Luís de Camões

OS LUSÍADAS Análise da Obra

Ivan Prado Teixeira

Retrato emblemático de Luís Vaz de Camões

INES DE CASTRO Comentário Forma Literária Como todo poeta clássico, antes de escrever, Camões estudava o efeito que pretendia provocar nos

leitores. Dentre os efeitos almejados no episódio de Inês de Castro, talvez os mais relevantes sejam os de piedade e terror. Por isso, o poeta escolheu compor algo próximo do epicédio ou elegia, modalidade clássica de poema em que se lamenta a morte de pessoa querida. Conforme os clássicos, elegia é todo poema que pode ser resumido pela expressão ai de mim!. Nesse sentido, o episódio do Gigante Adamastor aproxima-se também do poema elegíaco, uma das principais modalidades da expressão lírica na tradição clássica, pois boa parte de sua narrativa confunde-se com um lamento. Os leitores do epicédio de Inês de Castro, o qual não perde a organicidade de episódio de um poema maior, se compadecem das tristezas de Inês, porque todos sabem que ela se uniu ao príncipe D. Pedro por causa do amor e em busca da felicidade. Mas foi surpreendida pela dor, pela ira, pelo abandono e, finalmente, pela morte. Isso tudo provoca piedade e terror. A piedade confunde-se com a compaixão; o terror decorre do medo, pois ninguém está livre de contratempos semelhantes aos de Inês. Tanto a piedade quanto o terror são paixões, a que os clássicos também chamavam afetos. Ao lado da piedade e do terror, associados ao destino de Inês e de Pedro, Camões explora afetos paralelos, como a indignação e o ódio, associados a D. Afonso IV e a seus conselheiros. De fato, conforme os cálculos do poeta, o leitor deveria sentir misericórdia pelos amantes e indignação pelas pessoas que inviabilizaram a continuidade do amor entre eles. Todavia, a indignação não recai diretamente sobre o rei, poupado pelo poeta, que soube desviar a indignação do leitor unicamente para os conselheiros, visto que o soberano se compadeceu do destino da nora, pois, “movido das palavras que o magoam”, quis perdoar Inês. Só não o conseguiu por estar sujeito às leis do Estado. Logo, o próprio rei acaba por receber a simpatia do leitor, sendo visto também como uma espécie de vítima de suas obrigações de soberano.

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Fundamento Histórico O episódio de Inês de Castro pertence ao resumo poético do reinado de D. Afonso IV, que se inicia na estrofe 98 e vai até a estrofe 135 do canto terceiro de Os Lusíadas. O reinado de Afonso IV foi marcado por duas grandes guerras e por uma tragédia familiar. A tragédia decorre da morte imposta pelo rei à própria nora, Inês de Castro, cuja infelicidade é recriada no episódio camoniano.

Primeira Edição de Os Lusíadas

A guerra mais importante do reinado de Afonso IV passou para a história com o nome de Batalha do Salado, descrita com detalhes por Camões nas estrofes 107-117 de Os Lusíadas. Deu-se entre uma aliança cristã da Península Ibérica e uma coligação árabe, organizada com o propósito de invadir e conquistar as terras cristãs, as quais já haviam sido dominadas alguns séculos antes. A Batalha do Salado desferiu-se no dia 28 de outubro de 1340, nos campos de Tarifa, cidade da Andaluzia, no Estreito de Gibraltar, às margens do rio Salado. De um lado estavam Afonso XI, de Castela, e Afonso IV, de Portugal; de outro, Halibocem Miralmolim, rei de Marrocos, e Abenhamet, rei de Granada. Os primeiros representavam as forças cristãs da Península Ibérica; os segundos, as forças islâmicas da África, sempre prontas para dominar o território cristão. O exército muçulmano era infinitamente maior que o cristão. Mesmo assim, os cristão venceram. Em rigor, o ataque árabe dirigiu-se contra Castela, cuja destruição era iminente, em virtude da força do invasor. Por isso, o rei castelhano não se acanhou em pedir apoio ao sogro português, cristão como ele. Note-se que D. Maria, filha de Afonso IV de Portugal era casada

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com Afonso XI de Castela. Portugal sempre esteve em guerra contra Castela, mas ambos os países se uniam toda vez que o perigo árabe se aproximava. Depois da Batalha do Salado é que se deu a tragédia de Inês de Castro, ainda no reinado de Afonso IV. O episódio foi recriado por Camões nas estrofes 118-135 do canto terceiro de Os Lusíadas.

A História de Inês Veja-se em resumo o perfil dessa tragédia. Dentre as damas que D. Constança trouxera consigo para a corte portuguesa, uma se chamava Inês de Castro, tão notável pela beleza quanto pela origem. Era descendente, por via bastarda, de Sancho IV, rei de Castela. O infante D. Pedro apaixonou-se perdidamente por Inês, montou palácio para ela em Coimbra e lá passou a desfrutar as horas mais felizes de sua juventude. Nesse palácio é que foram criados os três filhos que o príncipe teve com ela: D. João, D. Dinis e Dona Brites. Após a morte da rainha Constança, diz a história que D. Pedro se casou secretamente com Inês, tendo por testemunha pessoas que mais tarde ocupariam cargos importantes em seu reinado. Quanto mais crescia o amor do casal, tanto mais inquietos ficavam alguns membros da nobreza lusitana. De fato, em pouco tempo, criou-se um partido desfavorável ao crescimento do poder de Inês de Castro. Temia-se que, morto Afonso IV, o príncipe herdeiro a elevasse à condição de rainha de Portugal. Esse temor era tanto maior quanto mais se fundava a hipótese de que, quando subisse ao trono, Inês passasse a favorecer as pessoas de sua família, pertencente à nobreza galega, em desfavor da fidalguia lusitana. Diante disso, tornava-se cada vez mais consistente o partido favorável à morte da amada do príncipe D. Pedro. Os nobres que mais se destacaram no processo de sua morte foram: Pero Coelho, Diogo Lopes Pacheco e Álvaro Gonçalves. Segundo o relato camoniano, o rei teria recusado a idéia do assassinato, mas acabou consentindo, por causa da insistência dos conselheiros. Inês foi sacrificada no Mosteiro de Santa Clara, em Coimbra, em 1355. Logo depois que o príncipe D. Pedro tomou conhecimento do assassinato da esposa, que teria sido degolada com o consentimento do próprio sogro, estabeleceu-se uma guerra civil em Portugal. O príncipe buscou apoio em dois irmãos de Inês, D. Álvaro e D. Fernando de Castro, iniciando imediatamente as hostilidades contra o pai. Os desentendimentos duraram cerca de seis meses, até que o próprio rei se viu obrigado a pedir as pazes com o filho. D. Afonso IV morreu em 1357 e, nesse mesmo ano, o príncipe Pedro tornou-se o oitavo rei de Portugal. Uma de suas primeiras atitudes como monarca foi vingar-se dos conselheiros do pai, então foragidos em terras castelhanas. Para poder apanhá-los, entrou em acordo com o rei de Castela, também chamado Pedro. Dos três, conseguiu capturar dois: Pero Coelho e Diogo

Lopes Pacheco, aos quais mandou retirar o coração em praça pública, em espetáculo que atraiu enorme multidão.

Idealização da morte de Inês de Castro a partir do episódio camoniano.

Interferência de Amor Camões não inclui em seus versos tantos pormenores políticos. Limita-se ao esboço geral da história, sublinhando a paixão dos amantes, a proibição do Estado e a vingança do amante contrariado. Dá como causa essencial da tragédia a “força crua” do Amor, afeto humano personificado na divindade grega e romana Eros / Cupido e por isso alegoricamente grafado com inicial maiúscula, conforme se pode ver pela estrofe 119 do canto terceiro, a segunda do episódio e uma das mais célebres de todo o poema de Camões: Tu, só tu, puro Amor, com força crua, Que os corações humanos tanto obriga, Deste causa à molesta morte sua, Como se fora pérfida inimiga. Se dizem, fero Amor, que a sede tua Nem com lágrimas tristes se mitiga, É porque queres, áspero e tirano, Tuas aras banhar em sangue humano. Pelo pensamento da estrofe, esse deus não se contenta com o tributo das lágrimas dos amantes, pois exige deles o próprio sangue. Aí, fica claro que a Camões não interessa explorar as razões políticas do assassinato de Inês, preferindo apresentá-la como vítima do Amor.

Retomando o episódio de Camões: após a morte de Inês, D. Pedro ordenou que seu corpo fosse transladado de Coimbra para o Mosteiro de Alcobaça em Lisboa, em pomposa procissão. Antes do sepultamento, teria coroado o cadáver de Inês, exigindo que a nobreza lhe beijasse a mão e a aclamasse rainha de Portugal. Essa é a versão idealizada do final de Inês, que fundamenta o desfecho do episódio de Camões. Todavia, o discurso histórico limita-se a afirmar que houve apenas o sepultamento de Inês como rainha, o que enfim se acha documentado pela escultura do sepulcro, em cuja tampa, ornada com inúmeros detalhes em baixo-relevo, se vê ainda hoje a figura angelical de Inês com a coroa de rainha. Trata-se de uma das mais elaboradas peças da escultura gótica em Portugal. D. Pedro I teve o cuidado de mandar executar um túmulo igual para si, com o propósito de que fosse sepultado ao lado de Inês, o que de fato ocorreu em 1367. Em seguida, ascendeu D. Fernando, o último rei da dinastia de Borgonha, pois sua filha Beatriz não teve acesso ao trono, em virtude da Revolução de Avis, levada a efeito em 1385 pelo príncipe D. João, o Mestre de Avis. Este era outro filho bastardo de D. Pedro I, com uma nobre chamada Teresa Lourenço. O reinado de D. Fernando e a Revolução de Avis, com a famosa Batalha de Aljubarrota, vêm narrados no canto quarto de Os Lusíadas, em seqüência ao resumo da história de Portugal feito por Vasco da Gama ao Rei de Melinde.

Estrutura Mista: Modo Apostrófico e Modo Narrativo Do ponto de vista literário, o episódio de Inês de Castro não possui estrutura narrativa linear, como se percebe, por exemplo, na estória do Gigante Adamastor. Ao contrário, é constituído pela alternância entre a narrativa em terceira pessoa e o tom apostrófico em segunda pessoa. A primeira estrofe do episódio (III, 118) reveste-se de um tom narrativo bem caracterizado, em que uma voz impessoal apresenta os acontecimentos linearmente. A segunda, configurase como apóstrofe do narrador (Vasco da Gama) ao Amor, alegorizado em Cupido ou Eros, conforme se viu acima. A terceira e a quarta estrofes convertemse em apóstrofes do mesmo narrador à Inês, figurada em sua juventude pelos campos de Coimbra, junto ao rio Mondego, conversando com as flores e molhando os campos com as lágrimas que vertia por saudades de Pedro, sempre distante de seus olhos. Vivia ocupado com os negócios do reino em Lisboa, embora jamais a esquecesse também. A estrofe 122 do canto terceiro, a quinta do episódio, retoma o modo narrativo linear e retrata Pedro debatendo-se entre a necessidade, visto que Constança morrera jovem, de escolher outra esposa e o amor por Inês, com quem já se casara secretamente. A estrofe seguinte inicia-se conforme o modelo narrativo da anterior, mas termina em apóstrofe contra Afonso IV: tão heróico na luANGLO VESTIBULARES

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ta contra os árabes quanto covarde com a indefesa mulher do filho. Daí para frente, o episódio prossegue oscilando entre o modo narrativo linear em terceira pessoa e o tom de apóstrofe (em segunda pessoa), até incluir um traço de teatro, em que se idealiza a fala de Inês diante do sogro, momentos antes do sacrifício da morte. Este é o momento mais consagrado do episódio: apoiada no sentimento (afeto) de comiseração, a amante procura comover o sogro, tocando, na verdade, o leitor, que, a esta altura, encontra-se completamente envolvido pelos afetos encarnados na heroína. A fala de Inês a Afonso IV apresenta o seguinte argumento: se a história mítica dos povos demonstra que as feras sabem respeitar os humanos (pois Rômulo e Remo foram criados por uma loba; e Nino, por uma pomba), poupe minha vida e exila-me nos desertos gelados da Sibéria ou nos desertos quentes da África, para ver se, entre feras, eu encontro o apoio necessário para criar meus filhos. Se minha inocência não te comove, comova-te ao menos a piedade dos órfãos que deixarei.

O que é Apóstrofe? A esta altura, convém saber com clareza em que consiste uma apóstrofe literária. Trata-se de um vocativo grandioso, de um chamamento elevado, cujo propósito é comover o leitor, como se percebe na estrofe em causa: Bem puderas, ó Sol, da vista destes, Teus raios apartar aquele dia, Como da seva mesa de Tiestes, Quando os filhos por mão de Atreu comia! Vós, ó côncavos vales, que pudestes A voz extrema ouvir da boca fria, O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes, Por muito grande espaço repetistes! A apóstrofe consiste no desvio da seqüência narrativa e no apelo a elementos alheios ao que se vinha apresentando. Trata-se de uma quebra no rumo do discurso, espécie de digressão. Ao se dirigir, nesta estrofe, a elementos insensíveis às paixões humanas, o poeta amplifica a dor causada pela morte de Inês, demonstrando que até os elementos insensíveis a sentiram. A primeira foge da estória de Inês e compara o horror de sua morte com a dos filhos de Tiestes. A segunda procura incluir os vales ao pathos de sua morte, fazendo-os divulgá-la com um grito colossal a todo o reino da natureza. Seria mais esperado que as apóstrofes se dirigissem a pessoas ou a qualquer espécie de animal capaz de sofrer como o homem. Todavia, a apóstrofe, por tradição, torna-se mais emocionante quando envolve elementos inanimados. No caso específico desta, ao promover a prosopopéia ou personificação, o poeta inclui o sol e os vales na esfera semântica de sua estória, com o propósito de amplificar ainda mais os amores de

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Inês, fazendo com que o próprio céu e a terra (o cosmos, a natureza) partilhem de sua dor. Revisando o que ficou dito neste tópico: quanto à composição, o episódio de Inês de Castro baseia-se na alternância entre o modo narrativo linear e as apóstrofes do narrador. Essas interrupções possuem a função de comentar a história, sugerindo ao leitor o juízo adequado sobre ela. Na tragédia grega, o coro era responsável pelos comentários à ação do espetáculo. Por isso, pode-se dizer que as apóstrofes do narrador deste episódio guardam semelhanças com o coro da tragédia grega, pois também comentam e interpretam os incidentes contidos na peça. Observe-se ainda que o narrador propriamente dito do texto de Camões é Vasco da Gama, que vem contando a história de Portugal ao Rei de Melinde, desde o início do canto terceiro do poema e a terminará somente no final do canto quinto.

Tradição Literária Profundamente arraigada às tradições populares, a estória de Inês de Castro é o tema lírico de maior repercussão na literatura portuguesa, com alguns reflexos também no Brasil. O primeiro poeta a abordar poeticamente o assunto foi Garcia de Resende, em suas “Trovas à Morte de Inês de Castro”, publicadas no Cancioneiro Geral, em 1516. Depois, surge a tragédia Castro, de Antônio Ferreira, editada pela primeira vez em 1587, em seus Poemas Lusitanos. Embora publicada depois de Os Lusíadas, é provável que Camões conhecesse essa tragédia, pois foi escrita e encenada bem antes da publicação de seu poema. Camões aproxima-se mais da visão de Garcia de Resende, pois nele Inês também é apresentada como vítima da inexorabilidade do amor, enquanto que em Antônio Ferreira sua morte se dá por razões de Estado. Em outros períodos, há inúmeras retomadas do assunto na literatura portuguesa. No Brasil, a maior repercussão da tópica acha-se numa paródia do episódio camoniano, de autoria do poeta alagoano da segunda fase do Modernismo Jorge de Lima: tratase do canto nono (“Permanência de Inês”) de seu longo poema épico-lírico Invenção de Orfeu (1952), em que o poeta preserva o esquema estrófico da oitava-rima camoniana, em brilhante malabarismo de feição experimental e surrealista. Não se entenda aqui o vocábulo paródia no sentido de sátira ou de simples recriação irônica. Trata-se, antes, de homenagem à imortalidade do mito consolidado pela arte de Camões. Nesse caso, paródia possui o sentido de canto paralelo, pois se trata de variação em torno do mesmo tema, em que o poeta clássico é revisitado em estilo modernista. A leitura do texto de Jorge de Lima deixa clara a admiração deste com relação ao texto original. Como toda paródia, esta deve ser entendida como uma variante de intertextualidade, uma espécie de diálogo textual entre autores de gerações e propostas diferentes.

Episódio de Inês de Castro

Nos saudosos campos do Mondego20, De teus fermosos olhos nunca enxuito21, Aos montes ensinando e às ervinhas O nome que no peito escrito tinhas22.

TEXTO 118 Passada esta tão próspera vitória1, Tornado Afonso à lusitana terra, A se lograr da paz com tanta glória, Quanta soube ganhar na dura guerra, O caso triste e dino da memória2, Que do sepulcro os homens desenterra3, Aconteceu da mísera e mesquinha4, Que despois de ser morta foi rainha5.

121 Do teu Príncipe ali te respondiam23 As lembranças, que na alma lhe moravam, Que sempre ante seus24 olhos te traziam, Quando dos teus25 fermosos se apartavam; De noite, em doces sonhos que mentiam26, De dia, em pensamentos que voavam27; E quanto28 enfim cuidava29 e quanto via Eram tudo memórias30 de alegria.

119 Tu, só tu, puro Amor, com força crua6, Que os corações humanos tanto obriga7, Deste causa8 à molesta9 morte sua, Como se fora10 pérfida11 inimiga. Se dizem, fero12 Amor, que a sede tua Nem com lágrimas tristes se mitiga13, É porque queres, áspero14 e tirano, Tuas aras15 banhar em sangue humano. 120 Estavas, linda Inês, posta em sossego16, De teus anos colhendo doce fruito17, Naquele engano da alma, ledo e cego18, Que a fortuna19 não deixa durar muito;

122 De outras belas senhoras e princesas Os desejados tálamos enjeita31, Que32 tudo enfim, tu, puro amor, desprezas33, Quando um gesto34 suave te sujeita35. Vendo estas namoradas estranhezas36, O velho pai sisudo37, que respeita38 O murmurar do povo39 e a fantesia40 Do filho, que casar-se não queria, 20 21 22

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Alusão à Batalha do Salado, que se deu no dia 28 de outubro de 1340. A batalha deu-se em Tarifa, cidade da Andaluzia, no Estreito de Gibraltar, às margens do rio Salado. Logo depois desta vitória contra os árabes, tendo Afonso IV retornado a Portugal, deu-se o caso de Inês de Castro, que o poeta vai contar, em tom de lástima e revolta. Dino da memória: digno de fama, que deve ser preservado pela memória, mediante a poesia. A fama desenterra os homens do sepulcro, isto é, dá-lhes imortalidade. Mísera e mesquinha: pobre e infeliz. Que foi coroada como rainha depois de morta. A estrofe anterior revestia-se do modo narrativo. Esta iniciase por uma apóstrofe, dirigida ao Amor, entendido como entidade divina da mitologia greco-latina: Eros, Cupido. Aquela referia-se a uma terceira pessoa (a batalha, o caso de Inês); esta apela a uma segunda pessoa (Amor). Força crua: força cruel, dura, rígida. Esta apóstrofe possui caráter dissertativo, pois fala da natureza abstrata do sentimento amoroso. Subjuga. Motivo, origem. Funesta, triste, lutuosa, dolorosa, aflitiva. Fosse. Traiçoeira. Feroz. Abranda, alivia. Cruel. Altares. Posta em sossego: vivendo tranqüilamente. Esta estrofe inicia-se também por uma apóstrofe: agora, dirigida a Inês. Trata-se de uma apóstrofe com propriedades narrativas, pois, por meio dela apresenta-se a situação inicial do episódio. Doce fruto de teus anos: o prazer da juventude. Engano da alma, ledo e cego: enlevo alegre, envolvimento feliz, mas cego, porque não percebia a desgraça que viria. A seqüência alude a Cupido (Amor), sempre feliz e cego. Destino.

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Rio que corta Coimbra, onde morava Inês. Enxuto. O verso afirma que Inês chorava de saudades de Pedro. Chorava tanto, que inundava os campos do Mondego. Inês trazia o nome de Pedro escrito no coração. Suspirava tanto o nome do namorado, que as ervas e os montes o estavam aprendendo. Hipérbole e prosopopéia. Prossegue a apóstrofe dirigida a Inês. Do Príncipe. De Inês. Doces sonhos que mentiam: alegres sonhos mentirosos. Pensamentos que voavam: Pensamentos fugazes. Tudo quanto. Pensava, imaginava. Recordações dos momentos vividos ao lado do Príncipe. Os dois primeiros versos desta estrofe revestem-se de tom narrativo, referindo-se ao Príncipe D. Pedro. No terceiro, ressurge a apóstrofe, que domina também o quarto verso, novamente dirigida ao Amor. A ordem direta destes versos é: [o príncipe] enjeita os desejados tálamos de outras belas senhoras e princesas. Isto é: após a morte de D. Constança de Castela, foram oferecidas várias hipóteses de casamento ao Infante D. Pedro. Ele recusou todas, pois estava casado secretamente com D. Inês de Castro. Desejados tálamos: leitos cobiçados. Metonímia: as damas e princesas é que são cobiçadas. Porque. Nova apóstrofe dirigida ao Amor. Rosto, semblante. Domina. Retoma-se o modo narrativo em terceira pessoa. O texto refere-se, agora, a D. Afonso IV: o velho pai sisudo (do verso seguinte), que é sujeito do verbo ver, com que se inicia o período. Namoradas estranhezas: extravagâncias amorosas. Prudente, sério, carrancudo. Propriedade típica de um rei medieval. Leva em conta, considera. Afonso IV leva em conta o murmurar do povo e a fantasia do filho. Respeitar não possui, aqui, o sentido usual de ter respeito. Murmurar do povo: comentários adversos ao comportamento do príncipe. Fantasia, capricho, vontade irracional. Pela perspectiva do Estado e da opinião popular, o desejo do príncipe de não se casar com uma das damas escolhidas pela Corte era inconseqüente.

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126 “Se já nas brutas feras, cuja mente59 Natura60 fez cruel de nascimento, E nas aves agrestes61, que somente Nas rapinas aéreas62 têm o intento, Com pequenas crianças viu a gente63 Terem tão piadoso sentimento, Como co’ a mãe de Nino64 já mostraram E co’os irmãos que Roma edificaram65;

123 Tirar Inês ao mundo determina41, Por lhe tirar o filho, que tem preso42, Crendo co sangue só da morte indina43 Matar do firme amor o fogo aceso. Que furor consentiu que a espada fina44, Que pôde sustentar o grande peso Do furor45 mauro46, fosse alevantada Contra ua fraca dama47 delicada?

127 Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito66 (Se de humano é matar uma donzela67 Fraca e sem força68, só por ter sujeito69 O coração a quem soube vencê-la70), A estas criancinhas tem respeito71, Pois o não tens à morte escura dela72; Mova-te a piadade sua e minha73, Pois te não move a culpa que não tinha74.

124 Traziam-na os horríficos algozes48 Ante o Rei, já movido a piedade; Mas o povo49, com falsas e ferozes Razões50, à morte crua o persuade. Ela, com tristes e piedosas vozes, Saídas só da mágoa e saudade Do seu Príncipe e filhos, que deixava, Que mais que a própria morte a magoava51,

128 E se, vencendo a maura resistência75 A morte sabes76 dar com fogo e ferro,

125 Pera52 o céu cristalino alevantando53 Com lágrimas os olhos piadosos54, (Os olhos, porque as mãos lhe estava atando Um dos duros ministros rigorosos), E despois nos meninos atentando, Que tão queridos tinha e tão mimosos55, Cuja orfindade56 como mãe temia, Pera o avô cruel57 assi58 dizia:

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Continua nesta estrofe o período da anterior, mantendo-se, portanto, o tom narrativo em terceira pessoa. A ordem direta deste verso é: determina tirar Inês ao mundo. Isto é: Afonso IV manda tirar Inês do mundo; manda matá-la. Associado ao anterior, este verso apresenta trocadilho: tirar Inês ao mundo, por (porque) ela lhe tirou o filho, tendo-o preso (ele tornou-se prisioneiro do amor dela).

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Indigna.

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Inicia-se aqui nova apóstrofe, alusiva a Afonso IV, que soube vencer os mouros na Batalha do Salado, mas se mostra covarde contra Inês.

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Fúria guerreira, coragem bélica.

46 Mouro, árabe, islâmico, muçulmano. 47 Inês de Castro. 48

Carrascos. Retoma-se aqui o tom narrativo em terceira pessoa: os carrascos trouxeram Inês diante do Rei, que já se mostrava comovido e inclinado a livrar a nora da morte.

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Os ministros, que pretendiam sustentar a vontade do povo.

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Motivos.

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A dor da perda dos filhos e do marido a magoava mais do que a idéia da própria morte.

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Para.

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Erguendo.

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Piedosos, que inspiram compaixão.

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A quem tinha amor e mimos. Mimosos equivale a bem educados.

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Orfandade.

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D. Afonso IV, pai do Príncipe D. Pedro.

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Assim.

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Esta estrofe e as três seguintes apresentam a fala de Inês ao Rei Afonso IV, em discurso direto, como num teatro. Mente: instinto. Natureza. Selvagens, não domésticas. Rapinas aéreas têm o intento : [as aves agrestes] que só têm o intento nas rapinas aéreas. Intento: atenção, propósito, desejo. Rapina: ato ou efeito de rapinar; roubo violento; aqui, equivale a coisas que as aves roubam. Aérea: ao ar livre, aquilo que está exposto às aves de rapina. Ordem direta do verso: a gente viu com pequenas crianças. A gente viu: viu-se, foi visto. A mãe de Nino é Semíramis, lendária rainha da Assíria. Foi abandonada numa floresta para aí morrer, mas foi salva por pombas, que a alimentaram. Ordem direta: irmãos que edificaram Roma. Alusão a Rômulo e Remo, lendários fundadores de Roma, em 753 a. C. Expostos às margens do rio Tibre para morrerem, Rômulo e Remo teriam sido alimentados por uma loba. O gesto e o peito: o rosto e o coração. Inês de Castro. A personagem trata-se em terceira pessoa. Donzela está empregado no sentido de jovem da corte, membro da nobreza. Fraca e sem força: expressão pleonástica, pois fraca já implica ausência de força. Rendido, dominado, no sentido amoroso. A quem soube vencê-la: a perífrase refere-se ao Príncipe D. Pedro, que foi vencido pelo amor de Inês, mas que também a venceu. O amor de ambos foi recíproco. A estas criancinhas tem respeito: Atende tu a estas criancinhas. Tenha-as tu em consideração. Pois o não tens à morte escura dela: Pois não tens respeito (consideração) pela morte escura dela (= de Inês). Escura: triste. Mova-te a piadade sua e minha: tomara que piedade de meus filhos e a minha própria te movam (comovam). Piadade: piedade, compaixão. Pois te não move a culpa que não tinha: pois o fato de eu não ter culpa não te comove. Maura resistência: a pertinácia dos árabes. Alusão ao desempenho de Afonso IV na Batalha do Salado. Segunda pessoa do presente do indicativo.

Sabe77 também dar vida com clemência A quem pera perdê-la não fez erro. Mas, se to assi merece esta inocência78, Põem-me em perpétuo e mísero desterro, Na Cítia79 fria ou lá na Líbia80 ardente, Onde em lágrimas viva eternamente.

131 Qual contra a linda moça Policena97, Consolação extrema da mãe velha98, Porque a sombra de Aquiles a condena, Co ferro o duro Pirro se aparelha99; Mas ela, os olhos com que o ar serena (Bem como paciente e mansa ovelha) Na mísera mãe postos, que endoudece, Ao duro sacrifício se oferece:

129 Põe-me onde se use toda a feridade81, Antre82 leões e tigres; e verei Se neles achar posso a piadade Que antre peitos humanos83 não achei. Ali, co amor intrínseco84 e vontade85 Naquele por quem mouro86, criarei Estas relíquias suas87 que aqui viste88, Que refrigério89 sejam da mãe triste.”

132 Tais contra Inês os brutos matadores, No colo de alabastro100, que sustinha As obras com que Amor matou de amores Aquele que despois a fez rainha101, As espadas banhando102 e as brancas flores103 Que ela dos olhos seus regadas tinha104, Se encarniçavam105, férvidos106 e irosos107, No futuro castigo não cuidosos108.

130 Queria perdoar-lhe o Rei benino90, Movido das palavras que o magoam91, Mas o pertinaz povo92 e seu destino93 (Que desta sorte o quis94) lhe não perdoam. Arrancam das espadas de aço fino Os que por bom tal feito ali apregoam. Contra ua dama, ó peitos carniceiros, Feros95 vos amostrais e cavaleiros?!96

133 Bem puderas, ó Sol, da vista destes109, Teus raios apartar110 aquele dia, Como da seva mesa111 de Tiestes, Quando os filhos por mão de Atreu comia! 97

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Segunda pessoa do imperativo afirmativo. Dir-se-ia hoje: saiba (você). Mas, se to assi merece esta inocência: Mas se esta inocência assim to merece. To merece: merece isso, o fato de o rei poder dar vida com clemência. Inocência: Inês e os filhos. Nome antigo com que se designavam as regiões polares do norte da Europa e da Ásia. Nome antigo com que se designava o norte da África, então imaginado como lugar inóspito e habitado por animais ferozes. Ferocidade, atributo de feras. Entre. Peitos humanos: corações humanos, seres humanos. Interno, íntimo, profundo. Benquerença, desejo. Morro. Inês afirma que, mesmo no exílio, jamais esquecerá aquele por quem morre: Pedro. Estas relíquias suas: estas relíquias dele, do Príncipe D. Pedro. Alusão aos filhos de Inês com D. Pedro. Esta forma verbal faz crer que os filhos estiveram presentes no começo da cena. Depois, teriam sido retirados. Consolo. Benigno, bondoso. Movido das palavras que o magoam: comovido pelas palavras que o tocaram profundamente. Pertinaz povo: povo obcecado, convicto. Alusão ao firme propósito dos conselheiros do rei. Seu destino: destino de Inês. A sorte dela estava determinada pela má fortuna. Aqui, as razões políticas fundem-se com o fatalismo poético. Que desta sorte o quis: (o destino dela) que assim determinou sua sorte, seu fado, sua sina. Ferozes. Condição de animais selvagens. Os dois últimos versos da oitava introduzem forte apóstrofe contra os que apregoavam tal morte por boa. Alusão contra os conselheiros do rei, aqui chamados de carniceiros, isto é, animais que vivem de carniça, como os urubus e os chacais. Cavaleiros: este vocábulo está empregado em sentido irônico, pois um verdadeiro cavaleiro dos tempos heróicos jamais atacaria uma dama, antes se empenharia em defendê-la.

Inicia-se nesta estrofe uma comparação que se estende até o final da próxima: assim como Pirro assassinou a inocente Policena, Inês também foi inocentemente imolada pelos terríveis carrascos de Afonso IV. Policena era filha de Príamo e Hécuba, reis de Tróia. Durante uma trégua, Aquiles, herói grego que lutava contra Tróia, apaixonou-se por Policena. Numa cilada, Páris, irmão de Policena, matou Aquiles com um tiro de flecha no calcanhar, único ponto vulnerável do herói. Depois de morto, Aquiles exigiu que seu filho Pirro matasse Policena, para que ela o acompanhasse no mundo das sombras. Em atendimento à sombra do pai, Pirro, sob o pretexto de visita, conduz Policena ao túmulo de Aquiles e, aí, a assassina cruelmente. 98 Hécuba, mulher de Príamo. 99 Prepara-se, arma-se com espada (duro ferro). 100 No colo de alabastro: no colo tão branco quanto alabastro. Alabastro: espécie de mármore. 101 Que sustinha / As obras com que Amor matou de amores / Aquele que despois a fez rainha: a beleza do colo (parte do corpo que envolve o pescoço e os seios) de Inês é que susteve os atrativos com que Amor matou Pedro de amores. Há nessa imagem insinuações de erotismo sensual. 102 As espadas banhando: penetrando as espadas (no colo de alabastro). 103 E as brancas flores: e (também banhando de sangue) os seios tão brancos quanto flores brancas. Nova insinuação erótica. 104 Inês regava as brancas flores dos seios com as lágrimas de tristeza derramadas por Pedro. 105 Comportavam-se como carniceiros, como animais que vivem de carniça. 106 Agitados pelo desejo de matar. 107 Irados, agitados pela ira. 108 Não cuidosos: não cuidadosos do futuro castigo; sem pensar na futura vingança do príncipe que se tornaria rei. 109 Inicia-se aqui apóstrofe dirigida ao Sol, que, diante da atrocidade do assassinato de Inês, deveria se recusar a iluminar a terra naquele dia, tal como já fizera ao ver que Atreu obrigou o irmão Tiestes a comer a carne dos próprios filhos. Ver comentários na introdução ao episódio de Inês de Castro. 110 Separar, desviar. 111 Seva mesa: cruel banquete, atroz refeição.

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Vós, ó côncavos vales112, que pudestes A voz extrema ouvir da boca fria113, O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes, Por muito grande espaço repetistes!114 134 Assi como a bonina115, que cortada Antes do tempo foi, cândida e bela, Sendo das116 mãos lascivas117 maltratada Da menina que a trouxe na capela118, O cheiro traz perdido e a cor murchada119: Tal120 está, morta, a pálida donzela121, Secas do rosto as rosas e perdida A branca e viva cor co’a doce vida122. 135 As filhas do Mondego123 a morte escura124 Longo tempo chorando memoraram125, E, por memória eterna, em fonte pura

As lágrimas choradas transformaram126. O nome lhe puseram, que inda dura127, “Dos amores de Inês”, que ali passaram128. Vede que fresca fonte rega as flores, Que lágrimas são a água; e o nome, Amores!129

EXERCÍCIOS 1. A história afirma que a morte de Inês de Castro foi ocasionada por razões políticas. Responda: a) Na reconstrução poética de Camões, os motivos da morte de Inês teriam sido “razões de Estado”? Justifique. b) Aponte a estrofe em que você se apoiou para responder a pergunta anterior.

2. O mito dos amores de Inês possui muita força na sensibilidade portuguesa. Responda: a) Quais são as duas grandes recriações literárias desse mito anteriores à de Camões? b) De qual delas Camões mais se aproxima? Justifique.

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Inicia-se nova apóstrofe, dirigida aos vales de Coimbra, que presenciaram a morte de Inês. Ver comentário na introdução ao episódio de Inês de Castro. 113 Os vales ouviram a extrema voz (o último grito: Peeedrooo!) proferido pela boca fria (pela proximidade da morte) de Inês. 114 Os vales, tendo ouvido o nome de Pedro da boca fria de Inês, repetiram-no durante longo espaço de tempo e por larga extensão geográfica. 115 Inicia-se comparação, que domina toda a estrofe: assim como uma flor silvestre (bonina) murcha e morre ao ser cortada por mão travessa de menina, dessa maneira murcharam as rosas do rosto de Inês, logo após a ação dos carrascos. Ver comentário na introdução ao episódio de Inês de Castro. 116 Pelas. 117 Lascivo não está empregado aqui no sentido corrente de sensual, mas no de brincalhão, travesso. 118 Grinalda. 119 A flor traz o cheiro perdido e a cor murchada: morre. 120 Este tal prende ao assi, do início da estrofe: assim como a bonina, tal está Inês. 121 Jovem da corte. No mesmo sentido em que o vocábulo foi usado na estrofe 127. Ver nota 67. 122 Estes dois versos, belíssimos, jogam com a palidez do rosto de Inês, depois de morta. Rosas dos rostos são as faces; agora estão secas, pois a morte lhes tirou a brancura e a vivacidade: a branca e viva cor. 123 Ninfas do Mondego, rio que corta Coimbra, cidade em que morava Inês. Na poesia clássica quinhentista, era comum os poetas, imitando a Antigüidade com relação aos oceanos, imaginarem ninfas em seus rios particulares. No início de Os Lusíadas, Camões fala em Tágides, ninfas do Tejo, rio de Lisboa. Trata-se de alegoria. Aqui, as filhas do Mondego podem também representar as damas de Coimbra, que teriam lamentado a morte da companheira, em choro contínuo. 124 Violenta, triste, horrorosa, lamentável. 125 Trouxeram na lembrança, em contínuo choro. Homenagearam com lágrimas. 126 Para perpétua memória dos amores de Inês e Pedro, as filhas do Mondego transformaram as próprias lágrimas numa fonte, que ainda existe em Coimbra. Ver comentário na introdução ao episódio de Inês de Castro. Trata-se de uma metamorfose, no sentido clássico de narrativa que alegoriza uma transformação. Ovídio, poeta contemporâneo a Cristo e ao Imperador Otávio Augusto, escreveu um conjunto de fábulas dedicadas a transformações importantes na mitologia latina, chamado As Metamorfoses. Evidentemente, as lágrimas que geraram a fonte não são exclusivas das filhas do Mondego, mas também de Inês e de Pedro. A metamorfose literária (mítica) depende da hipérbole e da alegoria.

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3. Do ponto de vista da exposição da matéria, o episódio de Inês de Castro mistura o modo impessoal da narrativa em terceira pessoa com o tom exclamativo em segunda pessoa. Observe a estrofe 123 do episódio e responda: Tirar Inês ao mundo determina, Por lhe tirar o filho, que tem preso, Crendo co sangue só da morte indina Matar do firme amor o fogo aceso. Que furor consentiu que a espada fina, Que pôde sustentar o grande peso Do furor mauro, fosse alevantada Contra ua fraca dama delicada? a) Mediante qual figura de retórica se manifesta o tom exclamativo? b) Na estrofe em destaque ocorre a mistura de modos de narrar? Justifique com observações extraídas do texto.

4. Leia a estrofe 119 do episódio: Tu, só tu, puro Amor, com força crua, Que os corações humanos tanto obriga, Deste causa à molesta morte sua, Como se fora pérfida inimiga. Se dizem, fero Amor, que a sede tua Nem com lágrimas tristes se mitiga, 127

Inês foi morta em 7 de janeiro de 1355. Os Lusíadas foram publicados em 1572. O texto afirma que, no tempo da redação da estrofe, ainda existia a Fonte dos Amores. Ainda hoje pode ser vista em Coimbra. Trata-se de lugar turístico muito visitado. 128 Entenda-se: dos amores de Inês e de Pedro, que ali se passaram (que ali transcorreram), numa quinta de Coimbra. 129 Os versos finais do episódio abandonam o clima da tragédia e figuram um diálogo com os leitores, convocando-os a observarem a Fonte dos Amores, como se ela estivesse em nossa frente. O poeta ressalta, uma vez mais, que a origem dela são lágrimas e amores, apesar do aspecto sereno e agradável. Trata-se de uma alegoria da idéia de que a beleza decorre do sofrimento.

É porque queres, áspero e tirano, Tuas aras banhar em sangue humano. Considerando os pressupostos teóricos da questão anterior, assinale a melhor alternativa sobre esta famosa estrofe: a) Digressão emotiva, em que o narrador sintetiza toda a tragédia de Inês mediante apóstrofe contra D. Afonso IV, chamado de “áspero e tirano”. b) Passagem narrativa em terceira pessoa, em que o narrador relata com impessoalidade o modo com que Amor mata suas vítimas. c) Passagem em que se observa a mistura da narrativa impessoal em terceira pessoa com o modo pessoal de primeira, mediante apóstrofe contra a crueldade do Amor. d) Digressão emotiva, em que o narrador dirige impetuosa apóstrofe contra a crueldade do amor, que tiraniza até a morte suas vítimas. e) Apóstrofe dirigida ao Amor, por força de quem o rei D. Afonso IV se viu obrigado a assassinar Inês, embora suas razões objetivas fossem de ordem política.

5. Leia a estrofe 121 do episódio: Do teu Príncipe ali te respondiam As lembranças que na alma lhe moravam, Que sempre ante seus olhos te traziam, Quando dos teus fermosos se apartavam; De noite, em doces sonhos que mentiam, De dia, em pensamentos que voavam; E quanto, enfim, cuidava e quanto via Eram tudo memórias de alegria. A melhor ordem direta para os quatro primeiros versos, com adaptações: a) Ali (nos Campos do Mondego), as lembranças que moravam na alma de teu príncipe te respondiam (encontravam eco em ti), lembranças (recordações) que sempre te traziam ante os olhos dele, quando estes olhos se apartavam dos teus olhos fermosos. b) Ali (nos Campos do Mondego), as lembranças (recordações) de teu príncipe, que moravam em tua alma, sempre te traziam ante os olhos dele, quando estes se apartavam dos teus olhos fermosos. c) Ali (nos Campos do Mondego), os teus fermosos olhos se apartavam dos olhos dele quando as lembranças que moravam na alma dele sempre te traziam ante os olhos dele. d) Ali (nos Campos do Mondego), as lembranças de teu príncipe te respondiam (encontravam eco em ti), lembranças (recordações) que sempre se apartavam de ti quando os teus fermosos olhos te traziam ante os dele. e) Ali (nos Campos do Mondego), te respondiam as lembranças de teu príncipe, as quais moravam na alma dele, quando os olhos dele se apartavam de tuas lembranças (recordações), trazendo (para perto) teus olhos fermosos.

6. Leia a primeira estrofe do canto nono do poema épico-surrealista Invenção de Orfeu: Estavas, linda Inês, nunca em sossego

E por isso voltaste neste poema, Louca, virgem Inês, engano cego, Ó multípara Inês, sutil e extrema, Ilha e mareta funda, raso pego, Inês desconstruída mas eurema, Chamada Inês de muitos nomes, antes, Depois, como de agora, hojes distantes. Assinale a alternativa correta sobre a autoria deste texto e sobre suas relações com a estrofe 120 do episódio camoniano: a) Escrita pelo modernista Murilo Mendes, da primeira geração, trata-se de paródia, pois satiriza o universo clássico de Camões. b) Escrita pelo modernista Jorge de Lima, da segunda geração, trata-se de paródia, pois satiriza o universo clássico de Camões. c) Escrita pelo modernista Jorge de Lima, da segunda geração, trata-se de paródia, pois recria em estilo modernista a eternidade do mito consolidado por Camões. d) Escrita pelo modernista Carlos Drummond de Andrade, da segunda geração, trata-se de paródia, pois recria em estilo modernista a eternidade do mito consolidado por Camões. e) Escrita pelo modernista Jorge de Lima, da segunda geração, trata-se de paródia, pois satiriza a eternidade do mito consolidado por Camões.

O Velho do Restelo

O VELHO DO RESTELO Comentário Situação Histórica Restelo é o nome da praia de onde, no dia 8 de

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julho de 1497, partiram as caravelas de Vasco da Gama em busca do perigoso e desconhecido caminho marítimo para a Índia. Mais especificamente, as caravelas partiram do Templo dos Reis de Belém, construído pelo Infante D. Henrique às margens do Rio Tejo, no mesmo local em que depois se construiu o imponente Mosteiro dos Jerônimos. Antes dessa viagem, só era possível chegar ao Extremo Oriente pelo Mar Mediterrâneo e pelas terras do Oriente Médio. Mas a rota mediterrânea era essencialmente medieval, com vantagens parciais para os países ibéricos. Por isso, convinha a Portugal evitar a tradição e instaurar um novo caminho, mais compatível com o espírito do Renascimento, dominado pela idéia de aventura, de conhecimento e de lucros espantosos. Surgiu daí a iniciativa de D. Manuel, o Venturoso, em nome de quem Vasco da Gama se entrega ao Mar Tenebroso, expressão com que o Infante D. Henrique batizara o mistério e o sonho que dominaram toda sua vida. Esse mesmo mistério assanhava todo o povo português, que via nas viagens solução para inúmeros problemas do país. Apesar do entusiasmo geral, a dúvida e o medo misturavam-se com a coragem e com a ousadia. Tratava-se, enfim, de experiência inédita na história do homem. A pequena armada que realizou essa grande viagem era composta pelas seguintes naus: S. Gabriel, de Vasco da Gama; S. Rafael, de Paulo da Gama; e Bérrio, de Nicolau Coelho; sem contar uma quarta, responsável pelo transporte de alimentos. Uma das principais fontes históricas da expedição é o diário de navegação de Álvaro Velho, escrivão da armada. Todavia, para recompor poeticamente a aventura, Camões se inspirou sobretudo na Primeira Década da Ásia (1552), de João de Barros, o maior historiador do Renascimento português, de quem o poeta herdaria o tom apologético e o espírito triunfalista, compatíveis ambos com o gênero épico. Outra fonte importante para a reconstrução poética da viagem foi a História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses (1551), de Fernão Lopes de Castanheda.

Ficção do Episódio Em rigor, o episódio do Velho do Restelo é um fragmento da seqüência conhecida como a Partida das Naus, em que se narra o embarque oficial dos navegantes, antecedido de procissão solene e despedidas espontâneas. A Partida das Naus inicia-se na estrofe 84 e termina na estrofe 93 do canto quarto. Na estância seguinte, entra em cena o Velho do Restelo, que nada mais é do que uma dentre as inúmeras pessoas que se amontoaram na praia para se despedir dos navegantes. Havia mães, esposas, filhas, crianças, meninos e velhos. Simbolizando o espírito de resignação do eterno amor feminino, despedemse primeiro duas mulheres: uma mãe e uma esposa, que sofrem com a ausência antecipada dos entes que-

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ridos. Simbolizam, portanto, os sentimentos íntimos das famílias dos navegantes, o aspecto emocional do povo português. Criam a atmosfera de anseio e insegurança popular diante dos perigos da viagem. Representam a voz do sentimento, saída dos movimentos espontâneos do coração feminino. Os velhos e os meninos, já enfraquecidos pela idade ou ainda fracos por não ter idade, limitam-se a seguir a procissão dos navegantes. As próprias montanhas se emocionam, enquanto a areia da praia se inunda com as lágrimas dos parentes. Vasco da Gama, fingindo indiferença diante de tamanha emoção, entrega-se estoicamente à missão de desvendar os mares. Quando as naus já se encontravam no Atlântico, surge um grito vindo da praia: é o Velho do Restelo, homem rude do povo, que não consegue se calar diante da imprudência da viagem. Não podia concordar com aquilo. A aventura não encontrava outra justificativa senão o desejo de mando e a ambição de glória. O país não se achava suficientemente fortalecido para que os homens em condições de defendê-lo o deixassem à mercê do inimigo espanhol ou do invasor árabe. A vaidade do rei confundia-se com a vaidade comum de todos os mortais, sempre enganados pela ilusão de progresso e de inteligência. Teria sido melhor o homem jamais ter inventado a caravela do que expor todo um povo a viagem tão arriscada! Em termos extremamente simplificados, este é o conteúdo do protesto do Velho do Restelo. O episódio todo consiste num só grito desesperado contra os idealizadores da expedição. O velho não concordava com a viagem, por entendê-la desnecessária à segurança do povo. Era contrário à expansão geográfica, porque julgava que a estabilidade deveria decorrer do fortalecimento interno, e não do comércio exterior. Sua fala impetuosa começa na estrofe 94 do canto quarto e encerra o mesmo canto, na estrofe 104. Antes dele, falam duas mulheres: uma mãe (90) e uma esposa (91). Na famosa estrofe 94, apresenta-se a figura do Velho, que é caracterizado tanto física quanto moralmente. Essa estrofe possui função proemial, de abertura, no episódio, pois põe à frente do leitor a figura inteira do velho, de quem dependem as próximas dez estâncias. Trata-se de um tipo muito vivo de descrição, a que os teóricos da antigüidade chamavam hipotipose, demonstração ou evidência, que consiste em descrever tão vivamente o que se pretende, que parece que se dá a ver aquilo de que se fala. Em outros termos, a hipotipose produz uma representação tão impressionante das coisas, que acaba gerando a sensação de que elas estão diante dos olhos do leitor: Mas um velho, de aspeito venerando, Que ficava nas praias entre a gente, Postos em nós os olhos, meneando Três vezes a cabeça descontente, A voz pesada um pouco alevantando,

Que nós no mar ouvimos claramente, Cum saber só de experiências feito, Tais palavras tirou do experto peito. Justamente célebre, essa estrofe apresenta inúmeras ressonâncias da literatura clássica, dentre as quais se deve destacar a tópica da sabedoria prática associada à velhice, expressa pelo verso lapidar, jamais esquecido por quem uma vez o ouve: cum saber só de experiências feito. É também clássica a adoção do número três para enumerar os meneios de cabeça da personagem. Oriundos da Eneida de Virgílio, os movimentos ternários encontram eco também em O Uraguay, de Basílio da Gama, onde se lêem os seguintes versos (canto segundo, vv. 350-351): ...Quis três vezes Levantar-se do chão: caiu três vezes. Também no epílogo de O Guarani, de José de Alencar, ocorre a clássica imagem dos movimentos ternários, no momento crucial da trama, quando Peri definitivamente encontra saída para o impasse que ameaçava a vida de Ceci: Três vezes os seus músculos de aço, estorcendo-se, inclinaram a haste robusta; e três vezes o seu corpo vergou, cedendo à retração violenta da árvore, que voltava ao lugar que a natureza lhe havia marcado. No poema “O Mostrengo”, de Fernando Pessoa, transcrito no presente volume na análise do episódio do Gigante Adamastor, reaparece três vezes a imagem da enumeração ternária, quando se trata de insinuar a hesitação de Bartolomeu Dias diante do mostrengo pessoano que, à maneira de Adamastor, também simboliza os perigos do mar desconhecido: À roda da nau voou três vezes, Voou três vezes a chiar

Sentido do Episódio Na época da expansão mercantilista, entre os séculos XV e XVI, havia duas correntes de opinião em Portugal: uma, voltada para os valores medievais, mais preocupada com a agricultura e com os princípios da velha nobreza fundiária; outra, voltada para a renovação do perfil econômico do país, mais preocupada com o comércio e com os princípios flutuantes da burguesia em ascensão. O Velho do Restelo representa a primeira corrente. Por isso, sua posição é austera e essencialista. Pretende manter a tradição, sem partilhar do relativismo dos novos tempos. Vê no progresso um perigo à própria inocência do homem, valor máximo para a obtenção da felicidade e da segurança do povo. Contrário ao espírito de rebeldia e de invenção representado pelo mito de Prometeu, o Velho do Restelo acredita na obediência cega aos elevados princípios da honra e de Deus, os quais devem permanecer acima de qualquer discussão. Por isso, censura a ambição, o comércio, o progresso e a guer-

ra. A ambição transferiu o homem da Idade de Ouro, dominada pela paz, para a Idade de Ferro, movida pela guerra. Esta mesma ambição é que leva o povo português ao Oriente. Escreve Rebelo Gonçalves, autor das célebres Dissertações Camonianas, acerca da atmosfera contrária à expansão iniciada pelo Infante D. Henrique: São bem conhecidas, por exemplo, as oposições feitas à política marroquina pelo senhor de Barcelos, em carta a D. João I, e pelo Infante D. Pedro, que via nos sonhos do irmão [o Infante D. Henrique] a troca de “uma boa capa por um mau capelo”. Do mesmo modo, sabemos que foram veementes as oposições à busca de terras atlânticas, tão veementes, que podiam estar ainda vivas na memória dos homens do século XVI e ser reproduzidas por João de Barros sob esta forma expressiva: “Certamente nós nam sabemos que opiniã foy esta do infante, nem que fructo elle espera deste seu descobrimento, senam perdiçam de quanta gente vay em os navios, pera ficárem muytos órfãos & viúvas no reyno, alem da despesa de suas fazendas, pois o perigo & o gasto ambos estam manifestos & o proveito tam incérto, como todos sabémos.” Os Lusíadas são um hino de louvor ao imperialismo português. De resto, como construção épica, o poema tinha de exaltar a guerra, a coragem, a aventura, o imprevisível e a ousadia da viagem. E isso é o que se percebe em todo o poema. Logo, o Velho do Restelo representa uma oposição ao ideário central da epopéia. Nesse sentido, pode-se admiti-lo como personagem alegórica, porque encarnaria uma das correntes de opinião existentes na época em que transcorre a ação do poema. O Velho seria, assim, uma dentre as muitas vozes de que se compõe a ficção do texto. O ensaísta Antônio José Saraiva, um dos mais modernos estudiosos de Camões, não aceita essa interpretação. Segundo ele, as idéias do Velho do Restelo não se harmonizam com o todo da epopéia camoniana. Representariam uma flagrante contradição entre o louvor da expansão para o Oriente (idéia artificialmente assumida por Camões enquanto poeta oficial da corte) e a censura do progresso e da expansão para o Oriente (idéia assumida por Camões enquanto humanista que não se identifica com o tema do próprio poema, pois julgava que a expansão deveria limitar-se ao norte da África, região dominada pelos muçulmanos). Pela perspectiva do ensaísta português, longe de representar aspecto negativo no poema, essa incongruência dinamiza a poesia do texto, atribuindo-lhe mais vivacidade estética. Segundo ele, quem fala através do Velho do Restelo é o próprio Camões, que inventou a personagem para incorporar ao poema alguns juízos morais da cultura humanística, que critica os acontecimentos ANGLO VESTIBULARES

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por uma perspectiva metafísica, julgando a história de fora dos acontecimentos. A fala do Velho do Restelo pode ainda ser vista como manifestação do princípio geral de comentário alternativo aos incidentes da ação do poema. Algo mais ou menos assim: os portugueses partem, então o poeta deve oferecer uma reflexão crítica sobre a partida, podendo se posicionar contrária ou favoravelmente a ela. Se se admitir esse princípio, defendido por diversos intérpretes, dentre os quais se conta o historiador português Jorge Borges de Macedo, pode-se afirmar que Camões se apropria de um procedimento consagrado pela tragédia grega, cujo coro possui a função de comentar e interpretar os incidentes da ação em curso. Assim como o coro da tragédia produzia comentários filosóficos, éticos, morais e políticos sobre a trama apresentada no palco, o Velho do Restelo estaria criticando a viagem de Vasco da Gama (expansão portuguesa para o Oriente), no exato momento em que o poeta a reconstrói como parte de sua ficção. Tais comentários misturam princípios metafísicos com razões políticas: dirigem-se tanto ao rei D. Manuel quanto à humanidade. Sendo manifestação de um princípio geral de construção poética, não se deve esquecer que esse tipo de comentário ocorre em todos os finais de cantos de Os Lusíadas. Trata-se do procedimento retórico denominado epifonema, que é o arremate edificante e sentencioso que se dá a um trecho literário. Tal como se observa com a fala do Velho do Restelo, todo epifonema é exclamativo. Veja-se um exemplo: no final do primeiro canto do poema, estando os portugueses prestes a cair numa traição na Ilha de Mombaça, o poeta interrompe a narrativa para concluir a unidade com as seguintes exclamações reflexivas, que lembram as considerações do Velho do Restelo: 105 O recado que trazem é de amigo, Mas debaixo o veneno vem coberto, Que os pensamentos eram de inimigos, Segundo foi o engano descoberto. Oh! Grandes e gravíssimos perigos, Oh! Caminho de vida nunca certo, Que aonde a gente põe sua esperança Tenha a vida tão pouca segurança! 106 No mar, tanta tormenta e tanto dano, Tantas vezes a morte apercebida; Na terra, tanta guerra, tanto engano, Tanta necessidade aborrecida! Onde pode acolher-se um fraco humano, Onde terá segura a curta vida, Que não se arme e se indigne o Céu sereno Contra um bicho da terra tão pequeno! Logo, como quer que se interprete o sentido his-

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tórico e político do episódio do Velho do Restelo, não se pode esquecer que se trata de um epifonema, pois, além de arrematar um canto do poema, reveste-se de natureza reflexiva, moralizante e metafísica, características típicas desse procedimento retórico comum às epopéias clássicas.

Forma Literária Do ponto de vista formal, a fala do Velho do Restelo possui pontos de contato com a ode clássica. Entre os gregos antigos, ode é uma espécie de hino ou canção em louvor das divindades, dos heróis e dos atletas. No mundo romano, essa forma consagrouse com as Odes de Horácio (65-8 a.C.). A partir daí, a ode passou a ser um poema de exaltação das virtudes dos grandes modelos de ação política, confundindo-se com o encômio, cuja função era divulgar os exemplos que poderiam ser tomados como padrão de virtude civil. Nesse sentido, tornaram-se típicos os poemas horacianos dedicados a Otávio Augusto e a seu ministro Mecenas. Mas, ainda em Horácio, a ode atinge a forma de reflexão pessimista sobre a vaidade e os descuidos humanos. Nesses casos, as composições aproximam-se da censura e do juízo moralista, contendo uma advertência de caráter metafísico. Esse é o sentido em que a fala do Velho do Restelo partilha da natureza da ode clássica. Aliás, a semelhança possui razão prática, pois as estrofes 102, 103 e 104 do episódio camoniano inspiram-se diretamente na Ode III do livro I das Odes de Horácio, cujos passos correspondentes assumem a seguinte configuração na tradução de José Agostinho de Macedo (1806): 1 Tinha por certo circundado o peito De triplicado bronze e ferro aquele Que ao truculento mar lançou primeiro Frágil, ligeira nau, sem ter receio Da crua guerra dos opostos ventos Nem das Híades tristes Ou fúria insana do raivoso Noto, Do Adriático mar déspota horrendo. 2 Que gênero de morte pôde aquele Temer que a secos olhos viu nadando Por entre as vagas túmidas os Monstros? Que viu sem medo Acroceráunias Rochas? Debalde, Deus da Terra o Mar separa, O Mar insociável, Se as sacrílegas naus transpõem sem pejo Os já prescritos términos vedados! 3 Dos transes todos sofredor teimoso, Corre por eles o Mortal aos crimes, E Prometeu sacrílego no Mundo O fogo introduziu, roubado aos Astros: De Males um tropel desceu com ele,

Males não vistos dantes: Se era tardo até ali o extremo golpe, Então foi pronta em nos ferir a Morte.

Vos esquece12 a afeição tão doce nossa? Nosso amor, nosso vão contentamento13, Quereis que com as velas leve o vento14?

4 Dédalo então, co’as inconcessas asas Aos míseros Mortais, girou nos ares: Então com força insólita do Inferno Valente Alcides despedaça as portas. Nada é difícil aos Humanos! Loucos Contra os Céus se conjuram E não consentem que deponha Jove Das mãos iradas furibundos raios.

92 Nestas15 e outras palavras que diziam, De amor e de piedosa humanidade16, Os velhos e os meninos os seguiam, Em quem menos esforço põe a idade17. Os montes de mais perto respondiam, Quase movidos de alta piedade18; A branca areia as lágrimas banhavam, Que em multidão com elas se igualavam19. 93 Nós outros20, sem a vista alevantarmos21 Nem a mãe, nem a esposa, neste estado, Por nos não magoarmos22 ou mudarmos Do propósito firme começado, Determinei23 de assi nos embarcarmos

O Velho do Restelo TEXTO 90 Qual1 vai dizendo: — Ó filho, a quem eu tinha Só pera refrigério2 e doce amparo Desta cansada já velhice minha, Que em choro acabará, penoso e amaro3, Porque me deixas, mísera e mesquinha4? Porque de mi te vais, ó filho caro, A fazer o funéreo enterramento5 Onde sejas de peixes mantimento? 91 Qual em cabelo6: — Ó doce e amado esposo, Sem quem não quis Amor que viver possa7, Porque is8 aventurar ao mar iroso9 Essa vida que é minha e não é vossa10? Como, por um caminho duvidoso11, 1

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Qual: uma das mães que estavam na praia. A estrofe 89 menciona que havia mães, esposas e irmãs na praia. Este qual forma paralelismo com o qual que abre a estrofe seguinte. Ambos equivalem à seguinte expressão: um diz assim, outro diz assado; fulano diz isso, beltrano diz aquilo. Refrigério: consolação. Penoso e amaro: doloroso e amargo. A mãe queixa-se de que, com a partida do filho, ela terá uma velhice desamparada. Mísera e mesquinha: pobre e infeliz. Camões adota esse mesmo par de adjetivos (epítetos) para caracterizar Inês de Castro, no sétimo verso da estrofe 118 do canto terceiro de Os Lusíadas. Porque de mi te vais, ó filho caro,/a fazer o funéreo enterramento/onde sejas de peixes mantimento?: por que razão te separas de mim, ó filho querido, se com isso vais fazer o teu fúnebre (triste) sepultamento, transformando-te em alimento de peixes? Qual em cabelo: uma outra das mulheres na praia, cuja cabeça estava descoberta, dizia. Na época, as mulheres não saíam sem toca. Todavia, esta esposa, tomada de desgosto pela partida do marido, saiu despenteada. A repetição do mesmo vocábulo no início de estrofes diferentes chama-se epanáfora, variante de anáfora. Sem quem não quis Amor que viver possa: esposo, sem cuja companhia Cupido não permitiu que eu pudesse viver. Is: vais. Aventurar ao mar iroso: arriscar no mar tempestuoso. Que é minha e não é vossa: ainda apaixonada, essa esposa julga que deve haver reciprocidade no amor. Assim como ela não se pertence, a vida do marido também não é só dele. Caminho duvidoso: o mar desconhecido e traiçoeiro. Essa mulher e a anterior simbolizam a opinião corrente sobre os perigos do mar tenebroso.

12

Vos esquece: torna-se esquecida. A esposa queixa-se de que o marido, em nome da aventura do mar, se esqueça da afeição que havia entre eles.

13

Vão contentamento: alegria passageira, transitória, imaginária, porque o marido a abandona.

14

Quereis que com as velas leve o vento: quereis que o vento leve, com as velas da nau, nosso amor e nossa efêmera alegria? A esposa teme que a viagem apague o amor do marido por ela.

15

Nestas: com estas.

16

Piedosa humanidade: de pios, dolorosos sentimentos humanos.

17

Os velhos e os meninos os seguiam, / em quem menos esforço põe a idade: à medida que as mulheres se opunham ao embarque, os velhos e os meninos, nos quais a idade põe menos poder de resistência, acompanhavam docilmente os navegantes. Os velhos e os meninos consentiam no embarque, seguindo os navegantes na procissão, com os olhos.

18

Estes dois versos contêm uma prosopopéia hiperbólica, pois afirmam que até as montanhas choraram com a partida dos navegantes. É muito freqüente esse tipo de prosopopéia em Os Lusíadas. Ocorre também nas estrofes 133 e 135 do episódio de Inês de Castro.

19

A branca areia as lágrimas banhavam / que em multidão em elas se igualavam: as lágrimas banhavam a branca areia, igualando-se com elas em quantidade. Hipérbole. Tanto Fernão Lopes de Castanheda quanto João de Barros insistem no choro da população portuguesa no momento da partida das naus. Diz Castanheda que a maior parte da população “chorava com piedade dos que iam embarcar”. João de Barros escreve que aquela “praia era de lágrimas pera os que vão e terra de prazer aos que vem.”

20

Nós outros: nós, os navegantes.

21

Sem a vista alevantarmos nem a mãe, nem a esposa, neste estado: sem levantarmos a vista, nem para a mãe, nem para a esposa, neste doloroso estado.

22

Por nos não magoarmos: para não nos emocionarmos. Para evitar a emoção, Vasco da Gama determina que os marinheiros finjam indiferença, demonstrando firme convicção da necessidade de partir.

23

Determinei: observe que o período inicia-se por sujeito em terceira pessoa do plural (nós outros). A esta altura, o enunciador, emocionado pelo contexto, perde a noção gramatical da frase e muda seu rumo sintático, reiniciando-a com sujeito em primeira pessoa do singular. Trata-se de anacoluto, dispositivo sintático que confere oralidade à frase. Determinei de assi nos embarcarmos: determinei que nos embarcássemos assim.

ANGLO VESTIBULARES

17

Sem o despedimento costumado24; Que, posto que é de amor usança boa, A quem se aparta ou fica, mais magoa25.

96 Dura inquietação d’ alma e da vida43, Fonte44 de desamparos e adultérios, Sagaz consumidora conhecida De fazendas, de reinos e de impérios45! Chamam-te ilustre, chamam-te subida46, Sendo dina de infames vitupérios47; Chamam-te Fama e Glória soberana, Nomes com quem se o povo néscio engana48!

94 Mas um velho de aspeito26 venerando27, Que ficava nas praias, antre a gente28, Postos em nós os olhos, meneando29 Três vezes a cabeça, descontente30, A voz pesada31 um pouco alevantando, Que nós no mar ouvimos claramente, Cum saber só de experiências feito32, Tais palavras tirou do experto peito33:

97 A que novos desastres determinas De49 levar estes Reinos e esta gente?50 Que perigos, que mortes lhe51 destinas, Debaixo dalgum nome preminente52? Que promessas de reinos e de minas De ouro, que53 lhe farás tão facilmente? Que famas lhe prometerás? que histórias? Que triunfos? que palmas? que vitórias54?

95 — Ó glória de mandar34! Ó vã cobiça Desta vaidade a quem chamamos fama35! Ó fraudulento gosto36, que se atiça37 C’ua aura38 popular que honra39 se chama! Que castigo tamanho40 e que justiça Fazes no peito vão41 que muito te ama! Que mortes, que perigos, que tormentas, Que crueldades neles42 exprimentas! 24

Sem o despedimento costumado: sem as despedidas usuais.

25

Que, posto que é de amor usança boa, / a quem se aparta ou fica, mais magoa: pois, embora a despedida usual (abraços, beijos) seja um bom costume amoroso, se praticada, causa mais dor tanto em quem parte quanto em quem fica. Por essa razão, Vasco da Gama impediu que os navegantes abraçassem ou beijassem os entes queridos na despedida.

26 27 28

29

Aspeito: aspecto, aparência. Venerando: venerável, respeitoso. Entre a gente: no meio do povo. Ao colocar o velho no meio do povo, o poeta insinua que ele representa a opinião popular sobre as navegações. Meneando: forma do verbo menear: mover a cabeça em sinal de reprovação.

30

Descontente: descontentemente.

31

Voz pesada: voz morosa, carregada, própria de pessoa idosa.

32

Experiências feito: na época de Camões, valorizava-se o saber experimental, mas nesse caso o saber empírico caracteriza o estrato social do velho, cuja cultura não atinge as abstrações conceituais.

33

34

Experto peito: peito experiente. O fato de as palavras saírem do peito indica que o velho falava com o coração, com convicção e veemência.

98 Mas, ó tu, geração55 daquele insano56, Cujo pecado e desobediência57 Não somente do Reino soberano58 43

A glória de mandar é motivo de tormentosa (dura) inquietação espiritual (alma) e física (vida).

44

A glória de mandar é fonte (origem) de abandono das famílias e de adultérios das esposas.

45

A glória de mandar é entendida como perspicaz (sagaz) dilapidadora de fortunas (fazendas) e de nações.

46

Sublime.

47

Castigos, críticas, sátiras.

48

Ordem direta do verso: nomes (Fama e Glória) com quem (os quais) o povo néscio (ignorante) se engana.

49

Pela sintaxe atual esta partícula é desnecessária. Basta unir os dois verbos em questão: determinas levar.

50

O sujeito do período é tu, ligado ao vocativo Glória de mandar (= ambição de mando).

51

Lhe: refere-se a peito vão da estrofe 95, que equivale a coração ambicioso dessa gente que embarca rumo à Índia (Vasco da Gama e seus tripulantes, a mando de D. Manuel).

52

Preminente: proeminente, pomposo, com aparência de importante. Na estrofe 99, a ambição aparece com a nobilitante designação de esforço e valentia.

53

Partícula com função expletiva. Pode ser eliminada para a compreensão literal.

54

Verso constituído por sinonímia, isto é, por uma seqüência de termos sinônimos.

55

Geração: descendência, descendentes. Toda a apóstrofe desta e das duas estrofes seguintes dirige-se à humanidade em geral e a D. Manuel em especial, pois este é o rei português em nome de quem Vasco da Gama empreende a indesejável expedição.

Ó prazer de dominar!

35

Ó vazio e vaidoso desejo de fama!

36

Ó enganoso prazer.

37

Excita-se, aumenta.

38

Prestígio.

56

39

Honra está empregado no sentido de culto da aparência e da ambição.

Aquele insano: Adão, o primeiro homem a ser vítima da ambição. Insano: louco.

57

Pecado e desobediência é sujeito de te pôs. O verbo está no singular porque concorda com a idéia, que é singular: pecado de desobediência. Na passagem, ocorre a figura hendíadis, que consiste na divisão de algo unitário. O mesmo ocorre com o primeiro verso de Os Lusíadas: as armas e os barões assinalados, correspondente a os barões armados ilustres.

58

Reino soberano: Paraíso bíblico, Éden, de onde Adão foi expulso.

40

Que castigo tamanho: que enorme castigo. Observe neste e no verso anterior as seguintes perífrases: fazer castigo = castigar; fazer justiça = punir.

41

Peito vão: homens de peito vazio, homens de coração fútil, homens ambiciosos.

42

Nos homens de peito ambicioso.

18 LITERATURA • Fuvest 2003

Te pôs neste desterro e triste ausência59, Mas inda doutro estado mais que humano60, Da quieta e simples inocência61, Idade de ouro62, tanto te privou, Que na de ferro e de armas63 te deitou64:

De ser sempre estimada, pois que já Temeu tanto perdê-la quem a dá73: 100 Não tens junto contigo o Ismaelita74, Com quem sempre terás guerras sobejas75? Não segue ele do Arábio a lei maldita76, Se tu pola77 de Cristo só pelejas78? Não tem79 cidades mil, terra infinita, Se terras e riquezas mais desejas? Não é ele80 por armas esforçado81, Se queres por vitórias ser louvado?

99 Já que nesta gostosa vaidade Tanto enlevas a leve fantesia65, Já que à bruta crueza e feridade66 Puseste nome67 esforço68 e valentia, Já que69 prezas70 em tanta quantidade71 O desprezo72 da vida, que devia

101 59

60

Alusão à Idade de Ouro, explicitada no sétimo verso desta estrofe. Caracterização da Idade de Ouro, referida no verso seguinte.

62

A Idade de Ouro figura na mitologia greco-romana como os tempos primitivos da humanidade, em que dominavam a paz e a inocência entre os homens. Corresponde ao reinado de Saturno no Lácio: destronado por seu filho Júpiter, aquele deus fora reduzido à condição de simples mortal e, no Lácio, iniciou os selvagens na vida regulada por leis justas e igualitárias. Mais tarde, o homem foi gradativamente decaindo, passando pela Idade de Prata, pela Idade de Bronze até cair na de Ferro, referida no verso seguinte.

64

65

66

Ferro e armas: Na Idade de Ferro, o homem, levado pela ambição, inventou a arma e a guerra. A omissão do vocábulo idade antes de ferro constitui-se num zeugma. O vocábulo armas está empregado no sentido de guerra (metonímia). Pela perspectiva do Velho do Restelo, a expedição de Vasco da Gama decorre da perda da inocência e da aquisição da vaidade. Lançou. Pelo sentido da estrofe, o homem foi, sucessivamente, retirado do Paraíso e da Idade de Ouro para ser lançado na Idade de Ferro, em que conheceu a ambição, a guerra e as viagens, como a que está sendo iniciada por Vasco da Gama. A primeira coisa digna de nota nestes dois versos é a eufonia, decorrente da paronomásia existente entre os vocábulos enlevas a leve. Além disso, nestes e nos outros vocábulos, notase sugestiva repetição alternante das vogais a, e (assonância). Gostosa vaidade: irresponsável ambição. Enlevar a leve fantasia: extasiar a leviana, insensata imaginação. Bruta crueza e feridade: seqüência pleonástica com o propósito de ressaltar aspectos irracionais da civilização. Bruta: grosseira. Crueza: crueldade. Feridade: ferocidade.

67

Puseste nome: nomeaste. Perífrase.

68

Coragem, bravura.

69

criar às portas o inimigo83, Por buscar outro de tão longe, Por quem85 se despovoe o reino antigo86, Se enfraqueça e se vá deitando a longe87! Buscas o incerto e incógnito perigo88, Por que a fama te exalte e te lisonje89,

Desterro e triste ausência: o mundo concreto dos mortais, lugar de sofrimento, por oposição ao Paraíso celestial de onde o homem foi expulso. Neste mundo, o homem é desterrado do Paraíso, cuja ausência ele sofre para sempre. Trata-se de hendíadis, pois desterro e ausência contém uma só idéia, a de perda dos privilégios da inocência do Paraíso. Perdida a inocência, o homem tornou-se vítima da ambição, que o impulsiona a empresas vãs, como a expedição de Vasco da Gama.

61

63

Deixas82

Toda esta estrofe funda-se em hipóteses concessivas, expressas pela tripla reiteração da locução conjuntiva já que. Por outro lado, a repetição da mesma locução no início de versos diferentes configura uma anáfora.

70

Valorizas.

71

Em tanta quantidade: demasiadamente.

72

Observe nova paronomásia entres os termos antitéticos: prezas / desprezo.

ires84

73

Quem a dá: Cristo, aquele que dá a vida. O final da estrofe afirma que até Cristo temeu perder a vida: alusão ao sofrimento moral de Cristo no Horto das Oliveiras, ao pressentir a própria morte; nessa ocasião, teria suado sangue e pedido a Deus que afastasse dele a morte (Pai, afasta de mim este cálice). Pelo pensamento da estrofe, a expedição de Vasco da Gama contraria a essência do homem, que deve temer os perigos, e não afrontá-los desvairadamente, só por causa da glória (vaidade) de mandar.

74

Ismaelita: mouro, muçulmano. Uso do singular pelo plural. Metonímia. Ordem direta do verso: não tens o Ismaelita junto contigo? Junto contigo: ao lado, como vizinho (na ocasião, os árabes habitavam o sul da Espanha e o Norte da África).

75

Guerras sobejas: muitas guerras, numerosas guerras.

76

Do Arábio a lei maldita: a lei maldita de Maomé. Em todo o percurso de Os Lusíadas, os árabes são identificados como aliados do demônio, porque, enfim, um dos objetivos desta epopéia é exaltar a expansão do Cristianismo, entendido sobretudo como seita superior ao Islamismo.

77

Pela.

78

Lutas. Ordem direta do verso: Se tu só pelejas pela (lei) de Cristo? Tanto neste como no verso anterior, aplica-se lei no sentido de religião.

79

O sujeito deste verbo é Ismaelita. Entenda-se: Já que tu, D. Manuel, queres cidades e terras, por que não te contentas em alcançá-las dos árabes, que as tem em quantidade aqui na vizinhança?

80

O Ismaelita.

81

Por armas esforçado: valente, destemido na guerra.

82

Deixas (tu, ó glória de mandar): o povo português deixa. Alusão a D. Manuel, em nome de quem se faz a viagem.

83

Os árabes.

84

Por ires: para ires.

85

Por causa do qual.

86

Reino antigo: Portugal.

87

Se vá deitando a longe: vai-se perdendo.

88

Os perigos desconhecidos dos mares. Ao usar perigo por perigos, o poeta lança mão da metonímia, no caso o singular pelo plural.

89

Lisonjeie.

ANGLO VESTIBULARES

19

Chamando-te senhor, com larga cópia90, Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia!

Em mortes, em desonras: grande engano101! Quanto melhor nos fora102, Prometeu, E quanto pera o mundo menos dano, Que a tua estátua ilustre103 não tivera104 Fogo de altos desejos que a movera105!

102 Oh! Maldito o primeiro que no mundo Nas ondas vela pôs em seco lenho91! Dino da eterna pena do Profundo92, Se é justa a justa93 Lei que sigo e tenho! Nunca juízo94 algum, alto e profundo, Nem cítara95 sonora ou vivo engenho96 Te dê por isso97 fama nem memória, Mas contigo98 se acabe o nome e glória!

104 Não cometera o moço miserando106 O carro alto do pai, nem o ar vazio107 O grande arquitector c’o filho108, dando Um, nome ao mar109; e o outro, fama ao rio110. Nenhum cometimento alto e nefando111, Por fogo, ferro, água, calma e frio, Deixa intentado112 a humana geração113! Mísera sorte! Estranha condição!114

103 Trouxe o filho de Jápeto99 do céu O fogo que ajuntou ao peito humano, Fogo que o mundo em armas acendeu,100 90

91

Com grande abundância. Alusão ao enorme título de D. Manuel, o Venturoso, que acumulava todos os epítetos do verso seguinte: Senhor da Índia, da Pérsia, Arábia e Etiópia. A estranha ordem dos vocábulos destes dois versos forma sínquise: inversão violenta dos termos da oração. Ordem direta: Oh! Maldito o primeiro (homem) que pôs vela em lenho seco nas ondas (do mar). Trata-se de uma apóstrofe contra a invenção do navio, causador de desgraças. Antes do elementos expressos na frase, deve-se supor um verbo ou expressão volitiva: eu quero, eu desejo que seja maldito, tomara que seja maldito, oxalá seja maldito. Seco lenho: madeira seca do navio.

92

Inferno. A embarcação dos oceanos é coisa do diabo.

93

Se é justa a justa lei que sigo e tenho: se é certa a santa religião em que acredito. Notável jogo vocabular. Em Os Lusíadas o vocábulo lei quase sempre possui o sentido de religião, doutrina, fé.

94

Nunca juízo algum, alto e profundo: nenhum elevado e perspicaz entendimento (de poeta).

95

Instrumento musical associado à poesia. No caso, a própria poesia: metonímia.

96

Capacidade conceptiva em poesia, inspiração. O vocábulo aparece na segunda estrofe de Os Lusíadas, no célebre verso: se a tanto me ajudar o engenho e arte.

97

Te dê por isso: te dê por esse motivo (= pela invenção da navegação). O inventor da navegação não deverá ser louvado (perpetuado) pela poesia.

98

99

100

O Velho deseja que a glória do inventor da navegação não sobreviva ao próprio nome. Sua glória deveria acabar quando ele morresse. Nome e glória: fama. Uma só idéia com dois nomes: hendíadis. ver notas 57 e 59. Filho de Jápeto: Prometeu, um dos Titãs que se revoltaram contra o domínio de Júpiter. Tendo feito uma estátua de barro, Prometeu roubou o fogo dos deuses para animar sua criação. Como castigo, Júpiter ordenou que Vulcano, o ferreiro dos deuses, o amarrasse no Cáucaso, onde os abutres lhe comiam o fígado, que renascia e era de novo comido. Prometeu é o símbolo da civilização, da indústria, da sabedoria e do desejo humano. Por isso, nesta estrofe, o Velho do Restelo exclama que teria sido melhor que ele não tivesse animado sua estátua de barro, isto é, que não lhe tivesse insuflado o impulso da vontade e da criação. Ordem direta do verso: Fogo que acendeu o mundo em armas. Sentido: fogo (da ambição) que levou o mundo a valorizar com entusiasmo a guerra, provocando mortes e desonras (no verso seguinte).

20 LITERATURA • Fuvest 2003

101

Pela perspectiva do Velho, dar o fogo da sabedoria ao homem foi equívoco de Prometeu, pois desencadeou a ambição, a “glória de mandar”, donde derivam as guerras e as perdições.

102

Quanto melhor nos fora: quanto melhor teria sido à espécie humana.

103

Estátua ilustre: o homem.

104

Tivesse.

105

Movesse (= inspirasse, motivasse, impulsionasse para a vaidade).

106

Moço miserando: Faetonte, filho de Apolo (= Hélios, o Sol). Sem saber governar a carruagem de fogo, o jovem Faetonte atreveu-se a dirigi-la e provocou incêndio de algumas regiões da terra (África). O carro de Faetonte foi precipitado no rio Pado, famoso por esse acidente. O sentido da aplicação da mitologia é que o fogo da ambição provoca desastres e desgovernos nos homens, a exemplo dos deuses.

107

O ar vazio: o vácuo, as alturas, o céu. Na abertura do notável poema épico O Uraguay (1769), Basílio da Gama apropria-se da expressão ar vazio: e vai ver de mais perto no ar vazio / o espaço azul, onde não chega o raio.

108

Arquiteto, no sentido de pessoa engenhosa e dada a inventos. Trata-se de Dédalo, lendário inventor da mitologia grega. Querendo voar, bolou uma engenhoca com cera e penas de aves, que lhe possibilitou voar. Todavia, seu filho Ícaro, surdo às observações do pai, aproximou-se demais do sol, cujo calor dissolveu a cera e ele foi precipitado no Mar Egeu, também conhecido por Mar Icário.

109

Mar: mar Icário ou Egeu.

110

Rio: rio Pado ou Pó, na Itália.

111

Cometimento alto e nefando: empresa, empreendimento digno de louvor ou digno de censura. Alto: elevado, sublime. Nefando: abominável.

112

Intentado: intacto, não tentado.

113

Humana geração: o homem, a humanidade. Movido pela ambição, o homem não deixa de tentar nenhum empreendimento, quer seja por meio do fogo (indústria, inventos) e do ferro (armas, guerra); quer seja na água (mares), na calma (regiões quentes) e no frio (regiões frias).

114

Epifonema contra a condição humana em geral e contra a situação específica de Portugal, cuja viagem ao Oriente, motivada pela ambição, trará mais prejuízos que vantagens. Epifonema é uma frase exclamativa com que se arremata uma narrativa, uma descrição ou uma dissertação. Mísera sorte: destino digno de dó. Estranha condição: situação extraordinária, paradoxal, pois a maior força do homem (a razão) é também sua maior fraqueza.

EXERCÍCIOS Releia os quatro primeiros versos da estrofe 102: Oh! Maldito o primeiro que, no mundo, Nas ondas vela pôs em seco lenho! Dino da eterna pena do Profundo, Se é justa a justa lei que sigo e tenho.

7. Sabe-se que uma parte da fala do Velho do Restelo possui aspecto político e histórico; outra parte possui aspecto metafísico e moralizante. Responda: a) Estes versos possuem natureza história ou metafísica? b) Justifique a resposta anterior.

8. Ainda quanto aos versos transcritos, responda: a) Qual o significado referencial dos termos vela e seco lenho? b) Qual o processo figurado adotado nesses termos para a criação de sentido?

9. Quanto aos mesmos versos, responda: a) Em que sentido se pode dizer que sintetizam a idéia central da fala do Velho do Restelo? b) O que o poeta quer dizer com o verso final da seqüência?

10. Entre a interjeição inicial da estrofe e o adjetivo seguinte há elipse. Aproximadamente, os termos omitidos são: a) Dizem que é (maldito). b) É improvável que seja (maldito). c) Quero, desejo que seja (maldito). d) Lamento que deva ser (maldito). e) Deus quer que seja (maldito).

11. Os dois primeiros versos do trecho em destaque estão em ordem inversa. Observa-se neles a espécie mais radical de inversão conhecida na língua portuguesa. Trata-se de: a) Hipérbato. b) Anástrofe. c) Anáfora. d) Sínquise. e) Anacoluto.

12. A ordem direta mais adequada para esses dois versos seria: a) Oh! No primeiro mundo o maldito que pôs vela nas ondas em seco lenho. b) Oh! O primeiro maldito que no mundo pôs vela em lenho seco nas ondas. c) Oh! Maldito o primeiro que nas ondas pôs vela em seco lenho no mundo. d) Oh! Maldito no mundo o primeiro que pôs vela nas ondas em seco lenho. e) Oh! Maldito o primeiro que no mundo pôs vela em lenho seco nas ondas.

13. O primeiro que nas ondas vela pôs em seco lenho é perífrase para: a) Prometeu. b) D. Manuel. c) O inventor do navio. d) O descobridor do caminho marítimo para a Índia. e) Ulisses.

14. Pela lógica do episódio, a resposta da questão anterior só não se liga a: a) D. Manuel. b) Dédalo. c) Prometeu. d) Vasco da Gama. e) Cristo.

15. Leia o seguinte trecho da Primeira Década da Ásia, do historiador quinhentista português João de Barros, para responder ao que se pede: No qual acto foi tanta a lágrima de todos, que neste dia tomou aquela praia posse das muitas que nela se derramaram na partida das armadas, que cada ano vão a estas partes que Vasco da Gama ia descobrir, de onde com razão lhe podemos chamar praia de lágrimas pera os que vão e terra de prazer aos que vêm. E quando veio ao desfraldar das velas, que os mareantes, segundo seu uso, deram aquele alegre princípio de caminho, dizendo — boa viagem! — tôdolos que estavam postos na vista deles com uma piedosa humanidade dobraram estas lágrimas e começaram de os encomendar a Deus e lançar juízos, segundo o que cada um sentia da partida. Sabe-se que a Primeira Década da Ásia é a principal fonte histórica para a reconstrução da viagem de Vasco da Gama contida em Os Lusíadas. De modo mais específico, a passagem de João de Barros em destaque deve ter dado origem à seguinte oitava do episódio do Velho do Restelo: a) 102 b) 92 c) 94 d) 95 e) 96

16. Observe três fragmentos interligados pela tradição: estrofe extraída da Ode III do Livro I das Odes de Horácio; estrofe da Ode VI do Livro I dos Poemas Lusitanos, de Antônio Ferreira, contemporâneo de Camões; quatro primeiros versos da estrofe 102 de Os Lusíadas: Texto I Tinha por certo circundado o peito De triplicado bronze e ferro aquele Que ao truculento mar lançou primeiro Frágil, ligeira nau, sem ter receio Da crua guerra dos opostos ventos Nem das Híades tristes Ou fúria insana do raivoso Noto, Do Adriático mar déspota horrendo. Texto II Quem cometeu primeiro Ao bravo mar num fraco pau a vida, De duro enzinho ou tresdobrado ferro Tinha o peito, ou ligeiro Juízo, ou sua alma lhe era aborrecida, Digno de morte cruel no seu mesmo erro. Texto III Oh! Maldito o primeiro que, no mundo, Nas ondas vela pôs em seco lenho! Dino da eterna pena do Profundo, Se é justa a justa lei que sigo e tenho.

ANGLO VESTIBULARES

21

A leitura atenta revela semelhança entre os três textos. A melhor observação crítica sobre essa semelhança encontra-se na alternativa: a) Os clássicos quinhentistas apropriaram-se de tópicas consagradas pela tradição antiga: o mito de que a ambição desterrou o homem da Idade de Ouro é uma dessas tópicas. b) Os clássicos quinhentistas reinventam o passado, aplicando seus ensinamentos de forma inovadora em contextos diferentes. c) Os clássicos quinhentistas não valorizavam a imaginação, por isso empregaram seu engenho na imitação da antigüidade: o que se observa pela apropriação da tópica do elogio ao progresso. d) Os clássicos quinhentistas emulavam com a antigüidade, procurando nela as origens dos males do século XVI: daí a censura à invenção do navio. e) Ao censurar a ambição como causa da perda da inocência da Idade de Ouro, os quinhentistas evidenciam seu apreço pelo cristianismo, deixando claro que a mitologia para eles não passava de ornamento literário. 17. (FUVEST-2002/2ª fase) Responda às seguintes questões sobre Os Lusíadas, de Camões: a) Identifique o narrador do episódio no qual está inserida a fala do Velho do Restelo. b) Compare, resumidamente, os principais valores que esse narrador representa, no conjunto de Os Lusíadas, aos valores defendidos pelo Velho do Restelo, em sua fala.

RESPOSTAS 1. a) Na visão mítica que Camões oferece da tragédia de Inês, a morte da amante não se deve a razões de Estado, e sim a razões metafísicas. O poeta considera que o amor é entidade autônoma que, para viver, tem de produzir vítimas. b) A idéia de que o amor é entidade feroz que vive de sangue humano encontra-se na estrofe 119 do episódio, uma das mais célebres de Os Lusíadas.

2. a) “Trovas à Morte de D. Inês de Castro”, de Garcia de Resende, publicadas em 1516 no Cancioneiro Geral; e a tragédia Castro, de Antônio Ferreira, editada em 1589, mas encenada na década de 50 do século XVI. b) Camões aproxima-se mais da visão de Garcia de Resende, que também dá o Amor como motivo da morte de Inês. Antônio Ferreira, mais preso à verdade histórica, apresenta razões de Estado para a morte dela.

3. a) Apóstrofe, espécie grandiosa de vocativo. b) Os quatro primeiros versos da estrofe seguem o padrão impessoal da narrativa em terceira pessoa. Os quatro últimos adotam o tom exclamativo da apóstrofe, interrompendo o fluxo narrativo por meio de uma invectiva contra o rei D. Afonso IV.

4. D 5. A

22 LITERATURA • Fuvest 2003

6. C 7. a) Possuem natureza metafísica. b) Não se dirigem a um fato concreto e de existência comprovada. Censuram, de maneira geral, a idéia de progresso, por meio da vaga noção de que tudo começou com a invenção do navio. Em rigor, trata-se de uma censura moral à inquietação humana, ao desejo de sabedoria e de mudança.

8. a) Navio. b) Metonímia: designam o objeto por meio do material de que é feito.

9. a) Porque censuram de maneira geral e abstrata a idéia de navegação como fonte de infelicidade para o homem. b) O verso final alude ao fato de que os verdadeiros cristãos não deviam se entregar à ambição da navegação. Pela doutrina de Cristo, o inventor do navio deveria ir para o inferno.

10. C 11. D 12. E 13. C 14. E 15. B 16. A 17. a) O narrador do episódio em questão é Vasco da Gama, o herói do poema, que, em dada altura da fábula, assume a função de personagem-narrador. A fala do Velho do Restelo integra uma unidade narrativa maior em Os Lusíadas, que ocupa os cantos III, IV e V. Nela, Vasco da Gama conta ao rei de Melinde toda a história de Portugal, desde as origens do povo lusitano até a viagem de descoberta do caminho marítimo para as Índias, levada a efeito pelo herói do poema. A fala do Velho do Restelo, por sua vez, é o desfecho do episódio conhecido como Partida das Naus, em que Vasco da Gama narra como deixou a Torre de Belém, porto do rio Tejo em Lisboa. No relato de sua partida, o capitão da armada rememora a despedida, cujo clima é de lamento e incerteza. Dentre as pessoas que se manifestaram verbalmente na despedida, Vasco da Gama ficou particularmente sensibilizado pelo discurso do Velho, a ponto de o reconstituir com unidade retórico-discursiva ao rei de Melinde. b) Vasco da Gama representa o ideal expansionista do Império Lusitano, que implica a dilatação da fé cristã e do comércio ocidental. Como herói do poema, encarna as convicções da persona épica, isto é, do narrador principal da epopéia, que, como manifestação do gênero épico, exalta o assunto da narrativa. Mais precisamente, Vasco da Gama encarna o projeto político da Dinastia de Avis, que, adepta das novidades do Renascimento, aplica as conquistas da ciência à difusão do comércio.

O Velho do Restelo, como personagem alegórica, representa o ponto de vista contrário à expansão do Império Lusitano, por considerá-la resultado do desejo de poder pelo poder. O Velho pode ser entendido, também, como manifestação do ideal da Dinastia de Borgonha, que se fundava na ordem feudal e a conseqüente preferência pela economia agrária em desfavor do mercantilismo ascendente.

BIBLIOGRAFIA CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Reprodução paralela de duas edições de 1572 [fac-símile]. Comissão da Academia das Ciências de Lisboa para a Edição Crítica de Os Lusíadas. Lisboa, Imprensa Nacional — Casa da Moeda, 1982.

CIDADE, Hernani. Luís de Camões: O Épico. Lisboa, Livraria Bertrand, 1968. GONÇALVES, Rebelo. Dissertações Camonianas. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1937. LENCASTRE, Francisco Sales de. Os Lusíadas. Edição anotada para leitura popular. Livraria Clássica Editora, 1927. RAMOS, Emanuel Paulo. Os Lusíadas. Organização, prefácio e notas. Porto, Porto Editora, 1987. SARAIVA, Antônio José. Os Lusíadas. Organização, prefácio e notas. Porto, Figueirinhas, 1978. Luís de Camões. Estudo e Antologia. Lisboa, Publicações EuropaAmérica, 1972.

ANGLO VESTIBULARES

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