vindas aos alunos do penúltimo ano e cumprimentar os mais antigos, mas eu não estava escutando de verdade. Ouvi a multidão rir educadamente de alguma piada sem graça contada pelo diretor e sorri junto, como se estivesse prestando atenção. Contudo, tudo o que eu podia ouvir, ver e sentir era Michael.

24 O diretor Robbins apresentou o vice-diretor e quase caiu sobre a platéia enquanto cruzava o palco rumo ao pódio. Fez-se um breve silêncio, e Michael se inclinou sobre mim. Pude sentir sua respiração quente em meu rosto e fiquei imaginando o que ele iria fazer ou dizer. Ele me cutucou com o cotovelo, mostrando-me a porta do ginásio ,e falou: — Acho que alguém está olhando para você. Dei uma olhada. Na escuridão do ginásio, vi a silhueta de uma pessoa contra o feixe de luz brilhante que saía da porta entreaberta. Era Ruth. Mais do que tudo no mundo, eu desejava ficar sozinha com Michael, mas sabia que era impossível. Eu tinha de fazer um sinal para minha amiga. Antes que eu me mexesse para chamar Ruth, voltei para agradecer Michael por tê-la me apontado. Mas ele já tinha saído. Conforme ele se distanciava tive a impressão de ouvi-lo dizer: — Talvez eu te veja neste fim de semana.

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Seis O fim de semana seguinte foi longo e cheio de dúvidas. Michael não aparecera para me ver como pensei tê-lo ouvido dizer. Então eu tinha muito tempo livre para encarar meu celular esquecido e pensar em Michael. Não conseguia deixar de imaginar por que Michael insistira tanto em andar atrás de mim durante a semana anterior. Não que ele tenha declarado algum interesse específico ou algo do gênero, mas ele forçara um pouco a barra para me ver durante a semana na escola por amizade ou algo mais, não sei dizer direito. Será que tínhamos ficado assim tão ligados na viagem à Guatemala? E por que justo eu? Ele parecia ter feito outras amizades no pouco tempo em que estava em Tillinghast, com o tipo de garotos que saíam com as meninas mais populares e ignoravam o resto de nós. Não consegui deixar de sentir que Michael logo começaria, um dia, a me ignorar também. Na segunda-feira de manhã, eu estava insegura. Assim, quando saí da aula de inglês, confirmei meus receios: Michael não estava sozinho me esperando, mas conversando com um grupo de atletas. Temi que ele tivesse desistido de nosso breve relacionamento, de que ele não estivesse de fato interessado desde o começo. Deixei meu cabelo cair sobre o rosto e fui em direção oposta para evitar passar por ele, embora eu tivesse de ir para outro lado para assistir à próxima aula. Ao caminhar pelo corredor o mais rápido possível, ouvi alguém me chamando. — Ellie.

26 Reconheci a voz de Michael, mas estava tão envergonhada por ele ter me visto olhar e sair apressada que continuei a andar. — Ellie. — Sua voz foi ficando mais alta, e pude ouvir seus passos se aproximando. Continuei fingindo que não o tinha escutado. Michael se pôs do meu lado e pegou no meu braço. O local em que ele tocou começou a formigar. — Ellspeth — ele sussurrou, e seu hálito me deixou arrepiada. Meu fim de semana longo e decepcionante não tinha sido capaz de anular a reação física que ele causava em mim. Parei e olhei de volta para ele. Ele parecia chateado. — Você sabe que me viu. Por que saiu andando? — Você estava ocupado — expliquei. — Eu não queria atrapalhar. — Você deveria saber que não estou nem aí para eles. Estou interessado em você. — Jura? — Juro. Nosso olhar se cruzou por um segundo, e notei que Piper e Missy se aproximavam de nós. E nos observavam. Michael também deve ter notado, porque parou de me encarar e mudou de assunto. — Desculpe, não pude te ligar. Seu fim de semana foi bom? — ele quis saber, enquanto começávamos a caminhar pelo corredor novamente. — Sim, acho que sim. — Eu queria desesperadamente perguntar por que ele não tinha me ligado, mas não queria que ele achasse que eu tinha ficado pensando no que me falara na sextafeira. — Você gostou do filme de sábado? — Você estava no Odeon? — Fiquei chocada. Qualquer garoto do último ano com um mínimo de amor próprio morreria se tivesse de ir ao Odeon, onde só passavam filmes estrangeiros e produções independentes. E, pelo que me lembrava, o cinema estava praticamente vazio. À simples menção do nome do Odeon, Piper e Missy riram e saíram andando. Naquele segundo elas haviam claramente decido que Michael não importava se ele era bonito e aluno do último ano — não valia a pena. Ele havia se revelado um idiota aficionado em filme indie. Sentime aliviada.

27 Michael respondeu como se nem tivesse percebido nada, ou melhor, nem ligado para o que Missy e seu grupo pensavam dele. — Eu cheguei atrasado. Você e sua amiga pareciam estar se divertindo tanto que não quis interrompê-las. — Você estava lá sozinho? — deixei a pergunta escapar e, então, minhas bochechas ficaram vermelhas. Eu queria saber se ele tinha levado alguma namorada, mas por que eu tinha de dar na cara daquele jeito? Ele sorriu. — Sim, estava. Isso provavelmente não é muito legal, né? Ir ao cinema sábado à noite sozinho? — Ele não parecia estar nem um pouco envergonhado. Na verdade, sua capacidade de fazer o que quisesse sem se preocupar com as consequências sociais de seus atos era uma das coisas de que eu mais gostava nele. Fiquei ainda mais vermelha, se é que isso era possível. Não quis ofendê-lo, mas, pelo menos, ele não entendeu o verdadeiro motivo da minha pergunta. Ou, pelo menos, teve a decência de fingir que não entendia. Michael continuou: — Morei em muitos lugares e aprendi a não me preocupar em parecer legal. Aprendi a ser suficiente para mim mesmo. E, de qualquer maneira, Tillinghast é uma cidade pequena. É bom fugir um pouco, mesmo que seja apenas para ir ao cinema. Se é que isso faz algum sentido. — Faz, sim. — Ele falou de um jeito que parecia aceitável, e não estranho, passar a noite de sábado no Odeon. E eu realmente entendi o que ele queria dizer. Como havia passado muito tempo em contato com outras culturas, compartilhava da mesma compulsão por escapar dos confins de Tillinghast rumo a outros mundos. Ele voltou a falar do filme, um filme francês. Logo ficamos novamente absortos em uma discussão sobre os melhores filmes franceses. Meu favorito era a trilogia Três cores, enquanto ele gostava mais de La a Femme Nikita e suas cenas de ação estilizadas. Chegamos à porta da sala da aula de cálculo rápido demais (para mim, pelo menos). Mais uma vez, tinha de enfrentar o momento constrangedor da despedida. Antes que eu dissesse qualquer bobagem, Michael falou: — Eu gostaria de te perguntar... — Ellie, aí está você! — bradou Ruth enquanto se colocava entre nós. — Você deve ter esquecido isto no meu carro de manhã, e saiu da aula de inglês antes que eu te entregasse. —

28 Ela esticou a pasta e me entregou. Peguei a pasta de sua mão com cuidado para não tocá-la. Desde que começara a ter as visões, tomava muito cuidado para não ter nenhuma visão sobre minha amiga. No final do ano passado, na escola, eu tocara seu braço sem querer quando ela olhava para Jamie, um aluno do penúltimo ano que ela sempre chamara de ‚burro‛, e vi que, na verdade, ela sentia algo intenso por ele. Não queria mais ter nenhuma visão sobre Ruth. Isso tornaria nossa amizade esquisita. Comecei a mexer na pasta que Ruth tinha colocado na minha mão e percebi que meu trabalho de cálculo estava lá. — Nossa, obrigada, Ruth, não acredito que quase esqueci. Ruth estava diante de Michael, pasma — e sem palavras. Percebi que ela estava entre mim e Michael sem se dar conta de que estávamos conversando. Por que ela acharia que eu conversaria com ele? Por fim, decidi conscientemente não falar nele para Ruth. Mas, com base em sua reação, percebi claramente que tinha tomada uma péssima decisão. Como eu queria já ter falado sobre ele para ela! O que mais eu poderia ter feito naquele momento além de apresentá-los e tentar agir normalmente? — Acho que vocês não se conhecem. Ruth Hall, este é Michael Chase. Michael, esta é Ruth. — Prazer, Ruth — falou Michael. Ruth, mesmo assim, não disse nada, ficou só olhando. Parecia que ela nunca tinha visto um garoto conversando com sua melhor amiga antes. Como Ruth não respondia, Michael virou-se para mim e continuou: — De qualquer jeito, Ellie, sei que ainda é começo de semana, mas gostaria de saber se você tem compromisso para sábado à noite. A gente poderia ir ao Odeon juntos. Olhei para Ruth, que estava literalmente de boca aberta. Já tínhamos falado em ir ao Odeon assistir ao novo lançamento no próximo sábado à noite. — Na verdade, eu e Ruth combinamos... Num sobressalto, Ruth saiu de seu encanto. — Ellie, esqueci de te dizer que tenho uma festa de família no sábado à noite. Então você está livre, totalmente livre. Festa de família? Ruth não tinha nenhum parente além de seu pai. Esse era um dos motivos pelos quais ela ficara tão próxima de mim e dos meus pais, e seu pai ficara tão próximo

29 dos meus pais. Isso e o fato de seu pai e os meus dividirem uma quase obsessão por tudo que estivesse ligado ao meio ambiente. Ruth realmente se sentia responsável por mim, apesar de chocada por me ver conversando com Michael. — Legal — disse Michael sorrindo para Ruth. Ele me olhou de novo. — Nos encontramos lá às seis e meia? Fiquei um pouco surpresa por ele não ter se oferecido para me buscar, mas, afinal, o que eu sabia sobre encontros amorosos? Esse seria meu primeiro. — Claro, vejo você lá. Ele riu. — Tá bom, mas hoje ainda é segunda. Acho que a gente ainda vai se ver antes disso. Fiquei corada. — Claro, claro. O sinal tocou. Despedimo-nos rapidamente e cada um foi para sua classe.

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Sete Esperava que Ruth me aguardasse no fim do dia. Eu sabia que tinha explicações a dar. Não tinha falado nada sobre Michael e, de repente, íamos sair juntos. Era algo sério, do qual Ruth só tomara conhecimento porque encontrara comigo bem na hora. Não tinha certeza de como ela reagiria à novidade, mas o fato de ela ter sacrificado nossos planos para eu sair com Michael era um bom sinal. Pelo menos assim eu esperava. Ela estava me esperando na entrada principal distraída, mexendo nos cabelos compridos e ruivos, claramente perdida em seus pensamentos. Ruth ficou quieta enquanto caminhávamos para o estacionamento. Tínhamos combinado de ir à biblioteca fazer nosso primeiro trabalho importante de inglês, e ela foi dirigindo. Meus pais ecologicamente corretos não queriam que tivéssemos mais de um carro por causa daquela história da pegada de carbono. Eles achavam que eu podia e devia ir a pé a qualquer lugar de Tillinghast, mesmo durante o inverno. Irritavam-se com o fato de eu descumprir sua vontade, andando de carro com Ruth para todos os lugares. Eu também fiquei em silêncio, esperando por seu veredito. — Por que você não me contou sobre Michael? — ela soltou finalmente. Ainda não sabia exatamente o que ela estava pensando, então falei com cautela: — Contei o quê? — Sobre seu relacionamento com ele.

31 — Relacionamento? Nós só nos vimos algumas vezes na escola durante a semana e conversamos, no máximo, umas cinco vezes. Hoje foi a primeira vez em que falamos sobre sair juntos. — Não leva a coisa ao pé da letra, Ellie. Você conversou com ele várias vezes e não me falou nada sobre ele. E você teve várias chances de falar sobre isso; passamos a noite do sábado juntas. Eu já tinha a resposta: Ruth estava brava. Tanto quanto uma pessoa reservada como Ruth poderia estar. Pensei que seu sentimento não era motivado por ciúmes do meu sucesso insignificante com um garoto, mas por eu não ter contado nada a ela. Eu sabia que a simples ideia de guardarmos segredo uma da outra era inconcebível. Na verdade, para ela, isso era o equivalente a uma traição. Feria sua ideia de lealdade. — Desculpe, achei que não havia muito que contar. — Pensei que a gente contasse tudo uma para outra. Mesmo que fosse uma coisa à toa. — Ruth, ninguém sabe melhor do que você que eu não tenho nenhuma experiência com garotos. Não sei se ele está sendo legal porque estivemos juntos na Guatemala anos atrás, naquele programa cansativo de verão. Então eu não realmente não sabia o que te contar... — Ele estava em uma das viagens que seus pais costumam fazer? — indagou, fazendo uma pequena pausa para processar aquela valiosa informação. — Então por isso ele ficou nos encarando no primeiro dia de aula... Ruth havia visto Michael naquele dia. Fiquei perplexa diante do fato de ela tê-lo visto e não ter dito nada a respeito e chateada porque ela achava que a única razão para um garoto me olhar era por me conhecer. Mas era eu quem estava em uma posição delicada, e não ela, então concluí: — Sim, nossos pais trabalham mais ou menos na mesma área. Ele me reconheceu no corredor, e foi estranho, porque não me lembrei dele... Ruth não conseguiu conter a raiva e me interrompeu: — Entendi, Ellie. Mesmo estando um pouco brava porque me escondeu isso, fico feliz por você — resumiu com sinceridade. — Então, que roupa você vai usar no sábado? Eu estava perdoada, e Ruth havia começado bem, escolhendo mentalmente a roupa que eu deveria vestir em meu guarda-roupa restrito. Meus pais não eram partidários de acumular muitos bens além do estritamente necessário. Ruth ficava consternada, pois estudava moda secretamente, apesar de ser impossível saber disso apenas olhando para seu ‚uniforme‛ escolar sem graça: calça jeans, camiseta e malha. Após ouvir Ruth discorrer sobre as vantagens do jeans

32 sobre a saia, arrisquei fazer uma pergunta sobre Michael. Uma que eu desejara fazer a semana toda, mas hesitara com medo de trazer à tona o lado protetor de Ruth. Até aquele momento. — Você não sabe nada sobre ele, né? — perguntei e senti minhas bochechas ficarem vermelhas como tomates de novo. — Quero dizer, você ouviu alguma coisa sobre a mudança de Michael para cá? — Bem, vamos ver. Eu praticamente podia ver Ruth procurando nas pastas que ela guardava sobre cada pessoa do ensino médio em seus arquivos internos — mais um de seus passatempos secretos. Ela coletava fofocas, mas não as espalhava. Pelo menos não para ninguém além de mim. Ela dizia que guardava essas informações por necessidade, e não por interesse real; para ela, conforme aprendêramos em A arte da guerra, que havíamos lido para a aula de história no ano anterior, precis{vamos ‚conhecer nossos inimigos‛. Para Ruth, j{ tínhamos vivido situações desagradáveis o suficiente por causa do grupo de populares e aspirantes a descolados. Novamente, sua personalidade protetora vinha à tona — para proteger a ela e a mim. — Sua família se mudou para Tillinghast neste verão. Ele joga futebol americano e acho que maravilhosamente bem. De qualquer modo, foi isso o que disse o novo técnico. Todos os diferentes grupos de garotos o tratam bem — os jogadores de futebol americano, de futebol, até os junkies —, mas ele não pertence a nenhum grupo. Parece preferir a própria companhia e fazer as coisas porque quer, e não porque os outros querem. Ah, e é inteligente. Assustadoramente inteligente, pelo que ouvi. Apesar de vermelha, lancei a pergunta que de fato eu queria fazer. — Ele namorou alguém? — Não — ela riu. — Algumas garotas já estão a fim dele, mas não ouvi ninguém falar que ele prestou atenção em alguma em especial. — Ela parou e sorriu para mim. — Até agora. Sorri de volta. Minha ligação íntima com Michael tinha, de repente, se tornado real. No fim da semana, já não aguentava mais falar sobre o que eu deveria vestir no meu encontro. Ruth tinha ficado frustrada ao tirar todas as peças do meu armário; ela considerou completamente inadequada minha coleção de jeans escuros, calças de veludo, malhas, camisetas e blusinhas. Então me levou até seu armário, que continha peças difíceis de usar, mas definitivamente descoladas e informais. Mas nenhuma servia em mim, que era mais magra e alta. Desesperada, Ruth, por fim, me arrastou até o shopping — um lugar que meus pais desaprovavam e consideravam um triste templo do materialismo — para procurar algo ‚apropriado para um encontro‛, fosse lá o que isso quisesse dizer. Havia apenas uma coisa boa na procura tresloucada de Ruth pela roupa perfeita para um encontro: entre isso e minhas atividades escolares, fiquei tão distraída que mal arrumei tempo

33 para pensar no objetivo de toda aquela loucura. Então, quando o sábado às seis e meia da tarde chegou e meus pais me deixaram em frente ao Odeon meio desconfiados com o fato de Michael não ter ido me buscar eu não estava tão nervosa. Fiquei parada sozinha na porta do Odeon vendo o relógio percorrer quinze minutos. Aqueles quinze minutos me deram bastante tempo para rever todas as minhas conversas com Michael e sentir vergonha dos meus comentários inconvenientes, de imaginar sobre que diabos iríamos conversar e de verificar pela terceira vez a roupa que Ruth escolhera. Comecei a ficar tão ansiosa que pensei se deveria ir embora. Então Michael apareceu na esquina. Quando vi que ele usava uma calça cáqui e a camisa abotoada até o pescoço, fiquei feliz por estar vestindo um blazer vintage, uma blusa preta de manga comprida da loja J. Crew e calças skinny pretas que Ruth insistira que eu usasse. E fiquei muito, mas muito feliz por tê-lo esperado. — Desculpe ter feito você esperar, Ellie — disse Michael, me entregando uma sacola de presente dourada, linda. — Isto não serve de desculpa, mas espero que justifique meu atraso. Peguei a sacola com um leve e cauteloso sorriso. Abri-a e tirei de dentro uma caixa de trufas de chocolate recheadas com canela caríssimas. Não conseguia acreditar. Durante a semana, Michael havia perguntado casualmente qual era meu bombom favorito, e eu havia lhe contado qual era meu objeto de desejo. Nunca imaginei que ele fosse comprá-lo para mim. — Não acredito que você lembrou. — Você não me falou que era difícil encontrá-lo em Tillinghast. — Não acredito que você achou isto na cidade. Só consigo comprar no free shop quando viajo com meus pais no verão. Ele sorriu envergonhado: — Não achei exatamente em Tillinghast. — Por favor, não vá me dizer que você precisou ir muito longe. — Vamos apenas dizer que a loja daquele grande hotel de Bar Harbor tem uma coleção bem legal de bombons. — Ele me pegou pela mão e falou: — Vamos, não queremos perder o filme, né?

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Oito Nem que eu tivesse escrito o roteiro teria pensado em um programa mais agradável. A escolha do filme fora perfeita: as cenas de ação e filosofia agradaram aos dois e ainda ficamos livres das cenas de amor constrangedoras. Para mim, já bastava ter de tentar me concentrar no filme enquanto meu braço ficava encostando no de Michael, imagine se ainda tivesse de encarar cenas de amor na tela. A lanchonete onde depois jantamos hambúrgueres e batata frita pareceu se transformar em um bistrô francês saído diretamente de uma das cenas do filme. E nossa conversa fluiu tranquilamente durante toda a noite. Dividimos a sobremesa e conversamos animadamente sobre outros filmes estrangeiros. Quando terminamos o bolo de chocolate e nossa discussão acalorada, ele disse: — Meu Deus, estou feliz por você estar em Tillinghast. Senti minhas bochechas ficarem bem vermelhas. Eu não sabia bem o que ele queria dizer, então mexi no bolo sobre o prato e indaguei: — Está? — Quero dizer, é tão bom encontrar alguém inteligente e interessada no mundo além de Tillinghast nesta cidade pequena. Alguém que tenha viajado para os mesmos lugares pouco conhecidos e que também tenha pais que só pensem na mesma coisa. O modo como Michael dissera ‚alguém‛ me fez hesitar. Ele estava feliz por achar alguém com quem ele pudesse se relacionar ou estava feliz em me encontrar? Como se soubesse o que eu pensava, Michael admitiu:

35 — Estou tão feliz por ter te achado aqui, entre todos os lugares possíveis. Imagine ver você de novo em Tillinghast depois de conhecê-la na zona rural da Guatemala. Sorri e levantei o olhar. — Mesmo que eu não me lembre de você da Guatemala? — Tentei muito evocar nem que fosse uma única imagem de Michael na Guatemala, mas não deu certo. Era como se houvesse um muro em minha cabeça e eu não conseguisse escalá-lo ou olhar em volta, não importa o quanto tentasse. Ele sorriu de volta. — Mesmo que seja fácil me esquecer da Guatemala. Rimos por causa da minha falta de memória, e fiquei muito aliviada. Até aquele momento, tínhamos evitado falar da Guatemala e da minha estranha amnésia. Mas a verdade é que eu me sentia mal quanto a isso. Não mais. Quando ele me ajudou a colocar o casaco, pensei em como eu tinha adorado tudo que vi em Michael. Ele era engraçado, cavalheiro e atencioso, sempre abria a porta para mim e até tinha parado para ajudar uma mulher mais velha que tentava atravessar a rua entre o cinema e o restaurante. Ele era viajado e brilhante e tinha apenas um defeito: parecia muito bom para ser real. Na verdade, ele estava tão à vontade que fiquei imaginando que ele já tinha ido a dezenas de encontros antes. Conversamos na porta da lanchonete e pensei que talvez devesse ligar e pedir para que meus pais me buscassem. Afinal, Michael não dissera nada sobre me levar para casa de carro e havia me pedido para encontrá-lo no cinema. Talvez ele não tivesse carro, e eu não queria parecer atrevida. Peguei o celular e comecei a digitar o número. Ele perguntou: — Para quem você está ligando? — Para os meus pais. — Você sempre tem de ligar para eles no meio de um encontro? — falou, rindo. — Não. Bem, eu não costumo ir a encontros... — respondi, ficando vermelha diante da minha confissão não intencional. — Quero dizer, não preciso ‚avis{-los‛, ou algo assim... Ele riu. — Estou só brincando, Ellie. Se você precisa ligar para os seus pais por algum motivo, é claro que pode ligar.

36 — Só pensei que a gente provavelmente tivesse indo para casa e eu ia ligar para eles virem me buscar. — Te buscar? Eu esperava te levar para casa de carro. — Jura? — Claro. Se estiver bom para você. Concordei com a cabeça, feliz. Michael ficou em silêncio enquanto me ajudava a entrar no Prius azul-marinho dos seus pais e me levava para casa. Fiquei pensando se eu tinha feito ou dito algo errado e tentei preencher o silêncio puxando papo. Mas Michael parecia perfeitamente satisfeito em dirigir quase sem dizer nada, com uma mão na direção e outra quase encostando na minha. Ele parou em frente à minha casa. Nossa pequena casa branca de estilo vitoriano, com um pórtico amplo, pintado com capricho de verde palmeira e bem cuidado que meus pais haviam ressuscitado de uma demolição, pareceu especialmente convidativa. As luzes acesas na cozinha eram sinal de que meus pais estavam me esperando acordados. — Quer entrar? — Não tinha certeza de que deveria perguntar, mas me pareceu a coisa mais natural a fazer. Além disso, eu estava nervosa. Nunca tinha saído com um garoto antes — muito menos beijado — e fiquei tentando adivinhar o que viria depois. Parte de mim esperava por isso, apesar de eu não ter a menor ideia do que fazer. — Talvez seja melhor eu entrar e ver seus pais da próxima vez. Preferia ficar só com você esta noite. As palavras ‚da próxima vez‛ me soaram docemente. Deram-me a certeza de que ele tinha gostado da noite, mesmo tendo ficado quieto. Pus minha mão na maçaneta da porta do carro e falei: — Até a ‚próxima vez‛, então. Michael alcançou minha mão e a tirou gentilmente da maçaneta. — Você não tem mais nada para fazer comigo ‚desta vez‛? — Se sua voz não tivesse oscilado quando fez a pergunta, ela teria soado suave. Em vez disso, soou encantadora. Mesmo ansiosa, eu também não queria que o encontro acabasse. Balancei a cabeça e baixei os olhos. Com a mão livre, Michael passou os dedos em minhas bochechas e nos meus lábios, e pousou a mão atrás do meu pescoço, levantando meu rosto para que eu ficasse de frente para

37 ele. Ele deixou a outra mão escorregar pelas minhas costas e me puxou para perto, tão perto que senti seu hálito na minha pele. Ele se inclinou para me beijar, e eu me rendi. Seus lábios eram macios e delicados, como se Michael tivesse ficado comigo a noite toda. Respondi intuitivamente, seguindo-o conforme ele ia ficando mais insistente. Devagar, bem devagar, sua língua invadiu meus lábios. Seu movimento delicado, mas intenso, me deixou sem fôlego. Esperei enquanto ele passava a língua na ponta da minha e em cima dos meus dentes superiores com uma vagarosidade sedutora. O movimento causou arrepios em minha espinha. Quis provocar a mesma reação nele. Hesitantemente, toquei sua língua com a ponta da minha e depois procurei seus dentes superiores. Imitando seus movimentos, passei a língua sobre os dentes dele, mas eles eram muito afiados. Gritei de dor enquanto meu sangue enchia nossa boca. O instinto me mandou recuar e me desculpar, mas Michael me segurou. Assim, a intensidade do beijo aumentou, tornando-se insistente, e me senti dominada pelo nosso ardor. Minha dor não diminuiu meu desejo. O sentimento era tão novo... Mas aquela urgência me era quase familiar. Como a que senti quando sonhava, à noite, que voava sobre a cidade. Arfando, Michael se afastou primeiro. Olhamo-nos com nossos olhos claríssimos, e vi um apetite voraz igualável apenas ao meu. Nunca havia imaginado que um beijo fosse daquele jeito. Nem mesmo nos filmes. — Acho que devemos parar — ele afirmou. Nunca sonhara em sentir tanta coisa em tão pouco tempo. Não queria parar e, como se estivesse em um sonho, falei: — Não, não quero parar. — E tentei alcançá-lo. — Sim, Ellie — disse ele, colocando a mão sobre a minha para evitar que eu me aproximasse. Mesmo assim, eu queria mais. — Por favor, Michael. — Tentei ir adiante, indo contra a pressão de sua mão. Ele me empurrou em direção ao meu banco. Gentilmente, mas foi o suficiente para quebrar o encanto. O que tinha acontecido comigo? Estava morta de vergonha diante do meu comportamento agressivo e por causa de sua rejeição. Encostei no banco, fugindo para o mais

38 longe de sua rejeição que consegui. Mas não foi o suficiente. Mais do que tudo no mundo, eu queria sair daquele carro. Enquanto eu procurava a maçaneta da porta, ele segurou minha mão. — Ellie, por favor, acredite que parei só porque quero ficar com você. E isso é só o começo. Tentei me soltar dele. — Não precisa me dispensar assim, Michael. Posso não ter experiência, mas não nasci ontem. Michael pegou minhas mãos. — Por favor, Ellie. Olhei para ele como se tivesse entendido — e aceitado — suas desculpas. Mas concordei com a cabeça apenas para que ele soltasse minhas mãos. Quando me livrei dele, abri a porta e corri para longe do carro. Para longe dele.

39

Nove Revirei-me na cama durante horas depois do encontro com Michael. Estava agitada, mental e fisicamente. Minha mente repassava toda nossa noite juntos, enquanto meu corpo estava atormentado por um desejo tão forte por Michael que nem a lembrança dele me empurrando conseguia afastar. Quando finalmente consegui dormir, já era quase de madrugada, e voltei a sonhar meu sonho recorrente. Começou como sempre: eu saía pela janela do quarto e voava sobre a cidade. Demorei-me, como de costume, sobre o parque gramado e a igreja antes de partir rumo ao mar. Antes de alcançar o penhasco rochoso que ladeava o oceano, vi uma luz brilhante vindo de uma casa próxima da praia — algo diferente em meu sonho habitual. Era a única iluminação visível na paisagem escura. De alguma maneira, meu corpo sabia exatamente o que fazer, então posicionei meus membros, de modo que ganhasse velocidade. Em segundos me aproximei da rua e dei uma volta em torno do perímetro da casa. Notei poucas lâmpadas acessas na sala e na cozinha vazias, mas a luz que eu vira não eram essas. Apesar de o resto da casa estar escuro, logo percebi que a luz azul vinha do quarto de cima — o quarto de Michael. Michael estava sentado à escrivaninha, olhando para o mar. Eu não conseguia ver de onde vinha a luz azul, então voei em direção à sua janela. Ele estava tão bonito e contemplativo que me deu vontade de tocá-lo. Mesmo sabendo que ele não me via, estendi a mão em direção a ele. Mas então o vento me golpeou e implorou por minha atenção. Vi que o vento bateu com força as macieiras do jardim de Michael, movendo ligeiramente os galhos e as folhas do final do verão.

40 Por um instante, deixei Michael de lado e segui minha inegável compulsão por voar mais alto. Inclinei a cabeça para cima, em direção ao céu, e meus ombros se aprumaram como se eu estivesse abrindo as asas. Fechei os olhos enquanto o vento me levava em seus braços, e o céu me puxou em direção ao firmamento. Rendi-me à alegria que o voo e a liberdade me despertavam. Porém, meu corpo deu uma guinada para baixo, se emaranhando nas macieiras. Olhei para as árvores, esperando ver alguma mão me segurando pelos tornozelos ou galhos sinuosos enrolados nas minhas panturrilhas. Mas não havia nada a não ser o poder da terra.

A próxima coisa de que me lembro é do telefone tocando. Levantei-me sobressaltada, surpresa por ver a luz do sol brilhando através das ripas da persiana da minha janela. Que horas eram? Busquei o relógio e não acreditei que já eram quase dez horas da manhã. Nunca havia dormindo até tão tarde, mesmo nos fins de semana. Acordar tarde não fazia meu estilo. Enquanto pegava minhas coisas para tomar banho, vi que o alerta de chamada do meu celular estava piscando. Verifiquei as chamadas e vi que eram de Ruth e de Michael. Podia adivinhar que Ruth estava louca para saber as novidades, mas o que Michael queria? Dar suas desculpas esfarrapadas de novo? Eu ainda não era capaz de ouvir nenhuma. Em vez disso, percorri o corredor até o banheiro. Esperava que uma chuveirada quente e demorada levasse as lembranças do meu sonho e os pensamentos sobre Michael que voltavam à minha mente. Depois de secar o rosto e o cabelo, ouvi minha mãe me chamando lá de baixo. — Ellie? Ellie, querida, você já se levantou? A porta do banheiro se abriu rangendo, e eu respondi: — Sim, mãe. — Que bom, precisamos sair em quinze minutos. — Apesar de meus pais não serem frequentadores assíduos da igreja aos domingos de manhã, eles haviam insistido que trabalhássemos como voluntários para servir a sopa aos pobres no domingo. Eles acreditavam que deveríamos adorar a Deus por meio de ações, e não de palavras. — Já vou.

41 Então não ia dar para tomar um banho quente e demorado naquela manhã. Mas talvez passar a manhã distribuindo sopa fosse exatamente o que eu precisava. A dura realidade iria afastar Michael da minha cabeça. Corri para me arrumar, mas a escova ficava presa a toda hora em um nó especialmente dificil de tirar. Tentei separar as mechas com o pente. O nó não desatava, e percebi que havia algo mantendo os fios enroscados. Por fim, joguei a coisa no chão e me curvei para pegá-la. Era uma folha de macieira. Coloquei a folha no alto, perto da luz do banheiro, para me certificar que era. Não havia nenhuma dúvida. Eu não conseguia lembrar a última vez em que estivera perto de uma macieira. Exceto em meu sonho, na noite anterior.

42

Dez Consegui evitar me encontrar com Michael na segunda e na terça. Ele tentou chamar minha atenção algumas vezes, quando eu saía das aulas, mas fingi não perceber. Eu não queria relembrar a humilhação e meu desejo selvagem no final do nosso encontro. À luz do dia, enquanto caminhava perto da escola, era dificil acreditar que eu, de fato, tinha agido daquele jeito. Para não correr nenhum risco, mantive Ruth do meu lado como um escudo. Ruth achou, mesmo depois de ouvir tudo que eu contara, que eu estava fazendo tempestade em copo d’{gua, mas me apoiou. Como sempre. Na quarta-feira, não vi Michael me esperando em lugar nenhum. Inicialmente, senti um alívio enorme por não ter mais de fingir. Mas, com o passar do dia, não consegui deixar de me sentir decepcionada. Mesmo morrendo de vergonha do meu comportamento e da reação de Michael, eu me sentia atraída por ele. Após uma reunião depois da aula da quarta-feira, fui até a biblioteca da cidade, caminhando sozinha. Ruth também fora a uma reunião para preparar o anuário escolar da sua turma, mas ia ficar até mais tarde, portanto, não pôde me levar de carro para casa. Para falar a verdade, eu queria dar uma volta para aproveitar o ar fresco do outono sozinha. Eu precisava ficar um pouco sozinha para tirar da cabeça os pensamentos obsessivos sobre Michael e me concentrar novamente nos estudos, que tinham ficado de lado. Após uma curva fechada, avistei a biblioteca a alguns quarteirões de distância. Era um prédio de mármore e granito datado do século XXI quando as proeminentes famílias milionárias da região ainda tinham dinheiro para gastar em Tillinghast; os fundadores da cidade não pouparam gastos na escadaria da entrada, digna da grandeza do edifício. Eu estava

43 prestes a subir seus degraus imponentes quando avistei o carro de Michael parado no estacionamento em frente à biblioteca. Será que ele sabia que eu ia para lá? Subi as escadas rapidamente, com a cabeça baixa. Quando ia abrir a enorme porta de bronze e suspirar aliviada, senti uma mão tocando meu braço. — Por favor, Ellie, apenas me ouça por um segundo. Eu não podia mais fingir. Virei-me e olhei para os olhos verdes claros de Michael. Ainda segurando meu braço, ele sussurrou apressado, como se tivesse medo de que eu fugisse: — Ellie, nunca tive tanta certeza de alguma coisa como tenho dos meus sentimentos por você. Na verdade, é algo tão forte que às vezes me assusta. Eu te afastei naquela noite porque eu queria muito você. E tive medo de assustá-la se eu cedesse aos meus sentimentos. Michael me encarava enquanto falava, sem vacilar o olhar ou as palavras. Como eu pude negá-lo a chance de se explicar durante aqueles dias? Virei o rosto e olhei para meus pés. Não tinha certeza de que merecia sua persistência. Ele colocou o dedo embaixo do meu queixo e levantou meu rosto para olhar nos meus olhos, mas desviei o olhar. — Ellie, você não precisa se envergonhar de nada do que aconteceu sábado à noite. Eu também queria. Segurei nosso impulso porque queria que as coisas entre nós fossem perfeitas. Minhas bochechas ficaram cor-de-rosa, e continuei olhando para o chão. — Eu também, Michael. Eu fiquei tão sem graça. Nunca tinha me comportado daquele jeito, nem tinha sentido nada parecido na vida, e então você... Ele colocou os dedos sobre meus lábios e sussurrou: — Shh, Ellie, eu também nunca tinha me comportado daquele jeito nem sentido nada parecido. E desculpe por ter empurrado você. — Mesmo? — perguntei sem olhar para ele, com medo de que, se eu olhasse, ele desapareceria, como um personagem de um dos meus sonhos, ou me rejeitaria de novo. Mais uma vez, Michael pareceu muito bom para ser real. — Mesmo. Podemos começar de novo? Por fim, olhei para ele e sorri envergonhada, enquanto dizia: — Eu adoraria. Michael desceu comigo as escadas íngremes da biblioteca e fomos até seu carro. Após abrir a porta para mim, enquanto eu esperava que ele entrasse do lado do motorista, vi um casal

44 subindo as escadas da biblioteca. Seu jeito atraente chamou minha atenção logo de cara, e percebi que conhecia a garota. Era Missy. Ela andava ao lado de um garoto alto e loiro que definitivamente não era Charlie, o rapaz do último ano com quem eu pensava que ela estava saindo desde o ano anterior. Michael abriu a porta do lado do motorista e entrou no carro. Antes de dizer qualquer palavra, inclinou-se para me beijar. Seu gesto inocente foi bem diferente do da outra noite, mas ajudou a aplacar meus medos e afastou todos os pensamentos sobre Missy e quem ela estava namorando. — Que tal se fôssemos até o mar? Há um ótimo lugar de onde poderíamos ver o pôr do sol — perguntou Michael. — Claro, parece uma boa ideia. Para meu alívio, Michael falou apenas sobre temas amenos, como lição de casa e aulas, durante o percurso até a costa. Mal notei a mudança de cenário, porque estava totalmente absorta em Michael e feliz por ter voltado a ficar com ele. Encostamos o carro na rua e saímos. Michael estacionou na área plana de um precipício escarpado que dava para a praia. Inclinei-me na beira do precipício e olhei para baixo, para uma enseada pitoresca que eu nunca tinha visto antes, mesmo morando em Tillinghast todos esses anos. — Que lugar é esse? — Chama-se Ransom Beach. O sol estava começando a se pôr. Logo surgiram, lá embaixo, na areia branca da praia, sombras púrpuras. Michael segurou minha mão e começou a me guiar por uma trilha irregular quase invisível que cortava o precipício. Ele demonstrou tanta habilidade na descida que não pude deixar de pensar que ele certamente já estivera lá várias vezes. Em minutos, descemos as pedras até a areia onde as enormes rochas escarpadas da enseada nos envolviam como um abraço gélido. Michael colocou o braço em volta do meu ombro para me proteger do vento, que uivava com força enquanto olhávamos o sol. Conversamos um pouco sobre a beleza do sol e então ele perguntou baixinho: — Eu queria falar sobre a noite passada, se não tiver problema para você. Fiquei tensa, então tentei melhorar um pouco o clima. — Nos já não falamos tudo que tínhamos para falar sobre isso? Ele riu.

45 — Quase. Quero falar com você sobre o motivo pelo qual acho a gente se sente tão atraído um pelo outro, Ellie. — Nos sentimos? — Você já sentiu que é diferente dos outros? Ri de novo, e não apenas porque ele estava sendo tão melodramático. Olhei para ele e respondi honestamente: — Se com ‚diferente‛ você quer dizer desajeitada, então, sim. — Desajeitada? Você está brincando, né? Balancei a cabeça. Mesmo achando meu jeito desajeitado engraçado às vezes, eu definitivamente não estava brincando. — Se você está realmente falando sério, então precisa entender que só você se vê assim. Todo mundo te acha inteligente, intimidante, viajada e bonita. Quase explodi em uma risada, mas recuei. — Tá bom. — Piper e Missy foram muito simpáticas com você recentemente, não foram? — Sim... — Fiquei tentando pensar em como ele descobrira isso e aonde ele estava querendo chegar com a pergunta. — Mas elas ainda ignoram você às vezes, né? — Sim. — Pessoas idiotas como Piper e Missy se aproximam de você e te esnobam ao mesmo tempo porque você as assusta. Elas não sabem como agir diante de alguém como você. Alguém atraente e brilhante e completamente desinteressada nos joguinhos delas. Alguém que elas sentem que é diferente e especial, mas não sabem como. Fiquei chocada de verdade. — Ah, Michael, eu já gosto de você, não precisa me bajular. Não sou diferente e especial. Meus pais sempre insistiram muito para que eu me achasse inteligente, importante e amada, mas, ao mesmo tempo, tinham o cuidado de me lembrar de que eu era uma garota comum, como qualquer outra. Com responsabilidades para com os outros e o planeta. — Se você pudesse ver como é bonita e especial... — Michael falou enquanto se inclinava para me beijar.

46 O vento e o frio crescente diminuíram enquanto me perdia em seus braços. Ele me abraçou e me beijou com uma intensidade rápida e crescente, como quando estávamos no ginásio e no seu carro. Eu só consegui ver, pensar e sentir sua presença. Ele me deitou na areia com suavidade. Seus beijos se tornaram mais insistentes, e adorei aquele arroubo crescente. Com um gesto familiar, sua língua invadiu meus lábios e tocou a minha. Michael recolheu a língua na boca e passou-a nos dentes, e então a senti tocar a minha levemente. De repente, um gosto metálico invadiu minha boca. Michael tinha deixado uma pequena gota de sangue cair na minha língua. A areia, o vento e a enseada desapareceram, e tive uma visão impactante — muito mais intensa do que as que eu já tinha tido. Vi-me no primeiro dia de aula, andando pelo corredor com Ruth depois da discussão entre ela e Missy. Vi-me virando a cabeça em direção a Michael e não pude crer em minha aparência. Minha pele e meus olhos claros contrastavam com meus cabelos escuros e brilhantes, e meu corpo comprido e ágil estava envolto por uma luz brilhante. Através dos olhos de Michael, notei que eu estava realmente linda, dona de uma beleza quase etérea. Sem mais nem menos, o corredor da escola desapareceu e surgiu outra imagem de mim mesma, bem mais desconcertante. Vi-me voando até a janela do quarto de Michael, que ficava no segundo andar da casa, e esticando a mão para ele, convidando-o a voar. Era uma cena do meu sonho. Recuei do beijo de Michael e a imagem desapareceu. Levantei da areia e perguntei: — O que foi aquilo? Como você sabia... — Como eu sabia que você tinha visões como aquela? Que você invade o pensamento, os sentimentos e as bobagens que os outros pensam? — Sim. — Eu mal conseguia respirar. — Como eu sabia que você sonha que está voando? E que, na noite passada, você voou até a janela do meu quarto no seu sonho? — Sim. — Ellie, eu te disse que você é diferente. Nós somos diferentes. E essa diferença significa que fomos feitos um para o outro.

47

Onze Diferente — o que Michael quis dizer com isso? Eu estava muito assustada para perguntar. Também estava apavorada — por causa dele, das imagens e até de mim mesma — por estar junto dele naquela praia longínqua, ainda mais àquela hora, quando já estava ficando escuro. Senti-me traída também. Será que ele tinha planejado reconciliar-se comigo apenas para me levar para aquele lugar e me assustar? E como ele sabia das minhas visões? E dos meus sonhos? Algo não esta claro. Afastei-me dele e virei a cabeça em direção à trilha rochosa que levava à estrada. Michael correu atrás de mim. — Desculpa, Ellie, não quis lhe assustar. Virei-me e falei: — Bem, você me assustou. — E então continuei andando. Senti suas mãos tentando me alcançar: — Vem cá, deixe eu ajudar você a voltar pela trilha. Grudei as mãos junto ao meu corpo enquanto seguia em frente, disse: — Não, obrigada, você j{ me ‚ajudou‛ bastante. Vou sozinha. Eu não queria que ele me tocasse. E se seus pensamentos e imagens passassem para mim ou, pior ainda, os meus passassem para ele?

48 O sol já havia se posto quase totalmente no horizonte, e a trilha estava muito escura; era dificil enxergar. Continuei em frente como se soubesse o caminho e o que estava fazendo. Enquanto andava pela trilha estreita, ouvi algumas pedras deslizarem pelo penhasco íngreme. O barulho me assustou, me fazendo perder a confiança e o passo. Escorreguei, porém Michael me segurou bem nessa hora. Sentei por um momento para recuperar o fôlego. Como não tinha tido nenhuma visão quando ele me segurara, achei que podia aceitar sua ajuda para percorrer o resto do caminho. Andamos juntos, ele segurando meu braço até finalmente chegarmos ao topo. Lá, tentei afastar a sua mão para ir até o carro sozinha, mas ele me segurou com força. — Ellie, olhe para mim. Eu não queria olhar para ele. Enquanto subíamos pelo caminho perigoso, pensei no que havia acontecido entre nós. Não importava se as sensações tinham ou não sido reais e eu ainda não estava pronta para enfrentar aquilo nesse momento —, eu estava brava. Como ele ousara me levar a um lugar tão isolado e perigoso para me fazer passar por tudo aquilo? Eu não queria que a raiva diminuísse e temia que isso acontecesse caso olhasse em seus olhos. — Por favor, Ellie. Fiquei olhando firmemente para o chão. — Por que eu deveria, Michael? Você me arrastou até essa praia distante para me assustar com algum tipo de brincadeira. — Brincadeira? — Sim. — Você acha que as imagens que dividi com você foram brincadeira? — Ele parecia espantado, até um pouco bravo. Não ousei olhar para seu rosto. — Sim. — Na verdade, eu não tinha certeza. Já tinha tido muitas visões, ou lampejos, ou o que quer que fossem para suspeitar que elas talvez fossem reais. Mas não quis admitir isso em voz alta para ele — porque aí eu teria de enfrentá-las. E eu ansiava desesperadamente por ser comum, como meus pais sempre haviam me dito que eu era. Eu nunca tinha tido nenhum problema pensando em mim nesses termos até aquele momento. Eu não queria ser diferente, ainda mais desse jeito esquisito. — Não teve nenhum truque, Ellie. Você é diferente. Nós somos. — Não somos. Não sei como você fez aquilo, mas não há nada de diferente conosco. Senti que Michael me encarava e não consegui mais manter o olhar afastado. Mesmo estando quase escuro, eu podia ver o brilho verde de seus olhos. Não queria ficar sem graça por

49 causa de seu olhar, então o encarei. Ele soltou minha mão. Então, de propósito, caminhou até a beira do penhasco e olhou para o oceano. — Michael, o que você está fazendo? Virando-se para mim, perguntou: — Você tem certeza de que seu voo foi só um sonho? Que você é apenas uma garota comum? Como não respondi, ele se virou para o mar. Ficou parado um momento, a silhueta escura sobrepondo-se ao céu fervilhando de carmim. Por um segundo, pensei que ele quisesse ficar um pouco sozinho, para se acalmar. Então me afastei em direção ao carro e depois me virei para ver se ele vinha atrás. Mas ele não veio. Ele nem sequer me olhou de volta. Em vez disso, naquele momento, esticou os braços e pulou do penhasco. Corri até ele, mas eu estava muito longe para alcançá-lo. Só parei próximo ao precipício. Desesperada, caí com as mãos e os joelhos no chão e engatinhei até a beira do precipício. Examinei bem o penhasco e a praia abaixo, mas não conseguia ver nada além das pedras cinzaazuladas e a areia branca. E então gritei. Em segundos, o susto passou e me ocorreu o óbvio: eu precisava descer para procurar sinais de Michael no penhasco e na praia. Ele podia estar machucado ou, ainda pior, depois de cair mais de dezoito metros. Só de pensar na palavra ‚pior‛ comecei a chorar. Senti-me tão culpada, como se minha falta de fé nele o tivesse empurrado. Mas as lágrimas não o trariam de volta. Então limpei o rosto e consegui ficar de pé. Quando estava prestes a descer a trilha, senti alguém batendo em meu ombro. Virei-me pensando que alguém que por ali passava tivesse me ouvido gritar. A ajuda era bem-vinda. Mas eu estava errada.

50

Doze Era Michael. Michael. São e salvo, sem nenhum machucado. Minha vontade era matá-lo naquele exato momento. — Como você teve coragem de fazer isso comigo? — gritei. Ele teve a audácia de sorrir. — Fazer o quê? Voar? — Me enganar! Virei para me afastar dele e ir em direção ao carro. É claro que ele havia me enganado. As peças se encaixavam. Ele tinha me levado àquele lugar isolado com tudo planejado para me fazer acreditar nas suas fantasias malucas sobre nossa ‚diferença‛, seja l{ o que isso quisesse dizer. E como tentativa desesperada de me convencer, encenara um ‚voo‛, um pulo totalmente premeditado em algum lugar do penhasco que ele obviamente conhecia bem, seguido de seu reaparecimento ‚m{gico‛. Como ele tinha conseguido fazer aquilo, eu não sabia. Ele não precisava recorrer a nenhum passe de mágica para me conquistar. — Cara, a coisa não está rolando do jeito que imaginei — ouvi-o murmurar para si mesmo. Continuei andando.

51 — Ellie, não teve truque nenhum. Você com certeza sabe que o único jeito de eu sobreviver a um salto como aquele era voando. Pensei que você precisava ver a verdade para acreditar no que eu estava lhe contando. Parei ao lado da porta do passageiro, esperando-o abrir o carro. Não olhei nem falei com ele. Logo percebi que não adiantava fazer nada, ele iria continuar com aquela história de todo jeito. A última coisa que eu queria fazer era me sentar sozinha com ele no carro, mas eu não tinha escolha. Queria ir para casa. Ele continuou tentando se explicar — não parava de falar em ‚nós‛ — na estrada. Mas eu literalmente não o ouvia. Agarrei-me à minha raiva para não escutá-lo. Para não ouvir todos os sentimentos que eu ainda tinha por ele e toda a verdade que poderia de fato haver em suas palavras. Nem me preocupei em me despedir quando saí do carro. Em vez disso, corri para a porta de casa, fechando-a atrás de mim. Senti uma vontade imensa de subir correndo as escadas até meu quarto e me enterrar embaixo das cobertas. Só queria esquecer aquela noite, Michael, todas as coisas esquisitas — e acordar descansada, em um novo dia. Porém meus pais me esperavam na cozinha. — Onde você estava, Ellspeth? — quis saber meu pai, com uma voz alarmada. Nunca tinha ouvido aquela voz antes. E ele havia dito ‚Ellspeth‛, nome que ele nunca usava. — Na biblioteca. — Mesmo? — Agora era minha mãe que tinha um tom de voz totalmente estranho e preocupado. — Você quer nos contar alguma coisa, Ellie? — perguntou meu pai dessa vez. — Não — respondi. Mas enquanto negava, lembrei que havia dito a eles que eu iria à biblioteca com Ruth depois da escola. E eu não tinha telefonado para Ruth para avisá-la que eu não estaria lá, que, em vez disso eu sairia com Michael. Sabia o que minha mãe ia dizer antes mesmo de ela falar. — Então por que a Ruth ligou aqui duas horas atrás procurando por você — da biblioteca? Dei a única desculpa que eu poderia dar naquela situação, mesmo sabendo que isso iria trazer um monte de problemas. — Eu estava na biblioteca, mãe. Mas com Michael, não com Ruth. E depois saímos para tomar um café. — O rapaz daquela noite? O garoto da Guatemala? — indagou minha mãe.

52 — Sim. Meus pais trocaram um olhar que eu não consegui decifrar. — Ellspeth Faneuil, você nos disse explicitamente que estaria na biblioteca com a Ruth. Você sabe muito bem que, se quisesse sair da biblioteca com outra pessoa, tinha de nos dizer. Principalmente com um rapaz que não vemos há três anos — falou minha mãe, me repreendendo pela primeira vez na vida. — Desculpem, eu devia ter ligado para vocês. — Sim, deveria mesmo. Devia pelo menos ter deixado o celular ligado — disse ela. — Por que não ligou, Ellie? — meu pai pareceu tão magoado que fiquei com lágrimas nos olhos pela segunda vez naquela noite. — Eu esqueci, pai. Ele suspirou. — Ah, Ellie, se você soubesse como é importante para nós, não se assustaria assim, nem se colocaria em perigo. Você é tão especial, não só para a gente, mas... O que diabos meu pai estava dizendo? Chamar-me de ‚especial‛ ia contra tudo aquilo que ele tinha me ensinado. Minha mãe o interrompeu inusitadamente. — O que seu pai quer dizer é que lhe amamos e não queremos que você corra perigo. Achamos que tínhamos lhe ensinado a confiar em nós, mas dá para ver que a adolescência mudou as coisas. Você vai ter de ser honesta conosco de agora em diante, ficou claro? — Sim, mãe. — Naquele momento, eu estava sendo sincera. Eu faria qualquer coisa para evitar aquele olhar sofrido no rosto tão perfeito dos meus pais. Eles pareciam ter envelhecido dez anos em uma só noite. Então, eles se levantaram e me abraçaram. O abraço me lembrou de que meu corpo doía de cansaço por todo o tumulto daquela noite. Eu ansiava por uma noite de sono. — Vocês se incomodam se eu for me deitar? — indaguei. — É claro que não, Ellie. — Meu pai me deu um beijo de boa-noite e sorriu. — Tem só mais uma coisa. — Claro, papai.

53 — Vamos ter de ver esse Michael de novo.

54

Treze Eu

achei

que

não

conseguiria

descansar,

mesmo

que

meu

corpo

ansiasse

desesperadamente por uma noite de sono, e que não conseguiria fechar os olhos pensando em Michael, na enseada e no mergulho no penhasco. Mas, no momento em que me meti debaixo das cobertas e me deitei no travesseiro, apaguei. Bom, apaguei neste mundo, adentrando o mundo conhecido com que costumava sonhar. Despertei naquele mundo com uma vontade enorme de voar, como nunca tinha tido antes. O impulso me atirou para fora da janela do meu quarto e me levou ao caminho de sempre. Voei pelas velhas ruas de paralelepípedos de Tillinghast com uma velocidade diferente e um total abandono. Embora, como costumava fazer, eu tenha parado no parque gramado onde ficava a igreja caiada de branco, que me encarava como um olho ciclópico, a pausa foi mais rápida que nunca. Antes de ir à costa, como sempre, segui a 1uz azul que vinha da casa perto da praia. Graças ao meu último sonho, sabia que era a casa de Michael. Embora eu lembrasse tudo que tinha acontecido entre nós mais cedo, no mundo real, meu desejo de encontrá-lo não diminuiu no sonho. Eu não tinha mais raiva dele, só sentia paz e entusiasmo por vê-lo. Fui imediatamente ao quarto do segundo andar, de onde vinha a luz — o quarto de Michael. Como da outra vez, ele estava sentado à escrivaninha, olhando o mar, o cabelo loiro brilhando na escuridão. Voei para perto de sua janela, mas, diferentemente do último sonho, o vento não tirou minha atenção de Michael. Estendi a mão para ele.

55 Dessa vez, Michael me viu. Esticou o braço e agarrou minha mão. Com esse movimento, saiu pela janela e flutuou ao meu lado. Tudo pareceu tão natural e fácil que não precisamos falar nada. Sorrimos um para o outro e partimos. Primeiro voamos apenas sobre as ruas adormecidas de Tillinghast. Passamos rapidamente sobre as lojas e casas e os prédios do campus, nos deleitando com a experiência de viajar juntos. Ele me empurrou para voarmos mais alto, e o desafiei a acelerar comigo pelas ruas. Rimos de pura emoção, e desejei que a vida real fosse fácil assim. Então Michael pegou minha mão e me levou pela costa, para longe de Tillinghast. Nos meus sonhos, eu sempre voava ao longo da costa, mas Michael me guiou por um caminho desconhecido. Abri a boca atemorizada conforme passamos pelas pedras imensas e pontiagudas e pela praia com areia, pedregulhos e enormes ondas de cristas repletas de espuma branca. E então ele parou. Examinado bem o lugar, percebi que já havia estado lá antes — de carro, mais cedo naquele mesmo dia. Tínhamos chegado ao penhasco que dava para Ransom Beach. Bem devagar, baixamos em direção ao chão. Estudei o cenário: era a hora mais escura da noite, e a lua estava apenas um quarto cheia, embora eu conseguisse enxergar cada rocha e cada grama como se fosse meio-dia. Melhor ainda, na verdade, eu estava realmente gostando do mundo do sonho. Embora o cume plano do penhasco me lembrasse da raiva e do medo que eu sentira mais cedo, nada abalava a calma e o prazer que impregnavam aquele sonho idílico. Eu curiosamente não sentia mais raiva. A vida real entrou sorrateiramente por um momento, quando desejei em silêncio poder guardar aquela paz em uma garrafa para usá-la sempre que Piper e Missy realmente quisessem me aborrecer. Michael se aproximou da beira do penhasco. Estranhamente, senti-me impelida a acompanhá-lo. Enquanto andava até ele, meus pés ficaram pesados, como se fossem de chumbo, contrastando com a facilidade e a leveza do voo. Michael sorriu para mim, como se compreendesse como me era estranho andar depois de voar, e me ofereceu o braço. Agarrei-me a ele com força e segui-o de volta ao precipício. De alguma maneira, eu sabia o que íamos fazer, e aceitei aquilo. Esticamos os braços e voamos. O vento batia no meu rosto quando mergulhamos de cabeça do penhasco de dezoito metros. Rochas irregulares e pedregulhos de bordas arredondadas passaram por mim zunindo, mas eu não estava assustada; pelo contrário, estava muito entusiasmada. De qualquer forma, eu sabia que, se a situação ficasse muito complicada, eu poderia acordar.

56 Pouco antes de batermos na areia com a cabeça, reduzimos a velocidade. Sobrevoamos alguns centímetros e pousamos — primeiro os pés na enseada, nossas mãos ainda dadas. No luar brumoso, a areia branca da enseada brilhava em contraste com a escuridão do mar. Estava tão feliz que Michael tivesse me trazido de volta a Ransom Beach. Ocorreu-me que ele talvez tivesse, mais cedo naquele mesmo dia, desejado dividir a beleza daquele lugar comigo. — Essa era minha intenção. Em parte — falou, como se estivesse respondendo meus pensamentos. Ou eu tinha expressado meus pensamentos em voz alta? — Percebi isso agora. Desculpe por ter ficado brava e abreviado nosso passeio. — Não se desculpe, Ellie. Foi culpa minha. Eu também tive outra intenção, mas você não está pronta para ela. — O que você quer dizer? — Eu queria lhe mostrar uma coisa. Mas era demais e muito cedo. Não respondi. Sabia o que ele ia dizer em seguida, mas não queria que ele dissesse. Queria permanecer naquele momento tranquilo, feliz com Michael e com aquele lugar. E também sabia que ele não podia parar de falar — e não pararia — depois de ter começado, e que suas palavras iam acabar com toda aquela serenidade. — Eu quero lhe mostrar quem é você. Tirei minha mão da de Michael. — Michael, eu já lhe disse, não tem nada para me mostrar. — Ellie, pense um pouco. O voo, as visões que você tem sobre os outros e o poder do sangue. Especialmente o sangue. Comecei a ficar brava com ele de novo. — E qual é exatamente o resultado dessa equação bizarra? — Eu acho... — Ele parou, como se suas palavras fossem duras demais, mesmo para ele. — Acho que somos vampiros. Eu não podia ter imaginado que ele viria com aquela teoria ridícula e fiquei em dúvida se ria ou batia nele. Escolhi rir. — Ah, Michael, isso é ridículo. De qualquer forma, isto é só um sonho. — Isto não é um sonho, Ellie. Você não se lembra da folha da macieira do último sonho, que ficou presa em seu cabelo?

57 Não quis ouvir mais nada e desejei acordar. A enseada começou a ficar borrada, e me senti desaparecer. Antes de desaparecer totalmente, ouvi Michael me chamar. Sua voz estava abafada e fraca, como se ele estivesse longe, mas posso jurar que ele disse: ‚Quando você sair de casa amanhã para ir à escola, prometo que estarei lhe esperando. Assim, você vai saber que isto não é um sonho.‛

58

Catorze Sentei-me na cama. O cobertor havia escorregado dos meus ombros, mas o sol que entrava pelas persianas das janelas do meu quarto me manteve aquecida. O relógio marcava sete horas da manhã. Eu só tinha vinte minutos para me arrumar antes que minha mãe me levasse para a escola, então corri. Fiquei feliz por não ter muito tempo para pensar. Bem depressa, lavei o rosto e penteei os cabelos. Passei um pouco de blush e rímel e fiz um rabo de cavalo. Só precisava de uma calça jeans e uma malha, já que eu não podia me dar o luxo de procurar uma roupa mais legal no armário. Ouvi minha mãe me chamando. Uma torrada de pão integral com geleia de framboesa esperava por mim na mesa da cozinha, ao lado de um copo grande de suco de laranja. Minha mãe me apressou, como fazia todas as manhãs; ela gostava de ser a primeira a chegar no escritório. Não falou a respeito da mentira sobre a biblioteca, e me senti aliviada por ela não parecer mais chateada. Pegamos nossas bolsas e fomos para a porta. Antes de ela abrir a porta, percebi que tinha esquecido meu trabalho de inglês na escrivaninha do quarto. Disse à minha mãe que a encontraria no carro e corri pelas escadas para pegar o trabalho. Enquanto descia correndo, ouvi vozes vindas do pórtico, na entrada de casa. Abri a porta e vi minha mãe conversando — com Michael. Parei. Por que ele estava ali? Vi a cesta de presente em suas mãos e supus que era um pedido de trégua por causa da confusão do dia anterior — uma maneira de agradar meus pais. A roupa de Michael — uma calça cáqui e uma camisa polo de mangas compridas, que causavam boa impressão — confirmou minhas suspeitas e me fez desejar ter tido mais de vinte minutos para me arrumar.

59 Minha mãe se virou em minha direção. — Veja, querida, seu amigo Michael nos trouxe um presente, pães caseiros. Para ele, o tom dela provavelmente soara amigável, mas eu tinha notado, pela maneira fria como dissera ‚seu amigo‛, que os pães não seriam suficientes para dobr{-la. Ela sabia que era eu a responsável por ter agido errado na noite anterior — e não Michael — mas tinha certeza de que o culpava em parte, julgando-o má influência. Minha mãe era bem mais durona do que aparentava, mais até que meu pai, na verdade. — Você deve ter passado a noite toda fazendo isso. Afinal, vocês voltaram bem tarde da biblioteca. — A indireta era para nós dois. Michael não olhava em minha direção, mas continuou encarando minha mãe. — Senhora Faneuil, tenho de confessar que foi minha mãe que mandou este presente. Ela disse que eu deveria entregar isto com seus cumprimentos. — Que bonito da parte dela. Por favor, agradeça ela por mim. — Ela fez uma pausa. — E, por favor, diga a ela que precisamos nos encontrar logo. Faz muito, muito tempo que não nos vemos. — Eu direi. Na verdade, ela disse a mesma coisa. Que faz muito tempo. Habilmente, Michael mudou de assunto e começou a falar da nossa viagem à Guatemala. Ouvi-o recordar pessoas e acontecimentos dos quais eu não me lembrava. Já havíamos conversado sobre minhas falhas de memória, então não me senti mal com a conversa, embora ainda fosse algo preocupante. Minha mãe olhou de repente para o relógio e disse que deveríamos ir. Por fim, Michael pareceu se lembrar de mim e perguntou: — Senhora Faneuil, a senhora se incomodaria se eu levasse Ellie à escola? Ela parou por um segundo; ninguém a não ser eu teria notado aquela pausa. — Não, tudo bem. Só tome cuidado com nossa Ellie. Que constrangedor! — Ai, mãe... Michael me interrompeu: — Prometo, senhora Faneuil.

60 Minha mãe me deu um beijinho na bochecha e ficou olhando enquanto Michael abria a porta do carro para mim. Entrei e esperei por ele, sem saber direito o que dizer quando ele fechasse a porta e ficássemos sozinhos. Quando ele entrou, virou-se para me dar um beijo. Sua audácia trouxe as palavras certas aos meus lábios. Afastei-me e disse: — Boa tentativa, Michael. Você acha que me esqueci de que estou brava com você por causa da confusão em que você nos meteu ontem, só porque trouxe pão para minha mãe? Para minha surpresa, ele sorriu e falou: — Não, Ellie, não acho que você me perdoou só porque minha mãe fez pão de banana. Você tem todo direito de estar brava comigo; sei que lhe assustei ontem à noite. — Ainda bem. Encostei-me no banco e cruzei os braços, satisfeita. Sentindo-me vingada, dei uma olhada para ele para ver como lidava com minha vitória. Para minha irritação, ele continuava a sorrir. Michael colocou a chave na ignição e ligou o carro. — No entanto, acho que você vai me perdoar porque mantive a promessa. Congelei. A única promessa que Michael tinha feito era me encontrar aquela manhã — e ele tinha prometido isso no meu sonho da noite anterior. Cruzei os braços com força no peito. Como ele poderia saber sobre a promessa a menos que tivesse invadido meu sonho — ou a menos que o sonho tivesse sido real? E, nesse caso, o voo também tinha acontecido de verdade. E também as visões. Mas eu não ia me permitir pensar naquilo até o final. Não falei nada quando ele saiu da minha calçada e entrou na rua. Andamos por vários minutos sem conversar; minha mente estava muito acelerada para encontrar palavras. Michael poderia estar mesmo certo? Então, sem tirar os olhos da estrada, ele falou: — Eu te disse que o voo não era um sonho. Só parece um sonho. — Então você voou de verdade em Ransom Beach? E o voo no sonho de ontem foi real? — suspirei alto a terrível verdade. Na verdade, aquilo não eram perguntas, pelo menos não mais. Mas eu estava muito confusa. E assustada. — Sim, Ellie. — Ele estendeu a mão para pegar a minha. — Nós sabemos voar. Mas acho que é muito dificil para gente aceitar isso. Então, quando nos aventuramos a voar à noite — quando nosso corpo se sente compelido a fazer aquilo para que ele foi programado —, nossa

61 mente nos diz que os voos são sonhos. Porque aceitar que voamos mudaria tudo o que já conhecemos. Ele fez uma pausa e olhou para mim. — Isso faz sentido? — Mais ou menos. Mas como consegui acordar na minha cama hoje de manhã e não lembrar o voo de volta de Ransom Beach ontem à noite, se os sonhos são reais? — Provavelmente porque nossa mente não está pronta para aceitar a verdade. E, se você se recordasse do voo de volta de Ransom Beach até a janela do seu quarto e depois se lembrasse de ter entrado em sua cama confortável, talvez não tivesse como negar o voo, e aí teria de assumir que ele foi real. — Não sei se estou pronta para enfrentar a verdade agora — sussurrei para mim mesma. Michael segurou firme a minha mão. — Estou aqui para te ajudar. Apertei a mão dele também. — Você passou por tudo isso? — Sim, mas daí a verdade ficou clara para mim, e eu não pude mais fingir que os voos eram sonhos — disse ele, sorrindo. — De todo modo, agora eu quero que eles sejam reais. E você também vai querer, você vai ver. Eu me senti enjoada. Tudo aquilo era demais para mim. Michael viu minha cara assustada e parou de falar; depois disse: — Sei que é difícil aceitar agora, mas nós dois temos dons extraordinários. — Não sei se consigo chamá-los de ‚extraordin{rios‛. Ou, na verdade, de ‚dons‛. Acho que ‚maldições assustadoras‛ é um termo melhor. Michael riu, embora eu não estivesse brincando. Quando ele percebeu que eu estava falando sério, também ficou. — Acredite em mim, sei que isso pode parecer assustador no inicio, mas vou estar aqui para te ajudar. No começo, eu achava que só eu tinha esses poderes e me senti muito sozinho. Tive um pensamento aterrador. — Por isso você me procurou? Para não ficar sozinho no meio de toda essa loucura? — Não, de jeito nenhum. — Estávamos perto da escola, e ele encostou o carro em um estacionamento quase vazio, próximo ao ginásio. Estacionou, pegou minhas mãos e falou: — Ellie, eu te procurei porque me senti atraído por você em todos os sentidos. Não apenas porque percebi que você era igual a mim.

62 Olhei bem em seus olhos verdes, e ele me pareceu sincero. Fiquei aliviada, mas não totalmente confiante. Nossa relação era uma montanha-russa desde que nos conhecemos. — Como descobriu que você e eu tínhamos esses... dons? — hesitei na hora de dizer aquela palavra. — Na primeira vez que te vi, não tive certeza. Você parecia diferente do resto das pessoas; tinha um brilho. Sei que viu isso quando te mandei aquela visão. Mas, no nosso primeiro encontro, quando provei seu sangue, tive certeza. — O que você quer dizer? — Seu sangue me fez entender tudo. Ele me mostrou suas visões e seu voo. Percebi que você tinha a mesma suscetibilidade ao sangue que eu. E ele me mostrou que você estava tentando agir como se nada disso estivesse acontecendo. Você estava apegada à imagem de ‚garota normal‛ que seus pais enfiaram na sua cabeça. — Meu sangue lhe contou tudo isso? — Bem, digamos que eu prestei bastante atenção. Mas o sangue pode contar quase tudo sobre uma pessoa. Você não notou isso com meu sangue? Fiquei vermelha ao pensar na minha cara quando havia experimentado o sangue de Michael. Não sabia se estava pronta para tudo aquilo especialmente para a palavra que começava com ‚v‛ que ele mencionara na noite anterior e na qual nenhum de nós tinha tocado naquela manhã —, mas não poderia mais fingir que era um sonho. Michael se inclinou para me beijar. Minha apreensão me fez hesitar por um segundo, mas então ele acariciou minha mão. Seu toque me deixou arrepiada e me fez lembrar como seus lábios, sua língua e seu sangue me fizeram sentir. Sem poder resistir mais, fui em sua direção. Ouvimos uma batida na janela. Separamo-nos e olhamos para fora para ver quem era. Era o professor de educação fisica, o senhor Morgans, avisando que o sinal ia tocar.

63

Quinze Michael foi para sua aula e eu para minha, mas antes concordei em encontrá-lo em seu carro no final do dia. O sinal tocou antes que eu chegasse à aula da senhorita Taunton, e ela não ia me deixar entrar de fininho. — Senhorita Faneuil, conhece minhas regras quanto a atrasos. Você me deve uma biografia de Jane Austen de dez páginas. Fiquei boquiaberta; ela devia estar de péssimo humor, pois suas punições geralmente eram trabalhos de mais ou menos cinco páginas. A senhorita Taunton percebeu minha cara de surpresa. — Não gostou da tarefa, senhorita Faneuil? Você pode ficar de castigo depois das aulas, então. Corri para aceitar o castigo mais leve. Se eu ficasse de castigo depois das aulas, meus pais saberiam que Michael me deixara tarde na escola; eu podia imaginar o olhar deles. — Não, não, senhorita Taunton. Fico feliz em aprender mais sobre Jane Austen. — Bom, senhorita Faneuil, eu também. Tenho certeza de que você irá me surpreender com algum segredo sobre uma de minhas autoras favoritas. Agora, classe, vamos ouvir... Enquanto andava até minha carteira no fundo da classe, notei o olhar compreensivo de Ruth. Eu não conseguia imaginar como iria descobrir alguma novidade sobre uma das autoras cuja biografia já era uma das mais conhecidas do mundo, mas eu tinha preocupações mais urgentes. Michael e nossos ‚dons‛, para citar apenas duas.

64 Depois de me afundar na carteira e abrir o zíper da minha bolsa, notei meu celular vibrar por causa de uma mensagem de texto. Aquilo era raro, o que me deixou intrigada; podia ser Michael. Usei minha bolsa como barreira para poder checar a mensagem. Nada deixava a senhorita Taunton mais furiosa que os alunos mexendo no celular. Vi a mensagem: a frase ‚sinto muito‛ e o desenho de uma carinha triste. Era de Ruth. Fiquei confusa. Olhei para ter certeza de que a senhorita Taunton estava entretida, interrogando outro aluno, e respondi. ‚Por quê? Por causa da biografia de Austen?‛ O celular vibrou de novo. ‚Não. Seus pais.‛ Ah, não. Com a confusão do sonho e a visita inesperada de Michael naquela manhã, tinha me esquecido completamente do telefonema de Ruth para meus pais na noite anterior. Senti-me péssima. Por que ela se sentia mal por ter ligado para minha casa se eu tinha deixado de contar sobre o encontro com Michael? Escrevi: ‚Culpa minha. Desculpe‛. Arriscando atrair a ira da senhorita Taunton, Ruth se virou em sua carteira e sorriu para mim, para mostrar que estava tudo bem. Isso fez com que eu me sentisse ainda pior, como se tivesse traído minha própria família. Por anos, Ruth e eu tínhamos divido tudo. Como não tínhamos irmãos, éramos como irmãs, e minha mãe fazia as vezes da mãe de Ruth sempre que ela precisava. Eu deveria implorar perdão a ela por não ter lhe contado tudo e por tê-la usado para acobertar meu encontro com Michael. E não o contrário. E, o que era pior, eu ainda precisava guardar um segredo dela. Como eu poderia lhe contar sobre os voos e as visões que eu tinha das outras pessoas? Ou sobre a maneira como o sangue me afetou? Ela iria, com razão, correr para contar tudo aos meus pais, e eles me internariam. Não, eu precisava investigar aquilo apenas com Michael, enquanto inventava um conto de fadas para Ruth sobre meu relacionamento ‚normal‛ com ele. A voz da senhorita Taunton havia ficado ainda mais estridente enquanto ela avaliava o conhecimento ‚insuficiente‛ sobre Jane Austen de um coitado do primeiro ano chamado Jamie. Peguei minha bolsa para guardar o celular, mas, de repente, me ocorreu que eu talvez tivesse alguns minutos livres enquanto a senhorita Taunton continuava com sua tirania. Cedendo à tentação, procurei a palavra ‚vampiro‛ na Wikipedia. Desci a barra de rolagem da longa página e, entre as definições terríveis que encontrei sobre os vampiros sugadores de sangue e assassinos, não achei nenhuma descrição parecida comigo ou com Michael. Senti um alívio; Michael podia estar errado. O nome do professor Raymond McMaster era citado constantemente na página. Havia um link para o site da Universidade de Harvard, no qual estava sua biografia. Ele era especialista em história de vampiros e outros seres sobrenaturais. Alguns de seus artigos

65 acadêmicos me pareceram interessantes e quase cliquei em um cujo título era ‚À procura do verdadeiro Dr{cula‛, mas ouvi alguém dizer meu nome. — Senhorita Faneuil, eu estou te atrapalhando? Levantei a cabeça rapidamente. A senhorita Taunton veio até mim. Corri para esconder o celular debaixo dos papéis espalhados em minha carteira. Por cima, coloquei o trabalho que eu deveria entregar. Ela parou a poucos centímetros de mim e esperou minha resposta, enquanto a classe toda prendia a respiração. — É claro que não. Eu apenas estava lendo mais uma vez o trabalho que devemos entregar hoje. A senhorita Taunton olhou o trabalho por sobre meus ombros, sorriu e pegou-o da mesa. Sua mão roçou a minha, e tive uma visão muito intensa. Eu estava em uma sala cheia de objetos, bem arrumada, forrada com papel de parede florido espalhafatoso e cujas mesinhas de canto estavam cobertas com paninhos de renda. Por um segundo, fiquei perdida, mas então olhei no espelho que havia de frente para o sofá onde eu estava sentada. A senhorita Taunton me encarava. Em seu colo estava um exemplar de O morro dos ventos uivantes. Lágrimas rolavam de seu rosto. Ela ia virar uma p{gina quando ouvi meu nome: ‚Ellie Faneuil‛. A triste imagem se esvaiu, e me vi encarando os olhos da senhorita Taunton. Eu quis tocar sua mão — sua vida tinha sido tão patética, tão macabra —, mas ela me dirigiu um sorriso mórbido. Meu estômago deu um nó, e ela falou: — Obrigada por nos entregar isso, senhorita Faneuil. Posso ver que este trabalho será muito mais interessante que o que eu tenho a dizer sobre Jane Austen. Por que você não lê seu trabalho em voz alta para a classe, já que ele parece tão fascinante? Levantei-me da carteira, pronta para ser humilhada. O título do meu trabalho era ‚Sexo em Orgulho e preconceito‛. Pelo menos minha humilhação na aula de inglês tinha servido para alguma coisa: apagar da mente de Ruth o incidente de domingo à noite. Como ela era uma amiga muito leal, manifestou-se para me defender da gozação que sofri dos colegas logo após a aula. Na hora do almoço, a história havia chegado até Missy, Piper e seus seguidores menos ilustres, e Ruth me defendeu deles também. Ninguém queria acreditar que eu tinha usado a palavra ‚sexo‛ no título para indicar ‚gênero‛, não importava quantas vezes Ruth tivesse explicado ou o fato de eles terem me ouvido ler o trabalho. Mal podia esperar aquele dia acabar, mesmo que a tarde também me reservasse seus próprios desafios. Sozinha, por fim, andei até o estacionamento dos fundos, ainda vazio, onde havíamos parado o carro. Lá estava Michael. Ele tirou um buquê de tulipas vermelhas de trás das costas e me entregou.

66 — Obrigada. São lindas. Onde você comprou? — quis saber. Eles quase nunca vendiam flores no restaurante da escola. — Posso voar, né? Fiquei horrorizada, e minha expressão deve ter sido coerente. Ele me puxou em direção ao seu peito. — Desculpe, Ellie, eu estava brincando. Fui de carro até a floricultura aqui perto. — Graças a Deus. — Continuei com o rosto enterrado em seu peito. — Imaginei que você precisasse delas hoje. Olhei para ele. — Ah, não, você sabe o que aconteceu na aula de inglês. Michael estremeceu. — Acho que todo mundo sabe. Gemi e afundei o rosto nas mãos. — Não foi como todo mundo está dizendo — expliquei, ficando ainda mais envergonhada. Ele deu um sorriso malicioso, e eu gemi de novo. — Nunca vou superar isso. — Tenho um plano para tirar isso da sua cabeça — ele disse, abrindo a porta do carro para mim. Enquanto eu entrava, perguntei com cautela: — Qual é o plano? — Acho que é hora de você praticar voo.

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Dezesseis Michael não queria dizer que iríamos levantar voo ali mesmo. Em vez disso, ele me levou até em casa, entrou para cumprimentar minha mãe, que tinha acabado de chegar do trabalho, e ficou para jogar conversa fora com ela antes de ir para casa fazer seus deveres. Fez tudo que se espera de um namorado novo — exceto pela ideia de me encontrar na janela do meu quarto à meia-noite. O jantar se arrastou naquela noite. Meus pais falaram sobre Michael algumas vezes, mas me senti aliviada, porque eles pareceram mais calmos graças à sua visita de manhã e à tarde. Eu estava muito inquieta; só queria levantar e ir para meu quarto me arrumar e espera-lo. O fato de eu desejar tanto me entregar às nossas habilidades estranhas era surpreendente. Eu odiava ser esquisita. Detestava o que Michael chamava de ‚dons‛. Até conhecê-lo. Não importava o que fossem aqueles dons, não ter de enfrentá-los sozinha era uma bênção. E aquela noite íamos voar juntos, e acordados, não mais escondidos nos sonhos. Quando meu relógio marcou meia-noite, eu estava sentada perto da janela, no escuro, por quase meia hora. Tinha escolhido um moletom parecido com um pijama, para o caso de eu cruzar com meus pais de sair, e colocado travesseiros sob as cobertas, na cama, para fingir que eu dormia. Olhava a janela e desejava que Michael aparecesse. Porém, quando ele, por fim, chegou, vi que nada poderia ter me preparado para aquela visão: seu rosto voando do lado de fora da janela. Seus cabelos loiros pareciam brancos em contraste com a escuridão da noite, e seu sorriso largo lembrava uma abóbora de Halloween; abafei um grito. Comecei a respirar bem fundo para desacelerar o coração, destranquei a janela e rezei para que as vidraças antigas não rangessem e acordassem meus pais.

68 — Pronta? — Michael quis saber. Concordei com a cabeça, mesmo aterrorizada. Ele esticou a mão pela abertura da janela e fez um gesto para que eu a segurasse. Minha mão tremia, mas agarrei a mão dele. Confiando nele mais do que nunca, o deixei passar o braço em volta da minha cintura e me levar pela janela, pelo ar. Voamos a uma altura de dois andares, e me agarrei ao seu braço como se fosse um salva-vidas. Mesmo que eu já tivesse voado antes, sempre havia acreditado que era um sonho — sem nada a temer, sem repercussões. Michael estava certo; uma vez que eu compreendera que não era um sonho, tudo havia mudado. Aquela experiência era totalmente diferente, quase hiperreal. — Tudo bem? — ele sussurrou. Ainda agarrada ao seu braço, sussurrei de volta: — Acho que sim. — Ok, vamos lá. Ele me puxou mais forte e levantamos voo. Fiquei imaginando aonde estávamos indo, mas não tive coragem de olhar. Em vez disso, afundei meu rosto no ombro de Michael. Senti e escutei o vento conforme aumentávamos a velocidade, e mal consegui ouvir suas palavras. — Ellie, você deveria abrir os olhos. É uma vista maravilhosa. Balancei a cabeça. Michael passou o braço ao redor do meu corpo. O silêncio só era quebrado pelo barulho do vento. Meu corpo começou a se lembrar de como voar, e senti meus ombros se aprumarem e minhas pernas ficando em posição aerodinâmica. Mas então minha mente foi dominada pelo medo, que permeava meus pensamentos, e Michael teve de me guiar. Diminuímos a velocidade, e pude notar que Michael tinha baixado em direção ao chão. Abri meus olhos hermeticamente fechados e engoli a seco. Ainda estávamos a pelo menos doze metros longe do chão. A que altura tínhamos voado? Jurei manter os olhos fechados até poder sentir o chão soo meus pes. Senti um baque, e então aterrissamos. Michael tirou o braço e vertiginosamente senti a grama macia que cobria o chao. Vindo para o meu lado, ele tentou me ajudar, fazendo uma piada: — E você achava que nunca tinha voado. Ri — E não tinha. Pelo menos não acordada.

69 — Você estava acordada, só não sabia disso. — Acho que esse é o problema. Hoje eu sei que não estou dormindo. Levantei e olhei ao redor, e consegui ver os pequenos detalhes da paisagem. Estávamos em um campo plano e aberto, rodeado por pinheiros, O lugar me pareceu seguro e isolado, o local perfeito para o primeiro voo. Esse pensamento me fez parar e pensar: o que estava acontecendo com a minha vida? — Vamos começar? — indagou Michael. — Sim — respondi, mesmo sem querer realmente tentar. Eu não estava apenas assustada, mas não queria fazer nada de que me envegonhasse, ainda mais na frente de Michael. Ele falou: — Quando tentei pela primeira vez, achei mais fácil começar de um lugar mais alto e mergulhar para baixo, em vez de decolar do chão. Infelizmente, não temos essa opção hoje. Esta é a única área segura para praticarmos. Michael me colocou na frente dele, deixou meus braços retos e se posicionou sobre a minha cabeça. E então sussurrou: ‚Relaxe‛ e afastou para assistir. Senti-me uma idiota. Primeiro, não consegui sair da grama, mas depois segui o conselho de Michael; fechei os olhos e me imaginei subindo. Tentei não analisar cada movimento e evoquei a sensação dos meus sonhos. Com uma sacudida, levantei os pés e comecei a voar. A sensação era diferente do meu sonho, mais vacilante e incômoda. Uma sensação que eu conhecia bem do meu dia a dia. Meus instintos lutavam pela minha atenção, implorando que eu esticasse os braços e as pernas e voasse. Quando me rendi aos meus impulsos, alcancei um pouco da eleg}ncia encontrada nos voos do meu ‚sonho‛. Comecei a gostar. Subi e mergulhei no céu escuro, como se estivesse em um playground. Quando fiz um movimento para mergulhar, vi Michael me observando no campo. Aproximeime dele e, em vez de dar meia-volta e subir, resolvi aterrissar. Mas eu não sabia como fazer uma aterrissagem suave. Aterrissei de bumbum, acertando Michael enquanto descia. Caídos no chão, começamos a rir histericamente. Limpei as lágrimas do rosto, me sentei e ele me puxou. Michael me beijou com tanta força que fiquei sem ar. Esqueci tudo sobre o voo e o campo. Rendi-me às suas mãos enquanto elas subiam e desciam pelos meus braços e minhas pernas, fazendo círculos por todos os lugares. Rendi-me à sua língua enquanto ela explorava meus lábios, minha boca e meu pescoço com seu toque suave. E depois, provei o sangue.

70 Senti o sangue de Michael percorrer meu corpo. Ele me queimou como o vinho que eu tomara escondido uma vez em um casamento, me fazendo sentir frágil e invencível ao mesmo tempo. Conforme o sangue subia pelo meu corpo, uma imagem de tirar o fôlego penetrou em minha mente. Ele se afastou. — Conte-me o que você viu. Uma pequena gota de sangue permaneceu em meu lábio. Lambi-a antes de responder. Eu queria mais. Com esforço, disse: — Eu vi uma linda mulher alada. — Alada? — Michael pareceu confuso. Fechei os olhos e tentei lembrar a imagem com mais exatidão. — Bem, ela não tinha exatamente asas. Eram dois arcos de luz atrás dos ombros. Ele concordou com a cabeça, como se essa descrição fizesse mais sentido. — Você a reconheceu? Logo percebi quem era ela. — Sim, era eu. Ele sorriu. — Agora você acredita que somos especiais? — Sim. Eu era, mesmo que isso fosse contra tudo o que meus pais tinham me ensinado. Não sei se era a influência inebriante do sangue, o voo ou apenas a proximidade de Michael, não importava. Eu acreditava nele. Michael me beijou mais uma vez. Senti-me dominada. Porém, uma pergunta me incomodava, me impedindo de ser totalmente tragada por ele. Afastei-me. — Como você descobriu o efeito que o sangue tem sobre você? Eu nunca teria descoberto se você não tivesse me mostrado. Mesmo estando muito escuro, minha nova visão, mais aguçada. me fez vê-lo enrubescer.

71 — Eu levei uma garota ao baile da escola no ano passado, quando morávamos em Pittsburgh. — Sim — disse, recuando um pouco. — Bom, nos beijamos no fim da noite e ela cortou a língua nos meus dentes. Você sabe como eles são afiados... — Sim, sei. — Fiquei mal ao pensar em Michael beijando outra menina. — Senti algo muito forte, mais poderoso do que tudo que eu já tinha sentido por meio do toque. Vi algo muito perturbador sobre a infância dela, algo que ela nunca tinha contado para ninguém. — O que era? Ele hesitou. — O pai dela costumava bater na mãe. Eles tinham se divorciado quando ela era pequena, mas vi as imagens claras de sua infância. Fiquei tão incomodado que não consegui mais olhar nos olhos dela. — Desculpe ter feito você me contar isso — falei, apesar de não lamentar por ele não ter conseguido mais olhar para a garota depois do incidente. Ele me abraçou. — Não peça desculpas. A gente precisa contar tudo um para o outro. Mesmo as coisas desagradáveis, tá bom? — Tudo bem. — Fiz uma pausa, pensando se eu devia mesmo dividir minhas especulações ‘desagrad{veis‛ com ele. Não haveria momento mais adequado para isso. — Então eu provavelmente devo te contar que sua teoria sobre vampiro é furada. Fiz uma pequena pesquisa e não acho que a gente se encaixe naquelas figuras de mortos-vivos que saem diretamente das covas e sugam sangue. Nós temos de ser outra coisa. Ele ficou quieto. — Não precisamos parecer com os vampiros dos filmes para sermos um, Ellie. Nós voamos, e acho que você não pode negar a influência única que o sangue tem sobre a gente. Não sei se o lance das ‚visões‛ se encaixa nessa classificação, mas, de verdade, o que mais poderia ser? Eu não tinha a menor ideia, mas pelo tom de voz de Michael pude perceber que ele não queria discutir. Fiquei em silêncio. Eu não queria estragar a mágica daquela noite com perguntas sobre nossa natureza.

72 A voz de Michael ficou mais suave, e ele me apertou com força. — De qualquer jeito, o que importa? Nós temos um ao outro, e somos um só. Seja lá o que for. — Ele deu um risinho irritante e disse: — Mesmo que eu continue achando que somos vampiros. De certo modo, ele estava certo: não importava o que éramos. Logo teríamos de descobrir quem — ou o quê éramos. Então relaxei nos seus braços e deixei minhas perguntas de lado. Por um momento, — deixei apenas ser, seja lá o que fosse, com Michael.

73

Dezessete Eu me transformei, embora a mudança não tivesse ocorrido do dia para a noite. Descobri que meus poderes, conforme admitira sua existência para mim mesma, tinham aumentado. Mais cedo do que imaginei, uma nova Ellie começou a lutar para emergir, uma Ellie que gostava dos seus dons — suas diferenças que surgiam sob as aparências. Como se ela tivesse dormido por muito, muito tempo e, de repente, acordasse. No começo, tentei manter as duas partes do meu ser — o eu poderoso, que vivia à noite; e o eu comum, que existia durante o dia — completamente separadas. Naquele momento, contudo, meu lado noturno passou a aflorar de dia. Enquanto eu caminhava pelos corredores da escola, sentia uma força poderosa percorrer meu corpo até a ponta dos dedos, e uma guerra se iniciar dentro de mim, sob minha aparente normalidade. Eu sabia que tinha a capacidade de ver a verdadeira identidade e os segredos mais obscuros dos outros — e eu estava louca para fazer isso. Às vezes, era quase impossível evitar tocá-los e até mesmo ajudá-los com seus problemas secretos. Essa compulsão fazia parte do que eu era? Aquilo era tentador e inebriante, e eu mal conseguia manter a imagem da velha Ellie. Mas eu precisava manter as aparências; de outro modo, minha dupla existência se revelaria. E, para isso, eu tinha de fazer coisas, como parar para tomar um café com Ruth, jantar com meus pais e também prestar atenção nas aulas e fazer a lição de casa. Como se nada tivesse mudado. Mesmo tentando manter a rotina com Ruth — almoçar todo dia, tomar um café depois da aula às sextas-feiras e até mesmo ir ao Odeon —, não havia como preservar nossa amizade sem rachaduras. Eu tinha uma vida com Michael da meia-noite às cinco da manhã — sem falar

74 no novo segredo —, e isso tornava o desempenho das minhas atividades normais no mínimo desafiador. Interpretar esse papel me deixava cansada e em conflito, especialmente perto de Ruth, a quem eu tinha prometido dividir tudo. Uma manhã, após a aula torturante da senhorita Taunton, parei no banheiro a caminho da aula de cálculo. Eu precisava ficar um minuto sozinha para me recompor. O banheiro parecia vazio, mas, enquanto eu lavava as mãos, julguei ter ouvido um barulho estranho no box do fundo. Desliguei a torneira e esperei um minuto em silêncio. O silêncio absoluto me fez duvidar de ter mesmo ouvido alguma coisa. Pus a mão na torneira para terminar de lavar as mãos quando ouvi um soluço abafado. A garota deve ter achado que o silêncio era sinal de que eu já tinha saído, pois a porta do box do banheiro se abriu um segundo depois. Para minha surpresa, essa garota era Piper. Fiquei tão chocada em ver aquela garota popular e bonita chorando no banheiro da escola que congelei. Meninas como ela nunca mostram fraqueza, pelo menos não na escola. Quando, por fim, consegui recobrar a calma e me comportar de maneira normal, perguntei, com pena: — Tudo bem, Piper? Deixe-me pegar um negócio — e fui buscar a toalha de papel. Apesar de eu e Piper sempre nos ignorarmos na escola, mantínhamos uma relação cordial, embora secreta, fora de lá. A Piper da escola ressurgiu, fazendo um gesto com a mão para me dispensar, como seu eu fosse sua empregada. — Não, não Ellie, estou bem. Entrou um negócio no meu olho. — Eu odiei quando ela voltou a se comportar como fazia na escola, como se eu não conhecesse seu outro lado. Vi seu reflexo no espelho do banheiro enquanto ela jogava água no rosto. Um cílio não poderia explicar o inchaço nos olhos, as marcas de lágrimas nas bochechas e o nariz vermelho. Se fosse uma de suas amigas idiotas, por quem eu não teria o mínimo de simpatia, eu talvez tivesse rido diante da desculpa esfarrapada. Mas não podia ridicularizar Piper naquela situação. — Vamos lá, Piper, você parece muito chateada. Posso te ajudar em alguma coisa? Ela parou de se lavar e me olhou com frieza. — Sim, pode. — O que você quer que eu faça? — Não conte para ninguém que me viu aqui, chorando. — E, após dar a ordem, pegou a bolsinha de maquiagem e começou a passar pó no rosto manchado. — Contar a quem? À Ruth?

75 — Tô pouco me lixando para a Ruth. — Ela fez um gesto de desdém. — E então mudou o tom de voz. Mas todo mundo sabe que você e Michael Chase estão saindo. Não conte para ele, tá bom? Ele conhece muitos caras, poderia espalhar isso por aí. Piper não teria ligado tanto se as responsáveis por suas lágrimas não fossem suas amigas. Eu estava muito curiosa para saber o que elas tinham feito para intimidar Piper, sempre tão dificil de dobrar. — Não se preocupe. Não vou contar para ele nem para ninguém — menti. E quando lhe entreguei o papel que tinha pegado para ela, meus dedos tocaram levemente a sua mão. A visão me atingiu em cheio. Vi Missy a poucos centímetros do rosto de Piper, como se eu fosse Piper. Missy gritava, com uma expressão malévola. Senti Piper se contrair aterrorizada conforme as palavras saíam dos lábios de Missy, como um açoite. — Quem você pensa que é? Como ousa se meter nos meus planos? — gritou Missy. — Desculpe, Missy, só achei que a gente talvez pudesse ter ido longe demais — explicou Piper. Senti que, para ela, era muito difícil discordar de Missy, mas, pelo menos uma vez, ela se sentira impelida a se opor à amiga. Piper tremeu diante da expressão malévola de Missy, que foi substituída por um sorriso. Piper parecia temer ainda mais o sorriso de Missy que sua cara de má. — Mesmo? Longe demais? — perguntou Missy, ridicularizando a amiga. — Sim — disse Piper, com a voz fraca. Missy continuou sorrindo e deu a volta em torno de Piper devagar como se fosse um falcão prestes a abocanhar sua presa. Havia alguém atrás de Missy, mas eu não conseguia ver quem era, pois Piper não ousava tirar os olhos de Missy. — De repente, pensei que talvez o plano funcione melhor para você do que para a pessoa que eu tinha escolhido — concluiu Missy. — Eu? — Piper se esforçou para manter a voz firme. Missy parou de andar em volta de Piper e a olhou nos olhos: — Sim, você. Senti o coração de Píper acelerar. — Eu estava errada, Missy, seu plano é perfeito, vamos colocá-lo em pratica do jeito que está.

76 O sorriso de Missy deixou de ser ameaçador e passou a ser triunfante, e ela sorriu para Piper e para a figura misteriosa que estava atrás dela. — Eu sabia que você ia entender. Começamos hoje à noite. Piper olhou o chão, enjoada e assustada. Mesmo sem levantar o olhar, conseguiu ver Missy e juntar-se de novo à pessoa atrás dela e andar com ele — eu sabia que era um garoto por causa dos seus sapatos — em direção à porta. Quando o rapaz misterioso passou por Piper, esticou o dedo e o passou sobre seu ombro. Senti Piper tremer com uma sensação estranha de repulsa e desejo. A imagem se dissipou, e então voltei ao banheiro. Eu ainda estava no mesmo lugar, com a mão esticada depois de ter entregado o papel a Piper. Havia se passado apenas um segundo, mas pareciam horas. Olhamos para o espelho, uma do lado da outra, como se nada tivesse acontecido. Éramos apenas duas garotas arrumando os cabelos e passando maquiagem. Era surreal. Vi Piper me olhando de cima a baixo. — Você está bonita, Ellie. — Obrigada — agradeci, e me olhei no espelho. Em vez dos jeans e da camiseta de sempre, estava vestindo uma blusinha estampada e uma calça jeans skinny preta que, de alguma forma, me caíram bem. Michael e minha nova autoestima, que tinha aumentado, tinham me encorajado a tentar outros looks. Eu ainda me sentia estranha, mas tinha gostado da reação de Michael. As roupas pareciam um pouco mais adequadas à minha nova personalidade. — Michael mudou você para melhor. Sorri. Ele tinha me influenciado, mas não da maneira que ela imaginava. — Vou dizer isso a ele. — Fechei o zíper da minha bolsa, pronta para sair do banheiro. Piper olhou para mim, implorando mais uma vez antes que eu saísse. A máscara tinha caído, e ela me olhava com a expressão que costumava ter quando estávamos no bairro, e não na escola. — Por favor, Ellie, não conte para ninguém o que você viu aqui. Se ela soubesse o que eu tinha visto...

77

Dezoito A visão não saiu da minha cabeça o dia todo e me afastou da tentação de tocar em outras pessoas. Eu tinha tido uma reunião torturante com a senhorita Taunton depois da aula e, quando ela acabou, praticamente corri para o Daily Grind para encontrar Ruth. Pensei que ela talvez tivesse ouvido algo sobre o plano de Missy e Piper, e eu estava louca para saber os detalhes. Na minha pressa para abrir a porta do café, quase bati nas costas de um homem que entrara um pouco antes de mim. Comecei a me desculpar, e então ele se virou em minha direção. Era loiro, tinha os olhos azuis e usava uma malha e uma calça jeans. Mas eu não conseguia saber sua idade; ele não era exatamente velho, mas parecia bem mais velho que os adolescentes que costumavam rondar o Daily Grind. Talvez estivesse na faculdade. Eu não podia negar que aquele homem, ou garoto, era lindo, mas havia algo perturbador em sua aparência encantadora que o tornava atraente e repugnante ao mesmo tempo. Foi o que pensei quando ele deu um sorriso estranho e desconcertante, perdoando minha falta de jeito. Sem graça, acrescentei mais um pedido de desculpas e corri até a mesa onde Ruth me esperava com meu café com leite. Fiquei tensa, com medo de que ela notasse meu nervosismo, mas Ruth estava mais preocupada com o Baile de Outono. Jamie, o rapaz da aula de inglês, aquele com quem Ruth fantasiara e que aparecera em minha visão, a havia convidado para o baile, então nós quatro iríamos juntos ao evento. Dei um gole no café e ouvi Ruth jogar conversa fora, enquanto esperava meu coração se acalmar por causa daquele encontro estranho. — Então nós vamos sair para comprar seu vestido juntas? — perguntei, agradecida pelo café. Eu precisava de cafeína; as noites maldormidas estavam cobrando seu preço.

78 Ela sorriu. — Sim, eu mal posso esperar. Dei uma olhada em umas revistas para ter uma ideia. Inclusive, achei algo perfeito para você. —É? — Sim, um vestido azul vivo, vai combinar com seus olhos. Não queria contar a Ruth, mas eu já tinha um vestido. Um dia, depois da aula, Michael e eu passamos em frente à única loja legal que havia em Tillinghast, e ele praticamente me arrastara para dentro. Enquanto esperava do lado de fora do provador, experimentei seis vestidos. Recusei-me a sair do provador para que ele me visse com os cinco primeiros, mas quando provei o sexto vestido, um tomara que caia de seda vermelho, franzido no corpete, não consegui mais ficar escondida. Parecia e me sentia tão diferente, mas não tinha certeza disso. Precisava da opinião de Michael. Saí do provador, e a reação de Michael deixou claro que aquele era o vestido perfeito. Quando fiquei de frente para o espelho, que refletia meu corpo inteiro, ele veio até mim, colocou suas mãos nos meus ombros e sussurrou. Sentada à mesa com Ruth, quase tremi ao lembrar o que ele disse: ‚Você est{ tão linda como quando voa‛. Ruth parou um segundo, e percebi que era o momento certo para perguntar sobre a visão que tivera de Piper. Discretamente, é claro. — Em inglês, você ouviu alguma fofoca sobre Missy ou Piper recentemente? Eu sabia que, se alguém fora os amigos mais íntimos de Piper tivesse alguma informação sobre o plano, esse alguém seria Ruth. Sua aparência despretensiosa encobria uma curiosidade insaciável; o disfarce perfeito, que permitia que ela escutasse tudo com uma extrema competência. Sei que eu poderia ter tocado nela para descobrir se ela sabia de alguma coisa, mas também sabia que, se eu lesse os pensamentos de Ruth, seria impossível agir como se nada tivesse acontecido ao seu lado. Assim, resolvi não tocá-la. — Não, só as bobagens de sempre sobre namorados e festas. Por que você está perguntando? Você geralmente não liga para isso. — Ouvi alguma coisa sobre um plano delas. Parecia algo bem ruim. — Um plano das duas? Quem falou? Como eu poderia explicar minha fonte? Pela milionésima vez, senti-me culpada por guardar segredos dela. Olhei em volta, procurando uma explicação, e disse algo próximo da verdade: — Eu estava no banheiro e ouvi duas garotas conversando perto da pia.

79 — Você reconheceu as vozes? — Parecia um pouco com as de Missy e Piper. — Vou ficar de ouvido ligado. — Obrigada. Não sei por que liguei para isso, afinal, os problemas de Piper diziam respeito somente a ela, e ela nunca tentaria me ajudar caso eu precisasse. Mas desde que assumira meus dons, vinha tendo um impulso muito forte de bancar a boa samaritana, e a visão que tivera de Piper me deixara com vontade de ajudar aquela vítima desconhecida. — Olha, Ellie, eu sinceramente acho que não vou conseguir ouvir nada. Piper e Missy são tão pouco inteligentes. Eu já discordar — talvez Piper e Missy não fossem alunas brilhantes, mas não eram burras no que se refere a conspirar contra os outros — quando ela lançou: — Tá tudo bem, Ellie? Era a pergunta que eu tanto temia. Odiava ter de mentir descaradamente para Ruth. — Sim, claro, por que a pergunta? — Você às vezes parece tão distante. — Desculpe, Ruth, é que... — Eu ia começar a dar a desculpa que eu tinha preparado para essa ocasião quando Ruth se distraiu. Ela estava olhando para alguma coisa ou para alguém atrás de mim. Eu não sabia se ela estava apenas tentando me mostrar como eu estava desatenta, então me virei para seguir seu olhar. Ruth estava boquiaberta, encarando um rapaz sentado na poltrona vermelha no canto do café — o mesmo rapaz em quem eu quase tombara na entrada. De longe ele parecia ainda mais bonito, já que a distância disfarçava seu jeito perturbador. Segurava uma xícara de café e um jornal, como a maioria das pessoas no café, mas, de alguma maneira, ele parecia um objeto cenográfico, saído de um filme, e suas roupas lembravam uma fantasia. Era bonito demais para os padrões de Tillinghast. Virei-me de volta para Ruth para comentar sobre o rapaz e logo vi que ela discordaria de tudo que eu dissesse sobre ele. O rapaz a hipnotizara. Eu literalmente tive de estalar os dedos e chamá-la para que ela tirasse os olhos dele. E, quando Ruth finalmente fez isso, fiquei grata por ele ter ido ao Daily Grind, em vez do Starbucks do outro lado da rua, apesar do sentimento inquietante que aquele rapaz despertara em mim e que persistia. Porque a simples presença daquele estranho fez que Ruth esquecesse a pergunta que me fizera.

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Dezenove Naquela noite, Michael e eu nos deitamos na relva, depois de voarmos ao longo da costa. Minha cabeça repousava no braço de Michael enquanto observávamos o céu. A grama estava fofa e macia depois da chuva leve que caíra à tarde, e parecia que estávamos sobre um cobertor. Senti uma paz tão grande que não quis falar sobre minha visão de Piper. Contudo, não conseguia deixar de pensar nisso. — O que houve, Ellie? Obviamente, minha tentativa de agir de modo normal não estava funcionando. — Tive uma visão muito estranha hoje, e não consigo parar de pensar nela. —O que você viu? Contei a ele todos os detalhes da visão de que conseguia me lembrar: o diálogo entre Missy e Piper, as alusões a certo plano, o rapaz estranho escondido atrás de Missy e o medo que Piper sentira. Michael me ouviu com atenção e perguntou: — De todas as visões que você já teve, por que essa te atingiu assim? Sua reação me decepcionou; ele não pareceu especialmente tocado. Talvez eu tivesse esperado muito dele, que ele sentisse tudo que eu sentia. Afinal, nós éramos tão parecidos. — Não sei. Mas senti que tenho de descobrir mais sobre isso e fazer alguma coisa.

81 Michael enrolou uma mecha do meu cabelo nos dedos e então suspirou. — Por que, Ellie? Elas são umas idiotas. Você não tem de salvar Piper de nada. — Não estou planejando salvar Piper, e sim a vítima. — Isso é muito nobre da sua parte, Ellie. Mas não somos super-heróis. Sentei-me. Michael tinha acabado quase à força com minha ignorância, que de alguma forma era boa, sobre minha nova existência. Ele basicamente tinha me feito abraçar nossas ‚diferenças‛ — e agora queria que eu ignorasse o impulso em ajudar que acompanhava algumas de minhas visões. Aquela, especialmente. — Não, Michael, não somos super-heróis. Mas também não somos apenas seres humanos comuns. — Eu sei. Mas não vejo como isso pode obrigar a gente a voar e consertar a confusão que Missy e Piper estejam tramando. — Michael, não consigo ignorar essa vontade de me envolver. Você nunca sentiu isso? — Achava que ele sentia. Eu nunca tinha sentido tanta urgência em ajudar antes, mas sentia algo parecido de vez em quando, quando algum colega de classe me transmitia uma visão de um problema especialmente alarmante. — Um pouco, eu acho. — Desde que começamos — fiz um gesto em volta do campo — tudo isso, tenho tido uma sensação forte de que não devemos usar nossos dons apenas para diversão, mas para algo mais, como para ajudar as pessoas de quem lemos a mente. Você já sentiu isso? Ele parou por um segundo. Vi que sua mão procurava a minha, mas me afastei um pouco. Não queria que seu toque interferisse na conversa; eu estava muito suscetível. — Acho que eu estava tão concentrado em você que não deixei esses sentimentos aflorarem — explicou. Apesar de todos os meus esforços para me manter distante, senti como se fôssemos um só. Ali estava o garoto dos meus sonhos me dizendo que eu o distraía tanto que ele não conseguia ver as coisas direito. Como eu podia ficar irritada com ele? Até porque eu sentia a mesma coisa. Ainda assim, queria que ele estivesse comigo, no mesmo barco. Não apenas no incidente envolvendo Piper e Missy; queria que Michael sentisse o que eu sentia. E como eu tinha aprendido com meus pais a ajudar a humanidade, fiquei mais do que desapontada com o fato de ele não querer fazer a mesma coisa.

82 — Se você não pensou nisso — que temos um tipo de obrigação com os outros por causa das nossas diferenças —, então o que você pensa? Mesmo na escuridão da noite sem lua eu podia vê-lo sorrir para mim. — Nunca ouvi falar em vampiros que fazem o bem — ele brincou, e eu revirei os olhos. — O que eu deveria pensar? — continuou. — Vou te dizer o que penso. Sinto que tenho sorte por você dividir essa experiência comigo. E acho que vou te ajudar, porque mesmo não ligando a mínima para Piper e Missy, eu ligo muito para você. Rolei na curva do seu braço e sussurrei: — Obrigada. Conversamos um pouco sobre um plano para obter informações, e então Michael murmurou: — Ellie? — Sim? — respondi. O tom de sua voz era tão suave e convidativo que imaginei que ele fosse me beijar. Ele em geral fazia isso no final da noite, mas eu sempre tinha tomado o cuidado de parar por aí; a experiência de beijá-lo realmente tinha mexido comigo, e eu não queria perder o controle. Seus lábios fizeram cócegas na minha bochecha, e seu hálito doce me aqueceu. Virei o rosto em sua direção, pronta para ele. Com a mesma voz doce, Michael falou: — Você sabe que se usássemos o sangue delas descobriríamos praticamente tudo. — Michael — falei frustrada. Ele sabia como eu me sentia quanto àquela história de sangue. E, de qualquer modo, eu queria beijá-lo, e não discutir sobre aquele assunto. — Vamos lá, Ellie. Seria uma chance de testarmos o poder do sangue. Além daquelas primeiras e poucas ocasiões, que não haviam sido planejadas, eu não tinha mais experimentado o sangue de Michael, nem deixado ele experimentar o meu. Lembrava-me bem do gosto inebriante e viciante do seu sangue, e do susto que isso me causara. Tinha medo de começar e não conseguir mais parar. Mas eu não podia dizer isso a Michael. — Não. — Seria por uma boa causa — falou sugestivamente, enquanto subia e descia o dedo no meu braço.

83 — Você é capaz de tudo para me convencer, né? Ele sorriu sem conseguir negar. — Vamos ver se encontramos outra maneira — conclui, beijando seu pescoço levemente. — Agora quem está sendo persuasiva? — falou com uma voz mais grossa. Foi minha vez de sorrir. Ele disse: — Tudo bem, vamos tentar do seu jeito primeiro. Mas me prometa que vai apenas considerar... — Prometo. Beijei-o com força. Estava tão aliviada e feliz por ele ter me apoiado no assunto de Piper que baixei a guarda. Em um segundo, estávamos enrolados nos braços um do outro. Senti sua língua na minha e me rendi à sensação que isso trazia. Michael deve ter percebido que eu não tinha forças para lutar contra ele, porque logo senti um corte pequeno na língua e provei o sangue. O dele e o meu. Juntos. A sensação foi de puro prazer, diferente de tudo que eu já havia experimentado antes. Fechei os olhos e me entreguei àquele arroubo. Até que tive uma visão que mais parecia uma visão que uma memória. A luz cegava; fechei os olhos da minha mente. Conforme minha visão se ajustava, vi Michael e eu em uma praia virgem de areia branca, com arcos de luz nas costas. Estávamos tão bonitos, tão serenos. E então notei algo muito estanho. Em nosso peito havia letras, algo escrito com luz. Tentei fortemente ler o que estava escrito, mas as palavras estavam em uma língua estranha. Eu podia ter parado naquele momento, mas senti a língua de Michael passar sobre meus dentes de novo e percebi que ele procurava mais sangue. Despertei daquela imagem, compreendendo que, se continuássemos a dividir nosso sangue, nunca mais iríamos parar. Empurrei Michael e me sentei. Tentei falar. — Você entende porque não podemos fazer isso com mais ninguém? Porque não podemos fazer isso nem entre a gente? Viu como, depois que começamos, não conseguimos mais parar de ir atrás de mais sangue? — Sim. — Sua respiração estava acelerada. — Prometa para mim, Michael, que você nunca vai experimentar o sangue de mais ninguém além do meu. Ele me encarou com o peito ainda ofegante, mas o olhar firme:

84 — Prometo.

85

Vinte Michael e eu havíamos concordado em dividir e conquistar a amizade do pequeno grupo de amigas de Missy. A mim couberam Piper, por razões óbvias, e Missy, já que eu tinha inventado tudo aquilo. Como eu ficara com as pesos-pesados, a Michael restaram as outras seis — Hallie, Kristen, Elizabeth, Samantha, Jennifer e Shadley. Logo estávamos à solta na nada suspeita Tillinghast Upper High School. Ou pelo menos era isso que pensávamos. Achávamos que íamos andar tranquilamente pela escola, encostar nelas e descobrir seus segredos. Mas a coisa não funcionava assim tão fácil, pelo menos não quando a intenção era descobrir segredos específicos. As estrelas tinham de estar perfeitamente alinhadas para que pudéssemos ver determinado detalhe. Primeiro, tínhamos de manter contato fisico com a pessoa escolhida; depois, ela tinha de estar pensando no plano no exato momento em que encostássemos nela; e, por fim, a visão se tivéssemos sorte de termos exatamente a visão que desejávamos — precisava fazer sentido. Havíamos aprendido que os pensamentos das pessoas não eram lineares, mas, em geral, desconexos e misturados, a ponto de não conseguirmos compreender bem a imagem. A parte mais difícil era encostar nelas. Como poderíamos tocá-las de modo que parecesse acidental, e não algo inadequado? Também havia outro obstáculo. Em geral, eu evitava Missy e Piper a todo custo, mas, naquele momento, eu precisava cruzar com elas de modo aparentemente natural — e então encontrar uma maneira de tocar em uma ou nas duas meninas mais inacessíveis do penúltimo ano. Não era fácil, principalmente porque elas tinham desistido de conquistar minha amizade.

86 Fiquei parada em frente ao meu armário, com a esperança de cruzar com elas. Tinha decorado o horário das suas aulas, e mudei meu caminho para poder encontrá-las por acaso. Sem sucesso. Forçara a pobre Ruth a tomar café no Starbucks em vez de irmos ao Daily Grind porque elas costumavam frequentar aquele local. Nem sinal delas. Depois de tentar evitá-las por semanas, sem sucesso, de repente eu não conseguia mais cruzar com elas. Os esforços de Michael também tinham sido em vão. Embora ele tivesse tido mais sucesso do que eu em manter contato físico com as figuras menos importantes do grupo — o que não era surpresa, pois Michael, além de ser aluno do último ano, era uma graça —, não tinha conseguido extrair nenhuma imagem relevante da mente delas. Nós não sabíamos se elas ignoravam o plano ou se não estavam pensando nele quando Michael fez contato com elas. Mas ele gostava de me atormentar com a descrição das imagens românticas de si mesmo extraídas da mente de algumas das meninas. Em desespero, pensei que talvez devesse tentar a estratégia inicial de ir até minha vizinha. Desejei mais que tudo que a versão mais simpática de Piper, que ela deixava aflorar quando saíamos da escola, fosse mais suscetível aos meus esforços. Porém, dia após dia, uma boa oportunidade me escapava. Uma tarde, enquanto minha mãe fazia cookies, senti que era minha chance. Minha mãe ficou um tanto surpresa quando me ofereci para levar uma dúzia deles à casa dos Fairese como um gesto de ‚boa vizinhança‛. Os pais de Piper trabalhavam o dia inteiro, a mãe secretária na universidade, e o pai, professor associado de ciência política, e achei que eles estariam trabalhando àquela hora. Avistei o carro de Piper na entrada da casa, então concluí que eu talvez dispusesse de alguns minutos sozinha com ela. Eu não possuía um plano concreto, mas tinha de tentar. Com um prato envolto em papel alumínio nas mãos, percorri a curta distância entre as duas casas. Levantei o velho batedor de porta e soltei-o, fazendo um ruído metálico. Como eu esperava, em segundos Piper abriu a porta. Ela estava boquiaberta, surpresa em me ver à sua porta. Como eu trazia um presente, ela não teve outra alternativa a não ser me convidar para entrar. Enquanto ela segurava a porta aberta para mim, encostei o dedo em seu antebraço. Vi uma imagem tênue, diluída como chá com leite, em que ela se esforçava para fazer um trabalho sobre Shakespeare para a aula de inglês. Eu certamente interrompera sua lição de casa. Piper me levou até a cozinha, me agradeceu e me apontou um lugar vazio no balcão onde eu poderia deixar os cookies. Após cumprir seu papel de vizinha, girou sobre o próprio eixo e começou a andar em direção à porta. Eu ia ser dispensada como uma empregada; aparentemente, a Piper simpática não iria aparecer. Não por bem, pelo menos. Eu precisava fazê-la pensar no plano e encostar nela. E rápido.

87 —E então, tudo bem? — perguntei, bancando a preocupada e compreensiva. — Sim, por que não estaria? — disse com uma expressão indagadora que soava forçada. Ela sabia do que eu estava falando. — Você sabe, aquele dia no banheiro. — Ah, aquilo — disse ela com um gesto de desdém. — Aquilo não foi nada, como eu já disse. Ali estava minha chance. — Bem, se você precisar de alguém para conversar... — alcancei-a e encostei em seu ombro. Tive uma visão impactante: ela e Missy estavam na biblioteca da escola, com os olhos fixos no laptop de Piper. Como estavam sentadas muito próximas, pude sentir o cheiro de café no hálito de Missy. Olhando através dos olhos de Piper, vi uma página do Facebook aberta. Missy estava latindo ordens para Piper. — Vai logo, Piper, eu tenho de encontrar o Zeke no Tili em dez minutos. O Tili era um bar frequentado basicamente por estudantes universitários, e tinha uma política bem rígida quanto a não deixar menores entrarem. Como Missy achava que ia conseguir entrar lá? Piper digitava freneticamente em resposta, mas não olhava para cima. Em vez disso, pude sentir seu coração acelerar e seu estômago revirar diante da menção do nome de Zeke. Talvez ele estudasse na universidade. Conforme Piper digitava, olhei a tela bem de perto; ela e Missy estavam criando um novo perfil. Isso me pareceu muito estranho, já que as duas tinham um perfil no Facebook. Enquanto eu tentava descobrir o nome do usuário, a imagem desapareceu. Voltei à cozinha de Piper. Piper tirou minha mão do seu ombro. — Ellie, eu não preciso da sua ajuda. — E então caminhou até a porta de entrada. Segui-a, sorrindo por dentro. Eu não me importava que ela estivesse me dispensando, pois eu finalmente tinha por onde começar.

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Vinte e Um Eu estava errada. Quanto mais Michael e eu pensávamos na visão que eu extraíra da mente de Piper, mais desanimados ficávamos. Analisando a situação mais de perto, a visão não tinha jogado muita luz além do perfil no Facebook sobre o plano ou a suposta vítima. No fim, tínhamos mais perguntas que respostas. Embora eu odiasse admitir, estávamos um tanto frustrados e cansados com nossa pequena investigação. Então, quando Michael sugeriu da maneira mais encantadora possível que deix{ssemos nossa ‚pesquisa‛ de lado na semana anterior ao Baile de Outono, disse a ele que iria considerar seriamente seu pedido. Depois de ele me dizer que eu parecia esgotada, concordei em dar um tempo; queria estar bem para o baile, como ele bem sabia. Contudo, achei muito difícil tirar o assunto da cabeça. Tentei me distrair com os preparativos do baile. Quando Ruth, por fim, me perdoou por ter comprado o vestido sem ela — depois que argumentei que isso me deixara com mais tempo livre para me dedicar à procura do seu vestido —, passamos horas no shopping. Ela experimentou vestidos de todas as cores imagináveis — preto, verde-claro, lavanda e marrom chocolate e finalmente escolheu um cor-de-rosa claro que, surpreendentemente, combinou com seu cabelo avermelhado. Superado o primeiro grande obstáculo, ela começou a pensar nos detalhes menores (não que ela considerasse essas coisas insignificantes): penteado, maquiagem, sapato e até unhas. Olhamos um monte de revistas e fomos a todos os lugares onde poderíamos fazer maquiagem e a todas as lojas de sapatos de Tillinghast para encontrar os acessórios perfeitos. Felizmente, deixei Ruth me arrastar para todos esses lugares e pude aproveitar a sensação de ser uma adolescente normal, só para variar.

89 Combinamos de nos encontrar — Ruth, Jamie, Michael, eu e nossos pais — na minha casa antes do baile. Ruth ficava meio sem graça diante da ideia de Jamie buscá-la em casa com seu pai por perto. E, além de tudo, meus pais e o pai de Ruth eram próximos. Como meus pais e o pai de Ruth também iam, achamos que devíamos incluir os pais dos rapazes. Nunca pensei que eles realmente fossem convidar os pais, mas, para minha surpresa, convidaram. Na sexta-feira à noite, um dia antes do baile, estava tudo pronto: vestido, sapatos, bolsa e maquiagem na cabeça, mesmo ainda tendo horas para nos arrumar no sábado. Terminei a lição naquela tarde, assim não teria de pensar no assunto no sábado e no domingo. Eu até havia pedido a Michael que me liberasse do voo; dissera a ele que eu precisava de pelo menos uma noite de sono ininterrupto para estar bem para o baile. Ele relutou, mas concordou. Porém, não consegui dormir. Estava agitada, sem saber direito o porquê. Pensava em Missy e Piper, mas esse não era o único motivo da minha agitação. Às vezes, eu ficava ansiosa ao pensar em meus poderes e em seu significado, mas tinha deixado as preocupações de lado e aproveitado bem a semana anterior. Então, por que eu não conseguia dormir? Será que havia me acostumado a passar a noite toda acordada? Ou era apenas o nervosismo natural de antes do baile que todas as adolescentes experimentam? Eu não sabia responder. Primeiro se passaram alguns minutos, depois meia hora, uma hora, duas horas. Eu estava cada vez mais brava comigo mesma. Devia ter ido voar com Michael; voar sempre me deixava cansada. Por fim. após três horas, saí debaixo das cobertas e me sentei diante do computador. Precisava fazer alguma coisa além de ficar deitada na cama. Entrei na página do Google. Antes que eu percebesse, meus dedos começaram a percorrer o teclado. Olhei para a tela e vi o nome do ‚Professor Raymond McMaster‛ escrito no campo de pesquisa antes em branco. De onde aquilo tinha vindo? Eu não tinha pensado muito nele desde a humilhação sofrida na aula da senhorita Taunton. Ou, pelo menos, eu achava que não tinha pensado nele. Pelo visto, sua presença estava ativa em meu subconsciente. A verdade é que eu não me sentia uma vampira. Sempre havia imaginado os vampiros como seres cruéis ou sem coração. Meus sentimentos eram... grandiosos, calorosos, inclusivos. Precisava de um especialista para me ajudar a decifrar aquele enigma. Entrei na página da Universidade de Harvard e li o curriculo do Professor McMaster. Ele fizera a graduação em Harvard, seguida de uma pós-graduação em Stanford. Fora professor-assistente em Stanford e depois se tornara professor-titular também em Harvard, posto que ocupava até aquele momento. Impressionante, ainda mais para um especialista em Drácula. Examinando sua biografia, vi uma lista de trabalhos publicados. Não eram apenas sobre vampiros; alguns tratavam de ‚folclores sobrenaturais e mitologias‛. Mas sua especialidade parecia ser mesmo os vampiros. Cliquei no artigo que me pareceu interessante, ‚Origens multiculturais da lenda do vampiro‛.

90 Abri o arquivo. As primeiras palavras me deram arrepios terríveis. O professor McMaster não era o aliado que eu esperava encontrar para convencer Michael de que não éramos vampiros:

Os vampiros circulam entre nós. Sejam o baobhan sith escocês, o baital indiano, o Jiang shi chinês, o kosci croata, o moroi romeno ou o tlahuelpuchi mexicano, toda sociedade e toda cultura abrigam seus vampiros. A questão não é se os vampiros existem seja em nosso subconsciente coletivo ou nas ruas —, mas sob qual forma e por quê.

Página após página, a tese do professor McMaster — toda baseada na ideia de que os vampiros existem, dada sua presença em todas as civilizações — prendeu minha atenção. E me deixou apavorada. Não se tratava de nenhuma teoria conspiratória maluca encontrada na internet, mas era a tese de um estudioso respeitado de nada menos que a Universidade de Harvard. Mas o professor deixara a observação mais chocante — pelo menos para mim — para o último parágrafo:

Esta pesquisa torna claro que, embora os vampiros de cada sociedade assumam formas diferentes, eles dividem duas características perturbadoras: uma habilidade não humana de se transportar e um fascínio por sangue. Mas, o que é interessante, a forma exata e a natureza da cultura do vampiro não interferem em seu propósito. Não importa onde eles possam ser encontrados nem que forma possam adquirir, todos os vampiros encarnam nossos medos mais terríveis e primitivos do desconhecido e servem como chave para o mistério do que pode ser encontrado, se é que há algo a ser encontrado, depois da morte.

De repente, a teoria de Michael sobre os vampiros me pareceu bem provável.

91

Vinte e Dois De manhã, não tive tempo de pensar no Professor McMaster, em vampiros, em Missy e Piper nem em nada além do Baile de Outono. Ruth chegou às oito da manhã com o mesmo número de sacolas que eu e meus pais costumávamos levar nas viagens de verão e uma agenda feita no computador com todos nossos compromissos e atividades. Nunca tinha ficado tão feliz em ver Ruth; eu não queria ficar sozinha apenas com meus pensamentos. Durante todo o dia, Ruth me arrastou para sessões de manicure, pedicure e maquiagem. Expliquei ao cabelereiro de Ruth como eu queria que ele penteasse meus cabelos — ninguém era capaz de dar um jeito em meus cabelos grossos e extremamente lisos —, mas vi Ruth fazer um penteado complicado que realmente lhe caiu bem. Achei que meus pais fossem dizer alguma coisa sobre toda aquela demonstração de frivolidade e materialismo, mas eles não disseram nada. Eles pareceram aliviados em levar a filha de dezesseis anos para se arrumar para um baile, como uma pessoa normal. Fiquei aliviada em interpretar um papel em vez de ter de encarar o fato de que eu era uma criatura esquisita, como as descritas pelo Professor McMaster. — Ruth, ElIie, desçam, meninas. O pessoal vai chegar em poucos minutos! — gritou minha mãe da escada para nós, no quarto. — Ai, meu Deus, são quase seis horas! — Ruth quase soltou um grito, Olhei para o relógio sem acreditar. Nós realmente tínhamos passado dez horas nos arrumando e nos emperiquitando? Se descontássemos todo o tempo gasto em cafés, com o almoço, o trajeto e as fofocas, teríamos gastado algo como quatro horas nos embelezando. Mas, mesmo assim, era dificil de acreditar.

92 Ruth e eu nos dirigimos ao meu velho e único espelho, que nos permitia ver o corpo inteiro. Com atenção, nos olhamos; primeiro dei uma olhada em Ruth, pois não estava pronta para me ver toda arrumada. — Você está linda, Ruth — disse com sinceridade. Com o cabelo avermelhado preso, dava para ver bem seu rosto e o pescoço, e o vestido rosa claro valorizava seu corpo; ela tinha se transformado em uma princesa. Ruth me deu um abraço forte e se afastou rapidamente para que eu me visse. — Ellie, o Michael vai desmaiar quando te vir. Você está tão glamurosa, parece uma estrela de cinema ou algo assim. Rindo, olhei para o espelho. Eu definitivamente não parecia urna estrela de cinema, mas parecia mais bonita. De alguma maneira, o vestido vermelho e justo e a maquiagem nova ressaltaram meu corpo, os cabelos escuros e lisos e os olhos azuis. Em vez de desengonçada, com os olhos esquisitamente brilhantes, eu estava bem, imponente. Era estranho usar essa palavra para me classificar, mesmo em pensamento. — Meninas! — gritou minha mãe novamente. Aquele tom significava ‚corram’. Giramos nos saltos e corremos até a escada. Quando íamos começar a descer, ouvimos uma batida forte na porta. — Tarde demais — minha mãe sussurrou, com a voz áspera, do andar debaixo. Nosso atraso momentâneo em frente ao espelho nos saiu caro. Agora seríamos forçadas a descer a escada comprida e cheia de degraus diante de uma plateia, como duas Scarlett Ohara modernas. Essa não era exatamente a impressão que eu queria causar aos pais de Michael. Eu queria parecer uma namorada legal, não uma rainha afetada. Eu e Ruth nos olhamos primeiro com um misto de medo e animação, depois fizemos cara de paisagem. Demos as mãos, sorrimos e descemos a escada. Meu pai abriu a porta quando estávamos no meio da escada, e assim pude ver bem nossos convidados antes de chegarmos ao andar de baixo. Mantive o olhar no chão para não cair da escada e, no último degrau, por fim, olhei para cima e vi Michael, tão lindo em seu terno escuro com uma gravata amarela. Seus olhos verdes cortaram os meus, e não precisei lhe perguntar o que ele achava do meu visual. Sua expressão dizia tudo. Na frente de todo mundo, antes mesmo de me levar até seus pais, ele me pegou pelas mãos e me deu um beijo leve nos lábios. E então amarrou um belo ramalhete de rosas no meu pulso; ele já sabia que não haveria espaço no corpete do vestido. E sussurrou: — Ele não é nem de perto tão bonito como você.

93 Eu deveria ter ficado envergonhada, mas não fiquei. Michael foi o primeiro a interromper o olhar ao dizer: — Mãe, pai, vocês se lembram da minha Ellie? Minha Ellie. Ele sabia exatamente como me fazer derreter. Estendi a mão a uma mulher muito bonita, cujos cabelos castanhos estavam começando a ficar grisalhos nas têmporas. Como meus pais. Eu já havia visto seus pais duas vezes — uma quando eles me levaram para jantar fora e outra quando nos sentamos juntos para assistir ao jogo de futebol americano de Michael. Eles eram muito agradáveis, embora um pouco distantes e formais, e, de alguma maneira, conseguimos evitar falar no estranho assunto da viagem à Guatemala. Eu ainda não conseguira recuperar uma imagem sequer de Michael dos confins das minhas lembranças de viagens. — Senhora Chase, é um prazer vê-la de novo. — O prazer é meu, Ellie. Você está uma graça hoje. Michael me contou sobre seu vestido, mas a descrição dele não fez jus ao vestido — ou a você vestida nele. Enrubesci ao pensar em Michael falando sobre mim a seus pais. Tentando ignorar minhas bochechas vermelhas, cumprimentei o pai de Michael. Ele era atraente, com sua tez cor de oliva e os cabelos quase pretos. Continuei procurando semelhanças entre Michael e o pais, mas ele era loiro e branco, nada parecido com nenhum dos dois. Meus pais se juntaram à nossa conversa. Pelo canto do olho vi Ruth, Jamie e seus respectivos pais se apresentarem. O grupo passou à sala, e minha mãe serviu aperitivos enquanto meu pai servia refrigerante para os jovens e vinho para os adultos. Uma hora se passou com surpreendente tranquilidade. A escola e o baile eram assuntos fáceis para uma conversa, e até o pai de Ruth, em geral resistente a aproximações, pareceu relaxado e extrovertido. Perto das sete horas, Michael e Jamie começaram a olhar os relógios e a dar indiretas de que deveríamos ir. Os pais concordaram, mas apenas depois de tirarem um milhão de fotografias. Todos se despediram, e Ruth, Jamie, Michael e eu entramos no carro de Michael, pois havíamos decidido ir em apenas um carro. Não sabíamos como era o estacionamento e, de qualquer modo, haviam combinado de ir à minha casa depois do baile. Michael estava prestes a sair da entrada de casa quando pedi que ele parasse o carro. Como não estava acostumada a usar bolsa, havia deixado a minha em cima do balcão da cozinha. Michael me deixou em frente ao pórtico, e subi seus degraus o mais rápido que alguém de salto alto pode conseguir. Ao abrir a porta da entrada, fiquei aliviada ao ver que nenhum dos

94 nossos pais estava no corredor. Eu queria entrar e sair sem precisar parar para jogar conversa fora. Entrei na ponta dos pés pelo corredor dos fundos, que dava para a cozinha, e ouvi minha mãe e a mãe de Michael conversando, sem se preocuparem em ser ouvidas. De repente, escutei o barulho de água da pia da cozinha. Espiei e vi as duas de costas, como se estivessem lavando louça. Talvez eu pudesse entrar e pegar minha bolsa e passar despercebida. — Eu ainda não acredito que você e Armaros estão em Tillinghast — falou minha mãe, em um tom não muito caloroso. — Nós não tivemos outra escolha — disse a mãe de Michael, como se tivesse se desculpando. — Depois de fazermos tudo para que eles esquecessem que se conheceram na Guatemala... — a voz da minha mãe vacilou. — Eu sei. E deu tão certo com a Ellie. As mesmas técnicas não deram muito certo com Michael, como você sabe. — Nós precisávamos que eles se encontrassem pelo menos uma vez antes que atingissem a maioridade para ver como reagiriam um ao outro, e para descobrir do que eram capazes juntos. Precisávamos assumir o risco na Guatemala. Eu queria tanto que eles tivessem se esquecido totalmente — afirmou minha mãe. A maneira como minha mãe falara me fez imaginar o que de tão terrível deve ter acontecido na Guatemala para que eles quisessem que eu esquecesse. Se eu pudesse extrair alguma visão da viagem dos meus pais ou dos pais de Michael... Tentei sem sucesso. Continuei encostada na mesma parede. Meus pensamentos foram interrompidos pela mãe de Michael. — Eu sei, e essa é a única razão pela qual nós os deixamos passar um tempo juntos. Mas seria muito mais fácil mantê-los sem saber de nada antes da hora. — Teria sido mais fácil se vocês tivessem ficado longe de Tillinghast — replicou minha mãe, com a voz mais alta e mais brava. — Você sabe que o melhor jeito de protegê-los é mantê-los no mesmo lugar. Para podermos vigiá-los. — Vocês deveriam ter falado com a gente antes. — Não nos pareceu uma boa ideia. Você sabe disso. Hoje — com todos nós no mesmo lugar — já corremos um grande risco. — A mãe de Michael parecia quase arrependida.

95 — Mesmo os meninos tendo se encontrado por conta própria? Vocês não acharam que tinham de falar com a gente, nesse caso? — A voz da minha mãe ficou mais alta; ela realmente estava brava. — Nós não poderíamos arriscar, Hananel. Pareceu melhor esperar e deixar que o relacionamento deles fosse adiante por conta própria. E observar. Hananel? Quem era Hananel? O nome da minha mãe era Hannah. E do que elas estavam falando? Minha mãe estava quase gritando. — Observar? Essas são palavras grandiosas vindas de alguém que antes só vigiava e cuja observação não era nada além de uma espera passiva. O que você acha que essa espera e observação passivas vão nos trazer de bom? — Tempo, Hananel. Achei que observá-los ia nos fazer ganhar tempo. Minha bolsa caiu no chão e fez um barulho, fazendo com que as duas mulheres se virassem em minha direção. — Ellie, querida, pensei que você já tivesse saído — disse minha mãe, com a voz mais doce do mundo. Abaixei-me para pegar a bolsa e a brandi como uma espada. Sorri como se não tivesse ouvido nada e falei: — Eu não podia sair sem minha bolsa, né? E então, sem saber o que dizer ou fazer, acenei e voltei correndo para o carro. A conversa que eu tinha ouvido era bizarra, mas eu não a deixaria estragar o meu primeiro baile com Michael.

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Vinte e Três A expressão no rosto dos nossos colegas de classe quando entramos no ginásio valeu cada minuto que gastamos nos arrumando. As garotas olharam para Ruth e para mim de cima a baixo, com admiração e um tanto de surpresa, mas com os rapazes foi outra história: alguns ficaram literalmente boquiabertos quando cruzamos o salão. Ruth chamou bastante atenção, e achei que Jamie sentiu certa empolgação por estar ao seu lado. No meu caso, experimentei uma sensação de poder diferente de quando tinha uma visão. E, olhando para Michael, vi que ele também sentia a mesma coisa. A sensação ajudou a dissipar a vozinha irritante dentro da minha cabeça que me lembrava da conversa que ouvira na cozinha e que ainda não tivera coragem de contar a Michael. Eu não queria estragar nossa noite perfeita, em que encarnávamos dois adolescentes comuns, lembrando-o de como éramos estranhos. Respondíamos aos olhares que nos encaravam com um sorriso e tentávamos agir normalmente. Nós quatro comentamos sobre como o comitê de organização do baile havia conseguido modificar o lugar. Nosso ginásio não tinha mais a aparência antiga de anos atrás, mas parecia uma boate dos anos 1980, cujo estilo retrô fora criado propositalmente. Todas as vezes que Ruth fazia algum comentário sobre o vestido uma garota, sua voz zunia como uma abelha em meu ouvido. Lexie, disse ela, estava ótima em seu microvestido justo e azul, assim como Charlotte, cujo vestido de renda preto e branco lhe caíra muito bem. Mas, notou Ruth, o que Nick havia pensado quando escolheu aquele vestido longo de cetim dourado com cristais no decote? Vi Piper e Missy num canto escuro, quase atrás da arquibancada. Aquele lugar longe das atenções dos demais não combinava com elas; eu esperava vê-las cercadas de gente, dominado

97 as atenções, especialmente em um evento como aquele. E onde estavam os seus respectivos namorados? Eu sabia que Piper estava saindo com Lucas, mas não sabia onde estava o namorado de Missy. Não a tinha visto com Charlie recentemente, mas a vira subindo as escadas da biblioteca com outro rapaz. Pensei que ele fosse Zeke, o rapaz que apareceu na visão e que eu vira escondido. Talvez Piper e Missy estivessem isoladas no canto porque estavam bravas pelo fato de uma delas (ou as duas) não ter sido eleita Rainha do Outono, e talvez isso tivesse algo a ver com seu plano. Uma antiga amiga das duas, Vanessa, tinha conseguido de alguma forma reunir uma maioria esmagadora de votos. Parei por um instante. Por que eu estava gastando um minuto que fosse da minha noite pensando nelas, especialmente quando eu e Michael havíamos combinado de parar um pouco com a nossa investigação? Deixei de pensar em Piper e Missy para aproveitar a noite. Uma das minhas músicas preferidas, ‚Lost‛, do Coldplay, começou a tocar, e Michael me puxou para a pista de dança. Ele abriu um espaço para nós entre a multidão e passou os braços firmemente em volta das minhas costas. Olhei em seus olhos verdes, que brilhavam mesmo no escuro. Pela milionésima vez pensei em como eu tinha sorte de tê-lo encontrado. A música ficou mais alta, e ele pressionou seu corpo contra o meu. Segurei seu braço forte e deitei a cabeça em seu ombro. O ritmo da música ficou mais rápido, mas Michael segurou o passo. Ele levantou meu queixo e se inclinou para me beijar. Seus lábios eram tão macios, tão convidativos, que o beijei de volta, saboreando o toque gentil de sua língua. Quando ele passou a lingua devagar sobre meus dentes, comecei a sentir um desejo intenso por ele, diferente de tudo que tinha experimentado das outras várias vezes em que estivéramos fisicamente perto. Essa não era uma vontade normal de beijá-lo ou ir além, era diferente de tudo que já sentira antes. Era desejo por sangue. Separamo-nos e nos olhamos. Michael também tinha sentido a mesma coisa. Tínhamos de sair da pista de dança antes que acontecesse algo que não pudéssemos controlar. Algo que assustaria todos à nossa volta. — Vou ao banheiro lavar o rosto — disse, para o caso de alguém estar ouvindo. — Quer que eu vá com você? — perguntou com a voz meio entrecortada. — Não, não. — A última coisa de que eu precisava era Michael perto de mim. Ele me olhou preocupado, então sorri e o acalmei: — Tá tudo bem. Michael me acompanhou até a porta do ginásio perto dos banheiros. Ele me deu um beijo na bochecha e se encostou na parede, como se precisasse de apoio. — Vou te esperar aqui — falou, ainda respirando com um pouco de dificuldade.

98 Fiz que sim com a cabeça e abri a porta. Sem conseguir me equilibrar direito — ainda mais de salto alto —, fugi cambaleando do brilho fluorescente dissonante do salão. Pisquei várias vezes por causa da luz brilhante e virei à direita, em direção ao banheiro feminino. Havia ma enorme fila de garotas — sem dúvida, todas esperando por uma boa posição em frente ao espelho — saindo pela porta e invadindo o corredor. Eu não conseguiria enfrentar toda aquela energia feminina agressiva no estado em que eu estava. Em vez disso, virei à esquerda e sai pelas portas do ginásio. Talvez uma boa caminhada diminuísse o desejo que eu sentia. Andei pelo corredor vazio, ladeado por armários e portas de salas de aulas. Era engraçado como o corredor perdia seu ar intimidante e parecia pequeno sem os alunos correndo em volta. Depois que me acalmei, voltei em direção ao ginásio — e para Michael. Então ouvi um gemido vindo do corredor ao lado. Voltei alguns passos e dei uma olhada no outro corredor. À primeira vista, ele me pareceu vazio, mas então notei um leve movimento em uma entrada escura e ouvi o gemido novamente; hesitei um segundo. Eu realmente não queria ter de lidar com os problemas de mais ninguém naquela noite, mas a boa samaritana que havia em mim superou todas as minhas apreensões. Sem me preocupar em não fazer muito barulho com os saltos, aproximei-me do local escuro. O gemido se tornou mais forte e se transformou em um berro no momento em que cheguei lá. — Você está bem? — perguntei à garota encolhida à soleira da porta. Ela tinha o rosto enterrado nas mãos, mas pude ver seu cabelo ruivo penteado para cima e seu vestido marrom chocolate. Talvez a pobre garota tivesse brigado com o namorado. A menina baixou as mãos. No início, só vi que ela tinha um vergão na bochecha, consequência de um tapa forte, e um grande arranhão sangrando no braço, sem dúvida causado pela unha de alguém. Só depois percebi que a garota era Piper. Quase saí dali. Eu não precisava de mais um encontro ingrato com Piper. E, de todo modo, aquela era minha noite especial com Michael. Mas então senti um cheiro metálico forte e percebi que não podia sair dali, mesmo que eu tentasse. O cheiro era do sangue de Piper que escorria do arranhão profundo no seu braço. Ele vinha misturado ao cheiro perceptível do sangue de outra pessoa, talvez daquela com quem ela tivesse brigado. Como eu pude notar e distinguir o cheiro do sangue de duas pessoas distintas? Desejei mais do que tudo na vida tocar e experimentar o sangue, e não apenas para obter informação do plano de Missy. Meu instinto me impelia a fazer isso. A promessa que eu e Michael fizéramos de nunca provar o sangue de outra pessoa não importava mais.

99 Enquanto eu pegava um lenço na bolsa, perguntei a ela: — Quem fez isso com você? — Não importa — ela respondeu soluçando. —É claro que importa, Piper. Com o lenço na mão, estiquei-me como se fosse limpar o machucado. Quando fiz isso, toquei o sangue com a ponta do dedo. Então me afastei um pouco aparentemente para pegar outro lenço na bolsa — e o lambi. Quando desceu pela minha garganta, o sangue me queimou como uma bebida alcóolica, e fiquei tonta imediatamente. E então tive duas visões diferentes tão violentas que quase caí dos saltos; segurei-me na parede. Fora as visões que tivera de Michael, aquelas eram as mais fortes que já tinha tido, e elas me mostraram tudo que eu queria saber. E mais, muito mais.

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Vinte e Quatro Sem dizer uma palavra a Piper, livrei-me dos sapatos e carreguei-os comigo enquanto corria pelo corredor. Mesmo que Piper merecesse, e não era o caso, eu não tinha um só segundo para inventar uma desculpa a ela. Cada minuto era precioso; eu tinha de chegar ao ginásio e evitar aquele, digamos, derramamento de sangue. O corredor parecia ter dobrado de tamanho desde a hora em que eu o percorrera, poucos minutos antes, como num sonho vago e frustrante. Quis voar pelo corredor, mas tive de confiar em minhas pernas desengonçadas para me locomover. A caminhada lenta me deu bastante tempo para pensar nas imagens malévolas que eu conseguira obter através do sangue. E me deu muito tempo para pensar em Vanessa, a vítima de Missy e Piper. Como não tínhamos pensado em Vanessa? Naquele verão, ela entrara em uma disputa com seu grupo para tomar o trono de Missy. Desde então, Vanessa fora relegada à mesa de almoço das ‚rejeitadas‛ sob a ordem de Missy. Michael e eu acreditáramos que Missy tivesse considerado a humilhação no refeitório um castigo suficiente por seja o que for que Vanessa tivesse feito à Missy. Mas não era. A primeira visão de Missy me mostrou que, pouco antes de Vanessa ser coroada Rainha do Outono, cada aluno do penúltimo e do último ano de Tillinghast receberia um e-mail no celular com um convite para ser amigo de Vanessa no Facebook. O convite feito na hora certa seria irresistível, e quase todos no baile presumivelmente o aceitariam, sendo logo depois, transferidos para o perfil de Vanessa. Lá, por meio de uma conta falsa, Missy e Piper tinham postado não apenas fotos falsas de Vanessa terrivelmente bêbada, mas — pior ainda — supostos comentários de Vanessa que revelavam um monte de segredos horríveis dos

101 estudantes de Tillinghast. Os segredos não eram bobagens comuns, mas coisas horríveis, como traições, gravidezes escondidas e segredos familiares. O objetivo do plano era acabar com Vanessa e, por meio das supostas revelações dos segredos íntimos de tanta gente, torná-la odiada por todos. A única coisa positiva na visão de Piper fora o nojo que ela sentira ao participar de tudo isso. Não que essa aversão a tivesse feito desistir. Mas foi na segunda visão que pude ver uma maldade tão real que me senti mal. A visão parecia vir de Missy, a dona do outro sangue. Pelos seus olhos, a vi abraçada fortemente a outro rapaz. Como ela estava aninhada em seu ombro, não consegui ver o rosto do garoto, apenas o tecido preto de boa qualidade do paletó de seu terno. Mas conseguia ouvir sua voz; em um sussurro muito atraente, ele disse que ela estava linda e que merecia a coroa da Rainha do Outono mais do que qualquer pessoa no mundo. Embora suas palavras parecessem um lisonjeio inocente, de alguma forma elas encorajaram Missy a seguir seu plano e dar o suposto banho de sangue em Vanessa no momento da coroação. Vi — em sua alma, aparentemente — um desejo de maldade e destruição pior que no dos piores dos meus pesadelos. Por fim, cheguei à porta do ginásio, abri-a e corri até Michael, que ainda estava apoiado no mesmo lugar, na parede. Fiz força para falar; era impressionante como eu ficara cansada tão depressa em correr, enquanto eu podia voar horas com facilidade. — Eu sei o que Missy e Piper vão fazer. Afobado diante do meu estado, Michael perguntou: — Você está bem? Pus as mãos de Michael de lado. — Estou bem, Michael, não tenho muito tempo. Eles já anunciaram a Rainha do Outono? — Não, Vanessa e Keith ainda estão esperando ali. Acho que a cerimônia de coroação vai começar em alguns minutos. Ainda ofegante, disse: — Que bom, ainda tenho tempo para impedir que ela aconteça. Ou pelo menos desarmála. — Desarmá-la? Como uma bomba? — Vi seu olhar aterrorizado e percebi que ele tinha pensado — por causa da escolha desastrosa da palavra ‚desarmar‛ que eu queria dizer algo muito pior. — Não se preocupe. Não é literalmente uma bomba, mas, ainda assim, é terrível. Eu queria — não, precisava — salvar Vanessa e todos os outros garotos do virtual banho de sangue que estava prestes a cair em cima deles. E só havia uma maneira de fazer isso com o

102 tempo que eu ainda tinha disponível: me sacrificar, acusando-me de responsável pela criação dos comentários no Facebook e dizer que eram falsos. Culpar outra pessoa pelo plano seria dar chance para negarem — e para que acreditassem nas histórias terríveis contidas naquela página. Eu não podia deixar isso acontecer. Não tinha muito tempo para explicar minhas intenções para Michael antes que os celulares começassem a tocar com convites de Vanessa para adicioná-los no Facebook. Coloquei os sapatos novamente e peguei a escova de cabelo e o batom na bolsa. Enquanto Michael me olhava sem poder acreditar, arrumei rapidamente o cabelo e retoquei a maquiagem. Como se eu fosse uma fênix se transformando em cinzas, queria estar apresentável e até bonita — ao fazer aquilo. Dei um beijo em Michael e sussurrei: — Sinto tanto por ter de arruinar nossa noite. Virando em direção ao palco, ouvi-o me chamar: — Ellie, o que está acontecendo? Eu podia notar apreensão em sua voz, mas não conseguia olhar para ele. Sua preocupação só iria me fazer hesitar, e eu não podia errar. Endireitei os ombros e respirei fundo, depois andei até a frente do ginásio. Pelo canto do olho vi Vanessa e Keith se preparando para subir ao palco. Tentei ignorá-las ao máximo, e subi as escadas. Alguns garotos e pelo menos uma professora tentaram me desencorajar a subir, mas sorri e continuei. No palco, procurei o microfone. O presidente do conselho estudantil, nervoso, segurava-o firmemente enquanto revia as fichas antes de fazer o discurso. Fiquei ao seu lado e disse com a voz suave como nunca: — Você pode me emprestar por um minuto? Surpreso com o pedido, ele respondeu: — Há, eu vou fazer um discurso. Sorri agradavelmente e falei: — Eu sei. Só preciso dar um recado rapidinho antes. Claro concordou com um sorriso e me entregou o microfone. — Muito obrigada, vou devolvê-lo em um segundo, prometo.

103 Com o microfone na mão, encarei a multidão. Minha autoconfiança — em parte verdadeira, em parte fingida — me abandonou enquanto eu examinava as quase duzentas pessoas na pista de dança. Precisava ir adiante. Era levada por uma compulsão mais forte do que qualquer coisa que eu já sentira, mais forte até que meu desejo por Michael. Limpei a garganta e falei: — Oi. Para quem não me conhece, sou Ellie Faneuil. Mesmo tendo parado de dançar, os jovens continuavam a andar de um lado para o outro e a conversar. Eles pareciam não se interessar nem se impressionar com a cerimônia de coroação da Rainha e do Rei do Outono, assim como Michael. Dei um aceno tímido e bati no microfone. Um ruído alto reverberou dos alto-falantes, e, de repente, todos prestavam atenção em mim. — Desculpem por interromper a noite de vocês. Em poucos minutos, vocês receberão um convite de Vanessa Moore, nossa Rainha do Outono, para se tornarem amigos dela no Facebook. Se vocês aceitarem esse convite, serão direcionados para uma página que contém várias fotos supostamente de Vanessa e alguns posts que ela teria escrito. Mas a página é falsa. As fotos foram criadas com ajuda do Photoshop e os comentários são inventados. — Fiz uma pausa; as palavras seguintes ficaram presas na minha garganta. — Eu inventei tudo. Na multidão, vi o rosto de Ruth me encarando sem acreditar. A magnitude das minhas ações me atingira, e minha voz vacilou. — Queria pedir desculpas a Vanessa e a todo mundo citado no Facebook. Mesmo sabendo que nenhum de vocês vai me perdoar um dia. Antes de devolver o microfone ao presidente do conselho estudantil, que estava chocado, olhei para a multidão. No centro estava Missy, terrivelmente furiosa porque seu plano fora frustrado. Ao seu lado, estava um garoto loiro e bonito, que só podia ser seu namorado. O garoto só podia ser o misterioso Zeke das visões. Algo nele me parecia familiar, e não apenas das visões que eu tinha tido. No segundo em que deixei o palco, vi-o um pouco mais de perto e percebi que ele era o rapaz do café. Ele notou meu olhar e deu aquele seu sorriso estranho e desconcertante. Era como se ele esperasse que eu estivesse naquele palco o tempo todo. Derrubei o microfone e corri.

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Vinte e Cinco Durante os dias seguintes, minha alma foi tomada pela escuridão. Talvez fosse resultado da hostilidade que vi nos olhos e na mente dos meus colegas de classe. Quando voltei após três dias de suspensão, com a qual fui ‚brindada‛ pela diretoria por causa da brincadeira do Facebook, me tornei objeto do ódio de cada estudante da Tillighast Upper High School. Meu armário foi vandalizado, minha lição de casa destruída antes que eu a entregasse à professora e ainda cuspiram no meu rosto. Graças a Deus não toquei em ninguém sem querer; a aversão que me dedicavam secara a ponta dos meus dedos. Mas eu não podia dizer nada em minha defesa: eu dei a eles esse direito no palco do ginásio. Talvez a escuridão viesse do mal que eu vira no coração de Missy, ou do seu sangue, que eu provara por meio de Piper. Na minha visão, vi seu desejo por cometer atos tão indizíveis que não me permiti revisitar as imagens. Era como me tornar um personagem de uma das pinturas sobre o inferno de Hieronymus Bosch1. Eu não sabia qual era a fonte da escuridão. Só sabia que a boa samaritana que antes habitava em mim desaparecera na noite do baile. Olhando para trás, eu não sabia por que havia feito o que fizera. Quando percebi que era capaz de acabar com toda a dor que aqueles garotos sentiriam, apenas aceitei a responsabilidade. Aquilo era parte do que eu era? Certamente não parecia o impulso de um

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Jeroen van Aeken, cujo pseudônimo era Hieronymus Bosch, foi um pintor dos Países Baixos que viveu entre os séculos XV e XVI. Uma de suas obras mais conhecidas é ‚O Jardim das Delícias‛, que se encontra no Museu do Prado, em Madrid.

105 vampiro. Mas de que tinha adiantado assumir a responsabilidade pela brincadeira? Se bem que acusar Missy não teria adiantado nada. De todo jeito, tudo aquilo tinha acabado. Preenchi o vazio que meu ato deixara em mim com Michael. Ruth não falava mais comigo desde o baile, e eu não sabia bem por quê. Como eu tinha certeza de que ela devia saber que eu não criara o perfil no Facebook, só podia imaginar que ela estava brava porque eu destruíra sua noite perfeita. E eu nem podia lhe dizer o motivo. Fosse qual fosse a razão, seu abandono fez que eu me rendesse à escuridão com mais facilidade. Era um laço a menos a me prender. As únicas pessoas que não me odiavam totalmente eram Piper e Missy; ambas estavam sem acreditar no que eu fizera e perplexas, mesmo não sendo mais amigas. Em vez de me odiarem, elas pareciam ter medo de mim. E como minha necessidade de fazer o bem havia sumido, eu certamente não sentia nenhuma vontade de encorajar o lado bom de Piper. Somente Michael continuou do meu lado, embora parte dele desejasse que eu dissesse a verdade sobre Missy. Só ele compreendia o que eu havia feito e por quê, e isso nos aproximou ainda mais, tanto que não havia espaço para ninguém mais. De dia, eu e Michael andávamos pelos corredores da escola de Tillinghast sem nos deixar afetar por ninguém; eu me sentia poderosa de um jeito que nunca havia me sentido antes. À noite, voávamos pelo céu como deuses. Como os vampiros que eu achava que éramos. Rendemo-nos um ao outro. E ao sangue. — Entre — pedi a Michael. Geralmente ele forçava a barra para que eu o seguisse, mas agora era eu quem o desafiava a me seguir. A escuridão me deixou imprudente como nunca antes. Agora eu me entregava — e só me preocupava com Michael, ninguém mais. Ele não se mexeu. — Entre — disse novamente. — Tem certeza de que não tem ninguém aí dentro? — Michael não parecia convencido. — Sim. Não sinto a presença de ninguém. — Desde que me rendera aos meus poderes, minhas habilidades tinham aumentado. Eu podia olhar bem um prédio ou uma sala e descobrir quantas pessoas estavam lá. Tinha certeza de que aquela casa charmosa e pequena construída no século XIX estava vazia. Sem esperar Michael concordar, abri a janela do terceiro andar e entrei voando. Quase acertei uma pilha de caixas ao pousar com dificuldade no chão de madeira pouco firme. Outro barulho se seguiu, e eu sabia que Michael vinha atrás. Meus olhos se adaptaram à escuridão, e

106 vi um caminho iluminado que levava à escada do sótão. Peguei a mão de Michael e juntos descemos a escada. Saímos no Rose’s, o melhor restaurante da cidade, aquele para o qual todos os estudantes arrastavam os pais nos finais de semana em que passavam com eles. Era nosso aniversário de dois meses de namoro, e Michael queria comemorá-lo com um jantar especial, mesmo meus pais tendo me deixado de castigo por tempo indeterminado. Ele tinha observado o restaurante durante o dia para colocar seu plano em prática. Após chegarmos ao térreo, Michael me levou a uma sala reservada onde havia uma mesa posta para duas pessoas, assim como uma lareira, algumas poltronas espalhadas e um sofá forrado de tecido de linho adamascado cor de marfim. Ele me fez sentar em uma das poltronas e acendeu os candelabros de prata que estavam no centro da mesa e no consolo da lareira. Depois desapareceu na cozinha. Em poucos minutos, Michael voltou com uma bandeja enorme. Aromas deliciosos saiam dos pratos cobertos com tampa de prata. Com vigor, desdobrou o guardanapo de linho e o colocou sobre meu colo. Então pôs diante de mim um vaso decorado com rosas variadas, marca do restaurante. Por fim, trouxe dois pratos para a mesa. Com um gesto largo, levantou as tampas simultaneamente, revelando o prato encomendado por ele: lagosta acompanhada de aspargos e risoto. Meu favorito. Antes de se sentar, ajoelhou-se perto de mim e sussurrou em meu ouvido: ‚Feliz anivers{rio de namoro‛. Passamos todo o jantar conversando e dando risadas — inclusive risadas bobas como um casal normal. Mas durante todo o tempo sabíamos que estávamos apenas interpretando um papel: Michael e eu éramos tudo, menos normais. Após terminarmos as últimas mordidas do bolo de chocolate derretido, fiquei de pé e estendi minha mão para Michael. Ele se levantou, e eu o guiei até o sofá virado para a lareira. Nós não tínhamos ousado acender o fogo — a fumaça da chaminé poderia chamar a atenção —, mas não precisávamos dele. Podíamos nos ver bem o suficiente à luz das velas; estávamos acostumados a lugares bem mais escuros. Deitei-me no sofá e fiz um sinal para ele se juntar a mim. Ele se abaixou e seu corpo se misturou ao meu. Nossos lábios descansaram uns nos outros, e, por um longo momento, respiramos o hálito um do outro. Por meio do seu hálito, vivenciei cada momento do seu dia, como se eu estivesse estado o tempo todo com ele. Ele fez a mesma coisa comigo. Não precisávamos de palavras. Então o beijei. Primeiro, senti um prazer puro e simples. Meus lábios, seus lábios, nossos lábios, nossas línguas. Naquele exato momento, começamos a desejar sangue, a mesma necessidade que havíamos sentido no fatídico Baile de Outono. Mas não lutamos mais contra o desejo. Rendemo-nos ao seu poder.

107 Passei a língua sobre seus dentes no mesmo momento em que ele passou a sua sobre os meus. Pequenas gotas de sangue pingaram em nossas línguas, e nosso sangue se misturou. Intensas ondas de prazer percorreram nosso corpo. Então, como algo que queima lenta e progressivamente, surgiram as imagens. Vi Michael e eu com grandes faixas de luz nas costas e letras de luz no peito. Vi-nos voando por lugares e tempos que não pude identificar ou compreender. Vi-nos em combate, ajudando os outros, lutando e salvando. Além de não entender quem ou o que éramos, eu não compreendia muitas das imagens; a maioria parecia vagamente futurística. Contudo, eu me divertia nelas. As visões e o prazer diminuíram lentamente. Deitei-me nos braços de Michael, tranquila e feliz; nunca falávamos sobre as imagens e poucas vezes conversávamos sobre o que éramos. Mas eu sabia que, do momento em que eu acordava de manhã até o cair da noite, esperava por aquele momento. Eu vivia isso — e por isso. E Michael também. Havíamos nos tornado viciados no sangue um do outro.

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Vinte e Seis Na noite seguinte, olhei o relógio. Os ponteiros pareciam congelados às onze e cinquenta. Rezei e rezei para que eles andassem. Desejei desesperadamente que o ponteiro marcasse onze e, depois, meia-noite. Só à meia-noite eu poderia me levantar da cama e voar para encontrar ele. Eu achava que não ia conseguir segurar meu desejo — por ele e pelo seu sangue — nem um minuto além da meia-noite. Comecei a contagem regressiva assim que me levantei naquela manhã e passei o dia todo assim. Quando me arrumei para ir à escola, quando me sentei para assistir à aula, quando andei sozinha pelos corredores tentando ignorar os olhares de ódio, quando me sentei para jantar com meus pais. Só pensava na noite que teria com Michael. Saber que minha doce libertação estava a poucas horas de distância fez todo o tormento que eu vivia na escola parecer insuportável. Os ponteiros do relógio finalmente se encontraram no doze. Meia-noite. Queria pular da cama, mas, em vez disso, afastei as cobertas com calma e cuidado para não fazer barulho com os lençóis. Depois que abaixei o pé para tocar o chão, coloquei um edredom debaixo das cobertas e andei na ponta dos pés pelo assoalho conhecidamente barulhento. Calculei com cuidado cada passo e cada movimento para fazer o mínimo possível de barulho; eu não queria correr o risco de acordar meus pais. Cheguei à janela fazendo pouquíssimo barulho e, então, parei para ver se ouvia algum movimento dos meus pais. A casa estava silenciosa. Aos pouquinhos consegui abrir a janela, mas, mesmo com todo o cuidado que eu tomara, a vidraça da janela rangeu. Estremeci e me forcei a esperar um pouco antes de levantá-la até o fim. Parte de mim tentava adivinhar o motivo por que eu me preocupava tanto em ser pega por

109 meus pais. Na maioria das vezes, eu não me preocupava com isso, e essa era provavelmente uma das razões pelas quais eu não contei a Michael a conversa entre nossas mães que eu escutara. Meus poderes tinham aumentado tanto que meus pais não podiam me impedir de encontrar Michael, não importava a tática que usassem. Sim, achava que uma boa parte da velha Ellie permanecera para me fazer proteger meus pais. Mais especificamente, eu achava que eu queria protegê-los de mim, da vampira, ou o que quer que fosse que eu me tornara. Ajoelhei no consolo da janela e abri um espaço suficiente para passar por baixo. Tinha pensado em fechar a janela quando eu estivesse no ar, no meio da noite, como se nada mais depressa que uma rajada de vento fosse acordar meus pais. Passei a cabeça, os braços e o tronco pela abertura e já ia passar as pernas quando senti um puxão forte no tornozelo. Por um minuto, achei que tivesse prendido o tornozelo em um dos cobertores dobrados no consolo da janela. Mexi um pouco a perna, tentando soltá-la do cobertor, mas o apertão ficou mais forte. Congelei. O cobertor pareceu claramente uma mão. Parte de mim quis se desfazer da mão e voar para fora, mas eu sabia que não poderia fazer isso. Tinha de enfrentar ele ou ela. Ou pior, eu suspeitava, eles. Aterrorizada, deslizei o corpo devagar pela abertura da janela. Demorei o máximo que pude para passar a cabeça. Por fim, reuni coragem para me virar. Meus pais estavam sentados, com uma aparência estranhamente vulnerável em seus pijamas. Meu pai se sentara no consolo da janela — só podia ser sua mão a responsável por me segurar —, enquanto minha mãe estava empoleirada em minha cama. Na verdade, bem em cima do edredom que eu havia colocado debaixo das cobertas. Olhamo-nos em completo silêncio. Eu não sabia o que dizer ou fazer, e eles também pareciam não saber. — Aonde você pensa que está indo, Ellspeth? — perguntou meu pai, quebrando o silêncio. Ele parecia magoado, pois usara aquele nome formal: Ellspeth. —A lugar nenhum — sussurrei. — Esse ‚lugar nenhum‛ significa encontrar Michael? — indagou minha mãe. Sua voz não era suave, magoada como a do meu pai. Ela estava furiosa. — Não sei do que você está falando. — Eu não conseguia convencer nem a mim mesma. — Nós podemos ser crédulos demais, Ellspeth, mas não somos bobos — afirmou ela. Eu não sabia o que dizer. Era óbvio que eu estava tentando fugir, embora eu esperasse que eles não tivessem me visto voar. Eu não tinha ideia do que eles sabiam ou há quanto tempo eles tinham conhecimento das minhas atividades noturnas. Como eu não tinha a menor vontade de contar a eles os detalhes de que eles felizmente nada sabiam, fiquei quieta.

110 — Ellspeth, deixe-me esclarecer para você o que sua mãe e eu achamos que você estava fazendo. — O tom de voz do meu pai estava ficando igual ao da minha mãe — menos magoado e mais irritado. — Tudo bem — falei. — Nós a deixamos de castigo por causa daquele incidente com o Facebook, que nos deixou aturdidos. Mas você ainda quer ver Michael. Então vocês dois acharam que iriam fugir de casa e se encontrar em algum lugar. Certo? Pensei se eu deveria concordar com a história do meu pai. Afinal, sua teoria era quase verdadeira, e seria menos penosa que a verdade toda. Além disso, sentia o desejo pelo sangue de Michael pulsando. Se eu confessasse tudo, eles me deixariam sozinha e eu ainda poderia me encontrar com Michael. Mesmo naquela hora, eu estava concentrada em Michael. Enquanto pensava na resposta, minha mãe interveio: — O Michael está te esperando no jardim? — Não — eu praticamente gritei. Nós havíamos combinado de nos encontrar no centro da cidade. Mas eu estava atrasada, e não podia jurar que ele não tinha vindo até em casa atrás de mim. E eu não podia arriscar que minha mãe olhasse pela janela e o visse voando para me procurar. — Você admite que combinou de encontrá-lo em algum lugar? Só não foi aqui? — Sim. Meu pai concordou com a cabeça. — Ellspeth, estamos muito decepcionados com você. Esse comportamento não tem nada a ver com a filha que criamos e amamos. — Ele olhou para minha mãe, que balançou a cabeça para encorajá-lo. — Não temos como deixar de pensar que Michael está influenciando suas ações de alguma forma. Então, para sua própria segurança, resolvemos que você não vai mais vê-lo. — Não! — gritei. — Sim, Ellspeth. — A voz do meu pai estava firme, diferente do costume. — Vamos fazer o que for necessário para impedir que você o veja. Eu não podia deixar que meus pais me separassem de Michael. Não me importava mais em ser uma filha obediente — só me importava com Michael e seu sangue. Percebi que eu ficava cada vez mais furiosa, como quando me excedi com Missy. Não controlava mais minhas palavras e meus atos.

111 Levantei-me do consolo da janela, com uma expressão que desafiava sua tentativa de me prender. — Vocês não podem me impedir de vê-lo. Minha mãe se levantou e olhou direto para mim. Ela viu como eu me sentia. — Ah, sim, podemos. — Vocês não têm ideia do que sou capaz. — Ellspeth, acho que seu pai e eu sabemos exatamente do que você é capaz. Com as mãos no quadril, enfrentei sua expressão e sorri presunçosamente. — Ah, é mesmo? Não acho que isso seja possível. — Não esperei por sua resposta; fui direto para a janela. Eu tinha a intenção de voar para fora, para os braços de Michael. Não me importava que eles vissem. Eu precisava chegar a Michael, e eu não os deixaria me deter. Quando levantei a vidraça mais uma vez, ouvia-a dizer: — Você acha que é uma vampira, não acha?

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Vinte e Sete Virei-me e encarei minha mãe. Seu olhar transparecia tanta certeza e conhecimento, mas não me julgava nem mostrava incredulidade. Ela sabia quem eu era, o que eu era. Eu queria mais do que tudo perguntar o que ela sabia, mas as palavras não saiam dos meus lábios. Como eu podia fazer uma pergunta tão inconcebível? Agoniada e confusa, caí sentada no consolo da janela. Devia parecer desorientada e atordoada, pois meus pais estenderam a mão para me segurar. Naquela atmosfera nociva, ouvi meu pai dizer: — Está tudo bem, querida, vamos lhe ajudar. — Ajudar? — perguntei rindo. Como eles poderiam me ajudar? Eu não tinha um problema na escola que pudesse ser resolvido com uma conversa encorajadora e um tapinha nas costas. Não era um dilema que algumas poucas sessões com um psiquiatra resolveriam. Não, meus pais não podiam me ajudar. Ninguém podia, nem mesmo Michael. Senti o braço do meu pai deslizar pelo meu ombro e me puxar forte. — Será que lhe ajudaria saber que você não é uma vampira? Ajudaria saber que os vampiros, como você os imagina, não existem? Não respondia nada, eu não conseguia. Toda aquela situação e a conversa estavam cada vez mais surreais. Eu estava mesmo sentada em meu quarto à meia-noite conversando com meus pais sobre por que eu não era uma vampira? Ou estava tendo um daqueles terríveis pesadelos hiper-reais em que sabemos que estamos dormindo, mas não conseguimos acordar?

113 Meu pai permaneceu em um silêncio ensurdecedor. — Vou lhe contar uma história, Ellie. É da Bíblia — do ‚Gênesis‛, para ser mais exato —, então precisamos ouvi-la com um pé atrás. Mas essa história em particular tem um pouco de verdade, uma parte bem relevante de verdade. Então quero que você a ouça com atenção, muita atenção. Cresci acostumada às citações aleatórias do meu pai — e até as aguentava —, mas, naquela hora, não tinha ânimo para aquilo. Mesmo porque escolher uma história do Gênesis era estranho, pois meu pai dizia amar as mensagens e relatos da Bíblia, mas não suportava a maneira como as religiões organizadas as utilizavam. — Você disse que quer me ‚ajudar‛, pai. Como isso me ajudaria? — Apenas ouça, Ellie. — Era uma ordem. Como ele geralmente fazia pedidos de maneira mais educada, concordei com a cabeça. — No inicio, por falta de palavra melhor, Deus mandou alguns dos Seus intermediários espirituais — os chamamos anjos — à humanidade. Ele queria que esses anjos protegessem os recém-formados seres humanos, que os ensinasse sobre Seu poder divino e os guiasse ao Céu quando eles morressem. Em vez disso, os seres humanos conseguiram encantar anjos. Os anjos se enamoraram pela pureza e pela inocência dos seres humanos e, é claro, por sua beleza fisica. Os homens foram feitos à imagem de Deus, afinal de contas. Mas, mais do que tudo, os anjos ficaram fascinados pela sede de conhecimento que os homens tinham sobre seu mundo e sua origem. Porque, veja bem, os anjos sabiam as respostas. — Então, sucumbindo ao próprio orgulho de saber os segredos do mundo, os anjos passaram a ensinar aos seres humanos tudo o que sabiam sobre a Terra — as constelações, os sinais da Terra, o sol, a lua, o conhecimento das nuvens, o funcionamento dos metais, o uso da moeda e a arte da guerra. Eles inclusive se casaram com homens e mulheres e geraram uma raça única de seres metade humanos, metade anjos. Esses seres se chamavam Nephilim. De longe, Deus assistia aos atos desses anjos. E ficou bravo. Os anjos haviam se apropriado de Seus segredos e corrompido Sua criação preferida, os seres humanos. Eles haviam inclusive ousado se apaixonar por Sua criação e criar uma nova raça. E o que podia ser mais audaciosamente parecido com um ato de Deus e desafiador que isso? Criar só cabia a Ele. Deus decidiu que só havia uma maneira de desfazer o mal causado pelos anjos. Decidiu varrer os seres humanos corrompidos e a criação híbrida, deixando apenas um seleto grupo de seres humanos puro. Então, Ele instigou o dilúvio. Meu pai disse essa última palavra como se ela merecesse um maiúsculo e como se eu soubesse seu significado. Mas eu não sabia. Então perguntei:

114 — O dilúvio? — O dilúvio de Noé — respondeu irritado, como se o dilúvio tivesse sido noticiado na TV. Então, ele retomou a história. — De qualquer forma, mesmo permitindo que esses anjos rebeldes vivessem, Deus não queria deixá-los sem punição. Ele os expulsou do Céu para sempre e os mandou permanecer na Terra. Para tornar sua nova existência na Terra um tormento, Ele os manteve imortais e conservou suas habilidades etéreas para que não se esquecessem do que haviam perdido. Deus só não permitiu que eles continuassem a procriar com os seres humanos, é claro. Muitos desses anjos ficaram furiosos com as ordens de Deus, e decidiram reagir. Eles aceitaram seu novo status de ‘caídos’ e fizeram esforços concentrados para transformar os animais de criação de Deus — os seres humanos — remanescentes longe de Sua luz e fazê-los refletir a sua. Esses anjos caídos ensinaram os seres humanos a adorar os encantos terrenos que eles podiam controlar e manipular. Em tempo, eles começaram a pensar que os ideais desses anjos — e mesmo os próprios anjos — eram divinos. A humanidade passou a não temer nem adorar verdadeiramente Deus; eles começaram a adorar os ídolos criados pelos anjos — o comércio, a tecnologia, o consumismo, a guerra e, é claro, eles mesmos. Por sua vez, os anjos caídos capturaram — sugaram, se você preferir — a alma dos seres humanos. Mas alguns poucos anjos perceberam o terrível engano que estavam cometendo. Decidiram tentar e se esforçar para voltar a receber a graça de Deus, vivendo em silêncio entre os seres humanos e redirecionando-os à luz divina. Esse pequeno grupo avaliou o mal que os outros anjos haviam feito à Terra e à humanidade e criaram um plano de redenção. Alguns anjos decidiram cuidar da corrupção do setor financeiro, outros trataram do crescimento do materialismo, e assim por diante — e podemos ver os frutos desse trabalho atualmente nas notícias. Além disso, cada anjo desse grupo, o grupo bom, tentou usar seus talentos naturais para guiar a humanidade até Deus no momento mais difícil — a hora de sua morte. Então, usando seus dons — a percepção poderosa da psiquê do indivíduo adquirida por meio do toque ou do sangue, seus poderes intensificados de persuasão e sua capacidade de voar —, eles conseguem chegar ao máximo de seres humanos possível. Fiquei paralisada. Meu pai continuou a falar sobre os anjos, mas sua voz pareceu distante. Só conseguia ouvir uma repetição constante da descrição das habilidades dos anjos. Eles tinham as mesmas habilidade que eu. Era isso que eu era? Um tipo de anjo? Por alguma razão, aquilo me pareceu mais estranho que ser uma vampira. Mais insolente. — Dons? — interrompi. Eu precisava entender melhor quem o que eu era. — No início, todos esses anjos receberam certas habilidades para ajudá-los em seu trabalho de guiar as almas até a luz de Deus. Eles foram abençoados com o dom de voar para poderem chegar rapidamente aos seres humanos moribundos, para ajudá-los antes que fosse tarde demais. Os anjos conseguiam penetrar na mente e no coração dos seres humanos para assim poderem entender como ajudá-los a despojar das coisas mundanas e escolher um plano

115 superior. Eles conseguiam isso tocando o indivíduo ou o que ainda é mais poderoso — experimentando seu sangue, sua força vital. Os anjos tinham um forte poder de persuasão, para influenciar os seres humanos em suas decisões finais. Eles deviam usar seus dons para aquilo a que estavam destinados para guiar as almas até Deus. Pensei em uma coisa: e se os anjos não usassem seus poderes para atingir os objetivos a que estavam destinados, para o bem? E se começassem a usá-los para propósitos egoístas, como eu fizera recentemente com Michael? Isso poderia explicar por que eu me sentia tão sombria ultimamente? Por que eu havia perdido a compulsão para ajudar os outros? Todas essas perguntas só valiam se partíssemos do pressuposto que eu era um anjo, é claro. Perguntei a meu pai: —E se os anjos usassem seus dons para beneficio próprio? Meu pai parou antes de responder. Acho que minha pergunta o deixou meio perturbado. — Foi exatamente o que eles fizeram no começo, quando foram enviados para tomar conta da humanidade. Afinal, até os anjos têm livre-arbítrio, a capacidade de optar pela escuridão em vez da luz. Por isso foram banidos. Quando foram expulsos e se tornaram caídos, submeteram seus poderes completamente ao serviço de seus desejos. Então, eles foram dominados pelo mal — o desejo de servir a si mesmo, em vez de a algo maior. E foi muito — é muito — difícil ir contra isso, é quase um vício. Antes de continuar, ele estremeceu. Então se recompôs e falou: — Através dos séculos, as pessoas de todas as culturas, todas as sociedades começaram a tomar conhecimento desses anjos — especialmente dos anjos caídos que buscavam a salvação. Lembre que o desejo de salvação desses anjos fazia-os tentar levar a alma dos seres humanos até Deus no momento da morte. As pessoas às vezes os viam nesse momento e atribuíam a morte a eles. As pessoas começaram a ter medo desses anjos. E como culpá-las? Às vezes, as pessoas veem os anjos se aproximarem dos moribundos e sussurrar em seus ouvidos. Outras vezes, veem as criaturas tocar seus entes queridos como se seu toque os levasse ao último suspiro. E, em raras ocasiões, assistem à troca de sangue entre os moribundos e os anjos. É claro, as pessoas creem que esses seres causam a morte — em vez de facilitar a jornada pós-morte de seus entes queridos. As pessoas criaram lendas em torno desses seres. Os mitos diferem de cultura para cultura, de época para época. Mas o cerne continua o mesmo e fez nascer a lenda. A lenda do vampiro. ‚E você pode ver como essa lenda não é tão absurda assim para alguns anjos caídos que continuaram a servir a si mesmos e rejeitaram a luz. Eles usaram seus dons para sugar a alma humana e criar uma civilização em que eles são adorados, não Deus.‛ Meu pai fez uma pausa, e, no silêncio, não pude deixar de pensar que a última parte de sua história parecia muito com o pensamento do professor McMaster. Desde quando meu pai,

116 que era biólogo, se transformara em um estudioso de vampiros? Ou em um estudioso da Bíblia? Olhei para ele e vi que, durante seu longo relato, seu lindo rosto havia ficado endurecido. Ele de repente adquirira um ar tão triste e envelhecido que eu não podia desafiá-lo. Ele esticou o braço para fazer um carinho no meu rosto. — Então, minha filha amada, você não pode ser uma vampira, pois vampiros não existem. Apenas anjos caídos. Bons e maus. — Como você sabe tudo isso? — fiz, por fim, uma das muitas perguntas que guardava. Antes de responder, ele olhou para minha mãe, que permaneceu parada e em silêncio durante todo o monólogo. Ela balançou a cabeça uma vez, e meu pai se voltou para mim. — Porque os seres humanos uma vez já acusaram a mim e à sua mãe de vampiros.

117

Vinte e Oito Sem chances. Meus pais eram perfeitamente normais, totalmente terrestres. Eles não podiam ser anjos, ou vampiros, ou qualquer coisa do outro mundo. A simples ideia de minha mãe e meu pai serem seres de outro mundo era ridícula. Na verdade, tudo isso de repente me pareceu risível. Era demais para mim, e eu podia sentir que estava chegando à beira da histeria. As lágrimas desceram pelo meu rosto. Meu estômago doeu de tanto que eu ri. Quando percebi que meus pais estavam sérios, a graça diminuiu um pouco. Então olhei para eles, melancólicos, respeitáveis e quietos, de camisola, pijama e roupão de flanela, e a ideia de vê-los voando e adivinhando pensamentos me pareceu tão histericamente ridícula que comecei a rir de novo. Por fim, me acalmei o suficiente para perguntar: — Vocês dois? Anjos? — Sim — disse meu pai calmamente, quase se desculpando. — Então somos como uma família de anjos? Vocês são anjos do tipo bonzinhos ou caídos? — falei rindo. — Somos anjos caídos. Mas agora estamos tentando nos redimir — respondeu meu pai solenemente à minha pergunta pouco séria. — Por favor, vai. — Não sei por que eu estava com tanta dificuldade em aceitar suas explicações, já que eu havia pensado que era uma vampira por algum tempo. Com exceção de

118 que eles eram meus pais — e pais devem ser normais e respeitáveis. Especialmente os meus, que eram acadêmicos chatos. Mas quanto mais eu pensava nisso, mais ridículo me parecia. Meus pais eram descomunalmente bonitos; as pessoas sempre diziam isso. Eles se comportavam com uma graça e calma incomuns, exceto quando reagiram ao meu comportamento recente, é claro. Dedicavam-se a ensinar os outros a proteger o meio ambiente sem a necessidade de deixar de alimentar o povo. Eram os únicos que eu podia tocar sem ter nenhuma visão. E eram meus pais, aqueles que me criaram. Se eu era algum tipo de ser sobrenatural, por que não eles? Ultimamente, coisas estranhas estavam acontecendo. Esse pensamento me deixou mais realista — ainda que eu não estivesse pronta para aceitar completamente aquela ideia. Minha mãe lançou um olhar para meu pai, e ele saiu do quarto. Ela e eu nos sentamos em um silêncio incômodo enquanto escutávamos o barulho dos chinelos do meu pai subindo e descendo as escadas do sótão. Ele voltou com uma pequena caixa de madeira repleta de desenhos feitos em metal, parecidos com as gravuras de estanho impressas em troncos de madeira que os imigrantes irlandeses trouxeram em navios alguns séculos antes. Minha mãe aproximou-se, de camisola, e tirou uma corrente de ouro comprida formada por elos abertos e circulares. Na corrente havia um pingente liso, pesado, em formato oval, também de ouro. Quando criança, eu adorava brincar com ele, passando-o pela corrente até minha mãe se cansar da minha brincadeira e me repreender para que eu tomasse cuidado. Com o passar dos anos, vi que a corrente era o único sinal de vaidade da minha mãe, o único enfeite em seu guarda-roupa simples e funcional. Mas eu estava errada. Ela girou o pingente e ele abriu inesperadamente. O movimento me fez pular; nunca soube que o pingente era um relicário. Então ela tirou uma pequena chave de dentro e a entregou ao meu pai. Ele inseriu a chave na fechadura da caixa e a abriu ao girá-la habilmente. Devagar e com cuidado, passou a mão nos objetos dentro da caixa, retirou um envelope amarelado e o colocou em minhas mãos. O envelope estava fechado. Com o dedo, vi que havia uma aba solta, e olhei para meu pai aguardando sua confirmação para abri-lo. Ele concordou. Cautelosamente, soltei a aba da parte de trás e olhei dentro do envelope, onde havia uma pilha de algo que pareciam fotografias. Tirei-as do envelope. Eram mesmo fotografias, todas antigas. Algumas tinham sido tiradas um pouco mais recentemente — eram fotos em preto e branco, datadas da década de 1940, talvez — e outras eram tão antigas que tinham sido impressas em tom sépia. No início, folheei-as rapidamente e achei que eram cartões-postais, porque retratavam vários lugares exóticos. Vi fotos das pirâmides de Giza, no século XIX, da Muralha da China, no início dos

119 anos 1900, e até do prédio do Empire State em construção, com um casal atraente em primeiro plano. Quando examinei as fotografias mais de perto, elas me pareceram muito amadoras e informais para serem cartões-postais. A luz era ruim e estavam fora de foco e descentralizadas. Quando mais olhava para elas, mais elas me pareciam retratos de casais diferentes passando férias. Por que meus pais estavam me mostrando aquilo? Ainda mais naquele momento. Como se tivesse lido meus pensamentos, meu pai disse suavemente: — Olhe de perto. Olhei as fotos, torcendo para que fizessem algum sentido. Então, percebi que o casal das fotos era sempre o mesmo. Usavam penteados e roupas diferentes, mas tinham sempre a mesma aparência par cerca de cento e cinquenta anos. E só então percebi que os conhecidos eram meus pais. — Ah, então essa é sua prova de imortalidade? — perguntei. Meu ceticismo havia voltado. — Você acha que elas são falsas? — quis saber minha mãe. Ela parecia perplexa e um tanto magoada. — Qualquer um pode usar o Photoshop, mãe. — Você acha que preparamos tudo isso para lhe inventar uma mentira bem bolada sobre sermos anjos? — Agora ela não estava mais perplexa, mas furiosa. — E como você explica seus voos? Quando ela colocou a questão desse modo... O mais absurdo era que meus pais eram as pessoas mais práticas e realistas que eu conhecia. Ou que, de todo modo, eu achava que conhecia. Examinei as fotografias novamente. Lá, entre as fotos de lugares longínquos, havia uma pequena foto de meus pais com roupas de época se olhando. A expressão alegre no rosto deles me chamou a atenção, e olhei mais de perto. Eles estavam sentados diante da igreja branca no gramado verde de Tillinghast, um cenário que me era bastante familiar. Com a exceção de a igreja ser a única construção aparente; não havia nenhuma loja ou casa construídas ainda. Segurei a foto no alto. — Aqui é Tillinghast? Meu pai se aproximou da foto e sorriu diante da memória evocada. — Sim, é Tillinghast no final do século XIX. — Ele estendeu a foto para minha mãe. — Lembra, Hannah?

120 Ela sorriu para ele. — Sim, éramos tão felizes aqui, apesar de todos os problemas. — Que problemas? — indaguei. O sorriso desapareceu de seu rosto. — Como muitas cidades da Nova Inglaterra nos séculos XIII e XIX, Tillinghast sofreu muitos surtos de tuberculose e devastação. Alguns de nós, os que tentávamos achar um caminho que levasse à redenção, viemos para cá no início para levar os que morriam a Deus. Infelizmente, esses esforços foram testemunhados por alguns moradores de Tillinghast, que nos confundiram com vampiros, como seu pai contou. — O sorriso voltou ao seu rosto. Mesmo assim, adoramos aqui. Por isso voltamos quando você chegou. Encarei meus pais; parecia a primeira vez que os via. De repente, sem aviso prévio, acreditei neles. — Vocês dois são anjos. Anjos caídos, para ser exata. — Não era uma pergunta, mas uma afirmação. — Do tipo bom. — Sim — eles responderam em uníssono. — Então vocês podem voar e ler o pensamento das pessoas? Por meio do toque ou do sangue? — Podíamos — respondeu minha mãe, sozinha dessa vez. — Como assim? Achei que você tinha dito que os anjos podiam fazer todas essas coisas. — Eles podem. Mas não podemos mais fazer essas coisas. A maior parte de nós — afirmou minha mãe. — Por que não? — Essa parte não é importante. Escolhemos um caminho diferente. — Que caminho? — Parte do nosso caminho é ensinar às pessoas maneiras de cuidar da Terra para salvá-la. Balancei a cabeça. — Qual a outra parte do seu ‚caminho‛? — Tomar conta de você. — De mim?

121 — Sim, de você. O que havia de tão especial em mim que era necessário dois anjos me vigiassem? De repente, ficou claro para mim. Os anjos não conseguiam procriar, mas meus pais obviamente haviam ‚procriado‛. — É porque vocês conseguiram ter uma filha, mesmo Deus — ou quem quer que seja — tendo impedido que os anjos concebessem! — Algo assim, querida. Sempre nos sentimos abençoados por ter de cuidar de você — disse meu pai. — Então sou um anjo caído? Como vocês dois? — Só em dizer essas palavras em voz alta, associando-me a elas, me senti mais leve. Eu estava me livrando daquele segredo pesado e obscuro que eu guardava — e vivia — nos últimos dois meses. — Não exatamente, Ellie. Você é, de alguma forma, diferente do resto de nós, tanto daqueles que se mantiveram na escuridão quanto dos que escolheram a luz. — Mas eu consigo fazer todas as coisas que vocês descreveram — voar, ler o pensamento das outras pessoas. — Nós sabemos disso. Agora. —O que eu sou? Minha mãe deu um passo. — Não podemos lhe contar ainda. Não é hora. Mas iremos lhe contar. Por favor, confie em nós. Meu pai estendeu a mão e tocou em meu rosto. — Talvez seja bom descansar um pouco, querida. Podemos conversar mais amanhã e responder algumas das suas perguntas. No jantar. Dormir? Como dormir diante daquela revelação? Só de pensar nisso, fiquei enlouquecida. Eles queriam que eu dormisse depois de conhecer um segredo que eles guardaram de mim durante dezesseis anos. Um segredo enorme. Eu precisava de respostas sobre minha natureza, meus poderes e minha imortalidade — pelo amor de Deus. E eu precisava disso naquele instante. — Nem vem. Não tem chance de vocês jogarem tudo isso em cima de mim e depois esperarem que eu vá dormir. — Eu estava nervosa com meus pais como nunca estivera antes.

122 — Sabemos que você está brava, querida. É perfeitamente compreensível, considerando as circunstâncias. Mas há tempo o suficiente para suas perguntas depois que você tiver dormido — explicou meu pai. Havia em sua voz um cantar curioso. Eu tinha começado a discordar quando de repente dormir me pareceu a coisa mais lógica do mundo a fazer. Meu pai me pegou pela mão e me levou à cabeceira da cama. Minha mãe puxou as cobertas e fez um sinal para que eu entrasse debaixo do lençol. Eu não tinha escolha a não ser segui-los como uma criança obediente. Mesmo que uma vozinha em minha cabeça dissesse que, se eles tinham alguns desses poderes angelicais de persuasão, talvez os estivessem usando contra mim. Aconchegando-me debaixo das cobertas, olhei para meus pais. Minha mãe me lançou um sorriso que só podia ser descrito como beatifico, como uma virgem. Ou talvez eu estivesse vendo anjos e santos em todos os lugares. As últimas palavras de que me lembro de ouvir antes de mergulhar no sono profundo vieram de minha mãe. Ela falou: — Ellspeth, trate de esconder em sua mente tudo o que você descobriu hoje de Michael. O último pensamento que me lembro de ter tido antes de mergulhar no sono profundo é que demorou um tempo curiosamente longo para eles falarem sobre Michael. Especialmente porque ele e eu éramos iguais.

123

Vinte e Nove Michael estava me esperando na escola na manhã seguinte. — Onde você estava ontem? Fiquei tão preocupado com você — disse antes mesmo de eu abrir a porta do meu armário. Olhei rapidamente o corredor para me certificar de que ninguém estava ouvindo. Felizmente, todos pareciam apressados como eu; estava muito atrasada para a aula da senhorita Taunton. — Meus pais me pegaram — sussurrei. — Pegaram você? — Inexplicavelmente, ele pareceu confuso. — Me pegaram tentando fugir. Uma expressão horrorizada dominou seu rosto. — Eles não viram você... Eu sabia que ele ia dizer ‚voando‛, então o interrompi: — Não, eles não me viram fazendo isso. Aquilo era teoricamente verdade — não literalmente. Meus pais sabiam que eu voava, mas não tinham me visto voando na noite anterior. Por que eu contaria tudo a ele? Fiquei pensando por que eu estava em dúvida. Tinha acordado confusa por causa do que meus pais tinham me contado e brava por eles terem guardado aqueles segredos de mim.

124 Porém, ao mesmo tempo, eu me sentia leve, como quando eles me contaram tudo, por pensar que eu poderia fazer parte de algo melhor e maior que eu mesma. Aquela sensação de esperança permaneceu comigo enquanto eu me arrumara logo cedo e depois, quando minha mãe me levara para a escola — mesmo quando ela evitou responder minhas perguntas insistentes, garantindo que conversaríamos mais tarde, inclusive quando comecei a ficar brava com ela por não me dar explicações. Durante toda a manhã, mal pude conter minha agitação para contar a Michael o que eu havia descoberto sobre minha identidade, sobre nossa identidade, apesar de ter prometido aos meus pais não dizer nada. Quando eu tive a oportunidade de fazer isso, vacilei. Havia algo diferente, mesmo desagradável no comportamento de Michael — algo que eu não conseguia descrever bem — que me fez hesitar. E eu não hesitava diante dele havia bastante tempo. — Graças a Deus — falou ele. — Graças a Deus — disse sorrindo de leve; a frase agora tinha um novo significado para mim. Ele me pegou pela mão e perguntou: — Você acha que vai conseguir escapar depois da aula hoje? Sei que é difícil, porque você está de castigo e tal, mas aconteceu uma coisa ontem à noite. Quero lhe contar o que foi. — Não sei, Michael. O castigo não é meu único problema. Depois que meus pais me pegaram tentando escapar ontem à noite, eles me proibiram de te ver. Ele puxou a mão. — De me ver? Por quê? — Eles acharam que eu estava indo encontrar você. Eu não confessei. — Que bom — falou ele, sarcasticamente. — Agora a gente só vai poder se ver quando tiver gente por perto, durante o horário das aulas, das oito e meia às três e meia da tarde, e depois da meia-noite. Isso se seus pais não acamparem no seu quarto. — Isso se eles não acamparem no meu quarto — repeti com tristeza. Embora eu tivesse quase certeza já que eu sabia que eles sabiam de tudo — de que era isso mesmo que eles iam fazer. Michael pegou minha mão de novo e me puxou para longe da multidão de alunos que corria para as classes. Ele me levou a um corredor escuro que dava no auditório vazio. Empurrando-me para um canto onde havia uma porta dupla, sussurrou em meu pescoço: — Ellie, não vou conseguir ficar longe de você à noite. Uma noite já foi bem difícil. Diga que você vai me encontrar na Ransom Beach depois da escola.

125 Durante toda a manhã eu havia me sentido leve, como se a nuvem negra em que eu vivia tivesse se dissipado. Mas, naquele momento, com Michael tão perto de mim, senti o desejo por sangue de novo, com a escuridão inebriante. E soube que eu encontraria um jeito de vê-lo depois da aula. Consegui chegar à aula da senhorita Taunton pouco antes do sinal terminar de tocar. Zigue-zagueando pelo corredor lotado, cheguei à minha carteira no fundo da classe e tentei ignorar os olhares de ódio dos meus colegas. Na verdade, tentei com tanto empenho ignorá-los que tropecei no pé de um aluno que o estendera exatamente com esse propósito. Fingi não ouvir as risadinhas de prazer entre elas, a da senhorita Taunton quando levantei do chão e limpei a calça. Sentada na minha carteira, procurei o trabalho sobre Edith Wharton em minha bolsa. A luz indicando que havia uma mensagem de texto em meu celular estava piscando, o que era raro. Com as mãos ainda na bolsa, cliquei no icone de mensagem. Para minha surpresa, era de Ruth. ‚Cê t{ bem?‛, ela perguntava. Aquela mensagem era o primeiro contato que ela travava comigo desde a noite do baile. Mandei uma mensagem de volta imediatamente ‚Tô bem. Acostumada. Obrigada por perguntar.‛ ‚Quer se encontrar no café depois da aula?‛, respondeu ela. Corri para responder. ‚Sim!‛ Até o dia anterior, se Ruth tivesse me convidado para tomar um café, eu não teria ligado. Mas agora que um raio de luz aparecera entre as nuvens, fiquei feliz em reestabelecer contato com ela. Além disso, eu tinha outro motivo para ficar animada: tinha uma desculpa para encontrar Michael. Negociei com minha mãe uma pequena pausa — bem pequena em meu castigo, uma negociação que incluiu passar o celular para Ruth para ela confirmar que iríamos rapidamente ao café e que depois a Ruth me levaria diretamente para casa. No carro, a caminho do Daily Grind, não falamos sobre nosso afastamento. Em vez disso, conversamos sobre as aulas e o monte de lição que tínhamos pela frente. Esperei até nos sentarmos lado a lado em nossas poltronas prediletas, com o café fumegante nas mãos. — Ruth, estou muito triste por ter arruinado o seu baile e o de Jamie. — Tudo bem, Ellie. Fiquei brava no início. Quero dizer, eu sabia que você não tinha criado aquela página no Facebook. Sabia que Piper e Missy deviam ter feito isso. Mas por que você correu até o palco e assumiu ter feito aquela coisa horrível? Pareceu tão sem sentido e... nada típico de você. E, é claro, acabou totalmente com nossa noite. Mas não estou mais brava com você. Não foi por isso que eu fiquei brava por um tempo. Eu não queria ter de fazer a próxima pergunta lógica, mas não tive escolha:

126 — Por que você ficou brava? — Porque você mudou. — O que você quer dizer com isso? — De novo, eu precisava fazer essa pergunta. — Desde a noite do baile, você se tornou distante e fria. Andava como se estivesse num outro mundo. Eu entendi que você precisou de uma espécie de barreira para lidar com a raiva dos outros alunos, mas por que comigo? Especialmente comigo, que tentei muito me aproximar de você. Fiquei perplexa. Eu sabia que não tinha me importado muito com os outros, apenas com Michael, mas honestamente não lembrava nenhum esforço especial de Ruth para derrubar minha barreira. Desculpe, Ruth, não sei do que você está falando. — Você realmente não se lembra que eu tentei falar com você depois da aula de inglês? Ou de andar do seu lado quando íamos para a reunião da escola? — Ela estava desconcertada. Balancei a cabeça; não me lembrava de nada disso. Então, pela primeira vez desde toda aquela confusão, toquei a mão de Ruth. Rapidamente, vi as últimas semanas através dos olhos dela. Presenciei minha rejeição diante de suas investidas, senti a tristeza e a solidão que ela experimentara após cada tentativa de aproximação frustrada e vi suas lágrimas derramadas à noite. Eu podia jurar que havia mais, mas Ruth tirou a mão com rapidez. Comecei a chorar. — Ruth, desculpe-me. Eu... Ela me interrompeu com um abraço. — Ellie, sei que você está passando por algo difícil, algo que eu obviamente não consigo entender. Vamos conversar sobre isso quando você se acalmar, tá bom? Apertando-me com mais força, ela disse: — Posso contar tudo sobre mim e Jamie em vez disso? Passamos a meia hora seguinte conversando como se nada de mal tivesse acontecido entre a gente. Ouvi tudo sobre seu começo de namoro, e adorei ver a felicidade em seu rosto. Isso me fez desejar ser normal, que eu e Michael pudéssemos sair com minha melhor amiga e seu novo namorado como adolescentes comuns. Ruth olhou o relógio e deu um pulo. Ela tinha combinado de encontrar Jamie na biblioteca, mas precisava me levar para casa antes.

127 — Ruth, preciso lhe pedir um favor, mas não tenho coragem depois de tudo o que te fiz passar. — Ellie, você ainda é minha amiga mais próxima. Vou ficar feliz em ajudar. Você sabe disso. — Para isso você vai ter de desobedecer ao pedido que minha mãe te fez de me levar para casa depois do café. — Tudo bem — disse ela, hesitando um pouco. — Você pode me deixar na Ransom Beach quando sairmos? E promete não dizer nada a meus pais se o assunto surgir algum dia?

128

Trinta Ransom Beach pareceu ainda mais isolada e menos convidativa do que eu me lembrava. A descida do penhasco escarpado, que dava no oceano de ondas brancas, parecia mais vertiginosa, e não havia nenhuma alma viva naquele lugar no final do outono. De dentro do carro, Ruth e eu podíamos ver que a praia estava mais fria e que ventava mais do que na cidade. Era possível inclusive ouvir o som das gaivotas com as janelas fechadas, e elas pareciam solitárias; seu canto não era o canto normal e cordial que anunciava o verão. Aquele cenário deixou Ruth incomodada. — O que vocês vão fazer aqui? — quis saber ela, meio incrédula. — Queremos andar pela praia — menti. Sentia-me um pouco mal em mentir para ela, mas estar com Michael era mais importante que não dizer toda a verdade. — Com esse tempo? — Ruth não estava acreditando. Antes de responder, abaixei a cabeça. Achava que eu não conseguiria contar outra mentira a ela enquanto a encarava. — É o único lugar onde podemos realmente ficar sozinhos para conversar. Eu podia dizer que Ruth não tinha acreditado em mim, mas ela não iria me desafiar mais. Ainda assim, não me deixou sair do carro até Michael aparecer. Passamos alguns minutos jogando conversa fora enquanto ela olhava para o relógio do carro — eu podia jurar que ela não queria deixar Jamie esperando e eu examinava a estrada vazia à procura do carro de Michael. Quando ele finalmente chegou, nós duas demos um suspiro de alívio.

129 Ela relutou em ir embora. — Tem certeza de que vai ficar bem, Ellie? Sorri com confiança. — É claro, Ruth. — Aqui não me parece um lugar muito seguro... — falou Ruth. — Estarei com o Michael. — Tudo bem. Mas não tenha medo de me ligar se precisar de mim. — Ela fez uma pausa e, então, acrescentou com um sorriso: — E, por favor, vá para casa daqui a uma hora, conforme prometemos à sua mãe. Não quero que ela fique brava comigo. Ela pode ficar assustada. Dei-lhe um abraço — agradecendo pela carona e por ela ter voltado a ser minha amiga — e saí do carro. Imediatamente, fiquei grata por Ruth não ter ido embora e me deixado sozinha lá. O ar salgado era revigorante e forte, praticamente um tapa frio e úmido no rosto. Se eu não confiasse tanto na minha capacidade de voar, talvez não tivesse saído da estrada e pegado bravamente o caminho do penhasco perto do carro de Michael. Ruth ainda estava esperando, então corri até o carro dele. Dei um adeus, abri a porta do carro e entrei. Imediatamente, ele me puxou e me beijou por cima do câmbio do carro. Eu me sentia culpada por mentir para meus pais e por usar Ruth para me ajudar, mas seus lábios e suas mãos afastaram todo o sentimento de culpa. Eu precisava ficar com ele. — Então, aonde vamos? Preciso estar em casa em uma hora. — Na verdade, achei que a gente pudesse ficar lá embaixo, na enseada. — Ele sorriu. — Foi lá um dos nossos primeiros encontros. Ri. — Você está dizendo que isso é um encontro agora? Ele riu também. — Você se anima? Ou está muito frio para você? Ele estava me desafiando. Depois de todas aquelas semanas zombando e pressionando Michael, ele estava virando o jogo. — Depende de como vamos chegar até lá embaixo — respondi de maneira sedutora. — Acho que as condições são ideais para um voo no meio da tarde. — Nunca havíamos voado durante o dia antes. Era muito arriscado.

130 Mas se havia um clima e um lugar seguros para correr o risco, o final do outono em Ransom Beach era perfeito. — Vamos — eu disse. Olhei para ver se Ruth tinha mesmo ido embora e saímos do carro em direção à beira do penhasco. Por um momento, lembrei a primeira experiência aterrorizadora de ver Michael pular — sem saber que ele sabia voar — daquele mesmo lugar. Fiquei um pouco tonta diante da intensidade daquela lembrança e parei para me recompor. — Você não ficou com medo de altura de ontem para hoje, ficou? — Aprumei os ombros e olhei para a queda de mais de dezoito metros que tinha pela frente. — É claro que não. Só para provar que eu estava certa, peguei a mão dele e mergulhei. Voar durante o dia era diferente. Todas aquelas formas, sons e aromas que em geral adivinhávamos agora eram claramente discerníveis. Todos os perigos antes escondidos agora estavam visíveis. A luz do dia deixava a experiência ao mesmo tempo mais excitante e mais assustadora. Quando aterrissamos na areia, eu ainda queria mais. Mas Michael recusou o convite para outro voo. Ele queria ficar na enseada. A enorme pedra do penhasco nos protegia do frio e a temperatura ficou surpreendentemente agradável; os braços de Michael deixavam o clima ainda mais quente. Então ficamos um longo tempo em nosso abrigo, abraçados e olhando o mar bravo. — Eu queria, na verdade, preciso te contar uma coisa sobre ontem à noite — sussurrou ele em meu ouvido. Michael havia tocado no assunto antes. Mas, no caos do dia, eu não tinha dado muita bola. Especialmente porque eu tinha minha própria novidade e havia decidido dividi-la com ele. — Eu também preciso te contar uma coisa — disse. — Acho que eu devo contar primeiro — insistiu. — Tudo bem. De repente me senti incomodada e enjoada, como se ele fosse confessar que tinha saído com outra garota na noite anterior. Michael respirou fundo e abriu os lábios para falar quando — por cima dos ombros de Michael — vi outra pessoa caminhando em nossa direção. Um homem. Ele usava calça jeans e um casaco, mas estava descalço, com os sapatos pendurados casualmente no ombro, como se estivesse passeando na praia em um lindo dia de verão. O que ele fazia ali?

131 Coloquei os dedos sobre os lábios de Michael e falei: — Espere. Tem alguém vindo ali. Ele virou o pescoço para ver quem era. Virando-se para me olhar, ele me segurou com mais força — como se tivesse medo que eu saísse voando — e disse: — Tudo bem, Ellie, ele veio para nos encontrar. Era sobre ele que eu queria te contar. Mesmo registrando as palavras de Michael em minha mente e sabendo que ele queria, com elas, me acalmar, eu não conseguia parar de olhar para o homem com cautela conforme ele se aproximava e era possível distinguir melhor seu rosto. O cabelo loiro, os olhos azuis, a beleza dos traços e o rosto bem talhado eu sabia que já o tinha visto. Era o rapaz que víramos no café semanas antes, aquele em quem trombei. Aquele de quem Ruth não conseguira tirar os olhos. O rapaz que ficara ao lado de Missy no Baile de Outono, o que vi escondido nas visões. Era Zeke. O que diabos ele fazia ali? Viera nos encontrar? O rapaz notou meu olhar e deu aquele sorriso assustador e desconcertante. E fiquei com muito, mas muito medo. O desejo de fugir se tornou difícil de controlar. Senti minhas escápulas aprumarem e se abrirem, exatamente como fizeram antes do voo, mas agora o movimento era involuntário. Michael percebeu isso, pois me segurou com mais força ainda. Tentei me livrar dele enfiando as unhas em seu braço. — Michael, o que está acontecendo? — Ellie, o nome dele é Ezekiel. E ele vai nos contar o que somos.

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Trinta e Um — Quem é você? — perguntei para o tal ‘Ezekiel‛ enquanto tentava me livrar de Michael. Por que Michael estava me segurando com tanta força, me fazendo ouvir aquele homem? — Ellspeth, deixe-me me apresentar. Meu nome é Ezekiel. É um prazer finalmente conhecer você, mas peço desculpas pelas circunstâncias — disse Zeke — ou Ezekiel —, como se estivéssemos sendo apresentados em um chá no hotel mais chique de Bar Harbor, e não numa praia deserta em uma noite fria enquanto meu namorado me segurava. Durante todo o tempo ele manteve aquele sorriso estranho estampado no rosto. — Cadê sua amiga Missy? — perguntei enquanto tentava me soltar de Michael. — Desculpe-me pela minha associação infeliz com sua colega de classe Missy. Entrei nesse relacionamento com a esperança de que assim fosse mais fácil conhecer você e Michael. Infelizmente, não foi o caso. Mas continuei com ela porque vi que ela pode servir a outros propósitos. — Ele usava uma linguagem formal, quase antiga. De repente entendi porque Missy se tornara tão simpática comigo no começo do ano escolar. Era uma tentativa que Ezekiel fizera de se aproximar de nós através dela. E julguei saber o que ele quis dizer com ‚outros propósitos‛ a que Missy serviria. — Você colocou Missy naquela história do Facebook? — perguntei, sabendo que já o tinha visto em minhas visões. Não que ele soubesse disso, é claro. — Você mostrou ser uma espécie de salvadora naquele incidente, Ellspeth. E você me mostrou bastante sobre você durante o processo.

133 — Você não respondeu minha pergunta. Você orquestrou toda aquela coisa doentia? Ele suspirou, como se estivesse decepcionado com as perguntas. — Não, Ellspeth, não forcei Missy a perpetuar aquela história do Facebook. Missy não agiu contra sua natureza e não agiu sob meu comando. Admito que estimulei sua natureza e seu plano sobre o Facebook, já que o incidente me proporcionou uma visão importante... Ele me permitiu ver como você se comportaria quando tivesse de enfrentar uma atitude realmente insensível. E vi que, enquanto você estava se sacrificando para proteger a vítima em potencial da brincadeira de Missy, não estava imune à atração das trevas que emanava daquilo. — Ezekiel sorriu, evidentemente satisfeito com sua obra remota e com minha reação ao seu teste. — Mas você deve saber que eu não fui uma marionete de Missy, Ellspeth. Deve ter visto que ela agiu por escolha própria — em suas visões. Meu sangue congelou como gelo em minhas veias. — Como você sabe sobre minhas visões? — Sei o que você é e o que pode fazer. Por isso, presumo que você tenha visto como o plano se desenrolou, Ellspeth. Michael, por fim, falou: — Ellie, ouça o que Ezekiel acabou de dizer. Ele sabe o que somos e o que podemos fazer. Ele pode nos ajudar a entender quem somos. Por que Michael estava agindo com tanta deferência em relação a Ezekiel? Mesmo que Michael acreditasse que Ezekiel tinha as respostas, isso não era desculpa para ele me segurar com tanta força. Ezekiel interveio, com a voz ainda calma. — Está tudo bem, Michael. Acho que você deve soltar Ellspeth. Como se tivesse obedecendo a um comando, Michael afrouxou o braço. Enfrentei Ezekiel sozinha, completamente exposta a seu ar temível. Ezekiel falou com Michael, mas me encarou diretamente. — A reação de Ellspeth é perfeitamente compreensível. Ela não sabe quem sou eu. Ela não sabe nem mesmo quem ela é. Ainda. Estou muito ansioso para compartilhar com ela sua singularidade... — Não preciso que você me diga quem eu sou. — Era minha vez de intervir. Graças aos meus pais, eu sabia um pouco sobre minha identidade. Um pouco.

134 — Ellie, por favor — implorou Michael para que eu ouvisse e reverenciasse Ezekiel. Senti como se não conhecesse Michael. Ele parecia quase drogado diante da simples presença de Ezekiel. Virei-me para ele. Drogado ou não, como ele ousava fazer aquilo? — Por que eu deveria? Você me arrastou até Ramson Beach com falsas alegações — mais uma vez. Não tenho motivos para acreditar em você ou nele. — Estava grata por não ter dividido meus segredos de família com ele. Michael começou a balbuciar outra objeção, mas Ezekiel interrompeu. — Michael, é claro que Ellspeth está desconfiada. Quando ela entender tudo o que você entendeu, vai sem dúvida nenhuma renunciar suas suspeitas. Ela vai compreender — como você — que eu só estou aqui para ajudá-los. Mesmo que meus instintos me mandassem voar, eu sabia que ia ficar ali. Queria ouvir as explicações de Ezekiel sobre minha ‚singularidade‛ para compar{-las com a história que meus pais haviam me contado. Então enfrentei com firmeza seu olhar devorador e esperei. Eu obteria as informações dele e voltaria a meus pais — com a nova informação em mãos. E eles me ajudariam a entender tudo aquilo; eles me contariam os detalhes que não contaram na noite anterior. De qualquer maneira, esse era meu plano. Ezekiel aceitou minha aquiescência momentânea com um sorriso satisfeito de si mesmo. Era um sorriso de quem estava acostumado a conseguir o que pedia. Ele começou: — Na noite passada, fui até Michael. Sozinho. Ele estava assustado e cheio de perguntas, então as respondi. Como um pai responde às súplicas do filho. Porque, de várias maneiras, Michael é meu filho. Como você, Ellspeth. Você e Michael vieram da mesma fonte que eu. Vocês voam. Vocês podem ler e influenciar o pensamento dos outros por meio do toque e do sangue. Vocês sabem que somos diferentes dos outros. Melhores. Mas o que somos nós? Michael me contou que você resistiu ao rótulo de vampiro, embora todas as características parecessem se encaixar. Como você estava certa em rejeitar o apelido. O nome ‘vampiro’ foi dado aos seres como nós pelos seres humanos — motivados pela ignorância. Você pode ver, é claro, e onde surgiu a lenda do vampiro. O voo, o sangue, a total incompreensão dos nossos poderes deram asas à história fantasiosa dos vampiros. Mas você e Michael não são vampiros. Nem eu sou. Ellspeth, somos seres selecionados, nascidos para liderar a humanidade. E vou mostrar a você e a Michael o caminho para isso. Ezekiel fez uma pausa dramática. Achei que ele esperava que eu ficasse extática ou entusiasmada com seu discurso. Talvez essas fossem as reações que ele realmente despertava. Mas, na verdade, aquilo parecia a história que meus pais haviam me contado na noite anterior,

135 com exceção da parte sobre liderar a humanidade. Mas aquele detalhe estava começando a me dar uma boa noção de quem era Ezekiel. Seu discurso soava cada vez mais com o de um anjo caído impenitente. Eu estava cada vez mais assustada. Enquanto Ezekiel esperava minha resposta, olhou em meus olhos. — Seus pais lhe contaram uma história diferente sobre sua origem — falou, por fim. Não era uma pergunta, era uma afirmação. — Como você soube? — perguntei. — Certamente não foi porque eles me contaram. Faz anos que não tenho contato com seus pais, e eles não têm ideia de que estou em Tillinghast. Sei que eles lhe contaram uma história diferente sobre suas origens porque eu tenho séculos — não, milênios — de experiência em ler rostos. Posso ver que você não está surpresa com o que estou dividindo com você. Seus pais são os únicos que poderiam ter lhe contado parte dessa história. — Os pais dela? — Michael indagou como se tivesse despertado do transe. Ezekiel se virou para ele: — Ellspeth não lhe contou? — Não — disse Michael devagar. — Eu tinha planejado lhe contar, Michael. Antes de você despejar tudo isso em mim — contei, me defendendo. Eu não sabia por que sentia que precisava me justificar a Michael depois do golpe que ele me dera. — Cuidado com o que Hananel e Daniel lhe contaram, Ellspeth — alertou Ezekiel. — Afinal, eles não são seus pais de verdade. Hananel. Era por esse nome que a mãe de Michael chamara minha mãe. — É claro que eles são meus pais verdadeiros. — De fato, eles a criaram desde que você nasceu. Olhando para você, posso dizer que eles desempenharam seu papel maravilhosamente bem. Mas Hananel e Daniel não conceberam você, não a carregaram nem lhe deram à luz. — Você está mentindo! Ele suspirou, como se lhe doesse ter de me dar aquelas notícias angustiantes. — Quem dera eu estivesse mentindo, minha querida Ellspeth. Mas, veja bem, eu estava aqui no dia do seu nascimento. E nem Hananel nem Daniel são seus pais. Eu precisava me certificar de que ele estava dizendo a verdade.

136 Mesmo que eu temesse chegar perto de Ezekiel, precisava tocá-lo. Precisava ver dentro de sua mente. Pensei se ele permitiria que eu fizesse isso. Então lembrei a descrição dos poderes de persuasão dos anjos caídos que meu pai fizera e percebi que Ezekiel provavelmente estava tentando controlar minha mente. Como parecia que ele tinha feito com Michael. Ezekiel continuava com aquela voz repetitiva, certo de que estava me influenciando. Era a hora certa. Agi como se ele estivesse me influenciando e me aproximei dele. — Sempre houve inconsistências nas histórias que eles me contavam sobre meu nascimento, discrepâncias que nunca fizeram sentido — disse eu. — Não estou surpreso. — Eles não são meus pais? É verdade? — Como se aquelas palavras tivessem me convencido, deixei que meus olhos se enchessem de lágrimas verdadeiras. Lágrimas que eu estava segurando por causa da traição de Michael. — É verdade, querida. — Então não posso acreditar no que eles me contaram sobre mim? — Não, Ellspeth. Sinto muito em dizer que você não pode acreditar nas representações de Hananel e Daniel. — Mas você vai ser um pai para a gente? Michael e eu não vamos ficar sozinhos? Você vai nos mostrar o caminho? Ele sorriu; essa era a reação que ele queria ver. — Sem dúvida, Ellspeth. Sorri de volta para ele e me aproximei ainda mais do seu cabelo louro, dos seus olhos azuis e seu perfume diferente, parecido com incenso. — Estou tão contente — sussurrei. — Eu também, minha querida — sussurrou ele de volta. E então toquei nele.

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Trinta e Dois O ódio que testemunhei no coração e na mente dos meus colegas de classe depois do incidente do Facebook era brincadeira de criança em comparação às trevas que habitavam o espírito de Ezekiel. Mesmo a malícia que eu vira na mente de Missy não podia ser comparada àquilo. Através dos seus olhos, vi uma cena atrás da outra de dominação e degradação; ele inventara maneiras engenhosas e doentias de atrair a atenção — e depois as almas — dos seres humanos. Era implacável em estender seus tentáculos nefastos em direção à vida das pessoas — nascimentos, casamentos, doenças, mortes, educação, negócios, governos, tecnologia, guerra, dinheiro, nada lhe escapava. Ezekiel não iria descansar até dominar o pensamento e os desejos dos seres humanos. Ele desfrutava cada conquista, não importava se pequena ou grande. Cada vitória afastava outra alma de qualquer traço de bondade. Ezekiel era um anjo caído e, de acordo com a história bíblica, estava punindo Deus por bani-lo. E nunca iria parar. Ele era as trevas que haviam invadido minha alma e meu coração depois do Baile de Outono. Imaginei se ele também tinha contaminado o sangue de Missy que eu havia experimentado. Será que ela tinha provado o sangue de Ezekiel e agora o carregava em suas veias? Achei que não poderia mais aguentar a maldade dos pensamentos de Ezekiel ou, ainda pior, de suas ações. Ele havia desempenhado e planejado inúmeros atos de traição, decepção, sedução, inclusive de assassinato — alguns com as próprias mãos, outros usando as mãos dos outros. Eu não poderia sobreviver àquela violência mais um segundo sequer. E então a visão acabou. Ezekiel percebera o que eu estava fazendo e fechou sua mente.

138 Abri os olhos e olhei diretamente nos seus. Naquele momento< ele entendeu que eu o tinha desvendado — como ninguém de fato havia feito antes. Por que Michael não conseguia ver a maldade de Ezekiel? Ezekiel havia corrompido Michael antes que ele tivesse a oportunidade de vê-lo? Ezekiel já havia me assustado, mas agora ele me apavorava. Mas a visão me dera um momento de lucidez e liberdade, e voei. Nunca havia voado tão rápido nem tão alto. Com um impulso para cima, passei pelas pedras da enseada acolhedora, pela face pontiaguda da pedra atravessada pela trilha e pelo precipício que formava o topo do penhasco. Precisava desesperadamente chegar à rocha que dava vista para Ransom Beach antes de Ezekiel ou de Michael, de outro modo, a posição vantajosa em que se encontrava o topo do penhasco de Ransom Beach lhes indicaria a direção precisa da rota quando eu a tivesse descoberto. Desci no topo do penhasco. Por um momento, só consegui ver o céu cinza, as rochas acinzentadas e o asfalto negro da estrada< nenhum sinal do cabelo branco acinzentado de Michael ou de Ezkiel. Respirei aliviada. Cedo demais. Senti a terra tremer sob meus pés e, de repente, Ezekiel apareceu. — Ellspeth — falou com seu terrível sorriso no rosto; era como se eu pudesse ver seu esqueleto por debaixo da pele. — Aonde você pensa que está indo, querida? Quando Ezekiel caminhou até mim, percebi que ele não estava sozinho. Michael estava à sua direita. Eles estavam me cercando. Devagar, mas intencionalmente. Quando recuei, vi o quanto eles eram parecidos. Fiquei sem saber o que pensar por um minuto, mas depois retomei o foco. Eu tinha poucas opções: voltar para a beira do penhasco onde eu tinha acabado de pousar ou correr em direção à estrada deserta. Escolhi a estrada e a pequena chance de um carro passar por lá. Não que um carro e um motorista pudessem impedir os dois. — Ellspeth, você não tem para onde ir. Ninguém mais poderá compreender e gostar do que você é — disse Ezekiel. — Nós somos sua verdadeira família — ecoou Michael. O que estava acontecendo com ele? — Você pertence a nós, Ellspeth. Nasceu para dominar, comigo e Michael ao seu lado. — Ezekiel continuava, com a voz suave e calma, mesmo após eu ter lido sua mente. Podia apostar que ela atraía muitas pessoas, mas até agora não estava funcionando. Não que eu fosse dizer isso; eu odiaria ver que tipo de tática terrível ele tentaria em vez dessa. — Por favor, Ellie. Você sabe que eu e você devemos ficar juntos — lançou Michael. Como ele pôde ter se juntado àquele monstro? Ele não vira o que eu vi?

139 Continuei recuando enquanto eles continuavam a avançar lentamente em minha direção. Eu não sabia como evitá-los ou para onde ir. Infelizmente, não conseguia evitar os pensamentos agradáveis sobre minha casa. Eu queria muito estar com meus pais, e Ezekiel certamente lera o desejo em meu rosto. — Você está pensando em voltar para Hananel e Daniel, Ellspeth? Eles não podem mais protegê-la. E sua presença só vai lhes fazer mal. — O que você quer dizer com isso? — Parei. — Eles não lhe contaram o segredinho deles quando lhe contaram o seu? Balancei a cabeça, angustiada pensando no que ele ia dizer. — Não? Hananel e Daniel abdicaram da imortalidade quando concordaram em criar você como filha deles.

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Trinta e Três — Ruth, você me disse que eu podia ligar se precisasse de você. Eu preciso muito, muito de você. Ruth fora muito legal em não perguntar o que tinha acontecido nem por que eu precisava de sua ajuda. Só perguntou onde eu estava e disse que me buscaria em vinte minutos. Vinte minutos? Isso parecia uma eternidade; eu sabia como Ezekiel e Michael podiam ser rápidos, se quisessem. Rezei para que Ezekiel realmente tivesse sido sincero quando disse, antes que eu decolasse: — Deixe-a ir, Michael. Ela voltará para nós quando estiver pronta. — Vi que a água da chuva formara poças sob meus pés quando coloquei o celular na bolsa. Limpei o rosto e o cabelo o melhor que pude com uma camiseta seca que havia na bolsa e olhei para a The Maine Event, a lojinha de conveniência de gosto duvidoso que havia ali. No verão, quando os turistas enchiam as praias e até os moradores da região visitavam a costa, aquele lugar ficava cheio de gente. Agora, com apenas um vendedor, não trazia exatamente o consolo de um lugar cheio. Mas eu não tinha muitas opções enquanto dava uma volta pelo trecho vazio da estrada, principalmente porque começava a chover forte. Tentei aparentar ocupada e andei pela loja. Girei os carrosséis de cartões-postais e examinei prateleiras com conchas e compotas da região. O vendedor me direcionou um olhar curioso, então torci para parecer mais adequada e interessada do que eu realmente estava. Minha mente zunia diante dos horrores que eu vira através dos olhos de Ezekiel e da dificuldade que eu tivera para fugir.

141 Depois de exatos vinte minutos, ouvi a campainha da porta da frente tocar. Meu estômago embrulhou. Eu não sabia se era Ruth, que vinha me salvar, ou meus perseguidores. Graças a Deus era Ruth. Ela entrou correndo. — Você está bem? Sua aparência está péssima. — Estou bem. De verdade. —O Michael fez alguma coisa? Eu sabia que ela ia achar isso; afinal, tinha hesitado em me deixar com Michael na Ransom Beach havia menos de duas horas. Fiquei pensando em um motivo para ter pedido que ela me buscasse de repente e decidi continuar com aquela suposição. — Nós apenas brigamos. E fiquei com medo de que ele não me levasse direto para casa. — Entendi. — Ela me abraçou e me levou em direção à porta. — Vamos lá, eu te levo para casa. Minha casa. Desejei poder ir para casa, mas não podia. Eu teria de recorrer à ajuda involuntária de Ruth mais uma vez — para proteger a mim e a meus pais. E a ela também, nesse caso. Ficamos em silêncio o caminho todo até eu perguntar sobre Jamie. Seu rosto se iluminou enquanto ela descrevia como ele era inteligente e a ajudava na lição de casa. Incentivei que ela falasse até chegarmos perto do gramado verde de Tillinghast. Quando chegamos à igreja caiada da cidade, pedi que parasse o carro um minuto. — Ruth, vou lhe pedir um favor enorme. O maior que já lhe pedi na vida. E não vou poder lhe contar por quê. — Tá bom — disse ela, hesitando. — Você pode, por favor, me levar à estação de trem? E não contar nada a meus pais ou ao Michael? Ou a qualquer um que faça perguntas? Ela parou um instante, considerando com muito cuidado se diria a frase seguinte. — Ellie, eu sei. — Sabe o quê? Fiquei abismada e sem palavras. Ruth olhou para as próprias mãos, quase envergonhada com o que disse e sabia.

142 — Eu lhe falei antes que não entendia totalmente o negócio do Facebook. Aquilo não tinha nada a ver com você, e você agiu de modo tão estranho depois de tudo. Então comecei a xeretar aqui e ali. Ouvi você dizendo a Michael que se encontraria mais tarde com ele naquela noite — mesmo estando de castigo. Isso me fez pensar se vocês estavam fugindo e se Michael era o responsável por você ter mudado tanto. Então comecei a te seguir — à noite. Foi aí que vi vocês voando pela primeira vez. — Você nos viu? — Não podia acreditar no que estava ouvindo. — Sim. — Ela sorriu sem querer. — Foi impressionante assistir àquilo. Balancei a cabeça sem acreditar. — Ellie, essa ida à estação de trem tem alguma coisa a ver com você saber voar? Ela fez outra pausa. Era esquisito para mim ter de ver minha melhor amiga há sete anos tão incomodada diante de mim. — O que você é, Ellie? Eu não queria deixá-la, mas sabia que tinha pouco tempo. — Então você vai me levar à estação de trem? — Você precisa mesmo ir? Não sei o que vou fazer sem você, Ellie. Especialmente agora que você voltou a ser o que era. A verdadeira Ellie, quero dizer. Meus olhos se encheram de lágrimas diante da ideia de deixar meus pobres pais para trás. E Ruth. E Tillinghast. Mas eu sabia que não podia mais ficar lá, Ezekiel me avisara. — Eu preciso ir. Para o bem de todo mudo — disse, sabendo que Ruth não podia entender — ou acreditar — no perigo que eu faria Tillinghast correr se não saísse. — Leve-me com você, Ellie — pediu Ruth, de repente. Eu podia jurar que ela precisou de coragem para fazer aquele pedido. — Você não ia querer fazer parte disso. Eu juro. — Ellie, eu não sei o que você é, mas sei que você é algo mais que um ser humano. — Ela também começou a chorar. — Eu vi de perto o que significa ser um ser humano. Com a morte da minha mãe. E não quero terminar daquele jeito. Eu preferia ser como você. Ver Ruth chorar me fez chorar ainda mais. — Ah, Ruth, mesmo que eu quisesse, não poderia lhe transformar no que quer que eu seja. E, de todo jeito, não acho que minhas diferenças me tornem imune à morte. Abraçamo-nos por um longo tempo. Ruth se afastou primeiro e ligou o carro.

143 — Acho que tenho de levá-la à estação de trem.

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Trinta e Quatro Entrei pelos fundos da sonolenta estação de trem de Tillinghast me sentindo mais solitária do que nunca. O motivo não era o vazio completo da estação, com exceção da solitária vendedora de passagens, nem minha indecisão quanto ao meu destino. Era o fato de eu estar realmente por conta própria. Não sabia quando ou como — minha solidão iria terminar. Não poderia ver nem mesmo ligar para meus pais até ter certeza de que não lhes causaria nenhum mal. Quanto a Michael, bem, ele havia escolhido Ezekiel em vez de mim; ele tinha ido embora. E não havia mais ninguém. Quando subi as escadas que levavam ao painel de destinos, uma lágrima rolou pelo meu rosto. Por um segundo, fiquei feliz por estar sozinha. Eu não queria que ninguém visse minha fraqueza. Precisava ser forte para enfrentar os dias seguintes. Limpei as lágrimas e me concentrei no painel. Examinei a lista de trens que estavam marcados para deixar a estação de manhã, mas imediatamente rejeitei os que iam partir muito tarde. Não podia arriscar passar a noite na estação. Eu não duvidava que Ezekiel poderia ir até mim se quisesse, mas eu não queria que meus pais me encontrassem e sofressem a fúria de Ezekiel. Então percebi que havia um último trem que sairia da estação à noite, pouco depois das oito horas. Chamado de Downeaster, ele pararia em Tillinghast em quinze minutos e chegaria a Boston em cerca de três horas — Boston. Eu já sabia meu destino; não poderia ser mais perfeito se eu tivesse planejado.

145 Esperei que o chefe da estação saísse de seu posto para comprar meu bilhete na máquina de venda, com dinheiro vivo. Comprar o bilhete na máquina automática me pareceu mais inteligente do que comprá-lo com o chefe da estação. Eu ganharia algum tempo de vantagem caso Ezekiel e Michael mudassem de ideia juntos e resolvessem me seguir em vez de me esperar, conforme Ezekiel havia instruído inicialmente. Com o bilhete em mãos, fui ao banheiro feminino esperar até que eu escutasse o trem parando na estação. Não queria que o chefe da estação tivesse tempo suficiente para me identificar. Caminhei com o passo inquieto, tentando ouvir o trem e fazendo algumas pesquisas importantes na internet antes de jogar meu celular fora. Eu também não queria que ninguém me rastreasse pelo telefone. Quando lancei as informações essenciais para fazer a pesquisa, ouvi o barulho do trem. E então joguei o celular no lixo. Saí pela porta do banheiro feminino e não vi o chefe da estação em nenhum lugar. Corri do banheiro para o trem, sentei rapidamente no meu lugar e enfiei a cara em um livro que achara na bolsa. Não queria que o chefe da estação de Tillinghast, caso entrasse no trem, percebesse que eu havia acabado de embarcar. Nem respirei direto até o trem deixar a estação de Tillinghast. Só depois examinei furtivamente meus companheiros de viagem. Na parte de trás do vagão, havia dois executivos conversando sobre uma reunião que teriam na manhã seguinte com um possível cliente. Nos assentos ocupados próximos ao meu estavam alguns garotos que pareciam estar voltando para a faculdade. Fiquei olhando para eles. O moletom, as mochilas e outras parafernálias traziam o logo de Harvard, e pensei que os estudantes poderiam vir a ser úteis. A porta que separava os vagões se abriu de repente, e dei um pulo. Era apenas o condutor, pronto para receber meu bilhete. Fingi procurá-lo na bolsa, assim eu não precisava olhar diretamente para ele, e o entreguei. Ele perfurou o bilhete e em seguida colocou-o na fenda acima da minha cabeça. Após terminar o trabalho, deixou o vagão. Eu tinha três horas antes de chegar a Boston. Três horas para preparar um plano de ação. Não tinha planejado minha partida com antecedência, portanto, só tinha as coisas que trazia comigo. Quando viajávamos, meus pais sempre insistiam que eu levasse todos os itens de primeira necessidade comigo para o caso de me separar deles — duzentos dólares, carteira de identidade, um nécessaire com itens básicos, cartões de crédito e um cartão telefônico que eu agora evitava usar, a não ser em caso de extrema necessidade. Eu tinha adotado o hábito de carregar essas coisas sempre comigo. Ainda bem. Isso me deixou preparada para um dia como aquele. Talvez essa tenha sido sempre a intenção deles; talvez soubessem que um dia como esse iria chegar. Ao pensar nos meus pais — e eu sempre os consideraria meus pais, sendo meus pais biológicos ou não —, meus olhos ficaram cheios de lágrimas de novo. Eu não estava mais brava

146 com eles por terem me guardado segredos; entendi que só queriam me proteger. Eles inclusive tinham abrido mão da imortalidade para cuidar de mim. E mesmo que Ezekiel não fosse confiável, eu acreditava no que ele dissera sobre meus pais terem sacrificado a própria imortalidade; eu via como eles tinham envelhecido nos últimos dezesseis anos e vi, nas fotos, como haviam se mantido jovens por mais de cem anos. Mas, se eles não eram meus pais, quem seriam? Meus verdadeiros pais ainda estariam vivos? Por que Hananel e Daniel resolveram me criar? Com quem eles haviam combinado isso? Eles deviam estar muito preocupados comigo naquele momento. Fiquei pensando se chamariam a polícia ou me procurariam por conta própria. Torci para que eles ainda tivessem algum poder. Mas eu não podia me dar ao luxo de ficar emotiva e, certamente, não queria chamar a atenção para mim chorando. Então, peguei um pedaço de papel e uma caneta da bolsa e escrevi todas as minhas perguntas. O trem balançava para frente e para trás e parou de vez em quando durante a viagem de três horas até Boston. Eu estava tão absorta que nem notei direito nada disso. Na hora em que o trem parou na North Boston Station, eu tinha feito uma lista de perguntas sobre minha natureza e meu futuro. Olhei minhas anotações: O que eu era? Meus dons pareciam com os descritos por meu pai. Isso significava que eu era um anjo, caído ou bom? Ou eu era outro tipo de ser sobrenatural? Minha mãe havia dito que eu era ‚um pouco diferente‛ dos anjos. Qual era meu objetivo? Meu pai dissera que os anjos deveriam usar seus dons — de voar, ter visões e poderes persuasivos — para guiar as almas até Deus. Era isso que eu deveria fazer com meus dons? Afinal, antes da história do Facebook, eu tinha sentido uma compulsão intensa por ajudar os outros. Mas minha mãe e meu pai haviam falado algo sobre eu ter um papel especial. Que papel era esse? Quem era Ezekiel e por que ele estava tão interessado em mim? Eu achava que ele era um dos anjos caídos, mas não dos que buscavam redenção. Nesse caso, por que ele não usou seus poderes de persuasão para me forçar a ficar ao lado dele? Ele parecia ter algum tipo de influência sobre Michael nesse sentido. E como Ezekiel nos achara, afinal? Se eu acreditasse no que Ezekiel dissera sobre meus pais, então quem eram meus pais biológicos? E onde eles estavam? E por que Hannah (eu não conseguia pensar nela como Hananel) e Daniel concordaram em me criar?

147 Eu tinha perdido Michael para Ezekiel para sempre? Rezei para que essas perguntas fossem respondidas em Boston, pois, sem as respostas, eu estava paralisada. E terrivelmente confusa. Mas, em posse dessas informações, talvez tivesse uma chance contra Ezekiel e pudesse proteger meus pais. Os estudantes que viajavam ao meu lado iam para o mesmo lugar que eu, então os segui. Esperava que, assim, eu parecesse apenas outra universitária. Segui-os enquanto eles faziam a conexão no metrô de Boston, chamado T, e aguardei o trem Red Line, que ia para Cambridge. Em nenhum ponto do caminho sentira que estava sendo seguida. Desci quando os estudantes desceram e os segui — de longe enquanto eles entravam no campus. Quando foram em direção aos quartos, comecei a me preocupar. O que eu ia fazer até a manhã seguinte? Não me preocupava em ficar acordada até o sol nascer eu tinha passado várias noites acordada com Michael para me preocupar com aquilo —, mas, sim, em ficar segura e despercebida. Então, me lembrei de que tínhamos passado em frente a um café que ficava aberto a noite toda quando saímos do T e fomos em direção aos quartos. O café atendia os estudantes até tarde da noite e tinha internet grátis. Assim, voltei em direção ao café. Quando abri a porta, vi que ele estava repleto de estudantes com cara de sono estudando e fazendo trabalhos, abastecidos com café e biscoitos. Vi que tinha um lugar onde esperar. Eu tinha quase nove horas pela frente até as nove da manha — quando, então, tentaria encontrar o professor McMaster.

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Trinta e Cinco Eu não sabia por que tinha tanta certeza de que aquele homem sobre quem eu mal havia lido alguma coisa na internet poderia responder minhas perguntas. Principalmente porque ele era especialista em vampiros e eu descobrira que eu era algo totalmente diferente. Contudo, estava desesperada por respostas, e o desespero gerou excesso de confiança, talvez. Pensei que, se ele pudesse apenas me dizer o que eu era — e qual meu objetivo —, eu conseguiria compreender toda aquela loucura. Quando amanheceu, me arrumei o melhor que pude no banheiro do café e troquei meu pequeno paraíso por uma livraria, indo acampar na loja Dunkin’ Donuts depois. De lá tinha uma ótima visão do prédio onde o professor McMaster trabalhava. Quando faltavam exatamente dois minutos para as nove, vi um senhor desgrenhado de cabelo grisalho e crespo entrando no prédio. De início, o homem chamou minha atenção porque estava mal vestido para o frio: usava apenas um blazer estropeado jogado por cima da camisa. Então, percebi que o homem lembrava o da foto do site da Harvard, embora parecesse bem mais velho. Sem dúvida era o professor McMaster. Esperei dois minutos e, então, o segui até o prédio. Não queria abordá-lo suntuosamente, mas precisava ser a primeira da fila no atendimento que ia das nove às onze da manhã. Em vez de pegar o elevador, como ele fez, subi os dois lances de escadas até seu escritório. Passei por um lugar que parecia a secretaria do departamento e andei até a porta do professor — que estava fechada. Conferi mais uma vez o horário dele para me certificar de que estava certo e bati na porta. Só ouvi um barulho de papéis e o ranger de uma cadeira de escritório, então bati de novo.

149 — Ouvi você da primeira vez. Já lhe atendo — respondeu uma voz áspera e com um leve sotaque. E ele não parecia nada alegre. — Obrigada disse, — envergonhada. Não era bem esse o começo que eu esperava. Alguns minutos depois, ouvi o tilintar metálico dos armários. Então, a porta rangeu e se abriu parcialmente. — Entre, — entre disse, impaciente, o professor. Entrei pelo pequeno espaço. Então, o professor McMaster fechou e trancou a porta. Depois de ver a maneira como ele me cumprimentou e o seu estado de exaustão, não estava exatamente animada em ficar trancada no escritório com ele. Mas quais eram as minhas opções? Não queria parecer atrevida e ir logo me sentando sem ser convidada, então fiquei de pé e esperei ele me pedir que sentasse do outro lado da mesa. O professor fez alguns grunhidos enquanto pisava nas pilhas de papel jogadas no chão para chegar à sua mesa. Quando se sentou, ficou apenas me olhando com seus olhos castanhos surpreendentemente brilhantes e claros. — O que você está esperando? — disse, apontando para a cadeira. Corri para me sentar na cadeira de madeira detonada. Tinha planejado me apresentar como uma aluna da Harvard que escrevia para o jornal diário — o Harvard Crimson — e que viera fazer uma entrevista com ele. Até tinha vestido uma camiseta da Harvard e levado um exemplar do Crimson por cima do meu notebook. Mas o professor se comportava de modo tão grosseiro e estranho que hesitei, principalmente porque estava muito irritado. Ele projetou a mão aberta em minha direção. — Vamos, senhorita. Você trouxe ou não? — Trouxe o quê? — O trabalho do seminário. O atendimento de hoje é reservado exclusivamente para os estudantes do seminário de Mitos e lendas da Europa Oriental. Ele notou meu olhar vago e me olhou de soslaio. — Você está no meu seminário, não está? — Não, não estou. Na verdade estou... Ele me interrompeu. — Então devo pedir que você se retire. Você pode voltar durante meu horário de atendimento geral na sexta.

150 — Acho que não posso esperar até sexta, professor McMaster. — Acho que você não tem escolha, senhorita... — Faneuil. — Vamos lá, senhorita Faneuil. Não há prazos iminentes em meus dois outros cursos, portanto você vai ter de esperar até sexta-feira. Os estudantes do seminário têm prioridade. Comecei meu plano. Achei que poderia tocar em sua vaidade com a entrevista para o Harvard Crimson — todo mundo gosta de falar de si mesmo — e então fazer minhas perguntas. Desse modo, eu não o assustaria muito. Cruzei os dedos para que ele não pedisse minha carteira de identificação do Crimson. — Prometo não tomar muito seu tempo, professor McMaster. Escrevo para o Harvard Crimson, e gostaríamos de entrevistá-lo para nossa revista. Eu teria marcado um horário com sua secretária, mas tivemos um espaço inesperado hoje e adoraríamos preenchê-lo com uma entrevista sua. — Olhei para meu caderno como se tivesse consultando algumas anotações. — Minha equipe me informou que nunca fizemos uma entrevista formal com o senhor, e queremos retificar essa situação. A expressão do rosto do professor se suavizou. Poderia dizer que ele não queria dar a entrevista, mas se sentiu obrigado a isso. Ele falou: — Minhas desculpas, senhorita Faneuil. — Sou eu quem deve pedir desculpas, professor McMaster. Como eu disse, devia ter marcado um horário com sua secretária. Principalmente porque o senhor parece estar bem ocupado agora. — Estou mesmo. Estou totalmente à disposição dos estudantes a tarde. Entretanto, posso lhe conceder quinze minutos agora, até o primeiro estudante começar a reclamar para entrar. — Agradeço muito, professor. — Olhei para minhas anotações com as perguntas da ‚entrevista‛ e disse: — Não vamos desperdiçar em um minuto. Rapidamente, fiz a ele uma série de perguntas básicas sobre seu currículo e áreas de conhecimento. Ele dava respostas concisas, embora estivesse visivelmente incomodado. Seu incômodo aumentou quando comecei a perguntar aquilo que realmente me interessava — as características dos vampiros. E o que — se é que havia algo ele sabia sobre outras criaturas sobrenaturais. Ele me interrompeu: — Senhorita Faneuil, eu lhe disse que lhe daria quinze minutos. Acredito que mantive minha promessa. Não posso lhe dar mais nenhum minuto.

151 O professor levantou abruptamente e passou para meu lado da mesa, provavelmente com a intenção de me escoltar até a porta. Quando me pegou pela mão para me levar para fora de seu escritório, tive uma visão. Era uma visão suave, mas com uma amplitude e potência impressionantes, pois fornecia muita informação sobre ele. E não me surpreendeu que seu conteúdo se referisse ao que tínhamos acabado de conversar: sua formação. Eu não queria usar o que eu vira para chamar sua atenção isso me pareceu muito baixo para meus objetivos. Mas não tive outra escolha. — Acho que vou ter de insistir por mais uns minutos... Professor Laszlof.

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Trinta e Seis O professor se afastou de mim, como se eu o tivesse queimado. — Do que você me chamou? — Istvan Laszlof. Esse é seu nome verdadeiro, não é? Ele não disse nada. Talvez não conseguisse. Devia fazer uns cinquenta anos que ninguém o chamava por seu nome de batismo. Quando encostei nele, vi que tinha nascido na Europa Oriental, na década de 1930, como Istvan Laszlof. Ele viera para os Estados Unidos trazendo excelentes credenciais como historiador e falando um inglês quase perfeito mas ninguém o aceitara no programa de doutorado naquela época. Os acadêmicos preferiam ver um antigo simpatizante do comunismo limpando o chão sagrado de seus corredores. Ele, porém, não se deixara intimidar e tinha tanta sede de conhecimento que nada podia impedi-lo, então, criou para si uma nova identidade, a de Raymond McMaster, e se candidatou novamente aos melhores programas de doutorado. Se a verdade sobre sua falsa identidade viesse à tona, a carreira do professor McMaster poderia ser destruída. — Quem lhe contou isso? — Não importa. — É claro que importa. — Seu tom naturalmente desagradável estava se tornando agressivo.

153 — Professor, eu não tenho nenhuma intenção de contar seu segredo para ninguém. Só quero mais alguns minutos do seu tempo. — Senhorita Faneuil, se você não me disser onde ouviu essa informação, não vou lhe dar o tempo que quer. Agora eu estava ficando brava. Eu só queria falar com ele — por que eu precisava, para isso, contar todos os meus segredos? Mas quais eram minhas alternativas? — O senhor mesmo me contou sobre Istvan Laszlof. — Não entendi. Falei devagar, tentando amenizar ao máximo minha próxima frase. — Descobri suas origens como Istvan Laszlof ao tocá-lo agora mesmo. Professor McMaster, eu não sou como os outros. Posso ver e fazer coisas que provavelmente o deixariam chocado. Eu não falei sobre Istvan Laszlof para assustá-lo — e não tenho intenção de contar a ninguém sobre isso —, mas porque me pareceu a única maneira de conseguir um pouco mais do seu tempo. Tremendo, ele voltou para detrás de sua mesa e se sentou. — É isso mesmo que você quer? Apenas conversar? — Ele parecia muito cético. — Sim, é isso que quero. Não estou aqui para assustá-lo; estou aqui para que o senhor me ajude. Em um esforço para juntar as peças quebradas do professor McMaster e esconder Istvan Laszlof, ele passou as mãos sobre o cabelo bagunçado e puxou a camisa antes de falar. Depois de respirar profunda e continuamente, fez um gesto indicando que eu deveria me sentar e falou: — Ficarei feliz em ajudá-la, então, senhorita Faneuil. Embora, preciso confessar, eu não saiba muito sobre telepatia. Sou especialista em vampiros. — Ah, professor McMaster, não sou telepata. — O que você é, senhorita Faneuil? — Eu espero que o senhor possa me dizer isso. Ele pareceu aliviado com minha resposta. — Estou pouco acostumado a classificar as pessoas. — Eu não queria abandonar minha esperança tão depressa. — Sim, mas o senhor tem certa familiaridade com criaturas não humanas? — Sim, tenho.

154 —E o senhor acredita na existência desses seres? Incluindo vampiros? — Sim, tive conhecimento de certos seres que poderia considerar verdadeiros vampiros. Por isso a necessidade das trancas na porta do meu escritório; só é possível entrar e sair do meu escritório com minha permissão. O mal deve permanecer à distância o máximo possível. — Entendo — disse, embora eu soubesse que nenhuma tranca poderia manter alguém como Ezekiel ‚| dist}ncia‛. Ele logo acrescentou: — Mas, na maioria dos casos, os indivíduos que se aclamaram assim são apenas seres humanos cujas diferenças observáveis podem ser explicadas por meio de traços históricos e culturais. — Ele iniciara um discurso acadêmico. — Não acho que minhas ‚diferenças‛ possam ser explicadas assim tão facilmente. O professor McMaster se apoiou na cadeira e colocou as mãos posição triangular. Embora ele parecesse um professor, não tinha certeza se ele havia encarnado o papel ou o usava para se proteger. Afinal, eu entrara ali e falara sobre seu segredo guardado a sete chaves. — Fale-me sobre suas... — ele hesitara antes de escolher a palavra — ‚diferenças‛. — O senhor testemunhou uma das minhas ‚diferenças‛ agora mesmo. Ao tocar as pessoas, posso ler certos pensamentos, aqueles que estejam passando por sua mente naquele momento. — Sim, isso foi... impressionante. Você consegue ver o pensamento das pessoas por outros meios? — perguntou. Hesitei. Seria muito arriscado contar a ele? Eu não tinha escolha a não ser contar meu segredo mais terrível a um estranho. — Sim, por meio do sangue. Ele não pareceu perturbado. Será que tinha conhecido pessoas como eu? Ou apenas alguns malucos que fingiam ser vampiros? Continuou com suas perguntas. — Tocando ou experimentando o sangue? Eu já tinha ido longe demais; pensei que deveria contar tudo. — Experimentando o sangue. O professor McMaster concordou com a cabeça e continuou com suas perguntas, como se estivesse processando minhas credenciais. Ele estava notavelmente tranquilo. — Você tem outras habilidades especiais?

155 — Sei voar. Isso pareceu surpreendê-lo. — Você quer dizer que consegue levantar voo? — Sim. — Isso é pouco comum. — Ele se levantou e começou a andar pelo pequeno escritório. Embora minha estranheza não parecesse assustá-lo ou rechaçá-lo, ele parecia confuso. Como se eu tivesse embaralhando os critérios que ele usava para categorizar as criaturas de outro mundo. Alguém bateu na porta. Ele murmurou algo sobre seus alunos do seminário e pediu licença. Destrancou a porta, saiu e a fechou atrás de si. Ouvi uma conversa abafada. Parecia que o professor McMaster estava tentando convencer seu aluno a esperar pacientemente mais alguns minutos. Ele voltou e fechou bem a porta. — Além de conhecer suas habilidades, você sabe alguma coisa sobre sua natureza ou sua origem? Mesmo uma intuição sobre sua identidade pode vir a ser útil. — Só o que meus pais me contaram. — Eu tinha relutado em falar sobre meu pai e minha mãe. Graças ao que Ezekiel havia me dito, eu queria mantê-los o mais longe possível daquilo tudo. Mas eu precisava falar sobre o assunto; não podia arriscar dando informações falsas. — Seus pais sabem de suas habilidades? — Ele pareceu chocado, e com razão. Que adolescente contaria aos pais sobre isso? — Sim. —O que eles lhe contaram? — Sua impaciência natural transpareceu. — Meu pai me contou uma história bíblica e disse que ela era relevante. Era do ‚Gênesis‛, sobre anjos, a criação dos Nephilins e o dilúvio de Noé. O professor foi até suas prateleiras e pegou um exemplar velho da Bíblia. Ele leu em voz alta os versos do ‚Gênesis‛ de que meu pai falara. Então me encarou: — Senhorita Faneuil, seus pais não lhe explicaram a importância dessa passagem bíblica? — Não. — Na verdade, eu havia deduzido da história que meus pais contaram que eu era um tipo de anjo. Especialmente porque Deus havia ordenado a aniquilação de todos os Nephilins.

156 — Eles só lhe contaram a história e a deixaram tirar suas próprias conclusões sobre seus poderes diferentes? — Ele parecia, justificavelmente, não acreditar. Isso parecia absurdo, principalmente sem o contexto todo da história que meus pais me contaram e considerando a sua própria identidade de anjos. Mas eu não pretendia contar isso ao professor. Obviamente, precisava contar mais coisas ou correria o risco de parecer ridícula. Então lhe ofereci um petisco irrelevante, pelo menos aos meus propósitos. — Bem, eles me disseram que a lenda dos vampiros surgiu da presença desses anjos caídos em nosso mundo, já que eles foram banidos do céu por terem criado os Nephilins. Ele pareceu confuso mas animado. — O que eles lhe contaram? Tentei esclarecer. — Deus insistiu que esses anjos — aqueles que se casaram com os seres humanos permanecessem na Terra como punição, certo? Meus pais me explicaram que, de tempos em tempos, esses anjos caídos apareciam ao lado de homens e mulheres moribundos. Com boas e más intenções. De vez em quando, os seres humanos viam esses anjos, e o homem criou o mito dos vampiros por causa deles. O professor McMaster praticamente pulou da cadeira. — Você pode repetir isso? Fiz o melhor que pude. Enquanto eu falava, seus olhos brilhavam, e ele bateu palmas. — Isso é terrivelmente emocionante. É uma explicação muito interessante — embora singular — para a criação do mito dos vampiros. Mesmo para a existência dos próprios vampiros. Era estranho que ele parecesse mais entusiasmado por descobrir as origens da lenda do que pela possibilidade de ter encontrado uma criatura sobrenatural viva em seu escritório. Mas achei que não havia como explicar as excentricidades dos acadêmicos. Ele pareceu perceber a idiossincrasia de seu comportamento e retrocedeu, ao dizer: — Mas, é claro, temos de nos concentrar no seu caso, senhorita Faneuil. Confesso não ter muita familiaridade com os Nephilins ou outras criaturas bíblicas, mas podemos conversar mais e pesquisar o assunto. E conheço um grande especialista na área com quem podemos entrar em contato.

157 — Eu gostaria muito, professor. — Pensei se ele estava sendo tão prestativo porque temia que eu contasse as informações que tinha de Istvan Laszlof ou porque queria ouvir mais sobre as origens da fábula dos vampiros. Certamente não era por causa da minha bondade nata. Ouvimos outra batida em sua porta. Ele se levantou e falou: — Nós vamos precisar interromper nossa conversa. Deixe-me atender esses alunos ansiosos e vamos nos encontrar aqui de novo às cinco da tarde de hoje. Vou ver o que descubro enquanto isso. Cinco da tarde parecia muito longe. — Não tem como nos encontrarmos antes? Acho que preciso responder minha dúvida com certa urgência. — Não, senhorita Faneuil. É impossível. — Sua porta vibrou com outra batida. — Não sem sermos interrompidos constantemente. Meu coração ficou triste por ter de esperar até as cinco. O professor McMaster não se sentiu assim. Seus olhos brilhavam quando ele falou: — Mais tarde você poderá me contar sobre o começo do mito dos vampiros. Não era bem isso que me interessava.

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Trinta e Sete Saí do prédio do professor McMaster e fui em direção à horda de estudantes que lotavam a Harvard Square. Por um segundo, me senti como um deles, excitada com as novas descobertas e preocupada por conta dos prazos. Cruzei a bolsa no peito, imaginando que ela estava repleta de trabalhos do trimestre em vez de conter anotações sobre os mistérios que acometiam minha existência e fingi ser uma aluna da universidade dos meus sonhos. Mas, então, vislumbrei um cabelo curto e loiro na praça. Meu coração se acelerou e, mesmo que meu instinto visceral me mandasse correr em direção oposta, segui-o enquanto a pessoa andava pela praça. Eu precisava saber se aquele cabelo era de Ezekiel ou de Michael e se eles já tinham me localizado. Além disso, achava que ia ser melhor descobrir a verdade cercada de gente. Em grupo era mais seguro. A pessoa andou rapidamente de um lado da rua para outro, como se precisasse correr como um louco para chegar a algum lugar. Tentei seguir seu passo de longe, mas não era fácil; eu não era uma detetive treinada. Bem quando me senti mais confiante, ele fez uma curva fechada e inesperada à direita, em direção a uma rua mais comercial, e sumiu de vista. Vários alunos loiros andavam pela rua, mas nenhum tinha aquele brilho platinado do cabelo de Ezekiel ou de Michael. Diminui o passo, com raiva de mim por ter perdido qualquer um dos dois. Se é que se tratava mesmo de Ezekiel ou de Michael. Um resto de adrenalina corria em meu corpo. Deixei aquele impulso me levar para longe da rua comercial em direção às lonjuras do campus. A multidão diminuía; os estudantes iam para as salas de aula e, de repente, me vi em um pequeno pátio de tijolos delimitado por

159 paredes cobertas de heras. Parecia um cenário de um filme sobre o campus, a imagem perfeita — quase perfeita demais. O lugar era muito convidativo. Havia um banco de ferro forjado em um canto do pátio, debaixo de um salgueiro-chorão. Eu não tinha dormido na noite anterior, e nada no mundo parecia mais tentador que aquele pátio e aquele banco. Diminuí ainda mais o passo, dei a volta no banco e me sentei. Nos minutos seguintes, apenas respirei a calma do lugar e vi os estudantes irem para as salas de aula. Eles me lembraram da sensação de pertencer que havia sentido antes de ver o possível Ezekiel ou Michael, a fantasia breve que tivera sobre ser uma verdadeira aluna de Harvard. Percebi que aquela fantasia efêmera talvez fosse a coisa mais próxima de ser uma universitária que eu viveria. Como alguém como eu — o que quer que eu fosse — poderia esperar superar todo seu drama e estranheza e ir para a faculdade? Comecei a chorar. Rapidamente, as poucas lágrimas se transformaram em um choro convulsivo, e comecei a soluçar. Tudo que eu queria era ter uma vida normal um namorado no colégio, ir a uma boa faculdade, ter pais que me apoiassem e bons amigos. Em vez disso, lá estava eu, uma garota de dezesseis anos, totalmente sozinha sem pais nem amigos que eu pudesse contatar e, certamente, sem um namorado para conversar — tentando descobrir quem eu era. De repente, surgiu uma garota loira e simpática usando um moletom da Harvard; parou diante de mim e perguntou: — Você está bem? Precisa de alguma coisa? Com lágrimas nos olhos, respondi: — Não, estou bem. Obrigada por perguntar. Antes que eu pudesse lhe dar lugar para se sentar, ela se sentou ao meu lado. Não chegou a encostar em mim, mas sua presença me trouxe conforto. Quase como se ela tivesse me abraçado. — Sabe, quando você procura respostas, é sempre melhor começar com as perguntas. — Oi? — Seu conselho me pareceu algo esquisito a se oferecer a uma estranha que estivesse chorando em um campus de uma universidade, mesmo que seu comportamento fosse, de alguma forma, tranquilizador. Ela deu uma risada deliciosa, tilintante. — Desculpe. Meus amigos sempre me acusam de enigmática. O que quis dizer é que você parece enfrentar algum problema sério. Sempre volto às perguntas quando procuro as respostas para um problema difícil. E, então, começo a pesquisar.

160 — Sei que você está certa. A menina sorriu com serenidade e me estendeu um lenço. Abruptamente, levantou-se e falou: — Bem, é melhor eu ir. Estou superatrasada para a aula. Depois de limpar minhas lágrimas para parecer um pouco apresentável, olhei para cima para lhe agradecer. Mas a garota havia desaparecido entre os arbustos das calçadas e prédios que ladeavam o pátio. Suas palavras ficaram na minha cabeça, assim como a calma que ela trouxera. Talvez ela estivesse certa. Talvez as respostas estivessem nas perguntas — pelo menos em parte. E talvez eu devesse começar a pesquisar as respostas a essas perguntas. Afinal, eu estava na Harvard, um dos maiores centros de pesquisa do mundo. Parei de sentir pena de mim e fui direto às perguntas, as que eu tinha escrito durante a viagem de trem. Mais do que tudo, queria saber quem eu era. Eu não sabia se era um anjo caído, um daqueles Nephilins ou alguma criatura relacionada às histórias bíblicas. Mas eu sabia que era importante o bastante para que dois anjos ‚bons‛ tivessem sacrificado a própria imortalidade para me criar como filha. Também sabia que um dos anjos caídos ‚maus‛ — Ezekiel dissera que eu estava destinada a comandar ao seu lado. Não tomei aquelas palavras como um elogio; graças aos seus dons apurados, Ezekiel podia atrair, sem exagero, quantas pessoas quisesse para se juntar à sua tropa. Seja lá o que eu fosse, havia muito em jogo. E eu precisava descobrir tudo para poder enfrentar Ezekiel. Havia apenas seis horas pela frente até que eu fosse encontrar o professor McMaster de novo. Eu ia aproveitar aquele tempo para me preparar — até mesmo me armar — para os dias que viriam. Saí do meu pequeno pátio tranquilo com relutância, embora a segurança de estar entre vários alunos fosse bem-vinda. Quando, por fim, cheguei em meio à multidão da Harvard Square, senti como se tivessem me jogado um salva-vidas. Então eu vi o vulto platinado e estranho novamente. E soube que o mal estava escondido na multidão, assim como nas ruas desertas. Ezekiel estava lá — e estava me provocando.

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Trinta e Oito Depois de consultar um guia, decidi visitar a biblioteca Andover-Harvard Theological Library, do lado nordeste do campus. O guia dizia que a biblioteca possuía um acervo considerável de material com conteúdo bíblico, um dos maiores dos Estados Unidos. Se eu queria encontrar informações úteis sobre anjos e outras criaturas bíblicas, a Andover-Harvard Library parecia ser o lugar ideal. O caminho que ia da Harvard Square à biblioteca era um tanto complicado, e eu estava bem distraída olhando para cada pessoa loira que passava. Por isso precisei de meia hora para chegar lá, em vez dos estimados quinze minutos. Ficava cada vez mais ansiosa a cada passo; os ponteiros do relógio não paravam. Por fim, localizei o prédio de pedra gótico descrito no guia: o Andover Hali. Seu corredor dava em um prédio de design mais moderno, e a biblioteca ficava entre os dois prédios. Seguindo o mapa, entrei no corredor pela entrada principal, debaixo da torre gótica. Depois, comecei a andar por um longo corredor chamado ‚caminho do claustro‛, revestido de pedras antigas e algo parecido com bancos de igreja jogados fora. No final do caminho do claustro, havia uma porta fechada — a entrada da biblioteca. A porta se abriu rangendo alto e, então, me ocupei dos livros expostos na entrada enquanto esperava que o balcão de circulação ficasse cheio para eu poder entrar sem ser notada. Eu tinha lido que a biblioteca era usada principalmente por alunos de mestrado e doutorado e, embora eu passasse por uma caloura da faculdade, fingir que já era formada seria forçar muito a barra. Depois de dar a volta no balcão de circulação e subir um lance de escada, entrei no Houghton Reference Room. Sentei-me diante de um computador que era utilizado

162 exclusivamente para pesquisar o acervo da biblioteca e coloquei os dedos sobre o teclado. Por onde eu devia começar? Digitei ‚anjos caídos‛, mas apareceram milhares de itens. Então, refinei a pesquisa usando a palavra mencionada por meu pai: Nephilim. Poucos resultados apareceram na tela. Além do ‚Livro de Genêsis‛ da Bíblia que eu j{ esperava encontrar —, vi citações do Livro de Enoch. O que era aquilo? Anotei rapidamente o número de referência do Livro de Enoch e me dirigi às pilhas de livros. No caminho, peguei um exemplar da Bíblia — o que era fácil, considerando que eu estava em uma biblioteca de teologia — para dar uma olhada na citação do ‚Gênesis‛ de novo. Mas encontrar o Livro de Enoch era mais difícil. As pilhas de livros eram infindáveis. E imensas. Como eu iria encontrar aquele livro maluco e lê-lo no pouco tempo de que dispunha? Eu devo ter parecido perdida, pois um aluno bonito, mas com cara de nerd, se aproximou de mim: — Precisa de ajuda? Quase disse não, mas o tempo cada vez mais curto me deixava ansiosa. Sorri para o aluno de óculos e disse: — Muito obrigada. Estou procurando um exemplar do Livro de Enoch. Você sabe onde posso achar um? — Sei bem. Siga-me. Em silêncio, ele me fez descer dois lances de escadas. Entramos em um labirinto de pilhas de livros diferentes e maiores. Seguindo-o, virei à direita, à esquerda e à direita de novo. Até ele parar de repente. Pegou um livro na prateleira alta e o entregou a mim. O rapaz conhecia a localização do livro tão bem que imaginei que ele soubesse algo sobre seu conteúdo, então agradeci e sussurrei: — Você parece familiarizado com o Livro de Enoch. — É melhor que eu esteja. Minha área de interesse são os evangelhos apócrifos. — Evangelhos apócrifos? Ele me olhou com certa desconfiança, mas respondeu cordialmente: — São livros bíblicos que quase foram incluídos no Novo ou no Velho Testamento, mas que nunca chegaram a ser, nunca fizeram parte do cânone aceito. Você não estuda teologia, né?

163 — Não. É assim tão óbvio? — Só um pouco — afirmou ele, sorrindo. Sorri de volta. — Você pode me dizer algo sobre o Livro de Enoch? — Bem, é um evangelho apócrifo escrito entre 300 a.C. e o século 1 d.C. Não faz parte do cânone para a maioria das igrejas católicas, com exceção da Igreja Cristã Etíope. Mas muitos dos escritores do Novo Testamento o conheciam bem, e ele foi citado nas ‚Cartas de Judas‛ do Velho Testamento. Esses fatos serviram de credenciais para o livro, segundo alguns especialistas. — Sobre o que ele é? — É sobre muitas coisas. — Algo em particular? — O livro aborda a passagem do ‚Gênesis‛ que trata de anjos e do dilúvio de Noé. Ele discute a criação dos Nephilins, como eles às vezes são chamados — metade anjos, metade humanos — e sua destruição pelas mãos de um Deus muito bravo. Alguns dizem que sua destruição serviu de pretexto para o dilúvio de Noé. — Ele apontou para uma mesa cheia de livros ali perto. — Estou sentado bem ali. Quando você tiver acabado de lê-lo, ficaria feliz em responder qualquer pergunta sua. Depois de agradecê-lo imensamente, sentei em uma mesa não muito longe da dele. Abri a Bíblia e li a parte do ‚Gênesis‛ que meu pai havia resumido para mim. Apesar de linguagem complicada, a história era praticamente a mesma que meu pai contara. Eu estava prestes a fechar a Bíblia e a abrir o Livro de Enoch quando notei uma nota de rodapé no fim daquela parte importante do ‚Gênesis‛. Estava escrito: ‚Achava-se que os Nephilins eram uma raça de gigantes cuja força sobrenatural era atribuída a uma origem semidivina. Eles foram os ilustres legend{rios da mitologia antiga‛. Aquilo soava surpreendentemente familiar. Então comecei a ler o Livro de Enoch. Embora estivesse quase todo escrito em uma linguagem antiga, difícil de acompanhar, um trecho no início era bastante claro: ‚Os anjos caídos eram, ao todo, duzentos e descenderam (...) e estes são os nomes de seus líderes: Samyaza, Arakiba, Sariel, Rameel, Armaros, Kokabiel, Tamiel, Ramiel, Baraqijal, Azael, Daniel, Hananel e Ezekiel. Gelei ao ver o nome dos meus pais e o de Ezekiel. Essa história bíblica antiga estava se tornando cada vez mais real.

164 Tirei os olhos da lista de anjos caídos e voltei à história. Com o tempo, entendi o ritmo arcaico do texto e consegui analisá-lo. O livro falava de todas as coisas erradas que os anjos caídos tinham feito, da fúria de Deus diante da criação dos anjos, os Nephilins, e da decisão de Deus de obrigar os anjos caídos a ficar na Terra até o dia do julgamento. Parecia a história que meu pai me contara, apenas mais longa e mais difícil de compreender. Algumas passagens me saltaram aos olhos. Por exemplo, continuei reparando que o Livro de Enoch |s vezes chamava os anjos caídos de ‚guardiões‛. Lembrava que minha mãe havia chamado a mãe de Michael de ‚antiga guardiã‛. Ser{ que os pais de Michael eram anjos caídos também? Mas ainda não estava certa do que eu era. O Livro de Enoch reforçava as afirmações de meus pais de que eu não era um anjo caído, afinal, havia um número determinado desses anjos, e eles estavam listados bem naquele texto. O livro também rejeitava a ideia de que eu era um Nephilim; eles foram todos mortos no dilúvio de Noé, até onde eu sabia. Portanto, o livro não respondera minha pergunta mais importante. Talvez houvesse outra categoria de criaturas bíblicas à qual eu não prestara atenção. Parei diante da mesa do aluno bonito que havia me ajudado. Conversamos durante alguns minutos sobre a densidade dos textos antigos e o agradeci de novo. Eu quase havia chegado à escada quando pensei em uma última pergunta e voltei. — Presumindo que as criaturas descritas na Bíblia realmente existam, os Nephilins estariam por aqui hoje em dia? Ou todos foram mortos no dilúvio? Ele parou por um momento e, então, falou: — Na verdade, pelo menos um especialista em temas bíblicos sustenta que um Nephilim vai voltar em um momento crucial aos seres humanos nos dias finais. — Dias finais? — Sim, os dias finais ou dia do julgamento, como às vezes são chamados. É um tempo turbulento que antecede o retorno da figura messiânica que irá julgar todas as criaturas terrestres e guiá-las ao reino celestial. As três religiões abraâmicas o Cristianismo, o Judaísmo e o Islamismo — contêm essa noção de alguma forma. — Ele falava como se estivesse lendo um livro. — E esses especialistas acreditam que pelo menos um Nephilim é a criatura mencionada no Livro de Enocli como ‚O Eleito‛. De repente me lembrei do predomínio desse título no livro. E também me lembrei de uma de suas últimas linhas. Ela afirmava que ‚O Eleito‛ iria liderar o final dos tempos. Fiquei com os braços arrepiados. — Você pode me contar o nome do especialista que acredita que o Nephilim vai voltar?

165 — Claro. Seu nome é professor Barr e ele é professor de estudos bíblicos na Universidade de Oxford, na Inglaterra.

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Trinta e Nove O campus estava ficando escuro, surpreendentemente escuro para aquela hora do dia e aquela época do ano. Era quase como se o simples espectro de Ezekiel tivesse lançado sombra sobre toda a universidade, destruindo qualquer resto de luz do dia ou o brilho do pôr do sol que teimava em aparecer. Ou talvez fosse só uma ilusão criada por Ezekiel para me atingir, como uma nuvem de chuva que me seguisse aonde eu fosse. Quando me aproximei do prédio do professor McMaster, examinei-o e percebi que ele estava quase completamente vazio, a não ser pelos alunos perdidos e professores obsessivos que ainda ocupavam o lugar, pois as aulas do dia já haviam acabado. Encontrei a mesma escada que havia subido de manhã e subi dois lances até o andar do professor. Empurrei a porta pesada da escada para abri-la e entrei no corredor escuro. As luzes das mesas das secretárias estavam apagadas e os escritórios da maioria dos professores já estavam fechados. Andei pelo corredor, que me pareceu longo, até o escritório do professor McMaster, e fiquei aliviada ao ver luz por baixo de sua porta fechada. Bati na porta, ciente da enorme quantidade de trancas que me aguardavam do outro lado e esperando ser recebida da mesma maneira antipática de antes. Ninguém respondeu. As luzes estavam acessas, mas a sala estava silenciosa. Esperei o que me pareceu uma eternidade. Será que o professor havia mudado de ideia? Quando ia bater na porta novamente, ouvi, por fim, um barulho de trancas sendo abertas e fui recebida com uma acolhida inesperadamente animada: — Por favor, entre, senhorita Faneuil.

167 A porta rangeu ao se abrir, e vi o rosto sorridente do professor McMaster. Sua expressão me deixou esperançosa novamente e fortalecida. Sorri de volta e o segui para dentro da sala. Mas o que vi quando entrei destruiu meu sorriso. Na cadeira de madeira estropiada destinada à visita, estava sentado um homem com o cabelo loiro claro e olhos azuis penetrantes: Ezekiel. Ignorando minha expressão horrorizada, o professor McMaster sorria sem parar. — Senhorita Faneuil, acabei de ter uma conversa muito intrigante com seu amigo, o senhor Ezekiel. Então agora ele era meu amigo ‚senhor Ezekiel‛? Eu tinha sentido a presença dele e de Michael na Harvard Square, mas não esperava vê-lo lá. Afinal, Ezekiel havia mandado Michael esperar até que eu os procurasse. Eu não sabia explicar por que acreditava no que a própria encarnação do mal prometia. Ezekiel me deu seu sorriso doentio. Com o tom de voz mais educado possível, disse: — Oi, Ellspeth, esperávamos ansiosamente sua chegada. — Queria poder dizer o mesmo. Ezekiel ignorou minha observação sarcástica, e o professor pareceu não tê-la escutado. Ele estava muito concentrado em Ezekiel, que falou: — Eu estava contando ao professor McMaster tudo sobre a ligação interessante que há entre os anjos caídos mencionados no ‚Gênesis‛ e o surgimento da mitologia dos vampiros. Com nojo e medo, virei o rosto para evitar o olhar de Ezekiel e vi o rosto do professor de relance. Seus olhos realmente brilhavam de animação diante da perspectiva de estudar as verdadeiras origens da lenda dos vampiros e dividir sua descoberta com o mundo; seria o auge de um trabalho de uma vida inteira. Naquele momento, vi no professor a mesma sede insaciável de conhecimento que tinha visto no rosto do jovem Istvan Laszlof, uma sede que o tinha feito assumir muitos riscos. E, agora, ele arriscava a própria alma sem saber, já que Ezekiel estava determinado a levá-lo para as trevas. Encarei Ezekiel, que sorriu de satisfação diante da cumplicidade do professor McMaster. Ele não tinha nenhuma intenção de deixar o professor divulgar a verdade por trás da lenda dos vampiros; manter o mito vivo era uma de suas armas mais úteis. Mas Ezekiel precisava do professor e sabia que a ligação entre anjos e vampiros combinada ao seu formidável poder de persuasão — iria influenciar o professor em direção às trevas. E levá-lo para longe da luz que podia me ajudar. Enquanto perdia a esperança, Ezekiel continuava sua campanha para conquistar o professor.

168 — Como eu dizia, o caso mais fascinante surgiu em Tillinghast, no Maine. Em um inverno no final dos anos 1800; cinco dos catorze filhos de uma importante família de agricultores, os Stuckley, sofriam de tuberculose. O patriarca da família, Ezra, testemunhou a presença de criaturas estranhas ao lado de quatro dos cinco filhos que estavam às vésperas da morte. Então, ele vigiou sua pobre filha, a quinta criança, determinado a não permitir que esses seres atormentassem sua doce Honour. Infelizmente, em uma noite, ele pegou no sono durante a vigília e acordou diante da terrível visão de um ser alado bebendo do pescoço de sua pobre e moribunda Honour, isto é, bebendo seu sangue. A criatura voou quando Ezra a descobriu, mas era tarde demais para Honour. Veja bem, professor, a criatura não era um vampiro. Era um dos anjos caídos que mencionei, chamado Daniel. Mas mesmo os anjos têm uma sede insaciável por sangue. Daí surgiu a lenda. Fiquei enjoada. Meus pais haviam mencionado uma visita anterior a Tillinghast. Eles estariam envolvidos no incidente com os Stuckley? Eu conhecia bem a atração e o poder do sangue. Ou Ezekiel estava apenas querendo me atormentar? Era mais provável que meus pais estivessem lá para tentar ajudar a levar a menina que estava morrendo até Deus. Quando o professor McMaster ouviu a pequena história, sua expressão mudou de simples animação para absoluta devoção, e eu soube que Ezekiel o tinha conquistado. Assistir Ezekiel utilizando suas habilidades com o professor me fez inesperadamente ter empatia por Michael. Os talentos de Ezekiel eram quase irresistíveis para todo mundo com exceção de mim, ao que parecia. Talvez Michael fosse mais suscetível que eu. Talvez sua traição não fosse uma livre escolha. Ao assistir a esse processo doentio que visava tragar a alma do professor, uma pergunta importante veio à minha cabeça. Por que Ezekiel estava tendo todo esse trabalho para conquistar o professor? Por que ele apenas não me convencia ou, melhor ainda, me forçava — a me juntar ao seu exército? De repente, as palavras da garota do pátio vieram a mim, e percebi que a resposta estava embutida na pergunta. Ezekiel tinha todo esse trabalho porque não conseguia me forçar a me aliar a ele. Diferentemente de Michael, eu precisava escolher seguir Ezekiel. Isso fez com que Ezekiel precisasse tomar medidas desesperadas. Ele tinha de fechar todos os caminhos por onde eu pudesse escapar — meus pais e Ruth — e todos os atalhos que me levassem a informações sobre minha identidade. Ele precisava me lembrar constantemente da presença e do poder dele usando os mesmos truques que eu testemunhara no último dia. Ele precisava me deixar com apenas uma escolha: ele mesmo. Embora Ezekiel tivesse, sem querer, revelado um segredo por meio de suas ações, ao tentar impedir meu acesso à informação sobre minha natureza, ele me mostrara como essa informação podia ser minha salvação. Por que mais ele teria se esforçado tanto para mantê-la longe de mim? Pela milionésima vez, desejei que meus pais tivessem me contado tudo.

169 Mas eles não contaram. Eu teria de continuar procurando as respostas sobre minha identidade e sobre meus objetivos por conta própria embora eu soubesse que Ezekiel fosse me seguir aonde quer que eu fosse. Porém, de alguma maneira, suas ações não me assustavam a ponto de impedir minha busca como, sem dúvida, ele desejava —, e sim me deixavam mais determinada do que nunca a embarcar nessa busca. Mesmo que isso significasse usar o próprio jogo de Ezekiel contra ele mesmo para ganhar tempo e conhecimento. Então, reuni toda a coragem e falei: — Professor McMaster, senhor Ezekiel, sinto interromper essa conversa cativante, mas preciso ir embora. — Tão rápido? — perguntou Ezekiel com sua expressão de desdém sempre presente. Como se ele soubesse o que eu estava planejando. — Infelizmente, sim. — Virei-me para o professor. — O senhor se importa de me acompanhar até a porta? Ela parece um pouco com Fort Knox2. O professor McMaster tirou os olhos de Ezekiel com relutância e falou: — Sim, sim, senhorita Faneuil. Segui o professor, agora enfeitiçado, até a porta. Embora eu pudesse sentir o olhar de Ezekiel perfurando minhas costas, não ousei olhá-lo uma última vez. Mas Ezekiel não me deixaria sair sem me despedir dele. E lançou: — Até logo, Ellspeth. Lembranças a Hananel e Daniel. Isso se você arriscar ir para casa. Eu precisava sair daquela sala. Sentia os terríveis tentáculos de Ezekiel me envolvendo. Devagar, tão devagar que pensei que ia gritar, o professor abriu cada tranca meticulosamente. Quando ele terminou, toquei sua mão, aparentemente como sinal de gratidão. Quando fiz isso, olhei-o diretamente nos olhos e desejei que ele esquecesse qualquer informação que tivesse descoberto para me ajudar. Principalmente qualquer coisa que ele soubesse sobre o professor Barr, de Oxford, citado pelo aluno de Harvard. Rezei para que o professor McMaster não tivesse dito nada para Ezekiel ainda. Falei: — Muito obrigada por sua ajuda, professor McMaster. É uma pena que o senhor não saiba mais nada sobre minha situação. Nem conheça ninguém que possa me ajudar.

Fort Knox é uma pequena cidade do Estado norte-americano de Kentucky que serve de base para o exército dos Estados Unidos. 2

170 Quando o professor McMaster respondeu, sua voz soou aturdida pelos esforços de Ezekiel. — Sim, é uma pena, senhorita Faneuil. Mas a senhorita é uma jovem inteligente, e tenho certeza de que vai encontrar seu caminho. Toquei sua mão uma última vez e vi que seus pensamentos e sua mente estavam curiosamente vazios. Será que Ezekiel tinha apagado sua mente? Será que eu tinha feito isso? Corri pelo corredor para fugir do terrível Ezekiel, enquanto ouvia o professor McMaster fechar seu escritório e as trancas. Pensei em por que ele se incomodava em fazer isso. O professor tinha instalado todas aquelas trancas para manter as criaturas do mal que ele estudava do lado de fora, mas agora acabara de trancar a si próprio com o mal em pessoa.

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Quarenta Desci os dois lances de escadas correndo o máximo que podia até a saída do prédio. O medo de ser vista pelos alunos ou professores que ainda estavam no prédio evitou que eu descesse voando. Quando cheguei ao térreo, empurrei com força a porta de madeira pesada e respirei o ar frio da noite, como se ele impedisse que eu me afogasse. O céu tinha deixado de ser escuro e se tornara completamente negro. Os prédios e os comércios do bairro já tinham fechado, eliminando qualquer vestígio de luz. Não havia nenhum poste por perto. Mesmo com minha visão apurada de sempre, era dificil enxergar naquele ambiente estranho e sombrio. Mesmo assim, tinha certeza do caminho a seguir para a Harvard Square, onde eu poderia pegar o T até o Logan Airport. Tudo indicava que meu próximo passo deveria ser encontrar o professor Barr em Londres. Eu não achava que podia telefonar para o especialista e enchê-lo de perguntas; no mínimo, seria considerada maluca ou excêntrica. Se meu pequeno experimento tinha funcionado com o professor McMaster, eu precisava aproveitar minha vantagem sobre Ezekiel e pegar o próximo voo para Londres. Já havia verificado os horários dos voos e sabia que havia um da British Airways que decolaria às oito da noite. Se eu corresse bastante, talvez conseguisse pegá-lo. Saindo do prédio do professor, havia um caminho que serpenteava em direção à praça; peguei-o e fiz uma curva fechada à direita e depois à esquerda. Pelos meus cálculos, eu já devia ter avistado a Harvard Square ao longe, mas ainda não vira nada. Em vez disso, vi-me em um quadrilátero de prédios de ciências quase desertos. Recuei um pouco e tentei virar em outra rua à direita. Voltei ao mesmo quadrilátero. Como eu podia ter me perdido? Desesperada,

172 perguntei a uma das poucas alunas que passavam por ali e então segui firmemente suas indicações. Mas caí no mesmo quadrilátero de novo. Aquilo era outro jogo de Ezekiel? Ou apenas mais uma infeliz reviravolta nos acontecimentos da minha vida sombria? Ouvi passos atrás de mim, mas não dei muita atenção no início. Então comecei a notar que os passos estavam em sincronia com os meus. Então virei inesperadamente à esquerda para ter certeza. A pessoa me seguiu. Estava apavorada. E se fosse Ezekiel ou Michael? Eu podia enfrentar qualquer outra pessoa. Girei sobre meu eixo e corri na direção oposta. Ouvi a pessoa se aproximando de mim. Quase instantaneamente, minhas costas se aprumaram e meu corpo se preparou para levantar voo. Meus pés começavam a levitar quando senti uma mão segurando meu pé. Lutei para me livrar dela, mas a pessoa era forte. Caí no chão, em cima do meu perseguidor. — Ellie, sou eu, Michael — ele falou, como se isso fosse me acalmar. Tirei sua mão estendida e o empurrei para longe de mim, em direção ao concreto duro da rua. — Estou vendo. Por que eu ia querer te ver? — Você tem todo o direito de estar brava comigo, Ellie. Mas sou eu — o verdadeiro Michael. — Ele me olhou com aqueles olhos verdes que eu tanto conhecia e parecia que o meu Michael olhava através deles. Mas como eu podia ter certeza? — Eu pensei que tinha ido à Ransom Beach com o verdadeiro Michael, mas, infelizmente, era um subordinado de Ezekiel. Com muita delicadeza, ele tentou me tocar. Mesmo que parecesse um gesto tranquilizador, eu me afastei. Seria preciso bem mais para me convencer antes que eu o deixasse me tocar. — Eu entendo, Ellie. Eu também não gostei do que me transformei. Você sabe o quão assustador é assistir a si mesmo dizer e fazer coisas que você nunca imaginou e não conseguir parar? Como eu tinha visto a transformação do professor McMaster, sabia que aquelas palavras de Michael eram totalmente possíveis. Eu queria que fosse verdade. Mas não confiava nele ainda. Afinal, ele parecia o meu Michael quando voamos do penhasco para a praia — direto para os braços de Ezekiel, que esperava por nós. Ezekiel certamente o transformara na noite anterior. Cruzei os braços e dei uma boa olhada nele. Seus olhos não estavam mais vidrados, nem sua fala era amortecida, mas, ainda assim, eu não tinha certeza. — Como voltou a ser você mesmo?

173 — Ontem à noite, seus pais foram à minha casa — conversar com meus pais. Era muito tarde, e eles nãos sabiam que eu estava acordado, então os escutei às escondidas. Por alguma razão, ouvi-los falando de você rompeu a ligação entre mim e Ezekiel. Eu queria saber o que meus pais tinham dito, mas, naquele momento, era mais importante avaliar se Michael era mesmo confiável. — Se você não está mais aliado ao Ezekiel, por que você está em Boston com ele? — Fiz a pergunta mais óbvia. — Eu sabia que Ezekiel ia te encontrar. Então, saí escondido de casa e liguei para ele — fingindo que ainda estava do seu lado. Como era um truque, me certifiquei de que não teria nenhum tipo de contato fisico com ele, assim ele não descobriria a verdade. Ezekiel continuou dizendo que nós tínhamos de deixá-la até que você viesse nos procurar, mas eu sabia que ele ia tentar encontrá-la. Ele não pode ficar longe de você. — Por que você não está com ele agora? — Eu sabia que Ezekiel queria se encontrar com o professor que você achou — para descobrir o que ele sabia e o que tinha lhe dito. Quando entramos no escritório do professor, eu disse a ele que o encontraria aqui fora depois; de todo jeito, Ezekiel não me queria lá mesmo. Era minha chance de me livrar dele e ir atrás de você. — Por que ele me deixou sair do escritório do professor? — Ezekiel provavelmente queria terminar o que começou — conseguir informação do professor e torná-lo um dos seus seguidores. Acho que ele gostaria da ironia de ter um especialista em vampiros em seu exército. De todo modo, ele pode nos encontrar de novo a hora que quiser. — Como ele consegue nos rastrear? — Essa era uma das principais perguntas da minha lista. Eu precisava saber como Ezekiel podia me encontrar, assim saberia como me esconder dele. — Uma vez que comecei a usar meus poderes, me tornei um pontinho na tela do radar dele, como ele mesmo descreveu. Nós estamos, de algum modo, ligados pelo nosso sangue. Foi isso que ele me contou, afinal. Michael havia respondido apenas metade da minha pergunta — a parte sobre ele. — Mas isso não explica como ele me rastreia. Ele desviou os olhos antes de responder. — Você tem meu sangue nas suas veias. Então ele também pode rastreá-la.

174 Senti um enjoo. Não havia onde me esconder de Ezekiel porque eu tinha experimentado o sangue de Michael e agora ele corria em minhas veias? Não era de estranhar porque Michael não quis me olhar nos olhos quando contou isso. — Legal. Michael fez uma pausa e, então, me implorou: — Por favor, Ellie, me dê outra chance. Hesitei. Eu queria acreditar em Michael e me enlouquecia pensar que Ezekiel o havia feito me reencontrar. Eu não queria ter de encarar aquela jornada louca e assustadora sozinha. Mas, depois de tudo pelo que havia passado, não podia acreditar nele. Não sem uma prova. Cruzei os braços com mais força. — Como posso ter certeza de que você está me falando a verdade, Michael? — Só há uma maneira de ter certeza — afirmou. Michael tinha razão. Só havia um jeito. Não foi um beijo suave. Não houve um intercâmbio delicado de línguas e dentes. Michael não merecia minha ternura nem meu carinho. Eu estava com raiva dele por causa de sua traição, mesmo que ele não tivesse consciência dela. Inclinei-me e o mordi. Forte. Como um vampiro.

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Quarenta e Um O sangue de Michael correu em minha boca. Fiquei pasma com a força de seu fluxo e com o poder das imagens. Eu não sabia que seu sangue tinha tanta força, mas eu também nunca o tinha obtido por meios violentos. Olhando através dos olhos de Michael, vi-me no segundo andar de sua casa. Um relógio antigo, alto e elegantemente curvado, estava perto de mim e seu ponteiro marcava meia-noite. Olhei para baixo da escada sinuosa e vislumbrei meus pais e os pais dele na entrada da casa. Eles conversavam em um tom abafado provavelmente para não acordar Michael —, mas eu conseguia ouvi-los se me esforçasse e ignorasse o tique-taque do relógio. Era interessante, entretanto, que a cena parecesse vaga, como se a visão de Michael estivesse tomada por uma neblina. — O que foi, Hananel? — Você parece perturbada perguntou a mãe de Michael. — Ellspeth foi embora. — Meus próprios olhos se encheram de lágrimas diante do desespero da voz geralmente imperturbável da minha mãe. — Como assim, ‚embora‛? — Ela parecia alarmada. — Quero dizer que ela deveria estar em casa às cinco, depois de tomar um café com sua amiga Ruth. Abri uma exceção em seu castigo para ela encontrar Ruth, já que a relação das duas parecia tensa ultimamente... — A voz da minha mãe falhou, e vi meu pai colocando o braço ao redor do seu ombro enquanto ela chorava. — Está tudo bem, Hananel. O que aconteceu? — A mãe de Michael encorajou-a.

176 — Ellspeth não voltou. Esperei até as seis para ligar para Ruth, que disse estar confusa, porque tinha deixado Ellspeth em casa. Mas eu e Daniel não acreditamos nela, então pedimos a Ruth que viesse em casa. Ela estava visivelmente nervosa quando chegou; estava claro que ela sabia de alguma coisa. No começo, manteve a mesma história, disse que tinha trazido Ellspeth para casa. Usamos o resto de nossas habilidades para descobrir mais alguma coisa, mas tudo que Ruth sabia era que Ellspeth tinha brigado com Michael. Então, diante da insistência de Ellspeth, Ruth a levou à estação de trem. Ela não sabia para onde a amiga planejava ir. — Em silêncio, fiquei feliz por Ruth não ter dito nada sobre o voo. Mesmo que meus pais já soubessem disso, é claro. — Mas você está com medo de que seja mais do que uma briga de adolescente? Você acha que ela foi embora por outros motivos? — perguntou a mãe de Michael. — Sim, Sariel — respondeu meu pai. — Nós conversamos com Ellspeth ontem à noite. Lemos para ela a passagem sobre os Nephilins e... —O quê? — praticamente gritou o pai de Michael. — Fale baixo, Armaros — avisou a mãe de Michael. Sariel? Armaros? Eu não tinha visto esses nomes no Livro de Enoch? Os pais de Michael tinham de ser os anjos caídos ‚bons‛, como eu suspeitara. — Vocês não lhe contaram quem ela é, né? — quis saber Armaros, com a voz incrédula. — Não seja ridículo. Sua ignorância é a única coisa que a protegeu até agora. A mesma coisa vale para Michael. Vocês sabem disso — explicou meu pai. Ele estava bravo como eu nunca tinha visto. — Então por que vocês estiveram tão perigosamente perto de lhe revelar a verdade? — Seus poderes começaram a aparecer. A coitadinha achava que era uma vampira. Nós precisávamos lhe contar o suficiente para dissuadi-la desse erro — e o único jeito era explicar a ligação entre os anjos caídos e os vampiros. Nós não lhe dissemos mais nada. — Eu sabia que essa última parte não era totalmente verdadeira, mas fiquei feliz por Armaros não saber disso. Ele era bravo. — Daniel, como vocês puderam ser tão bobos? Nós tínhamos de protegê-los por mais tempo, mantê-los sem saberem de nada até eles estarem prontos. Até a hora certa — continuou Armaros, discutindo com meu pai. — Quais eram nossas escolhas, Armaros? Deixá-la acreditar que era uma vampira? E deixar Michael acreditar na mesma coisa? Esse pensamento os deixaria perigosamente perto das trevas. Quando Ezekiel ou os outros voltassem, e eles sem dúvida voltarão, Michael e Ellspeth seriam presas fáceis para suas intenções obscuras.

177 Senti algo se romper em Michael, quase como se ele tivesse acordado. E, de repente, vi a imagem com mais clareza, não mais por detrás de uma neblina bizarra. Achei que a neblina era algum resíduo da influência de Ezekiel. — Você tem razão, Daniel. Mas uma coisa é Ellspeth estar ciente de suas diferenças, outra bem diferente é ela suspeitar sobre quem ela é. Você deve ter aberto a porta apenas o suficiente para colocá-los no jogo, pressupondo que Ellspeth tenha contado a ele o que sabe. — Você acha que eu não sei disso, Armaros? Hananel e eu tentamos com toda nossa força fazer com que Ellspeth se sentisse um ser humano comum — ajustá-la à humanidade quando fosse a hora e tentar segurar seus poderes e o relógio. Você não acha que eu me preocupei com o melhor momento de contar quem ela é? Quando começar a prepará-la para a batalha que fervilha sob a superficie desse mundo ingênuo? Temos andado sobre uma linha muito tênue entre mantê-la segura e inocente e prepará-la para a guerra. Como podemos saber o melhor caminho para Ellspeth e Michael quando não vemos sua espécie desde... Armaros interrompeu-o, com malícia. — Desde o início. — Chega de briga — interceptou minha mãe. — Não sabemos se Ellspeth e Michael sabem alguma coisa de importante. Só sabemos que Ellspeth foi embora e precisamos encontrála. Mandamos uma amiga especial rastreá-la e trazê-la para casa, já que obviamente não podemos fazer isso... — Obviamente — interrompeu a mãe de Michael. —E esperamos que vocês mandem um de seus amigos para fazer a mesma coisa — concluiu minha mãe. — Ficaremos felizes em fazer isso, Hananel. — A mãe de Michael parou um instante e, então, falou: — Graças a Deus Michael não sabe de nada. Ele sente seus poderes, é claro. Mas, fora isso, pareceu perfeitamente normal no jantar hoje à noite. Talvez um pouco apagado. — Ele não falou nada sobre a briga com Ellspeth? — Não. Mas vocês sabem como são os adolescentes. — Tem certeza de que ele não sabe de nada? — Até onde eu posso ter certeza de alguma coisa com as limitações desse corpo mortal. — Talvez você devesse verificar com ele. — Talvez.

178 A escada começou a ranger quando Sariel subiu até o quarto de Michael. Vi através de seus olhos quando ele correu de volta para o quarto e se enfiou embaixo das cobertas. O piso de madeira rangeu quando ela se aproximou de sua cama e a rondou por alguns minutos. Então saiu do quarto na ponta dos pés, fechando a porta atrás de si. A imagem desapareceu. Eu estava diante de Michael, olhando em seus olhos, que aguardavam ansiosamente. Michael parecia quase doente enquanto antecipava o julgamento que eu faria da imagem que ele evocou para mim. — Você acredita em mim? Você acredita que Ezekiel não me comanda mais? Eu acreditava. Sabia que ele estava sendo sincero. Na verdade, senti isso no momento em que o elo entre Michael e Ezekiel se rompera — quando meu pai mencionara o nome de Ezekiel — e soube que Michael iria para Boston por vontade própria. Não por influência de Ezekiel nem para servir a seus objetivos. — Acredito, Michael. — Graças a Deus. Michael me abraçou e eu deixei. Não o abracei de volta, ainda não estava pronta para isso. Mas também não podia ficar brava com ele. Através dos olhos de Ezekiel, eu o tinha visto transformar adultos, homens e mulheres, poderosos em seus seguidores. E em monstros. Como eu podia esperar que Michael resistisse? — Ellie, prometo que nunca mais vou traí-la de novo. Estamos nessa juntos, contra Ezekiel. — Eu espero, Michael. Eu realmente esperava. Mas como podia ter certeza de que Michael não iria se deixar influenciar por Ezekiel de novo? Sabia que a presença de Ezekiel seria constante, de um jeito ou de outro, e Michael parecia suscetível a Ezekiel de uma maneira que eu não era. Precisava estar atenta, avaliar constantemente Michael para ver se havia alguma mudança nele, através do toque ou do sangue, se fosse necessário. Mas, naquele momento, o fato de Michael estar de volta era suficiente. E de eu não estar mais totalmente sozinha também.

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Quarenta e Dois De mãos dadas, atravessamos correndo o campus da Harvard em direção à praça. As luzes das lojas, dos restaurantes e do cinema cegavam meus olhos sensíveis, acostumados à escuridão do campus. Nos poucos segundos necessários para eles se adaptarem, Michael me guiou pelos túneis tenebrosos do T; aquela desorientação estranha que eu experimentara no campus da Harvard só podia ser um truque de Ezekiel. Fiquei arrepiada diante da ideia de estar no subsolo — presa em uma armadilha — com Ezekiel por perto, mas não tínhamos escolha. Eu havia contado a Michael aonde tínhamos de ir e dito que precisávamos ser rápidos. Ele teve a decência de não perguntar por quê; apenas perguntou o que podia fazer para nos ajudar a chegar ao professor Barr. Michael sugeriu que tentássemos telefonar para o professor primeiro, mas não deu certo. A diferença de fuso horário estava contra nós, então decidimos que a maneira mais rápida — e talvez a única possível — de chegar a ele naquelas circunstâncias era pegar um avião até Londres. Depois de resolvermos rapidamente o que tínhamos de fazer para irmos da estação da Harvard Square até o Logar Airport, ficamos parados na plataforma do metrô. Pelo celular de Michael, reservamos lugar no voo da British Airways que ia para Londres. E esperamos. Um relógio antigo sobre nossa cabeça marcava os minutos, como se nos lembrasse de que tínhamos pouco tempo até o portão de embarque fechar. Eu queria que pudéssemos voar até Londres, mas não sabia se conseguiríamos atravessar uma distância tão longa. Por fim, ouvi o trem chegando ao longe e agradeci a Deus. Eu achava que não ia aguentar mais um segundo de atraso. Cada segundo estava a favor de Ezekiel.

180 A multidão começou a se amontoar na plataforma conforme o trem diminuía de velocidade. Quando as portas se abriram, as pessoas se empurraram para conseguir lugar no vagão já lotado. Procurei a mão de Michael para não nos perdermos. Antes de ele agarrar minha mão, vi uma pessoa cujo cabelo loiro eu conhecia tão bem misturada à multidão que entrava no vagão. Parei. Seria Ezekiel? Senti o calor da mão de Michael e não consegui me mexer. Parecia que o homem ia subir no vagão, mas hesitava. Devíamos ficar lá — e correr o risco de perder o voo — ou embarcar naquele vagão fechado companhia de Ezekiel? Michael me puxou em direção às portas abertas do metrô e me chamou, com medo de que as portas se fechassem. — Vamos, Ellie, as portas vão fechar. Meu corpo estava rígido. Michael se virou e viu minha expressão. Ele seguiu meu olhar e entendeu imediatamente o porquê do meu medo. — Ellie, não é o Ezekiel. O homem olhava para o outro lado, por isso eu não conseguia ver seu rosto. Mas seu cabelo parecia tanto com o de Ezekiel, com o mesmo penteado e cor exóticos, que não acreditei em Michael. — Como você sabe? Em vez de perder um tempo precioso se explicando, Michael soltou minha mão, dirigiuse até o homem e bateu de leve em seu ombro. Quando o homem se virou, vi o rosto corado de um jovem universitário. Não era Ezekiel. Pouco antes de as portas se fecharem, Michael me arrastou para dentro do metrô. Estudantes lotavam o vagão, então nos seguramos nas argolas de metal enquanto o metrô partia. Suspirei aliviada e desejei que meu coração se acalmasse. Na próxima parada, a Central Square Station, a maioria dos estudantes desceu. Sentamonos em um banco que ficara vago durante os quinze minutos que restavam até a South Station, onde deveríamos pegar um ônibus para o aeroporto. Percorremos o caminho em silêncio. Eu estava ciente de tudo sobre o que não havíamos conversado: a conversa de meus pais que Michael escutara, a conversa que eu tivera com o professor McMaster, o tempo que Michael passara sozinho com Ezekiel. As palavras não ditas pairavam entre nós, como uma tela imaginária nos separando. Eu não queria me sentir tão distante de Michael, mas não sabia por onde começar. Ou como romper o muro entre nós.

181 Por fim, Michael tentou. Ele me olhou com uma expressão séria e triste e perguntou: — Ellie, o que a gente é? Hesitei. Não tinha certeza ainda, mas ele merecia saber a suposição mais lógica. — Acho que somos algo chamado Nephilins, mas não sei bem o que isso significa. Os lábios de Michael faziam as primeiras de muitas perguntas, mas meus olhos de repente ficaram pesados. Eu não dormia havia quase dois dias. — Tudo bem, Ellie. Durma um pouco. Nós temos bastante tempo para descobrir tudo isso. Vou ficar acordado, assim a gente não perde a parada. Os braços dele me envolveram, e correspondi ao abraço. Eu ainda não o tinha abraçado desde que ele voltara a ser ele mesmo. E foi gostoso. Pela primeira vez desde que encontrara Michael na Ransom Beach, relaxei e fechei os olhos. Seus braços e suas afirmações de que iríamos descobrir juntos os mistérios que nos envolviam me tranquilizaram. Eu queria agradecê-lo, então forcei meus olhos para abri-los um pouco. Minha visão sonolenta deparou-se com uma moça loira e simpática que vestia um moletom de Harvard e andava pelo corredor do vagão. Ela parecia a garota que me ajudara no pátio de tijolos, a que me aconselhara a pensar sobre minhas perguntas. Achei que ela sorrira para mim. Comecei a sorrir de volta, mas então uma pergunta perturbadora atravessou minha mente, afastando qualquer chance de dormir. Com todos os milhares de alunos que havia em Cambrídge, quais eram as chances de encontrar a mesma pessoa duas vezes em poucas horas? Poucas, muito poucas.

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Quarenta e Três Meus olhos se abriram, e olhei mais de perto para a garota. Era mesmo a moça do pátio de Harvard. Não podia ser coincidência. Puxei Michael para que ele visse a garota enquanto ela andava pelo corredor em nossa direção. O trem, chacoalhando sobre os trilhos, entrava cada vez mais profundamente no labirinto de túneis do subsolo do T, tornando uma fuga imediata impossível. Mas a jovem parecia imune ao balanço do trem; ela caminhava serenamente em nossa direção. Quando ela se aproximou de nosso banco, o senhor idoso do banco da nossa frente se levantou, embora o trem não tivesse reduzido a velocidade nem estivéssemos perto de nenhuma estação. Ela se sentou no assento vago e me deu um sorriso doce. — Oi, Ellspeth. Eu achava que não tinha dito meu nome durante nossa breve conversa no pátio. Pelo menos não o nome Ellspeth. — Como você sabe meu nome? — Seus pais me enviaram. — Eu sabia, por causa da conversa que Michael escutara, que meus pais tinham mencionado ter mandado uma ‘amiga‛ para tomar conta de mim. Mas como eu saberia se ela, na verdade, não era ‚amiga‛ de Ezekiel? Como se soubesse que eu precisava me certificar, ela falou:

183 — Sua mãe me pediu que eu lhe entregasse isto, como sinal da minha lealdade a você. E a Michael também, é claro. — Apesar de ela também ter se referido a Michael, parecia que tinha pensado nele depois. Ela colocou um objeto em minha mão e então fechou meu punho para eu segurá-lo. Abri meus dedos um por um e vi, na palma da minha mão, o relicário da minha mãe. Nunca havia visto minha mãe sem ele. Como aquela moça tinha conseguido tirá-lo dela? Achei que ela o tinha arrancado à força, mesmo que minha intuição dissesse o contrário. Para responder a pergunta que eu ainda não tinha feito, a garota colocou a mão sobre a minha. Recebi uma visão vivida e exata, como se ela tivesse me enviado a imagem intencionalmente. Era uma sensação diferente da de recuperar a informação da mente das pessoas. Na imagem, minha mãe e a garota estavam na entrada da nossa casa. Minha mãe tirara o relicário e o colocara delicadamente na mão da jovem. — Tome conta de Ellspeth por mim e a traga de volta para casa. Dê a ela isto se ela resistir às suas boas intenções. — Minha mãe sorriu e continuou: — E, conhecendo o gênio forte da minha filha, sei que ela vai resistir bastante. — Eu tomarei, Hananel. A garota ia embora, mas minha mãe agarrou-a pelo braço antes que ela saísse pela porta. Ela olhou a moça nos olhos como se falasse através deles. — Por favor, faça Ellspeht entender, sem sair do lado dela, que eu não a estou abandonando. Estou tentando ajudá-la. E, por favor, diga a ela que não contamos quem ela é nem a preparamos para o que está por vir porque há motivos — motivos vitais — para isso. — Prometo, Hananel. A imagem desapareceu. Vi-me de novo no metrô, agarrada ao braço de Michael e olhando para o rosto de um anjo. Era óbvio que ela era um anjo. Seu rosto tinha a mesma perfeição e jovialidade do rosto dos meus pais. Ou que meus pais costumavam ter. Coloquei o relicário no pescoço. Sentindo que eu tinha recebido sua mensagem, a garota tirou a mão de mim. — Por favor, venha comigo. Vamos descer na próxima parada e voar para um lugar seguro. Olhei para Michael para ver se ele concordava. Ele balançou a cabeça de leve, então peguei a mão da garota e me levantei. Michael fez a mesma coisa. — Quem é você? — perguntei.

184 — Meu nome é Tamiel — respondeu ela enquanto andávamos pelo vagão. — Também sou um anjo caído, tentando alcançar a graça. Como os pais de vocês dois. Seguimos Tamiel em direção às portas fechadas do vagão. Enquanto ouvíamos o trem andar pelos trilhos, sussurrei: — Tenho tantas perguntas. Ela deu aquele sorriso doce e calmo que eu vira no pátio de Harvard. — Eu sei, Ellspeth. Senti isso quando nos encontramos mais cedo. Então a guiei a um lugar onde você poderia conseguir algumas respostas sem se machucar. Mas me mandaram levá-la para um lugar seguro. Não posso contar tudo. Ainda não é a hora. — Por favor, Tamiel. O que somos nós? Ouvimos um barulho no vagão de trás e pulamos. Tamiel agarrou nossas mãos e ordenou: — Precisamos sair daqui. — Por quê? — Alguém está vindo atrás de você. — Ezekiel? — quis saber. Tamiel parou e se virou. — Como você sabe disso? Eu só descobri hoje que ele voltou. Então nossos pais não sabiam sobre Ezekiel ainda. Fiquei contente por eles não terem mais essa preocupação. Até porque eles não tinham mais armas internas com que enfrentá-lo. — Ele entrou em contato conosco. — Sim, é Ezekiel. E não acho que ele terá piedade. — Não acho que ele vá me machucar, Tamiel. Ela abriu os olhos azuis brilhantes, espantada. — Por que você diz isso? — Eu apenas sinto isso. Por algum motivo, acho que Ezekiel precisa de mim. Acho que ele precisa que eu o escolha. — Bem, você tem razão. Mas há muitas maneiras de fazer com que você o escolha. Especialmente porque você se preocupa com a humanidade.

185 — Como qual? — Como ameaçar Michael, que é suscetível a ele. Como sequestrar este trem lotado de inocentes até você passar para o lado dele. — Sua expressão não demonstrava mais surpresa, mas nervosismo diante da minha demora. — Devo continuar? — Não. — Eu lembrava bem os horrores que havia visto através dos olhos de Ezekiel e tremi diante da ideia de ser o motivo de ele infligir mais sofrimento aos outros. — Então vamos embora. — Demos as mãos e saímos do vagão. Senti o calor do ar do subterrâneo quando as portas se fecharam atrás de nós e saímos rumo à porta oscilante que ligava os dois vagões. Tamiel atravessou primeiro, segurando minha mão o tempo todo. Hesitei em pisar na divisória quando ouvi um barulho terrível vindo do vagão que havíamos acabado de deixar. — Espero que não seja tarde demais — disse Tamiel enquanto empurrava Michael e a mim para o outro lado. Corremos em direção ao vagão seguinte.

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Quarenta e Quatro O vagão do trem do metrô estava lotado. Com Tamiel à frente, abrimos caminho com o cotovelo para passar entre a multidão e alcançar as portas seguintes. Mas não sem antes ouvirmos um estrondo no lado oposto do vagão. — Não olhem para trás — gritou Tamiel, guiando-nos até a plataforma que dava no próximo vagão. Ela nos empurrou para o próximo vagão e, então, para o seguinte, ficando atrás de nós como um escudo contra a raiva evidente de Ezekiel. Enquanto corríamos dentro do trem em alta velocidade, ouvíamos ruídos surdos e estrondos pelo caminho. Mas não podíamos parar para olhar ou tentar entender o que era; precisávamos continuar andando, mesmo diante dos gritos de outros passageiros. Alcançamos as portas do último vagão. Tentei descobrir o que Tamiel havia planejado, enquanto os barulhos causados pela ira de Ezekiel não paravam. Na verdade, só aumentavam. E eu tinha motivos de sobra para ficar aterrorizada. Tamiel abriu as últimas portas e nos empurrou para a plataforma. Ela cambaleava para trás e para frente conforme o trem corria sobre os trilhos, e achei que não íamos conseguir manter o passo. Mas, então, percebi que Tamiel não queria que usássemos os pés. Demos as mãos e nossos corpos se prepararam para voar. Senti meus ombros se aprumarem e a onda de calor tão conhecida percorrendo meus membros. Olhei para Michael para ver se ele estava pronto. Ele balançou a cabeça para mim e apertei sua mão em resposta. Eu

187 estava pronta — pronta como nunca antes para voar pelos túneis subterrâneos e traiçoeiros do T. Quando nossos pés começaram a deixar o chão, a plataforma chacoalhou violentamente. Quase caí, mas Tamiel me puxou de volta antes que eu tombasse nos trilhos eletrificados. Enquanto me equilibrava para poder decolar, agradeci em silêncio à minha mãe por ter me enviado Tamiel e olhei para ela em sinal de gratidão por ter me salvado. Mas então senti a terra tremer embaixo dos trilhos e gritei. Ezekiel estava parado bem ao lado de Tamiel. No segundo em que Tamiel se virou para olhar para ele, desconfiei dela. Talvez o relicário, a imagem da minha mãe e a perseguição no metrô fossem apenas uma armadilha para nos levar a Ezekiel. Mas então vi a expressão em seu rosto — uma mistura de espanto e medo e percebi que eu estava errada. Ela estava do nosso lado. O único que ria era Ezekiel. — Esse grito não foi uma maneira muito bacana de me receber, Ellspeth. E eu procurei você e Michael em todo lugar. Ezekiel tentou me alcançar, e me afastei. Comecei a ir para trás. Voar era a única maneira de escapar dele, mas meu corpo ainda não estava preparado para isso. Quando seus dedos roçaram meu braço, senti Tamiel me agarrar no ar. Em um minuto, eu podia voar sozinha, então segui Tamiel para dentro dos túneis úmidos e quentes. O lugar me deixava desorientada; era tão estreito que meu braço roçava a parede de azulejo viscoso. Lembrei as visões torturantes que tive de Ezekiel — o martírio que ele despejaria sobre mim, e Deus sabe sobre quem mais, se fôssemos pegos. Permaneci quieta e voei. Tamiel corria pelas passagens e Michael e eu tentávamos ao máximo acompanhá-la. Ela era incrivelmente rápida e fazia curvas fechadas pelas passagens labirínticas do T como se conhecesse a linha toda de cor. Talvez ela conhecesse; talvez ela soubesse que iríamos parar lá. A parede de azulejos, antes vermelha, ficou verde, sinalizando a mudança de linha, e viramos à esquerda rumo a um túnel estreito. Ouvi um ruído forte atrás de mim e virei em pleno ar para ver o que era. O cabelo brilhante e o rosto claro de Ezekiel surgiram ao longe. — Ele está ganhando de nós — falei para Tamiel. Ela não respondeu. Em vez disso, aumentou a velocidade e virou à direita rapidamente. Michael e eu corremos para alcançá-la. Um estrondo e uma luz forte demais nos receberam na boca do túnel em que acabávamos de entrar. Vimos que, na direção oposta à nossa, vinha um trem em alta velocidade.

188 Michael e eu quase nos viramos para o sentido oposto para os braços de Ezekiel —, mas vimos Tamiel indo para o alto, em direção ao trem que vinha de encontro a nós. Imitando seus movimentos, seguimos Tamiel enquanto ela entrava em um pequeno buraco no alto do túnel. O buraco era tão apertado que Michael e eu mal conseguimos passar pela abertura. Mas, uma vez dentro, ele se tornou mais amplo, permitindo que ganhássemos velocidade. Seguimos Tamiel pela escuridão intensa enquanto ela subia para a superficie. O ar ficou mais frio e, então, vimos uma luz brilhando acima de nós. Em uma fração de segundo, Tamiel empurrou uma tampa de metal que cobria o buraco e olhou para cima. Ela fez um sinal para que a seguíssemos e voou para o alto, para fora do buraco. Estávamos em uma parada longínqua e escura do T a Government Center. Um trem devia ter acabado de deixar a estação, pois ela estava afortunadamente vazia. Sem nos explicar nada, Tamiel correu pela plataforma comprida em direção à saída, e nós a seguimos. Após subirmos dois lances de escadas, saímos na noite gelada do centro de Boston. O ar fresco era um alívio depois de enfrentarmos o subterrâneo fétido, mas eu relutava em deixar de voar e correr. Sentia que teria mais vantagens sobre Ezekiel se voasse. Era possível ver e ouvir a luz e o barulho do Faneuil Hali, uma atração turística que havia ali ao lado. Presumi que deveríamos tomar a direção contrária, e comecei a virar para o caminho oposto. Mas Tamiel me puxou em direção ao Fancuil Hail. — Achei que você queria que ficássemos longe de aglomerações. Você disse que o Ezekiel poderia usar as pessoas como armas contra nós — falei enquanto andávamos em direção ao mercado construído no século XVIII em volta de um passeio público feito de paralelepípedos, onde artistas de rua entretinham turistas enquanto eles faziam compras e jantavam. — Ele pode. Mas as aglomerações também limitam seus poderes, o que nos facilita a fuga. — Por que ele está fazendo isso, Tamiel? Ele teve oportunidade de nos dominar à força antes, mas nunca tentou. — Ele está bravo com Michael por tê-lo enganado do lado de fora da sala do professor McMaster, para começar. E... — Tamiel parou, como se já tivesse falado muita coisa. — Conte, Tamiel. — Ele acredita que você está perigosamente perto de entender quem você é. Quando você compreender totalmente sua natureza e seus objetivos, o final dos dias vai começar. E Ezekiel não pode mais esperar. Ele quer você do lado dele.

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Quarenta e Cinco Senti em vez de ver ou ouvir Ezekiel nos seguindo pelo Faneuil Hali. Sabia que Michael e Tamiel também haviam sentido, pois todas as vezes em que meu instinto me mandara virar à esquerda ou à direita para fugir dele, eles tiveram a mesma sensação — sem precisarmos dizer nada um ao outro. Movemo-nos juntos e entramos no Faneuil Hall. Apesar do frio, o local estava lotado. Zigue-zagueamos entre vendedores ambulantes que ofereciam mercadorias, turistas tomando bebidas quentes e malabaristas que os entretinham. Tamiel estava certa; a multidão nos protegia e atrapalhava a habilidade de Ezekiel de nos atacar. Por enquanto. Após alguns minutos correndo juntos entre a multidão, Tamiel, de repente, assumiu a liderança. Ela nos guiou até um prédio impressionante, com colunatas enormes e uma placa de latão que dizia ‚Quincy Market‛. Dentro do prédio havia uma enorme praça de alimentação coberta, cheia de mesas, barracas e mais gente. Cortando a multidão como uma faca, Tamiel nos levou direto às portas dos fundos. Ela havia nos levado ao Quincy Market apenas por diversão e para atingir Ezekiel. Michael e eu mantivemos o passo e a seguimos até o final longínquo do mercado. Fiquei muito feliz em, por fim, avistar a porta de saída, próxima a um pequeno palco. Quando Tamiel alcançou a maçaneta da porta, ouvi uma batida alta reverberando em todo o saguão, que estava lotado. Viramo-nos. Todas as portas do Quincy Market tinham sido fechadas e trancadas, mas as pessoas continuavam a comer e a beber, conversando como se nada tivesse acontecido.

190 Viramos em direção às portas de saída. Ali, no palco, estava Ezekiel. Era o cenário que eu mais temia. Ezekiel deu aquele seu sorriso doentio e começou a andar pelo palco. Ele nos encarou, mas falou apenas com Tamiel, com uma voz triunfante: — Vou contar a eles quem eles são. — Por favor, não, Ezekiel. — Fiquei assustada ao ver a aparentemente invencível Tamiel implorando. Olhei para Michael, mas ele não retribuiu meu olhar. Ele estava imóvel, assistindo ao confronto entre os dois anjos. — Você tem medo de que eles conheçam toda a história, Tamiel? Ah, esqueci. Você preferia que eles tivessem acesso às pequenas partes da história que você e os outros usam para saciá-los em lugares assépticos como as bibliotecas de Harvard. — Você não se importa com o que vai acontecer se você contar tudo a eles? — Você quer dizer o que pode acontecer a você, Tamiel? E aos outros caídos? — Ele fez um gesto largo apontando as pessoas. Elas não notavam nossa presença; Ezekiel certamente fizera algum truque para impedir que nos vissem. — Ou você quer dizer o que pode acontecer a todos eles? Ah, eu queria que Michael e Ellspeth não soubessem de tudo no início, mas agora eles talvez já saibam o suficiente para começar. Então quero ser o primeiro a dividir com eles a história toda — em vez das versões amainadas que esses idiotas sorridentes que se julgam pais deles irão lhes contar. Michael e Ellspeth devem saber a verdade e o papel destinados a eles no final. A voz de Tamiel parecia um trovão. — Pare, Ezekiel! Mas sua voz não tinha comparação com o rugido de Ezekiel, que urrou de volta: — Você vai deixá-los me ouvir! Ou vou colocar fogo neste lugar, que vai ficar parecido com o próprio inferno. E esse vai ser só o começo. Tamiel ficou imóvel, abandonando a briga. A voz de Ezekiel ficou mais calma e adquiriu aquele tom calmo de quando ele julgava ter atingido seus objetivos. Então, olhou em nossos olhos pela primeira vez desde que o vimos no Quincy Market. — Michael e Ellspeth, eu esperei por muito, muito tempo até encontrá-los. Desde aquele dia em que Ele... — Ezekiel falou logo a palavra como se fosse uma maldição — ... destruiu nossos companheiros Nephilins, seus irmãos e irmãs, no dilúvio de Noé. Desde que soube que vocês foram concebidos, procuro por vocês. As pessoas que alegam ser seus pais tornaram minha pesquisa dificil, abrindo mão de sua imortalidade para que eu não conseguisse notar a presença deles. Eles os misturaram em meio à humanidade e, por isso, foi difícil encontrá-los.

191 Mas eu, por fim, os encontrei, quando os poderes de vocês começaram a aparecer. Vocês se tornaram algo parecido com um farol para mim. Ou pelo menos Michael se tornou. E por meio dele, você, Ellspeth. Ezekiel, então, perguntou: — Devo lhes contar por que eu ansiava por vocês? Michael e eu não respondemos. Como poderíamos reagir quando o mal em pessoa nos contava que éramos a resposta às suas preces? — Eles mentiram em parte no Livro de Enoch. — Ele sorriu e continuou: — Ellspeth, creio que você descobriu isso durante sua pesquisa de hoje: ‚Quando a congregação dos justos aparecer , E os pecadores forem julgados por seus pecados, E forem levados da superfície da Terra;

E quando O Eleito aparecer diante dos olhos dos justos, Cujas obras eleitas estiverem sujeitas ao Senhor dos Espíritos, E surgir a luz para os justos e eleitos que ainda habitarem a Terra... A partir desse momento, os possuidores da Terra não serão mais poderosos e elevados;

E eles não serão capazes de contemplar a face do sagrado, Pois o Senhor dos Espíritos fez sua luz aparecer Na face do sagrado, do justo e do eleito.

E então os reis e poderosos perecerão E serão entregues aos justos e sagrados.

E desde então ninguém deverá procurar por conta própria a misericórdia do Senhor dos Espíritos Pois sua vida estará próxima do fim.

192 — Vocês entenderam o que isso significa? Michael e eu não tínhamos nem ideia, e Tamiel não articulara uma só palavra desde que Ezekiel a havia calado com a ameaça de incêndio. — Não? — indagou Ezekiel, com um sorriso. — Deixe-me explicar. Ellspeth, acredito que Hananel e Daniel tenham lhe contado que Deus amaldiçoou alguns de nós, anjos, quando descemos à Terra e criamos uma raça por conta própria, por meio da procrição com os seres humanos; essa raça foi chamada de Nephilim. Deus — em sua infinita arrogância — ficou tão furioso com nosso ato de criação que matou todos os seres humanos, com exceção de seu animal de estimação, Noé, e seus familiares. Deus então proibiu os anjos de procriarem e nos baniu do céu, deixando-nos aqui na Terra como supostos caídos. Daniel e Hananel lhe contaram isso, Ellspeth? Concordei com a cabeça. O Livro de Enoch descreve como os anjos caídos — como eu e os pais de vocês, e até como a Tamiel aqui presente — irão governar a humanidade até o final dos tempos. Assim, no fim, um ser selecionado irá emergir com o objetivo de julgar os anjos caídos e a humanidade. Esse ser selecionado — que Enoch chama de O Eleito — é um Nephilim, metade humano, metade anjo. — Ele sorriu. — Então, como podem ver, Enoch nos contou que, apesar da ordem específica de Deus para os anjos não procriarem, o Nephilim irá realmente voltar. E um desses Nephilins vai decidir o destino de todos os seres na Terra — anjos e humanos. Senti-me enjoada. De repente, eu sabia até onde ia a história de Ezekiel. Ele estendeu as mãos em direção a mim e a Michael. — Vocês são esses Nephilins. E um de vocês é O Eleito.

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Quarenta e Seis Ora, essa. Eu já estava acostumada ao fato de que era diferente, algo mais do que um ser humano, mas isso? Ezekiel esperava que eu e Michael acreditássemos que um de nós tinha sido escolhido para julgar as criaturas da Terra no final dos tempos. Olhei para Michael, mas ele parecia hipnotizado mais uma vez. Então olhei para Tamiel, para ver sua reação. Ela parecia derrotada. Tamiel também olhou seriamente para Ezekiel. — Como isso explica por que eu esperei tanto pelo nascimento de vocês? Por séculos, até por um milênio? — Ezekiel falava enquanto cruzava o palco, como se desse uma palestra à plateia cativa. Ele continuou: — Eu sabia que, quando os encontrasse e ficasse ao lado do Eleito, os caídos seriam julgados com justiça no final. Quando o Eleito tivesse aprendido o que eu aprendi e visto o que eu vi, ele iria entender que os caídos não são pecadores, mas, na verdade, ‚justos e eleitos‛, como Enoch dissera. E os caídos continuariam a possuir a Terra talvez até o céu novamente. E tudo ficou claro quem controlasse os Nephilins, controlaria o final dos tempos. Mas por que Ezekiel pensava que eu ou Michael o julgaríamos como ‚justo e eleito‛? Ezekiel estaria no topo da minha lista de pecadores. Ezekiel ficou no centro do palco. Com um movimento dramático, estendeu as mãos em nossa direção e anunciou:

194 — A resposta está em seu nome, Ellspeth. O que diabos ele queria dizer? Ele deu uma risada sufocada, como se eu tivesse feito a pergunta em voz alta. Meu rosto devia revelar tudo. Ellspeth significa ‚A Escolhida‛. Você é a Eleita. — Eu? Por que não Michael? — As palavras apenas saíram da minha boca. — Ah, Michael tem um papel importante. Mas mais como protetor, um cavaleiro para sua dama, se você quiser. Exceto pelo fato de que você é bem mais que uma dama. Esticando a mão, ele falou: — Venha comigo. Então era eu. A Eleita. Isso era loucura. E por que Ezekiel pensava que eu iria a algum lugar com ele? Mais do que qualquer um, eu conhecia seu lado obscuro; eu tinha visto através de seus olhos. Virei-me e olhei para Tamiel e Michael para buscar ajuda. O rosto de Michael ainda tinha uma expressão vidrada. E Tamiel não tinha ido embora, mas evitava o olhar e se afastara de mim, de Michael e de Ezekiel. Era quase como se ela estivesse proibida de se juntar a nós naquela batalha. Apenas Ezekiel encontrou meu olhar. — Ellspeth, você tem escolha. Pode vir comigo e salvar Michael ou escolher Tamiel e sua bondade, e então eu destruirei Michael. Então era assim que Ezekiel pensava que poderia me fazer ir com ele. Ele acreditava que eu jamais arriscaria a vida de Michael. Mesmo por uma boa razão. E Ezekiel devia estar certo. Como eu escolheria destruir Michael? — Você não pode levá-la! — Michael de repente despertou, com um grito. Inexplicavelmente, Ezekiel lançou um olhar risonho na direção de Michael. — Eu já ouvi essas palavras antes. Acho que Hananel e Daniel me disseram isso quando você nasceu, Ellspeth. Michael levantou do chão e voou em direção a Ezekiel que, surpreso, ainda estava no palco. Ele pousou em cima de Ezekiel com tanta força que ele caiu do palco, fazendo um forte barulho, quase batendo em uma barra de metal que sustentava a plataforma. Mas a barra deve

195 ter machucado o rosto de Ezekiel, pois o sangue escorria pela sua face. Era perturbador ver o imortal Ezekiel sangrando. Ezekiel se levantou, limpou o sangue com o dedo e o lambeu. — Você ia me matar, filho? — Filho? Não sou seu filho — gritou Michael. — É isso mesmo que você é — respondeu calmamente Ezekiel. Michael então voou do palco em direção a Ezekiel. Dessa vez, Ezekiel estava pronto. Com um impulso, voou para as vigas do teto do saguão. Quando Michael o seguiu, comecei a levitar para ir atrás deles. Eu não podia deixar Michael lutar contra Ezekiel sozinho. Tamiel me puxou para o chão. — Michael deve combater Ezekiel sem ajuda. Tentei me livrar dela, mas Tamiel era incrivelmente forte. — Michael está tentando me proteger de Ezekiel. Não posso deixar que ele faça isso sozinho. Ele precisa de mim. Tamiel me pegou pelos ombros e me encarou. — Ellspeth, somente o filho pode matar o pai. Deixe Michael cumprir seu destino, se ele puder. — Ezekiel é mesmo seu pai? — Eu estava chocada, embora isso explicasse a ligação entre eles. Achei que Ezekiel tivesse falado que Michael era seu filho metaforicamente. — Sim, ele é. Só alguém com o sangue de Ezekiel em suas veias pode destruí-lo. Aquela novidade desviou minha atenção da batalha feroz que acontecia acima da minha cabeça. — Mas eu pensei que os anjos não pudessem procriar. — Em geral, eles não podem. Mas você e Michael são exceções. — Então somos mesmo Nephilins? — Sim. — Onde estão nossas mães? Nossas mães humanas? — De repente, ansiei profundamente pela minha mãe. Tamiel olhou para o chão.

196 — Suas mães biológicas não estão mais entre nós. — Elas estão mortas? — Quis chorar, mas sabia que não podia. Eu precisava me manter concentrada. — E meu pai? Onde ele está? Ouvimos um forte estrondo acima de nós. Ezekiel tinha jogado Michael com força no andaime de metal que sustentava o teto, e gritei, a despeito, de mim mesma. Torci-me e me virei, tentando me soltar de Tamiel para poder ajudá-lo. — Espere aqui ou você só vai complicar as coisas para Michael — ordenou ela. Tamiel me segurava de um jeito impossível de me soltar, deixando-me sem escolha, a não ser assistir à guerra que ocorria acima de nós. Michael e Ezekiel mergulharam acima, sobre e ao redor das enormes vigas que davam sustentação ao teto. Senti que Michael podia realmente ganhar a batalha, mas então Ezekiel o pegou pelo pé e enfiou sua cabeça em uma enorme viga. Michael ainda voou para longe, mas eu sabia que ele estava terrivelmente machucado. Eu podia sentir o cheiro do sangue que saía de seus machucados e percebi que ele ficava cada vez mais fraco. De repente, descobri como ajudá-lo. De alguma maneira, tirei as mãos de Tamiel dos meus ombros e corri para o lado do palco. Olhei para cima. Michael e Ezekiel voavam bem acima de mim. Era a hora certa. Forcei um soluço e gritei: — Pare, Ezekiel. Eu não posso mais vê-lo machucar Michael. Pare. Eu vou com você. Mas só se você entregá-lo para mim ileso e voando por conta própria — bem aqui. — Não, Ellie — gritou de volta Michael. — Sim, Michael. — Olhei incisivamente para baixo, para a barra de ferro, esperando desesperadamente que Ezekiel não entendesse o que eu estava querendo dizer. — É o único jeito. — Você fez a escolha certa, Ellspeth — berrou Ezekiel. Lado a lado, eles começaram a descer. Ezekiel tomava cuidado para não encostar em Michael, mas sem tirar os olhos dele. Fiquei perto — mas não ao lado da barra de ferro e os vi se aproximando do chão. Pouco antes de pousarem, estendi os braços para Ezekiel, com a intenção de distrai-lo. — Está quase na hora — eu disse. Como se falasse com Ezekiel.

197 Ezekiel estendeu os braços para mim. Com uma expressão de triunfo, deixou de olhar para Michael e sorriu para mim. Michael voou até as costas de Ezekiel e o empurrou na barra de ferro com toda sua força. Corremos para o lado de Ezekiel para nos certificarmos de que tínhamos feito um bom trabalho. Mas não tínhamos. Em segundos, o cheiro do sangue derramado de seu corpo foi muito poderoso. Ele parecia fraco — quase morto —, mas seus olhos ainda estavam abertos e piscando. — Não estou sozinho. Há outros. Outros ainda mais poderosos que eu. Como seu pai — sussurrou Ezekiel, e deu seu sorriso doentio para a multidão. E então parou de piscar. Olhei para o Quincy Market, na direção do último olhar de Ezekiel. Lá, no meio da multidão, vi um homem de cabelos escuros e olhos azuis brilhantes nos encarando. Como se tivesse nos visto. E então ele desapareceu. Tamiel correu para perto da gente. Ela concordou com a cabeça diante das palavras finais de Ezekiel. Havia acabado, mas apenas por um momento. Eu não me importava. Levantei-me e abracei Michael o mais forte que pude. Mesmo que só tivéssemos um breve momento de paz juntos, mesmo que eu fosse essa outra estranha criatura, a Eleita, eu ansiava por esse momento, essa paz. Olhamo-nos e sorrimos. Fechei os olhos e me rendi aos braços calorosos de Michael.

198

Quarenta e Sete Abri os olhos. Eu estava em minha cama. Minha cama. Não me lembrava de ter voltado de Boston para Tillinghast. Como eu chegara lá? A última lembrança que eu tinha era de abraçar Michael no Quincy Market, depois de vermos o corpo de Ezekiel caído no chão. Ai, meu Deus, Ezekiel. Sentei-me na cama. Levantei o edredom, o cobertor e o lençol. Eu estava usando meu pijama de flanela. Quem havia me trocado? Olhei para o relógio. Eram sete da manhã, mas eu não tinha ideia de que dia era. Afastando as cobertas, levantei-me um pouco instável. Cambaleei até a escrivaninha, onde estava minha bolsa. Peguei-a, procurando qualquer evidência de que eu tinha estado em Boston. Achei meu caderno de anotações cheio dos rabiscos habituais, minha carteira com minha identidade e dinheiro e meu nécessaire guardados como sempre. Não havia bilhetes de trem nem recibos, tampouco nenhuma lista das perguntas que eu fizera no trem para Boston ou durante a longa noite no café da Harvard Square. Mas meu celular estava lá. O celular que eu havia jogado fora, no lixo da estação de trem de Tillinghast. Tudo aquilo teria sido um sonho? O voo e o sangue? Ezekiel e a viagem para Boston? E toda aquela história de Nephilim e de ser a Eleita? Michael também era um sonho?

199 Desci correndo as escadas, sem certeza do que esperar encontrar. Minha mãe estava no balcão da cozinha passando manteiga na torrada e colocando suco de laranja no copo, como fazia todas as manhãs. Ela olhou para mim sem nenhum sinal de surpresa por me encontrar na cozinha. Mas ela estava surpresa diante do meu estado, dada a hora. — Querida, por que você ainda está de pijama? Você tem de ir para a escola em quinze minutos. Olhei a cozinha, como se não a visse há meses. A chaleira estava no mesmo lugar e os imãs da geladeira seguravam as fotos e os bilhetes de sempre. Tudo estava do jeito que eu deixara. Mas eu me sentia totalmente diferente. Minha mãe veio até mim e colocou a mão na minha testa. — Você está doente, Ellie? Está um pouco abatida, mas não está quente. Eu tinha medo de falar. Praticamente qualquer frase que saísse da minha boca poderia ser inadequada. E até parecer maluquice. — Querida, está tudo bem? As palavras finalmente saíram da minha boca como um grunhido. — Estou bem, mãe. É que acordei de um sonho muito esquisito. Ela levantou as sobrancelhas preocupada, mas sua voz estava calma. Muito, muito calma. — O que você sonhou, querida? — Nada. Foi só um sonho. É melhor eu me arrumar logo. Subi as escadas e abri meu armário para escolher uma roupa. No cabide, estavam penduradas as roupas mais ousadas que eu tinha comprado desde que começara a sair com Michael. E o vestido vermelho que eu usara no Baile de Outono. Pelo menos aquilo não era um sonho. Talvez Michael também não fosse. Peguei uma calça jeans e uma blusa e fui até o banheiro. Tranquei a porta e permaneci encostada nela por um bom tempo, até que, por fim, fui até a pia e liguei a água quente. Conforme o vapor subia, fiquei me olhando no espelho embaçado. Desfiz todos os nós do meu cabelo com a escova. Passei um pouco de blush e rimel e me vesti, tentando ignorar o mal-estar no estômago. Temendo as incertezas da escola, voltei me arrastando para a escada e desci. — Estou pronta, mãe. Ela me olhou com curiosidade.

200 — Mas Michael virá buscá-la hoje. — Não estou mais de castigo? — Meus pais tinham me proibido de ir à escola de carro com Michael desde o Baile de Outono. Nós só podíamos nos ver em lugares que tivessem gente, como a escola e do minha casa. — Não, querida. Seu castigo acabou nesse final de semana. Ela parou por um instante e perguntou: — Tem certeza de que está tudo bem, Ellie? — Estou bem, mãe. — Eu esperava que a frase soasse convincente, embora eu não me sentisse bem. Não queria que ela se preocupasse comigo; eu já tinha problemas demais. — Vou esperar por Michael em frente à janela. — Não quer que eu o espere com você? — Não, obrigada, mãe. Tenho de dar uma revisada na minha lição. — Eu precisava ficar um pouco sozinha. Ela pareceu contente por eu ter mencionado algo normal como a lição de casa. Fiquei olhando para a garagem e tentando entender as coisas. A lista de perguntas que eu havia feito no trem para Boston não saía da minha cabeça. Se os últimos dois meses tinham sido reais — em vez de um sonho bizarro —, então eu talvez tivesse algumas respostas para minhas perguntas. O que eu era? A pergunta de um milhão de dólares. Pressupondo que o voo, o sangue, Ezekiel e Boston realmente tinham acontecido, eu tinha bastante certeza de que era uma Nephilim. Mas a não ser pelos meus poderes, não estava certa do verdadeiro significado de ser uma Nephilim. Qual era o objetivo de um Nephilim? Se eu acreditasse em Ezekiel, então eu era a ‚Eleita‛ e tinha algum papel importante no ‚fim dos tempos‛, seja l{ o que isso quisesse dizer. Até meus pais tinham dito algo sobre eu ser diferente e ter de me preparar para a ‚guerra‛, e Tamiel tinha mencionado o ‚final dos tempos‛. Que guerra era essa, e contra quem eu lutaria? Eu ainda tinha mais perguntas que respostas. O que tinha ocorrido com meus pais biológicos? Eu realmente podia contar com Michael enquanto descobria tudo isso? Então ouvi um barulho de cascalho triturado. O carro de Michael tinha chegado. Minha ansiedade, que já era enorme, estava maior ainda. O que eu devia falar para ele? Eu ainda não tinha certeza do que era real e do que tinha sido um sonho. — Tchau, mãe — gritei e saí até o carro. O dia estava frio e chuvoso, mas não gelado a ponto de nevar. Michael desligou o carro e abriu a porta para mim sem sair do veículo. Entrei e fechei bem a porta. E, então, me sentei em silêncio, sem saber quais palavras seriam apropriadas.

201 Ele se inclinou e me beijou na bochecha. — Como foi sua noite? — Tudo bem — respondi com cautela. — E a sua? — Boa. Terminei a lição de cálculo — falou enquanto virava a chave na ignição. — Que bom. — Eu não sabia o que dizer a seguir. Nem conseguia lembrar que lição eu estava fazendo antes de fugir para Boston. Então fiquei quieta. Ele ligou o carro e a música inundou o ambiente. Era uma música do Coldplay, ‚Cemeteries of London‛, uma das minhas preferidas, e Michael sabia disso. Fazia-me lembrar nossos voos noturnos, quando saíamos para explorar o mundo. Se é que isso tinha realmente acontecido. — Aqui está parecido com Londres hoje, né? — indagou Michael. Olhei para ele surpresa. Ele tinha dito aquilo mesmo? Estávamos indo para Londres encontrar o professor Barr no dia anterior — saindo de Boston. Ou ele apenas se referia à música? Um sorriso iluminou seu rosto. Um sorriso de cumplicidade. Então...? Minha mente girou. Não tinha sido um sonho. Como se lesse meus pensamentos, Michael disse: — A ignorância foi a única coisa que a protegeu até agora. Naquele instante, percebi o que tinha acontecido. Na conversa entre nossos pais que Michael escutara, meu pai tinha dito a mesma coisa. Meus pais desejavam tanto que não conhecêssemos nossa identidade — para nos proteger e para evitar o avanço do final dos tempos — que tentaram apagar nossa memória. Sobre os voos, Ezekiel, Boston, Nephilins e o Eleito. Eles sabiam que não iam conseguir nos afastar um do outro; eles já tinham tentado isso depois da viagem à Guatemala e não tinha dado totalmente certo. E não tinha funcionado agora. Nós nos lembrávamos de tudo. Comecei a falar animadamente. Todas as peças estavam se encaixando. Mas Michael balançou a cabeça e colocou o dedo sobre meus lábios. Então apenas sorri de volta para ele. Sabia que ainda não tinha acabado. Aquilo era só o começo.

202

A série Fallen Angel continua em<

Um fim... ou um novo começo? Ellie tem que lidar com a difícil missão de ser a Eleita para salvar o mundo. Com as responsabilidades aumentando, seu relacionamento com Michael vai de mal a pior, e a situação chega ao limite quando ela conhece um rapaz muito especial, chamado Rafe. A hora tão esperada finalmente chegou, e a garota tem que aprender a usar seus poderes para enfrentar os anjos caídos. Sabendo do importante papel que o destino lhe reservou, ela tenta deixar as emoções de lado, mas logo descobre que aquele que tem a chave para o seu coração também é res¬ponsável pela salvação ou destruição da humanidade. Com o homem certo ao seu lado, nossa heroína encontrará as forças para enfrentar o seu destino e encarar um difícil dilema: salvar a humanidade à custa de uma grande perda. O leitor vai se emocionar com esta incrível história de amor, nas suas mais diversas formas, e seu final surpreendente.

203

Heather Terrell

Heather Terrell é uma advogada com experiência de mais de dez anos. Ela é graduada magna cum laude, do Boston College, com foco em História e Arte, e uma graduação

cum

laude

pela

Universidade

de

Boston

Faculdade de Direito. Ela vive em Pittsburgh com sua família. Heather é autora dos romances históricos The Chrysalis e The Map Thief, que foram lançados em mais de dez países, bem como Brigid of Kildare. Ela também é a autora da série YA, intitulada Fallen Angel.

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