ela pudesse ter fugido com alguém após provação e tanto luto, ainda mais porque tenho motivo algum para suspeitar de ocasos amorosos. Entretanto, os detetives esã investigando a pista."

O GATO BRASILEIRO

Emily Unde

muito azar para um jovem ter gostos caros, 'nhos dourados, amizades aristocráticas e um dinheiro de verdade no bolso nem prok ã o alguma com a qual possa ganhá-lo. O fato iqoe meu pai, um sujeito bom, otimista e desfcocupado, tinha uma confiança tão grande na ijKza e na benevolência de seu irmão mais hei» e solteiro, Lorde Southerton, que nunca se preoc-apcM wssn a "pcfisfeMííií. d& qat ç/tu filha ínico, eu, me visse obrigado a ganhar a vida com neus próprios meios. Ele imaginava que se não sobrasse para mim uma boa parcela do espólio de Southerton seria possível, pelo menos, arranjar am posto no serviço diplomático, que continua sendo um privilégio especial das nossas classes abastadas. Porém ele faleceu cedo demais para perceber como estavam equivocadas as suas suposições. Nem meu tio nem o Governo ligaram a L

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O que agravava ainda mais a minha sensação de miséria era ver que, além da granderiquezade Lorde Southerton, todos os meus outros parentes viviam muito bem. O mais próximo deles era Everard King, sobrinho de meu pai e meu primoirmão, que vivera anos de aventura no Brasil e acabara de retornar a seu país para viver apenas de sua fortuna. Nunca soubemos como ele conseguiu tanto dinheiro, mas o certo é que aparentemente obtivera sucesso, pois assim que voltou ele comprou a propriedade de Greylands, perto de

Clipton-on-the-Marsh, em Suffolk. Durante todo o primeiro ano em que residiu na Inglaterra, ele, tal qual meu velho tio avarento, também não deu conta de mim; mas enfim, numa manhã de verão, para meu grande alívio e alegria, recebi uma carta solicitando que fosse naquele mesmo dia fazer uma visita a Greylands Court. Eu, que já andava à espera de uma visita a um Tribunal de Falências, aceitei o convite como obra da Providência Divina. Se ao menos conseguisse fazer amizade com aquele parente desconhecido talvez ainda me fosse possível endireitar a vida. O bom nome da família não permitiria que eu fosse encostado definitivamente contra a parede. Pedi ao meu criado que fizesse a mala e na mesma noite me pus a caminho de Clipton-on-theMarsh. Depois de uma baldeação em Ipswich, um pequeno trem parador me deixou numa estação acanhada e deserta no meio de um campo verde interminável, com um riacho lento e serpeante cortando os vales entre elevações assoreadas onde se viam as marcas das enchentes periódicas. Ninguém estava à minha espera (descobri depois que houve um atraso na entrega do meu telegrama) e portanto tive de alugar uma carruagem na hospedaria do vilarejo. O cocheiro, um senhor simpaticíssimo, só tinha elogios para o meu pa-

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mínima para mim, ninguém demonstrou qualquer interesse pelo meu futuro. Tudo o que me coube foi uma ou outra parelha de faisões, algumas lebres e mais nada: apenas o bastante para recordar a minha condição de herdeiro da Casa de Otwell e de um dos espólios mais ricos de todo o país. Enquanto isso, vi-me solteiro e desocupado, vivendo numa suite em Grosvenor Mansions, sem outra atividade além de praticar tiro aos pombos e jogar pólo em Hurlingham. A cada mês, tornava-se mais difícil convencer os credores a renovar meus papéis ou saldar dívidas com uma participação naquela herança que não se concretizava. A miséria se definia à minha frente, e a cada dia transcorrido adquiria contornos mais nítidos, mais claros e mais inevitáveis.

rente, e aprendi com ele que Everard King era um nome capaz de abrir todas as portas naquele recanto do país. Ele brincava com as crianças, franqueava a propriedade aos visitantes, patrocinava obras de caridade - resumindo: sua benevolência era tão grande que o cocheiro só encontrava uma explicação possível, traduzida em ambições parlamentares. A minha atenção foi desviada do panegírico do cocheiro pelo aparecimento de uma ave lindíssima que pousou no poste telegráfico à beira da estrada. Em princípio, pensei que fosse um gaio, porém era maior e tinha uma plumagem mais colorida. O cocheiro percebeu a sua presença de imediato, e foi logo explicando que pertencia ao homem que me receberia de visita. Ele explicou que a aclimatação de animais exóticos era um dos seus passatempos, e que ele trouxera do Brasil um grande número de pássaros e outros bichos que se esforçava por manter na Inglaterra. Assim que atravessamos os portões de Greylands Park, vimo-nos cercados de provas do que o cocheiro dizia: um pequeno alce-pintado, um estranho porco-selvagem conhecido, se não me engano, como pecari, um papa-figo de cores deslumbrantes, uma espécie de tatu e um curioso animal de andar arrastado e dedos virados para dentro que lembrava um texugo muito gordo foram

algumas das criaturas que pude observar enquanto percorríamos a alameda cheia de curvas dos portões à entrada da casa. Everard King, meu primo desconhecido, estava de pé nos degraus da escada, pois já nos havia visto a distância e deduzira que era eu. A sua aparência revelava um homem rude e pacato, de pouca altura, mais para gordo, com quarenta e cinco anos de idade, talvez; o rosto, redondo e bemhumorado, tinha a cor de bronze dos trópicos, embora sulcado por centenas de rugas. Ele vestia roupas de linho branco, à moda dos grandes fazendeiros, com um charuto na boca e um grande chapéu panamá atrás da nuca. Everard era a imagem perfeita do latifundiário latino-americano, que costumamos associar às sedes de fazenda com varandas arejadas e simples; por isso, havia um curioso contraste entre sua figura e aquela mansão inglesa de pedra, pesada, com suas alas sólidas e suas pilastras paladianas diante do portal. - Querida! - gritou ele por sobre o ombro -, querida, o nosso hóspede chegou! Bem-vindo, bem-vindo a Greylands! Estou felicíssimo por conhecê-lo, primo Marshall, e considero uma honra que você tenha aceitado o convite de vir a este lugarejo do interior! Eu não conseguiria imaginar nada mais caloroso que esta recepção; Everard fazia questão de

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me deixar à vontade desde o primeiro instana. Mas toda a sua cordialidade mal compensav; . frieza e até a inamistosidade de sua esposa, una mulher alta e macilenta que veio à porta atendendo ao seu chamado. Tenho a impressão de qar era brasileira, embora falasse um inglês excelera; e se desculpasse por ainda não estar habituada aos costumes da Inglaterra. Entretanto, ela não fazia o menor esforço para esconder que minta presença em Greylands Court estava longe de ser bem-vinda. Em momento algum. As suas pala-1 vras eram, quase sempre, corteses, porém seasí olhos escuros e expressivos ao extremo não deixavam dúvidas de que, por ela, eu não teria saído de Londres, e já que havia chegado restava-Ihc aguardar minha pronta partida. Contudo minhas dúvidas não me permitiam] tais suscetibilidades e minhas intenções junte j um parente rico como Everard fizeram com qna aceitasse o mau humor da mulher; a situação entj de vida ou morte para mim, e por isso achei mais prudente responder no mesmo tom afetuos: . recepção fraterna que meu primo Everard oferecera. Ele não poupava esforços para que eu me] sentisse bem. Meu quarto havia sido arrumado com extremo bom gosto. Ainda assim, ele mc suplicou que lhe dissesse o que faltava para aumentar o meu conforto. Por pouco não revelei I

me bastaria um cheque em branco ao portajar para que todas as preocupações materiais se praíssem, porém isso seria um tanto prematuro ••a O primeiro contato entre nós dois. O jantar T excelente e, depois, quando nos sentamos jar^ tomar um cafezinho e fumar seus havanas, bpe mais tarde ele me informou serem prepararas em sua própria plantação, compreendi que os •fcgios do cocheiro haviam sido sinceros: nunca imaginei que pudesse conhecer uma pessoa tão K pttaleira e de coração tão grande. Mas apesar de toda a cordialidade ele era um [fanem acostumado a mandar e seu temperamenc não admitia desfeitas. Pude constatar isso na annhã seguinte. A estranha aversão que sua esposa manifestava por mim se acentuara de tal moIfc que durante o café da manhã ela se mostrou • B a s e agressiva. Aproveitando-se de alguma coiiB que Everard fora chamado a resolver do lado lie fora, ela acabou de imediato com qualquer ••vida que eu ainda pudesse ter. - O trem mais confortável sai ao meio-dia e •oinze - disse-me. - Mas eu não estava pensando em partir hoje -respondi com franqueza e, quem sabe até, arrogância, pois tinha-me decidido a não aceitar as pDvocações daquela mulher.

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- Ah, se é o que você deseja... - a frase interrompida. A expressão de seus olhos mais insolente. - Tenho a certeza de que Everard saberá ÕJM quando minha presença se tornar demasiada. - O que está acontecendo? O que há? - faia uma voz do lado de fora, e logo Everard tomai a entrar na sala. Ele ouvira minhas últimas pak vras e só de olhar para nós dois compreendeu • resto. Num segundo, seu rosto bonachão e ais gre assumiu uma expressão de absoluta virulô» cia. - Você se incomodaria de passear um pooca pelos jardins, Marshall? - perguntou-me. (Permaa me dizer que meu nome é Marshall King.) Ele fechou a porta às minhas costas e, em seguida, começou a falar em voz baixa, pores firme e autoritária, com a esposa. Evidentemena aquele comportamento inexplicável tocara ea seu ponto fraco. Não gosto de ouvir a convers dos outros, e por isso fui espairecer no gramaã da mansão. Quase imediatamente, ouvi passo apressados e quando me virei vi que a esposa ; Everard, com o rosto pálido de humilhação e 1 olhos vermelhos de lágrimas, vinha em minh direção. 74

- Meu marido me mandou que pedisse desa você - disse ela, parada à minha frente a cabeça baixa. - Por favor, não é preciso dizer mais nada. Mas seus olhos negros me fuzilaram. - Imbecil! - murmurou entre os dentes com a força incontrolável, ao mesmo tempo em j voltava apressada para a casa. A agressão foi de uma brutalidade e de uma npidez tamanha que minha única atitude se •atou ao espanto: acompanhei atónito seus pasI apressados sem saber no que pensar. O susto nda não havia diminuído quando Everard veio meu encontro. Seu rosto estava bonachão e gre outra vez. - Espero que minha mulher tenha pedido desípas pelas bobagens que disse. - Claro, claro! Está tudo esquecido. Ele pôs a mão em meu braço e me levou a ;sear pelos jardins. - Não leve as palavras dela a sério. Eu ficaria aito triste se você abreviasse a sua visita em na hora que fosse. Nós somos parentes, e não jo motivo para que eu esconda nada de você: a rdade é que minha mulher sente ciúmes terríis de qualquer pessoa, homem ou mulher, que ponha entre mim e ela, ainda que por tão pouco Tipo. O sonho da vida dela é uma ilha desabita75

da e um tête-à-tête eterno. Acho que assim vooí compreenderá melhor os gestos dela; infekzmeaa acredito que, sob este aspecto, em particular, e n passam perto da obsessão maníaca. Prometa-raq que não se aborrecerá mais com isto. - Está prometido. Fique tranquilo. - Então acenda este charuto e venha conhecaj o meu pequeno zoológico. A tarde inteira foi ocupada por este passeia] durante o qual vi todas as aves, animais e até iém teis que ele havia importado. Alguns esta\r soltos, outros em jaulas ou gaiolas, e uns pouca* andavam por dentro de casa. Ele falava c: entusiasmo de seus sucessos e fracassos conaj criador de animais selvagens, dos nascimentc« das mortes, e chegava a ponto de pular de alegria quando, ao caminharmos, algum pássaro saltiu i na grama ou algum animal exótico procurata abrigo entre a vegetação. Porfim,ele me leve. . um corredor que se prolongava de uma das ala da casa. No fundo desse corredor, havia uma porta pesada coberta por uma cortina e, ao sa lado, projetando-se da parede, uma alavanca dei ferro presa a uma roda e a um tambor. Uma gradrí de metal grosso barrava a passagem. - Vou mostrar a você, agora, a jóia mais raaj da minha coleção. Só existe um outro igual m

fcropa inteira, pois o filhote levado para Ams•rdã morreu. É um gato brasileiro. - E o que ele tem de tão diferente assim? - Você já vai ver - disse ele entre risos. Puxe a cortina e olhe lá para dentro. Foi o que eu fiz. À minha frente, havia uma jaula grande e vazia, com lajes de pedra e janelas pequenas gradeadas na parede oposta. No centro da jaula, deitado em meio a uma faixa dourada de sol, um bicho imenso, grande feito um tigre, porém preto e reluzente como o ébano. TratavaK apenas de um gato gigantesco, negro, muito •em cuidado, encolhido para aproveitar o sol como qualquer gato faria. Mas ele era tão belo, tão musculoso e tão suavemente diabólico que não pude desviar os olhos. - Não é esplêndido? - perguntou meu anfi«ião entusiasmado. - Deslumbrante! Nunca vi nada mais nobre! - Há quem o chame de puma negro, mas ele aão tem nada de puma. O bichano tem quase onze pés da cauda ao focinho. Há quatro anos ele aão passava de um novelinho de lã preta com dois olhos amarelos. Eu o comprei ainda filhote aa selva, junto a um afluente do rio Negro. A mãe foi morta depois de ter acabado com uma dezena de nativos. - Quer dizer que eles são ferozes?

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- As criaturas mais sangrentas e traiçoeiras ai face da terra. Fale no gato brasileiro com qualquer índio do interior e sinta o pânico que se apodera dele. Estes animais preferem atacar o homem a caçar. O meu nunca provou sangue humano, mas quando provar será mais uma fera mortífera. Por enquanto, ele não permite que ninguém além de mim entre na sua jaula. Nem mesmo Baldwin, o cavalariço, se atreve a chegar perto. Quanto a mim, sou mãe e pai ao mesmo tempo. Dizendo isso, ele abriu a porta de repente e para meu desespero, entrou na jaula, fechando-se por dentro instantaneamente. Ao ouvir o som de sua voz, o animal imenso e ágil ergueu-se, bocejoc e esfregou sua enorme cabeça preta afetuosamene contra as pernas de Everard que o acariciava. - Agora, Tommy, para casa. O gato monstruoso dirigiu-se para um dos lados da jaula e se aninhou debaixo de um gradiL Everard voltou para o meu lado e começou a rar a alavanca de ferro da qual falei. Com isso, as barras de ferro do corredor começaram a passar por uma abertura da parede bloqueando o gradil e formando uma outra jaula menor. Depois de verificar que estava tudo em ordem, meu primo tornou a abrir a porta e me convidou a entrar no local onde o gato estivera; ali o cheiro pungente e 78

desagradável peculiar aos grandes carnívoros •npregnava o ar. - E assim que o tratamos. Durante o dia ele fica nesta jaula maior para se exercitar, e à noite •DS o trancamos na jaula menor. Ele pode ser BDho com a alavanca do corredor, que também aerve para prendê-lo, como você viu. Não, não fica isto! Eu havia passado a mão entre as grades para saitir o pêlo brilhante e macio do gato, mas Evenrd me deu um puxão violento. Seu rosto estava aério.

- Sob minha palavra de honra, este animal é •m perigo. Não suponha que pode tomar liberdades com ele só porque eu entro em sua jaula. Ele aão faz amigos com facilidade, não é, Tommy? ele está ouvindo o almoço que chega! É isso, fckhano? Ouvimos passos no caminho de pedras, e o felino se pôs de pé com um pulo, começando a andar para um lado e para o outro com os olhos amarelos brilhando e a língua vermelha balançando trémula entre as duas linhas brancas de dentes aguçados. Um criado entrou trazendo um pedaço de carne com osso numa bandeja, e o jogou por entre as grades. O gato deu um bote ligeiro, pegou a carne e foi com ela até o canto mais afastado da jaula onde, segurando-a entre as 79

patas, começou a dilacerá-la, erguendo de vez quando seu focinho sangrento para ver se ainda estávamos lá. Era uma cena perversa mas apesar de tudo fascinante. - Não é à toa que eu me orgulho dele! O que você achou? - disse Everard enquanto saíamos. Veja bem: eu fui o responsável pela sua sobrevivência. Não foi fácil trazê-lo do coração da América do Sul; agora ei-lo aqui, são e salvo. É, com») eu disse, o exemplar mais perfeito da Europa O diretor do Zoológico está doido para levá-lo, mas não consigo me separar do meu gato. Ah, yk\ chega. Começo a ficar inoportuno com o mea entusiasmo; é hora de seguirmos o exemplo de Tommy e cuidarmos do apetite. Meu parente sul-americano vivia tão fascinado por sua propriedade com todos aqueles animais exóticos que em princípio sequer admiti a possibilidade de que tivesse algum outro interesse. Mas havia assuntos, e assuntos prementes, a julgar pelo número de telegramas que ele recebia Eles chegavam a qualquer hora do dia, e Everard era o único a lê-los - com o rosto transtornado pela expectativa e pela ansiedade. Imaginei que fosse alguma coisa relativa ao Hipódromo, talvez à Bolsa de Valores, mas com toda a certeza ele tinha negócios muito urgentes em andamento, e esses negócios não eram tratados ah em Suffolk. 80

te os seis dias de minha estada, ele nunca d>eu menos do que três ou quatro telegramas dia; pelo menos numa ocasião eles chegaram :e ou oito. Eu ocupei tão bem os seis dias que, chegado o «nento da partida, meu relacionamento com erard se revestia da maior cordialidade. Todas aoites ficávamos sentados até tarde no salão bilhar, e ah ele me contava as histórias mais aordinárias de suas aventuras na América do histórias tão heróicas e destemidas que eu conseguia associá-las ao homem gorducho e nzeado que via à minha frente. Eu, por minha . arrisquei-me a relatar reminiscências da vida drina; ele se interessou tanto que jurou visitarem Grosvenor Mansions. Meu primo estava rendo conhecer o lado mais descontraído da urbana e, sinceramente, se me é perdoada a dade, seria impossível encontrar um melhor erone. Retardei até o último dia o tema que abandonara por um segundo o meu pensato. Falei-lhe francamente a respeito das mis dificuldades pecuniárias e sobre a ameaça ruína que pairava sobre mim, pedindo-lhe sua sitação - embora, no fundo, esperasse coisa palpável. Ele escutou atentamente, soltando sas baforadas do seu charuto. 81

- Mas me parece lógico que você seja herãã ro do nosso parente Lorde Southerton - coma tou Everard indignado. - Eu teria todos os motivos para acreditar sim, porém ele não me deu um único centavo a hoje. - É, é, já ouvi falar da sovinice do veia Pobre Marshall, imagino como tem sido difka] sua vida. Por sinal, você tem tido notícia saúde de Lorde Southerton ultimamente? - Ele está balançando desde que eu era crias - Exatamente: uma dobradiça que range, se que existe isso! A sua herança talvez esteja TOM, distante, Marshall. Minha nossa, que posição et plicada a sua! - Eu tinha algumas esperanças de que v primo, inteirando-se de todos os fatos, se sesse a... - Não é preciso dizer mais nada, meu amigo - interrompeu Everard com extrema dialidade. - Falaremos a respeito disso hoje noite. Dou-lhe a minha palavra de honra de tudo o que estiver ao meu alcance será feito. A proximidade do fim da minha visita não entristeceu, pois é desagradável conviver mente com uma pessoa que deseja a nossa pa da acima de tudo. O rosto apagado e o ol ameaçador da esposa de Everard exalavam c 82

em minha presença. Ela não demonstrava a rudeza acintosa do primeiro dia - o temor sentia pelo marido refreava o seu ânimo em seus ciúmes insanos a levaram ao ponto me ignorar, de nunca me dirigir a palavra, de a o possível e impossível para tomar a minha fcda em Greylands desagradável. No último . seu comportamento tomou-se tão grosseiro com toda certeza eu teria partido sem dizer as a ninguém, não fosse a conversa marcada • meu anfitrião para aquela noite, na qual sitava enormes esperanças de solução dos as problemas financeiros. Só pudemos nos encontrar muito tarde pois 1 parente, que durante o dia recebera mais lamas que de costume, recolheu-se em seu tório depois do jantar para só sair quando a a criadagem havia-se recolhido ao leito, cebi que ele percorria todas as portas verifiTo as fechaduras, como de costume, até que veio dar comigo no salão de bilhar. Seu roliço estava envolvido por um roupão, e calçava sandálias turcas sem salto. Acoando-se numa poltrona, Everard preparou si mesmo uma dose de bebida; não me escao fato de que o teor de uísque era muito or que o de água. - Que noite, meu Deus! - exclamou. 83

Concordei. O vento uivava pela casa, as I zianas de madeira sacudiam como se quises romper os caixilhos. A luz amarelada dos I piões e o aroma de nossos charutos pareciam i brilhantes e mais odorosos por contraste. - Agora, meu jovem, temos a casa e a i para nós. Conte-me com todos os detalhes . anda a sua situação, e verei o que posso f para colocá-la nos eixos. Estimulado pelo tom de suas palavras, fiz longa exposição na qual todos os meus negoc tes e credores, do senhorio ao criado, tive lugar. Eu havia feito anotações, que trazia na teira, e com a ajuda delas pude ordenar o rac: nio para oferecer, com um certo orgulho, uma explanação sensata da minha insensatez estado lamentável a que chegara. Entreta deprimia-me a consciência de que os olho. Everard se desligavam de quando em vez, < que sua atenção estava voltada para outros blemas. As poucas observações que fazia era tal ponto indiferentes e sem sentido que coro. a temer pelo resultado da entrevista. De vez quando, ele sacudia a inércia e procurava ap tar atenção, pedindo-me que repetisse ou e. casse melhor algum detalhe, porém logo se lhia de novo à mesma prostração de antes. 84

ftm ele se levantou jogando a guimba do charuto ac cinzeiro. - Preciso lhe confessar uma coisa, meu rapaz. 1c nunca tive cabeça para números, e por isso t e peço desculpas. Ponha tudo no papel e assinale quanto você precisa. Eu só consigo entender • preto no branco. A proposta era animadora. Prometi fazer o qpe ele pedira. - Já passamos da hora de dormir. O relógio da sala está batendo uma da madrugada. O retinir do relógio cortou por alguns instantes o uivo rouco da ventania. O vento agitava a ±>lhagem como se fosse um rio caudaloso. - Tenho de dar uma olhada no meu gato antes de ir para a cama - disse meu primo. - Os ventos fortes o deixam nervoso. Você quer vir? - Claro - respondi. - Então ande devagar e não fale nada, pois idos dormem. Passamos em silêncio pela sala, onde um lampião ainda iluminava os tapetes persas, e saímos pela porta do outro lado. A escuridão era quase total no corredor de pedra, porém percebi uma lamparina de cocheira presa a um gancho no teto. Meu primo retirou a lamparina do gancho e a acendeu. Não vi a grade na passagem, e deduzi que a fera estava em sua jaula menor. 85

- Entre - disse meu primo abrindo a porta. Um rosnado profundo nos recebeu, indicanÔD que o vendaval havia excitado o felino, confornr Everard previra. À luz tremida da lamparina, vimos uma forma preta musculosa enroscada no canto de sua toca, lançando uma sombra atarracada e singular sobre a parede caiada. Seu rabo se mexia raivosamente sobre a palha. - Pobre Tommy! Ele não está nos seus melhores dias - disse Everard ao tempo em que erguia a lamparina para observá-lo melhor. - Ele não se parece com um demónio preto? Vou ter de arranjar uma ceia para o bichano, senão ele v ã passar a noite irrequieto. Você se importa de segurar a lamparina um instante? Peguei a lamparina de sua mão e ele se encaminhou para a porta. - A carne dele está ah fora. Com licença, primo. Eu já volto. Everard saiu e a porta se fechou com um estalido metálico atrás dele. O som frio e seco fez meu coração bater mais forte. Uma onda súbita de terror me invadiu. ideia" vaga de que uma traição monstruosa estaria em curso paralisou meus sentidos momentaneamente. Pulei para a porta, mas não havia maçaneta pelo lado de dentro. - Ei! Eu quero sair! Everard! 86

- Calma, calma! Não faça escândalo! - disse meu anfitrião, cuja voz vinha do corredor. - Você está com a lamparina, ou não está? - Estou, mas não quero ficar trancado aqui sozinho. - Não? - Ouvi sua gargalhada, sonora, diverbda. - Você não vai ficar só por muito tempo. - Solte-me, primo! - repeti com raiva. - Não gosto nem um pouco desta brincadeira sem senado. - Sem sentido? Você não sabe o que está dizendo - cortou-me ele com outra gargalhada hedionda. Foi quando, em meio ao rugir da tormenta, ouvi o guincho da alavanca girando e o arrastar da grade que passava pela fenda. Bom Deus, ele estava soltando o gato brasileiro! À luz da lamparina, vi as barras metálicas deslizarem lentamente defronte a mim. No canto mais afastado, a abertura já chegava a um pé. Gritando, descontrolado, agarrei a última barra com as mãos puxando-a feito louco. Eu estava louco de raiva e medo! Durante um minuto, pelo menos, consegui impedir que a grade se abrisse. Eu sabia que ele usava de toda a força na alavanca, e que eu acabaria vencido. Mas vendi caro cada palmo de chão; meus pés se arrastavam na pedra e eu não parava de implorar e rezar para 87

que aquele monstro inumano me poupasse ZÍ morte horrível. Lembrei o nosso parentesco. Gntei que era seu convidado. Supliquei que me dissesse o mal que lhe causara. Suas únicas respostas eram os puxões e golpes na alavanca; e a cada golpe, a cada puxão, apesar de toda a minha lua outra barra atravessava a fenda. Preso à grade, fã carregado de um lado a outro da jaula até que. afinal, com os pulsos doloridos e os dedos raiados, desisti da guerra perdida. A grade se fecho* com um barulho metálico que ainda ecoe . quando, segundos depois, ouvi o roçar das sandálias turcas que se afastavam pelo corredor e, por último, o bater de uma porta distante. Depois, sõ o silêncio. Durante todo esse tempo, a fera não se movo4 ra. Ela continuava quieta no canto, e sua cauda parara de balançar. Aparentemente, a surpresa causada por aquele estranho agarrado às suas grades e arrastado aos berros por toda a extensão da jaula a assustara. Vi seus grandes olhos brilhantes me encarandofirmes.Eu havia deixado a lamparina cair na hora em que me agarrei às grade; porém ela continuava acesa sobre o chão, e resoH vi que seria melhor apanhá-la na ilusão de que a luz me protegeria. Mas, no instante em que me mexi, o gato soltou um rosnado profundo e ameaçador. O gato... o gato - se é que criatura tão 88

pavorosa merece o nome de um animal tão meigo — não estava a mais de dez pés de distância. Seus oihos fulguravam como dois discos de fósforos na escuridão. Ao mesmo tempo em que me atemori: - am, eles me enchiam de fascínio. Eu não conseguia desviar os meus olhos dos dele. Nesses momentos dramáticos, a natureza gosta de nos pregar as peças mais estranhas; aqueles fachos iremeluzentes pareciam acender-se e apagar-se aum ritmo constante. Por vezes eles me davam a impressão de serem pontos minúsculos de extreaao brilho, pequenas centelhas elétricas na escuridão negra, para em seguida crescerem e cresceaan até que todo aquele canto da jaula transbordava com sua luz fugidia e sinistra. Mas, de súbito, eles se apagaram completamente. O monstro fechara os olhos. Não sei se existe alguma verdade na velha crença de que o olhar •omano domina as feras selvagens, ou se simplesmente o enorme felino estava sonolento, mas o fato é que, longe de demonstrar qualquer intenção de ataque, ele se limitou a repousar sua cabe: i lisa e preta sobre as grossas patas dianteiras e aae deu a impressão de que dormia. Fiquei ali, inovei, com medo de sair do lugar e, com isso, despertá-lo novamente à vida e ao instinto mortal. Mas pelo menos agora eu já conseguia pensar com mais clareza, pois aqueles olhos funestos 89

haviam libertado os meus. Ali estava eu, encarca rado por toda a noite junto da fera atroz. Mm próprios instintos, para não falar nas palavras m vilão descarado que me armara esta arapu. a I advertiram de que o animal era tão pérfido qcm to o seu dono. Como sobreviver até a manhã porta não oferecia esperanças, assim como a janelas estreitas e engradadas. Não existia a mái ma proteção naquela jaula vazia com seu chão a pedras. Gritar por socorro seria inútil. A jaéj ficava do lado de fora, e o corredor que a ligava! casa tinha cem pés de comprimento ou mas Além disso, com a ventania e a chuva, difici mente meus gritos seriam ouvidos. Restava ai nha coragem e minha inteligência para enfreai o gato brasileiro. Foi aí que, invadido por nova onda de pava meus olhos bateram na lamparina. O pavio j estava quase no fim, e a luz começava a vacilai Em dez minutos, ela se apagaria. Portanto. I tinha dez minutos, apenas, para fazer algual coisa, pois sentia que se fosse deixado a sós -» escuro com a fera má não teria meios de a defender. A simples possibilidade de ficar indeia so me entorpecia. Corri um olhar desesperai pela minha câmara da morte até que eles esbarrs ram num ponto que parecia prometer, se na 90

Eurança, quem sabe um perigo menos imediato minente que o chão desprotegido. A jaula tinha uma espécie de gradil no teto, nelhante à grade que lhe servia de porta, e o idil continuava no lugar mesmo depois que a ide era puxada pela abertura da parede. Ele era so de barras metálicas dispostas a intervalos de íumas polegadas, com uma tela de arame firme r trás, apoiando-se numa viga forte de cada to. O teto parecia uma grande cúpula interditasobre a figura adormecida no canto do chão. espaço entre essa plataforma de ferro e o teto opriamente dito seria de dois a três pés. Se conguisse chegar lá e me comprimir entre as barras o teto, só um lado do meu corpo ficaria vulneel. Eu estaria seguro por baixo, pelas costas, a esquerda e pela direita. O gato só poderia e atacar pela entrada da plataforma. Por ali, felizmente, minha proteção era nenhuma. Mas, lo menos, eu ficaria fora de seu caminho quan• ele começasse a caminhar pela toca. Somente dando, como eu pretendia fazer, o animal tinha issibilidades de me atingir. Era agora ou nunca, ds quando as luzes se apagassem eu estaria perdo. Com um nó na garganta eu saltei, segurei barras de ferro do gradil e, sentindo já. falta de . arremessei o corpo para cima da plataforma, onsegui me esgueirar entre ela e o teto de rosto 91

para baixo, e do meu lugar via de frente os olhai terríveis e a bocarra escancarada da fera. Sea hálito fedorento batia em meu rosto como o vapor de uma panela azeda. Entretanto, o gato me dava a impressão às estar mais curioso do que irritado. Curvando sca longo dorso preto e Uso ele se levantou, se esãj cou e, jogando o peso do corpo sobre as parai traseiras, encostou uma das patas dianteiras soba: a parede, ergueu a outra, arranhando com as garras afiadas a tela de arame debaixo de mim. Uma de suas unhas brancas, feito faca, rasgou minhas calças - eu ainda vestia o meu smoking, com convém a visitas ilustres - e abriu um talho os meu joelho. Não era, ainda, o ataque; apenas uma experiência. Meu grito agudo de dor o assuste ele preferiu descer para caminhar agitado pe toca inteira, olhando de vez em quando na minha direção. De minha parte, encolhi-me todo para trás até que fiquei imprensado com as costas na parede, ocupando o menor espaço possível. Quanto mais eu entrasse, mais dificuldades ele teria para me alcançar. Agora que resolvera se movimentar pela jaula, o gato dava mostras de maior agitação. E corria ágil e silencioso pelos quatro cantos pa> sando a todo momento por baixo da minha prc.c ção de ferro e arame. Era maravilhoso observar

aquele vulto imenso de sombra que andava sem produzir ruído algum com suas patas aveludadas. A lamparina já minguava; sua chama só me percutia entrever a criatura. E então, com um facho derradeiro, ela morreu de vez. Eu fiquei no escuro, eu e a fera na solidão da noite. Quando se enfrenta o perigo, é bom saber que tudo quanto é possível é feito. Resta, portanto, aguardar tranquilamente os resultados. No meu caso, não havia a mínima esperança de abrigo, exceto onde eu me instalara. Estiquei o corpo e deitei-me sem barulho, prendendo a respiração e esperando que o monstro se esquecesse de mim se não o lembrasse da minha presença. Calculei que deveriam ser duas horas. Às quatro, começaria a clarear. Tínhamos apenas cento e vinte minutos de escuridão. Lá fora, a chuva e o vento continuavam batendo em rajadas contra as janelas pequenas. Ah dentro, o ar fétido e viciado me provocava náuseas. Eu não via nem ouvia o gato. Tentei pensar em outras coisas, porém só uma era insistente a ponto de atrair a minha atenção: a vilania do meu primo, sua hipocrisia sem igual, seu ódio maligno. Debaixo daquele rosto alegre, se ocultava o espírito de um assassino medieval. Quanto mais eu pensava mais percebia a astúcia com que tudo fora planejado. Aparentemente, ele se deitara

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93

com o resto da casa. Havia inclusive testemunhas. Mas depois, sem que ninguém percebei; ele saíra do quarto sorrateiro, atraíra-me para 2 toca e me abandonara à sorte. Sua história seria simples. Ele me vira pela última vez no salão de bilhar, fumando o último charuto. Eu teria descido por conta própria para dar uma olhada no gato. Lá chegando, sem perceber que a jaula menor estava aberta, eu entrara e fora pego. De que maneira imputar a ele o crime hediondo? Suspeitas, talvez; provas, jamais! Como passaram lentas aquelas duas horas terríveis! Eu ouvia, de quando em vez, um som abafado e áspero que interpretei como se a criatura estivesse lambendo seu próprio pêlo. Diversa vezes aqueles olhos esverdeados brilharam na minha direção sem nunca se fixarem, e cada minuto reforçava a esperança de que eu fosse esquecido ou ignorado. Afinal surgiram os primeiros raios de luz pelas janelinhas; em princíp: elas pareciam dois quadrados cinzas na parede negra, mas depois o cinza virou branco e pude ver, de novo, meu atroz companheiro. Infelizmente, ele me via também. Não tive a menor dúvida de que ele se mostrava muito mais ameaçador e agressivo do que antes. O frio da manhã o irritara, e ele devia estar com fome. Rosnando sem parar, ele andava de 94

parede a parede no lado oposto ao do meu refúgio, bigodes eriçados, cauda agitada. Sempre que virava para mudar de direção, seus olhos selvagens se voltavam para cima e me transmitiam uma mensagem de perigo. Eu sabia que sua intenção era me matar, mas estranhamente admirava a graça sinuosa daquele animal demoníaco, seus movimentos flexíveis, fluidos, ondulados, o brilho de suas lindas costas, o vermelho-vivo e palpitante da língua cintilante que pendia do focinho negro como azeviche. E a cada momento o rosnado profundo, malévolo, aumentava de intensidade num crescendo ininterrupto. Compreendi que o momento decisivo não tardaria. Que hora triste para morrer: tão fria, tão desconfortável, eu tremendo com minhas roupas finas sobre aquela grade de tormentas onde buscara proteção! Tentei agarrar-me a ela pensando que talvez assim minha alma se elevasse e, ao mesmo tempo, com a lucidez dos desesperados, tornei a olhar em volta buscando algum meio de fuga. Uma coisa ficou clara. Se a grade da frente da jaula voltasse à sua posição, eu estaria seguro atrás dela. Mas eu conseguiria puxar a grade? Mal tinha coragem de me mexer: e se a criatura resolvesse me atacar? Lentamente, muito lentamente, estiquei o braço até pegar a primeira barra da grade, que saía um pouco da fenda na parede. 95

Para surpresa minha, ela se mexeu no trilhe maior dificuldade estava em puxar a grade toda ao mesmo tempo em que dependia dela para a i equilibrar. Tentei outra vez, e três polegadas de ferro entraram na jaula. Acho que a grade corna sobre rodas, de tão leve. Puxei de novo... e o gas> resolveu agir! Foi tudo rápido, súbito, que nem cheguei . ver. Apenas ouvi o rosnado selvagem e, menos de um segundo depois, os olhos amarelos faiscantes, a cabeça preta achatada com sua língua vermelha e seus dentes de marfim surgiram à minha frente. O impacto do felino sacudiu a plataforma onde eu me encontrava; pensei, mesmo (se é que consegui pensar em alguma coisa naqueles momentos), que o gradil ia ruir. O gato se balançou na abertura, com a cabeça e as patas dianteiras bem perto de mim e as patas traseiras balançando no ar à procura de um apoio na borda do gradil. Ouvi o guincho arranhado de suas garras na tela de arame, e a respiração da fera me deu náuseas. Mas o bote havia sido mal calculado. Ela não conseguiu se manter presa à plataforma e, pouco a pouco, mostrando os dentes com raiva, golpeando feito louca as barras de ferro, virou de costas e caiu pesadamente sobre o chão. Mas, no mesmo movimento, ela se pôs de pé e preparou o segundo ataque. 98

Eu tinha plena consciência de que os próximos aainutos decidiriam o meu destino. A criatura aprendera com o erro. Agora não haveria mais engano. Era preciso agir depressa e sem medo, sob pena de não continuar vivo. O plano se deseahou na minha cabeça instantaneamente. Arranouei o paletó e o atirei sobre a cabeça da fera. : em perder tempo, saltei para o chão, agarrei a grade e, alucinado, comecei a puxá-la da parede. Não esperava que saísse com tanta facilidade. Corri de um lado a outro da jaula trazendo-a com a aaão; mas, na pressa, acabei me colocando do lado de dentro. Em outras circunstâncias, eu teria escapado sem nenhum arranhão. Vi-me obrigado a •arar e, em seguida, tentei fugir pela abertura que lestava entre a grade e a parede. Aquela pausa bastou para que o animal se desvencilhasse do paletó que cobria seus olhos e me perseguisse. Atirei-me pela passagem batendo os ferros atrás de mim, porém o gato se agarrou à minha perna sem que eu tivesse tempo de atravessar de vez. A sua patada imensa rasgou a minha barriga da perna como se fosse uma plaina raspando madeira. No momento seguinte, sangrando e quase desmaiado, eu me vi i obre a palha fedorenta com aquela grade salvadora a me separar do monstro que se arremessava enfurecido contra as suas barras. 97

Ferido demais para andar, fraco demais paa. ter consciência do medo, restou-me ficar ah. n a » morto que vivo, olhando sem entender. O gaa comprimia o peito musculoso contra a estendia as patas curvas em minha direção, cosa» eu já tinha visto um gatinho doméstico fazer ; a te de uma ratoeira. Suas garras cortavam m-rna roupa mas, com todo o esforço, ele não conseguia me atingir. Eu já ouvira falar no efeito errs*pecente provocado pelas feridas dos grandes nívoros e, de agora em diante, teria de enfresálo: todas as sensações físicas começavam a d e » parecer, com a personalidade se desmanchara : cedendo lugar a um distanciamento estranhe, a um interesse pelo fracasso ou sucesso do gaa como se aquilo nada tivesse que ver comigo E, gradualmente, meu cérebro se perdeu em sono» vagos, incompreensíveis, nos quais o rosto presa e a língua vermelha apareciam vez por outra ae que eu me entregasse a um nirvana delirante, a alívio abençoado de todos aqueles que enfrentam um desafio além das suas forças. Depois que tudo terminou, concluí que de-sn ter ficado quase duas horas sem sentidos. O am me despertou outra vez foi o mesmo estabáa metálico que antecedera à minha prisão. Alguáa mexia no fecho de mola. Antes que meus sexatdos se acendessem para entender o que se passa98

T3. percebi o rosto redondo e benevolente do meu primo espiando pela porta aberta. A visão deve ar sido perturbadora para ele: ali estava o seu «limai predileto com cara de poucos amigos. Eu, anda vivo, deitado de costas no chão em mangas de camisa, com as calças despedaçadas, envolto por uma grande poça de sangue, tinha a me pror:er do bicho a grade da jaula. Ainda hoje guardo na lembrança o seu rosto atónito, banhado pelo sol da manhã. Incrédulo, ele olhava e olhava para mim até que, vencendo o espanto, entrou na jaula, fechou a porta e veio confirmar se eu havia mesmo escapado. Não posso garantir que, a partir de agora, meu aelato corresponda à verdade dos fatos. Meu estado físico e mental me impediu de testemunhar . nsciente o que aconteceu. Só sei que, de repensa, ele se afastou de mim e se dirigiu ao animal. - Tommy, meu velho! Tommy, meu velho! gritava. Everard se acercou das grades, sempre de cosas para mim. - Sua fera estúpida! - vociferou. - Deite-se; jL deitado! Você não conhece mais o seu dono? Subitamente, em meu cérebro confuso e adormecido, brotaram as palavras de Everard em noss primeira visita ao bicho: o gosto de sangue transformaria seii gato num monstro assassino. Meu 99

sangue lhe dera o gosto, e agora ele, o pró dono, pagaria por isso. - Saia! Saia! - berrou. - Fora, animal dos dm] bos! Baldwin! Baldwin! Oh, meu Deus! Ouvi-o cair, levantar-se, tomar a cair; em meai ouvidos ficou um som que me lembrava o áa sacos de farinha sendo rasgados. Os gritos àm meu primo tornaram-se cada vez mais débeis an que foram sufocados pelo uivo apavorante da fcJ ra. Eu pensei que ele já estava morto, mas corna num pesadelo ainda vi sua figura destroçada] cega, encharcada de sangue correndo enlouqueci] da pela jaula - não me lembro de mais nada poaa tomei a desmaiar. Minha recuperação demorou vários meses: aa realidade, não posso dizer que esteja complea-f mente recuperado, pois até o fim dos meus daaj carregarei uma muleta como recordação da noaej passada com o gato brasileiro. Baldwin, o cavalariço, e os outros criados não entenderam o qaa havia acontecido quando, atraídos pela gritar» agônica do patrão, acorreram à jaula e me viram dentro dela; do outro lado da grade entreaberta, aj felino brincava com os restos - ou com o aaa eles depois constataram serem os restos - do nal mem que o criara. Com ferros quentes eles a » gentaram o bicho para detrás da grade e, atracai de um furo aberto na porta principal, o abateram! 100

a tiros. Só então os criados se aventuraram a enaar na jaula para, enfim, me tirar dali. Fui levado ao quarto e lá, sob o teto do meu quase assassiao, permaneci entre a vida e a morte durante semanas. Chegaram um médico de Clipton e ama enfermeira de Londres chamados não sei por quem. Um mês e pouco depois, minha saúde permitiu que fosse transportado à estação ferroviária e de lá outra vez para Grosvenor Mansions. Ficou-me uma lembrança do período de convalescença que, não estivesse tão fixa em minha memória, eu consideraria apenas parte do panorama instável que desfilou pelo meu cérebro em delírio. Certa noite, quando a enfermeira estava ausente, a porta do meu quarto se abriu e uma mulher alta, no luto mais negro, entrou, sorrateira. Ela veio em minha direção e, ao aproximar o rosto magro da minha cabeceira, mal iluminada por uma lamparina, gravou em forma de sonho a sua identidade: era a mulher brasileira com quem meu primo se casara. Custei um pouco a entender a expressão doce e amiga dos seus olhos, que me : rservavam atentos. - Você está acordado? Balancei a cabeça fracamente - eu ainda estava muito debilitado. 101

- Eu só vim dizer que a culpa foi sua. Eu fiz r possível para que você percebesse. Desde o primeiro dia, tentei mandá-lo embora da casa. Recorri a tudo, menos à traição do meu marido, p^a que você se salvasse. Eu sabia os motivos ã: convite. Eu sabia que ele nunca perrnitiria o sei retorno para Londres. Ninguém conheceu Everard tão bem quanto eu; ninguém sofreu tansc com ele quanto eu. Faltou coragem para que SL contasse tudo a você. Mas fiz o possível. E você retribuiu. Você foi o meu melhor amigo. Você nat libertou, e eu... eu... a única esperança era a morte de Everard. Sinto muito que tenha-se machucado. Eu não tive culpa. Eu o chamei de imbed você estava agindo como se fosse! Ela saiu do quarto tão leve quanto ha-:. entrado. Uma mulher amarga, única. O destine não quis que nos encontrássemos outra vez. Coo. o que recebeu do espólio do marido ela retomec à sua terra natal e ouvi falar, tempos depois, que entrara para um convento em Pernambuco. Passei um bom tempo retido em casa por ordem médica, mas chegou o dia da alta. A pei pectiva de enfrentar o mundo outra vez me ale» morizava. Eu temia que o atestado médico fosse o sinal de partida para uma corrida de credores i minha procura. Summers, meu advogado, nãc tardou a aparecer. 102

- Fico felicíssimo por vê-lo com saúde, Marshall. Há mais de um mês estou esperando para lhe dar os parabéns, meu Lorde. - Que história é esta, Summers? Não quero saber de brincadeiras agora. - Estou falando sério. Há seis semanas você é Lorde Southerton; os médicos temiam que a notícia retardasse a sua recuperação. Lorde Southerton! Um dos nobres mais ricos da Inglaterra! Eu não acreditava. Um pensamento me ocorreu, entretanto: contei as semanas e descobri uma coincidência no mínimo curiosa. - Quer dizer que Lorde Southerton morreu mais ou menos à mesma época da minha aventura? - No mesmo dia, para ser mais exato. Summers me encarava nos olhos. Fiquei convencido - meu advogado é um sujeito esperto de que ele conhecia toda a trama. A sua pausa me pareceu um pedido de confidências, porém eu nada teria a ganhar revelando um escândalo dentro da minha própria família. - Uma coincidência intrigante - prosseguiu ele com o mesmo olhar de quem tudo sabe. Sem dúvida, você estava informado de que seu primo Everard King era o segundo na relação dos herdeiros. Se você, em vez dele, tivesse sido devorado pelo tigre, ou sei lá o que, Lorde Southerton teria hoje um nome diferente. 103

- Compreendo. - Contudo você não imagina o interesse de Everard pelo tio - acrescentou Summers, irônicr. - Descobri quase por acaso que o criado de quarto de Lorde Southerton fora comprado por ele e enviava telegramas a Greylands Park de duas en duas horas, mais ou menos, para mantê-lo a pada saúde do velho. Alguns devem ter chegaér enquanto você corria da fera. Não é estranho caseie se preocupasse tanto assim com o tio quando o herdeiro direto era outro? - Muito estranho, Summers. E que tal trazer as minhas contas e um talão de cheques novinh Precisamos colocar a minha vida em ordem.

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DE PROFUNDIS

os oceanos forem os ligamentos que Enquanto unem o grande e largo Império Britânico, en-

laianto isso haverá um toque de romance em nossas lentas e velhas mentes frísias. Pois a alma é embalada pelas águas, assim como as águas o são bela lua, e quando as grandes vias de um Império c traçam por estradas como essas, tão cheias de ptranhos sons e estranhas paisagens, com o peribo correndo ao lado feito cerca-viva de ambos os bdos do caminho, só os cérebros por demais opa: s não levam consigo algum sinal da passagem. E agora a Grã-Bretanha vai muito além de si sma, pois na verdade o limite de três milhas cada plataforma continental é a sua fronteira, [conseguida a martelo, a fio e enxada, em vez das ates da guerra. Pois está escrito na história que bem um rei, com seu poder, nem um exército, :m seus estandartes, podem barrar o trajeto do IOS

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