Cosme e Damião: os santos das guloseimas 1
Ulisses Passarelli
São Cosme e São Damião eram irmãos gêmeos, de origem árabe, médicos, exercendo a profissão na Síria, atendendo à pobreza sem nada cobrar, daí serem ditos anargiros. Por citação do procônsul Lysias, foram presos e martirizados durante o império de Diocleciano, sendo submetidos a terríveis castigos que findaram com a degola, em Egéia, na Silícia, a 27 de setembro de 287. Seus nomes foram inscritos no cânon da missa e no pontificado do Papa São Félix, seus corpos foram levados para um templo em Roma. A devoção a eles espalhou-se pela Europa (Itália, França, Flandres, Espanha, Portugal, etc.), onde fundaram várias confrarias de médicos das quais eram patronos. Também eram evocados nas questões sexuais: mulheres estéreis pediam ajuda aos santos gêmeos para engravidarem. Conseguindo, depositavam nas suas igrejas ou altares o ex-voto de cera, cumprindo a promessa: em forma de pênis. Um tipo de culto fálico. Distribuíam garrafinhas com óleo bento de Cosme e Damião. Diante do altar deles, uma sacerdotisa esfregava o óleo na parte adoentada, que o devoto descobria. Havia também a “incubação”: os doentes dormiam na igreja a eles dedicada para curarem o mal. Da Europa, via Portugal, vieram para o Brasil suas tradições religiosas. Por outro lado, os africanos contribuíram com uma série 1
- Publicado em: Tradição. Informativo da Subcomissão Vertentes de Folclore, n.1, out.1999. São João del-Rei.
de outros costumes e devoções, que se misturando às europeias, passando por alterações, deram no Brasil as tradições de Cosme e Damião. Entre os africanos havia o culto aos gêmeos, símbolo da fecundidade, da capacidade produtora. Variava o nome, com o fundamento semelhante das divindades gêmeas: Mabaças (entre os negros bantos), Ibeiji (nagôs), Hoho (jejes). Também os africanos escravizados na América Central levaram para lá estas devoções, com os nomes de Jimaguas (em Cuba) e Marassas (no Haiti – possível alteração de Mabaças). Só que por lá se preservou a forma africana e aqui a cristianizada, no sincretismo com o culto dos santos Cosme e Damião (27 de setembro) e Crispim e Crispiniano (25 de outubro). O sincretismo no Brasil foi ainda favorecido pela aproximação com os filhos do orixá Xangô, Dadá e Ogun, cultuados nos candomblés. Com toda a mistura surgiu para tudo fundir o brasileirismo Dois-dois, para designar os gêmeos divinos. O culto aos gêmeos é ainda associado em algumas partes do país a outras divindades africanas, Doú (Doum) e Alabá. Pela tradição afro, o filho que nasce após um parto de gêmeos ou o trigêmeo é chamado doum, e o quarto, alabá. Em algumas imagens são encontráveis estas divindades, em tamanho menor que Cosme e Damião, junto deles, com a mesma feição e trajes. Doum parece ser forma sincrética dos gêmeos, personificada, daí os cantos em sua honra dizerem: dois-dois, dois em um... doum. Cada qual com sua crença, como garante nossa constituição e é esperado, fruto que somos de um imenso caldeirão étnico/cultural. Homenagens ex-votivas, cantos, danças, peditórios a São Cosme e Damião garantem, pela tradição religiosa, que as grávidas não tenham gêmeos (mas se obtiverem serão protegidos pelos santos), afastamento de epidemias, fartura alimentar, proteção contra doenças sexuais.
Uns escrevem pedidos a São Cosme e São Damião em cédulas, sob a forma de correntes, para que não falte dinheiro. Geralmente em notas de um real. Fartura. Outros fazem o pedido a eles e distribuem balas às crianças. Guloseimas em geral, como doces, confeitos, pirulitos, chicletes, empacotados ou não, às vezes acompanhados de brinquedinhos. Distribuem por tradição, mas se for feito um pedido a distribuição deverá ser feita por sete anos seguidos. As crianças ficam em polvorosa no dia destes santos, correndo de casa em casa atrás do “Cosme e Damião”. Chegam a perder aula para tal procura e é notável a solidariedade delas, avisando umas às outras onde está sendo distribuída a doce tradição, como formigas quando encontram açúcar. Na Bahia são muito festejados com várias tradições dentro das religiões afro-brasileiras e no catolicismo popular, como o lindoamor, o caruru-dos-meninos e o baile de São Cosme e São Damião. Neste ano distribuímos as guloseimas dos santos na Gruta do Divino Espírito Santo e Nossa Senhora do Rosário, no centro de São João del-Rei, junto à Ponte Padre Tortoriello, no final (confluência) das ruas Antônio Rocha e Antônio Josino Andrade Reis. A gruta foi enfeitada interna e externamente com bandeirinhas multicores e foi armado um altar com fundo branco sobre o qual a imagem católica tinha duas fitas atadas para os fiéis beijarem uma verde, outra rosa. Duas velas acesas em castiçais artesanais. Um pratinho de sobremesa com as ofertas à eles: guloseimas e brinquedos. Flores e ramos de coqueiro. Um cartaz com “vivas” e pedidos de proteção. A doçaria empacotada estava em balaios de vime e taquara. A criançada que a princípio era pouca, ao ouvir o espocar dos fogos de artifício 12 x 1, veio em correria de toda parte: da Caieira, Antônio Rocha, ponte, Beira da Praia, “PPP” (Praça Pedro Paulo), Morro do Zé da Luz e Matola. A cena pitoresca lembra a correição. Taóca, diriam os indígenas.
Fizeram fila. Que alegria óbvia em seus rostos ao abrir o humilde pacotinho. Analisam as variedades. Comparam: “você ganhou dessa bala?” ; “olha só o que tem no meu...” . E vão saindo à caça de mais “Cosme e Damião” noutras paragens.
Referências Bibliográficas - CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d]. - RAMOS, Arthur. O Negro Brasileiro: etnografia religiosa e psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1934.