UFF – UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

NATÁLIA RIBEIRO DA SILVA

SARAVÁ METAL – No Ritmo Da Gangrena

Niterói 2014 1

UFF – UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

NATÁLIA RIBEIRO DA SILVA

SARAVÁ METAL – NO RITMO DA GANGRENA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para a obtenção do grau Bacharel em Estudos de Mídia.

ORIENTADOR: Prof. Dra. Simone Pereira de Sá.

Niterói 2014 2

UFF – UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

NATÁLIA RIBEIRO DA SILVA SARAVÁ METAL – NO RITMO DA GANGRENA Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para a obtenção do grau Bacharel em Estudos de Mídia.

BANCA EXAMINADORA __________________________________________ Prof. Dra. Simone Pereira de Sá. UFF – Universidade Federal Fluminense

__________________________________________ Prof. Dr. Marco Antonio Roxo da Silva UFF – Universidade Federal Fluminense

__________________________________________ Prof. Dra. Melina Aparecida dos Santos Silva UFF – Universidade Federal Fluminense 3

Dedico este trabalho; A meus pais, pois sem eles nada disso seria possível, à toda minha família que tanto me apoiou no caminho até aqui, aos grandes mestres e amigos que encontrei na universidade e a todas as pessoas que mantem a música pesada como ela deve ser, suja e agressiva.

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AGRADECIMENTOS À Professora Simone Pereira de Sá Aos Professores Marco Roxo e Melina Santos

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RESUMO O presente trabalho busca analisar a construção do saravá metal como uma filiação legítima ao gênero metal. Por meio de questões ligadas à autenticidade são percorridos alguns dos caminhos e negociações que tornam possíveis a ligação de "pai de santo" com "blast beat", mostrando que é possível ligar o local com o global numa só expressão. Palavras- chave: heavy metal, autenticidade, gênero, underground

ABSTRACT

This paper aims to analyse the construction of saravá metal as a legit heavy metal filiation. Throughout questions related to authenticity that make possible the connection between "pai de santo" with "blast beat", showing that a unique expression can blend global and local. Key-words: heavy metal, authenticity, genre, underground

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Sumário INTRODUÇÃO

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CAPÍTULO 1

14-22

CAPÍTULO 2

23-37

CAPÍTULO 3

38-45

CONCLUSÃO

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BIBLIOGRAFIA

48-49

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SARAVÁ METAL: NO RITMO DA GANGRENA

*Nenhum animal foi sacrificado durante a realização deste trabalho.

INTRODUÇÃO “Você monta uma banda de rock é ‘pra zoar o barraco, se você monta uma banda de rock ‘pra ganhar dinheiro você tá errado na essência” (Cid Mesquita)1

Saravá metal é o nome dado ao som praticado pela banda carioca “Gangrena Gasosa”, que na intenção de “zoar o barraco” resolveu misturar heavy metal com macumba2. A mistura deu tão certo que rendeu à banda a gravação de um disco, vinil na época, uma turnê pela Europa, uma visita ao Jô Soares e agora, com mais de 20 anos de carreira, seu segundo documentário. Gostando ou não da ideia o fato é que muitos acabam se perguntando: “o que diabos é saravá metal?”. Seja pelo nome de batismo convidativo da banda – retirado de uma forma de infecção bacteriana grave que gera uma produção de gases e necrose entre os tecidos – ou pelo fato de conseguirem juntar “mãe de santo” com “blast beat”3, o Gangrena Gasosa segue testando os limites de tolerância e de intolerância de quem ouse passar perto de seu “trabalho”. Diferente do que uma análise mais superficial sobre como elementos da umbanda podem ser apropriados por uma banda de heavy metal possa sugerir, o maior diferencial do Gangrena Gasosa não está na introdução desses diferentes elementos, ou novos vocabulários, à um gênero que parece estar sempre em vias de saturação. O maior artifício do Gangrena está em propor uma determinada leitura desses novos elementos a partir de uma nova perspectiva apresentada por eles.

Um dos fundadores do Gangrena Gasosa em entrevista ao documentário “Desagradável” – Black Vomit Filmes e Locomotiva Fimes, 2013. 1

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Segundo o minidicionário Houaiss da língua portuguesa "macumba" tem como primeira definição: "designação leiga dos cultos afro-brasileiros em geral (e seus rituais respectivos)." 3

Técnica de uso do pedal duplo de bumbo, muito usada por bateristas de death e black metal. É uma das principais características dos gêneros mais extremos do metal. 8

Em outras palavras, a maior conquista do Gangrena Gasosa foi fazer algo tão diferente e inesperado dentro do metal que acabou gerando uma série rupturas com suas afiliações anteriores. Em consequência dessas rupturas, foi preciso um remanejamento das fronteiras, para que o saravá metal fosse então “anexado” ao território do metal. A movimentação gerada pelas ações do saravá metal no universo do heavy metal serão usadas ao longo de todo este texto para pensarmos como as discussões em torno da autenticidade, e os esforços envolvidos em torno de sua disputa, ajudam-nos a entender as dinâmicas que envolvem a consolidação de um gênero musical. O heavy metal é um gênero musical considerado global, pois é ouvido e praticado em boa parte do mundo, no entanto, é a partir da ideia de cena que ocorre a materialização da escuta musical. “Mas a circulação de música nas cenas ganha corpoatravés de sua materialização nos encontros, ranhuras e propagação das sonoridades noespaço urbano. Uma cena heavy metal, por exemplo, certamente é reconhecida por sonoridades de um gênero musical que apresenta características estilística específicas em qualquer lugar do planeta, mas, ao mesmo tempo, essas mesmas características são negociadas e se transformam em diferenças sonoras e valores sociais que se conformam de acordo com assingularidades dos territórios sonoros em que circulam.” (JANOTTI, 2012, p.9)

O que o Gangrena Gasosa fez foi pegar elementos reconhecidos globalmente como: blast beat, afinação baixa, guitarras distorcidas, vocais “berrados”, etc. E misturar com elementos ligados à uma cultura de fora do universo da música metal, mas bastante próxima da realidade do Rio de Janeiro, do local aonde a banda nasceu e se desenvolveu. Atabaques, pandeiro, triângulo e outros elementos percussivos típicos de cultos afro-brasileiros passaram a fazer cada vez mais parte da performance da banda. A banda se tornou um link entre o heavy metal e a “macumba”. A introdução de vários elementos, em especial os da umbanda, nos mais diferentes aspectos da criação e execução da performance, dificultavam a colocação do Gangrena Gasosa dentro de um ou outro gênero, sendo estes híbridos4 ou não. Uma vez que já não tinham mais como se

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É cada vez mais comum no metal a adoção de uma nomenclatura genérica hibrida, que mistura dois ou mais gêneros. Por exemplo "death/thrash metal" e "death metal/hardcore" ou "deathcore". 9

identificar como death metal, crossover, grindcore, ou qualquer outro, a proposta de uma nova rotulação, tornou-se viável e atrativa, visto que seriam responsáveis por algo até então inédito dentro do metal, que dialoga “em tensão” com as marcas do metal global. O saravá metal passou a representar o ritmo da Gangrena. A noção de gênero midiático proposta por Jeder Janotti (2005), descreve o gênero musical, entre outras coisas, como um texto composto por diferentes elementos passiveis de serem lidos, cujo sentido e o valor são configurados através das relações entre a música e ouvinte e, por sua vez, destes com o ambiente em que coexistem. "O gênero midiático é definido então por elementos textuais, sociológicos e ideológicos, é uma espiral que vai dos aspectos ligados ao campo da produção às estratégias de leitura inscritas nos produtos midiáticos. O sentido e o valor da música popular massiva são configurados através do encontro entre música e ouvinte, uma interação que está relacionada aos aspectos históricos e contextuais do processo de recepção, bem como aos seus elementos semióticos." (JANOTTI, 2005, p8).

Pensar o saravá metal e como ele negocia com o gênero metal de características globais é mais do que saber do que ele é feito e como ele é inscrito, é pensar como ele é “lido” pelos ouvintes e como se dá o processo de transcrição e leitura. Esse processo pode ser chamado de “processo de autenticação”, como propõe Fernanda Fernandes (2007, p.57). O processo de autenticação é um processo comunicacional de disputa e atribuição de valor que tem como matéria principal questões relacionadas à autenticidade. Ao dispor novos elementos sobre a gama do que já vinha sendo trabalhado pelo metal, foi preciso que esses elementos fossem avaliados e estudados por aqueles que fazem parte e que ajudam a significar o universo metálico. Isso é um processo contínuo que se dá de forma muitas vezes “natural”, o que dificulta sua apreensão. Sem percebermos, em diversas situações nos encontramos discutindo sobre o que pode e o que não pode em determinado gênero ou determinada banda. O que busco analisar neste trabalho é como o saravá metal dialoga com um gênero musical de características globais tão fortes quanto o metal. O presente trabalho discorre sobre a construção da autenticidade em torno do saravá metal, descrevendo alguns dos “esforços de autenticação” e dos “ciclos de autenticação” (PETERSON, 2005, apud FERNANDES, 2007), bem como a “economia simbólica da 10

autenticidade” (GARZIAN, 2004) que ajuda a alimentar esses processos. Embora os termos não sejam bem apropriado, o que busco descrever com essas noções seria uma “mecânica” da autenticidade, que alimenta as questões sobre gênero musical e que no caso do heavy metal, é fundamental na manutenção do gênero. Existe um ciclo, um impulso que gera a movimentação dentro desse ciclo, assim como a expansão do mesmo, que seriam os esforços de autenticação, e existe a economia simbólica da autenticidade, que ajuda a mensurar os valores dentro dessas equações. Essas noções serão melhor apresentadas no decorrer deste trabalho. O importante agora é que consigamos perceber a importância da autenticidade para a questão do gênero, que ela faz parte de um processo e que não é fixa. A abordagem proposta nos parágrafos acima busca ampliar a discussão sobre as diferentes formas de atribuição de valor à música, bem como as dinâmicas envolvidas nesse processo, indo além da questão da cooptação, atualizando questões acerca do mainstream e do underground. A ideia é levar o foco da discussão cada vez mais para as relações não necessariamente comerciais entre banda e público, público e banda, gênero e mercado, etc. Antes de entrarmos na parte mais teórica este trabalho, aonde apresentarei com maior propriedade as noções e os conceitos que servem de suporte teórico para a análise do saravá metal enquanto gênero musical autêntico, gostaria de dedicar os próximos parágrafos ao meu encontro com este objeto um tanto peculiar. “Se Deus é 10, Satanás é 666” foi provavelmente a primeira música que conheci do Gangrena Gasosa há alguns anos. O título, a meu ver, um tanto cômico e divertido, soava ao mesmo tempo rebelde e libertador, especialmente para adolescentes que como eu, tinham no heavy metal uma espécie de fuga da vista familiar, sendo algo que só eu ouvia e somente eu compreenderia, diferente dos meus pais. A forma enérgica como o refrão é cantado era e é ainda hoje, como um grito de liberdade, hoje não mais contra tutela familiar, mas contra uma série de valores nos quais se baseiam nossa sociedade e que afetam o nosso dia a dia de uma forma ou de outra. O que mais chama minha atenção na performance do Gangrena Gasosa é a mistura do peso com o ritmo da batucada, com percussão, pandeiro e outros instrumentos atípicos ao heavy metal. Como eles conseguem unir dois universos tão diferentes entre si, numa coisa coerente o bastante para entendermos e fazermos parte daquilo? O som do Gangrena é carregado de uma 11

“brasilidade”, o que faz com que os fãs sintam-se representados dentro do heavy metal de uma maneira própria, não a partir de elementos importados de outras culturas. Quando vejo os integrantes vestidos de entidades e os despachos em cima do palco sinto que isso representa a cena carioca, ou a cena brasileira de um modo geral. É como se fosse possível expressar nosso pertencimento na cena global, dominada pela língua inglesa e imaginário folclórico europeu, etc., a partir do nosso próprio vocabulário. Isso acontece com outras bandas também, no Brasil temos várias bandas de destaque nacional e internacional, cada uma delas com sua identidade e “representando a nossa nacionalidade” de alguma forma, mas o Gangrena traz elementos culturais mais específicos e mais evidentes. Embora a banda conte com mais de duas décadas de história, o saravá metal tem seus processos e esforços de autenticação em torno da legitimação de um estilo musical ainda muito presentes, o que em outros gêneros tendemos a naturalizar, a esquecer esse processo. Enquanto headbangers ouvimos tanto falar de thrash metal que nem nos preocupamos em saber como isso veio parar em nosso vocabulário, por que isso significa determinada sonoridade, atitude, etc. Nos próximos capítulos mostrarei como os processos e esforços em torno da idéia de autenticidade atuam na construção da ideia do saravá metal. O primeiro capítulo trata de uma fundamentação teórica acerca de noções mais primordiais como: gênero, música popular massiva, cena musical, mainstream e underground, e noções mais centrais para a nossa discussão, ligadas à questão da autenticidade. É aonde pretendo apresentar com maior propriedade noções citadas anteriormente para fins de introdução a este trabalho, como: “esforços de autenticidade”, “processos” e “ciclo de autenticação” e “economia simbólica da autenticidade”. O segundo capítulo é dividido em duas partes: a primeira com uma breve contextualização histórica do metal e da cena aonde surge o Gangrena Gasosa e a segunda parte mais focada na banda, em sua relação com gênero metal, e as questões relacionadas à autenticidade. É importante que consigamos localizar o Gangrena Gasosa no gênero metal a partir de sua organização para entendermos como se dá a associação do saravá metal dentro desse contexto. Entendido o contexto, é preciso que nos aproximemos para poder observar com maior propriedade os processos de negociação e trabalho envolvendo a autenticidade.

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O terceiro capítulo é dedicado aos processos e esforços de autenticação que envolvem o saravá metal. Como, através do encontro entre música e ouvinte, o sentido e o valor da música vão sendo configurados (JANOTTI, 2005, p.8). O envolvimento da comunidade de ouvintes com a banda, a relação da banda com o metal e com a sociedade formam relações fundamentais para o estudo de como a autenticidade é trabalhada pelo gênero. No capítulo 3 focaremos na trajetória da banda e como a questão da autenticidade é trabalhada pela banda e ao redor dela.

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CAPÍTULO 1

Quando dizemos que o saravá metal, ou qualquer outra classificação, é autêntica, a que de fato estamos nos referindo? De modo geral, podemos dizer que quase todo gênero musical amplamente reconhecido é autêntico ou carrega uma parcela de autenticidade. O que diferencia o axé do sertanejo, ou a musica clássica da música eletrônica, por exemplo, é o fato de reconhecermos nesses gêneros elementos característicos de cada um deles, caso contrário não haveria necessidade de classificá-los como algo distinto. O saravá metal, como o próprio nome sugere, possui grande afinidade como o metal. Esse gênero possui uma ligação especial com a ideia de underground, vejamos o que Jeder Janotti define como underground: “Os produtos ‘subterrâneos’ possuem uma organização de produção e circulação particulares. (...) Trata-se de um posicionamento valorativo oposicional no qual o positivo corresponde a uma partilha segmentada, que se contrapõe ao amplo consumo. Um produto underground é quase sempre definido como ‘obra autêntica’, ‘longe do esquemão’, ‘produto não-comercial’” (JANOTTI, 2005, p. 8-9)

A maior parte das produções ligadas ao metal e seus subgêneros não está acessível nos meios mainstreans - no fluxo principal. Metallica, Iron Maiden, Black Sabbath, etc., apesar de serem bandas mundialmente reconhecidas, com papéis fundamentais no gênero, juntas represetam uma parcela mínima do que é feito pelo metal, a maior parte encontra-se no que o autor chama de “subterrâneo”. Embora o acesso aos produtos undergrounds – que também podem ser entendidos como produtos de nicho – seja hoje bastante facilitado via internet, redes sociais e plataformas de música online, essa categoria continua relevante no que diz respeito aos processos de autenticidade. Underground também representa uma proximação maior entre banda e público e com os demais elementos envolvidos na cena musical, o que favorece as trocas e negociações. Analisadas de forma mais acurada por Fernanda Fernandes (2007) e pelos textos contidos na coletânea de BENETT, A. e PETERSON, R. “Music scenes: local, translocal & virtual” de 2004, as relações entre música e público, provenientes da ideia gênero musical midiático, permitem nos aproximarmos da questão da autenticidade, e de como ela se relaciona com os gêneros musicais. 14

Percebemos que as estratégias textuais capazes de orientar expectativas – contidas na ideia de gênero – são configuradas a partir de processos que envolvem tanto banda/artista quanto público, que, por sua vez, encontram-se organizados num contexto social e cultural mais amplo, também fruto de processos históricos, sociais e etc. Para pensarmos sobre como a autenticidade atua nesses processos é preciso avaliar a relação entre música e ouvinte para além da relação entre produto e consumidor. O consumidor de determinado produto cultural tem sua expectativa orientada a partir dos gêneros, mas, além disso, ao consumir está envolvido num processo criativo, seja de forma mais ou menos consciente. Fernanda Fernandes (2007) nos lembrar que “nem sempre o significado pretendido pelos produtores é amplamente aceito pela audiência”. “O consumo também se constitui como uma esfera que pode requerer certo grau de atividade e criatividade dos indivíduos, na medida em que nem sempre o significado pretendido pelos produtores é amplamente aceito pelas audiências.” (FERNANDES, 2007, p.59).

Sendo assim, a lacuna entre o que o produtor almeja e o que o consumidor procura em determinado produto abre espaço para novas concepções, tanto para o consumo, quanto para a produção. O consumidor/ouvinte tem papel fundamental na constituição de um gênero musical, visto que o ato de consumir música, em vários sentidos, é mais do que uma simples relação comercial de compra e venda de determinado produto ou serviço. A autenticidade neste sentido se configura como uma relação de autonomia em relação ao mercado. Uma banda que se veste como entidade e não poupa gírias, termos de baixo calão e lança um álbum chamado “Se Deus É 10, Satanás é 666” não pode estar tão preocupada com o mercado quanto uma banda que almeja tocar no Faustão ou ser incluída na trilha sonora de Malhação. No underground a banda desfruta de mais liberdade para a experimentação, visto que não precisa atender a certos protocolos necessários aos produtos para a as massas. David Grazian (In: BENETT, A.; PETERSON, R., 2004) aponta a autenticidade como um objetivo comum – como uma demanda – entre os consumidores na busca por poder cultural, demonstra ainda que a questão sobre a autenticidade pode variar de grau, foco e intensidade dependendo do local ou performance em particular: “Enquanto a autenticidade pode representar um objetivo comum entre os consumidores na busca de poder cultural, na realidade, diferentes tipos de audiência abordam a questão da autenticidade com variados graus de intensidade e foco e às vezes eles dependem de 15

conjuntos contraditórios de critérios na avaliação de um lugar ou de uma performance em particular.” (GRAZIAN, 2004, p.45)5

No caso do Gangrena Gasosa nem todos entendem a banda como autêntica e se recusam a aceitar a banda como um estilo associado ao metal. Aqueles que entendem a proposta e aceitam a ideia do sarava metal como algo autêntico estão dispostos a defender seu posicionamento, o que alimenta a discussão em relação ao grupo. Neste sentido temos que, além de variável, a autenticidade é negociada. Não sendo uma característica inerente a algo, pessoa ou performance: “Não é uma característica inerente a objeto, pessoa, ou performance tidos como autênticos. Ao contrário, A autenticidade é uma reclamação feita por ou para alguém, alguma coisa ou performance, e pode tanto ser aceita como rejeitada pelos outros relevantes (Peterson, 2005, p. 1086)” (apud FERNANDES, 2007, p. 57)

Ao dizer que determinada música ou gênero é autêntico, ou simplesmente dizendo que ele é o que é, estamos na verdade reproduzindo uma sentença, resultado de uma negociação. É preciso fazer um movimento de “desnaturalização” da ideia de autenticidade, pois mesmo os gêneros tidos como “de raiz”, em algum momento foram baseados ou inspirados em algum gênero predecessor. Ele passou a ser autêntico e “de raiz” a partir de processos, esforços e negociações envolvendo autenticidade, pertencimento, entre outros valores para ele relevantes. Até para que se tenha algo novo, geralmente a partir de alguma ruptura, é preciso de algo anterior para ser rompido. Deena Weinstein ao trabalhar com o heavy metal em sua obra “Heavy Metal: the music and its culture” precisou fazer este movimento de “desnaturalização” em sua obra para chegar aos elementos mais essenciais do gênero, para assim analisá-lo. A autora usou os “padrões” de formação propostos por Ronald Byrnside para promover uma abertura na análise sobre a formação do gênero conforme sua proposta de estudo. Os padrões propostos demonstram que

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"While authenticity may represent a common goal among consumers in search of its cultural power, in reality different kinds of audiences approach the issue of authenticity with varying degrees of intensity and focus, and they sometimes rely on contradictory sets of criteria when evaluating a particular place or performance. The search for authenticity is an exercise in symbolic production in which participants frequently disagree on what specific kinds of symbols connote or suggest authenticity, and even those who agree on the symbols themselves may share different views on how they might manifest themselves in the world." (BENETT, A.; PETERSON, R. 2004, p.45) - tradução própria. 16

tanto o heavy metal como outros gêneros musicais, só são identificados como gêneros (autênticos) depois de já terem iniciado os processos de autenticação. "Como Ronald Byrnside observa, estilos musicais ‘geralmente seguem um padrão de formação, cristalização, e decadência. ‘Durante o período de formação, a distinção entre o novo estilo e os estilos dos quais ele entra em erupção ainda não estão claros. Mais tarde, durante o período de cristalização, o modelo é reconhecido conscientemente. Seu público o reconhece como um estilo distinto. Mas os limites do estilo não são rígidos."6 (WEINSTEIN, 2000, p.)

Os padrões descritos por Ronald Byrnside demostram que os gêneros passam por diferentes estágios até se tornarem “autoconscientes”. Primeiro é preciso que a audiência seja capaz de reconhecê-lo como algo distinto para que ele passe do estágio de formação para o de cristalização, na fase de cristalização as bandas começam a adotar e reproduzir aquela linguagem, já na fase de decadência essa linguagem vai sendo abandonada. Em todos os padrões propostos por Byrnside participação da audiência continua determinante nos processos de autenticação. O processo de autenticação: “Os produtos culturais, portanto, são submetidos a processos de autenticação, iniciados por meio das avaliações dos chamados experts: críticos, historiadores, arquivistas, professores, documentaristas, especialistas em música e similares, que desembocam na autenticação feita pelo consumidor final, o fã.” (PETERSON, 2005, p.1092) apud (FERNANDES, 2007, p. 57)

Fernandes reconhece a existência de um ciclo de autenticação, que começaria com as avaliações dos experts e desembocaria no público. Embora a pesquisadora discorde de Peterson quando este coloca críticos, historiadores, arquivistas e etc., em posições privilegiadas dentro desse ciclo; “Apesar da existência de um ciclo de autenticação, que envolve cada personagem ativo no campo cultural, não há como atribuir a nenhuma pessoa ou grupo específicos o poder de conceder o caráter autêntico a

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"As Ronald Byrnside notes, musical styles "generally follow a pattern of formation, crystallization, and decay. 'During the period of formation, the distinction between the new style and the styles out of which it erupts are still unclear. Later, in the period of crystallization, the style is self-consciously acknowledged. Its audience recognizes it as a distinctive style. But the boundaries of that style are not rigid." (WEINSTEIN, 2000, p.). Tradução própria. 17

práticas, indivíduos ou produtos culturais.” (FERNANDES, 2007, p. 57)

Isso se deve ao fato de que a autenticidade não é algo dado. Ao falar da cena indie carioca Fernanda Ferdandes se aproxima das discussões relacionadas aos cenários undergrounds de onde vem o Gangrena Gasosa e o saravá metal, por compartilharem de formas de produção e circulação parecidas. Em suma, por atuarem mais diretamente sobre suas produções, sem o suporte das grandes gravadoras ou empresas mais voltadas para o mercado amplo. No trecho acima a pesquisadora fala da incapacidade de atribuição de caráter autêntico a práticas, indivíduos ou produtos culturais por parte de uma única pessoa ou grupo específico. Isso destaca o caráter comunicacional do processo de autenticação, que toma forma a partir de discussões e disputas entre diferentes interesses. Vejamos os “esforços de autenticidade”, que compreendem a autenticidade como categoria socialmente construída: “A autenticidade é, portanto, uma categoria socialmente construída e adquire importância diferenciada nos variados contextos da vida social. E, na medida em que seu caráter de construto é ressaltado e está sujeito a mudanças contínuas, ela claramente se esforça para parecer autêntica. Este esforço de autenticidade pode se manifestar de diversas formas” (FERNANDES, 2007, p.60).

Uma vez que se trata de uma construção a partir de negociações entre diferentes indivíduos, sujeita a mudanças contínuas, a ideia de autenticidade, atribuída a alguma pratica, indivíduo ou produto cultural, depende de um certo esforço para manter-se autêntica. Quando se tem diferentes forças atuando é preciso que haja um trabalho no sentido de se manter uma posição ou argumento. Além de um esforço, é preciso algo que alimente esse esforço, que ajude a manter esse movimento. Os esforços de autenticidade foram traduzido por Grazian (2004), como “a busca por autenticidade”7. Para o autor a busca por autenticidade é um objetivo comum entre os consumidores que buscam poder cultural. Os esforços envolvidos nesse processo de busca e manutenção da

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"The search for authenticity" 18

autenticidade e do caráter autêntico representam um exercício (esforço) de produção simbólica realizado pelos envolvidos nessa cena musical: “A busca por autenticidade é um exercício de produção simbólica em que os participantes frequentemente discordam sobre que tipos específicos de símbolos conotam ou sugerem autenticidade, e mesmo aqueles que concordam entre si sobre os símbolos, podem compartilhar uma opinião diferente sobre como eles se manifestam no mundo” (GRAZIAN, 2004, p.45)8

Os esforços de autenticidade advém da volatilidade da noção de autenticidade, que é flúida e não-fixa, tornando difícil sua manutenção e a permanencia desses valores, dificultando a sua apreensão. É um exercício quase contínuo de produção simbólica realizado por participantes que integram os ciclos de autenticação de determinada prática, objeto ou performance. Esses exercícios, por sua vez, são gerados a partir de uma dinâmica, que Grazian identifica como sendo produzida pela realação entre subculturas locais e a comodificação da cultura global num determinado contexto. Essa relação dessas diferentes forças dentro desse contexto, geram uma dinâmica que leva os participantes e se engajarem nos esforços de autenticidade. “Na verdade, ele está dizendo que a interação entre subculturas locais e a comodificação da cultura global neste contexto produz uma economia simbólica da autenticidade, porque esse processo parece indicativo de um conjunto maior de dinâmicas que operam em vários outros tipos de entretenimento e artes urbanas.” (GRAZIAN, 2004, p.46)9

O que Grazian está chamando de “economia simbólica da autenticidade” é a forma como essas dinâmicas são organizadas em torno de um determinado gênero ou contexto. Em outras palavras, Grazian sugere que a interação entre subculturas locais e a comodificação da cultura global, junto às diferentes formas de atribuição de valor geradas a partir disso, são que dão vida à “economia simbólica da autenticidade”.

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The search for authenticity is an exercise in symbolic production in which participants frequently disagree on what specific kinds of symbols connote or suggest authenticity, and even those who agree on the symbols themselves may share different views on how they might manifest themselves in the world." (GRAZIAN, 2004, p.45). Tradução própria. 9 “In fact, it is telling that the interaction between local subcultures and the commodification of global culture in this context produces a symbolic economy of authenticity, because this process seems indicative of a larger set of dynamics that operates in many other types of entertainment landscapes and urban art worlds.” (GRAZIAN, 2004, p.46). Tradução própria. 19

A “economia simbólica da autenticidade” se organiza de forma diferenciada dependendo do contexto em que se desenvolve. Ela é a organização das forças e dos esforços de autenticidade, atua na busca por autenticidade e na forma como se organizam essas forças. Segundo o míni dicionário Houaiss da língua portuguesa, “dinâmica” tem como segunda definição: “movimento interno que estimula e faz com que algo evolua”, a primeira faz relação ao estudo da Física sobre o movimento. Pensando nessas duas definições é possível concluirmos por meio de dedução que as dinâmicas das quais tratamos neste trabalho, são geradas pelas diferentes forças envolvidas na economia simbólica da autenticidade. Como propõe Thomas Solomon, é a partir dessas dinâmicas que os participantes constroem sentidos de valor e de pertencimento que os ajudam a se localizarem nesse processo. Fazer parte do processo, é estar fazendo parte desta dinâmica. "Como Negus sugeriu, 'Da perspectiva conhecida da teoria acadêmica, comércio versus criatividade pode ser um argumento clichê, mas da perspectiva dos participantes das cenas musicais essas ideias são parte da forma como eles dão sentido ao que está acontecendo com eles'(Negus 1996, p. 48).” (apud, SOLOM, 2005, p.18)10

A discussão sobre se determinada banda ou artista é ou não “vendido” esbarra numa série de valores, de gostos e ideologias que varia de pessoa para pessoa e de grupo para grupo. Fazer parte dessas discussões é fazer parte do grupo, ao passo vão ganhando sentido, novas questões estão sendo elaboradas. Essa diferença de força e de interesses dentro de um grupo é que alimenta os esforços de autenticação, que alimentam o gênero e o engajamento do grupo com os valores do gênero. Um caso conhecido do Brasil é o da banda Ratos de Porão, formada em 1981, bastião do punk nacional, que décadas mais tarde teve seu vocalista contratado pelo canal MTV, o que significou uma afronta a muitos fãs mais puristas da banda que passaram a chamá-los de “traidores do movimento”. Mas independente dos fãs não liberais e conservadores o Ratos de Porão continua na atividade, sendo possível falarmos sem grandes dificuldades que esse

“As Negus has suggested, ‘From the knowing perspective of academic theory, commerce versus creativity may be a clichéd argument, but from the perspective of participants of music scenes these ideas are part of the way in which they make sense of what is happening to them’ (Negus 1996, p. 48).” (apud, SOLOM, 2005, p.18). Tradução própria. 20 10

impasse mais favoreceu a banda do que prejudicou, pois acabou gerando uma movimentação/disputa dentro do grupo. Além dos esforços da economia simbólica da autenticidade, outra noção importante para este trabalho é a ideia de cena musical, que será trabalhada sob a perspectiva de Grazian e de Will Straw, como contexto que agrupa produtores, músicos e fãs, que compartilham coletivamente seus gostos musicais, e de forma coletiva, distinguem-se nos outros (insiders X outsiders). A delimitação de uma fronteira imaginária, além de fazer parte dos esforços organizados em torno da autenticidade, ajuda a distinguir os que estão dentro e os que estão fora, separa insiders de outsiders. “O conceito de ‘cena musical’, originalmente usado principalmente em contextos jornalísticos e cotidianos, é cada vez mais utilizado por pesquisadores acadêmicos para designar os contextos em que grupos de produtores, músicos e fãs compartilham coletivamente seus gostos musicais comuns e coletivamente distinguem-se dos outros.” (GRAZIAN, 2004, p.01)11

A delimitação dessas fronteiras representa a forma como questões relacionadas a autenticidade de um determinado grupo serão trabalhadas. Existe uma dinâmica interna e uma dinâmica externa que ajudam na construção e manutenção dessa autenticidade, a diferença entre os que estão de fora e os que estão de dentro alimentam a disputa. Cena para Grazian está mais ligada a uma questão imaginária do que territorial propriamente dita, o que é mais conveniente para este trabalho. No caso do Gangrena Gasosa, enquanto pessoas mais ligadas às religiões criticam a banda por estarem mexendo com algo que supostamente não sabem o que é, isso é usado positivamente para construir uma alternativa oposta a esse modo de pensar ou trabalhar justamente com esse receio das pessoas. A banda tenta se esquivar quando o assunto é a religião, seja para resguardar a opinião pessoal de cada membro da banda ou para aliviar a tensão entre aqueles que levam esse assunto mais a sério.

“The concept “music scene,” originally used primarily in journalistic and everyday contexts, is increasingly used by academic researchers to designate the contexts in which clusters of producers, musicians, and fans collectively share their common musical tastes and collectively distinguish themselves from others.” (GRAZIAN, 2004, p.01). Tradução própria. 21 11

“Ai vem as perguntas clássicas. Alguém aqui é macumbeiro? Não. A gente toca essa porra ‘pra ser escroto mesmo” (Renato “Chorão”)12

Já internamente a questão segue em outros termos, pensando se o fato dos integrantes se vestirem de entidades é legítimo ou não dentro de uma banda de heavy metal, entre outras questões.

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No trailer do DVD “Desagradável”. 22

CAPÍTULO 2 Para uma retrospectiva histórica do gênero, capaz de desvendar especificidades de sua formação, bem como a fundamentação de alguns dos seus valores importantes na interpretação dos efeitos da autenticidade, serão usados especialmente Ian CHRISTE, 2010 e Deena WEINSTEIN, 1991, por serem fontes oficiais e reconhecidas entre trabalhos que abordam o heavy metal. No entanto, o uso de meios “não oficiais”, que possam servir de dados empíricos para a pesquisa não foram descartados, visto que boa parte do que circula pelo underground não encontra vias “oficiais” de escoamento. O metal é um gênero que emerge já no contexto da música popular massiva, termo proposto por Jeder Janotti que representa um novo momento para a produção e distribuição musical. Na década de 1970 o metal se firma como gênero musical, dando início às produções do heavy metal, ou seja, adquire uma liguagem própria que começava a ser apropriada, geralmente por bandas que anteriormente pertenciam ao heavy rock e ao hard rock. A partir da década de 80 acontece uma explosão de subgêneros e heavy metal passa a ser sinônimo de classic metal, enquanto metal passa a denominar todo universo possível de compreensão do gênero. Dependendo da geração de quem estiver falando, heavy metal passa a ser mais entendido como uma subcategoria, enquanto que metal passa a englobar o gênero e suas diversas variações. Como aponta Deena Weinstein (2000, p.11), o heavy metal surge no início da década de 70 dentro de um complexo cultural mais amplo, acompanhando o desenvolvimento da música rock e do rock and roll da década de 50. O que Weinstein chama de “complexo cultural mais amplo” é o sentido mais abrangente que a música rock adquire com o tempo e as apropriações. O rock deixa de ser apenas mais um gênero musical e passa a simbolizar todo um universo de consumo e produção de sentido ligado à juventude que começa a se desenhar no pós-guerra. “O maior símbolo dessa ‘nova cultura juvenil’ é o rock’n roll, que aparece como uma música delimitada etariamente, especificamente juvenil, como uma ‘linguagem internacional da juventude’, que acompanha e expressa todas essas novas atividades de lazer, assim como o comportamento explosivo da juventude.” (ABRAMO, 1994, p.30)

No decorrer da década de 50 houve um aumento significativo do consumo e da produção de bens variados, assim como o crescimento da importância dos meios de comunicação e do 23

entretenimento dentro da cultura de massa. A cultura do consumo estava cada vez mais presente e passava a significar cada vez mais para a sociedade. Devido às medidas sociais do welfare state adotadas no pós-guerra – política de bem estar social gerida pelo Estado – houve um aumento na oferta de emprego para jovens recém-egressos da escola, que combinado com o aumento da renda familiar, possibilitou que parte do dinheiro conseguido pelos adolescentes em seus empregos pudesse ser gasto em consumo próprio – guiado principalmente para bens de diversão e de consumo. (ABRAMO, 1994, p. 29). O mercado adolescente constituído e em plena expansão chamou a atenção da indústria que começou a agir rapidamente no atendimento dessa demanda – a juventude desenhada agora como categoria de consumo – produzindo bens específicos para esses consumidores. Os jovens passam a se diferenciar cada vez mais de seus pais e à adquirir maior autonomia, não apenas tem termos financeiros, mas principalmente em termos de pensamento e ideias. Por meio do que consumiam, viam novas possibilidades de se diferenciarem, tanto dos pais, quanto de outros jovens. “Teddy boys”, “mods” e “rockers” são algumas das manifestações culturais juvenis surgidas nas primeiras décadas do pós-guerra, em especial na Inglaterra, grande parte focadas na música rock e/ou na música negra como o blues, o jazz e o rhythm and blues. Cabe ressaltar que o rock e a música negra atraíam grande interesse, em especial por serem gêneros criticados pelos adultos. Neste mesmo contexto surge o movimento beat nos Estados Unidos, vinculado ao universo estudantil universitário, mais intelectualizado e que buscava inspiração e um contato maior “com os setores marginalizados da sociedade americana, como os negros, os músicos de jazz e os andarilhos” (ABRAMO, 1994, p. 31). Os beats foram os predecessores dos movimentos contra culturais das décadas de 60 e 70. Diante “do tédio” e “da hipocrisia” da sociedade tecnocrática, a juventude da década de 60 engaja-se na tentativa de construir um novo modo de vida: “A juventude agora aparece como um foco de contestação radical da ordem política, cultural e moral, empenhada numa luta contra o establishment, reivindicando uma inteira reversão do modo de ser da sociedade.” (ABRAMO, 1994, p. 39).

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O que antes era visto apenas como fonte de diversão e entretenimento, algo não aprovado pelos adultos, e portanto, apoiado pela juventude, foi adquirindo novas facetas. A juventude tinha o rock como principal forma de expressão, e aos poucos os temas foram ganhando aprofundamentos sociais, políticos de ideológicos. Alguns elementos basilares para a formação do heavy metal são retirados da contracultura e do movimento hippie. A importância do visual, por meio da forma característica de se vestir, o cabelo longo para os homens foi mantido e potencializado, na música foi o momento para uma maior experimentação, tanto em termos de composições quanto de técnicas e novas tecnologias. No campo ideológico a ideia do “paz e amor” não foi mantida heavy metal13, mas a ideia de contestação de valores permanece, seja em relação aos valores paternos, ou das gerações anteriores, sejam os valores da própria ordem comercial. Segundo Weinstein o heavy metal é primeiramente a junção de duas fontes: o blues rock e a psychedelic music (2000, p.16).14 Para a autora o guitarrista Jimi Hendrix funciona como um paradigma para entendermos essa mistura e como ela foi incorporada ao heavy metal: Ele [Hendrix] morreu antes do heavy metal se tornar um gênero bem definido, mas exerceu uma enorme influência na eventual emergência do heavy metal através do seu carisma pessoal e talento, e através da "corporificação" das duas maiores tradições que formam as bases para o gênero. (WEINSTEIN, 2000, p.16)15

As duas maiores tradições as quais a autora se refere são justamente o blues rock e música psicodélica, que Hendrix trazia à tona em forma de performance e virtuose. O blues direto e viceral mas ao mesmo tempo cheio de experimentalismos – era a noção de liberdade presente na época, quebrando padrões rítmicos e escalas musicais – a ideia do virtuosismo aliado à performance foram elementos adotados rapidamente pelo metal. As canções no heavy metal costumam exigir bastante da capacidade técnica dos músicos, solos ultra velozes, técnica vocal

13 A temática do caos é uma constante na maioria das composições de metal 14 “Heavy metal is primarily a blend of two sources, blues rock and psychedelic music.” (WEINSTEIN, 2000, p.16) 15 He died before heavy metal became a well-defined genre, but he exerted an enormous influence on the eventual emergence of heavy metal through his personal charisma and talent, and through his embodiment of the two major traditions that formed the foundation for the genre. (WEINSTEIN, 2000, p.16). Tradução própria. 25

apurada, seja para alcançar notas super agudas ou super graves, como é o caso do gutural, o uso do blast beat16, entre outras, são exemplo de técnicas que exigem muito da capacidade do artista. Outro ritmo de origem negra de grande importância para a formação do heavy metal é o jazz. Elementos do jazz foram introduzidos por Hendrix e pelo Cream17 (WEINSTEIN, 2000, p.16) principalmente em seus solos, alguns deles super estendidos. Estruturas mais simples são repetidas (influência do blues) e organizadas de forma a compor um background sonoro mais complexo. No primeiro episódio do documentário “Metal Evolution”18, do mesmo responsável por “Heavy Metal Jouney”, Bill Ward, baterista do Black Sabbath fala sobre a grande influência jazz da sua forma de tocar, ele diz “Está na música do Sabbath. Dá para ouvir o swing.”. No episódio que conta sobre a pré-história do heavy metal o antropólogo e diretor Sunn Dum, atenta também para a influência da música clássica, tanto em termos musicais, agindo diretamente na forma de tocar dos músicos – buscando um nível de virtuose cada vez maior, ou buscando de alguma forma a essência da música – quanto na forma teatral que adquirem boa parte das performances. No entanto, a influência mais direta da música clássica é posterior ao surgimento do metal no início da década de 70. É importante lembrarmos, como veremos mais à frente, que o metal é um gênero que se encontra em constante expansão. De tempos em tempos entram em cena novos subgêneros que conseguem estabelecer um vínculo com esse metal clássico fundador, garantindo sua patente e fazendo a manutenção do gênero. Posterior ao período que segue até a primeira parte da década de 70, o metal, já como um gênero cristalizado, entra em contato com outras conjunturas e passa a sofrer mutações, dando origem a outras vertentes e ajudando a ressignificar a ideia anterior de metal. Na segunda metade da década de 70 o punk entre em cena e influencia de forma determinante em uma série de conjunturas, “O rock nunca mais seria o mesmo”. Algumas apropriações feitas a partir punk foram essenciais para o metal. É interessante notarmos que tanto o punk quanto o

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Ver nota 4 deste trabalho. Cream, power trio dos anos 1960, um supergrupo constituído por baixista / vocalista Jack Bruce, o baterista Ginger Baker, e o guitarrista / cantor Eric Clapton. Seu som foi caracterizado por um híbrido de blues rock, hard rock e rock psicodélico. Em: http://en.wikipedia.org/wiki/Cream_band 18 Metal Evolution - Episode 1 - Pre History of Heavy Metal em 24:30:00 26 17

heavy metal representam manifestações culturais juvenis surgidas da insatisfação e da falta de perspectiva da classe operária: Durante os anos 70 a(s) classe(es) operária(s) no Ocidente estava sob cerco. A feroz "estagflação", econômica causada em parte pelo cartel do petróleo OPEP, prejudicava seriamente as pessoas que trabalham em empregos na indústria. Jovens de classe operária não podia mais esperar que acompanhariam seus pais e tios nas fábricas próximas. [...] A posição estrutural da juventude é mais influenciada por períodos de recuperação e recessão na economia. O punk na Inglaterra foi uma resposta às condições de deterioração e o heavy metal foi a outra. (WEINSTEIN, 2000, p 114)19

Diferente dos beats e dos hippies, mais ligados à classe média próspera de nível universitário, o punk e o heavy metal foram expressões que vieram de baixo, apresentando uma nova visão. A questão ideológica perde espaço para a realidade dura e violenta, os jovens que na década de 50 experimentavam com euforia sua independência financeira, viam agora na recessão e no desemprego o “no future”, um “não-futuro”. Em termos sonoros o punk adiciona crueza e velocidade ao som, a forma de tocar e a “atitude” – “punk is atittude”20 – no palco tornam-se ainda mais viscerais. Tão ou mais importante que a questão sonora, o punk trouxe consigo a bandeira do “Do it Yourself”, DIY – “faça você mesmo” – que ajudou a impulsionar formas independentes de produção distribuição e consumo. Para o heavy metal o punk representou a chegada de um novo momento. As novas bandas do metal britânico começaram a trilhar caminhos distindos, dependendo da inclinação de cada uma. Enquanto algumas foram para o lado mais comercial, o que Deena Weinstein chama de “lite metal”, outras optaram por seguir para um lado mais pesado, rápido e visceral, sem a preocupação de servir a um mercado já constituído.

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During the 1970s the working class(es) in the West were under siege. The fierce economic "stagflation," caused in part by the OPEC oil cartel, seriously hurt those working at manufacturing jobs. Working-class youths could no longer expect to follow their fathers and uncles into the nearby factories. […]The structural position of youth is most influenced by upturns and downturns in the economy. Punk in England was one response to the deteriorating conditions and heavy metal was another. (WEINSTEIN, 2000, p 114) 20

É comum acharmos relações da ideia de punk com a ideia de atitude. Principalmente no meio underground. 27

O “lite metal” se desenvolve esticando suas fronteiras em direção à música pop, a uma pegada mais rock’n roll e a outros elementos culturais que deram origem ao “glam”, ou “hair metal” (termos normalmente usados pejorativamente) e ao hard rock mais pesado. Já o outro ramo da bifurcação, desenvolveu o speed/thrash metal adicionando posteriormente elementos do punk, hardcore e cultura street, dando origem ao power metal, ao crossover, ao death metal, entre outros. As bandas de speed/thrash metal britânicas surgidas nesse contexto deram origem ao chamado “NWOBHM”, uma sigla que soa um tanto estranha, mas bastante familiar aos headbangers. A New Wave Of British Heavy Metal, como o próprio nome sugere, foi uma renovação do heavy metal que vinha sendo praticado na Inglaterra, seu país de origem. A “NWOBHM” é interessante pois marcar a “diáspora” do metal através do mundo. Essas novas bandas em sua maioria, faziam parte de novos selos que viam em determinados nichos possibilidades de atuação. Peso e velocidade eram as novas demandas da juventude. Favorecidos pelas tecnologias de gravação cada vez mais acessíveis e a maiores possibilidades de divulgação, essas pequenas empresas alimentavam o consumo underground assim como integravam o seu circuito. Apesar de ainda não existir a internet, as redes de troca, de contatos e o “tape trading” – lembrando que a tecnologia do K7 representou uma verdadeira revolução à época – estavam funcionando em pleno vapor e eram um tanto eficientes, copiar e enviar música para outras pessoas já era uma prática comum e incentivada naquela época. Somados a esses motivos é importante lembrarmos da relativa popularidade que o rock e mesmo o heavy metal, possuíam na época, o que favoreceu a chegada desses gêneros em alguns territórios como no caso do Brasil. No final da década de 70 e início da década de 80 o metal não era mais um produto específico de uma parte do mundo, surgiam bandas de metal em diversos lugares e nos mais distintos contextos. Como vimos nas páginas anteriores, o gênero não representa necessariamente uma estrutura rígida e pode variar de diferentes formas dependendo dos discursos que são elaborados. No entanto, quando estamos falando de gênero musical, um fator que deve ser levado em conta é o da cena musical aonde esse gênero é consumido e/ou se desenvolve. Quando o metal começa a ser produzido para além da Inglaterra ele começa a ganhar diferentes características e elementos conforme vai sendo consumido e apropriado por diferentes cenas.

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Para Simone Sá as cenas são fundamentais para a ideia de gênero e na formação de subgêneros, como é o caso do saravá metal. “Assim, do ponto de vista da nossa perspectiva, os gêneros musicais são um conjunto de regras – técnicas, semióticas e formais – que são encenadas ou atualizadas pelas cenas. É, portanto nas cenas que eles se confirmam ou são transformados em possíveis novos gêneros – ou subgêneros – e é esta articulação entre as duas noções que nos parece produtiva.” (SÁ, 2011, p.154)

Da década de 80 em diante houve uma verdadeira avalanche de subgêneros filiados ao metal, muitos deles ligados à territorialidades ou a cenas específicas como: o “true norwegian black metal”, o “thrash metal da bay area”, o “thash metal alemão” e o “Swedish death metal”. Aqui destaca-se a articulação do metal “global” em cenas locais, visto que as cenas locais são espaços privilegiados de atuação no gênero. “A coisa mais impressionante sobre a carreira do Sepultura é o número de cenas de que faziam parte - a cena do metal brasileira, a cena death metal, a cena do metal extremo mundial, a cena global de heavy metal. Essas cenas existem de forma quase autônoma uma das outras e afetam umas às outras e à trajetória do Sepultura.” (HARRIS, 200, p.25)

Esses diferentes “extratos” das cenas associadas ao metal demostram como essas cenas são organizada. Elas não seguem necessariamente uma formação hierárquica, mas constroem diferentes “níveis” dependendo da escala que está sendo utilizada. Ao dizer que o Gangrena Gasosa é uma banda de metal estamos a localizando num contexto mais amplo, mas quando falamos de saravá metal, entramos num contexto mais restrito. Mesmo aqueles que nunca ouviram falar do Gangrena, ou ouvirem o termos “saravá metal”, podem, a partir dessa pequena informação genérica, pensarem em algo próximo ao que é produzido pelo Gangrena. Quando o gênero chega ao Brasil, apesar das dificuldades em termos de acesso e de poder aquisitivo, alguns fãs já começam a fazer parte desse universo. Esses fãs além de irem à caça de discos e K7s, começavam a montar suas próprias bandas com o que havia disponível. Um exemplo interessante desse período é a banda Stress, formada em 1977, considerada a primeira banda brasileira de heavy metal a lançar um álbum, o disco homônimo “Stress” de 1982, gravado no Rio de Janeiro. Nessa época existia no Rio além do “Estúdio Sonoviso”, responsável pela gravação do disco “Stress”, a rádio Fluminense FM, que em 1981, e nos anos seguintes, teve sua programação voltada exclusivamente para o rock e também para o metal. Ainda na primeira metade da década 29

de 80, mais exatamente em 1985 acontecia na cidade a primeira edição do festival Rock in Rio. Por conta disso, é possível dizermos que nesse período o Rio de Janeiro era uma cidade um tanto abastada em relação ao metal, o que foi mudando com o tempo. Apesar do Rio estar funcionando como uma espécie de pólo da produção roqueira nacional, as duas maiores bandas de rock pesado nacionais nascem justamente nos Estados vizinhos, o Ratos de Porão em São Paulo e o Sepultura em Minas Gerais, que são influências claras e explícitas do Gangrena Gasosa. Essas duas bandas apesar de não terem tocado no Rock in Rio nem terem feito parte do “movimento do rock nacional” na época, foram grandes divulgadoras do nome do Brasil através do globo. Gosto de lembrar que o Sepultura foi a primeira banda brasileira a ter tocado em todos os continentes. Sepultura e Ratos de Porão são duas das influencias mais claras do Gangrena Gasosa. A primeira pela grande influência que teve em várias outras bandas de metal extremo nacionais e internacionais, além do Sepultura ter elevado o metal a níveis mais extremos, foi a primeira banda que “conseguiu chegar lá”, sair do Brasil e ser reconhecida fora do país. “O sucesso do Sepultura foi um fator-chave para inspirar cenas Death Metal em todo o mundo, abrindo possibilidades para as bandas de cenas marginalizadas em todos os lugares.” (HARRIS, 200, p.20)

E o Ratos de Porão por ser um símbolo máximo do underground nacional e representar toda atitude punk. A banda conseguiu unir o punk e o hardcore ao heavy metal, tanto sonoramente quanto em termos de público. A sonoridade mais pesada, agradava tanto os punks quanto os headbangers, o que pode ser considerado uma proeza na época, visto que inicialmente esses dois grupos não eram muito simpáticos entre si. A princípio a sonoridade do Gangrena Gasosa não se associa diretamente a nenhum desses gêneros, a banda mistura uma série de elementos que vão desde o metal clássico, ao thrash metal e ao grindcore – gênero que se apropria das variedades mais extremas death metal e metal extremo, entre outras influências “caóticas”, como o industrial e noise music. Essa dificuldade de associação por um lado representava um contratempo, principalmente na hora de apresentar a banda para novas audiências, mas por outro lado acabou levando a uma nova classificação genérica.

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Gangrena gasosa Além das batucadas, que fogem do padrão “baixo, bateria, guitarra e vocal”, a banda introduz uma série de elementos ligados à umbanda, um culto religioso tipicamente brasileiro 21, com letras que abordam, em sua maioria, um universo que nos é familiar, como: “Centro do Pica Pau Amarelo” e a “A Supervia Deseja a Todos uma Boa Viagem”. A primeira é uma referência clara à obra de Monteiro Lobato, boa parte da juventude das décadas de 80 e 90 cresceu assistindo ao Sítio do Picapau Amarelo na TV, além é claro, das demais gerações que convivem com as histórias do autor. Mas, segundo os integrantes do Gangrena Gasosa, Monteiro Lobato era um pai de santo de marca maior. Em “Centro do Pica Pau Amarelo” a letra diz: “(...) Ela (a Cuca) tem um capeta no seu caldeirão E um demônio aprisionado dentro de um garrafão Sacrifica o Rabicó em nome de Omulú Emília Pomba-Gira é uma boneca de vodu Anastácia é poderosa nos trabalhos de umbanda E nas macumbas mais sinistras é Vovó Benta quem manda (...)” Já “A Supervia Deseja a Todos uma Boa Viagem” descreve as adversidades pelas quais passam as pessoas que necessitam pegar o trem na cidade do Rio de Janeiro e o descaso da Supervia, empresa administradora do serviço, com seus usuários. Aqui além de uma aproximação com as questões do cotidiano de seu público, a banda se aproxima de um ponto relevante que ajudou a criar a base do que conhecemos hoje como heavy metal, a questão da classe trabalhadora, working class. Como veremos mais a diante neste trabalho, boa parte do etos do heavy metal tem origem na classe operária da Inglaterra das décadas de 60 e 70. “(...) Senhores passageiros a Supervia informa hoje todos os ramais operam com atraso senhores passageiros a Supervia informa a composição vazia só vai fazer manobra

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Segundo http://pt.m.wikipedia.org/wiki/Umbanda, acessado em 13/11/2013

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Senhores passageiros a Supervia é foda seu trem vai dar entrada lá na outra plataforma Senhores passageiros quem quiser chegar na hora melhor sair correndo que ele vai partir agora (...)”

Outra característica que desperta meu interesse sobre o Gangrena Gasosa é a questão do sarcasmo, de “zoar o barraco”, de fazer troça. A maioria das bandas de heavy metal são muito sisudas, e dentro de suas esferas de criação, produção e performance não há muito espaço para descontração, mesmo que fora desse contexto seus integrantes sejam pessoas bem diferentes, bem humoradas e até divertidas. O saravá metal vem meio que de encontro a isso. O Gangrena Gasosa se expressa de forma bastante sarcástica e satírica, desde a forma de se comunicarem com o público, às apropriações que fazem dos diversos elementos que se encontram à sua volta. O modo como se comportam, o linguajar adotado pelos integrantes, o uso de várias paródias, tudo isso faz parte da ideia do saravá metal. A banda “brinca” com coisas que são levadas muito a sério por algumas pessoas e instituições, em especial, o heavy metal, a umbanda e as religiões cristãs. É uma abordagem diferenciada, o que não necessariamente diminui o respeito que a banda e seus integrantes tem ou venha a ter por esses assuntos. É evidente que nem todos vão entender ou concordar com essa abordagem, ainda mais se tratando de grupos tão dogmáticos. A banda vem há mais de duas décadas resistindo a ataques das correntes mais ortodoxas e belicosas de headbangers e religiosos dos mais diferentes seguimentos e mesmo assim se mantêm firme, conservando a sua energia. Como veremos mais à frente, esses conflitos gerados pelo saravá metal na disputa por seu lugar na sociedade e na comunidade de ouvintes, são como motores, que mais favorecem do que debilitam a banda. O Gangrena Gasosa é uma banda provocativa e seu objetivo não é apenas atacar o status quo ou discursar sobre o caos, como a maioria das bandas de punk, rock e heavy metal em geral, sua intenção é provocar agitação no ambiente, em seu próprio ou aonde quer que a banda

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chegue; mais uma vez, a intenção é “zoar o barraco”22. Não é à toa que o nome do DVD lançado em 2013 contendo o segundo documentário sobre a banda23 se chama “Desagradável”. Produzido por Angelo Arede (vocalista e Zé Pelintra da banda) junto com Fernando Rick, com direção de Fernando Rick, “Desagradável” é um verdadeiro tesouro do underground carioca, um apanhado de pérolas e de lendas que se não estivessem sendo contadas por quem realmente esteve lá, provavelmente não acreditaríamos. “Desagradável” conta com dois DVDs, o primeiro disco contém o documentário e o segundo, um registro ao vivo chamado de “Gangrena Gasosa no Inferno”, com uma performance ao vivo no Inferno Clube em São Paulo, ainda nesse mesmo disco estão presentes alguns extras, entre eles o primeiro documentário “Saravá Metal” de 1992, produzido por Adilson Pereira e Custódio Amaral. Por conta da riqueza de conteúdo desse registro, uso esse material como principal fonte de embasamento deste trabalho quando falamos de Gangrena Gasosa e saravá metal. Eu já conhecia a banda, tendo inclusive presenciado alguns shows, já era “partidária” do saravá metal, no entanto esse registro me fez enxergar a questão com mais clareza e perceber a riqueza desse trabalho enquanto objeto de estudo na área de comunicação, consumo/produção musical, sociedade e tecnologia. O DVD conta com relatos de figuras ilustres da cena underground de rock e metal do Rio de Janeiro e do mundo. Um dos mais marcantes é o do Fábio Costa, o “Fábio do Garage”, que faleceu pouco tempo depois, antes da finalização do DVD. Fábio era responsável pelo “Garage”, casa de show que, embora extinta, até hoje é referência na cena carioca. Ele conta como tudo ficava fedendo a despacho depois do show do Gangrena Gasosa, e que era preciso além de trocar o carpete, exorcizar o ambiente. Fabio Costa recebia reclamações constantes do centro que se localizava próximo à casa de show, nos dias que o Gangrena tocava ficava difícil de segurar os exus que baixavam lá no terreiro; além de episódios mais sinistros envolvendo maldições e fenômenos paranormais.

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"Zoar o barraco" é a expressão usada por Cid Mesquita, um dos fundadores do banda, no DVD "Desagradável" para descrever as intensões e os objetivos do Gangrena Gasosa. 23

O primeiro registro se trata do mini-documentário "Saravá Metal", produzido em 1992, por Adilson Pereira e Custódio Amaral. Este material pode ser encontrado nos extras do DVD "Desagradável" de 2013. 33

João Gordo (Ratos de Porão), Jello Biafra (ex Dead Kennedys), BNegão, Tom Leão, entre outros, também dão seus relatos no filme. Eles dizem que o saravá metal também os pegou de surpresa e que aquela era uma das coisas mais “autênticas” que já tinham ouvido. Todas essas falas de indivíduos relevantes, formadores de opinião – que ocupam, portanto, um lugar privilegiado dentro do ciclo de autenticação, como veremos mais a frente – ajudam a legitimar a banda e corroborar junto aos fãs a ideia de que o sarava o saravá metal é de fato autêntico. É por esse motivo que o Gangrena Gasosa e o saravá metal são tão uteis à discussão sobre autenticidade. Formada na Baixada Fluminense no início da década de 90 com o principal intuito de abrir um show para o Ratos de Porão – já na época considerada a maior banda de punk/crossover24 do Brasil –, que na época estavam lançando o álbum “Brasil” no Circo Voador25. Um motivo que soa um tanto legítimo, principalmente para aqueles que fazem parte do meio underground. É comum que integrantes da cena queiram participar de diferentes formas do circuito, muitos fãs também são músicos, fotógrafos, fanzineiros, produtores, entre outros. Isso faz parte dos esforços e dos circuitos de autenticação. Tendo conquistado esse objetivo alguns anos mais tarde, o Gangrena Gasosa continuou a trilhar seu caminho, com o saravá metal conquistando fãs e despertando o caos por onde quer que passe. Em 1998 a banda fez parte do tributo “Traidô: 20 bandas tocando Ratos de Porão”, com “Benzer até morrer/ Kurimba ruim”, a única música do disco que não foi gravada pelo Ratos de Porão, mas sim pela banda. “Benzer até morrer/ Kurimba ruim” também faz parte do segundo álbum da banda “Smells Like a Tenda Spírita”, lançado em 2000.26 Vale lembrar que “Benzer até morrer” é uma alusão à “Beber até morrer”, uma das músicas mais conhecidas do Ratos de Porão, e “Smells Like a Tenda Spírita” vem de “Smells Like Teen Spirit” uma dos maiores sucessos da banda Nirvana, lançado em 1991.

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A combinação de dois estilos distintos, geralmente punk e hardcore. http://pt.wikipedia.org/wiki/Gangrena_Gasosa_(banda) 26 Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Smells_Like_a_Tenda_Sp%C3%ADrita acessado em 16.12.2013 34 25

Benzer até morrer – Gangrena Gasosa Por quê será que o homem tem essa mania macumbeira De confiar no santo e na mão da rezadeira É vela no terreiro pra vovó e pra Oxalá Viver incorporado é melhor do que lutar Benzer até morrer, será essa a solução? o santo lhe domina, a pomba-gira e o guanxumão Mais outra bença agora você só vai receber depois que me pagar, pode crer!!! A curimba terminou e sua cabeça foi raspada Seu corpo foi fechado pelo som da batucada Moedas para o Buda e beijos na foto do Papa Acenda uma vela para o seu anjo de guarda Não vou mais frequentar essa kurimba ruim esse terreiro de ladrão, o pai-de-santo me deixou na mão ele pediu dinheiro pro despacho, comprou tudo de carne e fez churrasco minha obrigação, virou foi um pagode e eu perdi tudão não vai dar, desse jeito o santo vai me cobrar... (...)

Após ter lançado a demo-tape “Saravá Metal” o Gangrena Gasosa conseguiu causar “barulho” suficiente para conseguir um contrato para lançar seu primeiro álbum, “Welcome to Terreiro” é lançado em vinil pela “Rock It!” em 199327. No documentário os membros da banda e outros participantes ativos da cena na época lembram que existiam muitas bandas e conseguir um contrato desse tipo para lançar um disco não era nada fácil. A primeira faixa do álbum é “Troops of Olodum”, versão “olodum” para “Troops of Doom” do Sepultura (do disco “Schizophrenia” de 1987). Há quem diga que a mistura de elementos tribais feita pelo Sepultura no álbum “Roots” de 1996, que levou a banda para topo das paradas, foi anteriormente proposta nesta música do Gangrena, que começa com praticamente a mesma

27 Fonte: http://www.gangrenagasosa.com.br/portugues.php acessado em 16.12.2013 35

sessão rítmica de “Troops of Doom”, mas com batidas de percussão, que até então, não faziam parte das composições do Sepultura, hoje uma das maiores marcas da banda. Os despacho sretirados “fresquinhos”28 das encruzilhadas e levados para o palco, em determinado momento da apresentação eram despejados sobre o público. Isso virou notícia nos jornais de grande circulação da época e que acabou colaborando para a (má)fama da banda. Pedro Alvim (2006) lembra ainda da “interdição” que a banda sofreu, não pelo produtor do show ou do dono da casa de eventos, mas das próprias entidades: “Outra célebre história alçada a lenda pelo público do Garage foi a proibição dos shows do Gangrena Gasosa, banda de saravá metal, por um terreiro de umbanda localizado à época (fim dos anos 1990-início dos 2000) na rua atrás da casa, sob a alegação de que, segundo fãs de metal presentes, as músicas da banda provocavam o caos nos cultos do centro espírita, pois ‘só baixavam exus’. O Gangrena Gasosa fazia seus shows satirizando diversas tradições religiosas brasileiras, como o neopentecostalismo, o catolicismo e os cultos afro-brasileiros. Provenientes da Baixada Fluminense e do subúrbio carioca, seus integrantes cantavam paramentados com roupas e símbolos de entidades de umbanda” (ALVIN, 2006, p.55)

O segundo disco “Smells Like a Tenda Spírita” é lançado em 1999, figurando como um dos melhores discos nacionais daquele ano29. Nesse registro estão presentes as já citadas: “Centro do Pica Pau Amarelo” e “Benzer Até Morrer/Kurimba Ruim”. Depois de sair em turnê pela Europa em 2001 a banda lança dois Eps, “6/6/6” e “12/12/12”, respectivamente em 2006 e 2007. Somente dez anos depois do último disco “full-length” o Gangrena Gasosa lança o seu terceiro “trabalho”, “Se Deus É 10, Satanás É 666” de 2011 pela Tamborete Records e Free Mind Media30. As informações disponíveis sobre a banda encontram-se muitas vezes dispersas, por isso o registro presente no DVD “Desagradável” é tão importante, nele podemos ver que a banda passou diferentes fases, tendo uma grande rotatividade de integrantes. Nesse último álbum a banda faz um trabalho especial na percussão deixando o “saravá” ainda mais acentuado. As percussões ficaram a cargo de Elijan Rodrigues e Anjo Caldas, percussionista da Elba Ramalho e da banda Catapulta. Músicos profissionais envolvidos nas produções, dando mais legitimidade ao gênero. O som ficou ainda mais pesado e as passagens

Segundo os depoimentos dos próprios integrantes no DVD “Desagradável”. Segundo http://www.gangrenagasosa.com.br/portugues.php acessado em 16.12.2013 30 http://pt.wikipedia.org/wiki/Se_Deus_%C3%89_10,_Satan%C3%A1s_%C3%89_666 acessado em 16.12.13 36 28 29

rítmicas deram ainda mais energia às composições. Como dito no começo desse trabalho, o Gangrena Gasosa é a banda que conseguiu misturar mãe de santo com blast beat e o terreiro de macumba com o “mosh pit”.

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CAPÍTULO 3 “E os caras fantasiados. Como é que pode uma banda de metal em vez de estar usando cinturão de bala estar vestida de pomba-gira? Essa porra 'tá errada.” (Marcos Bragatto)31

Ao dizer que algo está errado com uma banda de metal que, em “vez de usar cinturão de bala, está vestida de pomba-gira”, o jornalista Marcos Bragatto deixa clara a sua posição mais conservadora em relação ao que ele entende como metal. Por fazer parte de uma cena extremamente codificada, não é difícil imaginarmos que o Gangrena Gasosa seja constantemente questionado em relação ao seu modo de agir. No entanto, as provocações contidas nesse questionamento, não são dispensadas, mas usada a favor da banda. O fato de não se vestirem como as outras bandas de metal, com cinturões, coturnos, jeans e camisa preta, chama mais a atenção do que se todos estivessem dentro dos padrões do gênero. Enquanto a mídia especializada tentava, e ainda tenta, compreender o que é o saravá metal, tentando elucida-lo dentro de formas e padrões já existentes, outros indivíduos importantes no “ciclo de autenticação” como João Gordo, Jello Biafra e Bnegão tinham curiosidade para ver que o de fato estava acontecendo. Esses por sua vez, com uma visão do saravá metal como algo novo, “inédito” e curioso. Assim como a opinião dos experts podem divergir, a do público também encontra-se em conflito. Acompanhando a banda e seu público, vejo que algumas pessoas que se apoiam mais nas opiniões dos experts ou ficam sem conseguir opinar sobre a banda, ou recusam o saravá metal como gênero autentico dentro do metal, ao passo que os que apoiam criticam esse posicionamento. Enquanto uns dizem que é autêntico e outros dizem que não é, isso representa diferentes “forças” puxando para lados opostos, geram uma dinâmica que ajuda a fomentar o gênero. Simone Sá fala sobre dois vetores básicos que atuam no processo de formação e diferenciação entre as cenas, e que atuam em direções opostas, um a favor da estabilidade da uma tradição musical, o outro trabalhando no sentido da disrupção das continuidades.

31

Ao DVD “Desagradável”. 38

“o primeiro trabalhando a favor da estabilização de uma tradição musical – como é o caso, num exemplo familiar, da comunidade do samba no Brasil, eternamente engajada na busca das raízes, origens e linhas de autenticidade; e o outro trabalhando no sentido da disrupção das continuidades, buscando um diálogo cosmopolita e relativizador das raízes com o cenário internacional e que tem na mudança, e não na estabilidade estilística, a referência mais importante, como seria o caso, também num exemplo que nos é familiar, o da geração do BRock dos anos 1980 no Brasil." (SÁ, 2011, p.151)

À medida que o Gangrena Gasosa mantêm os elementos básicos da música metal – peso, distorção, velocidade, agressividade – a banda mistura elementos de gêneros regionais como triângulo, pandeiro e atabaque. Alguns podem achar essa mistura abominável, mas o tempo de estrada e a trajetória da banda mostram que a maioria não só aceita, como defende o saravá metal como rótulo autêntico ligado ao metal. “A justificativa para a criação do saravá metal dada pelos músicos do Gangrena Gasosa em entrevistas à imprensa era a de que sempre ouviam músicas heavy metal com referências a seres do além de outras paragens, da mitologia europeia, e que decidiram mudar essa temática em suas composições remetendo-as às assombrações e ao além interno ao território nacional, principalmente o sobrenatural da umbanda e dos neopentecostais. (ALVIN, 2006, p.58)

O metal, assim como o samba no trecho de Simone Sá destacado acima, parece eternamente engajado na busca das suas raízes, no entanto, é através de novas propostas (rupturas) que o gênero se mantêm vivo. Os processos de autenticação tomam-se então essências para essa sobrevivência, uma vez que é por meio desses processos que novos gêneros “autênticos”, filiados ou não, podem surgir. O Gangrena Gasosa é um autêntico fruto do underground carioca, formada por pessoas que faziam parte dessa cena e eram profundos conhecedores do gênero, o que lhes permite falar de certo lugar de autoridade. Em “Quem Gosta de Iron Maiden Também Gosta de KLB” a banda faz questão de deixar isso bem claro: Quem Gosta de Iron Maiden Também Gosta de KLB Ainda tenho o meu primeiro disco heavy de vinil É o Killers do Iron Maiden mano, puta que o pariu! Eu ouvia o dia inteiro ia até de madrugada Hoje em dia os metaleiros são uma puta pleiboyzada 39

Não tinha nada de new metal, linkin park, limp bizkit, Korn, system of a down, e esse monte de bichice Naqueles tempo do slayer reining blood que era bom Salve os deuses do inferno kronos, mantas e abaddon

Escutei slipknot mas não adiantou nada Botaram DJ no meio pra mim isso é o que estraga Só se salvam hoje em dia o anal cunt e brujeria Só se salvam hoje em dia o anal cunt e brujeria Mas hoje em dia...

Refrão (2x): Quem gosta de iron meiden Também gosta de KLB (...) A letra é uma provocação clara aos headbangers da nova geração que ouvem bandas associadas ao “new metal”, um gênero considerado falso ou não autêntico para os headbangers que seguem uma linhagem mais estrita ou mais ligada ao underground32. “Quem Gosta de Iron Maiden Também Gosta de KLB” é uma crítica àqueles que só gostam das bandas mais “manjadas”, ou que estão na moda, e que não estão integrados aos processos do gênero e do underground, uma clara demonstração de disputa simbólica. Ao mesmo tempo que critica, a banda ensina o que é bom ouvir e o que supostamente deveria ser valorizado no lugar desses novos sons: Slayer, Venon, Anal Cunt e Brujeria. Isso mostra um engajamento da banda com a cena e com os integrantes da mesma. Seguindo com a temática e o clima de provocações, “Headbanger Voice” faz menção à seção de cartas da revista Rock Brigade e como os fãs costumavam se expressar nesse espaço.

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O New Metal mistura hip hop com metal, bandas como Limp Bizkit, Korn e Linkin Park, presentes na primeira década do ano 2000, misturam DJs, batidas eletrônicas e samples nas músicas. Por estarem mais ligados à tendência impulsionada pelas gravadoras na época, do que ao heavy metal ou subgêneros tidos como mais autênticos, o new metal até hoje é rejeitado por um grande número de fãs. 40

Headbanger Voice

Caros amigos da Brigade Escrevo pra protestar Contra certos imbecis Que só querem deturpar O verdadeiro heavy metal fazendo um monte de misturas Eu não concordo com essa porra, isso é boiolice pura E se não bastasse o funk'o metal veio para completar Essa mistura com macumba, esse tal de Saravá

Já acompanho o seu trabalho Desde os tempos em preto & branco Prefiro mais os velhos tempos Me desculpem por ser franco

Headbanger voice... Headbanger!!!

E como sou leitor antigo, quero uma sugestão fazer Coloquem mais death metal se não eu vou parar de ler E pra aumentar ainda mais a minha felicidade Eu quero um pôster do Glen Benton E uma entevista com o Deicide

Antes de acabar a carta, um recado aos companheiros Quero me corresponder apenas com os fãs do verdadeiro Deathnoisegrindblackmetalsplattercore Não me escrevam os cabeludos pós Hollywood Rock

41

Eu curto Impaled Nazarene, Burzum, Behemoth & Samael O puro suco da maldade que vem lá do fundo do hell

As publicações impressas de circulação nacional como a Rock Brigade e a Roadie Crew eram uma das principais formas de divulgação e circulação de notícias sobre o gênero. Hoje continuam relevantes embora disputem com inúmeras outras fontes de informação. Era comum que os fãs comprassem essas revistas e utilizassem o espaço da seção de cartas, na maioria das vezes para protestar contra falsos fãs ou atitudes não autênticas. A busca por autenticidade no metal, diferente do que propõe David Grazian se desenha quase como obrigatoriedade, uma condição para o pertencimento ao gênero. Essas letras ligadas estreitamente ao contexto vivido pela banda demonstram estratégias de negociação de autenticidade, são uma forma da banda dizer que também parte daquele universo compartilhado com os fãs. E que assim como eles, também são capazes de atuar como “vigilantes de fronteiras”. A proposta de fazer um black metal brasileiro, usando as temáticas “ocultas” da nossa cultura, ao mesmo tempo que parece um tipo de brincadeira, em alguns parece ser levada bastante a sério. Mesmo não sendo da umbanda, os integrantes demostram um grande conhecimento sobre o tema. Alguns episódios “sinistros” fazem parte da história da banda, o que ajuda a alimentar ainda mais esse lado “black metal” do Gangrena Gasosa. Além de atraírem os “exus” para os centros próximos, alguns integrantes já passaram por situações pouco prováveis, sem contar a “maré de azar” constante que ronda a banda. Paulão, um dos primeiros vocalistas da banda foi espancado quase até a morte certa vez. Um grupo cercou o vocalista e perguntou se ele “sabia com o que estava mexendo”, tentando se defender sem nenhuma chance, ele não sabe explicar como escapou vivo do ataque. Outro episódio correu na linha do trem, o lugar estava deserto, o vocalista conta que uma mulher muito suja se aproximou e eles começaram a conversar, e isso é até onde ele se lembra. No outro dia acordou nu, todo machucado e deitado na linha do trem. O fato é que para “mexer” com esse tipo de assunto é preciso saber o que está fazendo, seja para lidar com as entidades, seja de encarar os fanáticos religiosos e demais tipos de represália. 42

Chuta que é Macumba Pode ser católico, crente ou judeu Muçulmano, hare krishna, budista e até ateu Quem tem cú tem medo, as preguinhas ficam tensas Quando passa por despacho sempre pede “dá licença”

Ainda vem com aquele papo Que é um cara que respeita Mas fica todo cagado Quando vê uma vela preta

Bagulho casca grossa É quando o cara é macumbêro Que o terreiro é um puxadinho Do lado do galinheiro A macumba é tudo isso E ainda faz pior Quando pede só pecado E recebe após o ebó

Tu já viu religião Que ainda pede sacrifício? Pra fazer o mal então Fica ainda mais difícil

Religião que se aproxima É a tal do maomé Se o malandro chuta santa Pode ficar sem o pé Mas enquanto eles mandam Mulher arrancar o grelo

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Macumbêro amarra o par Sacrificando carneiro

Refrão (4x) Meu exú cabô de comer Pó parar de tremer Chuta que é macumba! Chuta que é macumba!

Evangélico que é foda Sempre luta com o diabo Pra se fingir de possuído Sempre tem um arrombado

Quem acredita nessa porra Tem mais é que se fuder O crente acha que o capeta Não tem mais o que fazer Quem acredita nessa porra Tem mais é que se fuder O crente acha que o capeta Não tem mais o que fazer

Podem até achar legal Quem bota cuia na molêra Mas coloca uma guia Tu se sente uma caveira

Te dichavam cumó nojo Como fosse um bode preto Logo vem uma crente véia Que te entope de panfleto

44

Arranca a cabeça dela E bota dentro de um saco Joga na encruzilhada Com dendê dentro do prato

Refrão (4x) Meu exú cabô de comer Pó parar de tremer Chuta que é macumba! Chuta que é macumba!

Algumas imagens antigas contidas no DVD “Desagradável” mostram o público após receber a chuva de despacho, alguns fãs parecem realmente estarem “possuídos”, bangeando33 de forma mais estranha que o normal, se é verdade ou não, não temos como saber, mas alguns fãs que não conseguiam fugir a tempo da chuva de farofa saiam da casa de show desconfiados de qualquer situação estranha que acontecesse. Além da sonoridade, das letras, das performances e das lendas envolvendo o Gangrena Gasosa, seu posicionamento em relação ao mercado também demonstra uma atitude em direção à busca por autenticidade. A banda está disposta a manter sua integridade, seguindo seus próprios interesses, independente de conseguirem um contrato com uma gravadora ou não. Seus últimos trabalhos foram lançados de forma independente e a banda segue firme nesse objetivo.

33

“Bater cabeça”, a forma como os fãs de metal costumam reagir à música. 45

CONCLUSÃO Dizer que o saravá metal é um rótulo autêntico é afirmar que ele além de ser algo minimamente original, está também inserido num ciclo de autenticação, conseguindo organizar esforços de forma eficiente e bem sucedida nos mais de 20 anos de carreira. A mistura de elementos pouco prováveis para uma banda de metal foi negociada de maneira eficaz. O Gangrena Gasosa é e continuará sendo, a primeira banda de saravá metal do mundo. Na confecção deste trabalho utilizei uma série de textos e artigos que ligavam a questão da autenticidade ao gênero musical, passei por trabalhos que falavam da cena blues de Chicago, do hip hop em Istambul e da cena “careca” da região do ABC paulista, entre outros. Alguns desses textos foram de grande importância para a transcrição dos processos de autenticação que demonstrei aqui a partir do saravá metal. Isso me ajudou a descobrir que os esforços de autenticidade estão presentes nos mais diferentes gêneros, só que organizados e administrados de formas distintas. O saravá metal conquistou seu espaço como rótulo praticamente exclusivo através das disputas que podem ser representadas como movimentos de “preservação” e “alargamento” das fronteiras no território do metal. Hora preservando, buscando manter uma unidade e reforçando sua filiação com o metal, hora estendendo os limites das fronteiras propostas pelo gênero e sua comunidade de fãs e ouvintes. Talvez seja por conta desse ambiente de constante disputa, nem sempre amigável, que geralmente músicos e bandas são associados a guerreiros, por suas ações, sonhos e batalhas a serem vencidas. Espero que com essa breve apresentação tenha conseguido ampliar as questões acerca da autenticidade, que deve ser pensada para além das questões de cooptação ou de mercado, de mainstream x underground. Música não cooptada não quer dizer necessariamente que seja autêntica, assim como ser cooptada não exclui de uma banda ou artista seu possível caráter autêntico. Não é o público, a banda, ou o mercado que decide o que é legítimo ou não, mas sim todos esses meios juntos, cada um com seu discurso e sua forma gerir a autenticidade, há um grande espaço para negociações. Fugir dessa simplificação ajuda a compreendermos melhor as novas relações que estão sendo construídas entre objetos de consumo e consumidores, a formação e a constituição dos nichos e dos gostos pessoais.

46

Saravá! Gangrena Gasosa

Em pé: Exu Caveira (Minoru Murakami - Guitarra) Pomba Gira (Gê - Percussão) Exu Tranca Rua (Will Vilante - Baixo) Zé Pelintra (Angelo Arede - Vocal) Caboclo Sete Flechas (Heitor Peralles - Percussão). Agachados: Omulu (Rocco - Vocal) Exu Mirim (Renzo - Bateria). Foto por Karen Navega (http://www.facebook.com/karennavegafotografa) 47

Bibliografia ABRAMO, Helena Wendel. Cenas Juvenis:Punks e darks no espetáculo urbano. São Paulo: Scritta, 1994. CARDOSO FILHO, Jorge, JANOTTI Jr, Jeder. A música popular massiva, o mainstream e o underground: trajetórias e caminhos da música na cultura midiática. In: FREIRE FILHO, João e JANOTTI Jr, Jeder (org). Comunicação e música popular massiva. Salvador: EDUFBA, 2006. CHRISTE, Ian. Heavy Metal – A história completa; tradução de Milena Duarte e Augusto Zantoz. São Paulo: Arx, 2010. FERNANDES, Fernanda Marques. Música, Estilo de Vida e Produção Midiática na cena Indie Carioca. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, ECO/UFRJ, Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura; 2007 GRAZIAN, David. The Symbolic Economy of Authenticity in the Chicago Blues Scene in BENETT, A.; PETERSON, R..Music scenes: local, translocal & virtual: Vanderbilt University Press, 2004. p. 31-47. HARRIS, Keith, 2000. 'Roots'?: the relationship between the global and the local within the Extreme Metal scene. Popular Music, 19 (1), pp. 13-30. ISSN 14740095 [Article]: Goldsmiths Research JANOTTI Jr., Jeder. Heavy metal com dendê: rock pesado e mídia em tempos de globalização. Rio de Janeiro: E-papers, 2004. JANOTTI Jr., Jeder. War for territory:cenas, gêneros musicais, experiência e uma canção heavy metal. In XXI Encontro da Compós, Anais Eletrônicos. Juiz de Fora UFJF, 2012. SÁ, Simone Pereira de. Will Straw: cenas musicais, sensibilidades, afetos e a cidade. In: JANOTTI JR, Jeder, GOMES, Itania Maria Mota. Comunicação e Estudos Culturais. Salvador: EDUFBA, 2011, pp. 147-162. SOLOMON, Thomas. “Living underground is tough´”: authenticity and locality in the hiphop community in Istanbul, Turkey. Popular Music. 2005, volume 04, n. 01, pp. 01 – 20.

48

STRAW, Will. 1997. “Communities and Scenes in Popular Music.” In Ken Gelder and Sarah Thornton, eds., The Subcultures Reader. New York: Routledge. First published 1991 as “Systems of Articulation, Logistics of Change: Communities and Scenes in Popular Music,” Cultural Studies 5: 368–88. STRAW, Will.(1993) Characterizing rock music culture: the case of heavy metal. In: DURRING, Simon (ed.). The Cultural Studies Reader. London: Taylor & Francis e-Library, 2001. p.451 - 461. WEINSTEIN, Deena. Heavy Metal: the music and its culture. New York: De Capo, 1991/2000. Vídeografia AREDE, Angelo; RICK, Fernando. DVD "Desagradável". [Filme-vídeo, documentário e show]. Produção de Angelo Arede e Fernando Rick, direção de Fernando Rick. Rio de Janeiro, Black Vomit Filmes, 2013. DVD duplo, 200 min. HD, colorido. son.

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