FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA NÚCLEO DE SAÚDE DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA MESTRADO ACADÊMICO EM PSICOLOGIA

LUCIANO SÉRGIO DE SOUSA GUEDES

PSICANÁLISE E LITERATURA: UMA INTERFACE COM TRÊS CONTOS DE CLARICE LISPECTOR

Profª Drª. Melissa Andréa Vieira de Medeiros Orientadora

PORTO VELHO 2015

LUCIANO SÉRGIO DE SOUSA GUEDES

PSICANÁLISE E LITERATURA: UMA INTERFACE COM TRÊS CONTOS DE CLARICE LISPECTOR

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Psicologia como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Linha de Pesquisa: Saúde e Processos Psicossociais. Orientadora: Drª. Melissa Andréa Vieira de Medeiros.

PORTO VELHO 2015

LUCIANO SÉRGIO DE SOUSA GUEDES PSICANÁLISE E LITERATURA: UMA INTERFACE COM TRÊS CONTOS DE CLARICE LISPECTOR Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Psicologia como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Linha de Pesquisa: Saúde e Processos Psicossociais. Orientadora: Drª. Melissa Andréa Vieira de Medeiros.

Aprovada em __/__/____. BANCA EXAMINADORA Dra. Melissa Andréa Vieira de Medeiros (Orientadora). Instituição: Fundação Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Programa: Pós-graduação em Psicologia – Mestrado Acadêmico em Psicologia – MAPSI. Assinatura ______________________________________________ Dr. José Juliano Cedaro. Instituição: Fundação Universidade Federal de Rondônia – UNIR Programa: Pós-graduação em Psicologia – Mestrado Acadêmico em Psicologia – MAPSI Assinatura ______________________________________________ Dra. Ana Maria Loffredo. Instituição: Universidade de São Paulo – USP Programa: Pós-graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano. Assinatura ______________________________________________

Dedico este árduo, mas prazeroso trabalho, à memória dos meus avós SABASTIÃO BATISTA GUEDES E SEBASTIANA PEREIRA GUEDES que me abriram as portas para o mundo das letras, do estudo, da educação. Eles sonharam com este momento e, saudosamente, desejo compartilhar com eles.

AGRADECIMENTOS A Deus, meu objeto obscuro do desejo. Força animadora nos momentos de desânimo. À Professora Melissa Medeiros, minha orientadora, pelas orientações valiosíssimas e pelas conversas agradáveis sobre a psicanálise, pelas indicações de leitura para a montagem desse trabalho e pela disponibilidade em atender prontamente meus pedidos de socorro. À Professora Ana Loffredo e ao Professor Juliano Cedaro pelas valiosíssimas contribuições na qualificação, e pela gentileza em aceitar o convite para participarem da minha banca de defesa. Aos professores do Mestrado Acadêmico em Psicologia por terem, cada um a seu modo, me ajudado a concretizar esta conquista. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que vem propiciando a formação e qualificação de docentes nesta região amazônica. A Universidade Federal de Rondônia pela formação consistente tanto no Curso de Graduação em Psicologia quanto no Mestrado Acadêmico em Psicologia. À Rose, minha mulher, pelo apoio e incentivo. Aos amigos da turma do Mestrado 2013, parceiros incansáveis e inestimáveis de uma jornada difícil, mas prazerosa por suas presenças no caminho, especialmente Aryanne Freitas, Lucilene Zanol, Lyerka Fernandes, Daniele Mejia, Rosi Moura, Regis Albuquerque, Ainá Barolli, Pâmela Moreno, Lidiane Ferreira, Fernanda Angreswski, André Luiz Brum e Gisele Caroline. Aos meus amigos, caríssimos, da Escola Estadual Barão do Solimões pela disponibilidade em sempre permitir que eu pudesse organizar meus horários da escola em consonância com os horários do Mestrado Acadêmico em Psicologia. Eles abriram mão de muitas coisas por mim. Nada pode compensar isso. À Débora Ferreira de Moraes pelo livro, me dado de presente e com dedicatória, que muito me valeu de inspiração para escrita do meu texto. Obrigado pela generosidade.

Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.

Clarice Lispector (2010, p. 141) Escritores criativos são aliados valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o seu e a terra com as quais nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar. Estão bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento da mente, já que se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à consciência.

Sigmund Freud(1907[1906]/1996, p. 20)

RESUMO

O presente trabalho trata de uma pesquisa de natureza teórica que realiza uma interface entre Psicanálise e Literatura, levando em consideração a confluência dos discursos entre essas duas áreas. Sendo assim, o referencial teórico que dá suporte à análise dos textos literários tem como base a teoria psicanalítica freudo-lacaniana, o que implica considerar a existência de um sujeito aquém da consciência, um sujeito do inconsciente, um ser da incompletude. Para a realização deste estudo foram selecionados três contos da obra ficcional de Clarice Lispector: Felicidade Clandestina, Uma amizade sincera e Amor. Nesta interface, buscou-se verificar, nos contos literários referidos, conceitos psicanalíticos que podem estar em operação na tessitura dos textos. Dos resultados das análises são destacados alguns desses conceitos, tais como desamparo, falta e estranhamento como possíveis elementos observados. Do ponto de vista da psicanálise, esses conceitos configuram à própria condição do sujeito enquanto um ser marcado por um limite, pela falta, pela castração, isto é, o sujeito do inconsciente.

PALAVRAS-CHAVE: Psicanálise. Literatura. Desamparo. Falta. Sujeito.

ABSTRACT

This work is a theoretical research that performs an interface between psychoanalysis and literature, taking into account the confluence of discourses between these two áreas. Thus, the theoretical that framework gives supports the analysis of literary texts is based on the Freudian-Lacanian psychoanalytic theory, which implies considering the existence of a subject to whom of consciousness, a subject of unconscious, a being of incompleteness. For this study, we selected three tales of the fictional work of Clarice Lispector: Clandestine Happiness, A sincere friendship and Love. In this interface, it sought to verify, in these literary tales, psychoanalytic concepts that may be in operation in the fabric of the texts. Of the results of the analysis are highlighted some of these concepts, such as abandonment, lack and strangeness as possible observed elements. From the point of view of psychoanalysis, these concepts constitute the very condition of the subject as a being marked by a limit, lack, by castration, that is, the subject of the unconscious.

KEYWORDS: Psychoanalysis. Literature. Abandonment. Lack. Subject.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10 2 MÉTODO................................................................................................................................ 14 3 CAMINHOS DA ANGÚSTIA E DESAMPARO EM FREUD .......................................... 18 3.1 A angústia inscrita no corpo: neurose de angústia e neuroses atuais. ........................ 18 3.2 A angústia inscrita no psiquismo: histeria de angústia................................................ 20 3.2.1 Primeira teoria da angústia: recalcamento gera angústia. ....................................... 23 3.2.2 Segunda teoria da angústia: angústia gera recalcamento. ........................................ 26 3.2.3 O desamparo .............................................................................................................. 29 3.3 A virada: angústia de castração. .................................................................................... 31 4 A QUESTÃO DO SUJEITO: UM SER DA FALTA, LOGO DESEJANTE .................... 41 4.1 Das Ding - A Coisa freudiana. ........................................................................................ 41 4.2 Da Coisa perdida ao Objeto a, causa de desejo. ........................................................... 49 4.3 O objeto a como causa de desejo e sua relação com a falta ......................................... 51 5 DAS UNHEIMLICH:A FAMILIARIDADE DO ESTRANHO ......................................... 55 5.1 A inquietante estranheza ................................................................................................ 55 5.2 O “Homem de Areia”: uma ilustração freudiana no campo ficcional ....................... 59 5.3 O fenômeno do “duplo” e a repetição............................................................................ 64 6 LITERATURA E PSICANÁLISE: CONFLUÊNCIAS ..................................................... 67 6.1 Caminhos de aproximação ............................................................................................. 67 6.2 A linguagem e seu valor de simbolização ...................................................................... 76 6.2.1 O escritor literário e o fantasiar ................................................................................ 81 6.3 O estilo literário de Clarice Lispector ........................................................................... 84 7 ANÁLISES DOS TRÊS CONTOS DE CLARICE LISPECTOR ..................................... 90 7.1 Primeiro Conto: Felicidade clandestina ........................................................................ 91 7.2 Segundo Conto: Uma amizade sincera .......................................................................... 98 7.2.1 O outro e o sofrimento ............................................................................................. 102 7.2.2 O autoconhecimento ................................................................................................. 104 7.3 Terceiro Conto: Amor .................................................................................................. 106 7.3.1 O Estranho como desencadeador da peripécia........................................................ 114 7.3.2 O efeito do estranho. ................................................................................................ 117 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 123 REFERÊNCIAS ...................................................................................................................... 126

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1 INTRODUÇÃO Ao concluir o Curso de Psicologia e pleitear uma vaga no Mestrado Acadêmico, a possibilidade de realizar um trabalho de interface me pareceu bastante plausível, visto a minha formação em letras e o contato com a psicanálise, ambas fundamentadas numa práxis da linguagem como modo de expressão dos sentidos implicados na subjetividade. Desde o primeiro contato com a psicanálise, fui seduzido pela ideia da existência do inconsciente, descoberta fundamental porque rompe com a racionalidade cartesiana do “penso, logo existo” para criar uma compreensão de um o sujeito que pensa, mas sob uma lógica diferente, singular, uma lógica inconsciente. E esta condição de existência para além do indizível, sempre me fascinou também na literatura, tanto na poesia, como no conto, na crônica e no romance - como se a linguagem transmitisse sempre uma ilusão de desvelamento do existir humano, seus desejos, seus limites. Ao mesmo tempo, o modo particular como cada sujeito habita o mundo com sua singularidade, conjugando seus desejos em face dos imperativos sociais me despertaram a observar que literatura e psicanálise possibilitam pensar sobre os elementos que configuram um mal-estar subjetivo. Portanto, o sujeito, para existir enquanto ser social, tem de aprender a lidar com seu desejo em face dos imperativos da convivência com os outros. A literatura consegue, a meu ver, problematizar tais elementos e o mal-estar que a civilização impõe, mal-estar tão bem teorizado Freud em 1930. A vida implicada em seus dilemas é tema da psicanálise e da literatura e, como poetiza Fernando Pessoa (1966), “a literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta.” (p. 285). Além do mais a psicanálise e a literatura têm mantido, desde Freud, passando por Lacan até os dias atuais, uma relação riquíssima no que diz respeito à constante busca de compreender a subjetividade humana implicada na linguagem poética. Portanto, este trabalho trata de uma interface que reconhece, na própria linguagem, uma das formas mais expressivas que o sujeito encontra para dar conta da sua existência enquanto ser faltoso e desejante. Ambas, psicanálise e literatura, em seu discurso, podem orbitar em torno desses dois elementos significativos falta e desejo, e tendo na linguagem uma fonte inesgotável de sentido, permitem ao sujeito empreender uma busca pela a Coisa1, mesmo que jamais possa 1

Termo psicanalítico que designa a falta estrutural primordial e geradora do desejo.

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encontrá-la. Assim temos: do lado da psicanálise, é a linguagem que estrutura o sujeito do inconsciente; do lado da literatura, também a linguagem que atribui sentidos onde a palavra não pode significar plenamente. Destarte, com uma interface entre a psicanálise e a literatura, este trabalho contém um percurso que poderá ser seguido pelo leitor na tentativa de apontar elementos que marcam a condição da existência humana, especialmente a condição do desamparo. Apresenta um referencial teórico psicanalítico freudo-lacaniano quanto à condição humana desse desamparo, da angústia, da falta, bem como das vivências que trazem uma experiência de estranhamento. E, na interface com a literatura, dialoga com três contos da obra literária de Clarice Lispector, buscando, nessas narrativas, sentidos subjacentes referentes à condição do desamparo e da incompletude que são a marca fundamental do sujeito. Os contos selecionados da obra de Clarice Lispector são: Felicidade Clandestina, Uma amizade sincera e Amor. Não foi uma escolha fácil, dada à pluralidade de autores e estilos literários que me instigaram a aventurar-me num processo investigativo, dentre eles, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, Manoel de Barros, Marcel Proust. Mas o contato com o livro de contos Felicidade Clandestina de Clarice Lispector foi para mim um encontro arrebatador. Nada mais instigante do que este título Felicidade clandestina, que apresenta de impacto, a meu ver, um paradoxo da clandestinidade associada ao substantivo felicidade. Se a felicidade é um bem que procuramos, tendo por isso um valor positivo, por quais razões ela estaria associada à clandestinidade como se quisesse representar uma transgressão? Esse conto foi decisivo para optar por esta importante escritora da nossa literatura brasileira que é Clarice Lispector. Além do mais, pude constatar que não há pesquisas recentes acerca deste conto clariciano. Trabalhos acadêmicos sobre a obra de Clarice Lispector seguem uma temática ampla. 2

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Portais Capes, Scielo, Biblioteca Digital USP, Biblioteca Digital da Unicamp – SBU, Biblioteca do Programa de Pós-graduação em teoria psicanalítica da UFRJ, trazem trabalhos como os de Rosito (2014) sobre o lugar do feminino na obra de Clarice Lispector; Raveli (2014) com a questão da alteridade; Machado (2014) com uma análise da protagonista Ana, do conto Amor. Teses e Dissertações nesses portais também mostram a amplitude do campo de pesquisa em relação à literatura clariciana numa interface com a psicanálise: Moraes (2011) com uma leitura da obra “Água viva”, visando construir uma metapsicologia do leitor literário; Sanches (2012) aborda a questão dos paradoxos do desamparo a partir da obra “Perto do coração selvagem”; Barbosa (2013) reflete sobre figuras de cura em Clarice Lispector.

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Sendo assim, neste vasto campo de pesquisa sobre a obra de Clarice Lispector, numa perspectiva psicanalítica, se insere também este trabalho dissertativo, cuja singularidade está no recorte feito a partir dos três contos já mencionados e na reflexão acerca da questão fundamental do desamparo e dos temas que giram em torno deste, tais como falta e desejo. Este trabalho está organizado da seguinte forma: o item 2 traz a questão do método de análise dos dados, destacando o referencial psicanalítico utilizado nesta análise. O item 3 aborda a questão da angústia em Freud demonstrando o percurso de elaboração do conceito até a sua formulação mais decisiva do ponto de vista metapsicológico, que aparece em “Inibição, sintoma e Angustia” (1926). Este texto, reporta à questão do desamparo estrutural como marca da condição humana no processo de desenvolvimento como modelo e protótipo da angústia. Na sequência, no item 4, são discutidas questões referentes à condição do sujeito psicanalítico e sua falta estrutural. Para isso, inicia-se uma reflexão acerca da das Ding freudiana – a Coisa – primeira marca de um processo de sucessivas perdas que envolvem o ser humano em seu desenvolvimento. Com esses apontamentos, esta seção aborda a questão do objeto para a psicanálise e, numa perspectiva lacaniana, discute a noção de objeto a, elemento importante para situar o sujeito como um ser não somente da falta, mas, sobretudo, um sujeito do desejo, portanto, um ser desejante. O item 5 retoma a questão da angústia numa perspectiva do texto “O estranho” de 1919, no qual Freud realiza um belo ensaio sobre os escritores literários e seus processos criativos. Nesta seção, portanto, já se apresenta uma reflexão mais direta da interface entre psicanálise e literatura que se objetiva efetuar neste trabalho. O item 6 trata dos aspectos importantes da relação entre a psicanálise e literatura e suas confluências, isto é, busca-se demonstrar, com o auxilio de vários autores, a relação de proximidade que desde sua fundação, a psicanálise alimenta com a arte literária. Como esta pesquisa se realiza com alguns contos da obra literária de Clarice Lispector, também há um destaque para alguns aspectos importante do estilo literário dessa autora, desprendido de qualquer ideia sobre buscar nisto uma espécie de compreensão da personalidade da escritora, pois este trabalho não visa a este objetivo. O item 7 comporta a análise propriamente dita dos contos claricianos escolhidos. As nuances do texto são estudadas numa perspectiva psicanalítica que se configura numa

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proposta dialógica, buscando encontrar interfaces e encontros possíveis de serem atribuídos a partir da teoria psicanalítica. Vale destacar que a literatura não pode ser aprisionada a nenhuma forma de interpretação ou reduzida a qualquer conceituação. Tudo que se pode é buscar leituras, a partir de uma forma especial de olhar sobre o texto e, com isso, fazer inferências implicadas na interface desses elementos trabalhados. Ao final, nada se exaure em absoluto, pois sendo a psicanálise e a literatura advindos de expressões do subjetivo, o devir constante se revela, logo não nos resta se não fazermos considerações que emanam de um árduo trabalho de leitura, tanto dos textos psicanalíticos quanto dos textos literários e seus críticos. Finalmente, sem poder escapar – por tudo que expressei – ao tema que me escolheu, fiz uma viagem prazerosa, não obstante as pedras no caminho, e abro a porta a todos que desejarem aventurar-se também pelo caminho percorrido.

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2 MÉTODO Esta é uma pesquisa de cunho teórico, com base na teoria psicanalítica freudolacaniana, a partir do estudo de três contos da obra literária de Clarice Lispector. Todo o empreendimento da pesquisa visou observar elementos próprios da teoria psicanalítica possivelmente atuando na tessitura dos textos analisados. Com relação à psicanálise, cabe destacar a importância de tal análise com base no que aponta Jean Bellemin-Noël (1983), A psicanálise (entendo por este termo a doutrina freudiana) mais do que uma ciência é a arte de decifrar uma verdade em todos os setores enigmáticos da experiência humana, tal como o homem a vive, isto é a ‘fala’ a um outro ou a si mesmo. Não distinguindo um sujeito de um objeto de conhecimento, ela nega que exista um sujeito definido ou definível, e objetos de pensamentos que não sejam habitados, desviados pelas artimanhas, tentativas, desejos de uma parte do sujeito. (p. 9) 3

A análise dos dados apontou reflexões sobre o sujeito e suas expressões inconscientes, tendo em mente a trilha indicada por Freud ao apropriar-se dos escritos literários para estabelecê-los como modelos de seu arcabouço teórico. Sendo assim, foi uma leitura como proposta por Bellemin-Noël (1983), com os óculos de Freud: Ler com os óculos de Freud é ler numa obra literária – como atividade de um ser humano e como resultado desta atividade - aquilo que ela diz sem o revelar, porque o ignora; ler o que ela cala através do que mostra e porque o mostra por este discurso mais do que por um outro. (p. 19).

Tal procedimento implicou, portanto, considerar, a todo momento, que o texto literário tem sua especificidade, cuja análise não se pode jamais desvirtuar, sob pena de incorrer no equívoco de instrumentalizar a escrita literária, aprisionando-a nos limites da interpretação, o que seria um reducionismo. Débora Moraes (2012) num excelente trabalho sobre a relação entre o leitor e o texto literário, a partir de uma abordagem psicanalítica, faz apontamentos importantes sobre o cuidado que devemos ter, ao pesquisar textos literários, para não incorremos no risco de reducionismo de aplicação da psicanálise ao texto, “tendendo a amortizar os fenômenos da experiência estética à condição de sintoma, de caráter, de algo a ser curado e fechando, por meio de uma conceituação a priori, as possibilidades hermenêuticas”. (p. 89).

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Em todas as citações diretas desta dissertação, os grifos serão sempre dos autores.

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De acordo com Moraes (2012), um psicanalista pesquisador de textos literários deve sempre tomar alguns cuidados para não incorrer em tal reducionismo, fugindo à “tentação da psicobiografia, da patografia ou da tentativa de colocar no divã seja personagem seja o próprio autor da obra”. (p. 89). A análise da personalidade do escritor foi uma fórmula que o próprio Freud utilizou na sua leitura crítica de textos literários, colocando muitas vezes no divã o artista, trabalhando numa vertente autobiográfica. Um exemplo disto é o texto freudiano “Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância” (FREUD, 1910/1996) no qual é possível perceber uma narração detalhada da vida do artista. Nesse texto, de acordo com Moraes (2012), Freud Por meio da obra e de dados da vida de Leonardo, empreende uma análise do artista e apresenta a possibilidade de o colocarmos num ‘divã’. Tendo em vista que a obra é uma produção inconsciente e que, portanto, seguiria os mesmos mecanismos e lógica inconsciente que um analisando, descrevendo um sonho, por exemplo, faz num setting analítico convencional, Freud procura dados contextuais que poderiam corroborar para suas hipóteses acerca do artista. Nesse sentido aplica a Psicanálise e reduz as possibilidades hermenêuticas decorrentes da experiência estética de uma forma mais ampla. No lugar das associações do autor, Freud faz suas próprias e por isso muitas censuras são feitas para esse tipo de análise da arte. (p. 90).

Não obstante a problemática implicada na aproximação da psicanálise com a literatura, esta interface, desde Freud, tem produzido importantes e ricos debates. De acordo com Ana Cecília Carvalho (2012), é preciso considerar o fato “de que, ao voltar-se para o exame da obra literária, o mérito da Psicanálise tem sido deixar claro que aquilo que a move não é outra coisa senão a possibilidade fecunda de aproximar-se do literário, justamente, por onde ele se mostra analisável, sem perder sua especificidade”. (p. 14). Yudith Rosenbaum (1999) aponta um caminho importante a ser seguido nesta perspectiva de valorização do texto literário em interface com uma leitura psicanalítica quando diz que o pesquisador deve manter uma postura adequada neste processo de análise: Nosso foco prioritário será, como se espera de uma crítica literária não reducionista, a organização do discurso linguístico, ou seja, o movimento da narrativa no jogo dos planos sintático, metafórico, sonoro etc. E a psicanálise, enquanto olhar abrangente dos vários níveis textuais, constituindo-se muitas vezes na possibilidade do salto interpretativo a partir dos elementos que a análise estilística decodificou, deverá inserir-se aqui como instrumento de construção dialética entre os sentidos latente e manifesto do texto. (p. 21-2).

Podemos pensar a dialética do texto a partir do postulado de Umberto Eco (2004) de que “um texto representa uma cadeia de artifícios de expressão que devem ser atualizados pelo destinatário”. Trata-se, portanto, de uma participação efetiva e criativa do leitor na relação com o texto. (p. 35). Tal atualização ocorre em função daquilo que Eco (2004)

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denominou de movimentos cooperativos entre o texto e leitor. Para este autor, um texto se diferencia de outros tipos de expressão justamente por sua complexidade. Tal complexidade se justifica pelo fato de o texto ser entremeado pelo “não dito”. Nas palavras de Eco (2004), ‘Não-dito’ significa não manifestado em superfície, a nível de expressão: mas é justamente este não-dito que tem de ser atualizado a nível de atualização de conteúdo. E para este propósito, um texto, de uma forma ainda mais decisiva do que qualquer outra mensagem, requer movimentos cooperativos, conscientes e ativos da parte do leitor. (p. 36).

Por isso, é preciso considerar o fato de haver uma relação dialética entre o texto e o leitor, pois o leitor tem uma função de agir sobre o texto, já que tem sua responsabilidade no processo de atualização deste. A voz ativa do texto somente se efetiva pela interação com o leitor, isto é, por seu movimento cooperativo no ato da leitura. De acordo com Eco (2004), O texto está, pois, entremeado de espaços brancos, de interstícios a serem preenchidos, e quem o emitiu previa que esses espaços e interstícios seriam preenchidos e os deixou brancos por duas razões. Antes de tudo porque um texto é um mecanismo preguiçoso (ou econômico) que vive da valorização de sentido que o destinatário ali introduziu; e somente em casos de extremo formalismo, de extrema preocupação didática ou de extrema repressividade o texto se complica com redundâncias e especificações ulteriores — até o limite em que se violam as regras normais de conversação. Em segundo lugar, porque à medida que passa da função didática para a estética, o texto quer deixar ao leitor a iniciativa interpretativa, embora costume ser interpretado com uma margem suficiente de univocidade. Todo texto quer que alguém o ajude a funcionar. (p 37).

Em seu trabalho sobre o “Ato da leitura” Wolfgang Iser (1999) também aponta a questão do vazio como sendo uma estrutura fundamental de indeterminação do próprio texto literário, funcionando como um convite à participação do leitor. Para Iser (1999), portanto, os lugares vazios, bem como as negações no texto “[...] são essenciais para a comunicação porque põem em movimento e até certo ponto regulam a interação entre o texto e o leitor”. (p. 126). Iser (1999) destaca, ainda, que esses lugares vazios “abrem uma multiplicidade de possibilidades, de modo que a combinação dos esquemas textuais se torna uma decisão seletiva do leitor”. (p. 128). Sendo assim, o texto necessita da valorização de sentidos dados pelo próprio leitor. Iser (1999) arremata: “uma vez que os lugares vazios interrompem as possibilidades de conexão de segmentos textuais, esse processo só se completa na imaginação do leitor”. (p. 130). Portanto, por meio da relação dialógica entre o texto e leitor é que são produzidos sentidos múltiplos, pois o texto necessita de um leitor capaz de produzir aquilo que Iser (1999) denomina de “objeto imaginário”. A esse respeito, Iser (1996) afirma:

17 Por meio dessas transformações provocadas pelos signos do texto, o leitor produz o objeto imaginário. Isso equivale a dizer que o texto ficcional exige imperiosamente um sujeito, isto é, um leitor. Pois enquanto material dado, o texto é mera virtualidade, que se atualiza apenas no sujeito. Em consequência, o texto ficcional deve ser visto principalmente como comunicação, enquanto a leitura se apresenta em primeiro lugar como uma relação dialógica. (p. 123).

Por essa razão, afirma Eco (2004), “[...] um texto postula o próprio destinatário como condição indispensável não só da própria capacidade concreta de comunicação, mas também da própria potencialidade significativa”. (p.37). Sendo assim, o leitor está implícito no quadro gerativo do texto conforme aponta Eco (20040, ao afirmar: “dissemos que o texto postula a cooperação do leitor como condição própria de atualização. Podemos dizer melhor que o texto é um produto cujo destino interpretativo deve fazer parte do próprio mecanismo gerativo”. (p. 39). Assim, pelo exposto, o Método de Análise dos dados não visou uma aplicação da psicanálise, mas objetivou promover uma reflexão acerca dos fenômenos extraídos do texto literário numa perspectiva de possibilidades múltiplas de significação, sem a pretensão de qualquer enquadramento. E, conforme afirma Débora Moraes (2012), Assim, como num poema, o sentido desliza, é mutável e aponta para essa condição do sujeito. Para interpretar, então, levantamos hipóteses e levamos isso a cabo como uma aposta interpretativa que vai se juntar com outras apostas e outros sentidos doravante descobertos. (p. 74).

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3 CAMINHOS DA ANGÚSTIA E DESAMPARO EM FREUD Minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite. Clarice Lispector (1977/1998, p.18)

Num primeiro momento das formulações presentes nos escritos freudianos, encontramos a angústia inscrita no corpo, descrita de modo mais detalhado no texto “Neurose de Angústia” quando Freud (1895a [1894a]/1996) empreende um esforço para separá-la da neurastenia, que especifica como neurose atual, cuja etiologia atribui a disfunções atuais da sexualidade que estariam no cerne de toda sintomatologia dos pacientes que sofriam de neuroses no próprio corpo. No início do Rascunho E, Freud (1950a [1894b]/1996) afirma: “logo ficou claro para mim que a angústia de meus pacientes neuróticos tinha muito a ver com a sexualidade; e me chamou especialmente atenção a certeza com que o coitus interruptus praticado numa mulher conduz à neurose de angústia”. (p. 235). 3.1 A angústia inscrita no corpo: neurose de angústia e neuroses atuais. Notadamente, a angústia inscrita no corpo é um ponto central ao qual Freud dedica especial atenção neste primeiro momento de sua teorização e que está presente, também, nos textos: “Rascunho E” (1950a [1894b]/1996), oriundo de uma carta a Fliess, na qual trata das origens da angústia; nos artigos: “Obsessões e fobias” (1895b [1894c]/1996/1996), “Neurose de angústia” (1895a[1894a]/1996) e “Respostas às críticas sobre Neurose de angústia” (1895c/1996); além do texto “Sexualidade na etiologia das neuroses” (1898/1996). A angústia, então, nesse contexto será compreendida como libido transformada, isto é, um aumento excessivo de excitação sexual que não encontra forma de satisfação adequada, implicando, portanto, numa descarga somática. Vale destacar que na origem dessa angústia encontra-se uma causa de acúmulo sexual, ponto nodal para Freud, que, em toda a sua teoria, persevera a ideia de uma etiologia sexual presente nas neuroses. Portanto, nesse primeiro momento da teoria freudiana, a angústia não está como causa, mas como consequência, oriunda de um subproduto desagradável da sexualidade que não se deixa simbolizar e que não sofre nomeação. Destarte, a angústia era oriunda de uma relação sexual interrompida, mal sucedida e insatisfatória ou da falta desta como, por exemplo, a “angústia das virgens” (FREUD, 1895a [1894a]/1996, p. 101). Portanto, “a origem da angústia não deve ser buscada na esfera

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psíquica. Por conseguinte, deve estar radicada na esfera física: é um fator físico da vida sexual que produz angústia”. (FREUD, 1950a [1894b]/1996, p. 235). Se essa energia de origem sexual gera uma tensão que não consegue ser mediada pelo aparelho psíquico, “a tensão física, não sendo psiquicamente ligada, é transformada em – angústia”. (FREUD, 1894/1996, p. 238). Esta primeira fase da angústia caracteriza-se, portanto, sob um ponto de vista econômico, isto é, relacionada a uma quantidade de energia ou libido acumulada que não obtém descarga e que provoca angústia expressa como sintoma no corpo. Esta é a linha de pensamento dos primeiros escritos freudianos, bem como do “Projeto para uma Psicologia Científica” 4 , influenciados pelas concepções dos estudos neurológicos de Freud, que pretendia, de acordo como o modelo médico-científico de seu tempo, demonstrar que os aspectos psicológicos da mente poderiam ser descritos em termos fisiológicos. Vale salientar que Freud teve sua formação intelectual voltada para um viés das ciências naturais e positivista, típico do contexto universitário alemão do século XIX, o que ajuda a entender a elaboração do “Projeto”. Um texto importante que trata das formulações teóricas iniciais sobre a angústia é o artigo “Sobre os fundamentos para destacar da neurastenia uma síndrome denomina ‘Neurose de Angústia” no qual Freud (1895a [1894a]/1996) demonstra sua convicção sobre a sexualidade intimamente ligada a questão da angústia, baseado em sua prática clínica, na qual os pacientes, nos casos de neurose de angústia, manifestavam em seus sintomas, aspectos claros de um acúmulo de tensão sexual que escapava em forma de angústia. Tal convicção foi expressa anteriormente por Freud numa carta a Fliess, o Rascunho E, (1950a [1894b]/1996), no qual apresenta a assertiva de que a angústia tinha uma relação direta com aspectos físicos da vida sexual. No caso da neurose de angústia, [...] A tensão física aumenta, atinge o nível de um limiar em que consegue despertar afeto psíquico, mas, por algum motivo, a conexão psíquica que lhe é oferecida permanece insuficiente: um afeto sexual não pode ser formado, porque falta algo nos fatores psíquicos. Por conseguinte, a tensão física, não sendo psiquicamente ligada, é transformada em angústia. (p. 238)

Na descrição da sintomatologia clínica da neurose de angústia Freud (1895a [1894a]/1996) se refere à libido como flutuante, gerando angústia que, por sua vez, provoca 4

No outono de 1895, no trem que o levava de Berlim a Viena, Freud começa a rascunhar o “Projeto para uma psicologia científica”, obra que nunca irá publicar. O projeto só é publicado em 1950, 11 anos após sua morte. Porém, é nessa obra que os primórdios conceituais encontraram um terreno germinativo e que, ao longo dos 40 anos de produção da psicanálise, Freud foi replantando os conceitos ali germinados em vários outros textos.

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uma “expectativa angustiada” como sintoma nuclear da neurose, sendo um acúmulo de excitação física não descarregada, uma vez que não há elaboração psíquica capaz de ligar a libido a uma representação que pudesse transformá-la em afeto. Nesta perspectiva, a angústia funciona como uma descarga do acúmulo de excitação sexual para o qual não houve forma de ab-reação apropriada. De acordo com Zeferino Rocha (2000) os sintomas somáticos presentes na neurose de angústia existem [...] porque não elaborados psiquicamente, não falam a linguagem do desejo, pois não tiveram acesso ao mundo da simbolização. Eles falam a linguagem vazia da angústia, sob a forma de uma ‘expectativa ansiosa’ e é através dessa pseudo linguagem de um corpo ainda não habitado pela linguagem que se descarrega a tensão sexual física não elaborada psiquicamente. (p. 59).

Esse aspecto da falta de elaboração psíquica quanto a uma tensão sexual ameaçadora, sobre a qual não há controle, permite pensar a questão de desamparo (Hilflosigkei) relativo à condição inicial de total dependência nos anos iniciais de vida nos quais predomina uma incapacidade natural da criança em suprir suas próprias necessidades, desencadeando um processo real de angústia. No contexto da clínica freudiana, os sintomas se destacavam porque, notadamente, realizavam, no corpo, um processo de descarga da excitação sexual acumulada. A falta de mecanismos para elaboração psíquica da libido redimensiona o interesse de Freud no estudo das neuroses atuais. Como no caso das neuroses atuais a angústia resultava apenas de uma transformação direta da libido física, Freud abandonou tal estudo visto que, não podendo haver mediação psíquica, não se tratava, portando de conteúdo psicanalítico. Assim, voltandose para o estudo das psiconeuroses de defesa, Freud inscreve a angústia no campo psíquico. 3.2 A angústia inscrita no psiquismo: histeria de angústia.

A partir de 1897, Freud passa a por em relevo, em suas pesquisas, a existência de uma realidade psíquica, abandonando a concepção anterior sobre a teoria da sedução sexual precoce, na qual, baseado nos relatos de seus pacientes, acreditava que as crianças eram submetidas pelos adultos cuidadores a uma experiência sexual real. Numa carta a Fliess, datada de 21 de setembro de 1897, Freud (1950b[1897a]/1996) afirma: “não acredito mais em minha neurótica [teoria das neuroses]”. (p. 309). O abandono de tal teoria permite pensar numa dimensão da angústia que, para além do corpo, implica um aspecto psicológico referente ao mundo fantasmagórico de uma realidade psíquica.

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Cabe destacar que no texto “As neuropsicoses de defesa” Freud (1894/1996) nos fala da diferenciação entre neuroses de defesa e neuroses atuais. As neuroses atuais explicar-seiam pelos efeitos imediatos advindos da sexualidade insatisfatória, enquanto nas neuroses de defesa a origem dos conflitos era infantil, gerando mecanismos de defesa como um esforço do Eu com vista a diminuir a força de uma representação. Isso se obtém "retirando-lhe o afeto — a soma de excitação do qual ela está carregada". (p. 56). Esse processo libera a soma de excitação ligada a uma representação, “mas a soma de excitação desvinculada dela tem que ser utilizada de alguma outra forma”. (FREUD, 1894/1996, p. 56). Isso leva ao estabelecimento de diferentes mecanismos de defesa. Nesse sentido, destacam-se dois aspetos: o estudo sobre as neuroses atuais, cujo corpo é o corpo fisiológico onde a angústia se manifesta, em função de uma disfunção atual da vida sexual; e as psiconeuroses, com angústia manifesta no psiquismo, referente a símbolos mnêmicos de conflitos não resolvidos e diretamente ligados à história infantil de cada sujeito. No caso das psiconeuroses, no texto “A sexualidade na etiologia das neuroses” Freud (1898/1996) revela que Os acontecimentos e influências que estão na raiz de toda psiconeurose pertencem, não ao momento atual, mas a uma época da vida há muito passada, que o paciente também nada sabe deles. Ele os esqueceu – embora apenas em determinado sentido. (p. 255).

Isto se diferencia do caso das neuroses atuais em que os distúrbios ligados a uma dificuldade no campo da excitação sexual não encontram expressão psíquica, isto é, não há uma mediação simbólica capaz de lidar de forma mais adequada com tal carga de excitação excessiva. Nas palavras de Freud (1917a [1916-17a]/1996), na 24ª Conferência, “O estado neurótico comum”, Os sintomas das neuroses ‘atuais’ [...] não têm nenhum ‘sentido’, nenhum significado psíquico. Não só se manifestam no corpo (como, por exemplo, os sintomas histéricos, entre outros), como também constituem, eles próprios, processos inteiramente somáticos, em cuja origem estão ausentes todos os complicados mecanismos mentais que já conhecemos. ( p. 388.)

Portanto, os estudos iniciais transitam entre estes dois aspectos: somático, enquanto estudo das neuroses atuais e, mais precisamente, da neurose de angústia por um lado; por outro, um aspecto psíquico, no caso das neuropsicoses de defesa. De qualquer modo, nesses casos, podemos encontrar razões para um estudo psicanalítico, visto que as referidas neuroses se originam da libido. Freud (1917a [1916-17a]/1996) afirma, ainda na 24ª Conferência,

22 Que a função sexual não é uma coisa puramente psíquica, da mesma forma como não é uma coisa puramente somática. Influencia igualmente a vida corporal e mental. Se, nos sintomas das psiconeuroses, nos familiarizamos com as manifestações de distúrbios na atuação psíquica da função sexual, não nos surpreendemos ao encontrar nas neuroses ‘atuais’ as consequências somáticas diretas dos distúrbios sexuais. (p. 388).

Nestes primeiros estudos sobre a angústia, entre formulações ora do ponto de vista somático ora do ponto de vista psíquico, a libido se diferencia em dois polos: de um lado, a libido física, caracterizada por um “quantum de energia” que pode aumentar ou diminuir; do outro, a libido psíquica, de caráter qualitativo, dado a possibilidade de ligar-se a determinadas representações psíquicas. Posteriormente, em “Os instintos e suas vicissitudes” Freud (1915a/1996), ao estabelecer o conceito de pulsão, fará uma articulação entre esses dois aspectos: somático e psíquico, definindo a pulsão como “um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como um representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida da exigência feita à mente no sentido de trabalhar em consequência de sua ligação com o corpo”. (p. 127). A partir da entrada em cena da libido psíquica em oposição à libido física dos primeiros escritos, a angústia adquire um novo status, isto é, um novo destino. Embora continue sendo inscrita no corpo, a angústia será comandada pela libido psíquica. Tal formulação atingirá seu auge com a publicação, em 1926, do artigo “Inibição, sintoma e ansiedade”, no contexto da metapsicologia freudiana. Em função disso, podemos dizer, então, que há uma modificação 5 significativa da teoria da angústia pré 1926. A partir deste período, a angústia passa a ser tomada como reação perante o perigo, atribuída a um retorno de situações traumáticas de eventos registrados no inconsciente, definindo, ainda, o Eu6 como sendo o disparador e a sede da angústia. Essa ideia difere daquela defendida antes de 1926, quando a angústia era uma transformação “tóxica” da libido não utilizada. A publicação desse texto permite uma melhor articulação com o desamparo, conforme buscaremos demonstrar mais adiante.

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Compartilhamos das ideias de Monzani (1989) de que não é possível considerar as modificações na teoria freudiana como rupturas, no sentido de que uma descoberta desfaz um conhecimento anterior. Segundo este autor, “o que temos é sempre uma progressiva rearticulação e redefinição dos conceitos, determinada por sua lógica interna e pela progressiva integração dos dados da experiência”. (p. 303). Assim, em Freud, o conhecimento é parte de um processo de construção em que os elementos todos estão em constante correlação. Por isso, encontramos um campo sempre aberto às novas possibilidades de construção teórica, partindo de um arcabouço consistente, validado na experimentação clínica, como é próprio da psicanálise. 6 Utilizo nesta dissertação os termos Eu, Isso e Supereu, que, de acordo com Paulo Cesar Souza (2010), “na revisão brasileira do Vocabulário de Psicanálise, o psicanalista Luís Carlos Menezes admitiu as opções Eu, Isso e Supereu, por constatar que já eram utilizadas aqui e ali”. (p. 94).

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No contexto da sistematização da primeira tópica e da teoria das pulsões (1900-1920), Freud efetua a passagem dos estudos sobre a neurose de angústia, nos quais a angústia caracteriza-se por um acúmulo de tensão física, para o estudo da histeria de angústia. Neste caso, a carga de excitação ou libido é psíquica, isto é, com mediação pelo psiquismo e o corpo atingido é um corpo erógeno/simbólico. Assim, Freud põe em relevo a angústia pulsional que, na base das psiconeuroses, se destaca na histeria de angústia. De acordo com Rocha (2000), “ao manifestar-se no psiquismo, a angústia deixa de ser um significante vazio e adquire um verdadeiro sentido”. (p. 72). Nesse contexto, podemos destacar que a angústia adquire um caráter pulsional, presente na base das psiconeuroses de defesa, e que ganha ênfase na histeria de angústia, bem como em relação aos estudos metapsicológicos acerca do recalque. Sem abandonar o caráter econômico que marca os primeiros estudos, Freud dará maior destaque ao aspecto tópico-dinâmico da angústia, implicada a partir de um conflito. Aqui temos um caminho seguido por Freud em seu intuito de descrever os processos psíquicos em termos metapsicológicos. 3.2.1 Primeira teoria da angústia: recalcamento gera angústia. A pulsão7 se configura a partir de duas dimensões: de um lado, uma representação, já que não pode atingir por si só a consciência; do outro um afeto ao qual a representação se liga. Na terceira parte do artigo “O inconsciente”, Freud (1915b/1996) afirma que Um instinto nunca pode tornar-se objeto da consciência - só a ideia que o representa pode. Além disso, mesmo no inconsciente, um instinto não pode ser representado de outra forma a não ser por uma ideia. Se o instinto não se prendeu a uma ideia ou não se manifestou como um estado afetivo, nada podemos conhecer sobre ele. (p. 182).

Portanto, a pulsão, através das dimensões de representação e afeto, passa a ser considerada como uma ameaça interna, da qual não se poder fugir. Esse perigo que vem de dentro põe o Eu em alerta, desenvolvendo como mecanismo defensivo o processo do recalcamento. O recalque então pode ser considerado como uma forma adequada para defender-se do perigo que a moção pulsional representa. Entretanto, o recalcamento incide apenas sobre um dos polos da pulsão, isto é, a representação. O outro polo, o afeto, dentre os 7

Nesta dissertação utilizo o termo “pulsão” em lugar de “instinto”. “Pulsão” advém da tradução do alemão Trieb, seguindo a tradução francesa, apontada por Laplanche e Pontalis (2001, p. 394). Este esclarecimento se faz necessário porque a Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, oriunda da tradução Inglesa, utiliza o termo “instinto”, do alemão Instinkt,. Portanto, como utilizo a tradução inglesa, o termo “instinto” aparecerá nos títulos desta referida obra, bem como nas citações diretas. Todavia, quanto a esta questão conceitual, não cabendo aqui uma discussão mais abrangente, indico a leitura do livro “As palavras de Freud” de Paulo Cesar Souza (2010).

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vários destinos que pode tomar, pode transformar-se em angústia. Aqui temos a primeira teoria da angústia na qual o recalcamento8 gera angústia. Mais tarde, a função defensiva da angústia ganhará destaque na teoria freudiana, com o texto “Inibição, sintoma e ansiedade9” (FREUD, 1926[1925]/1996). No artigo “O inconsciente” Freud (1915b/1996) apresenta uma descrição do processo de recalcamento na histeria de angústia. Num primeiro momento, a angústia aparece sem que seja percebida. Nesse caso, supõe existir uma moção amorosa buscando acesso ao sistema pré-consciente, mas que é rechaçada por esse mesmo sistema, fazendo com que o investimento10 libidinal rejeitado se transforme em angústia, como se fosse uma tentativa de fuga. Freud (1915b/1996) aponta que “a observação clínica revela, por exemplo, que uma criança que sofre de uma fobia animal experimenta ansiedade sob duas condições: em primeiro lugar, quando seu impulso amoroso reprimido se intensifica e, em segundo, quando percebe o animal que teme”. (p.187). No caso clássico do “Pequeno Hans” (FREUD 1909/1996), podemos perceber o sentido desta afirmação. Num passeio que Hans faz com a babá da família ele experimenta um sentimento de angústia e pede para ser levado de volta para casa, a fim de receber carinho de sua mãe. Antes, Hans sonhara que ficava sozinho porque sua mãe tinha ido embora e agora não poderia mais acariciá-la. Este seria o primeiro momento em que surge a moção pulsional cuja origem do temor é desconhecida. Num segundo momento a angústia vai ligar-se a uma representação substitutiva por conta de um contrainvestimento do sistema consciente sobre a moção pulsional. No caso do Pequeno Hans, este substituto é um cavalo. Preocupada com o menino, sua mãe o leva para passear no dia seguinte e constata um sentimento de angústia que mais uma vez o domina. Voltando para casa ele diz à mãe: “eu tinha medo que um cavalo me mordesse”. (FREUD 1909/1996, p. 30). Desse modo, a angústia vai ligar-se ao cavalo que funciona como uma representação substitutiva daquela recalcada no inconsciente. Portanto, essa angústia ligada a 8

Faço a opção de utilizar recalcamento (Verdrängung) conforme Roudinesco, História da Psicanálise na França, v. 1 p. 384, citado por Paulo Cesar Souza, (2010, p. 109). 9 Estou utilizando o termo “angústia” para a tradução do termo alemão “angst”, oriundo da tradução latina – aperto, mais apropriado, a meu ver, do que o termo “ansiedade”, encontrado na tradução Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Portanto, o termo “ansiedade” será mantido apenas nos casos de citações diretas e nos títulos das referidas obras. Quanto a essa questão, ver Zeferino Rocha (2000, p. 25); Laplanche e Pontalis (2001, p. 26) e Paulo Cesar Souza (2010, p. 189). 10 O termo investimento, do alemão Besetzung, está sendo usado no lugar de catexia, conforme Laplanche e Pontalis (2001, p.254).

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uma representação recalcada forma a base da angústia vivenciada pelo Pequeno Hans. Daí porque o recalque gerava angústia. Nesse processo, de acordo com Freud (1909/1996), ocorre que A catexia [do Pcs] que entrou em fuga se apega a uma ideia substitutiva – que, por um lado, se relaciona por associação à ideia rejeitada e, por outro, escapa à repressão em vista de sua distância daquela ideia. Essa ideia substitutiva um ‘substituto por deslocamento’ – permite que o desenvolvimento, até então desinibido, da ansiedade seja racionalizado. (p. 187).

A função deste contrainvestimento, a partir da representação substitutiva, é funcionar como uma forma de proteção da representação recalcada, liberando o afeto de angústia, elegendo um objeto fóbico como um representante simbólico da representação recalcada geradora do conflito. Num terceiro momento, acentuam-se os mecanismos defensivos de forma ampliada. Se num primeiro momento o Eu defendia-se da ideia recalcada com um investimento de uma ideia substitutiva, agora a ideia substitutiva carece de uma defesa por meio de um contrainvestimento do ambiente externo no qual se encontra o objeto fóbico. Freud (1915b/1996) destaca que assim “[...] podemos dar ênfase à interessante consideração de que, pondo-se em ação todo o mecanismo defensivo, consegue-se projetar para fora o perigo instintual”. (p. 189). Freud (1915b/1996.) arremata: O ego comporta-se como se o perigo de um desenvolvimento da ansiedade o ameaçasse, não a partir da direção de um impulso instintual, mas da direção de uma percepção, tornando-se assim capaz de reagir contra esse perigo externo através das tentativas de fuga representadas por evitações fóbicas. Nesse processo, a repressão é bem-sucedida num ponto particular: a liberação da ansiedade pode, até certo ponto, ser represada, mas somente à custa de um pesado sacrifício da liberdade pessoal. Via de regra, porém, as tentativas de fuga às exigências do instinto são inúteis, e, apesar de tudo, o resultado da fuga fóbica permanece insatisfatório. (p. 189).

Daí a razão de uma defesa do ambiente no qual se poderá encontrar a qualquer momento o objeto fóbico, e, por isso, representa a todo instante um perigo iminente. Em vista disso, o fóbico se imobiliza restringido seu espaço para evitar tal perigo. Esta angústia que provém de uma causa externa, portanto, uma angústia real (Realangst) é bastante plausível na medida em que significa uma preparação para defender-se de um perigo com o qual se pode defrontar-se a cada momento. No caso Pequeno Hans, o objeto substitutivo externo, o cavalo, poderia ser encontrado a qualquer momento, justificando, assim, uma atitude de fuga desse ambiente externo ameaçador.

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No contexto das “Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise” Freud (1917b [19161917b]/1996) podemos ter um compêndio mais esclarecedor de todo esse enredo freudiano sobre a angústia. Lá encontramos a ideia de angústia realista, ou diante do real (Realangst). A angústia realista se manifesta perante a percepção de um perigo, e teremos aí dois caminhos: a fuga/defesa e o estado de angústia. Conforme Freud (1917c[1916-17c]/1996), na 25ª Conferência “A ansiedade”, esta angústia realística “está relacionada ao reflexo de fuga e pode ser visualizada como uma manifestação do instinto de autopreservação”. (p. 395). Todavia, mais do que a angústia real, Freud (1917c[1916-17c]/1996) destaca a importância do movimento de fuga que ela pode desencadear como uma saída mais adequada, uma vez que a angústia, por si só, não oferece vantagem caso ela se manifeste muito forte, o que impossibilitaria qualquer atitude capaz de aplacá-la. Portanto, “se a ansiedade for excessivamente grande, ela se revela inadequada no mais alto grau; paralisa toda ação, inclusive, até mesmo, a fuga”. (p. 395). Se na ameaça de um perigo externo ao qual não se pode enfrentar existe a saída de fuga, como pensar tal atitude em relação a um perigo evidenciado no plano interno? Com base nesta noção de um perigo externo ao qual se pode fugir, Freud avança na compreensão acerca do mecanismo interno capaz de efetuar uma ação defensiva em relação à moção pulsional ameaçadora. A formação do sintoma começa a ser pensada como uma estratégia defensiva diante do perigo interno. 3.2.2 Segunda teoria da angústia: angústia gera recalcamento. Freud (1915c/1996), no artigo “A repressão”, chega a comparar o mecanismo do recalcamento ao da fuga quando diz que “a repressão é uma etapa preliminar da condenação, algo entre a fuga e a condenação[...]”, porém, sendo a pulsão um estímulo interno, “[...] a fuga não tem qualquer valia, pois o ego não pode escapar de si próprio”. (p. 151). Noutras palavras, não se pode fugir da pulsão. Portanto, o elemento que atua como proteção contra o perigo pulsional interno é o recalque. Assim, vemos o início de uma segunda teoria na qual angústia provoca recalcamento. Por essa razão, a angústia realista (exógena) vai aos poucos perdendo lugar e sustentação na obra freudiana e, a cada repensar, Freud se aproxima da angústia neurótica (endógena). Além do mais, a distinção entre essas duas modalidades de angústia tal como apresentada na 25ª Conferência (1917c [1916-17c]/1996) perde sua força dado que no plano

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da angústia neurótica, um perigo externo pode ter uma motivação inconsciente, como bem apresentado no caso Pequeno Hans, no qual um cavalo, – objeto externo – aparecendo como objeto fóbico determinado, é na verdade um objeto substitutivo, referente ao pai. Portanto, a angústia que o Pequeno Hans experimentava não tinha sua fonte no cavalo. Sua origem lhe era absolutamente desconhecida porque provinham de moções pulsionais inconscientes em relação ao sentimento amoroso para com a mãe e uma hostilidade em relação ao pai. É interessante pensar que Freud (1950c[1895]/1996) já no “Projeto para uma psicologia científica” conjectura um aparato psíquico que armazena, via memória, sequelas das vivências de desprazer e também de satisfação, gerando os estados de desejo e de recalcamento. E no estado de desejo, há uma atração em relação ao traço mnêmico do objeto, ao contrário da dor/sofrimento, onde há uma tendência ao desinvestimento dessa imagem/traço mnêmico. Então, a respeito do recalcamento Freud (1950c [1895]/1996, p. 404), no “Projeto”, aponta a ideia sobre a qual “o recalcamento é invariavelmente aplicado a ideias que despertam no ego um afeto penoso (de desprazer)”. Por essa razão Freud indica já poder “suspeitar que esse afeto desprazeroso que aciona o recalcamento”. (FREUD, 1950c[1895]/1996, p. 404). Nesse sentido presume “a existência de uma defesa primária que consiste na inversão da corrente de pensamento assim que ele se depara com um neurônio cuja catexização libera desprazer”. (FREUD, 1950c [1895]/1996, p. 404). O recalcamento ocorreria pelas representações que despertassem no Eu um afeto desagradável. Posteriormente, no artigo “Inibição, sintoma e angústia” Freud (1926 [1925]/1996) apresentará basicamente a mesma teoria, sendo que o estado afetivo desagradável em questão deixa de ser a dor e passa a ser a angústia. Freud nesse mesmo artigo comenta nos Adendos, item C, que tanto a dor como a angústia são conceitos difíceis de diferenciação. “Digamos de imediato que não há qualquer perspectiva à vista para responder a essas perguntas. Devemos contentar-nos em traçar certas distinções e esboçar certas possibilidades”. (p. 164). No plano da angústia neurótica, o papel do Eu ganha nova organização, pois atua diretamente no processo de defesa produzindo a angústia ao retirar dos representantes psíquicos da pulsão o investimento libidinal, liberando um sinal de desprazer, um sinal de

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angústia que, sendo suportável, mobiliza as defesas do Eu, a fim de evitar sua desintegração, como num ataque de angústia. No plano da psique, a angústia que gera o recalque funciona como o sinal de alerta, a fim de que o perigo pulsional não encontre o Eu desprevenido. Já na 25ª Conferência (1917c [1916-1917c]/1996), a angústia aparece como esse sinal: “quanto mais a geração de ansiedade limitar-se a um início meramente frustrado – a um sinal –, tanto mais o estado de preparação para a ansiedade se transformará pela totalidade da sucessão dos fatos”. (p. 396). Este sinal serve como um alerta para a necessidade de manutenção do recalcamento. Essa ideia de angústia como sinal está começando a ser germinada para aparecer em 1926. Em Freud (1920/1996), no artigo “Além do princípio do prazer”, podemos perceber os primórdios da transformação teórica acerca da angústia. Freud demonstra a diferença entre conceitos como susto, medo, angústia. ‘Susto’, ‘medo’ e ‘ansiedade’ são palavras impropriamente empregadas como expressões sinônimas; são, de fato, capazes de uma distinção clara em sua relação com o perigo. A ‘ansiedade’ descreve um estado particular de esperar o perigo ou preparar-se para ele, ainda que possa ser desconhecido. O ‘medo’ exige um objeto definido de que se tenha temor. ‘Susto’, contudo, é o nome que damos ao estado em que alguém fica, quando entrou em perigo sem estar preparado para ele, dando-se ênfase ao fator da surpresa. Não acredito que a ansiedade possa produzir neurose traumática; nela existe algo que protege o seu sujeito contra o susto. (p. 23)

Portanto, a angústia já se apresenta referente a uma ameaça, como uma preparação para uma situação de perigo. Por outro lado, o que Freud designou como Schreck, traduzido na Edição Standard Brasileira por susto, teria relação com uma angústia para além de uma medida adequada, isto é, um ataque de angústia que desencadeia uma situação afetiva similar à vivência de um trauma. Vale salientar que a percepção de um perigo só é possível por haver uma reprodução do já conhecido, há uma repetição da angústia, cujo protótipo inicial foi o ato do nascimento, onde a criança vivenciou inúmeras sensações desprazerosas, descargas e sensações corporais, sem condições psíquicas para nomeá-las, uma notada forma de alienação psíquica, em função do seu alto grau de dependência inicial. Acreditamos que, no caso do afeto da ansiedade, sabemos qual é a vivência original que ele repete. Acreditamos ser no ato do nascimento que ocorre a combinação de sensações desprazíveis, impulsos de descarga e sensações corporais, a qual se tornou o protótipo dos efeitos de um perigo mortal, e que desde então tem sido repetida por nós como rigor mortal, e que desde então tem sido repetida por nós como o estado de ansiedade. (FREUD, 1917c [1916-1917c]/1996, p. 397).

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Desse modo, essa “angústia primeva” do nascimento seria, portanto, um protótipo da angústia tóxica. Assim, o primeiro afeto de angústia não corresponderia a uma reação ao perigo, uma vez que o neonato não poderia simbolizá-lo, já que não possui mecanismos para efetuar o processo de mediação psíquica. Estaria relacionada, então, enquanto reação às consequências físicas do nascer, quando há um excesso de toxidade de desconforto. De acordo com Freud (1926 [1925]), “no nascimento é provável que a inervação, ao ser dirigida para os órgãos respiratórios, esteja preparando o caminho para a atividade dos pulmões, e, ao acelerar as pulsações do coração, esteja ajudando a manter o sangue isento de substâncias tóxicas.” (p. 133). Aqui podemos perceber o susto como elemento ligado a situação traumática que, posteriormente, se torna o protótipo da angústia. Freud, desde os primeiros escritos já pensava numa correlação entre o ato do nascimento e a angústia. Há, na 25ª Conferência (FREUD, 1917c [1916-17c]/1996), um relato interessante no qual Freud explicita como floresceu em seu pensamento essa correlação: Há muito anos atrás, numa ocasião em que me encontrava em um restaurante com diversos outros jovens médicos do hospital, para uma refeição do meio-dia, um médico assistente do departamento de obstetrícia contou-nos um episódio cômico, acontecido no último exame das parteiras. Perguntou-se a uma candidata o que significava o aparecimento de mecônio (excrementos), no nascimento, quando da expulsão das águas, e ela prontamente respondeu: ‘significa que a criança está com medo.’ Ela foi objeto de risos e foi reprovada no exame. Porém, silenciosamente, tomei o partido dela e comecei a suspeitar de que essa mulher simples, proveniente das classes mais humildes, tinha apontado com precisão para uma correlação importante. (p. 398)

3.2.3 O desamparo Freud vê nesse momento primevo uma angústia associada ao processo de separação da mãe. Esta condição de angústia que ocorre no ato do nascimento nos permite pensar numa condição de desamparo, como uma experiência inata, que Freud em 1926 apresentará como a origem última da angústia. Temos também o caso de angústia quando as crianças experimentam diante de pessoas estranhas uma relação direta com o desamparo no fato delas não encontrarem nessas pessoas o rosto de uma figura familiar. Freud destaca que Uma criança tem medo de um rosto estranho porque está habituada à vista de uma figura familiar e amada – basicamente sua mãe. É seu desapontamento e seu anelo pela mãe que se transforma em ansiedade – sua libido, de fato, que se tornou inaplicável, não podendo, assim, ser mantida em estado de suspensão, sendo descarregada sob forma de ansiedade. (FREUD, 1917c [1916-1917c]/1996, p. 407).

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Neste sentido, a angústia vivenciada pela criança remete, então, a uma angústia protótipo do ato do nascimento, se repetindo na vivência de separação da pessoa amada, fato este que se repetirá outras tantas vezes ao longo da vida. No artigo “Além do princípio do prazer”, Freud (1920/1996) apresenta o interessante caso do Fort – Da11 que observa em seu neto de 18 meses, Ernest, filho mais velho de Sophie. No jogo do carretel, o menino expressa Fort e depois Da junto ao movimento de arremessar e puxar o carretel preso a um barbante. Freud interpreta tal brincadeira como a dramatização das idas e vindas da mãe do menino, e se pergunta por que o menino repetia uma situação que lhe causava desconforto, como a ausência da mãe? Freud observou que no jogo do carretel, o menino passa de uma postura passiva, de mero espectador das saídas da mãe para a postura de controle. Ele, metaforicamente, põe a mãe para fora e a retorna quando bem desejar. Tal brincadeira, Freud (1920/1996) relaciona “à grande realização cultural da criança, a renúncia instintual (isto é, a renúncia à satisfação instintual) que efetuará ao deixar a mãe ir embora sem protestar.” ( p. 26). Destarte, Freud (1914a/1996), em “Recordar, repetir e elaborar”, começa a perceber que há uma compulsão à repetição, fato que também observa na sua clínica, e que tematiza de forma bem evidente quando percebe que o paciente em vez de recordar, acaba repetindo compulsivamente o recalcado, e que muitas pessoas em seus “destinos” parecem reproduzir sempre as mesmas experiências, e que na transferência em análise a repetição também aparece. “Ficaremos agora inclinados a relacionar com essa compulsão os sonhos que ocorrem nas neuroses traumáticas e o impulso que leva a criança a brincar”. (Freud 1920/1996, p. 33). Dessa forma, Freud começa a vislumbrar que a angústia está passando mais para o lado da defesa do aparato psíquico do que mero sobproduto da sexualidade. A angústia é, na verdade, o receio de desintegração do eu12.

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Termos da língua alemã utilizados por Freud para interpretar os balbucios do neto na brincadeira do carretel [‘o-o-o-ó’ - ‘da’]. O termo ‘Fort’ significando, a partir da tradução inglesa para o passado do verbo to go – ir, partir – de acordo com nota de rodapé (FREUD 1920/1996, p. 25); e o termo ‘Da’, cujo significado traduzido por ‘ali’. Travava-se, portanto de um movimento de ir e vir da mãe que a criança representava no ato de brincar. Freud (1920/1996) afirma: “A interpretação do jogo tornou-se então óbvia. Ele se relacionava à grande realização cultural da criança, a renúncia instintual (isto é, renúncia à satisfação instintual) que efetuara ao deixar a mãe ir embora sem protestar”. (p. 26) 12 Como já mencionado, a instância do Eu acompanha todo o trajeto da obra Freudiana, como se pode constatar no “Projeto para uma Psicologia cientifica”, ele não se destaca como um elemento mediador de conflitos, mas apenas como uma “organização de neurônios”, cuja função era apenas de inibição.

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3.3 A virada: angústia de castração. Na reformulação procedida a partir de 1926, Freud passa a considerar o Eu como sendo uma parte diferenciada do Isso e nisso reside sua força. Enquanto o Isso não tem nenhuma forma de organização, o Eu é a parte organizada do próprio Isso. Embora o ato de repressão demonstre a força do ego, em um ponto específico ele revela a impotência do ego e quão impenetráveis à influência são os impulsos instintuais do id, pois o processo mental que se transformou em um sintoma devido à repressão mantém agora sua existência fora da organização do ego e independente dele. (FREUD, 1926 [1925]/1996, p. 100).

Dada a natureza dinâmica das instâncias psíquicas, não podemos pensar em elementos atuando isoladamente e, embora o Eu seja uma organização como assinala Freud (1926 [1925]/1996), não atua de forma isolada, mas, ao contrário, “baseia-se na manutenção de livre intercâmbio e da possibilidade de influência recíproca entre todas as partes”. (p. 101). Portanto, os estudos da segunda tópica 13 permitem a Freud, dar um salto na compreensão da angústia enquanto elemento referente aos processos defensivos envolvidos nas relações de conflito entre essas instâncias da psique. Em “O ego e o id”, Freud (1923/1996) diz que a sede da angustia é o Eu, e em 1926, “Inibição sintoma e angústia” afirma que não pode mais conceber a angústia como legada a uma explicação econômica, pois ela é reproduzida como “estado afetivo de conformidade com uma imagem mnêmica já existente”. (Freud 1926 [1925]/1996, p. 97). Daí a teorização sobre o recalcamento primário, fundador do aparato e os recalques propriamente ditos, os secundários. O recalcamento, como uma forma de defesa de impulsos indesejáveis, cuja função de execução está atribuída ao Eu, funciona como um modo de conservar, no inconsciente, ideias que não podem ser admitidas pelo Eu. De acordo com Freud (FREUD, 1926 [1925]/1996), “a repressão se processa a partir do ego quando este – pode ser por ordem do superego – se recusa a associar-se com uma catexia instintual que foi provocada pelo id”. (p. 95). Como sendo uma reação de defesa diante de uma situação de perigo, está ligada a ideias que foram recalcadas por não serem conciliatórias com as expectativas do Eu. Desse modo, “a repressão é o equivalente a uma tentativa de fuga”. (FREUD, 1926 [1925]/1996, p. 96).

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“Senhoras e senhores, a dissecação da personalidade mental em um superego, um ego e um id, que lhes apresentei na minha última conferência, obrigou-nos a refazer nossa orientação também no problema da ansiedade.” (FREUD 1933 [1932], p. 88, CONFERÊNCIA XXXII).

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O papel desempenhado pelo recalcamento nesse processo em relação à angústia, relacionada à expectativa de um perigo ameaçador, é importante, pois o recalcamento tem como objetivo bloquear um investimento pulsional considerado indesejado. Todavia, quando o recalcamento não atinge seu objetivo plenamente, ocorre o aparecimento do sintoma. O sintoma seria uma metáfora, uma substituição de uma satisfação pulsional, vedada pelo recalcamento, ou seja, a representação recalcada deixa o afeto oscilante à procura de uma nova representação para se ligar – eis o sintoma. O recalcamento ocorre a partir do Eu por comando do Supereu contra uma pulsão do Isso. Quando o recalcamento falha, o sintoma aparece como esse substituto da moção pulsional, “mas um substituto muito mais reduzido, descolado e inibido, e que não é mais reconhecível como uma satisfação”. (FREUD 1926[1925]/1996, p. 98). A falha no processo de recalcamento ocorre em função das tentativas do investimento pulsional alcançar à consciência e, não podendo estar indiferente a esta força, o Eu alia-se ao Isso, por meio de uma formação de compromisso, a fim de que o recalcado não possa lograr pleno êxito no seu intento de busca de satisfação. O Eu passa a agir como se “reconhecesse que o sintoma chegara para ficar e que a única coisa a fazer era aceitar a situação de bom grado, e tirar dela o máximo proveito possível”. (FREUD 1926[1925]/1996, p. 101). Por uma questão de sobrevivência, o Eu adapta-se, então, ao sintoma. Podemos nos perguntar a razão pela qual o recalcamento ocorre. Em função de que necessidade este elemento se constitui como função essencial para a existência humana? O que leva ao recalcamento é aquilo que Freud denomina de seu achado, a angústia. “Foi a ansiedade que produziu a repressão e não, como eu anteriormente acreditava, a repressão que produziu a ansiedade”. (FREUD, 1926[1925]/1996, p. 111). A angústia passa a ter um sentido de preparação para o perigo. A hostilidade do Supereu sobre o Eu é a desencadeadora do recalcamento, e os sintomas são tentativas de evitar a situação de perigo que desencadeia a angústia. Os casos do pequeno Hans (1909) e o Homem dos lobos (1918[1914]) trouxeram evidências de que a força atuando diretamente no recalcamento estava relacionada ao medo da castração. Para Freud (1926[1925]/1996), “as ideias contidas na ansiedade deles – a de ser mordido por um cavalo e a de ser devorado por um lobo – eram substitutos, por distorção, da ideia de serem castrados pelo pai”. (FREUD, 1926[1925]/1996, p. 110). Daí a assertiva de que o afeto de angústia não se originava dos investimentos libidinais dos impulsos recalcados,

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mas que “a ansiedade pertencente às fobias a animais era um medo não transformado de castração”. (FREUD, 1926[1925]/1996, p. 110). Desse modo, com essa posição nova14, Freud dará ênfase especial à castração. Ele afirma: “vemos agora que não há perigo algum em considerarmos a ansiedade de castração como a única força motora dos processos defensivos que conduzem à neurose”. (FREUD 1926 [1925]/1996, p. 141). E essa angústia de castração, preparada durante toda a infância e vivenciada por toda a vida do sujeito, acaba gerando um automatismo da reação angustiada. Mas o que levaria o sujeito a esse automatismo? A compulsão à repetição enquanto fixador do recalcamento que só pode ser diminuído com uma grande mobilidade do Eu. Essa mobilidade do Eu estaria na capacidade de romper os limites auto-impostos, redirecionar a descarga pulsional para objetos ou situações que se adaptem melhor à situação de perigo para o Eu. Mesmo embora Freud tenha uma visão pouco otimista em relação a isso, “Esse malogro é explicado por Freud de maneira econômica: a intensidade da pulsão – e da regressão – faz com que a moção seja dominada pela compulsão de repetição” (RAMOS, 2003, p. 129). Logo, se a angústia é o motor propulsor do recalcamento, esse faz sua manutenção, e assim o processo se perpetua. Para Freud, a permanência de antigos modelos de reações ao perigo se repetem ad infinitum, além das razões da compulsão à repetição. A angústia como repetição está relacionada à angústia originária, consequentemente, ligada a todo estado afetivo de angústia. Freud (1926[1925]/1996) assinala que “[...] o ato do nascimento é a primeira experiência de ansiedade, sendo assim a fonte e o protótipo da sensação de ansiedade”. (p. 88). Mais adiante ele arremata: “[...] a ansiedade é um produto do desamparo mental da criança, o qual é um símile natural de seu desamparo biológico”. (FREUD 1926 [1925]/1996, p. 136). Por isso, em consequência de uma condição de imaturidade biológica, o ato do nascimento se transforma numa experiência de desamparo para a qual o recém-nascido não tem capacidade de satisfazer as próprias necessidades. Tendo o homem nascido desprovido de meios de sobrevivência, requer cuidados do outro, logo é desamparado e dependente. De acordo com Freud (FREUD 1926 [1925]/1996), O fator biológico é o longo período de tempo durante o qual o jovem da espécie humana esta em condições de desamparo e dependência. Sua existência intrauterina 14

“ – estabelecemos uma posição nova e estável, a partir da qual numerosas coisas assumem um novo aspecto” (FREUD 1933 [1932], p. 89, CONFERÊNCIA 32), referindo-se à tese do Eu como sendo a sede da angústia.

34 parece ser curta em comparação com a da maior parte dos animais, sendo lançado ao mundo num estado menos acabado. Como resultado, a influência do mundo externo real sobre ele é intensificada e uma diferenciação inicial entre o ego e o id é promovida. Além disso, os perigos do mundo externo têm maior importância para ele, de modo que o valor do objeto que pode somente protegê-lo contra eles e tomar o lugar da sua antiga vida intrauterina é economicamente aumentado. O fator biológico estabelece as primeiras situações de perigo e cria a necessidade de ser amado que acompanhará a criança durante o resto da sua vida. (p. 151).

Esta vivência do nascimento representa, então, uma vivência traumática, dada a total dependência do outro em atender suas necessidades, bem como o caráter de passividade que a própria imaturidade biológica impõe. Daí porque o bebê, por falta de simbolização, experimente um ataque de angústia traumatizante. Num contraponto às ideias de Otto Rank, que considerava o trauma do nascimento como fator desencadeante da angústia ulterior, Freud não encontra neste evento isolado resposta satisfatória para compreender o funcionamento da angústia e persegue obstinadamente uma explicação psicológica que ultrapassa o limite de uma lógica aparente, no caso entre o trauma do nascimento e angústia de eventos anteriores como um rememorar desse trauma. Isto significa que, para Freud, a ato do nascimento está relacionado à condição do desamparo referente a um processo de separação da mãe, dado que acriança não possui mecanismos capazes de efetuar tal operação no campo simbólico e que, portanto, não sendo a causa determinante da neurose, se coloca apenas como uma vivência prototípica de uma angústia originária. Rocha (2000) comenta esta condição de desamparo como representativa de uma experiência arquetípica. Ele afirma Que uma das propriedades características das experiências arquetípicas é o fato de elas encontrarem seu verdadeiro sentido não no momento em que são vividas, mas nachträglich, isto é, ‘só depois’ nas repetições posteriores, repetições estas que acompanham a trajetória da vida humana e que revelam, ao mesmo tempo, o sentido da experiência primeira, constituindo-a como verdadeiras experiências. (p. 110).

O desamparo inicial representa para criança um risco de aniquilamento. Dada a intensa relação de intimidade entre a mãe e a criança, a situação de desamparo tende a repetir-se toda vez que um evento representa uma ameaça de perda desse objeto de amor. Freud (1926 [1925]) faz referência a três situações nas quais isso ocorre: quando uma criança está sozinha, quando ela está no escuro, ou diante de desconhecidos. Cada um desses três eventos se configura como uma condição especial que demonstra o fato de a criança sentir falta de uma

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pessoa amada. Por isso afirma Freud, (1926[1925]/1996) “mas aqui, penso eu, temos a chave de uma compreensão da ansiedade e de uma reconciliação das contradições que parecem assediá-la”. (p. 135). Evidentemente, de acordo com Freud (1926[1925]1996), podemos falar que esses elementos evocam uma imagem mnêmica da própria criança e essa imagem é investida, mas, como já vem sendo apontado, não tem uma forma de angústia transformada. A angústia sentida nesse caso tem uma relação direta com um sentimento de desorientação que faz parte do momento do desenvolvimento em que ela se encontra, não tendo ainda maturidade para lidar melhor com esse investimento. Nesse sentido, Freud (1926 [1925]), afirma: Aqui a ansiedade aparece como uma reação à perda sentida do objeto e lembramonos de imediato do fato de que também a ansiedade de castração constitui o medo de sermos separados de um objeto valioso, e de que a mais antiga ansiedade - a ‘ansiedade primeva’ do nascimento – ocorre por ocasião de uma separação da mãe. ( p. 135-136).

Somente no decorrer do seu desenvolvimento, a criança perceberá esse objeto externo como um meio para contrapor à situação de perigo, cuja lembrança fundamental evoca a questão do nascimento. Daí ocorre um deslocamento do caráter econômico do impulso libidinal para concentrar-se na situação de perigo expressa na possibilidade de perder o objeto de amor. Nessa “ausência da mãe, que agora constitui o perigo, e logo que surge esse perigo a criança dá sinal de ansiedade.” (FREUD, 1926[1925]/1996, p. 136). Portanto, o desamparo inicial somente poderá ser aplacado pelas vivências sucessivas de separação da mãe, que permitem um processo gradual de separação no qual a própria criança percebe não haver possibilidade de ser aniquilada. Somente tais vivências propiciarão um controle mais adequado da situação traumatizante implicada no desamparo. Isso fica demonstrado no caso do Fort-Da no qual, notadamente, há uma preparação da criança para lidar com as experiências que causam desprazer, o que implica um amadurecimento gradual em poder lidar com a ausência da mãe, posto que, nesse efeito de aparecer e desaparecer da mãe através do brincar, a criança assume o controle da situação de desamparo. Por essas razões, as formulações a partir de 1926 promovem uma virada na concepção da origem da angústia com a entrada em cena da angústia de castração, numa articulação com as experiências de perda e separação. Se nas investigações anteriores Freud supunha o recalcamento como fator de produção do afeto de angústia, em “Inibição, sintoma e angústia”, inverte o paradigma destacando a angústia como determinante do recalcamento. Nas palavras

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de Freud (1926[1925]/1996), “é sempre a atitude de ansiedade do ego que é a coisa primária e que põe em movimento o recalcamento”. (p. 111). Neste repensar da teoria da angústia temos, então, o seguinte esquema: o Eu aciona a angústia de castração que gera a recalcamento, que gera o sintoma. A virada freudiana sobre a conceituação da angústia se realiza ao colocar em destaque o elemento da castração, que Freud (1926 [1925]/1996) entende como sendo um “complexo”. De acordo com Rocha (2000), É preciso ter sempre presente que, para Freud, a castração é mais do que uma angústia ou do que uma fantasia de separação, ela é um verdadeiro complexo e, como tal, tem valor universal e estruturante. Embora não tenha sido inserido, desde cedo, no conjunto teórico da Metapsicologia, o complexo de castração foi adquirindo este valor estruturante, desde que Freud estabeleceu sua articulação definitiva com o Complexo de Édipo. Esta articulação torna-se manifesta, quando lembramos que a experiência da castração assegura a passagem do mundo fechado das ambições fálicas do desejo, ilusoriamente alimentadas pelas idealizações do ego ideal, para o mundo aberto das relações intersubjetivas, que o ideal do ego possibilita, nas quais, e mediante as quais, o sujeito assume como sujeito de seu desejo e encontra um lugar na tarefa de construir a Cultura. (p. 118).

A castração representa uma situação de um perigo sobre o qual se desenvolve uma reação afetiva de angústia, cabendo ao Eu proceder como forma de exercer algum controle sobe essa angústia. Freud (1926 [1925]) afirma que A ansiedade é uma reação a uma situação de perigo. Ela é remediada pelo ego que faz algo a fim de evitar essa situação ou para afastar-se dela. Pode-se dizer que se criam sintomas de modo a evitar a geração de ansiedade. Mas isto não atinge uma profundidade suficiente. Seria mais verdadeiro dizer que se criam sintomas a fim de evitar uma situação de perigo cuja presença foi assinalada pela geração de ansiedade. (p. 128).

Dessa forma, a angústia surge como um sinal diante de situação de perigo. Este perigo ao qual Freud se refere é, notadamente, o perigo da castração, ligado ao processo de perdas, sobretudo a perda do amor do objeto, outrora capaz de satisfazer um conjunto de necessidades. A castração implica o abandono a um objeto de amor, em vista de garantir o amor desse objeto. Desse modo, temos uma redefinição em relação ao perigo pulsional. Embora a fonte de tal perigo pulsional continue sendo interna, como na primeira teoria da angústia – na qual o recalcamento gerava angústia, com a castração tornar-se imperativo considerar também, pelo menos do ponto de vista do fantasiar da criança, um perigo que agora se origina de fora, isto é, no outro exterior que represente uma ameaça real de castração.

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No caso Hans, o medo que ele tinha de que o pai pudesse castrá-lo é deslocado para um cavalo que iria morder seu “pipi”. Nesta perspectiva, para Freud, a moção pulsional não representa por si mesma uma ameaça, senão por causa do perigo externo representado. Na 32ª Conferência, Freud (1933[1932]/1996) confessa: “[...] não estávamos preparados para constatar que o perigo instintual interno se revelaria fator determinante e preparação para uma situação de perigo externo, real”. (p. 90). De qualquer modo, o perigo ao qual se teme é sempre um perigo interno. Não obstante, a castração, referindo-se, a princípio, como um perigo externo, por se tratar de uma ameaça que vem de fora, não pode invalidar a ideia de um perigo pulsional interno, pois a questão fundamental reside no fato, como afirma Freud (1926[1925]/1996), de que “a pessoa amada não deixaria de nos amar nem seríamos ameaçados de castração se não alimentássemos certos sentimentos e intenções dentro de nós”. (p. 143). De acordo com Gustavo Adolfo Ramos (2003, p. 128), é preciso notar “também que, mais que um perigo subjetivo, trata-se de um perigo cuja condição é o outro, não em si mesmo, mas o outro para a pulsão”, isto é, o outro perante a minha pulsão. Neste sentido, o outro só poderá atingir-me na medida da minha permissão, daquilo que ele simbolize para mim. Nessa perspectiva a angústia pode ser entendida para além de um determinante biológico. Por isso Freud discorda da teoria de Rank que atribuía ao evento do nascimento como sendo a única causa da neurose e que, portanto, tudo seria trauma do nascimento, desconsiderando o fator importante da sexualidade. Assim nos diz Freud “não acredito, portanto, que a tentativa de Rank tenha solucionado o problema da causação da neurose [...].” (p. 149). Para Freud (1926[1925]/1996), [...] a vida sexual do homem, diferentemente da vida sexual da maioria dos animais de perto relacionada com ele, não realiza um progresso firme desde o nascimento à maturidade, mas, após uma eflorescência inicial até o quinto ano, sofre uma interrupção bem nítida, e então segue seu curso mais uma vez na puberdade, reatando os inícios interrompidos na primeira infância. [...] É aqui que nos defrontamos com a etiologia mais direta das neuroses. É fato curioso que o contato inicial com as exigências da sexualidade deve ter efeito sobre o ego semelhante ao produzido pelo contato prematuro com o mundo externo. (p. 151-152).

Desta feita, é preciso considerar o aspecto de uma construção subjetiva da criança que envolve um caráter afetivo. Assim, a angústia está ligada a uma situação de desamparo experimentado pela criança, podendo ser considerado como uma experiência similar ao trauma do nascimento. Ocorre nessas situações, como aponta Freud (1926 [1925]/1996), “que

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a situação biológica da criança como feto é substituída para ela por uma relação de objeto psíquica quanto a sua mãe”. (p. 137). O seguimento dessas investigações permitiram a Freud (1926[1925]/1996) apresentar um novo espectro teórico acerca da concepção de angústia e ele afirma: [...] Embora antigamente acreditasse que a ansiedade, de maneira mais invariável, surgisse automaticamente por um processo econômico, minha presente concepção de ansiedade como um sinal emitido pelo ego a fim de tornar afetiva a instância do prazer-desprazer elimina a necessidade de considerar o fator econômico. (p. 138)

Destacando o Eu como elemento essencial na estrutura da psique humana para a organização dos afetos, sentimento e emoções, é possível pensar esta instância como o lugar de onde provém a angústia como uma forma de desprazer liberada pelo próprio Eu ao retirar do representante da pulsão que será recalcado, o investimento libidinal. Assim, Freud (1926[1925]/1996), formula a nova assertiva de que “o ego é a sede real da ansiedade”. (p. 138). Desse modo, sendo o Eu esse elemento disparador da angústia e organizador das emoções e dos afetos, é que Freud pode afirmar que tal afeto de angústia somente pode ser sentido pelo próprio Eu. Esse passo evolutivo em relação ao aspecto biológico, a saber, a necessidade de um objeto para suprir uma condição de desamparo vai mais além. O consequente desenvolvimento mental da criança ultrapassa o limite da perda de objeto para uma consequente ameaça de perda do amor desse objeto, o que implica numa situação de perigo instaurada por conta de uma motivação interna. O perigo que é experimentado nesses processos que geram angústia precisa ser amenizado de algum modo. Isso ocorre com o aparecimento do sintoma como sendo uma forma pela qual o Eu pode lidar com tais situações que evocam uma condição de ameaça ao aparelho psíquico. Na afirmativa de Freud (1926[1925]/1996), A geração de ansiedade põe a geração de sintoma em movimento e é, na realidade, um requisito prévio dela, pois se o ego não despertasse a instância de prazerdesprazer geando ansiedade, não conseguiria a força para paralisar o processo que se está preparando no id e que ameaça com perigo. (p. 142).

Nesse processo, a questão do recalcamento tem um papel determinante. Este é um elemento crucial, visto que se caracteriza por um processo contínuo no qual a pulsão não cessa, estando em constante busca por satisfação. Para defender-se dessa constante demanda pulsional, o Eu gasta grande quantidade de energia num contrainvestimento de defesa. Freud

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observou no tratamento analítico o fenômeno clínico da resistência, geradora do recalque como um mecanismo de defesa. Em o “Ego e o Id”, Freud (1923/1996) afirma o seguinte: “o estado em que as ideias existiam antes de se tornarem conscientes é chamado por nós de repressão, e asseveramos que a força que institui a repressão e a mantém é percebida como resistência durante o trabalho de análise”. (p. 28). Por isso a importância de considerar o Eu como sede da angústia. A perspectiva de um elemento organizador da pulsão, tal como o Eu, permitiu a Freud considerar a angústia por esse novo prisma. Não abandonando o aspecto biológico, mas indo além, Freud (1926[1925]/1996), pôde determinar a questão do nascimento como sendo “um protótipo de todas as situações ulteriores de perigo que se apoderavam do indivíduo sob as novas condições decorrentes de um modo de vida modificado e um crescente desenvolvimento mental”. (p. 157). Assim, pôde superar o caráter puramente descritivo do processo de angústia para pensá-la em termos metapsicológicos, isto é, por meio de um modelo de construção teórica, como uma espécie de ficcionalidade da psicanálise. Como afirma Freud (1926[1925]/1996), Demos assim, ao aspecto biológico do afeto de ansiedade sua devida importância, reconhecendo a ansiedade como a reação geral a situações de perigo, enquanto endossávamos o papel desempenhado pelo ego como a sede da ansiedade, atribuindo-lhe a função de produzir afeto de ansiedade de acordo com suas necessidades. Assim, atribuímos duas modalidades de origem à ansiedade na vida posterior. Uma involuntária, automática e sempre justificada sob fundamentos econômicos, e ocorria sempre que uma situação de perigo análoga ao nascimento se havia estabelecido. A outra era produzida pelo ego logo que uma situação dessa espécie simplesmente ameaçava ocorrer, a fim de exigir sua evitação. No segundo caso o ego sujeita-se à ansiedade como uma espécie de inoculação, submetendo-se a um ligeiro ataque da doença a fim de escapar a toda sua força. (p. 157-158).

O sinal de angústia remete, portanto, a uma condição de desamparo, relacionado a experiências traumáticas já vivenciadas. Tal sinal permite ao aparelho psíquico preparar-se para um perigo como possibilidade de escapar a uma condição traumática mais greve. A angústia enquanto sinal disparado pelo Eu põe em alerta o aparelho mental, a fim de se resguardar de um mal maior. Segundo Freud (1926[1925]/1996), Seguindo essa sequência, ansiedade-perigo-desamparo(trauma), podemos agora resumir o que se disse. Uma situação de perigo é uma situação reconhecida, lembrada e esperada de desamparo. A ansiedade é uma reação original ao desamparo no trauma, sendo reproduzida depois da situação de perigo como um sinal de busca de ajuda. O ego, que experimentou o trauma passivamente, agora o repete

40 ativamente, em versão enfraquecida, na esperança de ser ele próprio capaz de dirigir seu curso. (p. 162).

Portanto, durante mais de 30 anos Freud sustentou a teoria da angústia enquanto libido não utilizada ou malsucedida nas neuroses de angústia, na angústia sexualmente tóxica. Ramos (2003) sugere que a guerra de 1914-1917 fez Freud repensar sua teoria da angústia, pois em 1920, no artigo “Além do princípio do Prazer”, Freud revê a teoria do trauma, que continua sendo de ordem econômica, ou seja, relacionado a um “quantum” de afeto exacerbado que o Eu não dá conta de administrar e, dessa vez, o trauma não tem nenhuma relação com a teoria da sedução. O trauma passa a estar na neurose traumática e, principalmente na de guerra. Nas Novas conferências (1933[1932]/1996), a “Conferência XXXII” dará uma sinopse da teoria da angústia, homologando os aspectos encontrados em “Inibição, sintoma e angústia” (1926), porém deixa explícito que já não concorda mais que a neurose de angústia resulte de uma transformação direta da libido. Não mais sustentaremos ser a libido que é transformada em ansiedade em tais casos. No entanto, não posso ver como objetar contra a existência de uma dupla origem da ansiedade – uma, como consequência direta do momento traumático, e a outra, como sinal que ameaça com uma repetição de um tal momento. (FREUD, 1933 [1932]/1996, p. 97)

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4 A QUESTÃO DO SUJEITO: UM SER DA FALTA, LOGO DESEJANTE

Estou lidando com a matéria-prima. Estou atrás do que fica atrás do pensamento. Clarice Lispector (1973/1998, p.12).

A partir do exposto sobre a condição humana de desamparo podemos pensar a questão do sujeito a partir da ideia lacaniana de um ser faltoso. Para isso vale destacar a questão da Coisa freudiana, das Ding da qual Jaques Lacan apropria-se, em seu retorno a Freud, para pensar a questão do sujeito como um ser da falta. 4.1 Das Ding - A Coisa freudiana. Esta falta se instaura pelo objeto perdido, isto é, das Ding – a Coisa, teorizada por Freud (1950c[1895]/1996) no “Projeto para uma psicologia científica”, no qual encontramos o germe desse elemento estruturante de personalidade. Já nos referimos à condição inexorável de dependência na qual se encontra o ser humano ao nascer, não sendo capaz de realizar o que Freud denomina “ação específica” capaz de atender as próprias demandas ou necessidades, precisando, portanto, dos outros para realizar tal tarefa. Quando a criança chora, efetuando uma descarga de sua tensão, mobiliza o outro para efetuar uma ação que proporcione o atendimento de sua necessidade naquele dado momento. De acordo com Freud (1950c [1895]), “essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais”. (p. 370 ). Ao mesmo tempo, a condição de desamparo na qual a criança se encontra impele a uma descarga que somente pode encontrar satisfação no mundo externo a partir de uma “ação específica” de outrem. Uma vez emitido um sinal – como um grito – e sendo atendida, a criança “fica em posição, por meio de dispositivos reflexos, de executar imediatamente no interior de seu corpo a atividade necessária para remover o estímulo endógeno”. (FREUD 1950c [1895]/1996 p. 370). Esse processo de interação entre a criança e o outro efetua aquilo que Freud, no “Projeto” vai chamar de “experiência de satisfação”, doravante determinante do processo de desenvolvimento do sujeito. Portanto, todas as vezes em que aflorar para a criança uma necessidade urgente, tais lembranças serão novamente investidas e o processo em busca de

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satisfação reiniciado. Para Freud (1950c[1895]/1996), nesses eventos, “é provável que a imagem mnêmica do objeto será a primeira a ser afetada pela ativação do desejo”. (p. 371). Desta feita, este objeto ligado à primeira experiência de satisfação está diretamente relacionado à Coisa. Entretanto, apenas se pode falar numa relação de correspondência, visto que a Coisa não poderá jamais ser apreendida. A “experiência de satisfação” se organiza, então, em torno de um traço mnêmico, funcionando

como

uma

estrutura

na

organização

do

desejo.

Conforme

Freud

(1950c[1895]/1996), “o estado de desejo resulta numa atração positiva para o objeto desejado, ou mais precisamente, por uma imagem mnêmica [...]”. (p. 374). Portanto, não se trata de um objeto real, mas que apenas se presentifica como uma “ideia imaginária” que recebe investimento em estado de desejo. O investimento, então, recobre a lembrança que outrora supriu uma necessidade. Porém, uma representação que abarca uma lembrança de satisfação não será suficiente para atender as necessidades reais da criança. Logo, o outro precisa ser convocado e o outro adquire um status de um “complexo”. Freud (1950c[1895]/1996) aponta um exemplo no caso da criança recém-nascida para quem outro ser humano, enquanto primeiro objeto de satisfação, torna-se um objeto de percepção: Suponhamos que o objeto que compõe a percepção se pareça com o sujeito – um outro ser humano. Nesse caso, o interesse teórico [que lhe é dedicado] também se explica pelo fato de que um objeto semelhante foi, ao mesmo tempo, o primeiro objeto satisfatório [do sujeito], seu primeiro objeto hostil, além de sua única força auxiliar. Por esse motivo, é em relação a seus semelhantes que o ser humano aprende a conhecer. (p. 383).

De acordo com Antonio Quinet (2004) neste “complexo de outrem” o Nebenmensch, estaria à Coisa “[...] que compreende a percepção de um ser humano que entra no campo libidinal do sujeito despertando seu interesse”. (p. 54). Segundo este autor, há em tal complexo a percepção de um objeto que representa a sensação de satisfação primeva experimentada pelo sujeito quando da emergência de uma necessidade. Freud (1950c[1895]/1996) indica que esse complexo organizado em torno do outro ser humano semelhante compõe-se de dois elementos: “um produz uma impressão por sua estrutura constante e permanece único como uma coisa, enquanto o outro pode ser compreendido por meio da atividade de memória”. (p. 384). Ao abordar este “complexo perceptual” no “Projeto para uma psicologia científica”, Freud (1950c[1895]/1996) destaca dois componentes importantes: “o primeiro, que

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geralmente se mantém constante, é o neurônio a – [a coisa], o segundo, habitualmente invariável, é o neurônio b [um atributo da coisa]”. (p. 380). Portanto, a Coisa, como um componente invariável se organiza como uma estrutura, posto que se mantém constante. Luiz Alfredo Garcia-Roza (1991) comenta que “Das Ding é uma konstant Struktur, uma estrutura constante presente no estado de desejo e na percepção, mas sem pertencer propriamente a nenhum dos dois”. (p. 160). Desta feita, a Coisa não é passível de representação. E, como indica Freud (1950c[1895] 1996), “o que chamamos de coisas são resíduos que fogem de serem julgados”. (p. 386). Não obstante, fora do campo da representação, conforme afirma Garcia-Roza (1991) a Coisa é Aquilo em torno do qual se organizam as representações (Vorstellungem). [...] Enquanto exterior e estranho, das Ding fica fora daquilo que é regulado pelo princípio do prazer. Das Ding não pertence, portanto, ao espaço da representação, não habita propriamente aquilo que Freud designou de aparelho psíquico, mas nem por isso deixa de fazer presença embora ausente. (p. 163).

Portanto, a Coisa – das Ding, freudiana, é o objeto perdido definitivamente, embora permaneça sempre desejado e buscado. Conforme Quinet (2004), O objeto da primeira experiência de satisfação [...] corresponde à Coisa que não pode ser atingida nem na alucinação do desejo nem na realidade. Só se tem acesso a suas coordenadas simbólicas. A Coisa em psicanálise é o objeto perdido, que, na verdade, jamais existiu. E, contudo, o sujeito deve reencontrá-lo, sem no entanto jamais conseguir, constituindo a falta estrutural do desejo. (p. 55).

Tal objeto traduz-se, metaforicamente, no significante mãe, enquanto um ser outro, semblante de objeto perfeito. Assim se estabelece essa condição da falta, que é uma condição irremediável da existência visto que, como já referido, os seres humanos são altamente dependentes desde o nascimento em relação ao outro. O seio materno indica bem essa ideia sendo o primeiro elemento que marca essa dependência fundada, a princípio, numa necessidade de sobrevivência (alimentar-se) e, posteriormente, no prazer que o ato de sucção oferece. Vale destacar que Lacan (1956-1957/1995) ressalta a importância da perda do seio como a primeira castração sofrida pelo bebê quando afirma: É surpreendente ver que, no momento em que faz a teoria da evolução instintual tal como esta se origina das primeiras experiências analíticas, Freud nos indica que o objeto é apreendido pela via de uma busca de objeto perdido. Este objeto, que corresponde a um estágio avançado da maturação dos instintos, é um objeto reencontrado, o objeto reencontrado do primeiro desmame, o objeto que foi inicialmente o ponto de ligação das primeiras satisfações da criança. (p. 13).

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Esse Outro – mãe – que propicia a satisfação primeira da necessidade de alimento, também introduz a linguagem, a fala. A criança, por meio do grito realiza a descarga de tensão que a urgência do momento exige e, ao mesmo tempo, possibilita que a mãe, atendendo a este apelo, transforme a necessidade em demanda, introduzindo a criança no mundo significante, isto é, no campo simbólico da linguagem. Daniela Chatelard (2005) destaque que O grito abre acesso para o sujeito no campo do Outro, sua primeira inscrição fora marcada pela via da experiência da satisfação. Essa experiência é a marca da impossibilidade do encontro do sujeito com o objeto, e esse primeiro encontro inscreve o sujeito no campo do desejo. A partir desse momento, diante da falta de objeto, são investidos, simultaneamente, os traços da experiência de satisfação do desejo que emerge, denunciando a dimensão da perda e do retorno de uma satisfação já experimentada. (p. 106).

Esta mesma mãe é quem remeterá a criança à constituição da falta – por meio do reconhecimento da Lei paterna da linguagem – contingência da qual emerge uma cadeia significante que estrutura o sujeito numa relação com o seu desejo, sabendo que “a experiência de satisfação ligada à imagem do objeto deixa sua marca no aparelho psíquico e introduz, assim, o sujeito no circuito pulsional, passando da demanda ao desejo; do grito ou do som à fala, à palavra, ao significante”. (CHATERLARD, 2005, p. 107). Assim, o sujeito traz consigo a marca desta falta estruturante, grafada no inconsciente e sempre presente a suscitar o desejo. Ela é a falta da Coisa, Das Ding que Jean-Pierre Lebrum (2010) comenta, seguindo o caminho percorrido por Freud, O objeto inteiramente satisfatório, das Ding, a Coisa, como Freud a denomina, é representado pela Mãe, que ocupa o lugar daquilo que o sujeito, para existir como tal, deverá renunciar. (p. 31).

Embora Freud não tenha feito uso do termo sujeito diretamente, seus textos demonstram o aspecto fundamental que o caracterizam: um ser faltoso. Em termos lacanianos, é o sujeito do inconsciente, marcado pela castração, barrado em seu desejo, implicado na linguagem pelo discurso do Outro. De acordo com Lacan (1964/1996), no “Seminário 11”, o sujeito é determinado pela linguagem e, por isso, começa no lugar do Outro, lá onde surge o primeiro significante”. (p. 187). E “um significante é aquilo que representa um sujeito [...] para outro significante”. (p. 187). No mesmo “Seminário 11” Lacan (1964/1996) afirma: “o outro é o lugar em que se situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer”. (p. 193194). Assim, “[...] o sujeito só é sujeito por seu assujeitamento ao campo do Outro, o sujeito

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provém de seu assujeitamento sincrônico a esse campo do Outro.” (LACAN, 1964/1996, p. 178). Para Godino Cabas (2009), “o sujeito não é um atributo, um dom natural, um traço, nem mesmo uma função presente em todo ser falante, mas, apenas, naqueles que estão implicados pelo inconsciente, determinados ora por sua incidência, afetados por sua enunciação, assujeitados aos seus efeitos simbólicos”. (p. 181). Desta feita, o sujeito em termos lacanianos é um ser definitivamente marcado por um limite, uma impossibilidade de satisfação plena de desejo. Para Lacan, (1954-55/1995) “o desejo é uma relação do ser com a falta. Esta falta é a falta de ser, propriamente falando. Não é falta disto ou daquilo, porém falta de ser através do que o ser existe”. ( p. 280). Falando sobre o desejo inconsciente, Godino Cabas (2009) afirma que esse é “um desejo cujo curso pressupõe uma verdade difícil de sustentar e cuja estrutura implica um real impossível de suportar”. (p. 35). Em sua releitura da obra freudiana, Lacan põe em relevo a questão do desamparo como parte estrutural da psique. Entretanto não é essa condição de dependência inicial que marca a condição de sujeito, mas trata-se de uma dependência que coloca o sujeito em relação ao desejo do Outro. Rocha (2000) comenta que Isto insere o sujeito na ordem da linguagem e, ao mesmo tempo, traduz o desamparo como experiência de uma falta fundamental, que cuidado algum pode suprir. Esta falta fundamental é un manque à être, vale dizer, “uma falta a ser” é a incapacidade da linguagem de dizer a última palavra sobre a verdade do ser. (p. 113).

No Seminário 4 “A relação de objeto”, Lacan (1956-57/1995) aponta uma correlação entre a noção de objeto em Freud e o conceito de falta que objetiva introduzir como ponto nodal da teoria psicanalítica. Algumas passagens deste seminário indicam esta associação teórica. De acordo com Lacan: “Freud insiste no seguinte: que toda maneira, para o homem, de encontrar o objeto é, e não passa disso, a continuação de uma tendência onde se trata de um objeto perdido, de um objeto a se reencontrar”. (p. 13). No o seminário 2 “O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise”, Lacan (195657/1995) afirma: “jamais, em nossa experiência concreta da teoria analítica, podemos prescindir de uma noção da falta do objeto como central. Não é um negativo, mas a própria mola da relação do sujeito com o mundo”. (p. 35). E, logo em seguida, na continuação do mesmo texto, referindo-se a castração, elemento estruturante da condição da falta, enfatiza: “acreditamos falar sempre dela como se falava no tempo de Freud”. (p. 35). No seguimento de sua reflexão Lacan (1956-57/1995) arremata: “graças a vários pontos articulados

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diversamente na obra de Freud, a noção de que o objeto é sempre, somente, um objeto reencontrado a partir de uma Findung 15 primitiva, e portanto, que a Wiederfindung 16 , a redescoberta, jamais é satisfatória”. (p. 61). Sendo assim, a inexorável condição humana da falta elabora a estruturação do sujeito desejante. A perda da Coisa, assimilada com a saída do Édipo, instaura essa condição fundamental do sujeito do desejo. O Édipo impõe essa renúncia à Coisa, de quem a mãe é legítima representante e quem vai “lembrar a criança e a mãe de que eles não são tudo um para o outro, é o pai”. (LEBRUM, 2010, p. 32). Portanto, o pai aparece como o elemento que provoca a ruptura dessa relação de onipotência entre mãe-filho. Esse pai entra em cena no discurso materno, como a Lei que barra esse Outro absoluto que a mãe representa. É aquilo que Lacan (1954-55/1995, p. 326) denomina como “o Nome-do-Pai”. De acordo com Quinet (2004), tal significante “barra a Coisa, esvaziando-a do gozo”. (p. 56). Portanto, ao efetivar uma castração simbólica do desejo da mãe de ser toda para o filho e, ao mesmo tempo, privar o filho de seu objeto de desejo que é a mãe, o significante “Nome-do-Pai” instaura a falta, ao estabelecer, enquanto Lei simbólica, uma impossibilidade de acesso à Coisa, a partir de sua interdição. Para Lacan (1954-55/1997), “a função simbólica constitui um universo no interior do qual tudo o que é humano tem de ordenar-se”. (p. 44). Desta feita, esse processo de castração simbólica aponta para o sujeito seu limite frente à realização de desejo. Nada, portanto, pode realizá-lo a ponto de uma satisfação completa. O sujeito emerge como um ser da incompletude. Como bem nos lembra Gilda Plastino (2008), [...] Na vida humana tudo aponta para a falta: não podemos obter tudo que queremos; a pessoa amada não preenche todas as nossas expectativas nem nós somos tudo para quem amamos; o pai faz com que a mãe falte como fêmea disponível; a cultura não resolve todos os problemas; à linguagem falta um significado absoluto, pois nem tudo é simbolizável e nem tudo está simbolizado; o inconsciente não é interpretado totalmente... (p. 76-7).

Sendo assim, estando pleno desta falta, o sujeito buscará, por toda a vida, à Coisa perdida, à qual jamais poderá reencontrar. A Coisa, se expressa como um vazio, que remete, portanto, a um nada. Lacan (1959-60/2008), a partir do exemplo do oleiro construindo um vaso, teoriza esta noção de vazio que representa das Ding,

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Termo alemão derivado do verbo finden que significa encontrar. Portanto, trata-se de um encontro primeiro, primitivo. (Tradução do Dicionário Online PONS: http//www.pt.pons.com/tradução/alemão-portugûes). 16 Termo alemão derivado do verbo wieder/finden que significa reencontrar. (Tradução do Dicionário Online PONS: http//www.pt.pons.com/tradução/alemão-portugûes).

47 Ora, se vocês considerarem o vaso, na perspectiva que inicialmente promovi, como um objeto feito para representar a existência do vazio no centro do real que se chama a Coisa, esse vazio, tal como ele se apresenta na representação, apresenta-se, efetivamente, como um nihil, como nada. E é por isso que o oleiro, assim como vocês para quem eu falo, cria o vaso em torno desse vazio com sua mão, o cria assim com o criador mítico, ex nihilo, a partir do furo. (p 148).

Portanto, metaforicamente criado a partir do nada, o vaso, representa este vazio, o furo onde se pode localizar das Ding. Para Quinet (2004), o complexo edípico organiza, então, esta dimensão do vazio que se configura a partir da Coisa enquanto objeto primordial. Ele afirma que O vazio da Coisa analítica corresponde, assim como o sujeito, à falta de significante que pudesse representá-la, e também ao esvaziamento do gozo. O complexo de Édipo vela o vazio do gozo da Coisa e atribui a esta um caráter de coisa proibida, quando na verdade ela é impossível de se encontrar. O complexo de Édipo leva a crer que a Coisa que representa a Mãe é proibida, quando na verdade está perdida. (p. 56).

Desse modo, falar em desejo, em termos psicanalíticos, significa aludir ao conceito de falta. Isto porque somente podemos desejar aquilo que não temos, ou que foi perdido. Nas palavras de Plastino (2008), “somos seres da falta porque somos seres desejantes e só desejamos porque carregamos em nós a constituição de uma carência”. (p. 57). Portanto, estamos falando do desejo, advindo da falta, como uma mola propulsora da vida. O desejo, oriundo da falta, está na base da estrutura e da organização do sujeito. Plastino (2008) comenta que somos Impelidos pelo desejo, o destino de nossas vidas é a busca, a luta para preencher um vazio destinado a não ser nunca suficientemente tamponado, em virtude da impossibilidade da existência de algo que venha ajustar-se à dimensão de nossa privação. (p. 57-8).

O desejo é uma realização impossível enquanto gozo absoluto, posto que a falta deixada pela perda da Coisa não pode jamais ser tamponada. No Seminário 7 “A ética da psicanálise”, Lacan (1959-1960/2008) indica que “a função do princípio do prazer é fazer com que o homem busque sempre aquilo que ele deve reencontrar, mas que não poderá atingir”. (p. 85). Isso nos oferece uma ideia da impossibilidade da realização plena do desejo. A questão da Coisa, das Ding, aparece em boa parte do Seminário 7, cuja temática refere-se a esta questão do objeto ao qual Lacan teoriza em seu retorno a Freud. Neste Seminário, Lacan faz uso de um neologismo “êxtimo” para estabelecer uma correlação com a Coisa freudiana no sentido de algo pertencente ao próprio sujeito, mas que, não obstante ser aquilo que lhe é mais íntimo, está posto fora dele, no exterior. Conforme afirma: “O Ding

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como Fremde,17 estranho e podendo mesmo ser hostil num dado momento, em todo caso, como primeiro exterior, é em torno do que se orienta todo o encaminhamento do sujeito”. (LACAN 1959-60/2008, p. 67). Portanto, para Lacan (1959-60/2008), Das Ding no centro, e em volta o mundo subjetivo do inconsciente organizado em relações significantes, para vocês verem a dificuldade de sua representação topológica. Pois esse das Ding esta justamente no centro, no sentido de estar excluído. Quer dizer que, na realidade, ele deve ser estabelecido como exterior, esse das Ding, esse Outro pré- histórico impossível de esquecer, do qual Freud afirma a necessidade da posição primeira sob a forma de alguma coisa que é entfremdet18, alheia a mim, embora esteja no âmago desse eu, alguma coisa que, no nível do inconsciente, só uma representação representa. (p. 89).

Sendo assim, Das Ding encontra-se no campo do inominável. Em termos lacanianos, é da ordem do Real. O Real, não é algo do campo da realidade empírica. A tópica lacaniana se articula a partir de três vertentes: Real, Simbólico e Imaginário. O simbólico está posto no plano em relação à Lei, isto é, a função paterna; o imaginário no plano da identificação do Eu, ligado a um processo de alienação da imagem; o Real é aquilo que é apresentado como um “resto” que não pode ser nomeado e que, portanto, não atinge o plano da simbolização. Assim, o Real enquanto inominável está aquém do inconsciente, antes da palavra, do simbólico. Daí a afirmação lacaniana sobre a Coisa como aquilo “que do real [...] padece de significante”. (LACAN 1959-60/2008, p. 144). Não obstante sendo objeto perdido definitivamente, a Coisa torna-se o elemento que organiza a vida do sujeito em relação ao desejo. Então, de acordo com Lacan (1964/1996), Este objeto, que de falta é apenas a presença de um cavo, de um vazio, ocupável, nos diz Freud, por não importa que objeto, e cuja instância conhecemos na forma de objeto perdido, a minúsculo. O objeto a minúsculo não é a origem da pulsão oral. Ele não é introduzido a titulo de alimento primitivo, é introduzido pelo fato de que nenhum alimento jamais satisfará a pulsão oral, senão contornando-se o objeto eternamente falante. (p. 170).

No Seminário 23 “O sinthoma”, Lacan fala do Real como algo impossível, enigmático. Para Lacan (1975-1976/2007), “[...] o real é sem lei. O verdadeiro real implica a ausência de lei. O real não tem ordem”. (p. 133). Assim, o Real mostra o aspecto da falta que jamais pode ser suprimida. Por isso está diretamente relacionado à Coisa. A esse respeito, Maurício Eugênio Maliska (2010) comenta: 17

Substantivo alemão que significa forasteiro(a)/estrangeiro(a), designando neste caso, a categoria daquilo que é estranho. (Tradução do Dicionário Online PONS: http//www.pt.pons.com/tradução/alemão-portugûes) 18 Adjetivo alemão que significa alienado(a). (Tradução do Dicionário Online PONS: http//www.pt.pons.com /tradução/alemão-português).

49 A rigor das Ding se aproxima do real, não como sendo aquilo que foi perdido e, por isso, objeto faltante, mas se aproxima do real pela suposição do ‘terá sido’. ‘A Coisa’ se faz pela nossa procura, não é e nunca foi um objeto empírico, e sim se faz presente pelo nosso desejo, como nostalgia de algo que terá sido desse ou daquela forma, a nostalgia de algo que não aconteceu, mas sabemos que se faz presente pela sua ausência. (p. 77).

Conforme comenta Quinet (2004), “a coisa é [...] vazia, sem substância: é aquilo em torno do qual se organiza toda a atividade do sujeito, toda a sua orientação subjetiva”. (p. 50). Portanto, buscar a Coisa significa uma tentativa de reencontrar uma experiência de satisfação plena. Todavia, esta satisfação esbarra no limite da castração. Então este corte, este limite que a castração impõe, ao qual o sujeito deve suportar, coloca-o numa condição de faltoso, alimentando o desejo que jamais pode se concretizar plenamente, posto que encontrar a Coisa, isto é, a satisfação plena do desejo, colocaria o sujeito diante de um encontro mortífero. 4.2 Da Coisa perdida ao Objeto a, causa de desejo. Ao retornar ao conceito freudiano de objeto, Lacan promove uma releitura e relaciona o objeto primitivo e perdido – das Ding – com a dimensão da falta estrutural, isto é, uma falta que se apresenta na origem do sujeito. Portanto, a Coisa freudiana está posta na base para o surgimento de um modelo de organização subjetiva que orbita em torno da questão da falta. Assim, se na falta está implicada a questão do desejo, a Coisa em si contém este germe da experiência do desejo, tornando-se a causa do próprio desejo. Por isso a construção teórica lacaniana referente ao objeto a enquanto um objeto causa de desejo, indicando a condição de sujeito desejante. No Seminário 10 “A angústia”, Lacan (1962-63/2005) afirma: “em relação ao desejo, o objeto a sempre se apresenta na função de causa e é, para nós, possivelmente, [...], o ponto-raiz no qual se elabora no sujeito a função da causa. A forma primordial da causa é a causa de um desejo”. (p. 321). Conforme Lacan (1964/1996), “o objeto a é algo de que o sujeito, para se constituir, se separou como órgão. Isso vale como símbolo da falta, quer dizer, do falo, não como tal, mas como fazendo falta. É então preciso que isso seja um objeto – primeiramente, separável – e depois, tendo alguma relação com a falta”. (p. 101). Justamente por sua condição de objeto causa de desejo, “o objeto a é mais evanescente em sua função de simbolizar a falta central do objeto”. (LACAN 1964/1996, p. 102). Noutras palavras, para a falta não há objeto possível para aplacá-la. Portanto, no percurso das formulações teóricas lacanianas podemos perceber

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um trabalho de associação da falta com a construção conceitual para uma nova concepção de objeto. De acordo com Lacan, este objeto na obra freudiana se configura como objeto reencontrado, daí a suposição de que ele tenha sido perdido. Nas palavras de Lacan (195960/2008): “que ele tenha sido perdido é a consequência disso [...]. E, portanto, ele é reencontrado, sendo que a única maneira de saber que foi perdido é por meio desses reencontros, desses reachados”. (p. 145). Neste sentido, a Coisa, em termos lacanianos, é Coisa inapreensível, isto é, somente poderá ser representada por “Outra coisa”. (p. 145). Como consequência, a Coisa se expressa num vazio, uma vez que está implicada sempre na noção de um objeto referente, ou seja, um objeto ‘Outro’ que o represente. E, sendo assim, não pode haver objeto capaz de assumir a posição de objeto primevo, configurando-se, portanto, a noção de um vazio. Ao refletir sobre a questão da sublimação19, no Seminário 7 “A ética da psicanálise”, Lacan (1959-60/2008) aponta esta noção de vazio referente à Coisa. Essa Coisa, da qual todas as formas criadas pelo homem são do registro da sublimação, será sempre representada por um vazio, precisamente pelo fato de ela não poder ser representada por outra coisa – ou, mais exatamente, de ela não poder ser representada senão por outra coisa. Mas em toda forma de sublimação o vazio será sempre determinante. (p. 158).

Disso se depreende, então, que no vazio da Coisa encontramos a experiência do desejo, posto que nenhum objeto ‘Outro’ pode efetivamente tamponar este vazio. Sendo assim, a Coisa, enquanto objeto, está implicada como objeto do desejo. Se por um lado a Coisa se configura como um vazio para o qual não há objeto satisfatório, por outro, o objeto ‘Outro’ adquire uma função de suplência, atualizando de algum modo a experiência referente à Coisa. Destarte, a Coisa é do campo do inapreensível e, para Lacan (1964/1996), ela está relacionada à dimensão do Real, aquilo que “retorna sempre ao mesmo lugar”. (p. 52). Tal movimento de retorno está implicado na repetição que, em Lacan, expressa a ordem do Real. Neste mesmo Seminário 11, Lacan (1964/1996) aponta que “o real é, no sujeito, o maior cúmplice da pulsão”. (p. 71). 19

Este trabalho não objetiva realizar um aprofundamento acerca da questão da sublimação que, por si só, já é um tema bastante abrangente e complexo, visto que não é trivial abordar as especificidades presentes nesse campo conceitual. Entretanto, aos leitores que se interessam por este tema, remeto-lhes ao livro “Figuras de sublimação na metapsicologia freudiana”, da psicanalista Ana Maria Loffredo (2014), que discute o tema de maneira bastante aprofundada.

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Por isso, organizar-se em torno desse vazio ao qual se refere Lacan é na verdade fazer girar a pulsão, o desejo. Não havendo possibilidade de renúncia total da pulsão, ela orbita em torno das trocas de objetos que assumem inconscientemente para o sujeito um semblante de objeto a, mantendo a realização pulsional de modo desviado. Freud (1908a[1907a]/1996), em “Escritores Criativos e Devaneios” afirma que “na verdade, não podemos renunciar a nada; apenas trocamos uma coisa por outra; o que parece ser uma renúncia é, na realidade, uma formação de substitutos ou sub-rogados”. (p. 136). A satisfação plena está implicada numa impossibilidade de realização. Mesmo assim, o sujeito acredita ilusoriamente poder alcançá-la. Daí a sua obstinada teimosia e persistência em busca dessa satisfação não lograr êxito pleno, isto é gozo total. O gozo se expressará como um gozo fálico, parcial, incompleto. Portanto, “através da sublimação, acha-se evidenciado o impossível em jogo na satisfação pulsional. Isto é o mesmo que dizer que a sublimação é a vicissitude da pulsão, que dá a esta seu mais legítimo estatuto”. (JORGE, 2000, p.154). A sublimação está, desta feita, intimamente ligada à Coisa. Daí a impossibilidade, pois encontrar um objeto é na verdade reencontrar a própria Coisa, e esse reencontro se dá por meio de uma cadeia de representação significante. Marco Antônio Coutinho Jorge (2000) afirma que O impossível da satisfação, em jogo na pulsão, encontra na sublimação sua possibilidade de manifestação plena, pois a sublimação revela a estrutura do desejo humano enquanto tal, ao revelar que, para além de todo e qualquer objeto sexual se esconde o vazio da Coisa, do objeto enquanto radicalmente perdido. (p. 154-55).

A busca por preencher este vazio existencial se realiza pela própria busca de realização do desejo que se renova e se atualiza constantemente. O desejo, estando na base da estrutura do sujeito, é aquilo que o mantém em movimento, embora, nunca plenamente satisfeito. Nesta perspectiva, França Neto (2007) aponta que essa condição de insatisfação presente “no desejo nos pontua sua interseção com a sublimação. [...] A sublimação, assim como o desejo, é condenada definitivamente a não atingir seu objetivo (e objeto), ficando assim entregue à insatisfação”. (p. 75). 4.3 O objeto a como causa de desejo e sua relação com a falta O objeto a está implicado na dimensão do Real, isto é, do inominável. De acordo com Quinet (2004), “o objeto a, por sua vez, é o conceito lacaniano que aponta e nomeia o retorno no real do gozo esvaziado da Coisa pela lei simbólica, ou seja, o resto da operação simbólica

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promovida pela lei”. (p. 59). A lei é aquilo que em psicanálise impõe um limite e que, portanto, estabelece a marca de uma falta perene que, doravante o sujeito, inconscientemente, buscará preencher sem jamais logra pleno êxito. Sendo assim, o sujeito é marcando pela condição do desejo e, sendo sujeito desejante “experimenta o objeto a, pois este é causa de desejo”. (p. 59). Portanto, objeto a não pode ser considerado, de acordo com Quinet (2004) como sendo Um objeto do desejo (no qual o desejo incide), que é sempre um dos objetos do mundo sensível, mas se encontra na origem deste. Diferentemente da Coisa, o objeto a é uma causalidade fora do sujeito (o qual se confunde com a própria Coisa), afetado por ele como desejo ou ainda como angústia. (p. 60).

Assim, a busca de objeto, em termos lacanianos, tendo no objeto a uma atribuição de causa de desejo remete à condição da falta. Esta falta encontra-se fora de um conjunto significante – considerando a máxima lacaniana do inconsciente estruturado como linguagem com sua rede de significantes –, mas que constantemente se renova no sujeito enquanto um ser da fala e, consequentemente, da falta. Chatelard (2005) refere-se ao sujeito falante enquanto um ser implicado em suas perdas, marcas sempre presentes da incompletude que o define. Para esta autora, O ser falante em sua dialítica de ter ou não ter, em sua série de reivindicações fálicas, vê-se diante da experiência da pura perda, de um menos que se impõe. O Um introduz uma descontinuidade na experiência do inconsciente, é o Um da ruptura, do hiato, do traço. O Um-a-menos denuncia a falta, esta que está ali, por estrutura; ela presentifica a ausência, faz existir por sua presença a falta fundante. (CHATELARD 2005, p. 25-26)

A organização estrutural do sujeito baseia-se, fundamentalmente, conforme comenta Vinícius Derrida (2005), “segundo uma lógica em que a sustentação da rede significante – causa para o sujeito – depende da exclusão de um termo, o qual se configurava, assim, como um exterior inassimilável na experiência”. (p. 73). Por isso, nesta cadeia significante, “há sempre um significante que falta e que não está nem com os outros nem com o Outro”. (CHATERLARD 2005, p. 31). Esse significante fora da cadeia se efetivou a partir da primeira experiência de satisfação, estabelecendo um furo no interior dessa organização. Este furo deixado por uma ausência de significante cria, portanto, a condição de desejo. Por isso, o desejo jamais se esgota. Neste sentido, Chaterlard (2005) enfatiza que “se o objeto emerge como sendo o objeto de descoberta do objeto perdido, se ele vem desse deslizamento metonímico de

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substituições e de deslocamentos, ele vem então para tentar preencher a falta, mas vem também como causa de uma busca do desejo do sujeito”. (p. 26). No Seminário 10 “A angústia”, Lacan (1962-63/2005) passa a considerar o objeto a como causa de desejo na medida em que o desejo somente pode ser efetivado por meio do Outro que, segundo Lacan dá “acesso à relação imaginária constituída pela fantasia”. (p. 51). Nesta perspectiva, o objeto a lacaniano refere-se a algo da ordem do exterior inassimilável, pondo o desejo em constante movimento. Noutras palavras, o objeto a é ‘experimentado’, pelo sujeito por meio de representações que perpassam sempre o Outro, afinal, somos fruto do desejo do Outro. Lacan (1962-63/2005) enfatiza que o objeto a, “suporte do desejo na fantasia, não é visível no que constitui para o homem a imagem de seu desejo”. (p. 51). Sendo assim, conforme comenta Chaterlard (2005), “encontramos, portanto, essas duas vertentes do objeto: o objeto que vem preencher o vazio deixado pelo ser do sujeito durante a experiência da perda primordial e o objeto que se acha atrás da causa do desejo do sujeito”. (p. 26). Na teoria lacaniana a linguagem é o ponto nodal que marca o sujeito. A linguagem, a partir do Outro, imprime no ser falante a marca de um trauma, isto é, a linguagem crava um furo de um significante do ser. De acordo com Chaterlard (2005, p. 103), esta marca se expressa em duas vertentes: na primeira, a fissura provocada no ser falante barra o gozo pulsional, deixando o vazio, cujo movimento constante do desejo impele a uma busca por tamponamento deste vazio; na segunda, o significante extraído do sujeito, isto é, o objeto perdido, assume uma função de causa de desejo. Nas palavras desta autora, No campo do outro, algo é expulso, e é em torno desse primeiro exterior expulso que se orienta a via subjetiva do sujeito. Este, em sua relação com a realidade, parte em busca do objeto para sempre perdido. Busca o que é impossível encontrar: das Ding – o Outro absoluto – a mãe. Ela vem ocupar o Outro da linguagem, o Outro simbólico para a criança, esse Outro no Projeto do mundo exterior, ajuda que está alhures e que vem em socorro do desamparo inicial. (p. 105).

Portanto, o sujeito faltoso, logo, desejante, é o sujeito do inconsciente. Conforme afirma Maria Cristina Ocariz (2003, p. 108-109), o sujeito não é apenas um ser biológico, nem tampouco um ser pensante, consciente de tudo o que é de sua verdade. Essa verdade sobre o sujeito está como que obscurecida. Isso significa, portanto, que se trata de uma verdade escondida dele mesmo através da linguagem. Daí que o sujeito desejante fala de si mesmo em seu discurso sem mesmo saber sobre o que fala.

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De acordo com Ocariz (2003), “o sujeito é um vazio, não tem substância e está fora do pensamento. ‘penso onde não sou’ e sou onde não penso’, lá onde se encontra a pulsão sexual”. (p. 109). Esta autora arremata: “o sujeito, na verdade de seu desejo, pode ser colocado como sujeito do inconsciente. [...] O sujeito não é o eu, não é a imagem corporal. É uma ex-sistência. O sujeito é desejo, desejo logo ex-sisto”. (p. 109). O desejo está imbricado, portanto, no sentido da falta. Para essa falta, não há objeto concreto ou real capaz de preenchê-la. Daí porque o desejo somente pode ser efetivado num processo de interação com o Outro. (OCARIZ, 2003). Assim sendo, Ocariz afirma: “reconhecer a falta no Outro, como algo impossível de ser preenchido atesta que a criança aceita a falta no processo de seu próprio desejo.”. (OCARIZ, 2003, p. 111). Destarte, o Sujeito desejante advindo do complexo de castração, onde a falta é instaurada, vivencia constantemente um retorno ao que ficou abandonado no passado. Contudo, busca, a partir daí, atualizar essa relação com o desejo. Por essa razão, “na dialética edipiana, no final a criança abandona a posição de objeto do desejo do Outro e ocupa a posição de sujeito desejante, na qual há a possibilidade de escolher objetos substitutivos de desejo colocados metonimicamente20 no lugar do objeto”. (OCARIZ, 2003, p. 111). Desse modo, o sujeito realiza um processo que Freud chamou de deslocamento e que Lacan – apropriando-se da linguística – chamou de metonímia. Nesse processo, ao deslocar o desejo para outros objetos, o sujeito terá, doravante, sempre uma realização parcial desse desejo que será projetado em objetos representativos da Coisa. Então, terá de conciliar o princípio do prazer com o princípio de realidade, isto é, estruturar-se enquanto sujeito desejante para dar conta de atender os imperativos pulsionais.

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De acordo com Garcia-Roza, (2007), a metonímia, termo advindo da linguística para formar um conceito lacaniano, está relacionada ao conceito Freudiano de deslocamento. O deslocamento desempenharia no sonho, “uma função homóloga à metonímia do discurso”. (p. 188). Sabemos que a metonímia consiste na utilização de um termo por outro, em face da semelhança entre os termos, possibilitando associá-los livremente. Por analogia, é isso que ocorre no processo de deslocamento. Também Rinaldi (1996, p. 31) afirma que “é pela metonímia – pelo deslocamento -, onde se situa o desejo, que o sujeito do inconsciente se afirma enquanto sujeito do desejo”.

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5 DAS UNHEIMLICH:21A FAMILIARIDADE DO ESTRANHO Um cego me levou ao pior de mim mesma[...]. Clarice Lispector (1960/2009, p.27)

5.1 A inquietante estranheza O objeto causa de desejo, que segundo Lacan “escapa ao status do objeto derivado da imagem especular” (p. 50), é o objeto ao qual se pode referir quando se fala em angústia. Este tema da angústia pode ser pensado, também, na perspectiva do texto freudiano O Estranho – Das Unheimlich. No momento em que algo assume o lugar da falta para o sujeito, surge então o Unheimlich. Neste artigo “O Estranho”, Freud (1919/1196) promove uma reflexão sobre aquelas categorias de eventos cotidianos que causam no sujeito um sentimento de estranhamento, gerando desprazer. Freud (1919/1996) vai apontar que, paradoxalmente a estranheza sentida em situações improváveis, tais situações remetem exatamente a uma condição de familiaridade com algo da condição interna de cada sujeito que tais eventos têm o poder de mobilizar. Para Freud (1919/1996), “o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar”. (p. 238). Isto significa que algo do sujeito, de algum modo desejado, mas que fora recalcado, para evitar a extinção do próprio Eu, emerge provocando angústia. Assim, o sentimento de estranheza aparece num momento a partir do qual o sujeito não se encontra mais. Daí que o sujeito experimenta a vivência de um momento ameaçador, o qual está ligado ao processo de castração. Desse modo, eventos que causam essa sensação de estranhamento não ensejam uma novidade, nem estão alheios ao próprio sujeito, mas ao contrário, referem-se a alguma coisa que foi submetida ao processo de recalcamento, isto é, sofreu a castração. Nas palavras de Freud (1919/1996), “o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar”. (p. 238). Sobre essa relação estranho/familiar de um evento, Freud (1919/1996) trabalha dois conceitos importantes: o heimlich, cujo significado remete a algo pertinente ao íntimo e confortável ao sujeito, ou seja, é aquilo que desperta “uma sensação de repouso agradável e de segurança” (p. 240); o unheimlich seria exatamente o oposto ao sentido do heimlich. Freud 21

Substantivo alemão que foi traduzido como O Estranho. In: S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Vol. XVII. p. 235-273. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

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(1919/1996), portanto, efetua uma junção dos dois termos para dizer que o mais interessante é que “o que é heimlich vem a ser unheimlich”. (p. 242). Noutras palavras, o termo heimlich evoca uma ambiguidade, embora, pertença “a dois conjuntos de ideias que, sem serem contraditórias, ainda assim são muito diferentes: por um lado significa o que é familiar e agradável e, por outro, o que está oculto e se mantém fora da vista”. (p. 242-243). Citando Schelling, Freud (1919/1996) lembra que “unheimlich é tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz”. (p. 243). De acordo com Freud (1919/1996), o afeto livre, antes ligado a uma representação pulsional transforma-se em angústia. Por isso, “deve haver uma categoria em que o elemento que amedronta pode mostrar-se ser algo reprimido que retorna”. (p. 258). Essa categoria, isto é, essa cadeia significante, se constrói por meio daquilo que foi sentido como estranho. Daí a razão de Freud (1919/1996) buscar compreender a natureza do estranho na perspectiva da linguagem, estendendo o uso do termo, “das Heimlich [‘homely’ (doméstico, familiar’)] para o seu oposto, das Unheimlich; pois esse estranho não é nada novo ou alheio, porém algo que é familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente se alienou desta através do processo da repressão”. (p. 258). Tomando como referência sua experiência clínica, Freud (1919/1996) apresenta um exemplo que constantemente se repete, no caso dos neuróticos do sexo masculino, sobre uma sensação estranha que sentem em relação ao órgão genital feminino. Esse lugar do estranho, diz Freud (1919/1996), “é a entrada para o antigo Haim [lar] de todos os seres humanos, para o lugar onde cada um de nós viveu certa vez, no princípio”. (p. 262). Freud utiliza o gracejo ‘O amor é a saudade de casa’ para exemplificar esse retorno. Referindo-se ao sonho no qual um homem sente a sensação de reconhecer este lugar repetindo, para si mesmo, ‘este lugar éme familiar’, como se já estivesse estado ali antes, Freud (1919/1996) destaca este lugar como sendo “os genitais de sua mãe ou seu corpo”. (p. 262).22

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Neste sentido, é interessante destacar que existe um quadro datado de 1866 (óleo sobre tela), do artista francês Gustave Courbet, intitulado “A origem do mundo” que mostra os genitais entreabertos de uma mulher. Esta obra pertenceu ao psicanalista francês Jaques Lacan que a mantinha numa sala de sua casa de campo. Em 1994, após a morte da viúva de Lacan, o quadro foi doado pela família para o Museu d´Orsay, de Paris, onde se encontra exposto. Maria Rodrigues Festucci Ferreira (2013 p. 55) destaca que este quadro havia sido encomendado a Courbet por um diplomata turco otomano Khalil Bey, que tinha por hábito decorar sua casa com arte erótica. Falido pelo jogo, Khalil vendeu a obra a um antiquário, onde a obra permaneceu por muitos anos. Em torno do ano de 1910, o aristocrata húngaro, o barão François de Hatvany, adquiriu o quadro levando-o para Budapeste. Nesse período o quadro teria sido confiscado pelo exército nazista, no período da Segunda Guerra Mundial. A pintura foi resgatada durante a invasão russa por um soldado do exército vermelho e, posteriormente, voltado para as mãos do próprio François. Daí passou à mão de Lacan, que foi seu último dono. É uma obra marcada pelo estranhamento.

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Lacan (1962-63/2005), no Seminário 10 “A angustia”, em seu retorno a Freud, referese ao vocábulo heimlich destacando que o radical desta palavra – Heim – comporta um sentido de um lar, como Freud já indicara. Lacan (1962-63/2005) define da seguinte maneira: Digamos que, se esta palavra tem algum sentido na experiência humana, é o da casa do homem. O homem encontra sua casa num ponto situado no Outro para além da imagem de que somos feitos. Esse lugar representa a ausência em que estamos, [...] apodera-se da imagem que o sustenta, e a imagem especular transforma-se na imagem do duplo, com o que esta traz de estranheza radical. (p. 58).

Assim, como pano de fundo, aparece o sujeito, marcado por uma ausência, estruturado por uma falta que se funda na angústia de castração. Esta ausência é uma marca deixada pelo Outro enquanto primeira imagem na qual o sujeito encontra-se refletido. Portanto, de acordo com Lacan (1962-63/2005), “no Outro, no lugar do Outro, perfila-se uma imagem apenas refletida de nós mesmos. Ela é autenticada pelo Outro, porém já é problemática, ou até falaciosa”. (p. 55). Este reflexo significa apenas um engodo, posto que representa um sentido de completude que não se efetiva definitivamente, pois também este Outro que oferece o suporte, apenas pode oferecer aquilo de que também se constitui, a própria falta. No campo do imaginário lacaniano este Outro ocupa, portanto, um lugar referente a uma imagem configurada como uma falta, já que aquilo que se busca não pode ser encontrado, e que, sendo assim, nesse lugar se coloca o desejo, de modo velado, mas, sobretudo, relacionado a uma ausência. Nas palavras de Lacan (1962-63/2005), Essa ausência é também a possibilidade de uma aparição, ordenada por uma presença que está em outro lugar. Tal presença comanda isso muito de perto, mas o faz de onde é inapreensível para o sujeito. Como lhes indiquei, a presença em questão é a do a, o objeto na função que ele exerce na fantasia. (p. 55).

Assim, neste lugar da falta posiciona-se o símbolo do -φ, isto é, o símbolo da castração que, para Lacan (1962-63/2005), “é a angústia, a angústia de castração, em sua relação com o outro” (p. 55), onde algo pode aparecer. O que aparece, então é o objeto a como aquilo que no ato do fantasiar vem preencher este lugar faltoso. Portanto, é neste lugar da ausência que se insere o objeto a causa de desejo. Tal objeto é, para Lacan (1962-63/2005), “o objeto central a na medida em que ele (objeto a) é não apenas separado, mas elidido em outro lugar que não aquele em que sustenta o desejo, mas numa relação profunda com ele”. (p. 276). Quanto ao desejo posto em movimento, Lacan (1962-63/2005) destaca a importância da função do olhar. É neste nível, segundo ele, “que o suporte mais satisfatório da função do desejo, ou seja, a fantasia, é sempre marcado por um parentesco com os modelos visuais em que comumente funciona, e que, por assim dizer, dão o tom de nossa vida desejante”. (p. 276).

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Se o Outro no qual o sujeito tem sua imagem refletida é também um ser da falta, aí aparece o phi Φ, como a letra que, em termos lacanianos, representa o falo simbólico, cuja função é de simbolizar o que falta a este Outro. O significante faltante para o Outro é representado por –φ, símbolo da castração. Isto significa que, se algo referente à castração ameaça o sujeito, ele experimenta, nessa condição, a sensação de estranheza e, por isso, vivencia um sentimento angustiante. Chatelard (2005) comenta que “angústia surge onde a falta comparece, quando algo deve permanecer na sombra e dela sai; mas é justamente nesse lugar que falta que o sujeito pode ir em direção ao desejo”, (p. 50). Neste ponto, ainda segundo essa autora, aqui se encontra “uma primeira clivagem do objeto entre φ, a perda, e o objeto a, o mais-de-gozar; o objeto vem positivar a falta”. (p. 50). Desta forma, podemos pensar, em termos psicanalíticos, o unheimlich como uma estrutura ficcional que possibilita a produção do fenômeno do estranho. De acordo com Chatelard (2005), esta estrutura é importante “pois a inquietante estranheza toca os limites íntimos do sujeito, e a ficção introduz justamente uma descontinuidade em que o sujeito se vê do lado de fora. O efeito da inquietante estranheza suspende o sentido”. (p. 51). A dimensão do campo ficcional é bem destacada por Freud (1919), no texto “O estranho”, onde ressalta a qualidade na produção desse estranho pela literatura. Pois encontra nela um ramo fértil de criação desse efeito de estranhamento. A literatura promove, além disso, uma grande modificação daquilo que foi reprimido, já que atua no plano da fantasia, daí o conteúdo literário não poder ser submetido a nenhum teste de realidade. Destarte, “o resultado algo paradoxal é que em primeiro lugar, muito daquilo que não é estranho em ficção sê-lo-ia se acontecesse na vida real; e, em segundo lugar, que existem muito mais meios de criar efeitos estranhos na ficção, do que na vida real”. (p. 266). Lacan (1962-63/2005), corroborando Freud (1919/1996), aponta para esta importante articulação do unheimlich no campo ficcional, quando diz: Não é à toa que Freud insiste na dimensão essencial dada pelo campo da ficção a nossa experiência do unheimlich. Na vida real, este é fugidio demais. A ficção o demonstra bem melhor, chega até a produzi-lo como efeito de maneira mais estável, por ser mais bem articulada. Trata-se de uma espécie de ponto ideal, mas sumamente precioso para nós, já que esse efeito nos permite ver a função da fantasia. (p. 59).

No seu processo de criação, o escritor literário pode, segundo Freud (1919/1996), “escolher o seu mundo de representação, de modo que este possa ou coincidir com as

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realidades que nos são familiares, ou afastar-se delas o quanto quiser”. (p. 266). Freud (1919/1996) afirma: De um modo geral, adotamos uma invariável atitude passiva em relação à experiência real e submetendo-nos à influência do nosso ambiente psíquico. Mas o ficcionista tem um poder peculiarmente diretivo sobre nós; por meio do estado de espírito em que nos pode colocar, ele consegue guiar a corrente das nossas emoções, represá-la numa direção e fazê-la fluir em outra, e obtém com frequência uma grande variedade de efeitos a partir do mesmo material. (p. 268).

O escritor, por sinal, nos lembra Freud (1919/1996), é aquele que, com sua criação, consegue enfatizar efeitos de estranhamento. É verdade que o escritor cria uma espécie de incerteza em nós, a princípio, não nos deixando saber, sem dúvida propositalmente, se nos está conduzindo pelo mundo real ou por um mundo puramente fantástico, de sua própria criação. (FREUD 1919/1996, p. 248).

Para demonstrar tais formulações teóricas, Freud (1919/1996) procede à análise do conto de Hoffman, intitulado “O Homem de Areia”, cuja síntese da narrativa apresentada por Freud merece ser destacada aqui. 5.2 O “Homem de Areia”: uma ilustração freudiana no campo ficcional O “Homem de Areia” (Der Sandmann) é um conto de 1817, do escritor alemão Ernst Theodor Amadeus Hoffmann, (1776 a 1822). A escrita de Hoffmann se insere numa perspectiva da literatura fantástica. De acordo com Martha Mon (2001), Hoffmann é “[...] tido como o criador da narrativa fantástica, mais especificamente do conto fantástico”. (p. 76). O conto fantástico trabalha com uma narrativa livre, tendo na imaginação sua forma mais própria de construção de um enredo. Mon (2001) destaca que este “[...] é um tipo de narração curta, característica do século XIX, que herda um tipo de repertório de motivos e efeitos próprios do romance gótico inglês, com seus fantasmas e imagens cruéis e pavorosas”. (p. 76). O romance gótico surgiu como um contraponto ao racionalismo, base do desenvolvimento científico emergente na Europa do século XVIII. Sendo assim, esse tipo de narrativa caracteriza-se, de acordo com Mon (2001), [...] A partir dessa inclinação pelo velado, pelo oculto e misterioso, pelo irracional e pelo imprevisível, sustentando uma posição oposta às tendências intelectuais que consideravam um mundo submetido a uma causalidade religiosa. Essa oposição que assume frente ao florescimento, ao auge alcançado pela ciência da Natureza, que via, em seu conhecimento e em seu domínio, a tarefa fundamental do homem, é uma oposição também ao otimismo no poder da razão, otimismo esse ancorado no advento da consciência que a humanidade poderia ter de si mesma. Em outras

60 palavras, uma oposição ao pensamento que sublinha a razão como forma para transformar o real. (p. 77).

Desse modo, para além do campo da razão, o conto fantástico trabalha numa dimensão daquilo que foge ao domínio do homem. Por essa razão pode explorar outros territórios nos quais a racionalidade científica não consegue alcançar. Para Mon (2001) “[...] a literatura moderna explorou os territórios que a razão e a ciência da época não conseguiam explicar, vale dizer sua aparição é considerada como uma maneira de compensar um excesso de racionalismo”. (p. 77). Além do mais, complementa Mon, (2001), “[...] é certo que o gênero fantástico dá conta de zonas incertas e obscuras que estão mais além do conhecido e do familiar, isto é, além do que a razão e a consciência podem captar”. (p. 79). Por essas razões, este estilo narrativo despertou em Freud grande interesse, visto que se tratava de uma estética com foco no campo do desconhecido, das incertezas e, portanto, daquilo que é estranho. Isso interessava a psicanálise. Destarte, conforme Mon (2001) “saindo do campo propriamente psicanalítico, Freud visa uma exploração que lhe permita distinguir o sinistro, o horroroso, do angustiante, e situar o núcleo que lhe é próprio”. (p. 75-76). Nessa escrita capaz de provocar o efeito de estranhamento, Hoffmann naturalmente se destacava. Não é por outra razão que o próprio Freud (1919/1996) considerava Hoffmann como um “mestre incomparável do estranho na literatura”. (p. 251). No texto de 1919, Freud inspira-se no conto “O Homem de Areia”, para ilustrar o efeito do estranho no campo ficcional e sua relação com o complexo de castração, no qual o efeito de estranhamento está implicado. Isto porque, da análise literária, Freud está interessado em encontrar nos personagens o efeito do estranho a partir de causas relacionadas às vivências infantis. Assim, nos diz Freud (1919/1996), “devemos-nos contentar em escolher aqueles temas de estranheza que se destacam mais, ao mesmo tempo em que verificamos se também podem ser facilmente atribuídos a causas infantis”. (p. 252). O tema principal do conto de Hoffmann23 gira em torno do “Homem de Areia” que arranca os olhos das crianças. Freud (1919/1996) procede a uma síntese da narrativa para efeito de sua análise sobre o conto. Neste conto de Hoffmann, o personagem central é o 23

De acordo com Pontalis e Mango (2013), “Hoffmann não é, como Goethe, Schiller ou Heine, um verdadeiro ‘companheiro de estrada’ de Freud, ele aparecendo apenas tardiamente em sua obra para ilustrar a persistência indelével dos traços infantis no psiquismo. Isso se dá quando ele evoca o atrevimento de um escritor que, graças à sua imaginação, anteciparia as descobertas freudianas sobre a precocidade das impressões psíquicas mais determinantes, aquelas que marcam a criança em um momento em que ‘seu aparelho psíquico ainda não se encontra completamente apto a adquiri-la’”. (p. 94).

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menino Nataniel que vive envolto nas lembranças da infância, sobretudo, aquelas lembranças relacionadas ao trágico evento da morte de seu pai. Sua mãe, com o intuito de convencer as crianças a dormir cedo, costumava dizer-lhes que um “Homem de Areia” passava em sua casa, de modo que o pequeno Nataniel chegava a ouvir os passos do visitante, amigo de seu pai, que todas as noites frequentava a sua casa. Curioso, o menino, impressionado pela fala da mãe, a interrogava a fim de saber sobre o misterioso visitante, mas a resposta que obtinha não o satisfazia. Certa vez, a empregada que trabalhava em sua casa, deu-lhe uma resposta mais objetiva: É um homem perverso que chega quando as crianças não vão para a cama, e joga punhados de areia nos olhos delas, de modo que estes saltam sangrando da cabeça. Ele coloca então os olhos num saco e os leva para a meia-lua, para alimentar os filhos. Eles estão acomodados lá em cima, no ninho, e seus bicos são curvos como bicos de coruja, e eles os usam para mordiscar os olhos dos meninos e das meninas desobedientes. (FREUD 1919/1996, p. 246).

A partir deste momento, nos diz Freud, “o medo fixou-se no seu coração”. (p. 246). E a partir disso, o menino empreendeu uma busca obstinada para descobrir como era esse tal “Homem de Areia”. Certa noite, escondendo-se no escritório do pai, reconheceu naquele visitante o advogado Copélio, que era “uma pessoa repulsiva que amedrontava as crianças quando, ocasionalmente, aparecia para jantar”. (p. 246). A sequência da narrativa, a continuidade da cena no escritório, Freud (1919/1996) narra assim: O pai e o convidado estão trabalhando num braseiro incandescente. O pequeno intrometido ouve Copélio invocar: ‘Aqui os olhos! Aqui os olhos!’, e trai-se ao soltar um alto grito. Copélio apanha-o e está prestes a lançar brasas tiradas do fogo em seus olhos, jogando estes depois no braseiro, mas o pai lhe implora que solte o menino e salva-lhe os olhos. Depois disso, o rapaz cai em profundo desfalecimento; e uma longa enfermidade pois fim a sua experiência. [...] no decorrer de uma outra visita do Homem da Areia, um ano depois, o pai é morto no escritório por uma explosão. O advogado Copélio desaparece do lugar sem deixar qualquer vestígio atrás de si. (p. 246).

Neste ponto, Freud introduz a primeira questão acerca da forma como o escritor coloca em dúvida para o leitor se o personagem vivencia um momento de delírio em seu apavoramento ou se realmente são acontecimentos que podem ser considerados como fatos reais. Após estes acontecimentos, quando passa a ser estudante, Nataniel encontra na cidade universitária um italiano chamado Coppola em quem ele reconhece o fantasma de sua infância, aquela imagem fixada pelo relato da empregada sobre o “Homem de Areia”. Coppola é um oculista ambulante e aborda Nataniel na tentativa de vender-lhe barômetros.

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Com a recusa de Nataniel, Coppola prossegue: “não quer barômetros? Não quer barômetros? Tenho também ótimos olhos, ótimos olhos!” Apavorado, Nataniel somente se tranquiliza quando se dá conta de que os olhos aos quais se refere o vendedor são apenas óculos e, assim, acaba comprando um pequeno telescópio de Coppola. Com esse telescópio passa a observar na casa em frente à filha do professor Spalanzani, “a bela, mas estranhamente silenciosa e imóvel filha de Spalanzani, Olímpia”, (FREUD, 1919/1996, p. 247), por quem logo se apaixona. Entretanto, ele não percebe que Olímpia é apenas um autômato fabricado pelo professor Spalanzani, sendo que os olhos lhe foram colocados por Coppola, o “Homem de Areia”. Nesse momento Nataniel presencia uma discussão entre Spalanzani e Coppola sobre o trabalho deles em relação à boneca, e vê Coppola levar embora a boneca de madeira, arrancando-lhe os olhos. Spalanzani apanha-os do chão jogando-os no peito de Nataniel que, neste momento, “sucumbe a um novo ataque de loucura e, no seu delírio, a recordação da morte do pai mistura-se a essa nova experiência”. (FREUD 1919/1996, p. 247). Após um período de convalescência, Nataniel retoma sua vida, parecendo estar recuperado, retomando a ideia de casar-se com sua noiva Clara. Um dia, passeando com sua noiva pelo mercado da cidade, sobre o qual uma alta torre da prefeitura projeta uma grande sombra, resolvem subir, a pedido de Clara, mas deixando embaixo o irmão da moça, que também caminhava com eles. Eis que, do alto da torre, um objeto em movimento pela rua chama a atenção da jovem. Nataniel observa esse objeto com o telescópio que havia comprado de Coppola e novamente tem um ataque de loucura. “Gritando, ‘Gira, boneca de pau!’, tenta jogar a garota da torre. O irmão da moça, levado pelos gritos desta, salva-a e apressa-se em descer com ela em segurança”. (FREUD, 1919/1996, p. 247). No alto da torre Nataniel corre em círculos gritando ‘Gira, anel de fogo!’. Neste ponto da narrativa diz-nos Freud (1919/1996), “e nós sabemos a origem das palavras” (p. 247), indicando a lembrança aterrorizante da cena da infância com o pai. A tragédia final do conto se anuncia. Lá embaixo, na rua, junto às pessoas que se aglomeravam assistindo a cena estava o advogado Copélio. A visão de Copélio através do telescópio desencadeou provavelmente um acesso de loucura. Ao avistá-lo, Nataniel, gritando: ‘Sim! Ótimos olhos – ótimos olhos!’, se lança para a morte, enquanto o “Homem de Areia desaparece na multidão”. (FREUD 1919/1996, p. 247). Com este breve resumo Freud (1919/1996) afirma: “o sentimento de algo estranho está ligado diretamente à figura do “Homem de Areia”, isto é, a ideia de ter os olhos roubados”. (p. 248). Neste sentido, Freud faz lembrar que para a criança, o temor de perder ou ferir os

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olhos é uma das coisas mais aterrorizantes, sendo um receio que, de certa forma, permanece, para muitas pessoas, durante a vida adulta. Os elementos que compõe a história não estão dispostos arbitrariamente como pode parecer, nos diz Freud, mas, numa perspectiva psicanalítica é preciso considerar haver uma estreita relação do medo de perder os olhos relacionado com a castração. Freud (1919/1996) arremata: “o estudo dos sonhos, das fantasias e dos mitos ensinou-nos que a ansiedade em relação aos próprios olhos, o medo de ficar cego, é muitas vezes um substituto do temor de ser castrado”. (p. 248-49). Por tudo isso, continua Freud (1919/1996), “arriscar-nos-emos, portanto, a referir o estranho efeito do Homem da Areia à ansiedade pertencente ao complexo de castração da infância”. (p.250). Daí porque Freud identifica o Homem de Areia numa função substitutiva do pai, como sendo aquele a quem se atribui o papel de ameaçador da castração. No Seminário 10 – “A angústia”, de Lacan (1962-63/2005), podemos verificar uma relação direta entre a falta e a falo. Lacan destaca a importância do investimento da imagem especular, fundamentado numa relação imaginária, por se tratar de uma condição que representa um limite. Lacan (1919/1996) afirma que “nem todo investimento libidinal passa pela imagem especular”. (p. 48-49). Mas existe um resto e esse resto é representado pelo falo. O falo, tal como define Lacan, é “uma reserva operatória [...] cortada da imagem especular”. Por essa razão, “em tudo o que é demarcação imaginária, o falo virá, a partir daí, sob a forma de uma falta”. (p. 49). Sendo assim, para Lacan (1962-63/2005), “A Unheimlichkeit é aquilo que aparece no lugar em que deveria estar o menos-phi. Aquilo de que tudo parte, com efeito, é a castração imaginária, porque não existe, por bons motivos, imagem da falta”. (p. 51). Portanto, numa perspectiva lacaniana, nesta narrativa hoffmaniana a angústia está relacionada à imagem daquilo que não pode ser especularizável, uma vez que não pode existir uma imagem da falta. Destarte, a angústia aparece num lugar vazio, no qual não há imagem, lugar –φ (LACAN 1962-63/2005). Este lugar é, portanto, o lugar da falta. A angústia aqui representa também um sinal de perigo a indicar uma condição de perda e que põe em relevo tanto a presença quanto o desejo do Outro. Entretanto, para Lacan (1962-63/2005), “a angústia não é sinal de uma falta, mas de algo que devemos conceber num nível duplicado, por ser a falta de apoio dada pela falta”. (p. 64).

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Como já referido na primeira parte desde trabalho, em “Inibição, sintoma e ansiedade”, Freud (1926 [1925]), indicou que a primeira experiência da angústia ocorre em função do ato do nascimento e que, a partir disso, funciona como um protótipo para as formas de angústia subsequentes. Significa que a angústia do nascimento se repetirá cada vez que um novo acontecimento traga em si um potencial de reavivamento desta. No cerne da angústia do nascer está a questão da separação da mãe, caracterizando, portanto, essa falta como ponto central da angústia, numa relação direta com o desamparo. Neste mesmo texto, Freud (1926 [1925]/1996) apresenta três situações nas quais a criança vivencia esta ausência ligada ao outro, seu objeto de amor. “Ocorrem, por exemplo, quando a criança está sozinha, ou no escuro ou quando se encontra com uma pessoa desconhecida em vez de uma com a qual ela está habituada – como a mãe dela”. (p. 235). Portanto, esses três eventos, relacionados à angústia infantil, evidenciam um estado de angústia caracterizado como uma perda desse objeto de amor. 5.3 O fenômeno do “duplo” e a repetição Para Freud o duplo é um tema que aparece também no conto de Hoffmann, à medida que diz respeito ao processo de desenvolvimento em seus vários níveis. Assim, em relação a este tema é preciso considerar a relação entre personagens que muitas vezes parecem idênticos ou semelhantes. De acordo com Freud (1919/1996), Essa relação é acentuada por processos mentais que saltam de um para o outro desses personagens - pelo que chamamos telepatia –, de modo que um possui conhecimento, sentimento e experiência em comum com o outro. Ou é marcada pelo fato de que o sujeito identifica-se com outra pessoa, de tal forma que fica em dúvida sobre quem é o seu eu, ou substitui o seu próprio eu por um estranho. Em outras palavras, há uma duplicação, divisão e intercâmbio do eu. E, finalmente, há o retorno constante da mesma coisa – a repetição dos mesmos aspectos, ou características, ou vicissitudes, dos mesmos crimes, ou até dos mesmos nomes, através das diversas gerações que se sucedem. (p. 252).

Neste sentido, no conto hoffmanniano, o “duplo” se expressa através dos personagens de Copélio e Coppola como personagens que ensejam essa relação de semelhança. Para explicar o “duplo”, Freud (1919/1996) fundamenta-se na teoria de Otto Rank para o qual o “duplo” estaria relacionado ao medo da morte que, na origem, representava uma segurança contra o poder que a morte representa, chegando, inclusive a relacionar a alma imortal como sendo o primeiro “duplo” do corpo. Essas ideias, para Freud (1919/1996), estão relacionadas ao campo do “narcisismo primário que domina a mente da criança e do homem primitivo. Entretanto, quando essa etapa está superada, o ‘duplo’ inverte seu aspecto. Depois

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de haver sido uma garantia da imortalidade, transforma-se em estranho anunciador da morte”. (p. 252). Além do “duplo”, Freud aponta, no texto de 1919, outro aspecto implicado na produção do estranho, a saber, a repetição. Freud assim nos diz: “daquilo que tenho observado, esse fenômeno, sujeito a determinadas condições e combinado a determinadas circunstâncias, provoca indubitavelmente uma sensação estranha, que, além do mais, evoca a sensação de desamparo experimentada em alguns estados oníricos”. (p. 254). Nesse sentido, Freud destaca aquelas repetições do cotidiano que geram angústia e cuja explicação também está relacionada com o período da infância. Esse processo de repetição que provoca angústia pode ser pensado, então, para além do princípio do prazer. Ao referir-se a categoria do estanho relacionado à infância, Freud (1919/1996) sinaliza haver na pulsão um caráter “demoníaco” relacionado à repetição: Pois é possível reconhecer, na mente inconsciente, a predominância de uma ‘compulsão à repetição’ procedente dos impulsos instintuais e provavelmente inerente à própria natureza dos instintos – uma compulsão poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio do prazer, emprestando a determinado aspecto da mente o seu caráter demoníaco, e ainda muito claramente expressa nos impulsos das crianças pequenas; uma compulsão que é responsável, também, por uma parte do rumo tomado pelas análises de paciente neuróticos. Todas essas considerações preparam-nos para a descoberta de que o que quer que nos lembre esta íntima ‘compulsão à repetição’ é percebido como estranho. (p. 256).

Outros fatores, tais como crenças e situações da vida cotidiana nos remetem, segundo Freud, a categoria do estranho. Freud (1919/1996) fala, por exemplo, da supertição do “mauolhado” caracterizado por uma “onipotência do pensamento”, como se determinada intenção, às vezes projetada no outro, tivesse um poder de realizar-se. Isto, diz Freud (1919/1996), está baseado numa “concepção animista do universo”. Tal concepção caracteriza-se “pela ideia de que o mundo era povoado por espíritos dos seres humanos; pela supervalorização narcísica, do sujeito, de seus próprios processos mentais, pela crença na onipotência dos pensamentos”. (p. 257). Para Freud este estágio primitivo do desenvolvimento humano deixa marcas que têm o potencial de se manifestar de modo que “tudo aquilo que nos surpreende como ‘estranho’ satisfaz a condição de tocar aqueles resíduos de atividade mental animista dentro de nós e darlhes expressão”. (p. 258). Portanto, a partir da produção literária como apresentado no conto de Hoffmann, e de um conjunto de eventos significativos do dia a dia, Freud (1919/1996) aponta a essência do seu estudo sobre o efeito do estranho:

66 Em primeiro lugar, se a teoria psicanalítica está certa ao sustentar que todo afeto pertencente a um impulso emocional, qualquer que seja a sua espécie, transforma-se, se reprimido, em ansiedade, então, entre os exemplos de coisas assustadoras, deve haver uma categoria em que o elemento que amedronta pode mostrar-se ser algo reprimido que retorna. Essa categoria de coisas assustadoras construiria então o estranho; e deve ser indiferente a questão de saber se o que é estranho era, em si, originalmente assustador ou se trazia algum outro afeto. Em segundo lugar, se é essa, na verdade, a natureza secreta do estranho, pode-se compreender porque o uso linguístico estendeu das Heimliche para o seu oposto, das Unheimliche(p. 258).

Por isso, se pode reconhecer que o prefixo un de unhimlich traz em si a marca do próprio recalque, como diz Freud (1919/1996), o “un é o sinal da repressão”. (p. 262).

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6 LITERATURA E PSICANÁLISE: CONFLUÊNCIAS A realidade é matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la – e não a acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Clarice Lispector (1964/2009, p.176).

6.1 Caminhos de aproximação Apresentamos dois poemas que podem funcionar como um mote nesta reflexão a respeito da aproximação entre a literatura e a psicanálise: o primeiro do poeta brasileiro Manoel de Barros24(1991, p. 79), cujo título é “Retrato do artista quando coisa” e o segundo do poeta português Fernando Pessoa25(2006, p. 27), intitulado “Autopsicografia”. Retrato do artista quando coisa A maior riqueza do homem É a sua incompletude. Nesse ponto sou abastado. Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas, Que puxa válvulas, que olha o relógio, Que compra pão às 6 horas da tarde, Que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. Perdoai Mas eu preciso ser Outros Eu penso renovar o homem usando borboletas Como não pensar que este poema, nos conduza pelas trilhas do que temos refletido, em termos psicanalíticos, acerca do sujeito? O homem, na voz do Eu lírico, é um ser da incompletude, ao que podemos inferir um ser da falta, posto que o discurso da psicanálise também remeta à noção de sujeito como um ser da incompletude. Autopsicografia O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente.

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Poeta Cuiabano, nascido em 1916, falecido em novembro de 2014. Um dos mais importantes nomes da poesia brasileira do Pós-Modernismo. 25 Fernando António Nogueira Pessoa (1888-1935), um ícone da literatura portuguesa.

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E os que leem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm. E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração Como não considerar que a dor fingida, apregoada pelo Eu lírico, nos permite pensar em algo do campo do inominável, do indizível e, portanto, do Real do sujeito? De acordo com Cleusa Rios Passos (2011, p. 107), a ficção da dor representa “[...] o ponto máximo da ordem simbólica e imaginária”, sendo o elemento compositivo que mais se destaca no poema. Também vale destacar, numa perspectiva da narrativa literária, o conto “O Homem de Areia”, de Hoffman, já referido neste trabalho, que apresenta um enredo no qual o protagonista está envolto em seu fantasiar sobre a possibilidade de ter os próprios olhos arrancados. Na análise que faz desse conto Freud (1919/1996) aponta que o medo do protagonista em perder os próprios olhos é uma metáfora para o medo de castração. Como não supor que a literatura hoffmaniana já indicava o aspecto de uma estrutura inconsciente no sujeito, que, quase um século depois, Freud iria teorizar? De acordo com Tania Rivera (2005) “a literatura se constrói, ainda que não intencionalmente, segundo as leis do inconsciente, e por isto pode ser utilizada como confirmação das descobertas da psicanálise”. (p. 64). Ao comentar a importância deste conto hoffmaniano para Freud, Rivera (2005) aponta que É a partir de um conto de Hoffmann, como bem sabemos, e de algumas de suas experiências próprias, que o pai da psicanálise vê o estranho como efeito por excelência tanto da literatura quanto da psicanálise, na medida em que ele acompanha o retorno do recalcado, a repetição do mesmo, a duplicação do eu. O “estranho familiar”, como também já se traduziu o Unheimiche, é o mesmo tornado outro, é a fórmula mesma do paradoxo, como já vimos, conjugando em um mesmo termo dois opostos (Heimliche e Unheimlilche). (p. 52).

Estes três exemplos indicam, portanto, como a literatura e a psicanálise podem dialogar a partir de uma aproximação de elementos nos quais alguns conceitos próprios à psicanálise podem aparecer ilustrados na produção literária. Como já mencionado, Freud empreendeu um grande esforço teórico para aproximar a psicanálise do conhecimento científico de seu tempo, como demonstrado na própria

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elaboração do “Projeto para uma Psicologia Científica” que ele nem chegou a publicar, mas que 11 anos após sua morte acabou sendo publicado, revelando esta tentativa de uma psicanálise mais próxima do discurso médico-cientificista da época. Entretanto, o próprio conteúdo de que trata a psicanálise, a subjetividade implicada na estruturação singular de cada sujeito, de certo modo o obrigou “a se fazer poeta”. (RIVERA 2005, p. 8). De acordo com Noemi Kon (2014), para “a falta do selo de garantia oferecido pela ciência, Freud buscou consolo e abrigo na atividade literária, no poder criador da linguagem”. (p. 115). Assim, em seu trabalho de elaboração de teoria psicanalítica, Freud sempre se aproximou da literatura fazendo, ao longo de toda a sua obra, uma interface entre ambas. De seu contato com a tragédia grega, formulou, a partir de “Édipo Rei” – de Sófocles, a questão do Complexo Édipo, um dos pilares da teoria psicanalítica. Numa carta enviada a Wilhelm Fliess, em 15 de outubro de 1897, Freud (1950d[1897b]/1996), referindo-se a sua autoanálise, aponta como a interlocução com o mito de “Édipo Rei”, bem como “Hamlet” de Shakespeare possibilitaram uma inédita revelação sobre si mesmo. Um único pensamento de valor genérico revelou-se a mim. Verifiquei também no meu caso, a paixão pela mãe e o ciúme do pai, e agora considero isso como um evento universal do início da infância [...]. Sendo assim, podemos entender a força avassaladora de Oedipus Rex, apesar de todas as objeções levantadas pela razão contra a sua pressuposição do destino [...]. Mas a lenda grega capta uma compulsão que toda pessoa reconhece porque sente sua presença dentro de si mesma. Cada pessoa da plateia foi, um dia, em germe ou na fantasia, exatamente um Édipo como esse, e cada qual recua, horrorizada, diante da realização de sonho aqui transposta para a realidade, com toda carga de recalcamento que separa seu estado infantil do seu estado atual. Passou-me pela cabeça uma rápida ideia no sentido de saber se a mesma coisa não estaria também no fundo do Hamlet. Não estou pensando na intenção consciente de Shakespeare, mas acredito, antes, que algum evento real tenha instigado o poeta à sua representação, no sentido de que o inconsciente de Shakespeare compreendeu o inconsciente de seu herói. Como é que o histérico Hamlet consegue justificar suas palavras: “Assim a consciência nos torna a todos covardes”? Como é que ele consegue explicar sua hesitação em vingar o pai assassinado através do seu tio - ele, o homem que, sem nenhum escrúpulo, envia à morte seus cortesãos e efetivamente se precipita ao matar Laertes? De que outro modo poderia ele justificar-se melhor do que mediante o tormento de que padece com a obscura lembrança de que ele próprio planejou perpetrar a mesma ação contra seu pai, por causa da paixão pela mãe? (p. 316).

Sendo assim, a literatura está próxima da psicanálise desde o começo. Freud, inclusive, em 1930, ganhou o prêmio Goethe26 de literatura, caracterizando, além do valor científico de sua obra, o valor literário que ela comporta. E, não obstante esse caráter

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Johann Wolfgang von Goethe, poeta alemão do século XIX (1749-1832). De acordo com Pontalis & Mango (2013), “ele fecundou todos os gêneros da literatura: o poeta, é considerado o criador da poesia lírica alemã moderna [...] na mocidade, arrebatou a Europa com Werther, encarnação da sensibilidade pré-romântica. [...] homem de teatro, é o criador de um clássico da cultura europeia, o Fausto”. (p. 37).

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científico de sua obra, Freud (1930a/1996) prestou a Goethe uma bela homenagem no “Discurso pronunciando na casa de Goethe em Frankfurt”, ao dizer que o poeta “estava familiarizado com a força incomparável dos primeiros laços afetivos das criaturas humanas”. (p.213). Mais ainda, recomendou aos psicanalistas que as palavras escritas na Dedicatória do poema Fausto deveriam estar sempre presentes em cada início de trabalho analítico. (FREUD, 1930a/1996, p 213). Sem pretensão de realizar um estudo aprofundado acerca da relação de Freud com a literatura, destacamos apenas alguns exemplos nos quais essa relação aparece recorrentemente na obra freudiana, ocasiões nas quais a literatura está aliada na produção do seu arcabouço teórico. Lembremos brevemente, a seguir, alguns destes importantes escritos. Já no artigo referente aos “Estudos sobre a Histeria”, na discussão do caso da Srta. Elizabeth Von R., Freud (1893-1895/1996) aponta o fato interessante de seus casos clínicos possuírem certo estilo literário, afastando-se do modelo médico científico do qual ele era um adepto, e reconhece na ficção um modelo de construção subjetiva. Assim, não se tratava apenas de uma preferência pessoal pela literatura, mas pelo que esta admitia na possibilidade de melhor descrever o objeto de estudo com o qual Freud lhe dava. Freud (1893-1895/1996) assim narra a importância da ficção em seu trabalho: Nem sempre fui psicoterapeuta. Como outros neuropatologistas, fui preparado para empregar diagnósticos locais e eletroprognósticos, e ainda me causa estranheza que os relatos de casos que escrevo pareçam contos e que, como se poderia dizer, faltelhes a marca de seriedade da ciência. Tenho de consolar-me com a reflexão de que a natureza do assunto é evidentemente a responsável por isso, e não qualquer preferência minha. A verdade é que o diagnóstico local e as reações elétricas não levam a parte alguma no estudo da histeria, ao passo que uma descrição pormenorizada dos processos mentais, como as que estamos acostumados a encontrar nas obras dos escritores imaginativos, me permite, com o emprego de algumas fórmulas psicológicas, obter pelo menos alguma espécie de compreensão sobre o curso dessa afecção. (p. 183-184).

Assim, o diálogo com a literatura aparece em textos como “A interpretação dos sonhos” (1900), no qual a definição do Complexo de Édipo aparece de forma mais clara, a partir dos estudos sobre as tragédias gregas e das obras de Shakespeare; também em “Os chistes e sua relação com o inconsciente” (1905); em “Escritores criativos e devaneios” (1908a [1907a]); além do artigo “O Estranho” (1919). Em todos esses trabalhos a questão da arte, bem como reflexões sobre os próprios artistas aparecem como destaque. O interesse especial de Freud por alguns artistas também o levaram a escrever sobre estes. Um dos primeiros sobre os quais Freud escreve trata-se de “Delírios e sonhos na

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Gradiva de Jensen” (1907[1906])27, no qual Freud faz uma reflexão sobre a obra literária a partir de indagações quanto à questão dos sonhos, reconhecendo que os escritores literários antecipam o conhecimento com relação aos aspectos da subjetividade, posto que eles (os escritores) “estão bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento da mente, já que se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência”. (FREUD, 1907[1906]/1996, p. 20). Conforme comenta, Rivera (2005). “o poeta ou escritor de ficção é admirado por Freud como detendo um saber sobre o homem muito mais direto que aquele arduamente obtido pelo analista na busca do conhecimento que se singulariza em cada tratamento”. (p. 7-8). Vale destacar que, neste texto, não obstante o fascínio que obra exerce sobre Freud leitor, está presente a ideia do autor como foco de análise: “[...] talvez possamos perguntar timidamente a seu autor se acaso sua imaginação não terá sido determinada por forças outras que não as da sua escolha arbitrária”. (FREUD, 1907 [1906]/1996, p. 25). No texto “Moisés de Michelangelo”, Freud (1914b/1996), embora não se refira à análise de uma obra literária, mas de uma escultura, reconhece o fascínio que a arte lhe causa e afirma: “as obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura. [...] Isto já me levou a passar longo tempo contemplando-as, tentando apreendêlas à minha própria maneira”. (p. 17). Aqui já aparece um enfoque mais nítido da obra e não do autor, isto é, a obra, neste caso, exerce um efeito mais direto sobre o leitor, independentemente do que poderia ser a intenção do autor. De acordo com Débora Moraes (2012) “é a partir da consideração deste efeito, ou seja, da relação implicada entre o sujeitoespectador e a obra e a ressonância da obra no sujeito, que Freud empreende o estudo sobre a escultura de Moisés e, nesse aspecto, nos parece de especial interesse. A arte desloca o foco do autor para o espectador”. (p. 56). Em “Dostoievski e o Parricídio” (1928[1927]/1996), Freud inicia fazendo um reconhecimento da potencialidade do escritor Dostoievski aproximando-o de Shakespeare. Destaca a impossibilidade de analisar o talento artístico do escritor, mas efetua uma análise de sua obra atribuindo muitos aspectos ao caráter neurótico do próprio escritor. Assim narra Freud (1928[1927]/1996): [...] “o instinto destrutivo muito intenso em Dostoievski, que facilmente poderia tê-lo transformado num criminoso, foi, em sua vida real, dirigido principalmente contra sua própria pessoa (para dentro, em vez de para fora), encontrando 27

Em nota de rodapé, o tradutor inglês James Strachey afirma que “esta foi a primeira análise de uma obra de literatura feita por Freud a ser publicada, com exceção, naturalmente, de seus comentários sobre Édipo Rei e Hamelt em A interpretação dos Sonhos.” (Freud, 1907/1996, p. 15).

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assim, sua expressão como masoquismo e sentimento de culpa”. (p. 184). Não obstante, de acordo com Moraes, nesse texto “há um encontro de três aspectos da análise de uma produção literária: os efeitos da biografia sobre a obra, a relação do autor com seus personagens e o impacto que a obra pode provocar no leitor”. (p. 61). Desse conjunto de textos literários que aparecem na obra freudiana vale destacar, de acordo com Moraes, [...] Que Freud perpassa o tripé autor, obra, leitor em diversas ocasiões em suas análises críticas. Ainda que em alguns momentos dê ênfase para a possibilidade de analisar o escritor; ainda que em algumas ocasiões possa ser criticado por ‘aplicar’ a Psicanálise ao texto literário, podemos inspirar-nos no método que toma como condição fundamental a linguagem escrita também como espaço de produção inconsciente. (p. 62).

Portanto, a interlocução da obra freudiana com a literatura é vasta. Por isso BlleminNoël (1983) destaca um aspecto importante: “ler com os óculos de Freud é ler numa obra literária – como atividade de um ser humano e como resultado desta atividade – aquilo que ela diz sem o revelar, porque o ignora; ler o que ela cala através do que mostra e porque o mostra por este discurso mais do que por um outro”. (p. 19). Para Camila Pedral Sampaio (2005) o interesse de Freud pelas obras literárias sobre as quais ele se dedicava a analisar: “o vivo interesse com que ele se debruça sobre essas análises, a dedicação com que percorre essas obras, em detalhes e minúcias, é equiparável a o interesse que teria um apaixonado pelo retrato da amada, procurando ver reconhecidos ali os seus valores, e confirmado o seu amor.” (p. 168). E ao final, como afirma o próprio Freud (1937b/1996) tomando por empréstimo as palavras de Polônio a Reinaldo, em Hamlet, de Shakespeare: “nossa isca de falsidade fisgou um carpa de verdade”. (p. 280). A respeito da influencia da literatura na construção teórica freudiana, Noemi Moritz Kon (2014) ressalta que, Freud, desde os escritos inaugurais da psicanálise, apoiou-se em produções artísticas, especialmente em imagens literárias, a fim de dar corpo e forma às suas próprias criações. São fundamentais as presenças das obras e das figuras de Sófocles, Shakespeare, Cervantes, Goethe e Schelling como disparadoras de diálogos fecundos e, até mesmo, como pilares importantes da aventura psicanalítica. (p. 107).

O contato com as obras de grandes escritores literários foi para Freud um campo fértil na produção de conhecimentos que favoreceram a construção do vasto arcabouço teórico da psicanálise. De acordo com Sampaio (2005) a literatura marca sua presença no texto

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freudiano e “ainda quando a admiração dá lugar ou deixa entrever certa hostilidade, é na linhagem dos precursores e dos mestres que se pode entender a ascendência da literatura sobre a Psicanálise. [...] Com efeito, poderíamos dizer que a Literatura participa do nascimento mesmo da psicanálise”. (p. 164). E, estando presente desde o nascimento da psicanálise, a literatura perpassa toda a obra freudiana num processo constante de diálogo. Para Noemi Kon (2014), A experiência estética e a criação literária formaram, no decorrer de toda a sua obra, um pano de fundo com o qual ele debateu, quer para se aliar à experiência e a criação artísticas, quando estas lhe permitiram defender sua própria teoria, quer para se contrapor a elas, quando Freud lhe concede um papel de antagonistas da verdade psicanalítica, por apenas adocicarem a vida, afastando e alienando os homens de seus reais conflitos. (p. 110).

Por isso, a literatura, sem sobrepujar a psicanálise, funcionou para Freud como um modelo de interlocução geradora de um diálogo profícuo. É com surpresa que Freud, reconhece esse apoio que permitiria a ele fundamentar suas teorias. Em “Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen” Freud (1907 [1906]/1996) escreve o seguinte: Quando, a partir de 1893, me dediquei a tais investigações sobre a origem dos distúrbios mentais, certamente nunca me teria ocorrido procurar uma comprovação de minhas descobertas nas obras de escritores imaginativos. Assim, fiquei bastante surpreso ao verificar que o autor de Gradiva, publicada em 1903, baseara sua criação justamente naquilo que eu próprio acreditava ter acabado de descobrir a partir das fontes de minha experiência médica. Como pudera o autor alcançar conhecimentos idênticos aos do médico – ou pelo menos comportar-se como se os possuísse? (p. 55).

Entretanto, Sampaio (2005) destaca o fato de encontrarmos em Freud uma atitude ambivalente em relação à literatura. Para esta autora, se Freud “[...] encontra na literatura seus mestres, ele também se diferencia deles, como fundador de uma ciência”. (p. 164). Para Sampaio (2005), Desse modo se afigura, em Freud, a presença da literatura: íntima e estranha, aliada e inimiga, objeto de fascínio, ao mesmo tempo que de afastamento. Campo de ilusões e de disfarces, máscara enganadora, mas ao mesmo tempo companheira imprescindível na infindável sondagem da obscura alma humana, de seus ângulos mais entrevados. A literatura inspira, fornece metáforas e possibilidades de acesso, mas sua potência, ao menos tal como se configura no discurso teórico freudiano acerca do caminho apresentado ao homem pela arte, deve ser moderada, controlada na cozinha metapsicológica, lugar de renúncia ao prazer e ao imaginário. (165).

Sendo assim, o papel que a literatura exerce em relação à psicanálise freudiana diz respeito à presença da literatura enquanto suporte favorável ao campo da teorização psicanalítica. Ainda, de acordo com Sampaio (2005) “[...] na obra de Freud, a literatura

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configuraria como um outro , no sentido preciso de coadjuvante da constituição de um eu”. (p. 165). Daí porque, para além do cientificismo pragmático de sua época, ao aproximar-se da literatura, Freud forjou aquilo que Paul-Laurent Assoun (1983) destaca como sendo uma nova epistemologia. Para este autor, “em nenhum lugar encontra-se mais visível a originalidade freudiana do que na linha imaginária onde ele subverte a linguagem de seu tempo, sem cessar de reconhecê-la como sua”. (p. 15). Tal epistemologia favoreceu o ordenamento de um projeto científico singular, o que possibilitou a formulação de uma teoria na qual evidenciou aquilo que a ciência médica de seu tempo rejeitava. Conforme destaca Assoun (1996), a partir de um novo discurso Freud pôde inaugurar uma nova racionalidade na qual foi possível pensar processos inconscientes, indo na contramão das investigações científicas de seu tempo voltadas apenas para as questões da consciência. Significa, portanto, buscar um saber que comporta o homem estruturado a partir de uma lógica do inconsciente, que traz a marca de um vazio, de uma perda, daquilo que Freud define como a Coisa (das Ding) perdida. O caminho tomado por Freud implicou colocar a psicanálise num campo do saber que comporta uma ambiguidade. Sampaio (2005) resalta que Tanto quanto o escritor, o psicanalista verifica e utiliza-se da ambiguidade e dos deslizamentos de sentido da palavra para produzir ou descobrir um outro sentido, um efeito de significação reverberativo ou dissonante. É esta questão pelo sentido que faz com que a psicanálise encontre na literatura um aliado muito mais fundamental do que pode encontrar na ciência, por exemplo, na psiquiatria clássica. (p. 168).

O próprio Freud aponta para essa questão da ambiguidade quando afirma numa passagem de seu texto “Um estudo autobiográfico” Freud (1925 [1924]/1996) o seguinte: Por um processo de desenvolvimento contra o qual teria sido inútil lutar, o próprio termo ‘psicanálise’ tornou-se ambíguo. Embora fosse originalmente o nome de um método terapêutico específico, agora também se tornou a denominação de uma ciência – a ciência dos processos mentais inconscientes. Por si só, essa ciência é poucas vezes capaz de lidar com um problema de maneira completa, mas parece fadada a prestar valiosa ajuda nos mais variados campos do conhecimento. A esfera de aplicação da psicanálise estende-se até a da psicologia, com a qual forma um complemento do maior significado. (p. 72).

Nos processos inconscientes estaria, de acordo com Bellemin-Noël (1983), o elo de aproximação entre a psicanálise e a literatura. Para esse autor, se na literatura o sentido ultrapassa o próprio texto, isto significa que existe um sentido aquém da consciência,

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desconhecido, portanto, havendo no texto uma parte na qual a consciência falta. Por isso, segundo Bellemin-Noël (1983), tanto a psicanálise quanto a literatura levam em consideração, em suas práxis, produções inconscientes. Para Bellemin-Noël (1983), O fato literário só vive de receptar em si uma parte de inconsciência, ou de inconsciente. A tarefa que desde sempre a crítica literária se atribuiu consiste em revelar esta falta ou este excesso. Em suma, já que a literatura carrega nos seus flancos o não-consciente e já que a psicanálise traz uma teoria daquilo que escapa ao consciente, somos tentados a aproximá-las até confundi-las. (p. 13).

Daí porque podemos considerar que o diálogo entre psicanálise e literatura pode ser bastante fecundo. Nesta interface encontramos de um lado, a psicanálise e suas questões acerca do “enigma da constituição do sujeito - que coincide com o mistério da origem da própria literatura”. (RIVERA 2005, p. 10). A respeito da literatura Roland Barthes (1977/1996), em sua aula inaugural da cadeira de semiologia do colégio de França, apresenta uma conceituação importante na qual destaca: A literatura faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso. Por um lado, ele permite designar saberes possíveis – insuspeitos, irrealizados: a literatura trabalha nos interstícios da ciência: esta sempre atrasada ou adiantada com relação a esta, semelhante à pedra de Bolonha, que irradia de noite o que aprovisionou durante o dia, e, por esse fulgor indireto ilumina o novo dia que chega. (p. 18-19).

Sendo assim, aquilo que Freud percebera da ciência de seu tempo, Barthes (1977/1996) em seu pronunciamento corrobora quando afirma: “A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a literatura importa”. (p. 19). Portanto, a literatura como arte da palavra converge para uma aproximação com a psicanálise que tem na escuta da palavra sua práxis fundamental. No artigo “Tratamento psíquico (ou anímico)” Freud (1905/1996) afirma: [...] As palavras são também a ferramenta do tratamento anímico. O leito por certo achara difícil compreender que as perturbações patológicas do corpo e da alma possam ser eliminadas através de ‘meras’ palavras. Achará que lhe estão pedindo para acreditar em bruxarias. E não estará tão errado assim: as palavras de nossa fala cotidiana não passam de magia mais atenuada. (p. 271).

Evidentemente nestes dois campos temos a palavra utilizada em suas variantes discursivas, mas, notadamente, a palavra é o elemento fundamental desta aproximação. A respeito disto, Plastino (2008) comenta que ambas, literatura e psicanálise, “se alicerçam na palavra, cada uma estruturando um tipo específico de discurso, é verdade, e ambas recorrendo a associações de ideias, a desvios de linguagem e à fantasia”. (p. 18).

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Essa articulação entre literatura e psicanálise nos aponta, portanto, uma relação profícua entre essas duas áreas, na medida em que é possível ver interposto nestes dois campos o sujeito com sua singularidade. Não por acaso, a literatura serviu a Freud na elaboração do seu arcabouço teórico da psicanálise. Como bem destacado por Moraes (2012), “no que diz respeito ao modelo de discurso, é consenso entre os diversos pesquisadores que o estilo de escrita freudiano está mais próximo dos escritores criativos do que propriamente do estilo médico-científico da época”. (p. 50). A respeito do saber puramente científico, André Brayner de Farias (2012) escreve: O saber das ciências ditas humanas não chega a esgotar a totalidade de seu objeto. O saber sobre o ser humano é de uma natureza especial, pois deve admitir naquilo que sabe aquilo que sobra, aquilo que excede, sendo que é justamente isto que sobra o que mais interessa a este saber. A operação desse saber só é possível pelo sentido desse excesso, sentido que só pode ser ético. (p.80).

Não por acaso Barthes (1977/1996) afirma que a literatura comporta em si muitos saberes e por isso ela é tão essencial para o ensino. Todas as ciências, segundo Barthes, “estão presentes no monumento literário”. (p. 18). Por isso, para além do conhecimento cientifico, a literatura é um conhecimento do mundo, uma visão mais ampla e abrangente, perpassando todas as áreas do saber. 6.2 A linguagem e seu valor de simbolização É o mundo das palavras que cria o mundo das coisas[...]. Lacan (1966/1998, p. 277).

Vale destacar a importância da linguagem que tem na palavra sua forma mais completa de expressão e comunicação. No Seminário 1, “Escritos técnicos de Freud”, Lacan (1953-1954/1996), ao refletir sobre a função criativa da palavra, aponta que A palavra é essencialmente o meio de ser reconhecido. Ela está ai antes de qualquer coisa que haja atrás. E, por isso, é ambivalente e absolutamente insondável. O que ela diz, será que é verdade? Será que não é verdade? E uma miragem. É essa primeira miragem que lhes assegura que estão no domínio da palavra. (p. 273).

É por meio da linguagem que o sujeito habita o mundo. E este habitar implica não somente naquilo que é corriqueiro, cotidiano, trivial, mas também consigna a dimensão poética em que a vida humana se expressa em um modo de subjetivação. Sobre a palavra no campo da linguagem, continua Lacan (1953-1954/1996), A palavra institui-se como tal na estrutura do mundo semântico que é o da linguagem. A palavra não tem nunca um único sentido, o termo, um único emprego,

77 Toda palavra tem sempre um mais-além, sustenta muitas funções, envolve muitos sentidos. Atrás do que diz um discurso, há o que ele quer dizer, e, atrás do que quer dizer, há ainda um outro querer-dizer, e nada será nunca esgotado - se não é que se chega ao fato de que a palavra tem função criadora e faz surgir a coisa mesma, que não é nada senão o conceito. (p. 275).

De uma perspectiva psicanalítica, a linguagem é aquilo que ilude na tentativa de nomear a Coisa. E se o inconsciente é estruturado como uma linguagem, conceito fundamental da teoria lacaniana (LACAN, 1964/1996 p. 25), por meio dela o sujeito existe. Pela linguagem tenta nomear a falta que, sendo do campo do Real, não cessa de não se escrever (LACAN, 1972-1973/1985, 198). Conforme afirma Assoun (1996) “o sujeito que fala no inconsciente é inteiramente estruturado em alusão à Coisa. Com efeito, ele deve dizer a Coisa, mas não pode nomear”. (p. 120). Maliska (2010), também comenta que “o real é aquilo que não se situa entre os objetos de um mundo possível, pois seu objeto é denominado A Coisa – Das Ding – objeto que falta”. (p. 75). Ao falarmos de narrativa literária - seja no romance, conto ou crônica - estamos nos referindo à possibilidade de produção de sentidos que a construção de uma narrativa pode oferecer por meio de sua linguagem. A literatura é um campo vasto e propício nesta perspectiva de produzir sentidos da realidade não dados objetivamente, mas captados por meio de metáforas e figuras de linguagem variadas. De acordo com Philippe Willemart (1997), “a riqueza do escritor se medirá pela sua capacidade de gerar cadeias de significantes onde poderão cintilar os desejos particulares dos leitores, mesmo sabendo que os fantasmas são comuns a muitos homens”. (p. 68). Assim, o texto literário possibilita uma visão de mundo para além do trivial e do senso comum. Ele amplia a capacidade humana de dar significados distintos à sua existência. Ainda de acordo com Willemart (1997), “a poesia, tanto quanto a literatura e a escritura, não somente cria e situa os significantes na cadeia sintagmática de uma maneira original, mas condensa significações e sentidos de um modo incomum”. (p. 203). Essa possibilidade de sentidos múltiplos remete-nos, então, à psicanálise, pois como bem destaca Freud (1985c/1996), ao investigar a etiologia das neuroses, hávia uma classe de causas interrelacionadas que concorriam para surgimento das neuroses, fugindo da concepção de um caráter de hereditariedade como fator constitucional definitivo. Freud trata dessa questão apresentando a “equação etiológica” indicando haver variadas causas que implicam a geração de uma neurose. Os fatores que se destacam nesta “equação etiológica” são: 1) precondições – englobam os fatores em cuja ausência não são produzidos nenhum um efeito,

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pois dependem de uma causa específica; 2) a causa específica – como sendo aquela que sempre está presente em todos os casos nos quais o efeito ocorre e, estando presente na quantidade ou intensidade requerida, é bastante para produzir o efeito, desde que as precondições sejam cumpridas; 3) as causas concorrentes ou auxiliares – relativas aos fatores não necessariamente sempre presentes, e que também não podem produzir o efeito por si mesmos, independente de qualquer quantidade, mas operam em conjunto com as precondições e a causa específica para satisfazerem a equação etiológica; 4) causa precipitante ou desencadeante – aquela que aparece por última na equação etiológica e antecede a emergência do efeito. É esse fator cronológico que caracteriza essencialmente a causa precipitante. Evidentemente, os fatores relativos à “equação etiologia”, no contexto dos estudos das neuroses atuais, estavam relacionados aos distúrbios da vida sexual atual, no caso da neurose de angústia. Concepção bem diferente do conceito de “série complementar” que aparece na Conferência XXIII, de 1917. Nesse texto, Freud (1917d[1916-17d]/1996) introduz a fixação da libido na equação etiológica como sendo um fator específico na causação da neurose, determinada por dois componentes: “a constituição herdada e a disposição adquirida no início da infância”. (p. 364). Se levarmos em conta as múltiplas causas que determinam uma neurose, podemos vislumbrar a possibilidade de sobredeterminação em qualquer conteúdo pertinente ao subjetivo. A sobredeterminação diz respeito a múltiplos fatores implicados na gênese das neuroses como Freud (1893-1895/1996), em “Estudos sobre a histeria”, já indicava. Freud (1893-1895/1996) aponta que um médico deve estar “ciente do aspecto principal da etiologia das neuroses – que sua gênese é, em geral, sobredeterminada”. (p. 278). Para Freud, um sintoma histérico estava sempre ligado a outros, isto é, não há um sintoma único, mas múltiplo. Assim, nos diz Freud, “não devemos esperar encontra uma lembrança traumática única e uma ideia patogênica única como seu núcleo; devemos estar preparados para sucessões de traumas parciais e concatenações de cadeias patogênicas de ideias”. (p. 300). Portanto, na multiplicidade dos eventos traumáticos encontra-se uma cadeia lógica pela qual o sintoma se liga a um núcleo patogênico, e esta cadeia lógica, afirma Freud (1893-1895/1996), [...] Corresponde não apenas a uma linha retorcida, em zigue-zague, mas antes a um sistema de linhas em ramificação e, mais particularmente, a um sistema convergente. Ele contém pontos nodais em que dois ou mais fios se juntam e, a partir daí, continuam como um só; e em geral diversos fios que se estendem de forma independente, ou não, ligados em vários pontos por vias laterais, desembocam no

79 núcleo. Em outras palavras, é notável a frequência com que um sintoma é determinado de vários modos, é ‘sobredeterminado’. (p. 302).

A sobredeterminação é um conceito que perpassa a teoria freudiana, adquirindo maior relevância com a “Interpretação dos sonhos” no qual Freud (1900/1996) argumenta sobre este conceito, colocando no cerne do trabalho onírico. Ao referir-se às expressões de afetos nos sonhos Freud afirma: “assim, parece que os afetos nos sonhos são alimentados por uma confluência de diversas fontes e sobredeterminado em sua referência ao material dos pensamentos oníricos”. (p. 512). Mais adiante referindo-se ao processo de condensação que ocorre nos sonhos Freud (1900/1996) diz: “[...] cada elemento do conteúdo dos sonhos é ‘sobredeterminado’ pelo material dos pensamentos oníricos; não decorre de um único elemento dos pensamentos oníricos, podendo sua origem remontar a toda uma série deles”. (p. 672). Por isso, tendo o sonho este aspecto de sobredeterminação, o sentidos que podem ser extraídos dele nunca se esgotam. De acordo com Gracia-Roza (2007), A sobredeterminação atinge tanto o sonho considerado como um todo, como seus elementos considerados isoladamente, e isso acontece porque o sonho é constituído a partir de uma massa de pensamentos oníricos na qual aqueles elementos que possuem articulações mais fortes e numerosas passam a formar o conteúdo onírico. (p. 69).

Para

Garcia-Roza

(2007),

outro

aspecto

que

se

destaca

em

relação

à

sobredeterminação é o aspecto da superinterpretação. A superinterpretação é também apresentada conceitualmente por Freud (19001996) como sendo aquela possibilidade de o sonho interpretado apontar para novos sentidos, mesmo quando o interprete julgue ter alcançado uma interpretação plausível. Por isso diz Freud (1900/1996): Só com extrema dificuldade é que o principiante na tarefa de interpretar sonhos se deixa persuadir de que sua tarefa não chega ao fim quando ele tem nas mãos uma interpretação completa – uma interpretação que faz sentido, é coerente e esclarece todos os elementos do conteúdo do sonho. É que um mesmo sonho pode ter também outra interpretação, uma “superinterpretação” que lhe escapou. ( p. 555).

Ao comentar sobre este aspecto da superinterpretação, Garcia-Roza (2007) afirma que “esta diz respeito a uma segunda interpretação que se sobrepõe a primeira e que nos fornece um outro significado do sonho distinto daquele que foi obtido pela interpretação original”. (p, 70). Isto significa dizer que o sonho não nos permite estabelecer uma interpretação definitiva, posto que qualquer interpretação esbarrará sempre numa incompletude, já que não pode haver interpretação que seja completa. O sonho tem, portanto, sua natureza insondável, nos diz Freud (1900/1996):

80 Mesmo no sonho mais minuciosamente interpretado, é frequente haver um trecho que tem de ser deixado na obscuridade; é que, durante o trabalho de interpretação, apercebemo-nos de que há nesse ponto um emaranhado de pensamentos oníricos que não se deixa desenredar e que, além disso, nada acrescenta a nosso conhecimento do conteúdo do sonho. Esse é o umbigo do sonho, o ponto onde ele mergulha no desconhecido. (p. 556).

Assim, podemos buscar aspectos da subjetividade que podem emergir de uma narrativa literária como elementos que permitem pensar sobre modos de subjetivação. A escrita literária não está fixada no mesmo ordenamento da escrita formal, de sentido denotativo. Ao contrário se produz numa linguagem altamente conotativa, metafórica, da qual se podem extrair múltiplas interpretações. Isso nos permite pensar a ficção e sua relação, por analogia, com o inconsciente psicanalítico. Para Willemart (1997), “na ficção, os mesmos significantes sem importância servem, na realidade, de janela para a ação do inconsciente. É o fenômeno da metáfora”. (p. 44). Na psicanálise, uma importante janela para a ação do inconsciente é o sonho que, de certo modo, assemelha-se a narrativa ficcional. Entretanto, vale destacar, conforme Willemart (1997), que “tanto no sonho narrado quanto na ficção, o inconsciente como tal é inacessível”. (p. 55). Conforme afirma Plastino (2008), “entre o existir e o falar existe um conflito insolúvel, uma vez que, a partir da existência, a linguagem cria um invólucro falso, um ser de expressão que nunca irá coincidir com o ser real”. (p. 38). A linguagem em seu potencial criativo e sua força geradora de saber produz uma multiplicidade de sentidos e encontra na literatura sua expressão mais elevada. Barthes (1977/1996), ao refletir acerca da questão da língua enquanto poder, diz que “assim que ela é proferida, mesmo que na intimidade mais profunda do sujeito, a língua entra a serviço de um poder”. (p. 14). Destaca, também, a importância da literatura que, para ele, é um “trapacear com a língua.” Para este Barthes (1977/1996), “essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura”. (p. 16). Ao comentar este aspecto de uma de uma literatura cujo lugar é onde a linguagem trapaceia, Farias (2012) faz uma interessante afirmação: “se não há o fora da linguagem, há a literatura, que seria dentro da linguagem o seu lado de fora, sua brincadeira, seu desvio, sua trapaça. A literatura seria o momento em que a linguagem resiste ao escoamento do ralo da história”. (p. 76). Assim sendo, em termos barthesianos, a literatura é um saber que comporta

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uma refletividade infinita. Portanto, é na literatura que, diz-nos Barthes(1977/1996): “através de sua escritura o saber reflete incessantemente sobre o saber, segundo um discurso que não é mais epistemológico, mas dramático”. (p. 19). Não obstante, Barthes (1977/1996) aponta que o saber que a literatura mobiliza não pode ser definitivo e que a “literatura não diz que sabe alguma coisa, mas que sabe de alguma coisa; ou melhor: que ela sabe algo das coisas – que sabe muito sobre os homens”. (p. 19). Neste saber sobre os homens, a literatura estabelece sua forma de resistir ao poder da linguagem. De acordo com Farias (2012), “Somente a literatura mantém um saber desconfiado de si mesmo, em crise de convicção”. (p. 77). 6.2.1 O escritor literário e o fantasiar Um elemento muito importante com o qual a literatura trabalha é a fantasia, mas propriamente o fantasiar que, como categoria verbal indica uma ação, portanto, um sentido de movimento em contraposição ao substantivo fantasia que representaria tão somente o ato de nomear. Freud (1908b[1907b]/2014), dentre seus vários escritos sobre literatura, escreveu um ensaio especialmente dedicado a este tema do fantasiar – “O poeta e o fantasiar”28 – no qual destaca esse elemento que se encontra presente em nós desde a infância e que alimenta intensamente as brincadeiras infantis. Já no início do texto Freud (1908b [1907b]/2014) interroga sobre qual a fonte de onde o escritor literário extrai seu material. Em seu processo investigativo, traz um questionamento interessante: “não será o caso de buscar os primeiros vestígios da atividade poética já entre as crianças?” (p. 79-80). Portanto, no ato de brincar a criança, no seu processo de fantasiar, experimenta um grande potencial criativo. Assim nos diz Freud (1908b [1907b]/2014), Para elas (as crianças), a ocupação preferida, e a que mais intensamente se dedicam, é o brincar. Talvez devêssemos dizer: toda criança que brinca se porta como um poeta, uma vez que ela cria para si seu próprio mundo, ou, para dizer com mais precisão, transpõe as coisas de seu mundo para uma nova ordem, que lhe agrada. Seria incorreto pensar que a criança não leva este mundo a sério; ao contrário: leva tão a sério a sua brincadeira, que nela investe grandes cargas de afeto. (p 80).

28

Especialmente neste caso estou utilizando uma versão do texto freudiano cuja tradução é do alemão Saulo Krieger (2014), cujo título está traduzido por “O poeta e o fantasiar” e que se encontra selecionado no livro: “Escritos sobre literatura de Sigmund Freud”.

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Então, por analogia, Freud propõe pensar a atividade do escritor literário como sendo similar ao brincar infantil. Por isso, em seu processo criativo, segundo Freud (1908b [1907b]/2014), o poeta “cria um mundo de fantasia e o leva muito a sério; isto é, ele o provê de grande investimento afetivo, ao mesmo tempo em que nitidamente o separa da realidade”. (p. 80). Este aspecto do fantasiar põe em relevo a linguagem literária, pois, de acordo com Freud (1908b [1907b]/2014), a realidade como tal não poderia ser de todo satisfatória. Assim, a técnica do artista possibilitaria uma satisfação através do jogo da fantasia que a condição do real não poderia oferecer. Nesta perspectiva, no processo de criar/fantasiar “muitas emoções em si dolorosas podem ser fonte de prazer para o auditório e ouvinte do poeta”. (p. 81). Na medida em que a criança vai crescendo e se tornando adulto é que vai abandonando aos poucos a atividade do brincar. Parece haver uma renúncia do prazer outrora experimentado nas brincadeiras e que serviam como modo de organização subjetiva para lidar com a realidade. Entretanto, nos diz Freud (1908b [1907b]/2014), “na verdade não podemos renunciar a nada; o que parece ser uma renúncia é na realidade uma formação substitutiva ou um sucedâneo”. (p. 81). Isto significa que, ao imitar objetos reais, o adulto não mais brinca, mas agora fantasia. Entretanto, de acordo com Freud, isto é mais difícil de ser observado do que quando podemos perceber nos jogos que as crianças realizam. Para Freud (1908b [1907b]/2014), a brincadeira infantil estava direcionada pelos próprios desejos da criança, sendo de algum modo um auxílio em seu processo de desenvolvimento, em sua educação. Portanto, tais desejos estavam relacionados a uma forma de imitação dos adultos, um desejo de ser grande e, neste sentido, o fantasiar é até esperado e muito bem aceito na infância. Com o adulto ocorre um processo diferente. Conforme Freud (1908b [1907b]/2014), “por um lado, o que se espera dele (adulto) é que já não jogue ou fantasie, mas que atue no mundo real; por outro lado, entre os desejos que produzem o fantasiar há muitos que é preciso esconder; eis porque ele se envergonha de seu fantasiar, como sendo infantil e interdito”. (p. 82). Na sequência do texto, Freud (1908b [1907b]/2014) passa a enumerar algumas características importantes do fantasiar e afirma que aquele que está feliz não fantasia, porque o fantasiar está relacionado com a dimensão da insatisfação. Para Freud, apenas “desejos

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insatisfeitos são as forças pulsionais das fantasias, e cada fantasia individual é uma satisfação de desejo, uma correção da realidade insatisfatória”. (p. 83). Freud (1908b [1907b]/2014) ressalta, ainda, a relação que a fantasia tem com os sonhos ao afirmar que os “sonhos noturnos nada mais são do que fantasias”. Ele aponta também que “em sua insuperável sabedoria, a linguagem já há muito se decidiu pela essência dos sonhos, fazendo chamar também de ‘sonhos diurnos’ as criações feitas por quem fantasia”. (p. 85). Se as fantasias expressam desejos, Freud (1908b [1907b]/2014) conclui que nos “sonhos noturnos, tal como nos sonhos diurnos – estas fantasias bem conhecidas de todos nós –, são satisfações de desejos”. (p. 85). Valendo-se de tudo que faz parte de sua análise sobre o ato de fantasiar, Freud elabora uma assertiva no que tange ao fantasiar e ao estado de coisas que isto enseja. Assim, afirma Freud (1908b [1907b]/2014), Devemos esperar pelo seguinte estado de coisas: uma vivência fortemente atual desperta no poeta a lembrança de uma vivência anterior, o mais das vezes pertencente à sua infância, que na poesia produz a sua satisfação; a própria poesia permite reconhecer tanto os elementos da ocasião em questão como os da antiga lembrança. (p. 88).

Para Freud (1908b [1907b]/2014), tal ênfase dada a “lembrança infantil na vida do poeta, se deduz antes de qualquer outra coisa, do pressuposto de que a poesia, assim como o sonho de vigília, vem a ser uma continuação e um substitutivo da brincadeira infantil de outrora”. (p. 88-89). Normalmente, nos lembra Freud (1908b [1907b]/2014), quando sonhamos acordados, tentamos sempre ocultar dos outros nossas fantasias, isso porque não proporcionariam aos outros nenhum tipo de prazer. Entretanto, quando um escritor literário o faz, realiza-o de tal modo que sentimos um prazer elevado. Aí estaria a verdadeira Ars poética para Freud(1908b [1907b]/2014), na técnica de superar a repulsa que as fantasias poderiam causar em nós, “por certo relacionadas às barreiras que se erguem entre todo eu individual e os outros”. (p. 90). E, finalmente, arremata Freud (1908b [1907b]/2014), o poeta nos viabiliza uma “posição em que desfrutamos de nossas próprias fantasias sem qualquer censura ou vergonha”. (p. 90).

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6.3 O estilo literário de Clarice Lispector A partir desta perspectiva de uma interface entre literatura e psicanálise, com um recorte pontual na obra de Clarice Lispector (contos), consideramos importante fazer alguns apontamentos sobre o estilo literário desta notável escrita da literatura brasileira. A escrita clariciana tem uma marca pulsante, visceral. A escrita singular de Clarice Lispector, implicada na sua percepção do mundo, da realidade da vida, tem uma capacidade de sacudir o leitor do lugar comum, abrindo um horizonte para a percepção de si mesmo por meio da desconstrução/reconstrução que seus textos engendram e que colocam o leitor num processo de constante pensar e repensar a vida e a realidade. Como bem aponta Yudith Rosenbaum (2011), Clarice não representa a chamada ‘realidade’, adornada em linguagem literária, mas busca, pela palavra escrita, ser ‘vida’ no sentido mais fundo. E para isso pode, muitas vezes, tomar caminhos opostos ao senso comum, na contramão do que percebemos como verdade no nosso mais prosaico cotidiano. É, portanto, como desvio e estranhamento que recebemos seus textos e neles, paradoxalmente, reconhecemos a vida que somos e até então são sabíamos. (p. 217).

Assim, cabe pensar a realidade numa perspectiva da obra clariciana que contém uma marca do ato de fantasiar que ultrapassa a dimensão daquilo que é trivial, criando, para além da realidade objetiva, um sistema interpretativo gerador de múltiplos sentidos, a partir da singularidade de cada sujeito. Por isso os dramas da existência humana se elevam no plano simbólico, possibilitando uma forma para suportar os limites que a vida impõe. Vale destacar que, do ponto de vista psicanalítico, o fantasiar se recobre de uma importância fundamental, pois foi justamente quando passou a considerar tal perspectiva como elemento essencial da psique humana que Freud pode pensar a realidade para além do seu sentido puramente prosaico, passando a considerar uma outra forma pela qual o sujeito humano atua, isto é, no plano de uma realidade psíquica, que implica considerar cada sujeito vivendo a partir de uma realidade singular. Este salto na teorização freudiana se deu, como já mencionado neste trabalho, quando Freud deixou de conceber o trauma sexual infantil como um fato real para considerá-lo numa perspectiva de algo operando no campo da fantasia. Sendo assim, a existência poética está ligada a esse aspecto fundamental do fantasiar e este elemento percorre de modo intenso a obra clariciana. Neste sentido podemos considerar o estilo clariciano como um estilo único e irrepetível a partir da subjetividade que o singulariza. Desse modo, a condição de sujeito traz

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a marca de uma singularidade que implica numa unicidade, isto é, cada ser é único e, sendo assim, traz consigo sua própria verdade. De acordo com Rosenbaum (2011) a questão do sujeito permeia toda a obra clariciana, pois Está colocada do primeiro ao último de seus romances, retornando como indagação perpétua nos contos e crônicas da autora. O processo de subjetivação, tão caro às ciências humanas e à psicanálise, em particular, percorre as narrativas claricianas, construindo um espectro multifacetado, em que cada texto parece tocar aspectos distintos da formação do sujeito na cultura. (p. 218)

Por essa razão, Ronsenbaum (2011) assinala que, em linhas gerais, a figura central da obra clariciana envolve a questão do “[...] sujeito frente a um objeto inapreensível”. (p. 221). Não obstante, em seu estilo peculiar e avassalador, para além daquilo que implica a experiência do leitor, Clarice Lispector, ainda conforme Rosenbaum (2011), “parece querer entender a si mesma, buscar-se na escrita repetidas vezes como se assim algo do enigma da própria linguagem pudesse se revelar. Afinal, diz ela, ‘repetição me é agradável; cantilena enjoada sempre diz alguma coisa’”. (p. 219). Sempre em busca de alguma coisa, a escrita clariciana apresenta um caráter de inquietação constante e, por isso mesmo, é uma escrita que se expressa num estilo incomum. É uma escrita, turbulenta, desnorteadora e impactante. Como bem descreve Rosenbaum (2002) no livro “Clarice Lispector” editado pela Publifolha: Mesmo tendo evitado expor sua intimidade ao público, Clarice Lispector fez de seus textos um vasto itinerário de uma identidade inquieta e turbulenta, inadaptável às expectativas sociais, obsessiva na captura de si mesma e do outro, desmascarando, sob o verniz do cotidiano, um mundo de desejos e fantasias inconfessáveis. É possível conhecê-la através de inúmeros vestígios, indícios e revelações, dispersos sob as falas de tantas personagens, narradores implícitos ou interpostos, ou ainda nos vários fragmentos — espécies de epigrama e aforismo — que aparecem infiltrados num corpo textual incomum. A literatura de uma das mais importantes escritoras brasileiras está, portanto, muito além da simplicidade doméstica que seu cotidiano faz crer. (p. 9).

Os personagens claricianos sempre aparecem demarcando o campo de uma renúncia, isto é, abrindo mão dos próprios desejos na perspectiva de algo sempre maior. Para Rosenbaum (2011) “a ideia de uma abdicação do corpo pulsional, sem delimitações (impossível, portanto, de ter seus contornos desenhados), em nome da entrada humanizadora no mundo simbólico, configura um núcleo conhecido da obra clariciana”. (p. 227). Do ponto de vista da literatura acadêmica que, metodologicamente, busca agrupar textos que a crítica literária considera como sendo semelhantes em estilos e enquadrar a escrita literária em determinados padrões estéticos de uma época ou de acordo com uma

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corrente de pensamento e fazer literários, a obra de Clarice Lispector está localizada no chamado período do Pós-Modernismo brasileiro, mais especificamente, na terceira geração do movimento Modernista, cujo apogeu ocorreu em 1922 com a realização da Semana de Arte Moderna, em São Paulo, e que “pretendia colocar a cultura brasileira a par das correntes de vanguarda do pensamento europeu, ao mesmo tempo que pregava a tomada de consciência da realidade brasileira”. (NICOLA, 1998, p. 272). A literatura brasileira, produzida no período compreendido entre 1930 a 1945 teve um caráter bastante regionalista focado em questões sociais importantes desse contexto histórico, como a seca e a fome no nordeste e o poder coronelista. Os escritores literários desse período estavam motivados pelas convicções éticas advindas do movimento modernista. Assim, a produção literária desse período foi marcada por um forte caráter de denúncia social das mazelas e das injustiças que assolavam o país. Para esse tipo de romance brasileiro, cujos principais expoentes foram José Lins do Rego, Raquel de Queiroz, Graciliano Ramos e Jorge Amado, conforme assinala Antônio Candido (1996. p. XVII), “a realidade parecia o elemento decisivo” e a linguagem estava, portanto, subordinada aos temas emergentes dessa mesma realidade. Para este autor, o romance produzido neste contexto, [...] Procurava mostrar da maneira mais direta possível o que era a sociedade brasileira, quais eram os problemas e as angústias do homem, com um senso agudo de referência, isto é, uma preocupação dominante em relação ao cenário, à sociedade, aos comportamentos. Por isso, os romancistas da época davam na maioria a impressão de que a linguagem era algo subordinado ao tema. E o tema vinha para a linha de frente com a sua força de protesto, denúncia e revelação, como ocorre na narrativa de tendência social, predominante naquele tempo aqui e no mundo. (p. XVII)

Portanto, a literatura do período de 1930 a 1945 não teve o vigor das ideias inovadoras que a geração modernista de 22. De acordo com Cândido (1996), esses anos “[...] não viram o surto inovador equivalente ao da prosa de Oswald de Andrade e de Mário de Andrade, que, eles próprios, nessa altura tinham disciplinado relativamente a sua liberdade inicial”. (p. VIII). É nesse contexto que entra em cena a obra de Clarice Lispector, com seu primeiro romance “Perto do coração selvagem” (1943), diferenciando-se do estilo regionalista focado em questões sociais e herdeiro do período pós-modernista. Portanto, Clarice Lispector desponta trazendo questões acerca do sujeito, de sua singularidade e subjetividade. Se no romance regionalista o autor se destacava na construção do texto, escrevendo a partir de um tema para efetuar uma denúncia das mazelas sociais, subordinando a linguagem ao tema,

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Clarice Lispector emerge com um novo paradigma, colocando a palavra como ponto central da sua escrita. Assim, o leitor passa a ser sujeito, podendo, a partir da interação com o texto extrair dele os sentidos que lhe convierem. Nas palavras de Clarice Lispector (1984/1999): “como uma forma de depuração, eu sempre quis um dia escrever sem nem mesmo o meu estilo natural. Estilo, até próprio, é um obstáculo a ser ultrapassado. Eu não queria meu modo de dizer. Queria apenas dizer. Deus meu, eu mal queria dizer”. (p. 142). Também nesse mesmo período desponta o escritor Guimarães Rosa (1946), que, de acordo com Antônio Cândido (1996), junto com Clarice Lispector, retoma o “esforço da invenção da linguagem”. (p. XVIII). Antônio Cândido (1996) destaca ainda que, para esses dois escritores literários, O problema parecia consistir em obter um equilíbrio novo entre tema e palavra, de modo que a importância de ambos fosse igual. Assim, o leitor sentiria que o texto não é um farrapo do mundo imitado pelo verbo, mas uma construção verbal que trazia o mundo no seu bojo. Como para os dois grandes escritores do Modernismo dos anos Vinte, a palavra literária readquiria na prosa o seu status soberano. (p.

XVIII). Então, por representar uma posição nova, a escrita clariciana naturalmente causou estranheza à crítica literária. O enredo inovador de sua escrita abriu espaço para um mergulho nas profundezas do inconsciente, a partir de uma abordagem do mundo interior de seus personagens. De acordo com Cândido (1996), a prosa clariciana representava uma novidade em dois sentidos: “experimento do escritor, compreensão do leitor”. (p. XVII). Sendo assim, Candido(1996) complementa: A jovem romancista ainda adolescente estava mostrando à narrativa predominante em seu país que o mundo da palavra é uma possibilidade infinita de aventura, e que antes de ser coisa narrada a narrativa é forma que narra. De fato, o narrado ganha realidade porque é instituído, isto é, suscitado como realidade própria por meio da organização adequada da palavra. Clarice Lispector instaurava as aventuras do verbo, fazendo sentir com força a dignidade própria da linguagem. (p. XVIII).

Não obstante o impacto provocado por seu primeiro livro, Clarice acabou por apontar, aos poucos, um novo caminho estético, “à medida que a própria literatura brasileira se desprendia das suas matrizes mais contingentes, como o regionalismo, a obsessão imediata com os ‘problemas’ sociais e pessoais, para entrar numa fase de consciência estética generalizada”. (CÂNDIDO, 1996, p. XVIII). Para Cândido (1996), a visão nova que Clarice Lispector representava, no início marginal, tornou-se, com o passar do tempo, uma referência. Portanto, não estando centrada

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no campo social, como os romances engajados do regionalismo de 1930, a obra de Clarice Lispector sempre esteve implicada na dimensão da existência de um sujeito tomado por intensos sentimentos a partir de suas aflições mais íntimas. Para Rosenbaum (2002), “Clarice Lispector desestabiliza as referências romanescas instituídas, tais como o descritivismo de cenários e tipos humanos e o viés determinista e fatalista ainda impregnante”. (p. 19). De acordo José de Nicola (1998) em seu livro “Literatura brasileira: das origens aos nossos dias”, o estilo clariciano de escrever é marcado pela ideia de um mundo interior e o universo da linguagem no qual de desenvolvem seus personagens. Para este autor, “Clarice Lispector é o principal nome de uma certa tendência intimista da moderna literatura brasileira. O principal eixo de sua obre é o questionamento do ser, o “estar-no-mundo”, a pesquisa do ser humano, resultando daí no chamado romance introspectivo”. (p. 383). Para além da classificação acadêmica tradicional, a obra de Clarice Lispector é impactante e, consequentemente, transgressora da tradição literária de seu tempo e, portanto, de difícil enquadre. De acordo com Rosenbaum (2011), Clarice Lispector sempre teve um compromisso “com a ‘coisa’ revelada, não importando se para isso confundisse as fronteiras, subvertesse os limites, transgredisse o cânone acadêmico”. (p. 221). Percorrendo as fronteiras do inconsciente, a literatura clariciana nos remete a um sujeito indecifrável. De acordo com Ana Maria Lima do Valle (2006), Clarice Lispector Parece querer penetrar no mais profundo de nós, no que temos de mais guardado, de mais íntimo e secreto. Caminhando por suas letras, seguindo sua trilha curva, alcançamos o segredo, percebemos a beleza e a dor. E o que tínhamos como conhecido poderá também surpreender. Alternando momentos de intensa doçura com outros de uma forte ardência, causadora de possíveis cataclismos, a escritora nos revela aspectos inéditos da linguagem. Linguagem que pulsa e vive de inferno e céu. (p. 28).

Neste sentido, o estilo da escrita clariciana explora aspectos profundos da subjetividade, sem, no entanto, esgotá-los, assim como também fazem outros escritores literários. Sua narrativa está sempre em busca de uma realidade inapreensível, uma realidade que a palavra jamais pode atingir. Diante disto, resta ao leitor, como bem afirma Rosenbaum (2002), “deixar-se conduzir por uma escrita errante, que alude ao inexpressível, à zona obscura do que a palavra não pode expressar”. (p. 11). Portanto, Clarice Lispector é uma escritora que, não obstante as tentativas de enquadramento de uma vertente literária, possui um estilo que, por sua singularidade, escapa a

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qualquer forma de esquematização. Sua obra permite apenas entrever, “algumas linhas de força” que a demarcam. (ROSENBAUM 2002, p. 14). A escrita clariciana, para além do trivial, subverte o fazer literário de seu tempo (fazer este que, outrora, fora também uma subversão). Por isso, como afirma Willemart (1997), “a arte, geralmente, perturba e subverte a cultura de onde se origina. Os artistas propõem uma outra maneira de viver, sentir e agrupar elementos.” ( p. 149). A riqueza do escritor é sua palavra, como bem afirma Willemart (1997), “a palavra, ouro do poeta, situa-o no país dos deuses, o paraíso”. (p. 26). Finalmente, a literatura clariciana possibilita olhar o mundo por uma lente de aumento, através das suas obras. Assim, como bem indica Olga de Sá (1979), a literatura de Clarice Lispector cumpre “o destino mais alto da obra de arte: ensina-nos a ver e a compreender o mundo e os serem que nos cercam”. (p. 41).

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7 ANÁLISES DOS TRÊS CONTOS DE CLARICE LISPECTOR Não quero a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada. CLARICE LISPECTOR (1973/1998, p. 20).

Na trilha da arte literária como forma de linguagem altamente representativa da realidade psíquica do humano, encontramos, então, a obra de Clarice Lispector. A riqueza da produção de sentidos que podem emanar dos seus textos, em cada leitor que deles se apropria, parece possibilitar uma vivência do si mesmo. Reencontramos-nos, acessamos imagos inconscientes, construímos sentidos que nos recriam, nos envolvem e nos remetem as sensações mais significativas já experimentadas, promovendo uma reapropriação de significantes. Ao iniciarmos a análise dos dados, consideramos importante transcrever, como fizemos a seguir, os três contos de Clarice Lispector, objetos desta pesquisa. Isto é importante, pois permite ao leitor uma visão geral dos textos. Os contos claricianos estão transcritos na ordem de análise. Primeiramente aparece o conto Felicidade Clandestina, depois Uma amizade sincera e, finalmente, Amor. É importante destacar que a análise dos textos a partir de um olhar psicanalítico segue um caminho naquela perspectiva já apontada anteriormente por Rosenbaum (1999) de uma construção dialética em relação aos sentidos implicados no texto. Ainda de acordo com Rosenbaum (2011) o aporte psicanalítico pode ser convocado “quando se fizer necessário desvendar certos núcleos obscuros da linguagem e reunir linhas de fuga da narrativa, que sugere, sem afirmar, determinadas dinâmicas da vida psíquica e cultural estudadas pela psicanálise de Freud, de Lacan e de seus seguidores.” (p. 220).

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7.1 Primeiro Conto: Felicidade clandestina Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria. Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”. Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia. Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disseme que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria. Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam. No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez. Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo. E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra. Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados. Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de

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palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler! E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.” Entendem? Valia mais do que me dar o livro: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer. Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo. Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada. Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

93 Eu te dou pão e preferes ouro. Eu te dou ouro, mas tua fome legítima é de pão. Clarice Lispector (2010, p.51).

O tema do conto é bastante interessante, pois apresenta a questão da felicidade como sendo uma clandestinidade, esse elemento que aparece como um pano de fundo da narrativa. Ao percorrer o texto, encontramos essa possibilidade da re-vivência de momentos felizes. A linguagem simbólica revela que a felicidade não se encontra em determinado objeto em si mesmo, mas como aquilo que a ele, enquanto metáfora, pode remeter: uma sensação de enlevo. A felicidade, ao que parece, é mesmo clandestina, pois o Real, a que o objeto almeja representar não se revela como tal, está posto no mais recôndito espaço, aquém do inconsciente, revelando-se de modo parcial, disfarçado, clandestino no carrossel da linguagem. O Real, em termos lacanianos, é aquele “resto”, como mencionamos, que não pode ser nomeado, estando, portando fora do plano da simbolização. O objeto do desejo (o livro Reinações de Narizinho) é contemplado pela possibilidade que traz de evocar uma sensação de completude, a partir do objeto perdido (Das Ding). Este objeto conduz a um reencontro de sensações. Essas sensações experimentadas expressam-se numa certa clandestinidade, pois parece evidente que tal objeto por si só não implica em um gozo, senão pelo significante a que ele remete, pelo prazer que evoca a memória e cuja evocação aparece de modo impreciso, isto é, ele se refere a um não sabido, ou mesmo sabido, mas tão somente no plano inconsciente. Desta feita, o gozo não é referente diretamente ao objeto (o livro), mas intrinsecamente ligado ao que esse objeto tem a possibilidade de significar, isto é, apenas a uma ilusão de completude e as reminiscências do demandar que marcam as primeiras relações da infância. Trata-se, então, de uma demanda do outro que retoma a condição do desamparo existencial. Essa demanda implica num movimento em direção a esse outro, representado pela “menina má” dona do livro – na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia. A demanda é sentida como geradora de angústia: até que veio para ela o dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. E ainda, eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Como forma de aplacamento dessa angústia, advém o acolhimento por parte da mãe da “menina má” dona do livro, como uma metáfora de tamponamento, pondo uma basta no lado perverso da filha. Foi então que, finalmente se refazendo, disse

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firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: E você fica com o livro por quanto tempo quiser. Portanto, a clandestinidade está imbricada nesse jogo: prazer – dor; emprestar – não emprestar; mãe – menina má, que remonta as posições nas quais a criança transita em suas relações primeiras com seus cuidadores, que de algum modo a satisfazem. Para se ter a dimensão do desejo e do possível gozo, há que se lidar com a falta estruturante. O gozo é mortífero e, por isso, é preciso adiá-lo com as castrações. Noutras palavras, a felicidade se apresenta nesta clandestinidade, visto que o Real do desejo não pode ser acessado, e esse jogo (empresta – não empresta) a coloca na busca de uma cadeia significante. Este Real, nunca nomeado, precisa do engodo, da clandestinidade do mundo de significantes. Ele aparece metaforicamente, não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante. Portanto, uma mulher com seu objeto amado, que só por senti-lo, se sente ilusoriamente completa. É a sensação que surge da possibilidade de um prazer ao qual esse objeto pode representar, mas nunca dizer por completo, isto é, esgotar-se em palavras, pois o prazer maior está no fantasiar vivenciado no caminho: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria. Isto é, sempre no adiamento, em perspectiva: amanhã..., amanhã... Talvez possamos compreender porque a linguagem do senso comum, sem saber que sabe, afirma não ser possível a alguém estar feliz o tempo todo. A felicidade é feita de momentos, momentos em que determinados objetos podem reavivar o desejo e proporcionar uma sensação inexplicável de um prazer já antes vivenciado e sentido. Isso ocorre por meio da linguagem que vai girando em torno do Real inacessível. A felicidade aparece como sendo clandestina porque não pode ser apreendida totalmente, mas somente captada pelos sentidos e pelo corpo. Prazer parcial, referente ao inominável, pois que o prazer absoluto, total, é inacessível, somente podendo ser experimentado de modo clandestino pela palavra e pelas imagens, isto é, pelo ato de fantasiar. Para Lacan (1964/1996), “A fantasia é a sustentação do desejo, não é o objeto que é a sustentação do desejo. O sujeito se sustenta como desejante em relação a um conjunto significante cada vez bem mais complexo”. (p. 175). Quanto ao desejo, Freud (1908[1907]/2014), em seu texto “O poeta e o fantasiar”, destaca que os “desejos insatisfeitos são as forças pulsionais das fantasias, e cada fantasia individual é uma satisfação de desejo,

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uma correção da realidade insatisfatória”. (p. 83). Sendo assim, na fantasia, nos diz Lacan (1964/1996), “frequentemente o sujeito é despercebido, mas ele está sempre lá, quer seja no sonho, no devaneio, em não importa quais formas mais ou menos desenvolvidas. O sujeito se situa a si mesmo como determinado pela fantasia”. (p. 175). Assim, a palavra, por meio desse fantasiar, serve como meio para bordear, nomear o objeto. Ela simboliza, já que não pode dizer e, no ato de simbolizar, conforta e preenche, ilusoriamente, o desamparo da condição humana. Especialmente sobre o desamparo ao qual teorizou Freud (1926 [1925]/1996), como sendo um protótipo do afeto de angústia. Com relação à palavra vale destacar a relação psicanálise e literatura, dado que ambas estão postas na palavra e no discurso, cada uma a seu modo, tendo como ponto em comum a linguagem. De acordo com Plastino (2008) “a linguagem é aquilo em que constituímos, desde que nascemos”. (p. 17). Quando ocorre finalmente o contato com o livro, funcionando como objeto do desejo, torna possível perceber esse movimento de busca de sentido, desta sensação do acalanto ao desamparo irremediável ao qual a psicanálise se refere. Freud (1908b[1907b]/2014) inclusive salienta que “[...]o desejo se utiliza de uma ocasião do momento presente, esboçando para si, segundo o padrão do passado, uma imagem de futuro.” (p. 85). Daí que, diante do objeto desejado, produz-se um efeito de êxtase: Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. [...] Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li alguma linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardava o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade.

Essa ideia de arrebatamento nos permite inferir que o objeto indica uma forma de pensar o desejo não como um elemento da consciência, mas como um substrato do inconsciente do sujeito, como a indicar que o objetivo do próprio desejo seja continuar desejando. Nada, portanto é finalizado, definitivo. Na literatura clariciana é possível ver esse movimento do desejo em volta do objeto como que a expressar a tentativa de um gozo. Entretanto, em termos lacanianos o gozo absoluto implica sempre numa impossibilidade, posto que o princípio do prazer impõe um movimento no qual o sujeito busque sempre o que ele deve reencontrar, mas que ele não poderá alcançar. (LACAN 1959-1960/2008, p. 85). O discurso do gozo, portanto, não pode nomear, mas é um discurso enquanto tentativa de encontrar a Coisa.

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Desse modo, a linguagem promove um acesso à Coisa apenas como lembrança, por meio de significantes, isto é, por metáfora que realiza o desejo de modo parcial. A subjetividade expressa pela linguagem encontra no texto ficcional esse potencial de um efeito liberador de significados: Neste conto, deparamo-nos, também, com essa dimensão do indescritível. No fluir do texto apresenta-se essa ideia: às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Essa sensação de êxtase é exatamente aquilo a que a palavra não pode dizer, acessar, publicar. Aqui se pode entrever uma função da escrita que é exatamente a produção do simbólico, ou seja, a produção do efeito do estranho, considerando que a linguagem simbólica não pode dar conta do Real do sujeito. De acordo com Betty Bernardo Fuks (2009), a escrita ficcional exerce uma função de “fazer com que algo do não-simbólico possa desembocar no simbólico. [...] O meio de que dispõe o inconsciente para se revelar é a escrita. [...] Isto porque a escuta analítica não é outra coisa senão uma espécie de leitura pela qual o inconsciente se re-vela”. (p. 411). De acordo com Barros e Oliveira (2009), o desejo parcial que a palavra pode experimentar, ao tempo em que garante uma porção de prazer, cerra e impede uma relação mais direta com o objeto do desejo. É dessa perspectiva que Lacan opera com a ideia do real como dimensão que alude ao que nos traumatiza a todos, do real como impossível em termos lógicos, uma vez que a relação do sujeito com o real sexual é forçosamente marcada por um tropeço, uma inadequação fundamental, um mau encontro. [...] O real é o que há por trás da fantasia, é o encontro faltoso com o que pode faltar e corresponde ao traumatismo, guardando uma relação íntima com o processo primário. (p. 121-122).

Nessa perspectiva, o objeto de desejo da protagonista, o livro “As reinações de narizinho” pode remeter a este Real, àquilo que está escondido pela fantasia. Isso se pode perceber no fato de que a menina nem se quer chega a ler o livro. Por isso, o livro adquire apenas um valor de adorno, de ornamento, e, só por tê-lo, experimenta-se uma sensação de êxtase. De acordo com Heloisa Caldas, (2007), “é a tela da fantasia que dá ao objeto seu valor agalmático, seu brilho fálico”. (p. 40). Ao final vale apena retomar a frase final da protagonista, que revela, talvez, a expressão máxima do seu fantasiar: não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante. Isso pode significar a questão da impossibilidade do gozo pleno, o que

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permite ao desejo renovar-se continuamente, daí o fato de a personagem encontrar mais prazer na conquista do que mesmo no próprio ato da leitura. Além disso, o uso do termo “amante” para referir-se à relação com o objeto, é muito interessante nesse sentido de manter o gozo sempre em suspenso. No dicionário Houaiss (2011) encontramos as seguintes definições do termo “amante”: “1 que(m) ama; apaixonado. 2 admirador, apreciador.” (p. 49). Significa, portanto, que o maior desejo do desejo dever ser continuar desejando. Sendo assim, as coisas sempre podem significar mais do que aquilo elas dizem, como nos aponta Clarice Lispector em “Água viva”: (1973/1998, p 14). Ouve-me. Ouve meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa. Capta essa coisa que me escapa...

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7.2 Segundo Conto: Uma amizade sincera Não é que fôssemos amigos de longa data. Conhecemo-nos apenas no último ano da escola. Desde esse momento estávamos juntos a qualquer hora. Há tanto tempo precisávamos de um amigo que nada havia que não confiássemos um ao outro. Chegamos a um ponto de amizade que não podíamos mais guardar um pensamento: um telefonava logo ao outro, marcando encontro imediato. Depois da conversa, sentíamo-nos tão contentes como se nos tivéssemos presenteado a nós mesmos. Esse estado de comunicação contínua chegou a tal exaltação que, no dia em que nada tínhamos a nos confiar, procurávamos com alguma aflição um assunto. Só que o assunto havia de ser grave, pois em qualquer um não caberia à veemência de uma sinceridade pela primeira vez experimentada. Já nesse tempo apareceram os primeiros sinais de perturbação entre nós. Às vezes um telefonava, encontrávamo-nos, e nada tínhamos a nos dizer. Éramos muito jovens e não sabíamos ficar calados. De início, quando começou a faltar assunto, tentamos comentar as pessoas. Mas bem sabíamos que já estávamos adulterando o núcleo da amizade. Tentar falar sobre nossas mútuas namoradas também estava fora de cogitação, pois um homem não falava de seus amores. Experimentávamos ficar calados - mas tornávamo-nos inquietos logo depois de nos separarmos. Minha solidão, na volta de tais encontros, era grande e árida. Cheguei a ler livros apenas para poder falar deles. Mas uma amizade sincera queria a sinceridade mais pura. À procura desta, eu começava a me sentir vazio. Nossos encontros eram cada vez mais decepcionantes. Minha sincera pobreza revelava-se aos poucos. Também ele, eu sabia, chegara ao impasse de si mesmo. Foi quando, tendo minha família se mudado para São Paulo, e ele morando sozinho, pois sua família era do Piauí, foi quando o convidei a morar em nosso apartamento, que ficara sob a minha guarda. Que rebuliço de alma. Radiantes, arrumávamos nossos livros e discos, preparávamos um ambiente perfeito para a amizade. Depois de tudo pronto - eles dentro de casa, de braços abanando, mudos, cheios apenas de amizade. Queríamos tanto salvar o outro. Amizade é matéria de salvação. Mas todos os problemas já tinham sido tocados, todas as possibilidades estudadas. Tínhamos apenas essa coisa que havíamos procurado sedentos até então e enfim encontrado: uma amizade sincera. Único modo, sabíamos, e com que amargor sabíamos, de sair da solidão que um espírito tem no corpo. Mas como se nos revelava sintética a amizade. Como se quiséssemos espalhar em longo discurso um truísmo que uma palavra esgotaria. Nossa amizade era tão insolúvel como a soma de dois números: inútil querer desenvolver para mais de um momento a certeza de que dois e três são cinco. Tentamos organizar algumas farras no apartamento, mas não só os vizinhos reclamaram como não adiantou. Se ao menos pudéssemos prestar favores um ao outro. Mas nem havia oportunidade, nem acreditávamos em provas de uma amizade que delas não precisava. O mais que podíamos fazer era o que fazíamos: saber que éramos amigos. O que não bastava para encher os dias, sobretudo as longas férias. Data dessas férias o começo da verdadeira aflição. Ele, a quem eu nada podia dar senão minha sinceridade, ele passou a ser uma acusação de minha pobreza. Além do mais, a solidão de um ao lado do outro, ouvindo música ou lendo, era muito maior do que quando estávamos sozinhos. E, mais que maior, incômoda. Não havia paz. Indo depois cada um para seu quarto, com alívio nem nos olhávamos. É verdade que houve uma pausa no curso das coisas, uma trégua que nos deu mais esperanças do que em realidade caberia. Foi quando meu amigo teve uma pequena questão com a

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Prefeitura. Não é que fosse grave, mas nós a tornamos para melhor usá-la. Porque então já tínhamos caído na facilidade de prestar favores. Andei entusiasmado pelos escritórios de conhecidos de minha família, arranjando pistolões para meu amigo. E quando começou a fase de selar papéis, corri por toda a cidade - posso dizer em consciência que não houve firma que se reconhecesse sem ser através de minha mão. Nessa época encontrávamo-nos de noite em casa, exaustos e animados: contávamos as façanhas do dia, planejávamos os ataques seguintes. Não aprofundávamos muito o que estava sucedendo, bastava que tudo isso tivesse o cunho da amizade. Pensei compreender por que os noivos se presenteiam, por que o marido faz questão de dar conforto à esposa, e esta prepara-lhe afanada o alimento, por que a mãe exagera nos cuidados ao filho. Foi, aliás, nesse período que, com algum sacrifício, dei um pequeno broche de ouro àquela que é hoje minha mulher. Só muito depois eu ia compreender que estar também é dar. Encerrada a questão com a Prefeitura - seja dito de passagem, com vitória nossa - continuamos um ao lado do outro, sem encontrar aquela palavra que cederia a alma. Cederia a alma? Mas afinal de contas quem queria ceder a alma? Ora essa. Afinal o que queríamos? Nada. Estávamos fatigados, desiludidos. A pretexto de férias com minha família, separamo-nos. Aliás ele também ia ao Piauí. Um aperto de mão comovido foi o nosso adeus no aeroporto. Sabíamos que não nos veríamos mais, senão por acaso. Mais que isso: que não queríamos nos rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos sinceros.

100 O prazer é abrir as mãos e deixar escorrer sem avareza o vazio-pleno[...]. Clarice Lispector (2010, p. 59).

Era uma relação intensa logo no começo. Conforme diz o narrador/protagonista, depois de uma conversa, sentíamo-nos tão contentes como se tivéssemos nos presenteado a nós mesmos. A comunicação constante entre os dois chega a um ponto de exaltação tal que, quando nada tinham a confiar um ao outro, procuravam com “aflição” um assunto para conversarem. Assim, com o tempo, vieram os primeiros sinais de dissonância dos laços de amizade: às vezes um telefonava, encontrávamo-nos, e nada tínhamos a nos dizer. Junto com a falta de assunto veio à inquietação: experimentamos ficar calados – mas tornávamo-nos inquietos logo depois de nos separarmos. Os artifícios criados para manter o fervor não logravam êxito: minha solidão, na volta de tais encontros, era grande e árida. Cheguei a comprar livros apenas para poder falar deles. Mas uma amizade sincera queria a sinceridade mais pura. Na ânsia de encontrar essa amizade sincera, revelava-se aos poucos o vazio de si mesmo. Nas palavras do narrador: nossos encontros eram cada vez mais decepcionantes. Minha sincera pobreza revelava-se aos poucos. Foram morar juntos: um “rebuliço de alma”, diz o narrador, mas, depois da empolgação: [...] eis-nos dentro de casa, de braços abanando, mudos, cheios de amizade. As férias que passaram juntos demarcaram o início de uma verdadeira aflição. Assim diz o narrador: ele, a quem eu nada podia dar senão minha sinceridade, ele passou a ser uma acusação da minha pobreza. Aqui podemos aludir, então, a condição fundamental do sujeito psicanalítico, um ser da falta. Assim podemos pensar que neste ponto aparece o encontro do sujeito com o vazio de si mesmo e os artifícios criados para tentar manter o mesmo fervor, mas que não logravam êxito: [...] eu começava a me sentir vazio. Nossos encontros eram cada vez mais decepcionantes. Minha sincera pobreza revelava-se aos poucos. Assim, o vazio de si encontra-se com o vazio do outro. É, portanto, um encontro com a falta em que cada um só pode ofertar exatamente aquilo que não tem, cada um dá sua própria incompletude. No Seminário 8, “A transferência” Lacan (1960-1961/1992) afirma: “[...] o amor é dar o que não se tem”. (p. 41). A constatação da pobreza pode, então, pode referir-se ao fato de que ambos nada têm a dar que satisfaça plenamente um ao outro. Esse nada imerso no Real do desejo, nem pela linguagem se manifesta, permanece não sabido, e um dia vem à tona, revelando a

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clandestinidade das máscaras. No Seminário 17, “O avesso da psicanálise”, Lacan (19691970/1992) fala novamente sobre o amor e o que comporta este sentimento: “que haja amor à fraqueza, está aí sem dúvida a essência do amor. “[...] O amor é [...] aquilo que poderia reparar essa fraqueza original”. (p. 49). Por isso, para tentar preencher o vazio criam-se ilusões, fazem-se semblantes: ler livros apenas para ter sobre o que falar. Na medida em que a relação ganha contornos de uma maior intimidade desvelando o vazio, o semblante aparece como uma tentativa de manter firme a amizade. De acordo com Lacan (1971/2009), Seminário 18, “Tudo que é discurso só pode dar-se como semblante [...]”. (p. 15). Portanto, o semblante é aquilo que aparece, quando a verdade do sujeito, isto é, seu vazio e incompletude se desvelam. Carlos Camargo (2009), em seu texto “Semblante e verdade” comenta: Se o semblante é o que aparece, o que se mostra, o que faz parecer, há nessa visada uma estampa de verdade, a própria verdade do sujeito, a verdade entendida como aletéia29, num movimento dialético de velamento-desvelamento, onde a marca do real se apresenta como a impossibilidade de tudo mostrar ou tudo esconder. (p. 2).

Esse velamento-desvelamento do Real que se expressa como uma falta pode ser aquilo que o narrador chama de acusação de minha pobreza, de nada ter para dar, além da sinceridade, do vazio. Mesmo estando juntos sentiam a solidão: [...] a solidão de um lado e do outro, ouvindo música ou lendo, era muito maior do que quando estávamos sozinhos. E mais que maior, incômoda. Não havia paz. Sem saída, o semblante novamente faz trégua: foi quando meu amigo teve uma pequena questão com a prefeitura. Não é que fosse grave, mas nós a tornamos para melhor usá-la. Porque então já tínhamos caído na facilidade de prestar favores. Entretanto, por mais favores que se faziam, encontravam-se sempre com o vazio e impossibilidade de satisfação. Ao final, era sempre o Real (o inominável) que se fazia presente, retornava. Esta é uma característica do Real, como aponta Lacan (1954-1955/1985), no Seminário 2, “[...] o fato de ele voltar, seja onde for, ao mesmo lugar”. (p. 372-373). Lacan (1964/1996) retoma essa mesma questão no Seminário 11, quando afirma: “O real é aqui o que retorna sempre ao mesmo lugar – a esse lugar onde o sujeito, na medida em que ele cogita, onde a res cogitans, não o encontra.” (p. 52). Portanto, o Real é aquilo que está sempre no lugar onde ele é ignorado, não pensado, isto é, um não lugar. 29

Do grego Aletheia que significa desvelamento, isto é, retirar o véu que recobre as coisas para saber como elas realmente são.

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Nas várias formas de prestar favores percebemos também a repetição: comprar livros, ajudar o amigo com a prefeitura, morar juntos. Todas essas ações visam da conta de manter o entusiasmo da amizade, sem lograr êxito. Em cada atitude, portanto, uma roupagem nova da repetição, repetição da própria pobreza, daquilo que não se tem para dar, da falta existencial. De acordo com Maliska (2010), “a repetição é real, pois a repetição traz a falta, que aparece de diversas maneiras; o que se repete é a falta, e a falta faz com que isso se repita. A repetição é o desejo, é a pulsão”. (p. 74). A repetição tem uma faceta de trazer o mesmo fenômeno em novas roupagens, como afirma Maliska (2010), “a repetição traz o novo, o diferente, mas ela não é pura novidade, o que se repete é a falta[...].” (p. 75). Lembremos o caso do Fort Da descrito por Freud (1920/1996) em “Além do princípio do prazer”, no qual o elemento fundamental repetido na brincadeira da criança é a questão da ausência da mãe. E exatamente esta ausência exposta na brincadeira o fator determinante da repetição. Como assinala Freud (1920/1996) No caso da brincadeira de criança, parece que percebemos que as crianças repetem experiências desagradáveis pela razão adicional de poderem dominar uma impressão poderosa muito mais completamente de modo ativo do que poderiam fazê-lo simplesmente experimentando-a de modo passivo. (p. 46).

Portanto a criança repete e repete a brincadeira como uma forma de poder lidar com seu próprio desamparo. Parece que está é uma situação idêntica à qual o narrador/protagonista do conto Amizade sincera vivencia, isto é, ao realizar favores na tentativa de manter a relação de amizade, repete, em diferentes formas, a própria condição de sua incompletude.

7.2.1 O outro e o sofrimento O inferno... são os outros30 Jean Paul Sartre

Em o “Mal-estar na civilização” Freud (1930b[1929]/1996) fala sobre as três direções de onde o sofrimento pode advir. Dentre elas, põe em destaque a questão do sofrimento atribuído ao outro, isto é, de como este outro pode nos fazer sofrer. Vejamos o que nos diz Freud (1930a[1929]/1996), O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, 30

Extraída da peça teatral “Entre quatro paredes”, escrita por Jean Paul Sartre (1944), na voz da personagem Garcin.

103 finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro. Tendemos a encará-lo como uma espécie de acréscimo gratuito, embora ele não possa ser menos fatidicamente inevitável do que o sofrimento oriundo de outras fontes. (p. 84-85).

Dessa forma, a dor e o sofrimento que o protagonista experimenta, advindos da relação com o amigo, parece que se dá no momento em que ele percebe a finitude, isto é, o que não se pode dar, e por isso realiza favores para preencher a falta. Tudo isso leva aos poucos ao distanciamento. Em “Psicologia de grupo e a análise do ego”, Freud (1921/1996) afirma que devemos ter sempre em mente a natureza daquilo que mantém os relacionamentos humanos. Tomando como exemplo uma parábola de Schopenhauer, Freud(1921/1996) nos diz: “de acordo com o famoso símile schopenhaueriano dos porcos-espinhos que se congelam, nenhum deles pode tolerar uma aproximação demasiado íntima com o próximo”. (p. 112). A parábola dos porcos-espinhos, que Freud (1921/1996) transcreve numa nota de rodapé, diz o seguinte: Um grupo de porcos-espinhos apinhou-se apertadamente em certo dia frio de inverno, de maneira a aproveitarem o calor uns dos outros e assim salvarem-se da morte por congelamento. Logo, porém sentiram os espinhos uns dos outros, coisa que os levou a se separarem novamente. E depois, quando a necessidade de aquecimento os aproximou mais uma vez, o segundo mal surgiu novamente. Dessa maneira foram impulsionados, para trás e para a frente, de um problema para o outro, até descobrirem uma distância intermediária, na qual podiam mais toleravelmente coexistir. (p. 112)

Utilizando-se desta parábola, Freud busca refletir acerca da maneira pela qual os serem humanos se relacionam afetivamente entre si, indicando haver uma impossibilidade de um contato mais íntimo com o outro. Nesse sentido, destaca os espinhos como sendo um mal mais determinante que o primeiro, o frio. Para Freud (1921/1996), As provas da psicanálise demonstram que quase toda ralação emocional íntima entre duas pessoas que perdura por certo tempo – casamento, amizade, as relações entre pais e filhos – contém um sedimento de sentimentos de aversão e hostilidade, o qual só escapa à percepção em consequência da repressão. Isso se acha menos disfarçado nas alterações comuns entre sócios comerciais ou nos resmungos de um subordinado em relação ao seu superior. (p. 112).

Betty Bernardo Fuks (2003) tem uma definição interessante sobre isto. Para esta autora trata-se de “viver junto separadamente”, indicando a necessidade de haver um distanciamento moderado entre eu e o outro.

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7.2.2 O autoconhecimento Não obstante, a dor e o sofrimento são elementos que podem promover conhecimento e autoconhecimento. Mauro Pergaminik Meiches (2000), no livro “A travessia do trágico em análise”, traz uma reflexão sobre a questão da dor e do sofrimento e toma como mote para esta reflexão a questão da tragédia, conceito posto em destaque pelo filósofo grego Aristóteles. Meiches (2000) aborda um capítulo acerca da questão da catarse e do conhecimento através da dor em Aristóteles. Meiches (2000) aponta a importância do trágico e sua relação com o conhecimento quando afirma que “o trágico estaria ligado intrinsecamente a esse trabalho de conhecimento que passa inexoravelmente pela dor. Sentir não seria suficiente para definir uma condição trágica; é preciso também sabê-la trágica”. (p. 22). Entretanto, nem a questão da dor ou do sofrimento comporta por si só todo o sentido do trágico. Para Meiches (2000), A dor em si não caracteriza o trágico, nem tão pouco o sofrimento. Outros gêneros tematizaram-nos e ainda o fazem hoje em dia. Esses temas podem ser considerados trágicos quando está em jogo o conflito entre duas ordens de coisas. O irremediável da questão especialmente trágica diz respeito a uma contradição que não tem como se resolver, a não ser em uma convivência turbulenta entre partes diferentes. (p. 31)

Para este autor, a tragédia funciona “como um dar-se a conhecer através da experiência da dor. O conhecimento trágico dói: é assim que se aprende sobre si mesmo. Se a dor não estiver envolvida no processo de conhecimento, este pouco dirá àquele que o atravessa”. (p. 45). É isto que o protagonista do conto parece vivenciar. Na medida que se dá conta de sua incompletude e de seu vazio e, ao mesmo tempo, da impossibilidade do outro em atender tais demandas, compreende que o semblante é necessário em todos os relacionamentos humanos. Como num insight, o narrador parece reconhecer a própria condição de um ser incompleto. Assim nos diz o narrador: pensei compreender por que os noivos se presenteiam, por que a mãe exagera nos cuidados ao filho. Foi, aliás, nesse período que, com algum sacrifício, dei um pequeno broche de ouro àquela que é hoje minha mulher. Isto é, se faz semblante posto que não possa ser. Nada pode preencher o vazio do outro. Ao final veio a separação. Não há palavras para dizer. Resta o silêncio: silêncio em si, silêncio entre os amigos. Por fim, um aperto de mão comovido foi nosso adeus no aeroporto. Sabíamos que não nos veríamos mais, senão por acaso. Mais que isso: que não queríamos

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nos rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos sinceros, extremamente íntimos e sinceros em seus vazios, posto que encontraram-se com a falta irremediável que um ou outro não podem completar. Resta, portanto, aos amigos viverem de ausência. Sobre ausência, aliás, Carlos Drummond de Andrade escreveu um interessante poema: Ausência Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim.

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7.3 Terceiro Conto: Amor Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação. Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranquilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida. Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem. No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e escolhera. Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranquila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera. O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da

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tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher. O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto. A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego. O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranquila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles. Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mastigava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá- lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados. Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgira-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida. Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito. A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas na rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram. O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa. Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não

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explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite — tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca. Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite. Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico. Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo. A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si. De longe via a aleia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho. Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais. Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aleia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pelos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu. Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber. Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranquila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos. Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante. As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos, enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno. Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo. Mas quando se lembrou das crianças, diante

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das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto. Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se trêmula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. O sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o. Deixou-se cair numa cadeira, com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha? Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver. Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lado dos que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranquilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar à sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar o leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão. Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! Pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar. Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água — havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali

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na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos. Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos. Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu. Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico. Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! Pensou correndo para a cozinha e deparando com seu marido diante do café derramado. — O que foi?! Gritou vibrando toda. Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo: — Não foi nada, disse, sou um desajeitado. — Ele parecia cansado, com olheiras. Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago. — Não quero que lhe aconteça nada, nunca! Disse ela. — Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo. Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranquila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver. Acabara-se a vertigem de bondade. E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.

111 [...] sei que não posso viver automaticamente: preciso de amparo e é do amparo do amor. Clarice Lispector (2010, p. 107).

A vida da personagem é tecida sob o manto de uma aparente regularidade de ações: cuidar da casa, dar atenção aos filhos, atender às demandas do marido. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa. [...] Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera.

A vida em seu cotidiano é bastante ordinária para Ana. “Todo dia ela faz tudo sempre igual” como diz Chico Buarque na canção “Cotidiano”, ao realizar as mesmas tarefas, sem que nada lhe pudesse fugir ao controle, nem rompesse tudo que, repetidamente, costumava fazer. A aparente normalidade de seu viver ganha novo contorno com uma cena que Ana vivencia, dentro do bonde, ao voltar para casa, quando ela percebe um homem parado no ponto, e esta cena a transtorna e desnorteia. Portanto, o ponto central da narrativa é esta cena aparentemente banal desse homem: um cego mascando chicletes. Neste momento, Ana sente-se tomada por essa visão que interpela seu modo de viver. E a narradora descreve o seguimento da cena: Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir - como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio.

Esta cena da visão de um cego causa em Ana uma sensação de estranheza de tal modo que ela, impactada por esse evento, experimenta uma afeto de angústia. Nas palavras da narradora: [...] alguma coisa intranquila estava sucedendo. Olhando de uma perspectiva psicanalítica, nesta visão do cego mascando chicletes, ao que tudo indica, há a experiência de deslocamento de elementos representativos na cadeia de significantes singulares para Ana, isto é, há um processo de identificação com o homem cego, numa perspectiva do duplo, apontada por Freud (1919/1996), bem como no plano do imaginário lacaniano no qual há um processo de alienação da imagem do Eu no outro. Tais elementos se condensam como um significante metafórico para Ana, já que a percepção de um cego mascando chicletes não seria em si um evento que mobilizasse afetos tão intensos em qualquer pessoa, mas que para ela parece evocar representações significantes

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absolutamente singulares, como se ela pudesse ver a si mesma numa revisão da própria vida, em relação ao próprio desejo. Assim, um cego a fez ver como estava cega em relação a sua rotina medíocre, e a sua inocente sensação de domínio e controle de tudo e todos. O cego a fez ver o desamparo. Essa chave de leitura está ancorada na própria narrativa indicando que Ana vivia uma vida aparentemente confortável, um lugar comum, uma experiência cotidiana de repetição, mas que favorecia a ela pensar que habitava um lugar protegido, e que tudo estava sob seu controle. Assim, esquivava-se do desamparo. Ana não fazia outros percursos, só os conhecidos, e mantinha uma rotina que a protegia de si mesma. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranquilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida. Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se.

Essa sensação de inquietude vai de encontro à cena do cego mascando chicletes desvelando, aos poucos, esse emblema de lidar com própria existência, entendida como um campo de possibilidades e ao mesmo tempo do limite. Possibilidades de realização parcial de desejo, de maneira contínua, mas que sempre desemboca numa falta de ser que acompanha o sujeito até a morte. E um cego a fez enxergar tudo. No conto de Hoffman Freud já indica que o medo de perder os olhos que assombra o protagonista, tem, do ponto de vista da psicanálise, uma relação direta com o complexo de castração, que implica o auge do processo de perdas com as quais cada sujeito tem que lidar. Neste sentido, podemos inferir que também a visão do cego neste conto de Clarice Lispector enseja também um desvelamento do limite que a castração impõe, isto é, a marca da incompletude do desejo. Então, o choque que Ana experimenta é um choque existencial singular, isto é, um sujeito que se identifica com a cena que pode remeter àquilo a que ele, por meio inconsciente, desejou manter recalcado. Portanto, nesta figura simples, sem aparente expressividade, compondo como que uma paisagem (o cego mascando chicletes), aparece implícita essa dimensão da vida em sua duplicidade: a realização de desejo que esbarra sempre numa falta.

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Essa cena, tão corriqueira quanto à visão do cego para Ana, remete ao sentido do existir humano – sua finitude – e tenciona a relação do sujeito consigo mesmo, com os outros e com o mundo. Tudo isso vivenciado por meio de elementos ou eventos da realidade que podem constantemente remeter cada sujeito à sua condição existencial de um ser incompleto e finito. Logo, o mundo torna-se não domesticado, ameaçado pelas não certezas, o cotidiano pode ser a qualquer momento apoderado palas angústias, projeções, identificações e inúmeras cenas como um cego mascando chicletes que pode despertar a crise de que a realidade externa transcende a fronteira da realidade interna e o fim das certezas. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão - e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

A realidade, portanto, se faz num movimento constante de interpelação do sujeito e o inquieta, posto que lança sempre o desafio do desejo e de sua impossibilidade de plena realização, dados os limites imperiosos que a existência impõe. A realidade, transposta por meio de metáforas, desvela, então, o mundo interior do sujeito. De acordo com Rosenbaum (2011), “na tensão entre palavra e imagem, a escrita clariciana almeja ser e não dizer, pulsar e não representar, mesmo que pra isso ela precise compactuar com a palavra, efetuar a sublime troca de um todo impossível pelos limites do signo”. (p. 236). No caso da obra ficcional clariciana, temos um excelente referencial acerca desse mundo interior, reflexivo e acometido por estranhamentos transformadores do cotidiano que fazem seus personagens terem suas vidas reorganizadas, transformadas, despidas de sentido, de lógica racional e recobertos de momentos avassaladores de transformação. Momentos esses de reflexão sobre o estar no mundo, o sentido da existência ou sobre o porquê de inúmeras repetições. Obras como as de Clarice Lispector apresentam-se como vivências que desembocam numa ação que produz uma peripécia. Tais vivências evidenciam o dilema entre viver nas convenções estereotipadas, segundo padrões comportamentais, falas ideologicamente corretas e manter-se na segurança do cotidiano massificante que viabiliza um olhar massificado da realidade externo-objetiva ou cair na marginalidade. As palavras da narradora apontam nessa

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direção: Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Notadamente Ana cumpria um ritual social que dela esperavam, atendendo a expectativa que o olhar externo lhe exigia: o homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Tudo de acordo com sistemas de padronização dos modos de ação do sujeito enquanto ser social. De acordo com Rosenbaum (2011), “a perfeição, em oposição à falibilidade diária, mostra a coerência desta concepção em Clarice: a onipotência fantasiosa, marca do narcisismo primário onde nos refugiamos para tolerar a angústia do nascimento”. (p. 223). Como vimos ato do nascimento representa em Freud (1926 [1925]) o protótipo da angústia. 7.3.1 O Estranho como desencadeador da peripécia. Cabe, a partir desses apontamentos da obra ficcional de Clarice Lispector – Amor (1960/2009) buscarmos fazer uma interlocução com o texto o Estranho, de Freud (1919) e a peripécia, elemento fortemente característico da arte grega, e que comporta a marca do imprevisível. De Acordo com Aristóteles (2002), “Peripécia é uma viravolta das ações em sentido contrário, [...] segundo a verossimilhança ou necessidade”. (p. 30). No caso das tragédias gregas isso ocorria sempre que o herói experimentava uma mudança radical em sua história. A quebra de uma determinada rotina, ocasionada por um evento inesperado, promovendo uma mudança radical na percepção da realidade, evidencia o fenômeno da peripécia, isto é, realiza uma modificação no modo de agir dos personagens, quebrando a sequência de ações até então vivenciadas. Nesse sentido há um fenômeno literário denominado epifania, no qual os personagens vivenciam uma revelação, após a experiência de um evento perturbador, gerador de peripécia. O termo epifania também é de origem grega – epiphaneia, que significa manifestação ou apresentação. No conto Amor a epifania acontece quando a mascara do cotidiano da personagem Ana se esfacela, desvelando sua rotina e seu vazio, sua vida de aparência. Esse momento ocorre com a visão do cego, evento arrebatador que a leva a um encontro consigo mesma. Affonso romano de Sant’Ana (1973) destaca exatamente esse caráter rotineiro da vida no qual se principia o fenômeno da epifania, resultando em algo maior. De acordo com Sant’Ana (1973), a epifania é o “relato de uma experiência que a princípio se mostra simples e rotineira,

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mas que acaba por mostrar toda a força de uma inusitada revelação. É a percepção de uma realidade atordoante”. (p. 187). Para Olga de Sá (1979), “[...] a epifania é um modo de desvendar a vida selvagem que existe sob a mansa aparência das coisas [...]”. Assim, a personagem Ana vive um processo de revelação, isto é, de epifania que, por conseguinte, gera uma peripécia, tendo por isso sua vida radicalmente modificada. Para Sant’Ana (1973) a epifania perpassa toda a obra clariciana. Esse autor destaca que, “em Clarice a palavra epifania não aparece, mas toda atmosfera se circunscreve por outros vocábulos e pelo ritual da própria escrita. Vocábulos surgem explicitando o campo semântico da revelação[...]”. (p. 199). Nessa perspectiva, Clarice Lispector é uma das autoras ficcionais que descreve em várias obras (A paixão segundo GH – A hora da Estrela – Felicidade Clandestina – Visão do Esplendor – Laços de Família) seus protagonistas numa crise existencial, a partir de um evento corriqueiro onde tudo se transforma e se revela, de forma súbita, desembocando num efeito de peripécia, isto é, de uma transformação radical, a partir do arrebatamento que tal evento principia. Vejamos: O bonde deu uma arrancada súbita [...]. Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível.

Essa perplexidade expressada por Ana demonstra como os momentos de epifania são sempre seguidos por rupturas de valores, questionamentos existenciais, antípodas que se veem confrontadas (amor x ódio – vida x morte). Esses momentos trazem consigo a possibilidade de fazer emergir o Real do desejo, isto é, aquela instância que, segundo Lacan (1964/1996), está aquém do inconsciente, relacionada ao princípio do prazer e para o qual não há palavra capaz para dizê-lo. Sendo assim, o Real pode surgir de um encontro que descentraliza o eixo, arrebata o sujeito, posto que evoca representações recaldas, cujos significantes interligam-se em cadeia. Sendo assim, podemos inferir que Ana é invadida pelo Real quando se depara com o cego mascando chicletes, fica tão atordoada com o impacto dessa visão que desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite. Ana pode ter encontrado no cego mascando chicletes o seu próprio duplo, ao ver-se nele, acessando marcas do seu próprio inconsciente. Quanto ao duplo, Freud (1919/1996)

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trabalha esse conceito no texto “O Estranho”, definindo-o como um processo de identificação entre pessoas, de modo a trazer essa marca de uma pessoa espelhada na outra a ponto de aquele que se identifica ficar “em dúvida sobre quem é o seu (self), ou substitui o seu próprio eu (self) por um estranho.” (p. 252). No caso de Ana, a identificação acontece por meio da visão, pelo olhar. De acordo com Lacan (1964/1996), o olhar é um dos elementos que contém o objeto a – causa de desejo. (p. 228), além do que pode simbolizar a falta estrutural do sujeito implicada na castração enquanto um fenômeno simbólico. Para Lacan (1964/1996), “o olhar leva consigo a função mortal de ser em si mesmo dotado [...] de um poder separativo.” (112). É exatamente esse olhar que a petrifica, paralisa e embriece. Ao olhar o cego, Ana diz: um cego me levou ao pior de mim mesma. Então, a partir dessa cena é que Ana passa a se ver como quem não vê. Nesse momento se desvela sua falta, uma falta a ser. Lacan (1954-55/1995) diz que é em função da falta que o sujeito torna-se consciente de si. Portanto, no exato instante em que Ana se vê frente ao imperfeito, ao que não vê, surge-lhe uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. Como já indicamos, os momentos de peripécia são impactantes, pois dão origem a ruptura de valores, transformações existenciais, nada será como antes. Diante da visão do cego mascando chicletes, Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar - o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ela havia deixado para trás algo de si, com o qual agora se reencontrara, levando-a a uma reflexão sobre suas escolhas até aquele momento. Esse reencontro é o momento do trauma em que a cena desvela o desejo, promovendo um retorno do recalcado e abrindo caminho para a peripécia. No caso de Ana, esse momento se materializou naquela visão do cego, tido como um mal inevitável: poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito. A peripécia é essa manifestação súbita que geralmente, a partir de uma cena rotineira, promove uma inusitada revelação de sentido até então nunca percebida, há um insight sobre as coisas e sobre si mesmo. Por isso que o evento desencadeador da peripécia permite uma reordenação de nosso ser no mundo, é um descortinar do que encobria muito de nós mesmos, é uma passagem do autômato para o autônomo em compromisso consigo mesmo.

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Em termos psicanalíticos o sujeito está implicado em suas escolhas e deve assumir de um modo ou de outro (negação ou ruptura) o que delas advém, diante dos eventos que a vida impõe vivenciar. Somente no encontro consigo é que o sujeito pode promover essa transformação existencial na qual está posto o sentido da peripécia. 7.3.2 O efeito do estranho. O efeito de estranhamento que os personagens de Clarice experimentam a partir de determinados eventos ou fatos da vida cotidiana podem ser refletidos numa perspectiva freudiana, no texto O Estranho de 1919. Existem situações nas quais se vivencia um afeto de estranhamento que, na realidade, subjetivamente implicam numa condição de familiaridade com algo da condição interna de cada sujeito. Isto significa que algo do próprio sujeito, de algum modo desejado, mas que fora recalcado, para evitar a extinção do próprio eu, emerge provocando angústia. Tais eventos, não sendo alheios ao sujeito, podem referir-se a alguma coisa submetida à castração. A angústia que Ana experimenta pela visão do cego representa uma ameaça de desintegração do próprio Eu. Como vimos, em Freud (1919/1996) o medo de ficar cego tem uma relação simbólica com a questão da castração e que, portanto, representa a condição faltosa do sujeito em sua subjetividade pela qual, inclusive, este se organiza. Assim, Ana organiza a vida distanciando-se do desejo, vivendo uma vida previsível, mesmo que a custa de certo incomodo. Para ela, sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. A vida implicada no risco de viver intensamente lhe amedrontara. Desse esquecimento de si, emergiu para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha - com persistência, continuidade, alegria. Com o lar e o casamento, pôs fora do seu alcance o que vivera do seu próprio desejo na juventude, criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera. Criando um mundo de defesa contra o desejo, visa subtrair de si mesma a condição desejante de sua existência. Mas, não desejar é impossível ao sujeito faltoso. Para Lacan (1964/1996), aliás, “não querer desejar, e desejar, são a mesma coisa. Desejar comporta uma fase de defesa que o torna idêntico a não querer desejar.” (p. 222).

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É bastante interessante a perspectiva freudiana no artigo “O estranho”, quando ele aborda a questão do significado das palavras heimlich cujo significado remete a algo do que é intimo e confortável ao sujeito e unheimlich como seu oposto para efetuar uma junção dos termos para dizer que o mais interessante é que “o que é heimlich vem a ser unheimlich.” (p. 242). Como acontece com a personagem Ana, diante da visão do cego, podemos indicar que o efeito de estranhamento remete justamente ao sentido oposto do que a ação visa representar. Nesse caso a repulsa faz, pelo efeito do estranhamento, uma referência inconsciente ao desejo recalcado. Assim, como afirma Freud, “a fonte de sentimento de estranheza não seria, nesse caso, portanto, um medo infantil; mas, antes, seria um desejo ou até mesmo simplesmente uma crença infantil”. (FREUD 1919/1996, p. 251). O estranho então toca a realidade interna do sujeito mobilizando-o na direção do desejo que se manifesta numa determinada cadeia significante que aflora por meio de reminiscências, fazendo emergir o recalcado. No caso de Ana, ela buscava, intensa e inconscientemente, afastar tais elementos. Seu esforço parecia confortá-la. Ana vivia como se pudesse evitar o inesperado que a vida pode trazer. E pensava poder dominar seu desejo, criando um mudo onde se sentisse protegida de si mesma. Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido.

A aparente regularidade da vida lhe trazia então conforto. Era nessa regularidade do mundo que Ana se apoiava, pelo menos na regularidade do mundo que ela criou para si. Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro.

Ana, sem se dar conta, protegia-se da sua condição existencial de falta e, consequentemente, do desejo como efeito dessa condição de um ser faltoso, em suma, ela se protegia da castração. Sentia, ilusoriamente, viver uma vida completa, plena de tudo aquilo que poderia fazê-la uma pessoa feliz. Suas atitudes e ações visavam manter uma vida tranquila em que nada pudesse acordar o ser que realmente era. Seu viver transformou-se numa rotina completa:

119 Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranquila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos.

Ela parecia não querer saber que fazia parte desse mundo de imperfeições e de limitações, cujo desejo de completude é apenas uma ilusão. Assim, alimentava a própria vida no esquecimento inconsciente de si, na dedicação total às outras pessoas, passando a se ver como um reflexo delas. Entretanto, uma cena simples e corriqueira irrompe com uma força aterradora sobre Ana. Toda segurança que sentia desaba, um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca. De acordo com Plastino (2008), “a piedade que Ana começa a experimentar (e o nome Ana, de origem hebraica, significa ‘aquela que tem compaixão, misericórdia’) parece ser menos pelo cego do que por si mesma, por ter tanto tempo permanecido castrada para o desejo”. (p. 115-116). Ao descer do bonde, sentindo-se perdida, afetada pela cena do cego, com náusea, Ana adentra ao Jardim Botânico, trajeto da sua casa, e, em êxtase, contempla a exuberância da vida que emana da natureza: a vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regula sua respiração. Ela adormecia dentro de si. Seu olhar para tudo ao redor se transformou, o Jardim era outro, as flores eram outras, tudo passou a ter um colorido e beleza diferentes no mesmo Jardim de sempre, mas que agora era visto por outro olhar, até a morte das plantas é analisada como um espetáculo inerente à vida. Então ela se sentiu seduzida pela beleza e o horror que a vida pode comportar: o viver e o morrer. No Jardim a crueldade do mundo parecia-lhe tranquila, vida e morte se entrelaçavam todo momento. Assim descreve a narradora: a moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo fascinante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. Tudo no Jardim era movimento: a decomposição era profunda e perfumada. Em termos psicanalíticos estamos falando de pulsão de vida e pulsão de morte, descritas por Freud em Além do princípio do prazer (1920), e da tensão entre prazer e desprazer que as entrelaçam. Ao final Ana lembra-se de casa, agarra o embrulho e sai. O narrador arremata: o Jardim era tão bonito que ela teve medo do inferno. Em vários textos de Clarice Lispector, inclusive no conto Amor, Resenbaum (2011) acredita haver “um estado enlouquecido que ameaça o modus vivendi social, guardando, no

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entanto, uma verdade que faz do sujeito um ser que entende, mas não pode compartilhar esse saber sob preço da própria destruição”. (p. 226). Desse modo, paradoxalmente, é o estranho, esse evento inusitado que dá expressão àquilo que está repremido. E se consegue dar expressão é porque, na verdade, se trata de algo que para o sujeito lhe é peculiar. Por isso, esse lugar que se sabe, mesmo sem saber – inconsciente - esse lugar que o estranhamento possibilita penetrar, é aí onde se pode encontrar o que se tem de mais familiar ao sujeito. É nesse sentido a afirmação de Freud (1919/1996) de que “o estranho provém de algo familiar que foi reprimido”. (p. 264). E somente se torna estranho porque não é aceito, embora seja próprio do sujeito, é repelido, causando esse efeito de esquiva diante de algo que possa evocar sua presença. De acordo com Freud, o afeto livre, antes ligado a uma representação pulsional transforma-se em ansiedade. Por isso, “deve haver uma categoria em que o elemento que amedronta pode mostrar-se ser algo reprimido que retorna”. (FREUD 1919/1996, p. 258). A visão do cego denuncia para Ana aquilo que ela não quer ver, desvelando o sentido de uma falta que aciona o desejo. Segundo Plastino (2008), a existência de Ana estava ancorada num gozo que a vivência de uma espécie de paraíso maternal acalentava a ilusão de experimentar. Nessa experiência vivida como fantasia é que “surge o Real da castração, violento, desestruturante, atuando em Ana de maneira que lhe cai ao chão a rede de compras, arrebentando-se e, sobretudo, arrebentando a rede de significantes de repetições com que tecera sua existência”. (p. 114). Esse aparecimento do Real na experiência da visão do cego faz também emergir a condição do próprio desejo. Esse movimento do desejo que ocorre, portanto, em relação ao cego “representa, assim, a humanização da personagem que se vê e se aceita como castrada, incompleta, e, portanto, desejante de um mundo também aceito como imperfeito”. (PLASTINO 2008, p. 116). A visão do cego propicia a Ana, de certo modo, uma aceitação de si própria. Esse efeito de estranhamento é aspecto importante da literatura como Freud já havia indicado, pois a construção literária se lança, em sua liberdade criativa, em reconstruir aquilo que há de mais essencial do sujeito. Essa função que exerce com maestria está para além das possibilidades de construir no plano da realidade tais sensações, visto que, psicanaliticamente falando, é na realidade cotidiana que o sujeito constrói as formas mais variadas de sublimação para lidar com seus próprios fantasmas, com sua falta e com seu desejo.

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A literatura promove, além disso, uma grande modificação daquilo que foi reprimido, já que atua o plano do fantasiar, daí o conteúdo literário não poder ser submetido a nenhum teste de realidade. O que vemos no texto de Clarice Lispector é que, com suas criações literárias, ela reivindica a singularidade do sujeito, isto é, que ele habite o mundo com suas idiossincrasias. Psicanaliticamente falando, movido pelo desejo que o estrutura a partir de uma falta perene. Em tudo isso aparece para Ana um apelo pela vida, convidando-a a construir uma nova cadeia significante, a fim de que possa existir no mundo como uma pessoa plena de sua incompletude, elaborando suas repetições e dando um sentido novo às perdas que representam a condição de falta. Entretanto, como nos lembra Rosenbaum (2011), Ana era “incapaz de incorporar o êxtase, a epifania, a revelação do amálgama de que o mundo é feito, experiência extraordinária a que se entregou por algumas horas no Jardim Botânico”. (p. 222). À volta para casa pode indicar uma renúncia do desejo, o qual Ana troca pela segurança que o lar representa para ela. A atitude do marido traz para Ana o amparo diante da angústia do viver mediante o conhecimento de si mesma, do seu desejo: é hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver. De acordo com Rosenbaum (2011), na volta para casa, onde pode encontrar a segurança do lar, está implicada uma questão posta pelo narrador: “caberia na sua alma diária (de Ana) tanta louca verdade?” (p. 222). Em Ana encontramos aquilo que Rosenbaum aponta como sendo a “domesticação da loucura”, no sentido de que esta personagem “expõe o conflito entre ser o que se é e ser o que se dever ser”. (p. 222). Finalmente, para Ana, acabara-se a vertigem de bondade. E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia. Como diria Fernando Pessoa, SEGUE O TEU CAMINHO Segue o teu destino, Rega as tuas plantas, Ama as tuas rosas, O resto é a sombra De árvores alheias A realidade

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Sempre é mais ou menos Do que nós queremos. Só nós somos sempre Iguais a nós-próprios. Suave é viver só. Grande e nobre é sempre Viver simplesmente. Deixa a dor nas aras Como ex-voto aos deuses. Vê de longe a vida. Nunca a interrogues. Ela nada pode Dizer-te. A resposta Está além dos deuses. Mas serenamente Imita o Olimpo No teu coração. Os deuses são deuses Porque não se pensam.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Na interface entre a psicanálise e a literatura, encontramos uma possibilidade de articulação das forças conscientes e inconscientes que atuam na mediação de uma condição de existência possível. Dos três contos analisados neste trabalho pudemos destacar o aspecto predominante do desamparo como um pano de fundo dessas narrativas. Em Felicidade clandestina, a protagonista aparece sempre numa condição de dependência de algo que outro possa lhe oferecer, seja o livro – que ela nem chega a ler – seja o apoio da mãe de sua amiga que interrompe suas infindáveis idas e vindas à casa dessa amiga na tentativa de conseguir o tal livro. Outro elemento importante refere-se a aspecto da falta estrutural do sujeito, destacado no conto Uma amizade sincera no qual os amigos nada podem oferecer de si mesmo senão a própria solidão, seus vazios. Isto é, parece não haver possibilidade de que um sujeito seja plenamente capaz de atender as expectativas ou demandas que o outro coloca sobre ele. Portanto, sendo um ser faltoso, cada sujeito somente poderá oferecer de si esta mesma condição faltosa, o que implica o reconhecimento de um limite de satisfação que um relacionamento pode oferecer. No terceiro conto analisado aparece como elemento de destaque o efeito do estranho vivenciado pela protagonista Ana, sobre o qual pudemos inferir a questão da familiaridade com a qual um evento causador de estranhamento pode estar relacionado, como bem descrito por Freud em seu ensaio de 1919, destacando o poder que arte literária tem de retratar tal efeito. Portanto, daquilo que é corriqueiro, de uma aparente banalidade, se descortina um sujeito destinado a vivenciar seus próprios limites e seguir, como consequência disso, um caminho do desejo, herdado como herança desta condição. A literatura, como fonte rica de articulação de palavras capazes de sustentar uma ilusão de completude, encontra no caráter do fantasiar, isto é, da construção de cenários, cenas e personagens, um modo de atribuir sentidos possíveis para realidades não visíveis da subjetividade. A existência se encontra na palavra com seus sentidos variados, suas metáforas como formas de representação simbólica de tudo aquilo que enseja a condição humana. A literatura, ancorada na palavra, é um modo extraordinário não somente de acalentar, mas também de horrorizar a alma humana, posto que sua função seja exatamente aquela de nomear. Conforme nos diz Adélia Meneses (2011),

124 O poeta não apenas nomeia os seres, os bichos, mas dá nome a emoções que de outro modo ficariam para sempre indizíveis, vivências humanas de alto tônus emocional, que ganham possibilidades de expressão – e de comunicação. Há sentimentos sutilíssimos e contraditórios, que só na poesia encontrariam guarida; há pensamentos e percepções apenas esboçados, mas que só através da linguagem poética podem ser formulados. (p. 19-20)

E podemos acrescentar, são formulados como metáforas, já que a palavra também esbarra num limite de não poder dizer tudo. Sendo assim, apenas pode acalentar, de tempos em tempos, já que não pode satisfazer plenamente. Tais elementos encontramos na obra de Clarice Lispector na qual são criados enredos que possibilitam ao sujeito humano atribuir sentidos possíveis a uma existência sem solução. Desta forma, consideramos que esta pesquisa pode indicar que a produção ficcional de Clarice Lispector, fazendo uso da linguagem escrita, trata de temas de interesse da psicanálise. Seus textos revelam um mundo interior de seus personagens que, a partir de eventos tidos como banais, cuja lógica pode ser entendida em relação à produção inconsciente, se recriam numa tentativa de dar um sentido à existência. Uma obra literária densa e impactante como a de Clarice Lispector favorece ao leitor lidar uma sua própria realidade interna, consigo mesmo, ainda que esse encontro implique em um não saber, ou um não desvelamento de todos os seus segredos. Do ponto de vista da psicanálise, estamos falando então de uma realidade interna do sujeito, portanto inconsciente, que contém em si a verdade de cada sujeito. Portanto, a psicanálise e a literatura possibilitam pensar a questão do sujeito desejante que, habitando no plano do inconsciente, não pode vir à tona na verdade absoluta do seu desejo, uma vez que este desejo se configura como uma impossibilidade, já que realizá-lo representaria a o fim. E, ao final, diante da experiência singular que cada sujeito vivencia, e diante da reviravolta que determinados eventos podem provocar na vida de cada um, fazendo emergir um lado avesso reprimido, cabe a cada sujeito dar conta do seu próprio modo de existir. Sem pretensões conclusivas, apenas podemos dizer: de tudo, resta a palavra como possibilidade de invenção de uma realidade que satisfaça parcialmente o desejo. Vale lembrar aqui de um fragmento de uma crônica de Joaquim Ferreira dos Santos (2005), intitulada A MEMÓRIA MENTE MUITO, MAS NÃO FAZ POR MAL – no qual enuncia-se o seguinte:

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“Paulinho da Viola ensinou que a vida não é só isso que se vê. É um pouco mais. Quem haverá de saber, sequer eu, sequer o analista, o bem que me fez o amor inicial?” (p. 162).

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