A Imigração japonesa e o processo de construção da identidade nipo-brasileira na obra Nihonjin

Fabiana Almeida Sambati (UTFPR) Maurício César Menon (UTFPR) Resumo: Este trabalho busca lançar um olhar sobre o processo formação da identidade cultural nipo-brasileira no romance histórico Nihonjin (2011), de Oscar Nakasato, que ilustra a saga de imigrantes japoneses no Brasil e suas peculiaridades, evidenciadas de forma marcante em contraste à cultura ocidental. A maioria dos japoneses que no Brasil desembarcou, no alvorecer do século XX, procurou preservar seus costumes e tradições, ainda que imersa em uma realidade bastante diferente daquela da terra natal. Em terras estrangeiras, onde se torna impossível evitar a "contaminação" dos costumes, da língua, e dos diversos fatores socioculturais, surgem os dilemas dos que se esforçam para adaptar-se ao novo cotidiano, em oposição à resistência de outros que temem macular a tradição que trazem arraigada em si, fruto de uma cultura milenar. Alguns desses elementos foram identificados na obra e lançados à luz para suscitar algumas reflexões sobre como se configura essa construção identitária de algumas das personagens do livro. Nesse contexto, emerge a figura de Hideo, representante dos imigrantes japoneses, recém-chegado à terra nova, disposto a superar as dificuldades culturais impostas pela barreira da língua e dos costumes. Na condição de estrangeiro, o protagonista confronta-se não apenas com a difícil adaptação aos hábitos culturais divergentes, mas com o choque de gerações, decorrente da relação conflituosa com os filhos brasileiros. As transformações que se seguem na trama, fruto da incorporação dos novos costumes, são percebidas gradativamente no modo de pensar e agir das personagens. Sob essa perspectiva, este trabalho enfoca as problemáticas advindas do processo de formação cultural de algumas personagens do romance Nihonjin em face aos desafios da diversidade, do impasse diante da defesa de uma tradição milenar e da necessidade de assimilação de um modo de vida contrastante, em que o passado e o futuro se convergem. Palavras-chave: Imigração japonesa; Identidade cultural; Nihonjin. Abstract: This work aims to cast a glance at the process of construction of Japanese-Brazilian cultural identity in the historical romance Nihonjin (2011), by Oscar Nakasato, that illustrates the saga of Japanese immigrants in Brazil and their peculiarities, strongly evidenced in contrast to Western culture. Most Japanese who landed in Brazil at the dawn of the twentieth century, sought to preserve their customs and traditions, even if immersed in a very different reality from that of the homeland. In foreign lands, where it becomes impossible to avoid the "contamination" of customs, language, and different socio-cultural factors, there are the dilemmas of those who strive to adapt to the new routine, in opposition to the resistance of others who fear to tarnish the tradition that bring rooted inside themselves, the result of an ancient culture. Some of these elements have been identified in the work and highlighted in order to raise some thoughts on how to configure this identity construction in some of the characters in the book. In this context, the figure of Hideo emerges, representative of Japanese immigrants, newly arrived to the new land, decided to overcome cultural difficulties imposed by the language barrier and customs. In foreign condition, the protagonist faces not only the

difficult adaptation to different cultural habits, but the clash of generation, due to the conflicting relationship with his brazilian children. The transformations that follow the plot, result of the incorporation of new customs, are perceived gradually in the way of thinking and acting of the characters. From this perspective, this work focuses on the issues arising from the cultural process of formation of some characters in the Nihonjin romance, facing the challenges of diversity, the impasse on the defense of an ancient tradition and the need for assimilation of a contrasting way of life, in which the past and future converge. Keywords: Japanese Immigration; Cultural identity; Nihonjin. 1. INTRODUÇÃO No início do século XX, o Brasil, por meio de um acordo imigratório com o governo japonês, abriu as portas aos imigrantes japoneses que se aventurariam em um mundo desconhecido no Ocidente. Com a crise econômica do Japão, gerando uma capacidade precária de empregabilidade e consequentes dificuldades de subsistência da população, os japoneses embarcaram em navios, levando consigo, na bagagem, a esperança de prosperar em uma terra potencialmente promissora. Acima disso, contudo, prevalecia um objetivo maior, que era o de retornar, de forma vitoriosa, à terra natal. Dessa maneira, milhares de japoneses desembarcaram no Brasil e foram conduzidos às lavouras de café, principalmente nos estados do Paraná e de São Paulo, engrossando a força de trabalho braçal nas fazendas, ao lado de imigrantes de outras nacionalidades e de escravos alforriados que contribuíram para o progresso da economia brasileira. Cardoso (1995) destaca a importância dos imigrantes no cenário nacional econômico, bem como o processo de diversificação provocado pela inserção desses sujeitos como força de trabalho, reconfigurando o mercado interno brasileiro.

A introdução do imigrante, que pode ser assimilada à introdução do trabalho assalariado na agricultura em grande escala é, pois, condição fundamental para as transformações que ocorreram no sistema econômico brasileiro e, por isso mesmo, os estrangeiros serão personagens importantes deste progresso, diversificando e dinamizando o mercado interno. (CARDOSO, 1995, p.40)

A onda de imigração resultante das dificuldades econômicas e sociais na terra do sol nascente foi, progressivamente, emprestando novas feições ao povo brasileiro. É nesse contexto que o protagonista de Nihonjin, Hideo Inabata, deixa a cidade de Kobe, no Japão, e

desembarca no Brasil, trazendo consigo sua esposa Kimie, para aqui constituir família e tornar-se próspero, trabalhando arduamente com o sonho e retornar à terra dos Samurais. A obra mencionada trata de um tema relevante, seja na esfera histórica, no âmbito sociocultural ou nas páginas literárias: a imigração japonesa e seus desafios em um país de costumes diversos, em que a cultura nipônica e a brasileira se interpenetram, influenciando-se mutuamente. Tendo por objetivo desvelar alguns elementos no texto que compõem o processo de formação da identidade cultural nipo-brasileira, propõem-se relacionar

momentos da

narrativa relativos a quatro personagens representativos desse processo que, juntos, fundamentam e ilustram, de maneira gradativa, o percurso histórico e cultural pelo qual passaram os imigrantes vindos da Terra do Sol Nascente.

2. O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NIPO-BRASILEIRA DOS PERSONAGENS:

Ao definir o processo de construção de um romance, Candido (2004) destaca que a concretização do mesmo está baseada na relação entre o ser vivo e o fictício, manifestada por meio da personagem. O romance histórico Nihonjin se propõe a reproduzir a saga dos imigrantes japoneses em terras brasileiras. Para tanto, o escritor retrata no romance o percurso de construção das identidades das personagens, inseridas em uma realidade relativamente incomum em vários aspectos, todos ligados à vivência de um verdadeiro choque cultural. A partir daí, estabelecese na narrativa, por meio dessas personagens, um movimento de tensão, no sentido de elas lutarem para proteger suas tradições, como forma de garantir a identidade cultural, concomitante ao fato de se inserirem, por meio do trabalho, numa terra cujos costumes e modos de viver constituíam verdadeiras antíteses aos seus. Sobre o processo de formação das identidades dos indivíduos, Zanelli (2003) destaca que essa construção se dá de acordo com o ambiente em que o sujeito está inserido, contando, para tanto, entre outras coisas, com aspectos ligados às estruturas sociais, à cultura e ao histórico de relações interpessoais. Ainda, conforme a organização, como sistema social, inserido em seu contexto, o indivíduo procura preservar sua identidade e consequente

sobrevivência, desenvolvendo uma estrutura normativa que envolve valores, normas, expectativa de papéis e padrões aceitos de comportamento e interação. A necessidade de definir uma identidade que leve o indivíduo a obter uma noção de integralidade, diante dos diferentes papéis que representa em sua experiência social e das múltiplas facetas de seu modo de ser, constitui-se um aspecto fundamental para sua sobrevivência. Ao referir-se à importância dessa identidade para o indivíduo, como fenômeno que confere estabilidade à psique, Bauman (2012, p.34) discorre: “A identidade pessoal confere significado ao “eu”. A identidade social garante esse significado e, além disso, permite que se fale de um “nós” em que o “eu”, precário e inseguro, possa se abrigar, descansar em segurança e até se livrar de suas ansiedades”. A necessidade do protagonista Hideo em salvaguardar as tradições japonesas, corrobora com essa concepção, à medida que a personagem busca segurança e reafirmação de sua identidade nipônica, enfrentando adversidades e, em alguns casos, despertando hostilidades, em nome da preservação e perpetuação de seus costumes. Essa atitude se reflete também demograficamente, visto que os imigrantes organizam-se em comunidades ou colônias, quase sempre herméticas em seus aspectos socioculturais. Esse é o caso do bairro da Liberdade, em São Paulo, que se configura como uma espécie de gueto para muitos imigrantes japoneses e onde se desenvolve parte da trama de Nihonjin. O romance destaca, inicialmente, o forte sentimento de nacionalismo do personagem Hideo, japonês devoto a sua pátria, tendo empenhado todos os esforços para preservar seus costumes. A esse respeito, Saito (1973) ratifica, em seus estudos, esse profundo sentimento de nacionalidade como sendo uma espécie de conforto espiritual ao saudosismo do imigrante japonês.

A tendência nacionalista do imigrante, assim despertada, manifesta-se sob a forma de veneração e saudosismo no que ser refere ao regime político, ao povo que deixou na terra de origem, e a qual, num determinado momento, é reconhecida como o único apoio espiritual existente, o que dá margem ao surto de fenômenos fanáticos (...) (SAITO, 1973, p. 26)

Essa veneração e saudosismo são incorporados pelo protagonista da trama, Hideo Inabata, que chega a ser preso por defender suas tradições em uma época em que o governo

brasileiro, durante a II Guerra Mundial, por motivos bélicos, resolve proibir o uso da língua japonesa no país, bem como outras manifestações culturais dos imigrantes. Além disso, Hideo possui uma evidente preocupação em resguardar seus filhos da influência dos gaijins. À medida que avança a narrativa, porém, percebe-se que, por mais que o personagem procure manter essa postura rígida em relação a sua origem e a sua cultura, a mudança começa a se desenhar paulatinamente, diante de seus próprios olhos. Uma cena do livro ilustra bem essa afirmação: Hideo está voltando pensativo da escola do filho, onde tinha ido conversar com a professora, quando ocorre o seguinte:

Mas a estrada, que desde a escola não lhe chamar a atenção, pois era apenas um caminho por onde se vai e vem, pareceulhe, de repente, longa e hostil. (...) A estrada seguia sua curva, e logo veio uma longa reta, e já se avistava o sítio. Passou um carro de boi, cujo condutor, empregado de uma grande fazenda próxima, cumprimentou-o com um aceno de chapéu, e depois um Ford, e o carro de boi e o automóvel levantaram a poeira, que se juntou ao suor inominável para, como na guerrilha, derrubar a resistência de Hideo. (NAKASATO, 2011, p. 71-73)

A estrada ou o caminho, na literatura, é uma imagem que, frequentemente, assume uma simbologia: a vida, com suas nuances, seus revezes e surpresas. Observe-se que o narrador caracteriza esse caminho pelo qual segue a personagem como sendo longo e hostil; essa adjetivação pode ser aplicada à vida de Hideo e à difícil jornada por ele feita enquanto imigrante num país com cultura tão adversa a sua. Na sequência da caracterização da estrada, percebe-se que há uma curva seguida de uma reta, ao fim da qual era possível se ver o sítio. A curva revela a mudança que se opera na vida do protagonista, desde o momento em que ele sai do Japão com destino ao Brasil pensando em retornar a sua pátria o mais breve possível. A reta, com o sítio ao final, pode revelar o destino certo para o imigrante, ou seja, não haverá retorno, ele terá, definitivamente, plantado suas raízes num país diferente do seu de origem. Por fim, a citação ainda revela uma imagem bastante curiosa, mas não menos pertinente, nessa estrada: passam por Hideo um carro de boi e, logo após, um Ford. Essa imagem relativa a dois meios de transporte, um arcaico e outro moderno, sugere a polarização vivida pelo personagem principal entre a tradição, aquilo que é antigo e lhe foi repassado pelas gerações anteriores e o novo, aquilo que sucede e representa a novidade a que se oferece

resistência. A cena termina com a poeira dos veículos juntando-se ao suor “inominável” de Hideo, derrubando-lhe a resistência, isto é, tanto a tradição cultural de origem como a modernidade, o novo modo de vida no qual se insere, estão incorporados à vida do imigrante. Interessa notar, porém, que a cena citada localiza-se quase na metade do livro, o que a torna, de alguma maneira uma síntese metafórica, daquilo por que Hideo vem passando e das transformações que se seguirão em sua vida. Apesar de sua inflexibilidade e de ser japonês nato, fiel a seus princípios e tradições, o protagonista, à medida que a trama avança, sofre certas transformações em alguns aspectos de sua identidade, fazendo algumas concessões, cedendo às influências do povo que o recebera. Isso fica mais evidente na passagem em que ele vai encontrar o filho que estava refugiado no sítio do sogro. Ao encontrá-lo, Hideo adverte ao filho Haruo de que membros da organização Shindo Renmei estão em seu encalço. Mesmo sendo um defensor dos ideais da organização, sabendo que o suicídio ou morte eram as punições previstas para os considerados traidores do imperador, o pai apela ao filho que fuja, porém Haruo se nega, dizendo que ali estaria bem. Mais à frente, com a chegada dos assassinos ao sítio, Hideo procura persuadi-los a não matarem o filho, mas não obtém sucesso. Essa atitude demonstra que sua rigidez e obediência aos princípios nacionalistas radicais, notórios nos capítulos anteriores da trama, aparecem enfraquecidos pelo impulso paternal. Nessa ocasião Hideo decide virar as costas à ideologia em que tanto acreditava para salvar a vida do filho em perigo. "Ele sabia que, antes de ser pai, era súdito do imperador, e este deveria ser o seu princípio, mas, de repente, desesperou-se, e seu desespero era de pai." (NAKASATO, 2011, p.157). Ao final, Hideo Inabata reconhece que o Japão perdeu a guerra e que Haruo tinha razão. É possível perceber ainda, nesse ponto da narrativa, que o sentimento de culpa pela trágica sina do filho Haruo e o sofrimento por não mais reconhecer Sumie como filha, após ela ter abandonado o marido e os filhos para viver um amor do passado, o atormentam diariamente. Ele, enfim, entrega-se e já não sonha mais em voltar a sua terra de origem. Ficaram apenas as memórias, registradas pelo neto, um universitário marxista, prestes a embarcar para o Japão para trabalhar como operário no berço de seus antepassados. O percurso da formação identitária nipo-brasileira de Haruo demonstra ter sido mais rápido, uma vez que, desde criança, o personagem mostra-se receptivo à cultura local, assimilando as ideias e costumes brasileiros de forma mais flexível do que os demais

personagens citados. Logo na passagem que narra o ingresso de Haruo na escola rural, próxima ao sítio onde habitava a família, constata-se o conflito entre pai e filho, a respeito da nacionalidade do menino. Ele se reconhece distinto dos seus colegas da escola, tendo a aparência de japonês, mas sentindo-se brasileiro internamente. O trecho abaixo demonstra que o menino, influenciado pelo discurso da professora da escola, assume sua identidade física japonesa, no entanto, considera-se brasileiro em sua alma: — Otochan, a cara e o nome eu não posso mudar, mas isso não importa muito. (...) não importa se os olhos são puxados ou não, se os cabelos são lisos ou enroladinhos, se o menino é preto ou japonês. O que importa é o que otochan está dizendo: o coração. E eu sinto que meu coração é brasileiro. (NAKASATO, 2011, p. 67)

A declaração do filho desafia Hideo e provoca a ira de um pai que venera as tradições do seu povo e afirma enfaticamente que o menino, mesmo nascido no Brasil, era japonês na essência. Ao mesmo tempo, Haruo vivencia o dilema de não poder ser brasileiro, nem nihonjin. Ele é considerado brasileiro pela professora da escola, por ter nascido no país, todavia convive com um pai convicto da nacionalidade japonesa do filho. A divergência de ideias a respeito de sua nacionalidade levava o pequeno Haruo a refletir sobre quem, afinal de contas, poderia estar certo sobre sua identidade: o pai ou a professora?

Então ou seu pai ou a professora estava equivocado, pois, quando dois diziam coisas diferentes, se um estava certo, o outro estava errado, já que não existiam duas verdades diferentes sobre o tema. Não foi exatamente assim que ele pensou, mas o que pensou era algo assim.(NAKASATO, 2011, p. 63)

Em face o enfretamento do filho e diante de sua irreverência, atitude intolerável na cultura japonesa, vista como desrespeito aos pais, Hideo decide matricular o filho na escola dominical japonesa, para fortalecer o senso de tradição e os princípios japoneses no menino, porém seu rendimento é criticado pelo professor, deixando o pai inconformado. A identidade de Haruo vai se formando, em meio a muitos conflitos advindos de uma relação complicada com o pai. Enquanto os outros irmãos se submetem à vontade paterna suprema, ele se levanta afirmando sua brasilidade. Seria ele um brasileiro autêntico ou um

japonês infiel às tradições do seu povo? Tudo indica que Haruo possui esses dois elementos, que se mesclam e apenas se diferem em grau de intensidade. O menino cresce, convivendo não apenas com brasileiros, mas com crianças filhas de imigrantes de outras origens. Já convencido de sua nacionalidade, dedica-se a combater as ideologias do grupo nacionalista radical Shindo Renmei, que espalhava notícias irreais sobre a vitória do Japão na II Guerra e pregavam a obediência cega ao Imperador, usando de violência para inibir aqueles que se opunham à resistência. Proporcionalmente à rigidez do Hideo, que se tornou um associado da organização extremista, Haruo manteve-se irredutível até a morte, na defesa da liberdade de pensamento e expressão dos nipo-brasileiros e dos japoneses que adotaram o Brasil como segunda pátria. No mesmo sentido seguiu a personagem Sumie, outra representante da segunda geração dos Inabata, nascida no Brasil. A menina, inserida no mundo dos gaijins, observa as diferenças e compara o comportamento deles ao dos integrantes de sua família. Questionavase por que deveriam viver de uma forma tão diferente, isolados dos costumes do país que os acolhera. Não entendia a aversão de alguns japoneses aos estrangeiros e aos seus hábitos, principalmente as formas de se relacionarem. Sumie pensava em sua mãe e na atitude submissa, calada, ainda que presumidamente descontente, ante ao seu marido. Ao interrogar a mãe se ela seria feliz caso tivesse tomado a decisão de não casar-se com o Hideo e ter optado pelo homem que realmente lhe interessava, recebe uma resposta resignada: “De que adiantava pensar que poderia ter sido diferente? A vida lhe reservara um homem bom, exigente e duro, de quem aprendera a gostar e a quem aprendera a respeitar.” (NAKASATO, 2011, p. 110) Contrariando as regras da comunidade a qual pertencia, a moça apaixona-se por um gaijin. Não encontrando saída para viver o amor impossível, resolve aceitar o convite do amado para fugirem da fúria de seu pai. No entanto, o respeito e a reverência pelos pais falaram mais alto no último momento e, tentando evitar a desonra da família na comunidade nipônica, desiste de fugir com o homem que amava. Para satisfazer a expectativa do pai, ela aceita casar-se com um homem considerado “digno” e um bom partido, destinado a formar uma família nos moldes nihonjin. (...) o padrinho arranjava o casamento falando com os pais dos noivos. À moça, tanto quanto possível, falavam somente das qualidades do rapaz. O rapaz já a conhecia de algum lugar e tinha conhecimento da sua índole através de seus

pais e outros conhecidos. E estava tudo arranjado. (HANDA, 1987, p. 243)

Sumie torna-se uma mãe de família típica japonesa, vivendo durante dez anos ao lado do marido Ossamu e dos três filhos advindos desse casamento. Após esse decurso de tempo, o seu antigo namorado, Fernando, reaparece e a convence de viver com ele o amor interrompido no passado. A mãe de família, até então dedicada aos seus, decide abandonar a família para realizar o sonho romântico. Seis anos depois, Sumie retorna para rever os filhos. Ao abrir a porta, um de seus filhos, Noburo, o narrador da história, apesar de reconhecê-la imediatamente, sente uma certa indiferença por ela, uma vez que Ossamu, o pai, é quem esteve ao seu lado durante todo esse tempo.

Mais seis anos, ela retornou. Estávamos somente papai e eu em casa. Abri a porta e a vi: era uma mulher magra e bonita dentro de um vestido preto. Eu soube imediatamente que era minha mãe. Era a única certeza. Não fiquei feliz, mas também não me zanguei. (NAKASATO, 2011, p. 123)

As mudanças no comportamento e no modo de se vestir de Sumie parecem evidentes ao ex-marido. Ela afirma que muito de sua transformação deve-se a Fernando, mas ainda insiste que "ele não lhe ensinara a ser gaijin, que ainda era nihonjin, sentia-se nihonjin." (NAKASATO, 2011, p. 126). Nesse aspecto, Sumie demonstra ter consciência de que apesar de ter convivido por um considerável tempo com um gaijin e ter assimilado algo de seus costumes, ainda sentia-se japonesa na sua raiz, ilustrando claramente a natureza de sua identidade nipo-brasileira. Noburo é a terceira geração dos Inabata e de maneira inversa, irá perfazer o mesmo caminho de seu avô. Um brasileiro que abandona a terra natal e vai tentar a sorte na “terra do sol nascente”, com a vontade e esperança de uma vida melhor. Ressalta-se ainda, que o narrador-personagem, mesmo sendo um brasileiro autêntico, leva na alma toda herança cultural que lhe foi transmitida pela família por meio das histórias que ouviu. Essa dualidade parece se originar do forte sentimento de respeito e estima do povo nipo-brasileiro as suas tradições milenares, ainda que filhos do Brasil e muito adaptados à realidade cultural do entorno.

O personagem ilustra uma transição no modo de vida dos japoneses e de seus descendentes em solo brasileiro. Noburo encarna o arquétipo da miscigenação nipo-brasileira, completamente adaptada à cultura brasileira. Um estudante marxista, casado com uma mulher chamada “Daniela”, profissional formada em Direito, que, ao que tudo indica e a julgar pelo próprio nome, não possui origem japonesa. Verifica-se essa adaptação até mesmo nos nomes híbridos dados aos filhos de Noburo: “Pedro Hideki” e “Maria Hisae”, sendo em parte de origem brasileira e japonesa, demonstrando que além dos traços físicos japoneses e do respeito pelos antepassados, quase nada mais pode ser identificado como aspecto tradicional da cultura japonesa em seu comportamento.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O romance Nihonjin concede a oportunidade de percorrer, na história, os passos dos imigrantes japoneses e de suas labutas, sua persistência em transpor os obstáculos na árdua tarefa de adaptação em um país culturalmente contrastante como o Brasil. Os quatro personagens analisados representam figurações diferenciadas, mas que se interpenetram e, juntas, compõem um painel histórico cadenciado tanto sobre a questão da imigração japonesa quanto sobre o processo de assimilação de uma identidade. Hideo Inabata, o pai, representa a primeira figuração de imigrantes que, mesmo arraigada à raiz cultural com toda a convicção, vivencia toda a tensão de ser o estrangeiro em terra alheia e de ver, aos poucos, os costumes que lhe são caros sofrerem interferência de outra cultura. Haruo e Sumie, os filhos, representam a segunda figuração que, por crescer em outra cultura, assimilam-na com maior facilidade. Há, contudo, uma diferença de tonalidade entre a forma como Haruo e a forma como Sumie incorporam isso: Haruo representa, por meio de sua postura crítica em relação ao ser japonês e ser brasileiro, uma assimilação de caráter mais racional e projetada, ele sabe até do risco que sua vida sofre pelo fato de incorporar uma identidade nipo-brasileira; Sumie, por sua vez, representa uma assimilação de caráter mais emocional, que vive o conflito da dupla identidade, mas cede ao apelo do sentimento, lançando-se na experiência de quebrar a força da tradição imposta pela família e pela cultura original. Ambos os personagens configuram-se como aqueles descendentes de imigrantes que

se adaptam à nova cultura, mas pagam um preço bastante alto por entrar em choque com a tradição dos pais. Noburo, por fim, constitui a terceira figuração – a do neto de japoneses, nascido, contudo, em terra diferente da de seus avós, carregando apenas no corpo os contornos que o identificam com o Japão. Em Noburo, fecha-se a cadência da imigração de japoneses para o Brasil, mas abre-se uma nova, a de brasileiros que imigram para a terra de seus pais, o Japão. A narrativa da imigração, portanto, se constitui de forma cíclica. Ao se acompanhar o processo de construção da identidade cultural dessas personagens do livro, assim como as transformações sofridas progressivamente pelo protagonista, a despeito de sua resistência inicial nos primeiros tempos que se estabeleceu em terra estrangeira, evidencia-se que tais mudanças devem-se, em grande parte, à necessidade essencial de pertença que o indivíduo possui, relativa à comunidade em que está inserido, de ajustar-se à nova realidade, às normas socioculturais estabelecidas que regem os comportamentos dos indivíduos de um grupo social. De outro modo, a formação de uma identidade cultural híbrida, que caracteriza os nipo-brasileiros, no romance, pode ser vista como produto resultante de um intercâmbio cultural baseado na convivência e interação sociais junto a outros indivíduos de grupos culturais distintos que integram o contexto dos personagens. É certo que os imigrantes japoneses assimilaram muitos traços da cultura brasileira. No entanto, deve-se também atentar para os vários elementos da cultura japonesa que foram absorvidos pelos brasileiros, sobretudo na alimentação, no vocabulário, nos esportes, na religião e nas artes. Nihonjin, por isso, é mais que um romance no qual se evidencia o drama da imigração e da formação de uma identidade cultural; ele também nos fala do percurso de uma determinada extração histórica do próprio Brasil, cuja identidade se dá, justamente, pela assimilação de diferentes culturas e pela pluralidade de seus habitantes.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zigmunt. Ensaios Sobre o Conceito de Cultura.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2012. CANDIDO, Antonio. A personagem de ficção. 10ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.

CARDOSO, Ruth Correa Leite. Estrutura familiar e mobilidade social: estudo dos japoneses no Estado de São Paulo. Trad. MasatoNinomiya. São Paulo: Primus Comunicação, 1995. DEZEM, Rogério. Matizes do Amarelo. A gênese dos discursos sobre os orientaisno Brasil (1878-1908). São Paulo: Humanitas/USP/FAPESP, 2005. HANDA, Tomoo. O imigrante japonês: histórias de sua vida no Brasil. São Paulo, T.A. Queiroz/Centro de Estudos Nipo-Brasileiros, 1987. NAKASATO, Oscar Fussato. Nihonjin. São Paulo: Benvirá, 2011. SAITO, Hiroshi. Assimilação e integração dos japoneses no Brasil. São Paulo: Editora Vozes, 1973. ZANELLI, J. C. Interação humana e gestão: uma compreensão introdutória da construção organizacional. Rio de Janeiro: Editora LAB, 2003. http://www.brasilescola.com/japao/100-anos-japao-no-brasil-que-aprendemos-com-osjaponeses.htm. Acesso em: 5 jun.2015

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