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Os Rothwells Livro 02

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Se Phaedra Blair não possuísse tanta beleza e estilo, a alta sociedade achá-la-ia apenas estranha. Mas como a Mãe Natureza a dotou de ambas as coisas, consideram-na interessante e excêntrica. Ela é uma mulher à frente do seu tempo. Deseja liberdade e persegue um sonho. Apaixonar-se não está nos seus planos imediatos. Aliás, o seu primeiro encontro com Lorde Elliot não é auspicioso. Injustamente presa, será graças ao poder e charme do jovem que consegue escapar. Mas Phaedra depressa descobre que o preço da sua "liberdade" é ficar virtualmente ligada ao seu "herói". Pois Elliot Rothman não agiu apenas numa missão de boa vontade. O seu objectivo é garantir que Phaedra não publicará um manuscrito que ameaça destruir o bom nome da sua família, e para tal, ele está disposto a tudo. Não contava, porém, encontrar uma adversária à sua altura. Os dois jovens vão debater-se com as convenções de uma sociedade rígida e, acima de tudo, com sentimentos tão intensos quanto contraditórios.

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Capítulo 1 U

m homem que cometeu um crime tem de esconder o

seu rasto, ainda que o tenha deixado com os melhores sapatos que o dinheiro pode comprar. Para esconder o seu, Lord Elliot Rothwell voltou a entrar na casa da sua família em Londres entre os últimos convidados do baile do seu irmão e comportou-se como alguém que saíra apenas por breves momentos para apanhar ar nesta noite gloriosa e fresca de Maio. Mal dera um passo além da soleira da porta, já não estava a entrar mas sim a saudar os convivas. O alto e bem-parecido irmão mais novo do quarto marquês de Easterbrook – o irmão Rothwell considerado mais afável e normal – concedia sorrisos a todos e, a determinadas senhoras, sorrisos deveras calorosos. Um quarto de hora depois, Elliot embrenhou-se numa conversa com Lady Falrith tão habilmente como havia regressado ao salão de baile. Retomou um tópico interrompido duas horas antes e adulou a senhora de forma tão astuta que esta se esqueceu que ele se havia retirado há muito. Passados minutos, Lady Falrith perdeu toda e qualquer noção da passagem do tempo. Enquanto Elliot brindava Lady Falrith com o seu charme, esquadrinhava a multidão no salão de baile à procura do seu irmão. Não 4

procurava Hayden, que, em conjunto com a sua nova esposa, Alexia, era o anfitrião do baile. Ele buscava o rosto do seu outro irmão, Christian, o marquês de Easterbrook. O olhar de Christian nunca se cruzou com o dele, mas o regresso de Elliot ao baile não lhe passou despercebido. Christian afastou-se de um círculo de lordes do reino no canto oposto do salão e caminhou na direcção da porta. Elliot dançou uma valsa com Lady Falrith antes de prosseguir com a missão da noite. Fê-lo em jeito de penitência por ter usado a senhora e agradecimento silencioso pela sua ajuda involuntária. A noção de tempo de Lady Falrith podia ser fluida, e a sua memória muito optimista. Na manhã seguinte, estaria plenamente convencida de que Elliot a cumulara de atenções a noite inteira e que possuía todas as intenções de lhe fazer a corte. A confiança dela no seu próprio poder de atracção iria revelar-se útil se se desse algum desenvolvimento inconveniente relacionado com as suas actividades na City1 naquela noite. Quando a valsa terminou, ele desculpou-se mais uma vez por a deixar. Ao invés de Christian, que caminhara solitária e propositadamente até à porta, Elliot deambulou ao longo do salão de baile de forma sociável, cumprimentando e trocando impressões até se aproximar despercebidamente da sua nova cunhada, Alexia. – Está a correr bem, não concordais? – inquiriu ela. O olhar dela vagueou pela assembleia, procurando uma confirmação empírica. – É um triunfo, Alexia – afirmou ele. E era-o, para ela. Um triunfo de espírito e carácter e, porventura, um triunfo de amor. Alexia não era o tipo de mulher com a qual a sociedade esperaria que Hayden se casasse. Não tinha família nem fortuna. Era tão sensata que nunca aprendera sequer a arte da dissimulação, quanto mais a da afectação. No entanto, aqui estava ela na qualidade de anfitriã de um grande baile na casa de um marquês, com o cabelo negro impecavelmente arranjado e a usar um toucado e vestido de um estilo irrepreensivelmente actual, obedecendo ao 1

Centro financeiro e histórico de Londres. (N. da T.) 5

último grito da moda feminina. A órfã sem um tostão casara-se com um homem que a amava como nunca amara antes. Elliot acreditava que este seria um bom casamento. Alexia encarregarse-ia disso. A história já uma vez provara que o amor era uma emoção perigosa para os homens Rothwell. A sensata e prática Alexia saberia, porém, como utilizar o amor para manter o perigo controlado. Elliot suspeitava que ela já teria amansado a fera em mais do que uma ocasião. Ele imitou-a na admiração do sucesso da noite. No canto oposto do salão, uma mulher pequena e loira era o centro de um círculo de convivas. Um número considerável de plumas brotava do toucado que adornava o seu cabelo loiro. Esta mantinha um olhar vigilante sobre a atenção masculina que uma jovem rapariga recebia perto de si. – O triunfo é vosso, Alexia, mas creio que a minha tia pretende levar para casa o maior prémio nesta temporada de caça. – A vossa tia Henrietta está compreensivelmente feliz com a primeira temporada de Caroline. Dois titulares fizeram-lhe a corte. Contudo, ela está aborrecida comigo esta noite porque não convidei um desses titulares para o baile, apesar da sua ordem nesse sentido. Elliot tinha muito pouco interesse nos aborrecimentos da sua tia, mas um grande interesse na lista de convidados. – Não vi Miss Blair no baile, Alexia. Nada de hábitos negros ou cabelos soltos no salão. O Hayden proibiu-vos de a convidar? – Claro que não. Phaedra está no estrangeiro. Embarcou há mais de uma quinzena de dias. Ele não queria parecer demasiado curioso, mas… – No estrangeiro? Os olhos violeta de Alexia refulgiram, repletos de humor. Concedeulhe toda a sua atenção, a qual, tendo em conta o assunto em causa, ele preferia não ver dirigida a si. – O primeiro destino é Nápoles, e a seguir, fará uma viagem pelo Sul. Afiancei-lhe que achais imprudente visitar Itália no pico do Verão, mas ela 6

falou-me do desejo que tinha em investigar os rituais e festas próprias da estação – afirmou, e inclinou a cabeça antes de prosseguir num tom mais confidencial. – Acho que o falecimento do pai a afectou mais do que ela quer admitir. A última ocasião em que esteve com ele foi muito emotiva. Fê-la sofrer. Creio que decidiu fazer esta viagem para melhorar o seu estado de espírito. Ele não duvidava que uma despedida no leito da morte do próprio pai podia ser emotiva. A sua marcara-o de forma indelével. Hoje, porém, estava mais interessado no paradeiro de Miss Blair e em assuntos que teriam sido discutidos com o pai dela antes de se ter dado esse último adeus. – Se souberdes onde ela estava a pensar alojar-se em Nápoles, far-lheei uma visita quando viajar até lá, caso ela ainda se encontre na cidade. – De facto, ela deixou uma morada que esperava poder utilizar. Tomou conhecimento dela através de um amigo. Se ela não regressar antes da vossa viagem, ficar-vos-ia agradecida se a visitásseis. A sua independência é por vezes conducente a uma certa falta de cuidado, e isso deixa-me preocupada. Ele duvidava que Phaedra Blair visse com bons olhos o facto de alguém se preocupar com ela. Alexia tinha um bom coração por, ainda assim, continuar a fazê-lo. – Céus – murmurou Alexia. Ele viu o que provocou o suspiro que se seguiu. Henrietta aproximavase de ambos, com as plumas a dançar sobre a cabeça e os olhos etéreos e cintilantes raiados de determinação. – Acho que é a vós que ela quer – sussurrou Alexia. – Misturai-vos no meio da multidão ou ela encher-vos-á os ouvidos com queixas acerca da forma como Easterbrook me autorizou a dar um baile sem a consultar. Ela acha que o facto de residir aqui a torna a senhora da casa. Elliot conseguia misturar-se no meio da multidão como ninguém. Quando a tia chegou, ele já havia desaparecido há muito. * 7

Depois de uma passagem rápida pelo corredor dos serviçais e de uma subida apressada pelas escadas das traseiras, Elliot aproximou-se dos aposentos de Christian. Ao entrar na sala de estar, encontrou o irmão reclinado de forma lânguida num cadeirão no canto da sala. O olhar atento que Christian lhe dirigiu denotou que a mente de Easterbrook não estava tão descontraída como o corpo. – Não o encontrei – disse Elliot, respondendo à pergunta que os olhos escuros lhe faziam. – Se está nos escritórios ou em casa dele, está muito bem escondido. Christian soltou um suspiro ruidoso. O som veiculava a irritação que sentia por este assunto ter interrompido recentemente a sua liberdade de passar os dias a fazer seja o que for que fazia normalmente. Elliot não fazia ideia em que consistiam essas actividades. Ninguém sabia ao certo como Christian passava os seus dias. – Pode tê-lo queimado quando se deu conta que a morte estava próxima – sugeriu Elliot. – Merris Langton professava um carácter que tornava muito improvável o facto de pensar em poupar terceiros, mesmo quando estava às portas da morte – disse, enfiando um dedo sob o nó irrepreensível do plastrão, dando-lhe um pequeno puxão para o alargar. Christian estava esplêndido esta noite, e tudo em si simbolizava um lorde do reino. Os casacos e roupas de linho anunciavam a sua qualidade superior em cada um dos seus fios. O seu gesto para com o plastrão aludia ao desconforto que sentira com a formalidade da noite, de forma tão evidente, porém, como a longa trança do seu cabelo escuro e longo fora de moda personificava a sua propensão excêntrica. Elliot adivinhou o desejo do irmão de se libertar dos símbolos de alfaiataria da civilização para se envolver no robe exótico que envergava amiúde. Por norma, andava descalço nestes aposentos, e não a usar meias de seda e sapatos de cerimónia. Neste momento, o único indício da sua habitual apresentação desprendida em casa era uma sobrecasaca desabotoada e a forma indolente como o seu corpo alto se moldava aos estofos do cadeirão. 8

– Verificastes se havia tábuas soltas no chão e afins? – perguntou Christian. – Arrisquei ser descoberto ao fazê-lo. Estive em ambos os edifícios demasiado tempo e estava a passar um guarda quando saí dos escritórios da City. Estava escuro e não existia nenhum candeeiro próximo da porta, todavia… A descrição da sua aventura sugeria mais cautela do que aquela que tinha tido. Ele acreditava que existiam ocasiões nas quais não havia outra escolha senão infringir a lei, mas nunca esperara ser tão friamente indiferente quando uma dessas ocasiões se lhe apresentara. – Estivestes neste baile a noite toda, se surgir alguma questão – declarou Christian. – Langton possuía uma pequena editora que dava preferência a textos radicais. Era igualmente um homem com uma predisposição para a chantagem, como ficámos a saber. Foi uma pena ele terse deixado morrer antes de eu lhe conseguir pagar. Agora, o manuscrito de Richard Drury está Deus sabe onde e a sua mentira sórdida a respeito do nosso pai ainda pode chegar a ver a luz do dia. – Eu farei tudo para que isso não aconteça. – Achais que alguém lhe deitou a mão antes de vós? É muito provável que não tenhais sido a única pessoa que Langton abordou. – Não vi qualquer indício de que alguém já tivesse passado a pente fino os seus pertences. Nem sequer o seu procurador ou executor testamentário. Ele só foi a enterrar esta tarde. Na minha opinião, o manuscrito não estava em nenhum desses locais quando faleceu. – Isso é deveras inconveniente. – Inconveniente, mas não inultrapassável. Vou encontrá-lo e destruí-lo, se for necessário. Christian olhou-o com atenção redobrada. – Falais com uma grande confiança. Sabeis onde está aquele maldito manuscrito, não sabeis?

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– Tenho um bom palpite. Se estiver certo, vamos ver-nos livres disto em breve. Ainda vos poderá custar uma boa maquia. – Pagai-a. Richard Drury era um membro do Parlamento, e, apesar das suas opiniões radicais, um intelectual respeitado. Se as suas memórias incluem uma acusação desse calibre contra o meu pai, muitos irão acreditar nela.

Irão acreditar nela porque bate certo com aquilo que já pensam corresponder à verdade. Elliot não verbalizou a resposta, mas esta insinuarase no seu íntimo quando ouviu pela primeira vez que Merris Langton planeava publicar as memórias póstumas de Richard Drury. O livro iria incluir segredos e maledicências que se reflectiam de forma negativa em muitos dos grandes e poderosos, quer do passado, quer do presente. A acusação que supostamente continha com respeito ao pai de ambos batia demasiado certo com o que a sociedade já presumia acerca do casamento dos seus pais. A sociedade enganara-se a respeito de grande parte da história, no entanto. O seu próprio pai havia-lhe explicado isso num momento em que nenhum homem consegue mentir.

Éreis o seu filho preferido. Ela manteve-vos junto de si e eu permiti isso, sendo vós o mais novo. Era um alívio vê-la a lembrar-se de que era mãe, por vezes. Mas agora estou aqui a morrer e mal vos conheço. Não espero amor ou pesar da vossa parte, mas não morrerei convosco a pensar que sou o monstro que ela provavelmente vos disse que sou. – Onde achais que o manuscrito está? Exijo que me mantenhais a par de cada passo, Elliot. Se não estiverdes a fazer progressos, tratarei disto pessoalmente. Não era clara a forma como Christian trataria do assunto. Essa ambiguidade levara Elliot a assumir esta responsabilidade. O irmão podia ser assaz impiedoso a silenciar estes ecos do passado. – Embora não tenha encontrado o manuscrito, descobri papéis relativos a finanças no escritório de Langton. Aquela editora está numa situação precária. Mais interessantes ainda foram os documentos que diziam respeito à propriedade da firma. Richard Drury foi um dos sócios com uma

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participação passiva desde o início. Não restam dúvidas de que foi por causa disso que Langton recebeu aquelas memórias para publicação. Christian recebeu os novos dados com interesse. – Teremos de entrar em contacto com o procurador de Langton para saber quem fica com tudo agora. – Os documentos indicavam que a participação de Drury foi legada à sua única filha. Ainda existe uma sócia viva com a qual teremos de nos entender, e que provavelmente foi conivente no esquemazinho de chantagem desde o início. – A sua única filha? Raios! – exclamou Christian. De seguida, empurrou a cabeça contra os estofos do cadeirão, fechou os olhos e emitiu um queixume exasperado. – Não a Phaedra Blair. Maldição. – Sim, a Phaedra Blair. Christian murmurou outra praga. – É tão típico de Mr. Drury, com as suas opiniões radicais e vida pouco convencional, legar a parceria de um negócio a uma mulher, e à sua filha ilegítima, ainda para mais – declarou e fechou as pálpebras. – Claro que ela pode ficar satisfeita com o dinheiro se a editora está em dificuldades. Pode até receber de bom grado uma razão para não publicar as memórias do pai. Não tenho qualquer dúvida de que estarão pejadas de assuntos privados a respeito dela e da sua mãe. – É possível que sim. Elliot não se sentia tão optimista no que dizia respeito à simplicidade das negociações. Miss Blair era uma complicação indesejada. Ela podia ver nessas memórias e nos seus segredos um potencial êxito de vendas que salvaria a editora. Pior ainda, podia acreditar que faria jus às suas noções de justiça social ao revelar os podres da alta sociedade. – A sua própria obra foi publicada por Langton, não foi? Está aqui na biblioteca algures. Confesso que nunca a li. Nutro pouco interesse por mitologia e folclore, e muito menos por estudos sincretistas a respeito disso – assegurou Christian. 11

– Ouvi dizer que o trabalho académico foi mais do que respeitável – afirmou. Aparentemente, Elliot praticava a máxima de reconhecer a seja quem for o seu mérito. – Ela herdou a inteligência dos pais, assim como a indiferença de ambos a respeito de regras de conduta e observância. – Atendendo às circunstâncias, nenhum dos seus legados representa uma boa notícia para nós – afirmou Christian, erguendo-se. Abotoou o casaco e inspeccionou a gola, preparando-se para regressar ao baile.- – É melhor não comentardes nada com Hayden acerca disto. Ele é muito protector da sua nova esposa e Miss Blair faz parte do círculo de amizades de Alexia. Se fordes obrigado a ser desagradável, é melhor que ambos permaneçam ignorantes desse facto. – Miss Blair partiu para Nápoles há duas semanas. Entender-me-ei com ela antes que ela e Alexia possam ter outro tête-à-tête. – Ides partir no seu encalço? – Pretendia viajar para lá este Outono, seja como for. Quero estudar as escavações recentes em Pompeia para o meu próximo livro. Limitar-me-ei a antecipar a minha partida. Os dois irmãos caminharam lado a lado até à escadaria. A cada passada, as toadas da música soavam mais alto e o suave burburinho de vozes inundava as alas majestosas. Enquanto desciam em direcção à alegre assembleia, Elliot reparou na expressão impenetrável e distraída de Christian. – Não fiqueis apreensivo, Christian. Vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para que a acusação contra o nosso pai nunca seja impressa. O sorriso fugaz de Christian não dissipou a sua expressão. – Não duvido das vossas capacidades ou determinação. Não era nisso que pensava há pouco. – O que era então? – Estava a pensar em Phaedra Blair e a perguntar-me se algum homem consegue, como afirmastes, entender-se com ela. Elliot caminhava na escuridão, alumiado pela chama do peque-no candeeiro que transportava. 12

Os convidados tinham abandonado a casa e os serviçais dormiam. Hayden e Alexia estariam provavelmente a desfrutar do leito matrimonial na casa de ambos em Hill Street. Christian ainda poderia estar acordado, mas não abandonaria os seus aposentos durante alguns dias. A luz ténue reflectia-se nas molduras douradas da galeria. A lua irradiava um pouco mais de luz através das longas vidraças que atravessavam a parede oposta. Elliot deteve-se em frente de dois dos retratos. Não viera à procura desta ala, mas o seu propósito tinha tudo a ver com o homem e a mulher imortalizados nestas imagens. O artista utilizara cenários de fundo similares para os dois corpos, e parecia que um dos quadros continuava o cenário e mundo do outro. Era bom ver os seus pais juntos assim, duas metades de um todo, ainda que a unidade implícita fosse uma mentira. Ele podia contar o número de vezes que os vira sequer juntos na mesma sala enquanto ainda eram vivos.

Não morrerei convosco a pensar que sou o monstro que ela provavelmente vos disse que sou. O pai incorrera num erro. Com excepção de uma explosão emocional, a mãe nunca falara com ele a respeito da separação ou das razões que a motivaram. Na verdade, raramente falara seja do que for durante aquelas horas que ele passara com ela na biblioteca em Aylesbury. Ele temia o pai pelas suas próprias razões, sem a ajuda da sua mãe. Acolhera com prazer os raros momentos de atenção por parte de um pai que parecia não se recordar que tinha três e não dois filhos. Retomou o caminho que o levaria à biblioteca a pensar naquela longa conversa com o pai, a única e última que alguma vez tiveram. Aprendeu verdades importantes naquele dia, a respeito de pessoas e paixões, orgulho e alma, e a respeito das formas através das quais uma criança não consegue ver o mundo em seu redor com muita clareza. Ele emergira dessa conversa sem qualquer temor. Depois dessas confidências, sentiu que era verdadeiramente filho do seu pai pela primeira vez na vida.

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Com o candeeiro, iluminou as encadernações de pele da biblioteca. Procurou a prateleira mais baixa das estantes do canto. Depois da morte da mãe, trouxera os seus livros privados para lá, aqueles que a tinha observado a ler em Aylesbury durante o seu exílio. Ele não sabia por que motivo levara esses livros para Londres. Talvez porque dessa forma uma parte dela perduraria no local onde a família se reunia mais amiúde. Cedera a este impulso muito antes daquela conversa com o pai, naquele que podia classificar-se como um acto rebelde de subterfúgio para tentar acabar finalmente com a forma como ela havia sido tão separada das suas vidas. Ninguém reparara no seu aditamento às centenas de volumes existentes. Aqui em baixo neste canto obscuro, o facto de as suas encadernações não condizerem com as demais não levantava questões. Ele deslizou o dedo por um grupo que nem sequer estava encadernado. Eram panfletos estreitos e finos que a sua mãe possuíra. Tirouos da estante, espalhou-os em forma de leque no chão e passou o candeeiro em cima dos títulos. Viu aquele que pretendia. Era um ensaio radical que se opunha ao casamento, escrito há trinta anos por uma famosa intelectual. Após a sua publicação, a autora vivera fiel aos seus princípios. Chegara ao ponto de rejeitar a perspectiva do casamento quando deu por si de esperanças do seu amante de sempre, Richard Drury. Ele pegou no panfleto e, juntamente com o candeeiro, dirigiu-se à estante onde Easterbrook depositava as aquisições mais recentes da biblioteca. Retirou uma dissertação mitológica que ainda cheirava a pele nova. Levou as duas obras consigo para os seus aposentos e começou a lê-los, para se preparar para se entender com Phaedra Blair.

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Capítulo 2 –S

ignora, não acho que devo pagar por estes

aposentos, uma vez que, por minha vontade, nem sequer os estaria a utilizar. Phaedra formulou desajeitadamente a sua objecção em latim e nas poucas palavras da língua napolitana que havia aprendido. Esperava que o seu tom de voz transmitisse mais fielmente o seu descontentamento a respeito da conta apresentada pela signora Cirillo, caso as suas palavras não cumprissem essa missão. Recebeu em troca uma réplica longa e zangada, disparada num tom igualmente eloquente. A signora Cirillo pouco se importava com o facto de Phaedra estar retida nos seus aposentos contra a sua vontade. Nem gostava tão-só das implicações dos oficiais da guarda colocados à porta da sua hospedaria modesta, mas respeitável. Ela queria ser paga e acrescentara à revelia um suplemento para compensar a presença intrusiva dos oficiais da guarda junto dos seus outros hóspedes. Não obstante o facto de se sentir extremamente tentada a dizer a esta mulher para levar a sua conta ao rei, Phaedra foi até ao quarto de dormir e trouxe de volta as moedas. Fora um erro demorar-se nesta cidade antes de prosseguir em direcção às ruínas. Se o seu cárcere durasse muito mais tempo, ela não teria sequer dinheiro para comprar a passagem de volta para Inglaterra, quanto mais 15

continuar a sua missão neste país. Esta deveria ter sido uma incursão bastante curta no estrangeiro. Afinal de contas, não viera na qualidade de turista. Ela estava aqui por um motivo e tinha questões prementes a tratar em casa depois do seu regresso. Aplacada por mais uma semana, a signora Cirillo retirou-se. Phaedra voltou para junto da sua bagagem e analisou a sua situação. Abriu a sua maleta e retirou de lá um xaile preto. Desatou o nó atado a uma das extremidades, soltando o objecto guardado cuidadosamente no seu interior. Uma grande jóia caiu no seu colo, e as suas tonalidades cintilaram na luz repleta de sombras do quarto. Figuras minúsculas requintadamente esculpidas elevavam-se num alto-relevo branco-pérola contra um fundo vermelho-escuro. Estas retratavam uma cena mitológica do deus Baco e a sua comitiva. Este camafeu fora o objecto mais valioso que sua mãe lhe deixara, tendo sido adicionado ao testamento pelo seu próprio codicilo escrito à mão.

Para acautelar o futuro da minha filha, deixo-lhe o meu único objecto de valor, o meu camafeu de ágata, uma antiguidade de Pompeia. Phaedra não voltara a pensar naquele codicilo nos seis anos que se seguiram à morte da sua mãe. Tinha estimado o camafeu da mesma forma que estimara todas as recordações da invulgar e brilhante Artemis Blair. O seu valor tranquilizava-a em relação ao seu futuro financeiro, isso era verdade, mas esperava nunca ter de o vender. Agora, porém, aquela frase magnificamente redigida levantava questões que exigiam respostas. Ela atou o camafeu à sua trouxa, devolveu-o à maleta e regressou à sala de estar. Abriu as persianas interiores da janela comprida virada a poente. Ao longe, a baía exibia um azul intenso e a ilha de Ísquia podia ser vislumbrada na névoa distante. Um odor salgado entrou a rodopiar, fazendo esvoaçar alguns anéis do seu cabelo. A voz do seu oficial da guarda foi igualmente arrastada pela brisa. Ela inclinou-se na janela do terceiro andar para ver com quem conversava. Viu uma cabeça com cabelo escuro posicionada à frente do elmo de metal e da bainha floreada do sabre do oficial da guarda. O cabelo 16

elegantemente aparado que se agitava de forma romântica ao sabor da brisa pertencia a um homem muito mais alto do que o oficial da guarda. Os seus ombros largos pareciam estar cobertos por uma sobrecasaca com um aspecto dispendioso. As botas eram o tipo de calçado que se podia ver nos melhores pés de Londres. O outro homem que estava lá em baixo era inglês, e um cavalheiro, pelo aspecto da sua indumentária. Phaedra esforçou-se por ouvir a conversa de ambos. A presença do seu conterrâneo dava-lhe um alento surpreendente, mesmo se este estivesse apenas a pedir direcções para sair das ruas secundárias do Bairro Espanhol. Ela ponderou chamá-lo e implorar ajuda. Não estava certa sequer de que os ingleses residentes em Nápoles saberiam que ela tinha sido feita prisioneira. É claro que ela duvidava igualmente que se importassem com esse facto se fosse do seu conhecimento. Aqueles que a conheciam não a viam com bons olhos ou desejavam a sua companhia. Por norma, também não desejava a deles, mas a sua incapacidade em penetrar a sociedade inglesa local já dera origem a problemas mesmo antes do seu inesperado encarceramento. As coisas não pareciam estar a correr de feição para o inglês. Os gestos do oficial da guarda faziam uma pantomina reveladora de um pesar reverencial. Tenho um dever a cumprir. Far-vos-ia a vontade se pudesse,

mas… O inglês afastou-se. Caminhou até ao outro lado da rua e deteve-se. Olhou para cima de sobrolho ligeiramente franzido, mas perfeito. Os olhos atentos e escuros esquadrinharam a fachada do edifício. O coração de Phaedra rejubilou, e não só porque ele possuía o tipo de rosto que aceleraria o pulso de qualquer mulher. Ela conhecia este homem. Quem estava sob a sua janela era o famoso historiador, Lord Elliot Rothwell. Alexia comentara que ele fazia tenções de visitar Nápoles no Outono mas, aparentemente, viera mais cedo. Ela inclinou-se para fora da janela e acenou-lhe. Lord Elliot fez-lhe um sinal quase imperceptível com a cabeça. Ela levou um dedo aos lábios e

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apontou para o oficial de guarda. A seguir, fez, por sua vez, uma pantomina com gestos, pedindo-lhe para se dirigir à parte traseira do edifício. Lord Elliot retomou o caminho, comportando-se como se estivesse a estudar a arquitectura ao longo da rua. Phaedra fechou as persianas e correu até ao lado oposto do apartamento para abrir a janela que dava para o pequeno jardim das traseiras. Lord Elliot demorou algum tempo a chegar lá. Por fim, viu-o a assomar pela entrada mais distante, através do portão que dava para uma viela fétida que separava as propriedades. Os seus movimentos não possuíam qualquer hesitação furtiva. Caminhou na sua direcção, alto e confiante, como um homem acostumado a fazer o que lhe aprazia. Mesmo sem o rosto angular extraordinariamente abençoado pela natureza com beleza, o seu porte descontraído e comportamento confiante constituíam obrigatoriamente uma visão impressionante. Ela estava tão feliz por ver alguém conhecido que não se importou com o clarão crítico nos seus olhos escuros quando a viu. Vira um trejeito semelhante a par do sorriso lento de Lord Elliot no casamento de Alexia. Era a reacção de um homem que a achava vagamente cómica, ainda que desaprovasse a sua aparência, as suas convicções, a sua história, a sua família, o seu… ser. – Miss Blair, estou aliviado por vos ver de boa saúde e disposição. A saudação vinha acompanhada pelo mesmo sorriso lento. – E eu sinto-me aliviada por vos ver a vós, Lord Elliot. – Alexia deu-me o nome da vossa hospedaria e pediu-me para ver como estáveis, para se certificar de que não precisáveis de nada. – Foi um gesto bondoso da parte dela. Lamento não poder recebervos de forma adequada, tendo em conta a vossa visita. – Creio que não me podeis receber de todo. Aparentemente, Lord Elliot decidira que bastava de palavras de cortesia.

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– Não tenho dúvidas que considereis o meu cárcere surpreendente e até chocante. – Sou um homem que raramente se choca e raras vezes se surpreende. Todavia, admito que sinto alguma curiosidade. Só estais em Nápoles há algumas semanas. A maior parte das pessoas demoraria pelo menos um ano a acumular crimes suficientes para merecer tal punição. Ele estava a fazer troça da situação? Nas presentes circunstâncias, considerou a sua apetência por motejos inapropriada. – Não existiram quaisquer crimes, apenas um pequeno mal-entendido. – Pequeno? Miss Blair, tendes um membro da guarda do rei à frente da vossa porta. – Duvido muito que esteja aqui a ordens do rei. Foi um dos funcionários do tribunal que me fez isto. É um homenzinho torpe com demasiado poder e uma inteligência diminuta. Lord Elliot cruzou os braços, postura que lhe conferia um ar reprovador e poderoso. Ela abominava quando os homens adoptavam essa atitude para consigo. Personificava tudo o que havia de errado com a metade da humanidade a que pertenciam. – O oficial da guarda referiu um duelo – declarou Lord Elliot. – Como é que eu poderia saber que estes homens são tão possessivos que tentam matar-se uns aos outros se uma mulher não faz mais do que falar com… – Com espadas e punhais. Foi derramado sangue, confidenciou-me o oficial da guarda. – Marsilio é um jovem artista. Não passa de um rapaz. Voluntarioso, mas muito doce. Não fazia ideia de que tinha interpretado mal a nossa amizade ao ponto de desafiar Pietro simplesmente porque dei um passeio na baía na sua companhia. – Infelizmente para vós, Marsilio, o voluntarioso e doce rapaz é aparentado com o rei e saiu desse duelo quase morto. Felizmente para vós, o oficial da guarda afirma que vai sobreviver. 19

– Oh, graças a Deus. Mas devo dizer que os relatos aqui são amplamente exagerados. Segundo o que me foi dito, ele não ficou gravemente ferido, ainda que qualquer ferida seja um assunto sério num clima destes. Sinto-me deveras consternada com toda esta questão. Fiz questão de o dizer. Expressei o meu pesar e as minhas desculpas num inglês muito lento e igualmente em latim para que fosse compreendida, mas aquele intrometido, abominável e estúpido homenzinho não me quis escutar. Até me acusou de ser uma prostituta, o que passou dos limites considerados razoáveis. Expliquei-lhe que nunca recebi sequer um centavo seja de que homem fosse. – Defendestes a vossa virtude e honra ou dissestes ao abominável e estúpido homenzinho que acreditais que as mulheres se devem oferecer livremente? Ela não gostava da expressão profunda e sabedora patente nos seus olhos quando proferiu esta insinuação directa. Se não se encontrasse numa situação tão ridícula, far-lhe-ia saber que ela podia ser pouco convencional, mas isso não lhe dava autorização para ser grosseiro. Neste momento, porém, era necessária alguma diplomacia. – Expliquei a minha convicção no amor livre, o qual não é o mesmo do que oferecer-se livremente, Lord Elliot. Tentei instruí-lo. Teria todo o prazer em fazer o mesmo por vós numa ocasião mais oportuna. – Que oferta tentadora, Miss Blair. Contudo, suponho que as minudências filosóficas tenham sido desperdiçadas no seu carcereiro. Era preferível que tivésseis declarado ser uma cortesã. Esse conceito é-lhes familiar aqui. Conceitos radicais de amor livre, por outro lado, bem… O seu gesto seco dissera tudo. O que esperáveis, mulher? Viveis fora

das regras e até a vossa própria aparência convida a más interpretações. Phaedra conteve novamente a sua reacção instintiva. Discutir só o levaria a afastar-se e ela desejava sinceramente que ele se demorasse mais um pouco. Não se dera conta da solidão que emanava do apartamento e da tristeza que o isolamento trouxera consigo. Só o facto de ouvir a sua própria língua transmitia-lhe alento. – Achais que me irão libertar em breve? 20

O gesto seco foi repetido, mas agora surgia no lugar de um encolher de ombros. – Aqui não existe constituição, nem tão-pouco qualquer noção de precedente como em Inglaterra. Nenhum direito codificado. Esta é uma monarquia antiquada. Podeis ser libertada amanhã, enviada de volta para Inglaterra, levada a tribunal ou podeis permanecer nesses aposentos durante anos à disposição do rei. – Anos! Isso não é nada civilizado. – Acho que não irá chegar a tanto. Porém, podem passar alguns meses até que o seu abominável e estúpido homenzinho perca o interesse – afirmou. Olhou de relance para a parte exterior do edifício e, de seguida, para a porta do jardim. – Miss Blair, não me posso demorar muito mais neste jardim, sob pena de vos fazer companhia na qualidade de hóspede dos oficiais da guarda do rei. Vou tomar as devidas providências para que vos seja entregue alguma comida e vou deixar um montante pelo aluguer do apartamento, que não duvido que estejais a ser obrigada a pagar. Vou pedir ao embaixador britânico para pedir a alguém que venha inteirar-se periodicamente da vossa situação. Santo Deus, ele ia-se embora! Ela podia envelhecer nestas duas divisões, ou acabar por morrer à fome quando o dinheiro se esgotasse. Phaedra não era uma mulher que dependia de homens para amparo ou protecção. E as palavras que Lord Elliot lhe dirigiu não lhe granjearam qualquer estima aos seus olhos. No entanto, a ambiguidade do seu futuro ajudou-a a pôr de parte a aversão natural a pedir o auxílio deste homem em particular. – Lord Elliot – disse, fazendo-o deter-se depois de ter dado três passos na direcção do portão do jardim. – Lord Elliot, a minha situação e a minha posição social não interessam a diplomatas. Será que podeis considerar interceder a meu favor? Tenho a certeza de que o abominável homenzinho ficaria impressionado pelos vossos laços familiares e reputação de historiador. Se falásseis por mim, talvez isso me ajudasse. A sua expressão era solidária, mas não encorajadora. 21

– Sou um filho mais novo. A minha posição social está muito diminuída aqui e a minha reputação possui muito pouca influência. Nem tãopouco este tribunal tem motivos para me conceder quaisquer favores. – Tenho a certeza de que obtereis uma audiência melhor do que eu alguma vez conseguiria. Pelo menos compreendeis a língua deles. Vi-vos a conversar com o oficial da guarda. – Estou muito longe de ser suficientemente fluente neste dialecto para apresentar de forma adequada o vosso caso. – Ficarei muito grata por qualquer tentativa que queirais em-preender. O cavalheirismo seria uma coisa do passado? Ela não acreditava nesses ideais, mas a estirpe deste homem, sim. Ela era uma donzela em apuros e este cavalheiro devia acorrer em seu auxílio, e não ficar parado no jardim, com um ar de quem preferia não ter reparado nela na janela por cima do oficial da guarda. Ele ponderou o pedido. Ela sentiu o seu sorriso a reduzir-se a um esgar suplicante. – Isto não é Inglaterra, Miss Blair. Se for bem-sucedido em vosso nome, podereis não gostar das condições que vos irão impor em troca da vossa liberdade. – Obrigar-me-ei a acatar qualquer condição, embora espere sinceramente que tenteis impedi-los de me repatriarem para Inglaterra no imediato. Fiz uma viagem muito longa e preciso mesmo de… Quero visitar as escavações de Pompeia antes de partir. É um sonho meu. Ele ponderou o seu pedido durante uma quantidade desmesurada de tempo. O suspiro audível que proferiu indicava que a sua decisão ia contra aquilo que o bom senso lhe ditava. – Prometi a Alexia que velaria pelo vosso bem-estar, por isso farei tudo o que estiver ao alcance das minhas possibilidades. En-contrar o homem cuja ordem levou ao vosso encarceramento pode ser difícil. Sabeis qual é o seu nome? Preferia não andar a perguntar no tribunal pelo abominável e estúpido homenzinho. Ele pode ouvir essa descrição, o que não iria ajudar a 22

minha missão, e, em todo o caso, esta aplica-se a um número assaz numeroso de funcionários de tribunal. Ele cedera sob o peso da resignação ao seu sentido de dever, não devido a um desejo genuíno de lhe prestar auxílio. Ela estava demasiado desesperada para ser exigente a respeito dos seus motivos. – Ele chama-se Gentile Sansoni. Que expressão foi essa? Co-nhecei-lo? – Conheço a fama dele. A vossa autodefesa caiu em saco roto, Miss Blair. Sansoni não fala inglês ou sequer latim. E é um napolitano de gema, o que não são boas notícias. Só mesmo Phaedra Blair para atrair a atenção de Gentile Sansoni, um capitão da polícia secreta do rei. Claro que, com o seu longo cabelo ruivo a cair solto ao longo das costas à luz do sol, com uma escolha bizarra de vestuário e a cabeça descoberta, provavelmente atraíra a atenção de toda a cidade de Nápoles. Elliot ouvira falar do perseguidor de Miss Blair durante a sua última visita a Nápoles, três anos antes. A embarcação de Sansoni havia aportado numa maré de sangue em 1820, quando um fugaz governo republicano nesta terra fora brutalmente derrotado e a monarquia restabelecida. Sansoni tinha a reputação de estar por detrás de desaparecimentos inesperados dos Carbonari, ou constitucionalistas, mas apreciava de igual modo abusar da sua autoridade indefinida de formas menos políticas. Sansoni não era o tipo de homem que ficaria impressionado com um cavalheiro inglês, e Elliot duvidava que visse com bons olhos uma tentativa de contornar a sua decisão ao interpor um recurso aos seus superiores. Uma vez que Elliot não podia entender-se com Miss Blair en-quanto esta permanecia sob prisão domiciliária, tomou de imediato a decisão de a tentar libertar. A hesitação que exibiu no jardim fora simulada, para colocá-la em dívida para consigo. Elliot cedera igualmente à tentação ignóbil de compelir esta apologista declarada da independência feminina a implorar pelo auxílio de um homem. Miss Blair conseguia afrontar um homem pelo mero facto de existir e os seus instintos reagiram em conformidade. 23

O dever falou mais alto, porém, e no dia seguinte, ele dispôs-se a fazer o que estava ao alcance das suas possibilidades por ela. Sansoni não ficaria impressionado com um cavalheiro inglês, mas havia uma forte probabilidade de pelo menos escutar o que um capitão naval inglês teria para lhe dizer. O tribunal de Nápoles ainda venerava a memória de Nelson e Elliot suspeitava que Sansoni pensaria em Nelson como um irmão espiritual. O grande herói inglês havia ajudado outrora a suprimir uma tentativa anterior de estabelecimento de um governo republicano neste local. Havia sempre barcos britânicos ancorados no porto de Nápoles e Elliot visitou um cujo capitão conhecia. Dois dias após ter-se encontrado com Miss Blair, acompanhou o capitão Augustus Cornell, portador de um esplêndido uniforme da marinha inglesa, ao longo de quilómetros de corredores palacianos para chegar até ao covil de Gentile Sansoni. Como compete a um funcionário do tribunal que trabalhava nas sombras, Sansoni encontrava-se nas traseiras do edifício e num nível tão inferior que, em vez de mármore fino, as escadas exibiam pedra travertino à medida que desciam. Apesar da sua localização, Sansoni fizera-se rodear de mobiliário opulento suficiente para parecer importante. Granjeara um espaço adequadamente amplo para as suas ambições, mas o tecto baixo e ausência de janelas tornava-o cavernoso. – Eu farei as despesas da conversa – afirmou Cornell. O seu rosto suave e pálido ostentava a formalidade austera comum a homens do seu estatuto militar. – Já lidei com ele e todo o cuidado é pouco. – Comprendeis a língua? – inquiriu Elliot. O napolitano era significativamente diferente da língua falada em Roma ou Florença. Mesmo com as suas fortes derivações do latim, Elliot estava em desvantagem no que dizia respeito à fluência. – Quanto baste, espero eu. O melhor é que vos deixeis ficar para trás. Servirei de intermediário, física e simbolicamente. Elliot permaneceu junto à porta, como lhe fora pedido. Cornell atravessou toda a extensão da sala e aproximou-se do homenzinho de compleição escura sentado na grande secretária na extremidade oposta. A 24

descrição de Miss Blair de Sansoni fora apropriada. Com efeito, este exibia um ar torpe e abominável e, neste preciso momento, muito desconfiado. As suas sobrancelhas pretas estavam quase coladas aos olhos amendoados de lince, tão comuns nesta cidade. Foram oferecidos copos de vinho, fizeram-se brindes e desenrolou-se uma conversa. Algum tempo depois, Cornell retrocedeu na sua direcção. – Receio que haja uma complicação – declarou tranquilamente. – O tal amigo de Miss Blair, Marsilio, o que ficou em pior estado no duelo, é um parente afastado do rei, mas apadrinhado pela família real devido ao seu talento artístico. Creio que também se trata de um jovem com o qual Sansoni espera casar uma parente sua, cimentando dessa forma a sua posição. Esse enlace é pouco provável, tendo em conta a linhagem humilde de Sansoni, mas este tornou o bem-estar do jovem numa missão pessoal – explicou. O capitão aproximou ligeiramente a cabeça e falou ainda mais lentamente. – Sou igualmente da opinião de que o rei não está ao corrente deste duelo. Mencionei aqui e ali o título de vosso irmão e suspeito que ele só continua a escutar-me pois receia que um marquês inglês tenha à sua disposição meios para levar o assunto directamente ao rei. Um marquês provavelmente teria esses meios, mas passar-se-iam meses até a sua demanda ter êxito. – Conseguis fazer com que Miss Blair seja libertada? – Duvido. O duelo não foi a única ofensa. O rei detém uma colecção de arte e uma das salas é proibida a mulheres. Contém imagens antigas de natureza carnal. Miss Blair convenceu o jovem Marsilio a visitá-la. Sendo assim, a lista dos seus crimes inclui invasão criminosa de propriedade e predilecção por arte licenciosa. Sansoni afirma igualmente que ela é uma prostituta vulgar. Mau grado Nápoles seja célebre por permitir que tais mulheres mantenham esse mister, o facto de fazer gala disso em locais que a corte frequenta… – Ela não é uma prostituta. Posso dar-vos a minha palavra. É um pouco estranha, sem dúvida. Excêntrica. Uma livre-pensadora, mas

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essencialmente honesta. Por certo, Sansoni já se cruzou com esse tipo de indivíduos. Explicai-lhe isso. – O trabalho deste homem é subjugar livres-pensadores e ele fá-lo de bom grado. Todavia, tentarei mais uma vez. Cornell atravessou mais uma vez a divisão. A conversa foi mais breve desta feita. Os olhos negros de Sansoni procuraram Elliot e examinaram-no atentamente. Cornell regressou. – Ele falou mais depressa desta vez e não estou a apanhar tudo. Seja como for, ele quer saber com que autoridade é que vós e a vossa família interferem nesta questão. Ele exige saber se sois algum familiar masculino ou se possuís qualquer outro estatuto. Elliot não possuía qualquer estatuto, mas admiti-lo não lhe traria qualquer benefício. – Dizei-lhe que ela é uma boa amiga da minha família. Easterbrook recebe-a como uma irmã – declarou. A mentira descarada nunca seria refutada. Christian faria o mesmo nas actuais circunstâncias. – Dizei-lhe que envidámos todos os esforços para a controlar, mas que ela partiu inesperadamente para Nápoles para escapar à nossa influência. Viajei até cá para velar pelo seu bem-estar e posso prometer que não ocorrerão mais problemas. E se ele der mostras de que pretende um suborno, pagar-lho-ei para a resgatar. O diálogo entre Cornell e Sansoni foi mais animado desta vez. Sansoni esbracejava numa sucessão rápida de gestos. Quando Cornell voltou para junto de si com o seu relatório, tinha um ar vagamente preocupado. – Receio ter havido um mal-entendido e corrigi-lo agora irá criar complicações imprevisíveis. Culpo a minha falta de fluência total na língua por esta malograda reviravolta nas negociações – confessou. – Ele parece estar muito mais calmo e receptivo, não obstante esse facto. Qual foi o mal-entendido? O rosto de Cornell enrubesceu. 26

– Creio que ele concluiu, sabe-se lá como, que vós sois o prometido de Miss Blair e que ela veio para cá para fugir de um casamento combinado que a vossa família aceitou devido a um dote bastante avultado. Ele acha que a seguistes para a levar para casa. –Isso foi um mal-entendido extraordinário. Como é que conseguistes fazer isso? – Não tenho a certeza. As palavras para família, irmã, dinheiro e fuga devem ter-se misturado e deram a entender mais do que eu pretendia – explicou Cornell e, com um suspiro, rodou nos calcanhares para ir rectificar o seu erro. Elliot agarrou-lhe o braço, impedindo-o. – Ele está disposto a libertá-la se não desfizermos a confusão? – Sim, mas… – Estais certo de que é isso que ele pensa? – Não estou seguro da minha própria percepção da sua interpretação errada, mas… – Nesse caso, não iremos desenganá-lo. – Não me parece que essa seja uma atitude honrada. – Não foram ditas quaisquer falsidades. Não é certo que ele vos tenha percebido mal – reforçou Elliot, fixando a mão no ombro de Cornell. – Vamos aceitar isto como uma dádiva da Providência e não pensar mais no assunto. Não se trata de um homem que é recebido pela comunidade inglesa local. Se ele interpretou mal as vossas palavras, nunca o saberá. Cornell deixou-se influenciar. – Se estais resolvido a isso, que assim seja. Acompanhai-me. Ele quer a vossa palavra de que ireis controlar Miss Blair enquanto esta permanecer neste reino. Ela deve manter-se sob a vossa autoridade constante e sereis considerado responsável por qualquer outro problema originado por ela. Estais preparado para fazer esse juramento?

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Elliot assentiu com a cabeça. De seguida, atravessou a caverna ao lado do capitão Cornell e assumiu a custódia de Miss Blair das mãos do abominável e torpe Gentile Sansoni.

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Capítulo 3 P

haedra

ergueu-se

da

escrivaninha

em

resposta

ao

chamamento da signora Cirillo. Se aquela mulher quisesse mais dinheiro tão cedo… Quando abriu a porta dos seus aposentos foi brindada com uma visão maravilhosa. A signora Cirillo não estava sozinha. Lord Elliot estava ao seu lado. Phaedra manteve a compostura, embora lhe apetecesse soltar um grito de júbilo. Se ele estava aqui, isso só podia significar uma coisa. – Lord Elliot, entrai, por favor. Grazie, signora. A signora Cirillo ergueu as sobrancelhas que encimavam os seus olhos escuros e felinos perante a forma como fora dispensada. Phaedra enxotou-a para fora da sala. – Espero que a vossa presença me traga boas notícias, Lord Elliot – declarou Phaedra quando ficaram sozinhos. – A vossa prisão domiciliária acabou, Miss Blair. São devidos agradecimentos ao capitão Cornell do Euryalus. Ele falou com Sansoni em nome de ambos. – Deus abençoe a Marinha Real! – exclamou ela, e correu até à janela para abrir as persianas. O oficial da guarda desaparecera. – Tenho de ir 29

passear na baía à noitinha. Não posso crer que… – anunciou. Saltitou de volta para junto de Lord Elliot e abraçou-o. – Estou-vos imensamente grata. Ele sorriu com benevolência quando ela o libertou. Pareceu ter compreendido o seu entusiasmo e perdoado a sua exuberância. Se a sua expressão se suavizara ligeiramente com o abraço impulsivo, bem, afinal de contas, ele era um homem. A sobrecasaca castanha de corte irrepreensível e botas altas que envergava hoje davam-lhe um ar verdadeiramente magnífico. O seu sorriso contribuía sobremaneira para suavizar a severidade do rosto dos Rothwell. Ao contrário dos seus irmãos mais velhos, constava-se que Lord Elliot sorria amiúde, o que, aparentemente, se con-firmava. Ele olhou em volta na sala de estar. O seu olhar pousou na escrivaninha. – Receio ter interrompido a vossa carta. – Uma interrupção que recebi com muito agrado. Escrevia a Alexia, descrevendo a minha história de infortúnio, com a esperança de, pelo menos, poder atirar-vos a minha carta pela janela quando regressásseis. – Posso sugerir que concluais a carta imediatamente a informá-la de que acabou tudo bem? Levá-la-ei a Cornell. Ele vai zarpar dentro de dois dias para Portsmouth e, uma vez lá chegado, pode enviá-la para Londres. – É uma ideia esplêndida, isto é, se não considerardes indelicado da minha parte fazer-vos aguardar enquanto rabisco mais umas linhas. – De modo nenhum, Miss Blair. De modo nenhum. Ela sentou-se e acrescentou rapidamente um parágrafo, informando Alexia de que tudo se tinha resolvido de forma satisfatória, graças ao seu novo cunhado, Lord Elliot. Ela dobrou, endereçou e selou o papel de carta e ergueu-se, oferecendo-o a Lord Elliot. Este tirou-lha suavemente dos dedos e guardou-a no interior da sobrecasaca. Lord Elliot retomou o exame atento da sala de estar e das suas vistas. – Fostes vós que abristes a porta, Miss Blair. Onde está a vossa criada?

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– Não tenho nenhuma criada, Lord Elliot. Nenhum serviçal. Nem sequer em Londres. – E isso deve-se a outra convicção filosófica? – É uma decisão prática. Um tio deixou-me um rendimento respeitável, mas prefiro gastá-lo de outras formas. – Isso é deveras sensato. Porém, a inexistência de um serviçal é inconveniente. – De modo nenhum – retorquiu. Deu uma volta completa e o tecido fino da indumentária negra e a sua cabeleira longa abriram-se em leque. – Um vestido destes não requer uma criada para mo apertar e o meu cabelo necessita apenas uma escova. – Não estava a pensar no seu vestuário. Preciso de falar convosco acerca deste incidente e, sem uma criada neste apartamento… Ele receava pela sua reputação caso estivesse sozinha com um homem sem qualquer acompanhante. Uma atitude encantadora. – Lord Elliot, é-vos impossível colocar-me em risco porque estou acima dessas regras sociais estúpidas. Seja como for, esta é uma espécie de reunião de negócios, correcto? A nossa privacidade não só é permitida em tais situações, como também é necessária. Ela duvidava que ele aceitasse os seus argumentos, mau-grado a sua lógica. Homens como ele jamais os aceitavam. Para seu espanto, ele cedeu imediatamente. – Tendes toda a razão. Sendo assim, seguiremos em diante. Não vos quereis sentar? Isto pode demorar algum tempo. De repente, ele parecia muito sério. Sério e austero e… duro. O seu gesto na direcção do divã assemelhava-se mais a uma ordem que não fora veiculada pelo pedido cortês. A tentação de continuar de pé invadiu-a. Ela sentou-se, mas apenas porque ele acabara de obter a sua liberdade. Ele instalou-se numa cadeira à sua frente. Observou-a demoradamente, como que a avaliá-la. Era como se nunca a tivesse visto antes e agora tentasse interpretar a imagem peculiar que ela apresentava. 31

Ela não conseguia livrar-se da sensação de que, de certa forma, ela também nunca o vira antes. A expressão de jovialidade serena desaparecera para dar lugar a um olhar fixo e longo, examinador e invasivo que a deixava pouco à vontade. Uma reacção muito feminina ressoou profundamente no seu âmago. Essa era uma das prerrogativas dos homens bonitos. A sua beleza colocava o interlocutor em desvantagem quando lhe dirigiam a sua atenção. Este homem era muito bonito. Era igualmente muito masculino na grande maioria dos aspectos, incluindo nos piores, de modo subtil. Neste preciso momento, ele parecia estar a tentar perturbá-la deliberadamente. Embora Phaedra tivesse a certeza de que não o fazia com intuitos carnais, a sua aura projectava essa possibilidade e o sangue dela reagiu a isso. Protecção, posse, conquista – todas estas facetas faziam parte do mesmo instinto primitivo, correcto? Um homem não podia seguir uma destas propensões sem despertar as outras e uma mulher era facilmente subjugada se não se acautelasse. Ela perguntou-se que lado primordial do carácter masculino o motivava agora. – A Alexia pediu-me de facto para ver como estáveis, Miss Blair. Não disse mais do que a verdade. Todavia, tinha outros motivos para vos fazer uma visita, que agora precisam de ser abordados. – Visto que só nos encontrámos uma vez, no casamento de Alexia, e de forma muito breve, não consigo imaginar quais serão os vossos motivos. – Creio que imaginais. Ele estava a começar a irritá-la. – Garanto-vos que não. O tom de voz de Elliot deu a entender que a considerava igualmente irritante. – Miss Blair, fiquei a saber que sois agora uma das sócias da editora de Merris Langton e que herdastes a participação do vosso pai no negócio. – Essa informação não foi divulgada, Lord Elliot. Com os homens a partir do princípio de que uma mulher não pode ser bem-sucedida nos 32

negócios, e com muitos a acreditar que é antinatural o facto de uma mulher sequer o tentar, preferi mantê-lo em sigilo para que esse preconceito não afecte o dito negócio. – Tencionais assumir uma participação activa? – Terei uma palavra a dizer na escolha das obras a publicar, mas espero que Mr. Langton continue a supervisionar os aspectos práticos. Desejava saber quem vos informou disso. Se o meu procurador foi indiscreto… – O vosso procurador está isento de culpas. A atenção dele abandonou o rosto de Phaedra. Os seus olhos foram toldados por uma escuridão pensativa. A distracção permitia entrever o intelecto brilhante no interior deste elegante homem mundano e a absorção intelectual que o levou a produzir um célebre tomo histórico antes de completar vinte e três anos. – Miss Blair, receio ser o portador de más notícias. Merris Langton faleceu devido a complicações do mal de que padecia logo após a vossa partida de Londres. Foi a enterrar alguns dias antes de eu próprio ter partido. Ela temera que Mr. Langton não recuperasse, mas ouvir a notícia da sua morte era, ainda assim, surpreendente. – São de facto más notícias, Lord Elliot. Agradeço-vos por me terdes informado. Não o conhecia bem, mas a morte de um homem é sempre triste. Estava a contar com ele para me ajudar a gerir aquela editora, mas parece que essa tarefa vai cair unicamente sobre os meus ombros. – Detendes a totalidade do negócio agora? – O meu pai fundou a editora e financiou-a desde sempre. Podia legar a sua participação a quem lhe aprouvesse, mas a de Mr. Langton tornar-se-ia do meu pai aquando da morte de Mr. Langton. Por isso, sim, creio que o detenho na totalidade agora. A distracção desapareceu. A austeridade regressou, assim como a frieza.

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– Antes de morrer, Langton procurou o meu irmão. Falou-lhe da publicação iminente das memórias do vosso pai. Ofereceu-se para omitir um determinado número de parágrafos do manuscrito que aludiam à minha família se lhe fosse pago um montante avultado. – Ele fez isso? Isso é terrível! Estou chocada com esta traição dos princípios do meu pai e apresento as minhas mais sinceras desculpas pelo meu sócio. Ela levantou-se e começou a andar de um lado para o outro na sala, agitada com esta revelação. Lord Elliot imitou-a educadamente, mas ela ignorou-o, tentando assimilar as implicações do esquema insensato de Langton. Essa poderia ser a gota de água que faltava para arruinar a editora periclitante. Ela conhecia ao pormenor as suas finanças precárias e, enquanto sócia, era responsável pelas dívidas por liquidar. Estava a contar com as memórias do seu pai para ajudar a ultrapassá-las. Se Mr. Langton havia comprometido a integridade dessa publicação, corria o risco de o público repudiar o livro. – Isto é tudo culpa de Harriette Wilson – afirmou, sentindo a consternação dar lugar à fúria. – Essa cortesã abriu um precedente vergonhoso ao exigir aos amantes um pagamento para remover os seus nomes. Cheguei a escrever-lhe uma carta sobre isso. «Harriette» escrevi, «É errado aceitar dinheiro para expungir memórias. Não passa de uma forma mais elegante de chantagem.» Ela só pensava na carteira, claro. Bem, isso é o resultado da vida dependente que ela escolheu e da extravagância insensata que praticou – declarou e continuou a andar a passos largos, mas mais contidos. – Não tenho quaisquer dúvidas de que Mr. Langton deve ter abordado outros também. Não posso crer que se preparava para manchar a ética da nossa editora desta forma. – Miss Blair, por favor poupai-me a este ultraje encenado. A mi-nha família estava disposta a pagar a Langton. Vim ao vosso encontro para vos dizer que agora lhe pagaremos a vós de bom grado. Ultraje encenado? Ela deteve-se e olhou directamente para ele.

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– Lord Elliot, espero ter-vos compreendido mal. Estais a sugerir que eu aceitaria este dinheiro para editar as memórias ao vosso agrado? – A nossa esperança é que assim o façais. Ela avançou na sua direcção até estar perto o suficiente para ver estes pensamentos reflectidos nos seus olhos. – Céus, vós acreditais que eu sabia que Mr. Langton estava a fazer isto. Acreditais que eu fui uma cúmplice nisto tudo. Ele não respondeu. Limitou-se a olhar para o lado, visivelmente céptico do assombro exibido por Phaedra. Furiosa com as suas presunções e ofendida com o insulto, ela afastouse. – Lord Elliot, as memórias do meu pai vão ser publicadas assim que eu regressar a Inglaterra. Na íntegra. Foi o seu último desejo, que me foi ordenado enquanto estava prostrado no seu leito de morte. Nunca me atreveria a escolher quais das suas palavras deverão ser lidas pelo mundo. Estou sinceramente agradecida pelo vosso auxílio com Mr. Sansoni, mas o melhor será darmos esta conversa por terminada. Se tivesse uma criada, pedirlhe-ia que vos acompanhasse à porta. Nestas circunstâncias, tereis de o fazer sozinho. Para completar as suas palavras de repúdio, caminhou com grandes passadas até ao quarto de dormir e fechou a porta atrás de si. Antes de recuperar o domínio sobre si mesma, a porta do seu quarto reabriu-se. Lord Elliot entrou calmamente e fechou a porta atrás de si. – A minha visita não acabou e o nosso assunto não está concluído, Miss Blair. – Como vos atreveis… Este é o meu quarto de dormir, senhor. Ele cruzou os braços e assumiu a anterior pose de comando irritante e masculina. – Por norma, isso impedir-me-ia, mas vós estais acima dessas regras sociais estúpidas, como aquela que dita que eu não devo entrar aqui sem ser convidado. Recordais-vos? 35

Ela não considerava essa regra social em particular assim tão estúpida. Esta existia por uma boa razão. Uma razão primitiva. Este era o seu espaço mais privado, o seu santuário. O ar começou a alterar-se enquanto ele olhava de relance o armário onde as suas peças de roupa estavam guardadas e o toucador que exibia os seus artigos pessoais. O seu olhar demorou-se na cama e, de seguida, focou-se novamente em Phaedra. Os seus pensamentos não estavam tão camuflados como ele pensava. Ela reparou nas mudanças subtis na sua expressão, na forma como a dureza que envergava se reordenava subtilmente. Um homem não podia estar perto de uma cama com uma mulher sem perguntar a si próprio determinadas coisas. Era uma maldição da natureza que eles carregavam. Irritava-a o facto de ela própria começar a perguntar-se as mesmas coisas. A forma como acabara de a insultar devia fornecer a melhor armadura contra a intimidade que atravessava este quarto. O silêncio breve que se seguiu ficou pesado e repleto de uma efervescência magnética que não a deixava indiferente. Uma imagem irrompeu subitamente, de Lord Elliot a fitá-la com o rosto a centímetros do seu, com o cabelo escuro revolto por motivos completamente alheios à moda vigente e os pensamentos totalmente transparentes. Ela viu os seus ombros nus e sentiu a pressão do seu corpo e o aperto firme do abraço na sua pele. Ela sentiu… Ela forçou a imagem a sair-lhe da cabeça, mas um clarão de reconhecimento fulgurou nos seus olhos. Ele soube que os seus pensamentos tinham divagado nessa direcção, da mesma forma que ela sabia o curso similar dos dele. Ele descruzou os braços. Por um momento, ela perguntou-se se os iria usar para a puxar contra si. Ela interrogou-se se ele continuaria a insultá-la, desta vez, sob essa forma. Havia homens que a interpretavam mal e propunham coisas por ignorância, mas Lord Elliot não era estúpido. Seria deliberada e cruelmente ofensivo se ele tentasse agir em conformidade com a consciência sensual que se insinuou entre ambos.

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Ele desviou a sua atenção dela, dissolvendo a intimidade, mas sem a dominar por completo. O seu orgulho foi poupado, ainda que o seu ser primitivo fervilhasse de descontentamento. – O manuscrito está aqui? – perguntou ele. – Trouxeste-lo convosco? – Claro que não. Porque faria isso? Ele fitou o armário. – Tenho a vossa promessa de que não está cá? Caso contrário, terei de o procurar. – Sim, e não vos atrevais a procurar. Não tendes qualquer direito de estar aqui. – Na verdade até tenho, mas vamos deixar esse assunto para mais tarde. O que quereria dizer com isso? – Deixei-o em Londres, num local bastante seguro. Contém as memórias de meu pai, as suas últimas palavras. Nunca seria negligente com isso. – Já o lestes? – Claro que sim. – Então, já sabeis o que ele escreveu sobre a minha família. Quero que me faleis disso. Quero as palavras exactas, o melhor que vos conseguirdes recordar delas. Ele não estava a pedir para saber, mas a exigir. A postura despótica e dominadora estava a fazer com que a gratidão que sentia pela sua ajuda esmorecesse rapidamente. – Lord Elliot, o nome da vossa família, assim como o de Easterbrook, nunca são mencionados naquele manuscrito. Isto surpreendeu-o. A austeridade vacilou tempo suficiente para ela entrever o homem afável e prestativo que entrara inicialmente nos seus aposentos. A surpresa durou muito pouco tempo. A mesma distracção

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pensativa de há pouco tomou o seu lugar e a mente arguta considerou as suas palavras. – Miss Blair, Merris Langton contactou o meu irmão e descreveu uma acusação específica contra o meu pai. Existe alguma coisa nesse manuscrito que, na vossa opinião, possa ser interpretada como estando relacionada com os meus pais? Ela preferia que ele não tivesse formulado a pergunta de forma tão específica. – Existe uma parte que pode ser interpretada nesse sentido, creio eu. – Descrevei-a, por favor. – Preferia não a descrever. – Insisto que ma descrevais agora. A sua voz, postura e expressão diziam que não iria tolerar qualquer tipo de discussão. Phaedra nunca recebera uma ordem tão clara por parte de um homem em toda a sua vida. Talvez fosse melhor se ele e a família fossem prevenidos. A passagem a que ambos se referiam fora uma de várias nas memórias que lhe tinham dado motivo para reflectir. – O meu pai descreve um jantar privado vários anos antes de a minha mãe falecer. O convidado de ambos era um jovem diplomata que voltara há pouco da Colónia do Cabo. O meu pai queria saber as verdadeiras condições que se verificavam nessa parte do mundo. Este jovem bebeu de forma assaz generosa e tornou-se taciturno. Enquanto ainda estava ébrio, fez determinadas confidências a respeito de um episódio no regimento britânico da colónia. A menção da Colónia do Cabo prendeu a atenção dele de for-ma deveras extraordinária. Ela sentiu uma pontada de pesar. Tivera sempre esperança que esse rumor fosse falso, mas… – Continuai, Miss Blair. – Ele declarou que enquanto estava lá, deu-se a morte de um oficial britânico. A causa da morte foi atribuída a uma febre, mas, na verdade, ele 38

fora alvejado. Foi encontrado morto depois de ter saído numa patrulha. Havia suspeitas a respeito de um outro oficial que o acompanhara, mas não havia provas. Em vez de imputar esse outro oficial, foi comunicada uma falsa causa de morte. Desta feita, ele camuflou melhor a sua reacção. Ela olhava para um semblante esculpido em pedra. O seu silêncio tornou-se terrível, porém, vibrante de fúria. – Miss Blair, se associastes a história desse homem à minha família, deveis estar ao corrente do rumor infame a respeito do meu pai, e da forma como ele providenciou que o amante da minha mãe fosse destacado na Colónia do Cabo. O local onde esse oficial veio a falecer com uma febre. Ela engoliu em seco. – É possível que tenha ouvido algo do género em tempos. – Se ouvistes, muitos também ouviram. Nem Langton nem vós tivestes qualquer dificuldade a relacionar as referências e a tirar uma conclusão. Se publicardes essa passagem, será levantada a insinuação de que o meu pai pagou a outro oficial para matar o amante da minha mãe. A ausência de nomes nas memórias não irá poupar a reputação de meu pai e ele não se pode defender no túmulo. – Não estou convencida… – Maldição, é exactamente isso que irá acontecer e sabeis isso tão bem quanto eu. Exijo que removais essa parte das memórias. – Lord Elliot, compreendo a vossa angústia. Compreendo plenamente. Contudo, o meu pai incumbiu-me da tarefa de publicar estas memórias e esse é o meu dever. Pensei longa e profundamente sobre isto. Se remover todas as frases que possam ser interpretadas como perigosas ou pouco abonatórias para esta pessoa ou aquela, não sobraria muito para publicar. Ele avançou a passos largos na sua direcção e lançou-lhe um olhar duro. – Não ireis publicar esta mentira.

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A sua determinação era palpável. Não precisava de expressões de ira ou ameaças verbais para enfatizar o poder que utilizaria contra ela. Este pairava no ar que os rodeava, envolvendo-a, impregnado da consciência sexual que nunca abandonara este quarto, criando um estado de espírito que continha todas as alusões desse instinto sombrio. – Se for uma mentira, posso ponderar omiti-la – afirmou ela. – Se obtiverdes provas de que aquele homem morreu de uma febre ou se o convidado dos meus pais se desdisser, abrirei esta única excepção. Mas não o farei por vós ou por Easterbrook, mas por Alexia. Isto fê-lo refrear-se. Um sorriso lento começou a formar-se. – Por Alexia? Que conveniente para vós. Agora podeis recuar sem me concederdes uma vitória. Ele compreendia-a demasiado bem. Ela não gostou de ser confrontada com a prova disso. Ele olhou-a com mais benevolência do que antes. A sua proximidade, gerada pela fúria, parecia subitamente inapropriada. Quan-do a ira esmoreceu, a outra tensão intensificou-se novamente. Ele não recuou como deveria. Como o sobrolho franzido dela exigia. Em vez disso, pegou numa mecha do cabelo dela e observou-a enquanto a entrelaçava suavemente entre os dedos. – O vosso pai incluiu o nome desses dois homens, Miss Blair? O jovem diplomata do jantar ou o oficial sobre quem recaíram as suspeitas? Para todos os efeitos, ele não estava a tocá-la, mas o facto de brincar com o seu cabelo implicava coisas cuja existência não podia ser tolerada. O isolamento de ambos neste quarto de dormir, e até mesmo o confronto, fizera cair por terra as formalidades mais protectoras. O formigueiro subtil que ele provocava no seu couro cabeludo era delicioso, persuadindo-a a especular a respeito de outras formas de excitação física. Conquista, posse, protecção – ela não duvidava que ele estava preparado para ser implacável e brincar com algo mais do que o seu cabelo se acreditasse que isso lhe daria o que desejava. Caso esse desafio surgisse, Phaedra não se sentia suficientemente confiante para o derrotar. 40

– O jovem diplomata que convidaram para o jantar chamava-se Jonathan Merriweather. Ele olhou directamente para os seus olhos, novamente descrente. – Merriweather é agora um assistente do embaixador britânico aqui em Nápoles. – Que conveniente para vós. A mão dele enredou o seu cabelo com mais firmeza. O movimento subtil tornou-se controlador. – Viajastes até cá para falardes com ele? É por esse motivo que vos encontrais em Nápoles? Tencionais incluir comentários nessas memórias e preencher os nomes e factos que o vosso pai omitiu discretamente? O livro vender-se-á ainda melhor e atrevo-me a dizer que as receitas virão mesmo a calhar para a vossa editora. Ela apropriou-se do cabelo que ele segurava e arrancou-o dos seus dedos. A indignação que sentia ajudou-a a ignorar a sensação de calor da mão dele por baixo da sua e a forma como os seus olhos reflectiam a consciência do seu toque. – Confio que as memórias de meu pai sejam populares sem quaisquer anotações da minha parte, mas agradeço a sugestão. Não viajei até cá com esse propósito, porém. Era uma mentira descarada, mas ela não sentiu remorsos por induzir em erro este homem. O seu principal interesse em preencher as lacunas das memórias não era de todo movido pela família de Lord Elliot. – Lord Elliot, viajei até cá para visitar as escavações e ruínas situadas a sul. Preciso de fazer os preparativos para sair de imediato desta cidade e continuar a minha viagem conforme tinha planeado inicialmente. Dessa forma, sou obrigada a pedir-vos, mais uma vez, que vos retireis. – O vosso périplo terá de ser adiado mais uns alguns dias. Não posso permitir que partais tão cedo. Ela soltou uma gargalhada. As presunções do homem tinham-se tornado ridículas. 41

– O que permitis ou não não me diz qualquer respeito. – Diz-vos todo o respeito do mundo. Preveni-vos de que libertar-vos poderia ter como consequência condições e prometestes sujeitar-vos a estas. – Não falastes em quaisquer condições quando chegastes. – O vosso abraço caloroso distraiu-me. Ela mirou-o atentamente com desconfiança. – Em que consistem essas condições? Ele deslizou lentamente o olhar pelos seus caracóis, que caíam soltos ao longo do seu corpo. Ela detectou um interesse possessivo, como se tivesse acabado de receber um presente e calculasse o seu valor. – Gentile Sansoni só vos libertava na condição de ser colocada sob a minha custódia. Tive de assumir responsabilidade total por vós e prometer controlar o vosso comportamento. Uma ira violenta irrompeu dentro de si. Não admira que Lord Elliot exsudasse subitamente arrogância e autoridade por todos os poros. – Isso é inadmissível. Nunca prestei contas a nenhum homem. Concordar com isso fará a minha mãe dar voltas no próprio túmulo. – Preferis arriscar a vossa sorte com Sansoni? Posso tratar disso. A ameaça deixou-a sem fala. Lord Elliot não se riu abertamente enquanto se aproximava a passos largos da porta, mas tão-pouco escondeu o divertimento que o seu dilema lhe provocara. – Viajaremos até Pompeia juntos, Miss Blair, mas só depois de eu ter falado com Merriweather. Até lá, não estais autorizada a sair destes aposentos sem a minha escolta. Ah, e também se acabaram todas as visitas por parte de Marsilios ou Pietros. Diabos me levem se ireis provocar mais duelos enquanto estiverdes sob a minha autoridade. Fiz um juramento para vos controlar e espero a vossa cooperação e obediência. Autoridade? Controlar? Obediência? Ela ficou tão aturdida que ele desapareceu antes de poder recuperar a fala a tempo de lhe rogar uma praga. 42

Capítulo 4 A

disponibilidade de Miss Blair para chegar a um acordo a

respeito das memórias melhorou o estado de espírito de Elliot. O passo seguinte seria obter a negação necessária por parte de Merriweather, colocar Miss Blair no próximo barco que zarpasse para ocidente e direccionar a sua atenção para assuntos mais interessantes. Não tinha dúvidas de que Merriweather iria cooperar. Ele, melhor do que ninguém, sabia que a história de Drury acerca da morte daquele oficial era falsa. Demais a mais, a sua carreira diplomática seria prejudicada se o mundo inteiro lesse que fora indiscreto enquanto estava ébrio. Ele tornar-se-ia um aliado na sua missão de fazer com que Miss Blair removesse os parágrafos incriminatórios. Elliot descobriu no espaço de uma hora que o assunto não ficaria resolvido tão depressa como esperava. Um escrivão da delegação britânica no Palazzo Calabritto informou-o de que Merriweather se deslocara a Chipre numa missão e não era esperado de volta pelo menos durante uma quinzena. Elliot regressou ao seu hotel e reorganizou alguns dos seus planos. À medida que a tarde arrefecia para dar lugar à noite, deslocou-se numa carruagem alugada até ao Bairro Espanhol para visitar uma vez mais Phaedra Blair. Os olhos azuis dela fulminaram-no quando o viram à sua porta. 43

– O que desejais agora, Lord Elliot? – Declarastes que pretendíeis dar um passeio ao longo da baía à noitinha. Estou aqui para vos escoltar. – Não preciso da vossa escolta. – Ou vindes dar um passeio comigo ou não ireis de todo. Seria uma pena se não desfrutásseis da vossa liberdade agora que a recuperastes. Ela contraiu os lábios. A indecisão reflectia-se nos seus olhos. – Muito bem, vamos. Ela deu um passo em frente, prevendo que ele lhe desse passagem. – Esqueceste-vos do vosso chapéu, Miss Blair. O sol ainda não se pôs e a vossa bonita tez ainda estará em perigo. Estou certo de que querereis evitar mais sardas minúsculas como as que já tendes no nariz causadas pelo sol, por mais encantadoras que sejam. A mão dela voou até ao nariz. Por um momento, a vaidade feminina sobrepôs-se à sua pose de indiferença face a preocupações tão frívolas. – Misturais lisonjas falsas com críticas de forma assaz engenhosa, senhor. – A lisonja não era falsa. As sardas são adoravelmente pueris, mas isso não impede o facto de precisardes de um chapéu. Eu posso aguardar enquanto colocais um. Possuís um chapéu, correcto? – Claro – retorquiu e, exasperada, rodou nos calcanhares e dirigiu-se ao quarto de dormir. – Por favor, não me sigais desta vez. – Nunca entraria no quarto de dormir de uma senhora duas vezes no mesmo dia. À semelhança de quatro danças no mesmo baile, poderia ser mal interpretado. – Eu raramente interpreto mal os homens, Lord Elliot. São criaturas extraordinariamente transparentes. Ele esperava que assim fossem, a bem dela. Ela não era inexperiente. Ela sabia até onde os pensamentos dele tinham vagueado antes quando a viu

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ao lado daquela cama. O cabelo solto fazia-a parecer uma mulher preparada para uma tarde de prazer. Ela não tinha reagido com choque ou embaraço pudico. Não existira qualquer indignação virtuosa. Em vez disso, ela limitara-se a observá-lo enquanto as possibilidades sensuais provocavam ambos. A sua expressão reconhecia abertamente o impulso e as suas possibilidades. Ele nunca experienciara nada semelhante antes. Ela conseguira incitar e rejeitar sem dizer palavra. Desejais-me e eu posso desejar-vos, mas isto não vai acontecer agora. Pode nunca vir a acontecer. Ainda não decidi. Não podia deixar de saber que esta sua maneira de ser só podia dar origem a problemas com os homens. Ela regressou com um chapéu de palha que era bem mais atraente do que esperava. A sua aba posicionada na diagonal e flores de seda brancas e azuis favoreciam os seus olhos e tez clara. O cabelo longo e ondulado, a ausência de maquilhagem e as sardas minúsculas davam-lhe um ar fresco e campestre. A sua indumentária estragava essa imagem. Um tecido negro, leve e sem ornamentos envolvia-a do pescoço aos pés. Tinha uma faixa atada à volta da cintura, mas fora isso, muito pouco da sua forma podia ser visto na roupagem volumosa e solta. O vestido dava origem a mais especulação do que ela provavelmente antecipara. Aludia àquilo que lhe declarara anteriormente. Nenhuma criada a «apertava». Ela não usava qualquer corpete ou espartilho e o conjunto das formas indicava que merecia a pena imaginar o corpo que estava tão livre sob o tecido. Seios firmes, concluiu, de um tamanho indeterminado, mas admirável, e ancas suficientemente femininas que faziam com que a sua cintura parecesse assaz fina. Bastaria o roçagar de uma mão em alguns colchetes para tudo ser revelado. – Foi a Alexia que o fez – afirmou, apercebendo-se da admiração com que fitava o chapéu. – Creio que tem a esperança de me corrigir. Quanto ao meu vestido, que observais de forma tão crítica, espero que não estejais à

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espera que eu o troque por outro. Não foi minha a decisão que vos obriga a acompanhar uma mulher avessa aos últimos gritos da moda em público. – O vestido parece-me mais atraente a cada minuto que passa. Insisto que cubrais o cabelo, mas não vou exigir que abdiqueis de todos os símbolos com os quais desafiais o mundo. Ela ergueu o queixo e caminhou com um ar de importância até à porta. – Se fordes um homem sensato, não exigireis seja o que for. Muito barulho, cenas dramáticas, chapeuzinhos com penas e sombrinhas coloridas. Opulência principesca, pobreza abominável e o brilho das armaduras dos soldados. A hora de passeio londrina era uma imitação pálida daquilo que ocorria em climas do Sul à noitinha. A marginal ao longo da baía de Nápoles estava repleta com a população da cidade. Aristocratas em vestidos e casacos elegantes caminhavam em grupos no meio dos pobres que vagabundeavam ociosamente perto da água. Mercadores e as suas mulheres passeavam com os filhos. A hora social da noitinha, desfrutada próxima da baía ou nas piazzas das igrejas, desempenhava uma importante função na cidade, como se podia ver pelo número de jovens em idade casadoira que apareciam para se exibir. A sua beleza jovem e morena resplandecia no meio dos pais, que, com uma expressão grave, avaliavam de forma exigente os homens que lhes dirigiam o olhar mais do que uma vez. Toda a cidade de Nápoles se assemelhava a uma ópera e Phaedra Blair não parecia de modo algum tão estranha como provavelmente pretendia. O seu chapéu tornava-a pelo menos meio apresentável, embora Elliot reparasse na atenção que atraía com o seu cabelo solto. Ele só podia imaginar a reacção dos demais quando viera aqui na primeira noite, caminhando sozinha, com os caracóis vermelhos a irromper em chamas num mar de cabelos pretos e castanhos. Londres tinha mais paciência para o tipo de excentricidade que ela exibia com o seu aspecto. 46

– Falastes com Mr. Merriweather? Estas eram as primeiras palavras que proferira desde que tinham deixado os seus aposentos. Elliot não forçara qualquer tipo de conversa na carruagem. A ausência de palavras não lhe provocou qualquer desconforto. Já passava grande parte do seu tempo em silêncio com a sua própria mente como única companhia. Elliot apreciava a sociedade até um determinado ponto, mas somente se as horas de silêncio equilibrassem as de ruído e interlocuções. – Ele está ausente numa missão e não é esperado de volta pelo menos durante uma quinzena. Ele perguntou-se se ela já estaria ao corrente disso. Não estava convencido de que Miss Blair tivesse propósitos tão inocentes para visitar esta cidade. Se ela queria ver as ruínas, qualquer outra altura do ano faria mais sentido. Embarcar quando a sua viagem coincidia com o calor do Verão de Nápoles, quando a sua editora estava com problemas, o sócio doente e aquelas memórias aguardavam todo o trabalho necessário de preparação… Ele continuava a suspeitar de que inquirir Merriweather se encontrava entre as suas intenções quando decidira fazer esta viagem. – Espero que não pretendais que eu adie uma quinzena ou mais a minha viagem até Pompeia. – Decidi que iremos visitar as ruínas enquanto aguardo o seu regresso. Isto apaziguou-a. Ela quase parecia aliviada. Talvez tenha vindo realmente apenas na qualidade de turista. – Na última Primavera, Alexia contou-me que estais a escrever um livro novo, Lord Elliot. A vossa visita a Pompeia está relacionada com isso? – Vou ver as escavações novas e saber o que foi descoberto nos últimos anos. Vou passar o tempo a falar com os arqueólogos e a pesquisar algumas matérias para o meu livro. – Alexia afirmou que se trata de um livro a respeito de matérias do dia-a-dia, da forma como as pessoas viviam. É deveras invulgar. Por norma, os livros de História descrevem guerras e políticos, e as acções de grandes homens, incluindo a vossa última obra. 47

– Estou ciente do facto de que este livro pode ser criticado por falta de importância. O assunto interessa-me, porém, e posso dar-me ao luxo desse capricho. – Se pensais que vos estou a criticar, interpretastes-me mal. Acredito que o vosso livro será muito procurado, independentemente daquilo que os académicos digam. Será um sucesso de vendas. – Duvido que o meu editor concorde convosco. – Então talvez devais procurar outro. Seria uma honra publicá-lo se conseguísseis suportar o pensamento de fazer negócios com uma mulher. Ele riu-se da sua expressão arguta. Aquela editora podia ter boas chances de sobrevivência se Miss Blair exibisse este considerável talento para lisonjear autores ao oferecer os seus préstimos. O seu estado de espírito melhorara a olhos vistos a partir do momento em que começaram a caminhar. Talvez a luz suave do sol baixo e a brisa refrescante fossem os culpados. O mais provável era que Miss Blair tivesse decidido que a ira iria interferir com a vontade de desfrutar da recémadquirida liberdade. Os seus olhos brilhavam de júbilo à medida que caminhava em passo de marcha, observando a multidão que passava, os barcos e as gaivotas. Brindava-o muitas vezes com sorrisos tão calorosos que podiam ser erroneamente interpretados como insinuantes. A forma como os homens a olhavam não lhe passou despercebida. A novidade do seu cabelo ruivo era suficiente para chamar a atenção, mas Miss Blair teria o mesmo efeito sob qualquer outra circunstância. Esses olhares também não lhe passaram despercebidos a ela. Ela não os convidava nem desencorajava. De igual modo, não retirava daí satisfação nem injúria, por aquilo que Elliot observava. Limitava-se a seguir em frente, com aquela roupagem negra e ondulante a revelar mais do que era pretendido, confiante na sua diferença. No entanto, ela projectava uma aura subtil. Encerrava o mesmo desafio que ele sentira nos seus aposentos, mas agora dirigia-se a todos os

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homens que se demoravam a observá-la. Desejais-me, mas eu decidi que isso

não vai acontecer. Ela parou para comprar um raminho de flores a uma rapariga que os vendia na rua, numa caixa. Ele tentou pagá-las, mas ela afastou a sua moeda e pagou-as com a sua. Ela retomou o passeio, segurando os botões perfumados bem perto do nariz. – Lord Elliot, gostava de vos fazer uma proposta. Não era aquela que ele desejava. Mesmo assim, sentiu o corpo contrair-se. As palavras dela haviam sido escolhidas com o intuito de provocar. A irritação que se seguiu teve como único culpado o facto de aquelas terem funcionado. Ele não devia fazer isto, mas… – Já tive oportunidade de ver os resultados dos termos que ofereceis aos homens nas vossas propostas, Miss Blair, e terei de a recusar. A expressão dela ensombrou-se. – O que quereis dizer com isso? – Oh, interpretei-vos mal? As minhas desculpas. – O que quisestes dizer? Ele encolheu os ombros. – Achei que vos íeis oferecer para me tornar um dos vossos amigos. Uma daquelas abelhas que zumbem à volta da rainha. A sua pele alva ruborizou-se. A ira vinha acompanhada de uma quantidade assinalável de consternação. – O que sabeis acerca dos meus amigos? – Podeis desdenhar da boa sociedade, mas ela está bem consciente de vós. Todos conhecem a filha de Artemis Blair e a forma como, tal como a sua mãe, ela se considera acima de todas essas regras sociais estúpidas. – A vossa grosseria espanta-me – anunciou. A ira venceu e o rubor desapareceu das suas feições. – É tão típico de pessoas como vós

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interpretarem mal as minhas amizades que jamais consideraria encetar uma com esse tipo de pessoas. Oh, sim, consideraria. Já o tinha feito. As negociações haviam começado algumas horas antes. – Se fui grosseiro, apresento-vos as minhas desculpas. A expressão dela descontraiu-se. – Se bem que… As sobrancelhas de Phaedra ergueram-se subitamente. – Se estais acima dessas regras sociais estúpidas, será de todo possível ser grosseiro, Miss Blair? Dentro do contexto das vossas convicções, entendase. A palavra «grosseiro» diz respeito exclusivamente a essas regras, não é assim? Nos dias que se seguem tereis de me ajudar a ver em que ponto a vossa subjugação às regras começa e termina, para que eu não vos interprete mal novamente. Uma vez mais, aquela segurança plena de conhecimento e aquele desafio inundaram-na. – Podeis estar certo de que vos ajudarei, Lord Elliot. A caminhada levara-os até à Riviera di Chiaia e às imponentes villas com vista para a baía. Miss Blair admirou a sua beleza enquanto escondia os pensamentos atrás de uma máscara impassível. – Lord Elliot, foi assaz conveniente terdes falado dos dias que se seguem e terdes expressado a vossa desaprovação e desdém por mim. Na verdade, a minha proposta tem a ver com ambas as atitudes. – Não vos desaprovo, nem vos desdenho. Decidi meramente que devíamos esclarecer uma pequena questão. A questão mais importante. – O facto de terdes interpretado extraordinariamente mal quer as minhas amizades com terceiros, quer o meu interesse em vós indica que não teremos um convívio fácil. Tão-pouco desejareis o peso de uma mera turista por companhia. Só servirei para vos atrapalhar e os vossos estudos só servirão 50

para atrapalhar os meus planos. Proponho que nos separemos mal abandonemos Nápoles. – Isso não é possível. – Gentile Sansoni nunca saberá. – O seu poder vai bem mais além desta cidade. Para além disso, dei a minha palavra ajuramentada e essa é uma regra social estúpida que levo muito a sério. – Senhor… – Não, Miss Blair. Depois de amanhã, de manhãzinha, partiremos em conjunto. Viajaremos de barco para Positano primeiro, de seguida, para Amalfi e regressaremos por terra. – Quero ir a Pompeia sem demora. – O atraso será breve. Prometi visitar um amigo em Positano e ele aguarda-me nos próximos dias. Se estais aqui na qualidade de turista, deveis estar receptiva à perspectiva de alguns dias de visita ao litoral sul. É verdadeiramente espectacular. A sua expressão não parecia de todo receptiva. Ele já imaginava a irritação tensa que veria repetidamente nos seus olhos durante as próximas semanas. Eles deram meia-volta para voltar para trás. Ele quase tropeçou numa criança que os tinha vindo a seguir. Um par de olhos negros e grandes olhou para cima na esperança muda que era comum ver-se nas crianças mais pobres da cidade. Esta não pediu esmola imediatamente, mas o seu corpinho frágil e vestido andrajoso faziam essa súplica por ela, de forma pungente. Ele enfiou a mão no bolso do colete. No momento em que a moeda assomou, surgiram mais duas crianças ao lado de Phaedra. Estavam a caminho mais, atraídas instintivamente para o inglês que devia saber melhor do que ninguém o perigo de ceder às súplicas das crianças pedintes de Nápoles. Ele foi buscar mais moedas. Miss Blair não parecia assustada com a horda de pobreza ansiosa, como a maior parte das mulheres parecia ficar. Ela

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tentou falar com a primeira menina enquanto procurava com a mão um ponto qualquer ao nível da anca no seu vestido. Avançaram com dificuldade através de um pequeno lago de olhos negros e corpos queimados pelo sol a distribuir moeda após moeda até não sobrar nenhuma. Regressaram à carruagem sem mais altercações. Ela falou apenas mais uma vez antes de ele a deixar na sua hospedaria. – Dissestes que partimos de manhãzinha no dia depois de amanhã? Nesse caso, suponho que não tenho outra escolha senão fazer os respectivos preparativos. A sua aparente submissão não foi o enganou. Ele retirou-se para fazer os seus próprios preparativos. Phaedra libertou o camafeu do xaile que o envolvia. Embrulhou-o num lenço e prendeu o pequeno embrulho ao fundo do bolso situado nas dobras da saia do vestido. De seguida, colocou o xaile por cima da cabeça e atou-o por baixo do queixo. Verificou a sua malinha de viagem, passando novamente em revista as peças de roupa e artigos com os quais a enchera. Ela orgulhava-se de exibir uma relativa ausência de vaidade feminina, mas ainda assim irritava-a o facto de estar reduzida a tão poucas roupas durante a semana seguinte. Isto era tudo culpa de Lord Elliot. Todos sabiam que um juramento feito sob coacção não era válido e um juramento para salvar uma mulher de um destino indeterminado enquadrava-se nos parâmetros de coacção, na sua opinião. A insistência dele em manter a palavra vexava-a. Que sorte a sua que a única pessoa disponível para a ajudar ter sido um homem com noções antiquadas de uma honra rígida. Ela não permitiria que ele os obrigasse a serem ambos vítimas da sua tacanhez. Ele queria tanto a sua companhia como ela a dele. Entre eles só iriam existir problemas.

Um daqueles homens que zumbem à volta da rainha. O ho-mem era incapaz de compreender as amizades honestas e sinceras de que desfrutara com alguns, raros, homens que pensavam da mesma ma-neira. Iria chocá-lo 52

saber que alguns homens conseguiam estar acima dos impulsos primitivos da posse e subjugação que haviam causado tanto sofrimento ao longo da história e nas vidas das mulheres. Com efeito, existiam homens para quem a sensualidade não evocava a necessidade adicional de tomar e conquistar e a exigência da submissão. Bem, não lhe competia a si explicar-lhe isso. Fazê-lo constituiria uma empresa infrutífera e exigiria que ela passasse mais tem-po com ele. Deixou uma nota e algum dinheiro na maleta para garantir que a signora Cirillo perceberia que ela regressaria em breve para os resgatar. De seguida, saiu furtivamente dos seus aposentos e entrou no corredor escuro. Avançou lentamente até às escadas, tacteando todo o percurso. Com passos muito leves e envolta ela própria numa sombra negra, desceu lentamente as escadas até ao patamar seguinte. Phaedra continuou a avançar cegamente e a tactear através do escuro até à próxima escadaria. De repente, as sombras adquiriram as formas de balaústres, portas e paredes, como se alguém tivesse aberto as persianas para deixar entrar a luz do luar. – O Pietro não está à vossa espera no cruzamento como pensais, Miss Blair. O coração caiu-lhe aos pés ao ouvir a voz calma e tranquila nas suas costas. Phaedra girou nos calcanhares. Lord Elliot estava de pé a cerca de um metro atrás de si na ombreira de uma porta aberta dos aposentos que se situavam directamente abaixo dos seus. De tronco nu e descalço, como se estivesse estado a dormir e enfiado umas calças somente para investigar um barulho. A luz ténue de um candeeiro proveniente dos seus aposentos envolvia-o num clarão dourado. A sua presença prenunciava a destruição do seu plano de fuga. Apesar de sentir a exasperação a crescer rapidamente dentro de si, não pôde deixar de apreciar o corpo exposto à sua contemplação. Este tinha uma forma elegante e delgada com ombros largos. O corpo dele possuía o retesamento juvenil que abençoava os homens durante tanto tempo na vida, se se 53

mantivessem activos. A luz ténue realçava os músculos duros do seu peito, barriga e braços. Ele deu duas passadas, libertou-a da maleta, agarrou-lhe no braço e empurrou-a para o seu quarto. De seguida, fechou a porta. – O que fazeis aqui? – perguntou Phaedra. A luz do candeeiro favorecia extraordinariamente o peito duro e a pele sedutora tão próximos do seu rosto. Se não tivesse acabado de ver gorados os seus planos com a interferência dele, podia ter apreciado melhor a sua beleza. – Hospedei-me aqui. Ele não se moveu durante um longo momento. Ela olhou de relance para o seu rosto e descobriu-o a observá-la. Ele reparara que ela se demorara a observar o seu corpo. Uma excitação lenta pulsou no sangue de Phaedra. Os olhos dele reflectiam a mesma reacção, mas com um consentimento sereno, como se a controlasse tanto em si próprio como nela. Sim, este homem só lhe iria causar problemas. – Não vos mexais. Não tenteis sair. Ele avançou até à escrivaninha, agarrou na camisa posta de parte e vestiu-a. Ela não o fitou. Não directamente. Mas, pelo canto do olho, viu a forma como os seus membros se moveram e o tronco se alongou. A imagem dessa tarde invadiu-a novamente, mais vívida desta vez, do rosto dele por cima do seu e aqueles ombros e peito à mercê das suas carícias… Ela conseguia ver igualmente as provas da sua estadia pelo canto do olho. O candeeiro repousava sobre uma escrivaninha na sala de estar, assim como um maço de papéis. Reparou nas nódoas de tinta nos seus dedos. Ele estivera a escrever, não a dormir. Ela imaginou-o aqui, despido no ar fresco da noite, absorto na escrita. Escassamente vestido e com um aspecto perigosamente devasso e romântico naquela camisa larga, ele procurou o seu olhar. 54

– Lord Elliot, viestes para cá para me espiar? – Deixei essa parte com a signora Cirillo. Vim para cá para vos impedir de vos esgueirardes a meio da noite. Ele adivinhara o seu plano. Sentiu uma pontada de desânimo. – Envolver imperdoável.

aquela

megera

nos

meus

assuntos

privados

foi

– E ao que parece, necessário. Ela aceitou de bom grado a sua missão e desempenhou-a com uma iniciativa admirável. Pedi-lhe apenas para me informar se me desobedecêsseis e abandonásseis a hospedaria. Em vez disso, ela seguiu-vos e interceptou a carta para o vosso amigo – explicou e a sua expressão tornou-se crítica. – O fac-to de terdes tentado aprazar este encontro à meia-noite com um homem é intolerável. Ainda pior do que isso, e se o vosso Pietro não estivesse à vossa espera no cruzamento? Estaríeis lá fora no meio da noite, numa cidade como esta, desprotegida… – Não me deis uma reprimenda. Não vos atrevais. Se ele não viesse, eu teria encontrado uma forma rápida de alugar uma carruagem, uma carroça ou um burro, se fosse necessário, e estaria a salvo. Todas as implicações deste episódio lamentável desenharam-se nitidamente na sua cabeça. Ela ficou ressentida com cada uma delas. – Parece que troquei um carcereiro por outro – declarou ela. Ele pegou na malinha. – Chamai-lhe o que quiserdes – redarguiu e levantou o braço na direcção da porta, fazendo um sinal para ela ir à frente. A fervilhar de raiva, ela arrastou os pés pelas escadas acima até aos seus aposentos. Para seu horror, ele não deixou cair a malinha à ombreira da porta, mas carregou-a para o interior do quarto de dormir. Ela não o seguiu. Uma cautela instintiva, extremamente feminina, reteve-a na sala de estar. – Entrai, Miss Blair. A sua ordem provocou-lhe um frémito visceral que não reconheceu nem gostou. A ira que este continha era compreensível, mas detinha igualmente outras palpitações e latejos que a deixaram consternada. Ela 55

detestava quando os homens lhe tentavam dar ordens, quando presumiam ser o seu amo, e no entanto… Ela espreitou para dentro do quarto de dormir. Ele estava de pé numa pose descontraída, com a camisa branca desabotoada no colarinho, o cabelo revolto e uma expressão decidida. Quando a viu, o mesmo reconhecimento mudo fluiu entre ambos. Uma onda expectante de arrepios e alarme tomou-a de assalto. Ele foi até junto dela e puxou-a para o quarto. A forma como agarrava o seu braço, tão firme e confiante, tão repleta de presunções a respeito de fazer o que bem entendia, deixou-a sem fala. Nunca fora tratada deste modo por nenhum homem em toda a sua vida. Ela tentou recuperar o domínio de si mesma e formar as palavras que o colocavam no seu lugar, mas… Ele desatou o nó do xaile atado sob o seu queixo. Demorou demasiado tempo. Ficou demasiado perto de si. Não era possível que fosse tão vil ao ponto de… Ela tinha de o impedir. Ela tinha de… Ele fez deslizar o xaile pela sua cabeça e ombros. À medida que caía, envolveu-a numa carícia longa e lenta. Ele seguiu com o olhar a extremidade que deslizava pelo seu corpo até ficar preso apenas pela sua mão. A única iluminação provinha da luz do luar que entrava pela janela aberta do quarto, mas ela não precisava de ver com nitidez o seu rosto para saber os seus pensamentos. Estes pairavam em todo o quarto, no ar, exactamente como nessa tarde. O espírito de Phaedra foi sobressaltado por uma nova reacção. Mais uma que ela nunca experimentara antes. Ela estava com medo. Não dele e não de ser forçada. De si mesma e do modo peculiar e chocante através do qual o seu corpo reagia ao papel de amo desempenhado por Elliot. Ele fez um gesto na direcção na cama. – Despi o vestido e deitai-vos. As suas palavras quase a fizeram recuperar o fio ao pensamento. Quase. No entanto, uma excitação inexplicável provocou pontadas lentas e indecorosas face a esta ordem. Deus do Céu… 56

– Estais a ir demasiado longe. Estas palavras tinham saído da sua boca? A mente teria finalmente recuperado algum bom senso e vindo em seu socorro? – Não me deixais outra alternativa. Não posso arriscar outra fuga pela calada. – Tendes a minha palavra que não o farei. – Uma mulher que espera que eu falte à minha palavra com Sansoni não manterá a dela para comigo. Cooperai, a não ser que queirais que eu vos force a obedecer. Ela levou as mãos às costas e desapertou os colchetes do vestido. Só precisou de um minuto para o despir e colocá-lo numa cadeira. A luz não era suficientemente ténue para a encobrir. Pela primeira vez na vida, desejou estar a usar um espartilho. Ela suspeitava que ele conseguia ver mais do que devia sob a combinação simples que envergava. Ela aproximou-se da cama e subiu com cuidado, tentando não se expor em demasiada, e excitada por suspeitar que o fazia. Deitou-se de costas e olhou para ele. O silêncio arrastou-se no ar num longo intervalo. – Quais são as vossas intenções, Lord Elliot? Ele riu-se novamente. Lenta e sombriamente. – Este não é um bom momento para provocar e insinuar, Miss Blair. De súbito, começou a inclinar-se sobre ela. A pairar sobre ela. O coração de Phaedra disparou. A camisa dele erguia-se à frente do seu rosto. O cheiro dele tomou-a de assalto. O tamanho dele dominava-a. Uma terrível e maravilhosa expectativa inundou-a. Sentiu os seios a ficar cada mais vez mais sensíveis e… Ele pegou no seu braço esquerdo e colocou-o ao lado das barras de ferro da cabeceira da cama. – O que estais a fazer? Ele enrolou o xaile à volta das barras.

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– A certificar-me de que não saís daqui. Não preciso de dormir muito, mas não posso ficar acordado durante duas noites seguidas. – Isto é excessivo. Indigno. Exijo que… – É necessário. É isto ou eu durmo ao vosso lado. Preferis isso? Ela olhou-o fixamente. Ele parou de fazer os nós e olhou para baixo. Sentiu o coração na boca. – Preferis? – repetiu ele. Era uma pergunta franca e sincera. Um convite para dar rédea livre ao impulso sensual. Ela engoliu em seco. – Claro que não – respondeu. Apesar da luz ténue, o sorriso que ele exibiu era visível. Ele voltou a concentrar-se nos nós. Por fim, recuou e endireitou-se. Ela puxou pelo tecido que a prendia e posicionou-se de lado para desenlaçar os nós compactos com a outra mão. – Podeis tentar desatá-lo à vontade. Não ides conseguir. Podeis sentarvos. Podeis mexer-vos. Até vos podeis pôr de pé. Podeis utilizar o bacio. Mas não podeis fugir. É melhor passardes o tempo a dormir. Houve qualquer coisa no seu tom de voz que a fez parar. Rodou o corpo até ficar de costas e olhou directamente para ele. A sua vulnerabilidade e o controlo dele tornaram-se absurdamente palpáveis. A sua mente vociferava insultos de rebeldia, mas o seu corpo experimentou uma sensação deliciosa de calor e expectativa. Sentir que esta subjugação despertava desejo em si, e um desejo deveras erótico, horrorizava-a. Ele sabia, maldito. Ela via na sua expressão que ele sabia. – Ficais muito bonita aí, Miss Blair. E encantadora e vulnerável e, atrevo-me a dizer… Submissa? – Seu canalha.

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Mais uma vez, ele soltou uma gargalhada silenciosa. A seguir retirou-se, deixando-a a discutir consigo própria o resto da noite sobre o quão vulnerável e submissa ele a tinha tornado.

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Capítulo 5 P

haedra levantou o camafeu à luz da manhã que entrava a

jorros pela janela da sala de estar. Este havia-se tornado um talismã nos últimos dois dias enquanto fazia um braço-de-ferro com um homem demasiado confiante nos seus direitos de a controlar.

Devíeis ter-me avisado, mãe. Talvez Artemis não soubesse e não a pudesse ter avisado. Talvez se tivesse isolado tanto de homens como Elliot Rothwell ao ponto de nunca ter tido hipótese de entrar numa disputa com eles. Ela pensou na mãe, cuja beleza emudecia todos em seu redor. Com um rosto tão doce que as pessoas nunca adivinhavam a mente brilhante no seu interior até ela abrir a boca ou dirigir-lhes um olhar perspicaz. Artemis tinha de facto sido uma rainha à volta da qual muitas abelhas zumbiam. Académicos, artistas e homens que admiravam o seu intelecto faziam parte do lote de amigos que a amavam e desejavam algo mais. A sua casa havia estado repleta de personalidades famosas e em ascensão. Um desses homens tentara seguramente a conquista. A famo-sa Artemis Blair experimentara certamente o frémito primitivo de encontrar um parceiro à altura em espírito e poder. Ela devia ter avisado a filha que poderia vir a cruzar-se com um desses ho-mens.

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Phaedra olhou pela janela. Lá em baixo, Lord Elliot dava instruções aos serviçais da signora Cirillo à medida que içavam maletas de viagem para o coche que os levaria para o porto. Os seus olhos franziram-se ao ver a cabeça do inimigo. Pelo menos ele não a tinha atado à cama na noite passada. Ela prometera de cinco formas diferentes que não fugiria. Ele só cedera quando ela jurara, jurara, pelo túmulo da sua mãe. Ele tinha-a feito implorar como uma suplicante ao seu senhor. A sua mãe estaria provavelmente a dar voltas no referido túmu-lo. Artemis Blair nunca se submetera a nenhum homem, nem sequer simbolicamente. Nunca se tinha casado, nem sequer com o seu amante de sempre, ou quando descobriu que estava à espera de um filho de Richard Drury. Nunca abdicara da sua liberdade, da sua independência, e do direito de amar e deitar-se com a pessoa que escolhesse, mesmo quando descobriu que, afinal, só queria amar e deitar-se com um único homem. O camafeu aqueceu na mão de Phaedra. Ela observou-o demoradamente. Não, não só um único homem. Houvera outro. Fora um choque ler isso nas memórias do seu pai. Só o simples facto de recordar as suas palavras fazia-a sentir um ligeiro aperto no estômago. Ela sempre acreditou que os pais haviam partilhado um amor perfeito, livre de obrigações e leis, uma verdadeira união de almas gémeas que iria durar até à eternidade. A amizade entre am-bos provou ao mundo que existia uma outra e melhor forma de fazer as coisas. Fora assim durante anos entre ambos, mas, no final, surgiu outro homem que se interpôs entre os dois.

Este intruso era insinuante, mas também a peça central de um esquema que era tão brilhante como iníquo. Estas eram as palavras de seu pai. Ela recordava-se com exactidão de todas elas. Memorizara-as antes da sua partida de Inglaterra. Ele atraiu Artemis para uma ligação amorosa, utilizou-a de um

modo desonroso que poderia destruir a sua reputação e, em última instância, as acções dele conduziram à sua morte. Ele vendeu-lhe mentiras, assim como aquelas antiguidades fraudulentas que negoceia. No entanto, é só uma 61

questão de tempo até ser desmascarado, pois os objectos circulam por aí, visíveis, tal como aquele que lhe vendeu, e alguém acabará por revelar a sua proveniência suspeita, e as suas seduções criminosas irão provocar a sua queda. Os seus dedos envolveram com mais força o camafeu. Uma antiguidade de proveniência suspeita. Uma pedra preciosa adicionada posteriormente no testamento, alegadamente originária de Pompeia. Phaedra não tinha dúvidas de que este era o objecto a que o seu pai se referira e a sua única ligação ao homem que ele descrevera.

Em última instância, as acções dele conduziram à sua morte. Ela não conseguira tirar estas palavras da cabeça. Elas ecoavam pela noite fora enquanto nos seus sonhos via imagens da mãe nas suas últimas semanas de vida, demasiado séria, demasiado distraída. Ela não reparara nisso na altura, porque havia sempre sorrisos para ela, pelo menos. Mas o declínio da mãe fora demasiado célere e a sua morte um choque. Phaedra olhou novamente para baixo. Lord Elliot olhava-a fixamente lá de baixo. Há quanto tempo estaria a observá-la da rua? Talvez a mãe não a tivesse prevenido porque ela própria não sabia. Talvez o intruso tenha sido um homem igual ao que estava agora sob a sua janela, que a fazia estremecer com um mero olhar e que podia tentar alguém a esquecer todas as crenças e princípios que norteiam uma vida. Ela podia perdoar a mãe por negligenciar esta lição. Ela podia perdoar tudo a Artemis, até o facto de ter abandonado o mundo tão cedo. Mas se um homem a tinha de facto utilizado de modo desonroso e se as suas acções a haviam conduzido à morte dela, o caso mudava de figura. A filha de Artemis Blair nunca lhe perdoaria a ele. Se descobrisse que isso era verdade, faria tudo o que estivesse ao seu alcance para provocar a sua queda. Phaedra agarrou no xaile e enrolou-o à volta da cabeça. Lord Elliot seria um contratempo, mas ela não permitiria que a sua companhia interferisse com o verdadeiro motivo pelo qual viera a Itália. *

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Elliot regressou aos seus aposentos para ir buscar uma pasta a abarrotar com os seus papéis. Cruzou-se com Miss Blair nas escadas. – Eu espero na carruagem. O seu tom crispado continha a mesma entoação glacial que ela exibia sempre na sua presença agora. Ela nunca o iria perdoar por tê-la atado àquela cama, e os motivos não se prendiam unicamente com a humilhação sofrida e a falta de confiança. Ambos sabiam que a excitara e ela odiava-o por isso e por tudo o que isso implicava. Ambos sabiam igualmente que se ele não tivesse feito isso, ela terse-ia esgueirado durante a noite para evitar tudo aquilo que isso implicava. Ela recusara-se terminantemente a deixar o mesmo acontecer na noite passada. As suas promessas tinham sido tão sentidas e as suas garantias em como não fugiria tão sinceras, que ele cedera. Isso significava que ele também podia finalmente dormir. Na primeira noite, limitara-se a deitar-se na cama, irrequieto e insaciado, com o desejo a dilacerá-lo como uma faca de bordas irregulares. A imaginá-la lá em cima com aquela combinação fina, atada à cabeceira da cama, o cabelo a brilhar como seda acobreada e o corpo demasiado exposto… Quais são as vossas

intenções, Lord Elliot? Maldições. Ele agarrou na pasta e num pacote estreito e comprido e juntou-se a ela na carruagem. A postura tensa e o olhar distante e inexpressivo dela comunicavam que só aceitava a sua companhia porque não tinha outra escolha. Ela não iria aligeirar o tempo que passariam juntos com palavras de cortesia. O barco que fretara aguardava-os perto do Castel Nuovo. Uma hora depois, navegavam ao largo da costa que rodeava a baía. Miss Blair posicionou-se na entrecoberta, segurando-se à amurada. Observou o litoral que ficava para trás e o tamanho cada vez maior do monte Vesúvio no plano de fundo. A brisa puxava-lhe o xaile para longe dos cabelos e a sua beleza pálida e invulgar atraiu a atenção da tripulação. Elliot 63

rondava tranquilamente por perto para que não houvesse qualquer malentendido a respeito da sua protecção. Ele estendeu-lhe o pacote que trouxera. – O que é isso? – perguntou ela. – Um presente. O sorriso que obteve em resposta era afável, mas firme. – Eu não aceito presentes de cavalheiros, Lord Elliot. – Não trocais presentes por favores, o que é admirável. Porém, visto que eu não desfrutei dos vossos favores, não existe qualquer inconveniente em aceitar o presente. Se vos seduzir, podeis de-volvê-lo. Ele esteve perigosamente perto de dizer «quando» em lugar de «se». Ainda hesitante, mas curiosa, ela pegou no pacote e rasgou o papel que o envolvia numa das pontas. – Uma sombrinha? – perguntou Phaedra. Ela arrancou o resto do papel e soltou uma gargalhada. – Preta. Completamente preta. Que… simpático da vossa parte. – Achei que combinaria bem. – Isto é para me poupar a mais sardas? – É para vos poupar a uma insolação. O sol é muito quente aqui e estamos no meio do Verão. Quando formos para o interior, vai dar graças por ter uma sombra. Ela abriu a sombrinha e colocou-a sobre a cabeça. – Conheceis bem o país. Já estivestes aqui antes? – Sim, duas vezes. Estive aqui pela primeira vez na minha grand tour2 e a última há alguns anos – explicou. Ele apontou para a costa. – Aquilo é Herculano. A mesma erupção do Vesúvio que sepultou Pompeia em cinzas sepultou Herculano em lava.

Nome de uma tradicional grande viagem pela Europa levada a cabo por jovens oriundos das classes mais altas, associada particularmente à nobreza britânica. (N. da T.) 2

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Ela olhou de esguelha para o ponto rochoso salpicado com as cores dos vestidos e casacos dos seus visitantes. – Tencionava visitar igualmente Herculano, mas o signore Sansoni… Vou perder muita coisa nesta visita devido a isso. – Porque não prolongais a vossa viagem para que a possamos visitar quando regressarmos desta pequena excursão? – Não posso despender esse tempo. Tenho de regressar a casa. Tenho uma editora para gerir.

E um livro especial para dar à estampa. Se Elliot não obtivesse uma resposta adequada por parte de Merriweather quando conseguisse finalmente falar com ele, Miss Blair não embarcaria tão cedo num navio em direcção a casa. – Seja como for, não creio que irei gostar de passar tempo em Nápoles após termos completado esta pequena excursão – declarou ela. – Não tenho dúvidas de que ireis considerar que a palavra que destes a Sansoni ainda está em vigor e terei de levar convosco em cima. Ele admirou a visão impressionante do cone elevado do Vesúvio enquanto passavam suficientemente perto da elevação para avistar alguns trabalhadores na escavação. Perto do seu braço flutuavam cabelos acobreados. – Miss Blair, pergunto-me se é o facto de levardes comigo em cima que vos desagrada ou o de não serdes vós a ocupar a posição cimeira nesta situação. O suspiro profundo de Phaedra traduziu os seus pensamentos. Que os

Céus me dêem paciência para este homem pouco esclarecido e previsível. – Suspeito que esta explicação será em vão, mas vou expô-la no interesse da paz. Não sou da opinião de que qualquer um dos parceiros numa amizade, num casamento ou numa ligação amorosa deve fazer prevalecer a sua posição em relação à outra parte. A mi-nha perspectiva só é considerada extraordinária porque a posição cimeira em questão muitas vezes é ocupada por um par de calças e todos partem do princípio que prevaleça sobre uma postura feminina submissa. Eu acredito que um homem e uma mulher podem 65

ocupar exactamente a mesma posição, sem reclamar propriedade um do outro. A vida da minha mãe provou que isto é possível e a minha própria vida até agora faz igualmente prova disso. Tão-pouco fomos nós que inventámos esta crença. É bem conhecida e foi abraçada por pessoas que são objecto da mais elevada admiração. – Estou bem informado a respeito da vossa crença Miss Blair. Não me considero um ignorante a nível da respectiva filosofia. À primeira vista parece inequívoca e racional. O vosso único problema é não terdes tido em consideração vários aspectos. – Ah, sim? Que aspectos? – A natureza humana. A história humana. A tendência dos infames para fazer vítimas entre os fracos e a necessidade de protecção por parte dos fracos. Aventurai-vos sozinha nas povoações remotas da Campania ou nas vielas de Marselha ou Istambul, entrai sozinha nos bairros miseráveis de Londres e vede o que acontece a uma mulher sozinha e desprotegida. – Os senhores de outrora concediam protecção aos seus servos. Isso não quer dizer que fosse correcto exigir a sua servidão em troca. Elliot riu-se. – Senhores. Servos. Que perspectiva sombria tendes das vidas das mulheres. Não precisa de chegar a esse ponto. – Mas pode chegar – retorquiu ela. – Vós sabeis que pode. A lei permite-o. O modo como realçara a palavra «vós» fora tão subtil que Elliot se perguntou se o teria imaginado. Ela pressionou suavemente uma ferida antiga, mas a dor não se fez esperar. Uma fúria sombria começou a crescer dentro de si. Ela desviou o olhar na direcção da costa. O seu ligeiro enrubescimento indicava que ela sabia que tinha ido longe de mais. Ele controlou a sua reacção, e deixou-se invadir por especulações predatórias. Avaliou o que seria necessário fazer para se transformar no senhor desta mulher, para fazê-la ajoelhar-se perante si. 66

– As minhas desculpas, Lord Elliot. Não devia ter… – As vossas palavras só servem para agravar a vossa impertinência, Miss Blair. Teria sido melhor ter deixado a vossa insinuação flutuar para longe com o vento – replicou. Não o tendo feito, ele perguntou-se o que estaria por trás da segurança com que a proferira. – Referíeis-vos aos rumores a respeito da minha mãe, verdade? Ela ponderou cuidadosamente a sua resposta ao mesmo tempo que o olhava de relance. – Reconheço que o seu exílio no campo durante os últimos anos de vida foi interpretado como uma imposição do vosso pai. Ele conhecia a história sórdida murmurada em salas de estar um pouco por todo o lado. A de que a sua mãe arranjara um amante e que o seu pai a castigara ao enviar o homem para a sua morte numa colónia distante e, de seguida, ao aprisioná-la na propriedade rural da família. A história era verdadeira? Ele e os irmãos chegaram à conclusão que o amante existiu, mas a parte do aprisionamento não. O seu próprio pai juraralhe que não havia feito aquilo que as pessoas segredavam. E, no entanto, o exílio de sua mãe instigava a maledicência, ao ponto de ela própria acreditar nisso. Ele recordou-se de uma imagem dela na biblioteca, uma cabeça escura curvada sobre livros e papéis, perdida no mundo dos seus pensamentos. Quase totalmente perdida para os seus filhos. Como era o mais novo, ele passava a maior parte do tempo com ela. Ela emergia da sua concentração ocasionalmente para o guiar no meio das estantes, escolhendo livros para ele ler ou comentando as páginas que ele próprio escrevera. Porém, em raras ocasiões, o vínculo que os unia fora intensificado, como no dia em que ela recebeu uma carta que a deixou em lágrimas. Esta continha a notícia da morte do oficial do Exército.

Foi ele que fez isto. Para me castigar por amar outra pessoa. Aquele fora um amor ilícito e ela, uma adúltera. Independentemente disso, a sua dor comoveu-o, mas sabia que a acusação que proferira era a fantasia sombria de uma alma infeliz. 67

Ele sentiu Miss Blair ao seu lado. Nem mesmo a sua ira conseguia abafar a forma como reagia ao seu fascínio sensual. As memórias malditas do pai dela insinuavam que uma mulher em clausura fora a única que soubera exactamente até onde podia chegar o sangue impiedoso dos Rothwell. A sua própria certeza de que isso não correspondia à verdade não teria qualquer peso quando se fizesse uma alusão ao nome do seu pai. – Elas conheciam-se – observou Miss Blair. – As nossas mães. – A minha mãe estava ao corrente dos ensaios de Artemis Blair, mas nunca se referiu à existência de uma amizade entre ambas. Por outro lado, ela falava raramente do que quer que fosse. – Não acredito que alguma vez se tenham conhecido pessoalmente. Elas correspondiam-se. Eram ambas escritoras, afinal de contas. Os seus interesses eram similares. A vossa mãe enviou um poema à minha uma vez. Encontrei-o no meio dos papéis dela após a sua morte. Era um belo poema que reflectia uma alma inteligente e sensível. Ele manteve o olhar fixo na cada vez mais próxima cidade costeira de Sorrento. Enfurecia-o que a sua mãe tivesse partilhado os seus escritos com Artemis Blair e não com os seus próprios filhos. – A vossa mãe encorajou-a a ser adúltera? – perguntou. A voz pareceulhe enrouquecida e áspera aos seus ouvidos. – Pregava a sua crença no amor livre nessas cartas? Ele imaginou a radical e reputada Artemis Blair a influenciar as decisões da mãe de formas que acabariam por resultar numa imensa mágoa. – Creio que apenas se correspondiam para tecer comentários respeitantes a literatura e afins. A minha mãe somente a mencionou uma vez, ao saber a notícia da sua morte. – O que foi que ela disse? -– disparou Elliot entre dentes. – Disse: «Ele devia tê-la deixado ir, mas, claro, como era um homem, não foi capaz de o fazer.» As suas palavras só serviram para fazer surgir um trovão nas nuvens que já assolavam o seu espírito. Ele queria dizer que era claro que um homem 68

não podia permitir à mãe dos seus filhos abandoná-los devido a um capricho romântico. Claro que o seu pai lhe recusara essa liberdade. Mas ela encontrara a sua própria forma de o abandonar. Pelo canto do olho, ele reparou num membro da tripulação que estava a demorar mais tempo do que o necessário a puxar umas cordas. O homem protelava a sua tarefa enquanto regalava os olhos na beleza de Phaedra Blair. A tempestade no seu íntimo ribombou. Os relâmpagos sucederam-se. Ele franziu os olhos e proferiu três palavras. O homem afastou-se apressadamente. – O que lhe dissestes? – perguntou Miss Blair, dando-se conta do sucedido. – Nada de especial. Uma mera frase napolitana que solicita privacidade. Ele não se deu ao trabalho de lhe explicar que a tradução aproximada das suas palavras seria: «Desaparecei ou morrei.» Uma vaga de vento frio ajudou-os a fazer uma boa média horária. A paisagem tornou-se cada vez mais impressionante à medida que contornavam a baía em direcção à península de Sorrento. Colinas altas abraçavam a costa, precipitando-se em direcção ao mar em encostas escarpadas e verdes. Alguns barcos repousavam nas suas pequenas praias e as falésias estavam pejadas de casas, pequenos cubos em tons de branco e pastel suspensos acima do nível da água. Contornaram a pequena península, passaram a ilha de Capri e navegaram até à baía de Salerno. Acima da embarcação, começaram a desenhar-se colinas mais escarpadas, perigosas e inacessíveis. O cenário deslumbrou Phaedra. Lord Elliot tinha razão. Seria uma pena ter perdido isto. – O que está a acontecer ali em cima? – perguntou, apontando para um ponto repleto de actividade a meio de um dos lados da falésia. – O rei está a construir uma estrada para Amalfi. Estão a abri-la directamente na encosta. 69

Ela reparou que a estrada se situava acima das aldeias piscatórias. – Seja como for, terão de subir ou descer para a utilizar. – Pelo menos as pessoas não terão de depender de barcos ou burros. E o panorama lá de cima será espectacular – notou. Apontou para um ponto mais à frente na costa. – Positano fica já a seguir daquele cabo. Já se consegue avistar a antiga torre de vigia normanda. Existem muitas ao longo desta costa, construídas para proteger o reino normando medieval que existiu aqui antes da ameaça sarracena. Ela caminhou até à proa do barco para conseguir ver melhor a torre quando esta ficou visível. A antiga e angular torre de pedra de construção medieval elevava-se ao longo de vários andares, isolada na sua própria língua de areia. Estava crivada de pequenas janelas como um castelo de eras passadas. Parecia um intruso estrangeiro e vindo das terras do Norte nesta terra banhada pelo sol. – Aquelas janelas altas estão viradas a leste e a poente – afirmou ela. – Não existe nada entre uma e o horizonte do mar e entre a outra e o cimo daquela colina elevada. Vamos ficar aqui vários dias? – Espero que sim. Ela perdera a noção do calendário enquanto desfrutava da hospitalidade de Sansoni. Agora fez rapidamente contas de cabeça. – O solstício de Verão está próximo. Pergunto-me se a torre será utilizada em algum ritual. – Esta é uma terra católica. Esse tipo de superstições foi suprimido há milhares de anos. Embora Lord Elliot tenha respondido à sua pergunta, ela deu-se conta de que a mente dele estava muito longe. Um silêncio que tinha muito pouco a ver com o mundo dos sons apoderou-se dele. Era interno, como se o seu espírito se tivesse retirado para câmaras secretas da alma. Ela arrependeu-se de ter feito aquela alusão vaga à situação da sua mãe. Escapara sem querer, por despeito, em reacção à sua arrogância ao presumir que estaria certo e que ela estaria ridiculamente errada. Ela sabia 70

melhor do que ninguém que não se devia ter envolvido numa discussão acerca da forma como pensava e vivia. No que dizia respeito a essas coisas, este homem estava tão afastado da sua realidade como os pescadores nestas aldeias pitorescas. Passaram muito perto da torre, impelidos pelo vento que fustigava as velas da embarcação. Aquela parecia estar abandonada. – Quem é o vosso amigo que iremos visitar? – perguntou ela. – Visto que estamos prestes a chegar, talvez seja melhor saber de quem se trata. – Matthias Greenwood. Foi um dos meus tutores na univer-sidade. Ela escondeu a sua surpresa. Ela conhecia Greenwood. Tentara em vão localizar a sua casa em Nápoles. – Será que não se irá importar com o facto de terdes trazido mais bagagem do que ele estaria à espera? – Ele vai ficar encantado por ter a companhia da filha de Artemis Blair. Fez parte do seu círculo de amizades em tempos, creio eu. – Sim, fez. Estive na sua companhia diversas vezes, a última das quais no funeral da minha mãe. Matthias Greenwood foi um dos académicos que estivera presente no último adeus de uma mulher que desconcertara o mundo. Era igualmente alguém que podia lançar alguma luz sobre o «outro» homem. Ela acreditara que esta demora a caminho de Pompeia seria um contratempo. Em vez disso, Lord Elliot estava a ajudá-la a eliminar um ponto na sua lista de tarefas a cumprir nesta terra. – Ele admirava-a. Dizia que se ela tivesse nascido homem, teria sido reconhecida como uma das melhores peritas em literatura latina antiga em Inglaterra – acrescentou Lord Elliot num tom distraído, como se apenas metade da sua atenção estivesse presente. Phaedra observou a pequena cidade de Positano com mais optimismo, e não só porque podia dar continuidade à sua missão em terra. Ela não se submetia a regras sociais estúpidas, mas a maior parte do mundo sim. Ela perguntara-se como seria recebida quando chegasse ao lado de Lord Elliot. 71

Viajar em conjunto com ele dava a entender coisas que ela não encorajara e que não gostaria que fossem presumidas. Mr. Greenwood provavelmente pensaria duas vezes antes de presumir fosse o que fosse. Ela sentiu o companheiro de viagem a observá-la e virou a cabeça. Elliot regressara definitivamente ao mundo. – Ele recebe com muita frequência um círculo variado de pessoas – declarou. – É provável que haja outros hóspedes de visita. Espero que saibais comportar-vos condignamente. Phaedra tinha esperança de que ele não estivesse à espera que ela desempenhasse o papel da amante dócil numa tentativa vã de se transformar numa mulher que esses hóspedes seriam capazes de tolerar. Mesmo que ela quisesse criar essa ilusão, não saberia sequer por onde começar.

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Capítulo 6 P

ositano espraiava-se numa pequena enseada que estava

apinhada de barcos. Os edifícios em tons pastel da cidade pairavam acima do mar, empilhados uns em cima dos outros na ladeira escarpada da montanha. A cidade precipitava-se a pique mesmo até à beira-mar. Phaedra assimilou a imagem da falésia imponente, da água cor de safira sem fim à vista e da folhagem de um verde vivo. Nunca tinha visto nada tão fisicamente impressionante como esta visão. – Qual destas casas pertence a Mr. Greenwood? – inquiriu. Lord Elliot aproximou-se e estendeu o braço para que o seu olhar o pudesse seguir. – É aquela ali em cima, com as colunas. As referidas colunas suportavam um grande alpendre coberto da casa mais elevada. Erguia-se a uma pequena distância da própria cidade. A sua largura criava uma espécie de coroa sobre a aldeia que caía em cascata a seus pés. – Vamos ter de voar até lá ou ele vai lançar um cesto para nos içar? Um dos membros da tripulação afastara-se do barco. Neste mo-mento, regressava com a resposta à sua pergunta. Atrás de si, dois rapazes seguiam-no com burros. 73

Phaedra permitiu que os rapazes a ajudassem a subir ao dorso do animal. Lord Elliot só precisou de deslizar uma das pernas para montar o seu. A sua altura tornava o animal pequeno em comparação e as botas raspavam no chão. A tripulação atou as maletas e pastas a outros dois burros. Phaedra soltou uma risada perante a imagem que reproduziam. – Que grande comitiva a vossa, Lord Elliot. Vamos fazer uma procissão impressionante ao longo da cidade. Talvez deva retirar o meu caderno de desenho para imortalizar a elegância com que montais esse vosso grande corcel. Ele esporeou o seu burro para a dianteira, dando uma palmada na garupa do seu animal ao ultrapassá-lo. – Atentai mas é na vossa própria bonita montada, Miss Blair. Tende cuidado para não cairdes ou não ireis parar de rebolar até chegardes à baía. Ela percebeu imediatamente a seriedade da advertência. Os burros subiam lentamente veredas tão íngremes que tinham sido calcetadas em degraus rasos profundamente escavados na rocha. Phaedra concluiu que existia uma elevada probabilidade de cair e rebolar até ao mar. Os animais tinham o passo firme, mas a sua po-sição à amazona obrigava-a a segurar-se com toda a força que tinha para não perder a vida. A passagem de ambos deu origem a um pequeno espectáculo. Os habitantes surgiam às soleiras e janelas, curiosos com os estrangeiros que se dirigiam para a villa no cimo da cidade. Na traseira, juntaram-se algumas crianças, transformando a comitiva numa verdadeira procissão. Duas raparigas caminharam ao lado dela durante um bocado, tocando com curiosidade nas pontas de cabelo avermelhado que se avistavam por baixo da dobra inferior do xaile. Algumas mulheres fizeram pequenas vénias à passagem de Lord Elliot, sabendo pelo seu porte e atitude que lhe corria sangue nobre nas veias. Ela conseguiu descontrair-se à medida que se adaptava à marcha do burro. Não se atrevia a olhar para trás, mas permitia-se observar as bonitas casas de pedra, de construção rústica. Varandas simples e telhados cobertos de telhas ajudavam a criar uma miscelânea de formas e cores. Algumas das casas maiores ostentavam coloridos azulejos de majólica em redor das portas 74

principais. Todas elas aparentavam ser muito antigas, como a torre. A grande maioria estava coberta por estuque, muitas vezes trabalhado com ornamentos e sancas. Algumas casas eram brancas, mas muitas exibiam tonalidades avermelhadas e cor-de-rosas. Ruídos de uma vida comunitária ressoavam à sua volta, à medi-da que as pessoas chamavam por outras através das janelas abertas e ao longo das ruas do mercado. Algures, um homem entoava displicentemente uma ária de uma ópera de Rossini, com a qual acompanhava o trabalho de que se ocupava. As veredas aproximavam-se cada vez mais do plano horizontal à medida que se aproximavam da villa. Era como se alguém tivesse removido um bom bocado da encosta para que a grande casa pudesse ser construída. Um homem surgiu no interior do átrio abobado aberto cujo telhado era sustentado pelas colunas. Era alto, aprumado e delgado, com um tufo de cabelo branco e um nariz aquilino. Um maxilar com uma configuração quadrada e obstinada terminava num queixo com uma covinha. Phaedra podia contar pelos dedos de uma mão as vezes que esteve com Matthias Greenwood, mas o seu aspecto era tão característico que era impossível esquecê-lo. Ele acenou uma saudação e, de seguida, avançou até junto deles. – Rothwell! Que alívio terdes finalmente chegado. A minha companhia está a precisar desesperadamente da vossa vivacidade de espírito. Os dois homens saudaram-se e Elliot apresentou Phaedra. – Já tive essa honra, Rothwell. Estou feliz por vos ver novamente, Miss Blair, e sob circunstâncias menos penosas do que a última vez. A vossa mãe era grandemente estimada por académicos inferiores tais como eu e generosa para connosco. Fiquei-lhe imensamente grato pelas apresentações que as suas recepções me proporcionaram. Entraram em cena alguns serviçais e Matthias distribuiu instruções apressadas a respeito da bagagem de ambos. – Entrai e refrescai-vos. Os meus outros hóspedes estão a fazer as suas siestas, mas juntar-se-ão a nós em breve. 75

Ela caminhou ao longo do caminho em pedra e seguiu Matthias até ao átrio. Olhou de relance através dos arcos e susteve a respi-ração. A vista era irreal, um cenário que estava mesmo a pedir um pincel e uma tela. Se observar esta colina de baixo era impressionante, fazê-lo de cima inspirava uma sensação de reverência. Os telhados da cidade e as listas das veredas derramavam-se ao longo da descida a pique. Esta era tão pronunciada que era inacreditável que algo conseguisse ser construído aqui. O mar interminável, o céu límpido, o longo abraço do cabo – tudo isto ajudava a formar um panorama vasto e onírico a partir de um bastião precário do mundo, arrebatador e romântico, impregnado de beleza, mas eivado de perigo. – Espanto-me que não opteis simplesmente por viver neste átrio e abandonardes o resto da casa à sua sorte, Mr. Greenwood. – Isso aproxima-se perigosamente da realidade, Miss Blair. Aqui e nos outros terraços e varandas. Tenho por hábito ir à igreja da paróquia, mau grado não seja católico, e acender velas pela alma do parente distante cujo legado me permite viver no paraíso. Quando entraram na sala de estar airosa com piso de mármore foram saudados por uma mulher. Era uma elegante nativa do país, com pele trigueira. Possuía um rosto encantador e nobre banhado permanentemente por uma expressão melancólica. Chamava-se signora Raviole e a forma como ela se apresentou e se encarregou do conforto dos hóspedes indicava que esta também era a sua casa. Matthias Greenwood não vivia sozinho no paraíso. Outro hóspede juntou-se a eles num passo tranquilo pouco depois de um criado lhes ter levado um pouco de vinho. Phaedra também o reconheceu. Ele não estivera presente no funeral da sua mãe, mas visitara a sua casa uma ou duas vezes quando era mais nova. Era um homem bonito, cujo cabelo dourado, traços elegantes e postura nobre quase a tinham feito desenvolver uma paixoneta da primeira vez que o viu. – Vede quem está aqui para celebrar a vossa visita, Rothwell – declarou Matthias. – Escrevi-lhe a dizer-lhe que viríeis cá depois de Nápoles e ele e a esposa vieram de Roma só por vossa causa. Miss Blair, permiti que vos 76

apresente Mr. Randall Whitmarsh, cavalheiro, académico e mais um refugiado de Inglaterra. Mr. Whitmarsh adoptara os costumes e modos continentais, reflectindo os seus longos anos vividos no estrangeiro. Murmurou a palavra bellissima quando se curvou para a beijar na mão e fez suficientemente aparato para provar que deixara a reserva britânica em Inglaterra quando adoptou Roma como o seu lar principal. – É uma alegria conhecer a filha da indómita Artemis Blair – declarou, concedendo-lhe um sorriso galante e admirador. Phaedra não era insensível às atenções de um homem bonito. Ela reparou que Lord Elliot lançava frequentemente olhares de soslaio ao longo aperto de mão com que Mr. Whitmarsh a obsequiara. – A notícia da morte de Richard Drury chegou há pouco tempo até mim – afirmou Mr. Whitmarsh, dando palmadinhas na sua mão. – Vejo que ainda estais de luto, mas porventura tenha sido saudável viajar para o estrangeiro para que esta dor seja atenuada. – A minha opção de vestuário tornou desnecessário encomendar um guarda-roupa de luto, mas, de qualquer modo, o meu pai não quereria isso. Proibiu-me especificamente de fazer luto por ele na última vez que estive com ele. Phaedra soltou a mão do suave aperto de mão de Mr. Whitmarsh. – De todos os sítios do mundo, não estava à espera de encontrar um grupo de pessoas pertencentes ao círculo de minha mãe na remota cidade de Positano. – Somos todos membros da Sociedade dos Diletantes3, Miss Blair. Sendo mulher, a vossa mãe não podia ser membro, mas acabámos todos por a visitar para lhe prestar homenagem – afirmou Mr. Whitmarsh. – Tendo em conta a sua qualidade de perita em literatura latina, não é assim tão surpreendente que conheçais pessoas do seu círculo ao visitar as terras deste império antigo. Sociedade de nobres e académicos britânicos fundada no século XVIII que apadrinha o estudo das artes romana e grega antigas. (N. da T.) 3

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– Também fazeis parte da sociedade, Lord Elliot? – Fui aceite após a minha grand tour. Phaedra tinha apenas 18 anos quando a mãe morrera, e ainda não era admitida nesses salões e jantares nos quais Artemis recebia académicos e artistas. No entanto, aqui à sua frente estavam membros do círculo de sua mãe, ainda que lhe tenham apenas pertencido superficial e esporadicamente. Ela teria de descobrir se algum destes homens reparara ou ouvira falar do homem no qual Artemis depositara a sua afeição tardia. Phaedra ficou aliviada por descobrir que ela e a signora Roviale não seriam as únicas mulheres existentes no grupo hospedado nesta casa. Pouco tempo depois, Mrs. Whitmarsh desceu dos seus aposentos. Ela percebeu de imediato que Mrs. Whitmarsh não tinha tanta abertura de espírito como o marido. Era uma mulherzinha pálida e franzina, parca em palavras, mas com um rosto tão expressivo que funcionava como um espelho dos seus pensamentos. Quando se deu conta de que Phaedra e Lord Elliot haviam chegado juntos, Mrs. Whitmarsh sorriu levemente, olhou de relance para a signora Roviale com um desdém subtil e refugiou-se numa desaprovação silenciosa e resignada do facto de ser obrigada a suportar a companhia de mulheres perdidas. Enquanto jantavam ao ar livre no longo átrio nessa noite, Lord Elliot encaminhou atenciosamente Mrs. Whitmarsh para um tema de conversa que ela apreciaria sobremaneira e trocaram impressões acerca da sociedade londrina. Phaedra permitiu que os cavalheiros a brindassem com conselhos a respeito das maravilhas do mundo antigo que não deveria perder. – Tendes de ir a Paestum – exortou Matthias. – Rothwell, exijo que a leveis lá. Não compreendo as hordas de turistas ingleses que marcham ruidosamente entre as padarias e prostíbulos de Pompeia quando a pouca distância ignoram que podem encontrar alguns dos mais belos templos gregos do mundo. – Se Miss Blair o desejar, visitaremos os templos – declarou Lord Elliot. Matthias desempenhava na perfeição o papel de professor universitário naquele momento. Com o cabelo branco em desalinho, o 78

queixo em riste e o nariz aquilino bem alto, recitou a sua lição como se ela fosse a aluna que as universidades nunca haviam permitido que fosse. – Foi isso que me trouxe aqui, Miss Blair. Rothwell e Whitmarsh admiram os romanos, mas o meu interesse é ainda mais antigo. Esta terra foi uma colónia grega quando Roma ainda era uma pequena cidade com uma mão-cheia de gado. Quando virdes Paestum, podereis compreender a mente superior helénica. – Se não me obrigar a prolongar em demasia a minha visita, talvez aceite o vosso conselho. Após o jantar, a signora Roviale conduziu as mulheres para fora do átrio, deixando os homens a discutir e debater a respeito de antiguidades. A perspectiva de forçar qualquer tipo de conversa com a crítica Mrs. Whitmarsh não agradou a Phaedra. Esta pediu para ser libertada de obrigações sociais adicionais, alegando fadiga. Uma serviçal conduziu-a ao quarto que iria utilizar. Era quadrado e branco, com o mesmo piso de mármore que vira em toda a villa, e possuía grandes portas envidraçadas que davam para uma pequena varanda que se erguia acima do átrio. Uma outra serviçal já desempacotara as suas peças de roupa, dispondo-as no armário de madeira escura. Junto ao lavatório, encontrou água no interior de um jarro em cerâmica pintado com flores vermelhas e folhas azuis. Os mesmos tons decoravam os azulejos em redor da lareira e do parapeito de uma das janelas. Ela abriu as portas para receber a brisa vinda do mar e o último clarão do crepúsculo. Subiram até si sons vindos do átrio, a entoação de Matthias, o riso de Elliot e longos burburinhos de conversas. Perguntou-se se a sua mãe alguma vez teria sido realmente aceite nestas discussões masculinas. Quando os Diletantes prestavam a sua homenagem, seria a que um homem prestaria a uma mulher, com tudo o que isso implicava? As cadeiras foram arrastadas e as despedidas proferidas. O silêncio apoderou-se da villa. Ela ergueu-se para se despir e preparar-se para dormir. Começara a abrir os colchetes do seu vestido quando um som ténue junto à

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porta atraiu a sua atenção. Uma faixa de luz dourada raiava ao longo da varanda e na escuridão da noite. Ela aproximou-se e espreitou lá para fora. Lord Elliot estava no outro lado da varanda em mangas de camisa e colete. Ela tinha a certeza de que não fizera qualquer ruído, mas ele olhou na sua direcção como se o tivesse feito. – Estava a perguntar-me se Matthias vos colocara nesse quarto – anunciou. Ela avançou até aos ladrilhos de terracota da varanda. A luz provinha do interior de outro conjunto de portas ao lado das suas. Este terraço era partilhado por dois quartos. – Parece-me que o nosso anfitrião se equivocou – declarou Phaedra. – É provável que sim. Porém, se tenho de partilhar uma varan-da, prefiro que seja convosco em vez de Mrs. Whitmarsh. Ela aventurou-se um pouco mais adiante, mas permaneceu do seu lado do espaço. Junto à balaustrada de pedra, podia-se ver a água lá em baixo, que agora cintilava com um sem-número de reflexos minúsculos das estrelas. – Mr. Whitmarsh disse que os Diletantes prestavam homenagem à minha mãe. Fiquei feliz por saber que as suas capacidades eram reconhecidas. – Um homem honesto teria de reconhecer o seu génio. É claro que também existiam aqueles que eram menos honestos e que faziam pouco caso dele. – Claro. Tivestes oportunidade de a conhecer? – Ainda estava na universidade quando ela faleceu. Ouvira falar dela e vira-a na cidade, mas não possuía o estatuto necessário para a visitar. – Que opinião tínheis dela? Ele virou-se, apoiou as ancas contra a balaustrada e olhou directamente para ela através da escuridão. Ela deu por si a desejar ardentemente que ele não parecesse tão bonito e atraente e que a luz se extinguisse para que o rosto dele ficasse na obscuridade.

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– Eu fui criado numa casa repleta de homens e o meu pai não compreendia bem as mulheres. Por isso, foi uma revelação para mim saber da existência de vossa mãe. Havia muitas discussões acerca dela entre os alunos. Uns apaixonaram-se por ela, outros achavam-na antinatural, mas, na generalidade, ela fazia-nos questionar a ordem das coisas. Quanto a mim, achava que ela era bela, interessante, inteligente e provavelmente perigosa. – Não duvido de que era perigosa. Se o mundo estivesse cheio de Artemis Blairs, os homens não poderiam continuar como estão. Teriam de questionar a ordem das coisas, tal como vós. – Essa era a minha maneira de ver as coisas, mas não passava de um rapaz na altura e não estava consciente do verdadeiro perigo. Tive de conhecer a filha dela para compreender essa parte. Foi a vez de Phaedra soltar uma gargalhada. – Dificilmente representarei um perigo para vós. – Estais equivocada, tal como eu no passado. O perigo não parte de vós. Ele tinha razão. Isso tornara-se óbvio aqui no meio da noite. Ele emanava um poder que carregava todos esses impulsos masculinos. Isso não a surpreendeu ou assustou. No entanto, a forma como os seus próprios instintos femininos reagiram teve esse efeito. – Não me culpeis por despertar as vossas piores propensões, Lord Elliot. – Não creio que figurem sequer entre as más, e muito menos as piores, encantadora Phaedra. Pelo contrário, parecem-me naturais e inevitáveis, até mesmo necessárias. A sua voz serena e convicta lançou cordas de veludo que a rodearam. Sentiu o coração na boca e o pulso acelerou. Ele não se mexera. Não avançara sequer um centímetro, mas a sensação correspondia à da sua mão masculina a deslizar por todo o seu corpo. – Quero possuir-vos – declarou, com um tom lento e calmo que agitava o sangue que lhe deslizava nas veias da mesma forma que a brisa 81

nocturna brincava com os seus cabelos. – Quero ver-vos a abandonardes-vos ao prazer e a implorar por mim. Quero ver-vos nua e a tremer e despida do vosso… – Já chega, senhor. Se é isso que pensais das mulheres… – Só de vós, minha cara. Lançais um desafio a todos os homens com que vos cruzais. Não vos mostreis tão surpreendida por alguém o aceitar. – Como vos atreveis… – Oh, sim, atrevo-me. Neste momento, já ultrapassei a fase de me atrever. Sabeis disso, mas ainda assim estais aqui à minha frente. Se não quisésseis que eu me atrevesse, nunca teríeis avançado por aquela porta. Ela abriu a boca para o negar, mas as palavras teimaram em não sair. Ele afastou-se da balaustrada com um pequeno sorriso nos lábios. O coração dela disparou e sentiu as pernas bambas. – Este perigo que incitais em mim… Excita-vos – concluiu ele e caminhou na direcção da luz e do seu quarto. – Quem é que está a zumbir agora, Miss Blair? – Phaedra… É um nome estranho para dar a uma filha – reflectiu Matthias em voz alta. Ele e Elliot bebiam café bem cedo na manhã seguinte no átrio. Lá em baixo, Positano ganhava vida com o despontar do dia. – Duvido que exista outra mulher com o mesmo nome em Inglaterra, tendo em conta a referência – acrescentou Matthias. – Artemis Blair foi igual a si própria e decidiu que a origem não importa, dando mais valor à sua originalidade. Visto que na mitologia antiga, Phaedra teve um caso amoroso com o seu enteado, de facto, fora uma escolha estranha. Elliot duvidava que as crenças de Miss Blair e da sua mãe no amor livre fossem assim tão longe. – Desconfio que se tenha resumido a uma questão de som. É um belíssimo nome. – Consigo lembrar-me de pelo menos cinco ou seis nomes melhores. Não, a sua negligência neste seu primeiro dever maternal sugere que ela era indiferente a essa parte da sua vida. 82

– Faláveis dela com a maior das considerações quando eu era vosso aluno e Miss Blair idolatra a sua memória. O mais sensato será não dizermos coisas que ela pode escutar. – Ela ainda está na cama e não vai escutar as minhas alusões à ausência de impulsos femininos por parte da mãe, mas a vossa admoestação foi bem aceite. Ela ainda estava de facto na cama, a dormir profundamente. Elliot caminhara até à sua porta e espreitara para dentro antes de descer. As portas ainda estavam abertas, como que em repúdio das últimas palavras que ele lhe dirigira. Estais a ver, não sois nada perigoso para mim. A vossa honra e a lei

protegem-me do pior e o meu autodomínio tratará do resto. Da entrada do quarto, viu uma massa de cabelos acobreados espalhados sobre as almofadas e uma pele cremosa enrolada num lençol. Uma encantadora perna esguia e nua estava esticada no cimo de uma pilha de roupa de cama. Foi invadido pela tentação de entrar só para a observar, assim como uma irritação crescente por vê-la a dormir de um modo tão exasperadamente profundo. O sono dele tinha sido tudo menos profundo. Andava a pensar demasiado nela. A imaginar demasiadas coisas. A desejá-la demasiadas vezes. Tinha esperanças que a companhia de outras pessoas e o apelo do trabalho mitigasse o poder da presença de Phaedra e devolvesse a normalidade ao seu estado mental. – Viveis aqui como um rei, Greenwood – observou Elliot, para se distrair das imagens de Phaedra no seu repouso, que tinham tanto de celestiais como de eróticas. – As melhorias desde a minha última visita são impressionantes. O rosto de Matthias abriu-se num sorriso rasgado. – Presumo que vos referis ao edifício e não à minha amante, embora confesse que teria uma enorme dificuldade em dizer qual dos dois me agrada mais. Fazer cá chegar a pedra foi um inferno, mas valeu a pena. Devíeis seguir o meu exemplo, Rothwell. Comprai uma villa antiga e descobri até onde pode chegar o vosso dinheiro inglês nesta costa.

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– Pode chegar longe, mas só porque esta costa é tão inacessível que é preciso fazer quilómetros de barco para chegar a uma cidade que fica a dois passos daquela colina. Preciso da vida urbana com mais frequência do que apenas duas vezes por ano, mas se o vosso isolamento vos satisfaz, fico feliz por vós. – Não estou tão isolado como imaginais. Tenho sempre companhia. Ela vem até mim desde Inglaterra, Roma, Nápoles e até Pompeia. Recebi o superintendente dos trabalhos de escavação no mês passado. Ele não se importa de montar um burro para atravessar aquela colina de que faláveis há pouco. – Ficar-vos-ia muito grato se me escrevêsseis uma carta de apresentação – replicou Elliot. – Gostava de ver tudo aquilo que escavaram nos últimos anos, e não apenas as coisas que estão no mapa turístico. Matthias ergueu uma sobrancelha. – Quereis ver os frescos que revelam as delícias da noite, verdade? Receio que a entrada seja negada a Miss Blair, por mais cartas que eu escreva. – Vou pesquisar outras coisas. Antes de viajar para lá, gostaria que me concedêsseis algum tempo para discutir convosco o rumo que irei tomar. – Então, fica desde já decidido que amanhã de manhã iremos fecharnos no meu escritório e abordar o tema. Às vezes, sinto falta de desempenhar o papel do tutor. Mas depois recordo-me do índice elevado de imbecilidade que a maior parte dos meus alunos exibia e ponho de parte a nostalgia. – Voltar aos papéis de aluno e tutor vai ser útil. Irá ajudar-me a pôr em ordem os meus pensamentos. Oh, e na qualidade de cavalheiro, sinto-me obrigado a dizer que creio que interpretastes mal a minha amizade para com Miss Blair. – Deveras? Estou profundamente desolado. A senhora em questão juntou-se a ambos nesse momento, em tudo semelhante a uma bela bruxa céltica com um vestido preto flutuante e cabelo solto. Matthias ajudou-a a sentar-se. Serviu-lhe café e dedicou-lhe uma atenção especial que revelava o quão estimulante considerava a sua companhia. 84

– Espero que tenhais dormido bem na minha humilde casa, Miss Blair. – É tudo menos humilde e eu dormi muito bem. O som e a brisa marítima são deveras relaxantes – respondeu ela. De seguida, voltou-se para observar a cidade a seus pés. – O que estão a fazer lá em baixo? O que é aquela coisa vermelha enorme perto da água? – São andores para a procissão. Devem estar a pintá-los. Daqui a três dias é a festa de San Giovanni. São João Baptista. É um dia sagrado muito importante nesta zona. Nenhum barco sairá para o mar nessa manhã. – Vai haver uma procissão? – Uma procissão, uma missa, um festival… Entre outros ri­tuais, os habitantes vão apanhar nozes nas colinas para fazer óleo. – É interessante o facto de coincidir com o solstício – observou ela. – Pode tratar-se de mais um exemplo duma assimilação cristã de um festival pagão. – Miss Blair está a alcançar uma reputação nos estudos mitológicos que rivaliza com a de sua mãe na literatura latina – atalhou Elliot. – Tem publicada uma obra sobre essa matéria que foi muito bem aceite. – Um feito louvável – afirmou Matthias, conseguindo a proeza de depreciar esse facto ao mesmo tempo que o admirava. – A data em comum é uma coincidência. O deus do sol não chegou sequer a ser uma figura cimeira na mitologia grega e latina. O deus Apólo está associado a ele, mas o sol em si, Hélio, desempenha um papel menor. Talvez isso aconteça porque existe tanto sol nestas terras que não havia necessidade de o apaziguar. – O sol é abundante no Egipto e o deus do sol egípcio foi soberano – replicou Elliot. – Creio que Miss Blair tem razão a respeito da festa de San Giovanni. – Possivelmente – afirmou Matthias. – E qual será o simbolismo das nozes? Phaedra soltou uma risada. – Vou pensar num antes de abandonar a vossa casa, Mr. Greenwood, visto que estais disposto a ser flexível nas vossas opiniões. 85

– Por uma mulher bonita, consigo ser demasiado flexível, Miss Blair. É o meu maior ponto fraco – respondeu Matthias e algo fora do átrio atraiu o seu olhar. Um homem aproximava-se vindo de um caminho a norte. – Aqui está Whitmarsh, de volta da sua caminhada matutina. Prometi mostrar-lhe um novo tesouro que descobri. Gostaríeis de ver a minha humilde mas estimada colecção de artefactos, Miss Blair? – Certamente que sim, Mr. Greenwood. Ela aceitou a mão que ele lhe oferecera para a ajudar a levantar. Mr. Whitmarsh seguiu atrás do grupo quando regressaram em fila para o interior da casa. Elliot estava curioso para ver se Phaedra conseguiria manter a pose de indiferença perante ele que adoptara esta manhã. Não havia sinais de rubor ou o mínimo gesto de perturbação. Ela reconheceu a sua presença audaciosa e impassivelmente. Esta atitude só serviu para exacerbar ainda mais o lado sombrio do desejo que o atormentava. Esse lado dizia-lhe agora que ele a devia ter seduzido na varanda na noite passada como desejara. O raciocínio fazia mais sentido a cada minuto que passava.

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Capítulo 7 –É

uma colecção modesta – declarou Matthias,

exibindo um sorriso orgulhoso de orelha a orelha, apesar das suas palavras. – Guardo-a aqui, imitando o exemplo de um studiolo renascentista. Trata-se de refúgio dentro da minha própria casa, repleto das minhas coisas preferidas. O seu studiolo era uma grande divisão em forma de cubo, adornada com frescos de jarrões de aspecto antigo com plantas nas paredes de estuque. Para além de uma grande escrivaninha repleta de livros e papéis, continha uma série de artefactos. O capitel de uma coluna coríntia assentava sobre um dos cantos da escrivaninha. Um busto antigo de retrato mirava o grupo do topo de uma estante alta. Mostruários de vidro apoiados em suportes, do mesmo género dos que se podiam encontrar em livrarias britânicas, exibiam outros artigos e peças de antiguidade. Phaedra passeou-se entre elas, observando-as através do vidro. Randall Whitmarsh acompanhou-a, apontando as moedas que ostentavam personalidades como Júlio César e Tibério e as pequenas garrafas de vidro liso. – Aqui está a grande descoberta – anunciou Matthias. Abriu uma gaveta, extraiu uma trouxa envolta em tecido e começou a desenrolar o pano.

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Uma pequena estátua de bronze de uma deusa nua numa postura descontraída surgiu entre as suas mãos. – Uns rapazes estavam a mergulhar na enseada e deram com ela no fundo arenoso. Devia lá estar há pelo menos mil e quinhentos anos. Estou certo de que a sua origem é grega. Período clássico. É provável que fizesse parte do carregamento de um saque grego a caminho de um coleccionador da Roma imperial. Whitmarsh colocou a estátua de pé. – Tudo aponta para que um navio se tenha afundado aqui ao largo. Provavelmente existem mais coisas onde se afundou, à espera para serem encontradas. – A maré sobe perigosamente depressa – observou Matthias. – Se existirem mais coisas, não serão encontradas até que as marés trabalhem nesse sentido. Removi cuidadosamente os crustáceos que vinham agarrados e ela aceitou de bom grado o lustro que lhe dei. Elliot agarrou na estátua. – É lindíssima. Tencionais vendê-la? – Ainda não decidi. Se for esse o caso, aqui o Whitmarsh podia vendêla em meu nome em Roma. Verdade, Whitmarsh? – Ou eu podia vendê-la em Londres – respondeu Elliot. – Conseguiria um preço melhor lá, não acha? Matthias sorriu com a indulgência própria de um tutor e retirou suavemente a estátua das mãos de Elliot. – E poluir o vosso sangue com a mercancia? Não posso permitir tal coisa. – Não se pode considerar mercancia se eu me limitar a dar a vossa referência a um coleccionador. O próprio Easterbrook pode estar interessado nela. Os homens começaram a discutir a época e o valor. Phaedra afastou-se para poder terminar o seu pequeno circuito pelos mostruários de vidro.

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A colecção de Matthias era muito ecléctica, como a de um rapazinho que trazia para casa pequenos pedaços do mundo que o fascinavam. Um dos mostruários exibia fragmentos de barro de pouco valor, mas com uma decoração fascinante e primitiva. As superfícies avermelhadas estavam repletas de espirais e formas geométricas. Uma esplêndida taça grega intacta figurava na posição de destaque num outro mostruário de vidro, exibindo o deus Dionísio num barco no seu interior oval e pouco fundo. Ela passou à frente de adagas antigas e fragmentos de armaduras romanas com inscrições, para junto de um mostruário que detinha outros objectos em metal. Este mostruário em particular estava fechado à chave e Phaedra percebeu porquê. No seu interior espalhavam-se artigos de ouro, prata e revestidos a esmalte, alguns clássicos, e outros de períodos posteriores, quando os normandos e sarracenos habitavam esta área. Imagens minúsculas de deuses romanos competiam com interacções complexas de linhas e arabescos pela sua atenção. O mostruário resplandecia no seu todo com fechos de malas com jóias, pingentes e fios de contas de vidro. – Decidi que irei ficar com a minha pequena deusa – anunciou Matthias. – Onde a devemos colocar, Miss Blair? Phaedra fez sugestões para pontos de exibição do pequeno nu de bronze, mas os seus pensamentos não abandonaram a colecção diversificada do seu anfitrião. Ela perguntou-se se ele saberia algo a respeito de camafeus antigos. Nessa tarde, Mr. Whitmarsh decidiu que queria ir pescar, por isso os cavalheiros desceram a colina para alugar um barco após a siesta da cidade, decisão que deixou Phaedra na companhia da signora Roviale e Mrs. Whitmarsh. As senhoras ocuparam a sala de estar e tentaram não se aborrecer mutuamente. Quando Mrs. Whitmarsh se retirou para ir escrever uma carta, a signora Roviale abordou o único assunto que pensava ter em comum com a hóspede que sobrara ao seu lado.

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– Ele é um homem impressionante, o vosso Lord Elliot. Não te-nho em grande conta os outros amigos ingleses do signore Greenwood. Não raras vezes são pálidos e muito insípidos na sua reserva, e as mulheres e amantes igualmente sem cor e profundidade. Mas Lord Elliot é tão bonito como interessante. Un uomo magnifico. – Lord Elliot é o cunhado de uma boa amiga minha e escolta-me a pedido dela, mas não sou amante dele. – Veramente? – admirou-se ela. A signora Roviale fez um exame crítico a Phaedra. – Talvez se usásseis roupas mais atraentes… Matthias disse que não estais de luto e aqui o preto é mais comum entre as mulheres mais velhas… E o vosso cabelo, a minha rapariga podia arranjá-lo para não parecerdes uma criança ou uma puttana.

Puttana fora uma palavra utilizada por Gentile Sansoni durante o seu interrogatório. Significava meretriz. Tendo em conta que a própria signora Roviale não era casada com Matthias, esta aventurava-se num terreno perigoso. – Escolhi o meu vestido e penteado por boas razões, signora. Isso permite que não sobrecarregue o meu dia atarefado com criadas e horas de preparação. – Ah, capisco. Compreendo – afirmou e gesticulou expressivamente, fazendo um arco amplo com a mão que as incluía a ambas, assim como a casa. – Mas o vosso dia agora está vazio, não atarefado, não é assim? Não temos nada para fazer enquanto aqueles ingleses pescam como se fossem camponeses. Ofereço-me para vos emprestar a minha criada, para que continueis, como é que haveis dito, sem estar sobrecarregada. – Estou bastante satisfeita com a minha aparência, obrigada. Quanto à parte da necessidade de preencher o meu dia vazio, irei para os meus aposentos ler, se me derdes licença. – Podeis ler em qualquer outra altura. Pareceis-me uma mulher que lê mais do que devia – declarou a signora Roviale e ergueu-se, fazendo um sinal a Phaedra para a seguir. – Podeis estar satisfeita com o vosso vestido, mas a signora Whitmarsh não é uma hóspede feliz. Ela acha que sois uma bruxa que 90

tenta enfeitiçar o ma-rido dela e vós sois tão invulgar que ela não sabe como há-de competir convosco. Ela só pode ser louca por pensar assim, mas eu consigo ver essas suspeitas naquela cara de poucos amigos. Vamos tornar-vos apresentável e normal para o jantar de hoje para ela não se sentar à mesa como uma nuvem negra. Com vontade de se revoltar contra esta coerção, mas incapaz de se lembrar de uma desculpa para contrariar o plano da anfitriã, Phaedra ergueuse. A signora Roviale deu-lhe o braço e encaminhou-a firmemente pelas escadas acima. Elliot despiu a camisa que ficara húmida com os salpicos de água salgada. Entregou-a ao criado para a lavar e, a seguir, arranjou-se para o jantar. A saída de pesca fora um bom exercício, e tornara-se mais espirituosa graças aos odres de vinho que Matthias atirara para o barco. Ele foi até à varanda e pôs-se à escuta. Não saíam quaisquer sons dos aposentos de Phaedra. Partindo do princípio que ela já teria descido, dirigiuse até à sala de estar. O grupo já estava todo reunido, excepto a única mulher que estava ansioso por ver. Ele perguntou-se se ela se teria aproveitado da sua ausência para se esgueirar e amaldiçoou a sua negligência. A combinação repousante do sol, mar e uma excitação latente que não se desvanecia tinham-no feito esquecer a razão original pela qual ela o acompanhava. Elliot entabulou conversa com os outros dois cavalheiros. A cada minuto que passava, as suas suspeitas a respeito da fuga de Phaedra aumentavam. Preparava-se para inquirir a signora Roviale sobre as actividades de Miss Blair durante o dia quando Whitmarsh se interrompeu subitamente e olhou directamente por cima do ombro de Greenwood. A expressão no rosto de Whitmarsh levou Elliot a seguir o seu olhar. Greenwood virou a cabeça. – Céus. Aquela é a nossa Miss Blair? Aparentemente, sim, mas esta Miss Blair não se parecia muito com aquela que Elliot conhecia. A vestimenta negra desaparecera e fora substituída por um vestido de jantar azul-celeste com uma renda cor de marfim e mangas 91

curtas tufadas. Uma faixa de cetim envolvia-lhe a cintura e o seu pescoço e ombros revelavam uma imensidão de pele branca e radiosa. As formas elegantes e firmes dos seus seios erguiam-se acima da linha do decote. O cabelo também fora arranjado. Em vez de deslizar solto pelas costas abaixo, estava apanhado numa figura complexa de caracóis e entrançados que parecia muito em voga. Aplicara um pouco de cor na face, ou talvez fosse apenas a atenção que lhe estava a ser dirigida que a fizesse enrubescer. – Ela consegue ser ainda mais bela do que a própria mãe – murmurou Whitmarsh. – Se pode ter este aspecto, pergunto-me por que razão se esconde atrás daquele hábito de freira. Elliot sabia porquê. A razão pairava em toda a sala. O silêncio instalou-se à medida que os homens a observavam e as mulheres a examinavam. Ele atravessou o grupo atónito para a poupar de continuar a ser o centro das atenções. – Estais lindíssima esta noite, Miss Blair. Vamos buscar-vos um copo de vinho. Ela acompanhou a sua passada e ele encaminhou-a na direcção do criado que servia as bebidas. O resto do grupo retomou o fio das conversas interrompidas. – Foi a signora Roviale quem me fez isto. O vestido é dela – explicou Phaedra. – Aquela mulher é implacável. Não me consegui escapar. Ele ofereceu-lhe um copo de vinho. – Foi simpático da vossa parte fazer-lhe a vontade. Ele fez um esforço titânico para não fixar o olhar na extensão branca situada acima do vestido. Queria lamber e mordiscar aquela pele cremosa à volta de toda a orla azul-celeste. – Demorou horas. Tinha-me esquecido dessa parte. E este es­partilho… Bem, pode imaginar o quanto o meu pobre corpo de-testou. Nem por isso. Porém, conseguia imaginá-la de combinação e meias finas, antes do espartilho e depois, antes de envergar o bonito vestido. – Espero que com a prática tudo se isso se torne mais fácil. 92

– Se depender de mim, não existirá qualquer prática. Assim que o jantar terminar, esta experiência vai acabar. Só espero não desmaiar antes. Mal posso esperar por ser dispensada desta tortura. Para começar, é insuportavelmente quente. Acabei de descobrir por que motivo os árabes usam roupas folgadas em climas quentes. Para além disso… A arenga deteve-se subitamente a meio da frase. Ela corou intensamente, como se tivesse visto nos olhos dele a imagem que se desenrolava na sua imaginação, do vestido a cair, o espartilho a ser desapertado e o seu corpo nu a revelar-se. Este vestido dava-lhe uma melhor perspectiva do corpo que o envergava do que as suas habituais vestimentas negras e ele não tinha quaisquer dificuldades em imaginá-la nua neste preciso momento. Whitmarsh aproximou-se, a irradiar charme por todos os poros. Greenwood mantinha Miss Blair debaixo de olho enquanto falava com as outras duas senhoras. Miss Blair respirou fundo e seguiu em frente para deslumbrar os convivas não só com o seu intelecto, mas também com a sua beleza. Quando o grupo do jantar se separou, Phaedra planeara escapulir-se de imediato para o quarto para se libertar da indumentária desconfortável. Ela mudou de ideias quando viu Matthias Greenwood a caminhar na direcção do seu studiolo. Agindo num impulso, seguiu-o e alcançou-o quando ele se preparava para abrir a porta da divisão. – Mr. Greenwood, seria possível dar-vos uma palavrinha em privado? – perguntou. – Certamente, Miss Blair. Acompanhai-me, por favor. Tereis toda a minha atenção aqui dentro. Ela aceitou a sua oferta de uma cadeira ao lado da escrivaninha. Instalada sob o seu escrutínio professoral, ela sentiu-se um pouco na pele de um discípulo a preparar-se para peticionar ao mestre. – Mr. Greenwood, em Inglaterra tenho andado a falar com pessoas que conheceram a minha mãe. Tenho algumas perguntas a respeito de acontecimentos que ocorreram na parte final da vida dela. Vós também a 93

conhecíeis e o vosso nome surgiu diversas vezes. Houve pessoas que sugeriram que fôsseis capaz de me ajudar. – Pessoas? – Amigas dela. Mulheres que me ajudaram a elaborar uma lista de pessoas que frequentaram a casa de minha mãe, assim como outras coisas. – Ajudar-vos-ei no que puder, mas eu não era um amigo próximo. Os meus deveres na universidade só me permitiam visitá-la de tempos a tempos. – Compreendo. Porém, é a vossa relativa distância que vos pode ter dotado de uma perspectiva mais clara do que aquela que as pessoas mais próximas detinham. Ele pareceu céptico, mas solícito. – Que tipo de informação procurais? – As perguntas que vos vou colocar podem parecer-vos um pouco arrojadas. Matthias soltou uma risada. – Ficaria desapontado se não o fossem. Se estais a correr o mundo à procura de respostas, espero que as perguntas não sejam propriamente corriqueiras. O seu bom humor tornou tudo mais fácil. Ela decidiu começar pela pergunta mais arrojada de todas. – Alguma vez suspeitastes que a minha mãe tivesse um novo amante nos últimos anos de vida? Apesar de todos os seus incitamentos ao arrojo, a pergunta deixou-o um tanto ou quanto embaraçado. Os ângulos marcados do seu rosto suavizaram-se em algo que se assemelhava a uma expressão mortificada. – Não houve qualquer indício real que me levasse a pensar isso. Porém… Bem, Drury era omnipresente quando travei conhecimento com a vossa mãe e muito menos presente mais ou menos durante o último ano. – Sabeis quem era o outro homem?

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Matthias lançou-lhe um olhar indulgente. O seu pequeno sorriso assemelhava-se ao tipo de sorriso com o qual um tio brindaria a sua sobrinha preferida. – Não tenho sequer certeza de que esse homem existisse de facto. Estais assim tão certa de que existiu? – O meu pai acreditava que sim. – Os homens podem enganar-se em assuntos dessa natureza. A paixão arrefece, a distância aumenta… Ele pode ter interpretado isso mal. Ela sabia que isso era possível. Matthias não era a primeira pessoa que lhe respondera isso. Vários amigos da sua mãe haviam sugerido a mesma explicação. Ela própria tinha a esperança de que essa fosse a verdade. – Havia alguém que considerásseis uma possibilidade provável? Ele abanou a cabeça. – É assim tão importante saber esse nome, ou sequer se a suspeita está correcta? – Se se tratasse de um caso amoroso normal, diria que não. Ele aguardou pacientemente que ela prosseguisse, sem instigar ou dissuadir revelações adicionais com a sua expressão tranquilizadora. Ela percebeu por que razão Elliot gostava deste homem. Havia algo em Matthias Greenwood que inspirava confidências e confiança. Ele possuía uma abertura sólida que rejeitava a mais ínfima dissimulação. – A minha mãe legou-me um camafeu – afirmou. – O seu testamento declarava que provinha de Pompeia. Ela tencionava dotar-me de alguma segurança e eu sempre pensei o mesmo. No entanto, antes de o meu pai falecer, ele afirmou que se tratava de uma falsificação que lhe fora vendida pelo seu amante. Ele franziu o sobrolho e uma sombra de preocupação desenhou-se no seu olhar. – Estais dependente do valor desse camafeu?

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– A minha situação financeira tornou-se mais complicada re­centemente. Posso precisar de o vender. Porém, se for uma falsificação… – Valerá uma mera fracção do que ela pensava e, provavelmente, do que pagou por ele. Tão-pouco o podereis vender de todo a não ser que estejais absolutamente segura da sua proveniência, para não incorrerdes no risco de vos tornardes cúmplice dessa fraude. – Exactamente. – Percebo o vosso dilema. Estou desolado por saber que o vosso legado está em perigo. Se um admirador tirou partido de forma tão cruel de Artemis, esse miserável devia ir parar à forca. Ela era extremamente generosa com todos com que se cruzava, mas… Bem, talvez fosse igualmente demasiado crédula e lenta a dar-se conta dos que a procuravam para a usar. Ele dirigiu-lhe um pedido de desculpas com o olhar pela pequena crítica. – Admito que ela provavelmente confiava demasiado nas pessoas, Mr. Greenwood. E a sua generosidade fez com que deixasse muito pouco para além daquele camafeu. Creio que o poderia guardar como uma recordação, mas se simbolizar a espoliação quer do seu afecto, quer dos seus fundos, não terá qualquer valor sentimental para mim. – Pedir-vos-ia para examinar o camafeu para pôr de parte as vossas preocupações, mas infelizmente não me posso gabar de ser perito nessa matéria. Podemos sempre mostrá-lo a Whitmarsh. Ele tem mais experiência com jóias do que eu. Porém, faria mais sentido colocar essa questão aos peritos em Pompeia… – raciocinou. A ex-pressão pensativa desvaneceu-se e riu-se. – Que é o motivo pelo qual estais em Itália, verdade? É óbvio que sim. Muito bem. – Achais que me serão capazes de dar uma resposta segura? – Tão segura quanto possível. Como provavelmente já sabeis, as opiniões podem variar. Todavia, vou escrever ao superintendente para preparar o caminho. Ele tem estado envolvido nas escavações há vinte anos e pode certificar a proveniência do vosso artigo, assim como sinais visíveis de antiguidade. 96

– Agradeço a vossa solicitude em vir ao meu auxílio. Pergunto-me se poderei abusar um pouco mais da vossa simpatia. Receio que isso signifique pedir especulações que podeis não querer fazer. – Eu não sou avesso à má-língua, Miss Blair. Até determinado ponto. Ela suspeitava que iria atingir esse ponto e quiçá ultrapassá-lo. – Se, de facto, este camafeu, verdadeiro ou falso, foi oferecido ou vendido à minha mãe por um homem durante os últimos anos da sua vida, conseguis lembrar-vos de algum homem do círculo dela que tivesse acesso a artigos desta natureza? Os olhos de falcão argutos de Matthias toldaram-se e desfocaram-se, pensativos. Ele reflectiu demoradamente sobre a pergunta. Ela apercebeu-se de que ele estava a revisitar memórias de saraus e jantares de um passado distante, analisando rostos e recordando conversas. – Não tenho um nome para vós – declarou finalmente. Ela sentiu uma ligeira pontada de desânimo. Teria sido bom ver todo o mistério explicado hoje, mas ela não tivera a esperança real de que isso viesse a acontecer. – Porém, talvez… – acrescentou ele e o seu olhar de falcão desfocou-se novamente por breves momentos. – Estou a recordar-me de uma jóia alegadamente originária de um depósito secreto em Pompeia, mas esta não pertencia à vossa mãe. Lembro-me de a sua disponibilidade ser discutida durante um daqueles saraus que ela gostava de organizar. Tanto pode tratarse da jóia em questão como de outra qualquer. – Recordais-vos do que foi dito? – Não muito. Não tinha qualquer interesse nisso. Tão-pouco consigo localizar convenientemente esta conversa no tempo. Ela olhou por cima do ombro dele para os mostruários de vidro. – Pelo que vi hoje, diria que o assunto atrairia a vossa atenção. – Este não. Apercebi-me de imediato de que a sua proveniência era duvidosa. Tudo o que seja removido de Pompeia é mercadoria roubada. Não pode existir qualquer documentação da sua descoberta no local pois isso 97

revelaria que fora roubada – explicou Matthias e encolheu os ombros. – Existem pessoas que não se importam com essas minúcias e outras que se predispõem muito depressa a acreditar nas histórias que se lhes apresentam, como é óbvio. É assim que os negociantes obscuros fazem as suas fortunas. – Recordais-vos de que forma esse camafeu estava disponível? Alguém o estava a vender? Ele tamborilou os dedos na escrivaninha e fez um esforço para se recordar. – Foi há tanto tempo… Eu não quero apontar… – Não ireis apontar ninguém. E eu tão-pouco. Não farei qualquer acusação enquanto não estiver certa de todos os factos. Não haverá qualquer má-língua, calúnias ou difamações. Apenas quero saber que direcção poderei quiçá tomar. – Não me recordo de todo dos pormenores. Porém, havia diversos negociantes que pairavam em torno de Artemis Blair. Dois fo-ram uma presença assídua nesses últimos anos. Um deles, Horace Needly, possui uma reputação sólida mas, claro, nunca podemos ter a certeza absoluta no que diz respeito à mercancia. No outro tinha menos fé, em grande parte porque ele evitava entabular conversas com académicos como eu. Essa atitude levava-me a perguntar se os seus alegados conhecimentos de perito estariam à altura de um eventual escrutínio. – Como se chamava? – Thornton. Nigel Thornton. Era um indivíduo bem-apessoado. Era igualmente bem-sucedido, tanto quanto me lembro, mas as suas raridades não iam além de um calibre mediano. – Agradeço-vos ambos os nomes. Verei o que posso saber mais quando regressar a Inglaterra. Foi uma grande ajuda e estou-vos muito grata. Ela ergueu-se para se retirar. Ele sorriu calorosamente, claramente satisfeito por lhe ter sido útil.

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– Mr. Greenwood, perdoai-me, mas… Não havia pelo menos mais um negociante no círculo de amigos dela na altura? Mr. Whitmarsh. Esta manhã, dizíeis que ele vende antiguidades em Roma e… – Isso não era mais do que uma provocação bem-humorada entre amigos, Miss Blair. Desde que ele veio para Itália que todos sabem que ele se desfez de um ou dois artigos que lhe vieram parar às mãos e que já não queria para si próprio. Nada mais do que isso. Eu próprio já fiz o mesmo. Dificilmente o poderia considerar um vendedor – dizia ele indulgentemente enquanto a acompanhava até à porta. – Mr. Whitmarsh tão-pouco levava a cabo esse tipo de transacções em Inglaterra, nem sequer numa dimensão mais reduzida. Não podia ser, verdade? Afinal de contas, ele é um cavalheiro. – Despachai-vos, não posso esperar mais! Mais depressa! – exortou Miss Blair, seguindo-se um longo queixume. – Oh, sim. Até que enfim, sim! Elliot encontrava-se na varanda, encostado à parede da casa. Riu-se sozinho quando os gemidos vindos da porta ao lado chegaram até si. Os sons que Phaedra emitia ao ser aliviada e liberta de espartilhos e cetins eram em tudo semelhantes aos de uma mulher a ser aliviada e liberta de outras formas. Ele ouviu-a a mandar embora a criada e a murmurar de seguida: – Que inferno. Nunca mais. As mulheres que se vestem assim são loucas. O ruído leve dos seus passos passou através das portas. Ele caminhou até à outra extremidade da varanda e voltou a assumir a pose anterior, desta feita mesmo à porta de Phaedra. – Sobrevivestes, Miss Blair? Ou ficastes permanentemente deformada? A cabeça dela espreitou por detrás da porta, à procura dele. Quando o viu tão próximo de si, estremeceu, surpreendida. – Deveis achar tudo isto muito divertido, não? – De modo algum – respondeu Elliot, mas a sua risada denunciou a mentira. Ela fulminou-o com o olhar. – Não saiais daí. Quero falar convosco. 99

A cabeça dela desapareceu e alguns minutos depois todo o seu corpo ressurgiu envolto em preto. O cabelo ainda não havia sido desmanchado, por isso a Phaedra antiga ainda não reaparecera completamente. – Por quanto mais tempo tencionais reter-me aqui? As suas palavras aludiam a tudo o que acontecera desde o dia em que ele entrara naquele jardim em Nápoles e a todos os seus ressentimentos. – Mais alguns dias. Mais tempo ainda, se assim o desejardes. Não podeis deixar de admitir que este local é repousante. – Não viajei desde Inglaterra até cá para repousar. – Podemos partir daqui a três dias, se assim o desejardes. Contudo, pensei que apreciáveis a companhia de pessoas que conheceram a vossa mãe. Ela caminhou até à balaustrada e olhou para o mar negro. Ele fixou o olhar nas costas dela e visualizou o corpo nu apesar do tecido que o escondia. – Confesso que estou a gostar mais desta visita do que esperava, excepto a parte das imposições da la signora hoje. Este desvio, embora inconveniente, revelou-se providencial. Deveria ter previsto que seria útil para… Que conhecer pessoas do círculo da minha mãe não só era possível, como provável se vos acompanhasse. O motivo pelo qual ela considerara tal circunstância útil daria que pensar se a noite não estivesse tão tranquila e fresca e o luar não a tornasse tão encantadora. – Mr. Greenwood vive aqui há muito tempo? – Ele comprou esta propriedade há cerca de seis ou sete anos. Só a adoptou como residência permanente há quatro anos. A última vez que o visitei, o edifício ainda era bastante rústico. – Imagino que deva conhecer todos os peritos em antiguidades de Milão até à Sicília. – É muito provável que sim. Não se trata de um grupo assim tão extenso e os seus elementos procuram-se naturalmente entre si.

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– Resumindo, Matthias Greenwood era um professor catedrático que comprou esta villa, fez melhorias e mudou a sua vida para cá. Provém decerto de uma família abastada. O seu violento desejo reagiu com impaciência à conversa de circunstância, mas ele far-lhe-ia a vontade por enquanto. Com um impulso, afastou-se da parede e juntou-se a ela na balaustrada. – Ele vivia parcimoniosamente em Cambridge. Contudo, creio que um familiar lhe deixou algum dinheiro. Esta villa provavelmente custou menos do que uma pequena casa em Londres. Os imóveis não possuem o mesmo valor aqui. Ele admirou os pormenores intricados do penteado dela. De-moraria muito tempo a libertá-la desta parte dos adereços desta noite. Demasiado tempo. Elliot não lhe tocaria. Para além de um olhar de relance, ela não reagiu à sua proximidade. – Ele falou como se visitasse as escavações frequentemente e conhecesse bem os arqueólogos que lá trabalham. – Imagino que sim. Porque estais tão curiosa acerca dele? Matthias tinha idade suficiente para ser o seu pai e Whitmarsh quase, mas a admiração que ambos haviam demonstrado pela sua beleza esta noite provocara algumas suspeitas ciumentas que provavelmente careciam de fundamento. Estas aferroavam-no agora novamente, irracionais e incisivas, trespassando o desejo que sentia com os aguilhões do sentimento de posse. – Nas memórias de meu pai existem páginas que levantaram algumas questões a respeito dos últimos anos de vida de minha mãe. Fiz perguntas a Matthias acerca deles e reflectia agora sobre o crédito que poderia dar às suas respostas. Seria nesse tipo de questões que o seu espírito vaguearia quando assumia uma expressão séria e um olhar distante? Ela aventurara-se a sair cá para fora, apesar do aviso da noite passada, mas não para provocar e desafiar. Ela procurava informação que fosse útil.

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Christian sugerira que aquelas memórias poderiam conter revelações que a própria filha de Drury não gostaria de ler. A sua confirmação era provavelmente significativa, mas, neste momento em particular, igualmente irrelevante. Ele desejava-a e aqui estava ela tão próxima de si nesta noite gloriosa, uma mulher que acreditava no amor livre e que não estava restringida por regras sociais estúpidas. O luar fazia com que a sua pele branca parecesse quase translúcida. O traje negro subia-lhe até ao pescoço, mas ele viu as formas arredondadas dos seus seios na cabeça. – Por vezes, o mais sensato é deixar algumas perguntas sem resposta. Ela virou-se para ele, completamente inconsciente do facto de estar prestes a ser tomada à força. – Não creio que acrediteis nisso. Ou antes, não creio que consigais seguir o vosso próprio conselho. Eu vi a expressão do vosso rosto quando falámos das referências ao vosso pai nas memórias. Não as quereis ver publicadas, mas quereis saber se estas correspondem à verdade. A sua postura e palavras lançavam-lhe outro desafio. Ele não o aceitaria esta noite, optando por se concentrar naqueles lançados anteriormente, que pairavam entre ambos. Mais tarde, haveria tempo mais do que suficiente para este novo desafio. – Eu já sei que não correspondem à verdade. Insistis em falar de assuntos tão sérios, Miss Blair. Espero que me perdoeis por adiar a discussão que pretendeis para uma outra ocasião. Uma em que o luar, a noite e a vossa beleza não dirijam os meus pensamentos para outro tipo de coisas. O rosto dela traiu a sua surpresa. Ficou completamente imóvel e mirou-o fixa e atentamente. O que quer que tenha visto provocou centelhas de alarme nos seus olhos. Phaedra girou nos calcanhares em direcção à porta. – Nesse caso, vou deixar-vos a só com esses pensamentos, sejam eles quais forem. Ele agarrou-lhe o braço. 102

– Desta vez não, Phaedra. Elliot voltou-a para si, segurou-lhe o rosto com as mãos em concha e beijou a boca que o atormentava há dias. O que estava ele… Como se atrevia a… O beijo dele dissipou a sua reacção chocada à forma como a puxara contra si. Um choque de natureza diferente instalou-se devido à forma como o seu coração acelerara quando ele assumiu controlo sobre ela. O beijo falava por si. Firme, vigoroso e determinado, este beijo continha os avisos que proferira na noite passada. Quero ver-vos a implorar

por mim. O perigo excita-vos. Ele tinha razão, excitava-a. A forma como o seu abraço a dominava provocou-lhe arrepios traiçoeiros em todo o corpo. Partes dele começaram a implorar de imediato, a querer mais, a desejar ardentemente que ele não parasse. A cabeça dela estava num turbilhão. Os pensamentos formavam-se e desapareciam a uma velocidade estonteante. Ele nem sequer lhe tinha pedido. Será que achava… Uma sucessão de beijos no pescoço apagou as palavras. Uma névoa atordoante e sensual toldou o resto. Isto era um erro. Mas… O calor da boca de Elliot penetrou no sangue de Phaedra até ela sentir formigueiros em todos os pontos por onde se espalhara. Os seus seios ficaram mais pesados e firmes e conseguiam senti-lo através do tecido do vestido. O contacto excitou-a mais e ela comprimiu-se instintivamente com mais força contra ele para uma maior estimulação. Ele beijou-a novamente na boca. Desta vez, o beijo não foi tão vigoroso, propositadamente sedutor, mas era igualmente exigente e confiante de que ela lhe iria conceder tudo aquilo que ele desejasse. A forma como ele a tomava empolgava-a, mesmo sabendo que se devia revoltar contra isso. Ela viu o perigo, mas não conseguiu parar porque

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era excitante. O corpo entregava-se ao abandono e a mente escapava ao seu comando. Sentiu uma carícia que não solicitava, procurava ou pedia seja o que for. Firmes e seguras, as mãos dele desceram-lhe pelas costas, ancas e nádegas, reclamando o seu corpo como se estivesse despida, fazendo-a ansiar por ele, numa expectativa dolorosa. A língua dele envolveu-a. Sentiu um frémito de prazer na vulva. As mãos dele moveram-se ao longo do corpo dela com mais ousadia. Ela não se importava com o facto de estar a render-se a um inimigo e a ceder-lhe terreno que podia nunca mais vir a recuperar. Vagas de prazer fervilhavam, agitavam-se e latejavam, tornando impossível qualquer tipo de raciocínio sensato.

Quero ver-vos a implorar por mim. Oh, sim, muito possivelmente. Os seios já estavam tão sensíveis que ela achou que ia enlouquecer de prazer. Como se tivesse ouvido esta súplica silenciosa, a mão dele subiu pela sua anca e barriga acima e instalou-se entre os seios. O desejo fê-la cambalear e retribuiu o seu beijo, apressando-o com a boca, a língua e os braços que o cingiam contra si. A palma da mão dele deslizou lentamente para cima do seio de Phaedra. Um arrepio intenso de prazer fê-la estremecer. A outra mão pressionava-lhe as costas com firmeza, a amparar a sua posição vacilante, e descia lentamente à medida que desapertava os colchetes do vestido.

Eu não devia… Isto não devia… Um beijo devastador desmanchou a objecção que se formava na cabeça dela. Carícias deliberadas no mamilo espalharam os fragmentos que restaram pela brisa nocturna. Ele deu um passo atrás, separando os seus corpos entrelaçados. O brilho da lua envolveu-os e a luz dourada vinda do quarto de Phaedra alumiou o contorno do corpo dele. Ele não lhe deu tempo para se recompor, para reunir os resquícios despedaçados da sua racionalidade. Agarrou no fundo do seu vestido e começou a fazer deslizar o tecido leve pelo seu corpo. 104

Nunca antes um homem a tinha despido. Nunca. Ela nunca o permitira. Agora, o gesto arrebatava-a. Imobilizava-a. A descida lenta do tecido parecia a carícia mais erótica da noite até então. Ela limitou-se a olhálo fixamente na luz ténue, sentindo, mais do que vendo, o desejo contido que impregnava o ar de poder masculino. As mangas deslizaram pelos seus braços e o corpete escorregou até às ancas. Ele colocou as mãos nos ombros da sua combinação. Ela susteve a respiração. Os seus seios retesaram-se ainda mais perante a expectativa de mais uma sensação lenta e deliciosa. Em vez disso, ele provocou-lhe um segundo sobressalto, rompendo subitamente a frágil consciência de razão que se formara. Ele não a despiu com cuidado. Puxou bruscamente a combinação pelos seus braços. Não se tratava de um gesto de impaciência ou sequer de paixão, mas um gesto que reivindicava os direitos do conquistador. A revolta insinuou-se na sua alma, mas não conseguiu encontrar uma âncora na maré torrencial de prazer que a submergia. A forma como ele olhava fixamente para a sua nudez absorveu tanto a sua atenção que ela não fez qualquer movimento para libertar os braços da combinação que ainda os prendia.

Não passa de um jogo, esta dança de dominação e submissão. Não terá qualquer significado. Na realidade, não vou ceder nada. Mas… Os dedos de Elliot acariciaram-na e as palmas das mãos massajaram-na. Ela olhou para baixo para ver as belas mãos masculinas a mover-se sobre os seus seios, provocando-os e excitando-os na perfeição. Foi invadida por uma loucura deliciosa e deixou-se levar por uma onda de prazer voluptuosa e crescente. A sua última réstia de controlo esfiapava-se a grande velocidade. Ela queria vê-lo arrebatado. Ela queria que ele subjugasse a última fracção de resistência que ameaçava deitar a perder este estado de êxtase. O braço dele envolveu-a novamente e ela arqueou as costas. De seguida, beijou o seu pescoço e peito, deixando um rasto quente descendente que a deixou ofegante. Os seus dentes e boca brincaram com o mamilo, 105

torturando-a com sensações que corriam céleres à superfície e sob a pele, que faziam o seu corpo implorar por mais e soltar pequenos gemidos. Ela tentou libertar um braço para o abraçar e apertá-lo contra si, para se equilibrar e senti-lo. – Não – sussurrou ele. – Não vos mexais. O turbilhão sensual que lhe inundava a cabeça queria obedecer. O prazer era demasiado intenso para parar. O seu corpo ansiava por mais, pela consumação, pela plenitude libertadora. Parar agora era impossível, antinatural. E no entanto… No meio do seu êxtase, ela analisou a cena com um olhar racional. Apesar de um prazer tão intenso que era quase doloroso, ela identificou a sua postura de submissão subtil e as presunções existentes desde o primeiro beijo. A escrava reuniu forças para se soltar dos grilhões. Antecipando a dor desencadeada pelo arrependimento e frustração, ela encontrou a sua voz. – Parai agora. Quero que pareis. Ele deteve-se. Durante alguns momentos horríveis, não se me-xeu. De seguida, endireitou-se e fitou-a. O braço dele puxou-a para si com firmeza. A outra mão colocou-se em concha sob o queixo dela, como no primeiro beijo. Os dedos pressionavamno, sem o magoar, mas tão-pouco com delicadeza. – E se eu não parar? Visto que grande parte dela desejava isso, não se tratava de uma verdadeira ameaça. Mas a presunção dele de que ela iria ceder se ele continuasse, de que ela era fraca perante o seu poder, restituiu-lhe alguma força de vontade. – Ides parar. – Tendes assim tanta fé na minha honra? – Tenho fé no vosso orgulho. Uma mulher molestada nunca irá implorar. 106

Ele libertou-a e afastou-se. Toda a sua aura e expressão indicavam que ele podia agarrá-la novamente. Ela puxou rapidamente o vestido para cima para se cobrir e caminhou a grandes passadas até à porta. O seu coração disparara e o corpo continuava a reagir ao perigo com uma excitação chocante. – Da próxima vez não vou parar, Phaedra. Ela esperou até atravessar a soleira da porta para lhe responder. – Não creio que haja uma próxima vez. – Podeis acreditar que sim. Ela agarrou nos puxadores e começou a fechar as portas. – Se houver, não será uma sedução. Eu decidirei se irá acontecer ou não antes do primeiro beijo, ou esse beijo nunca chegará a existir.

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Capítulo 8 E

le ainda estava lá fora. Ela queria abrir a porta para

deixar entrar o ar fresco da noite, mas não se atrevia a fazê-lo. Ele iria interpretá-la mal. Será que teria a audácia de entrar estando a porta fechada? Ela sentouse na cama com os braços à volta dos joelhos, meio apavorada e meio esperançada que as portas se abrissem de par em par e ele surgisse. Ela não se sentia tão senhora de si como parecera quando fechara as portas. A excitação teimava em não desaparecer. O seu corpo continuava sensível em contacto com o ar. Ela não sabia quando tinha tomado a decisão de o fazer parar. Fora instintiva. A intuição interferira.

Quero ver-vos a implorar por mim. Não poderia existir qualquer tipo de amizade com este homem. Ele queria-a fraca e perturbada para a poder influenciar. Afinal de contas, ele procurara-a em Nápoles por uma razão. Um amigo seu não poderia nem pretenderia exigir que ela excluísse aquelas passagens das memórias. Mas um homem que subjugava e tomava, um amante que seduzia, não hesitaria em utilizar o poder que a paixão lhe dava.

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Toda esta situação era extremamente inconveniente, porque ela se sentia imensamente atraída por ele. Ela nunca tinha desejado um homem desta forma antes. Não havia nada de confortável neste sentimento. Nada seguro. Esta não era a atracção que experienciara com os seus amigos e não se verificara nenhum ponto de confluência de pensamento para permitir outro tipo de intimidades. Em vez disso, o seu sortilégio sensual provocava caos, mistério e um temor paralisante. Ela não era a única que sabia isso. Ele sabia que a mera presença dele a enfeitiçava. A excitação acalmou-se lentamente até se transformar num ténue frémito interno, a mesma sensação física que ela suportava há dias. O silêncio instalou-se finalmente na varanda e no quarto ao lado. Ela relaxou o corpo e deitou-se de lado na cama, sem despegar os olhos das portas. Fora isto o que acontecera a Artemis? Após anos de uma amizade confortável com Richard Drury, surgira um homem que não jogava de acordo com as suas regras? Fora um choque tremendo saber que a mãe fora infiel ao seu pai. A crença no amor livre não implicava a rejeição da crença num amor igualmente duradouro e perfeito. Ao crescer, concluíra que os dois acabam por andar acompanhados, que o amor livre tornava mais fácil reconhecer uma alma gémea quando esta surgisse. Ela pensou na mãe. Bela, cheia de vivacidade, autoconfiante. Mais crédula do que a sua filha se revelaria no futuro, todavia, e igualmente menos prática. Ao longo dos anos, Artemis rodeara-se de um fosso de pessoas que aceitava a forma como vivia a sua vida. O seu círculo compreendia a questão de Richard e o lugar dele no mundo dela. Talvez, numa fase avançada do drama fascinante que fora a vida de Artemis Blair, tenha surgido um homem determinado a transpor o fosso e a tomar de assalto as suas muralhas. Era possível que estivesse completamente indefesa devido a uma simples ausência de prática no trato com este tipo de homens antiquados. A sua própria filha estivera igualmente indefesa na varanda ali ao lado. 109

Phaedra abraçou-se à almofada. Só agora começava a compreender o que se passara naquele derradeiro caso amoroso que destroçara a mãe. Entrara em cena um sedutor que atraíra a fêmea primitiva que sobrevive na alma de todas as mulheres. Ele tomara e conquistara. Ele influenciara, enfraquecera e, por último, atraiçoara. Se este homem tivesse fingido inicialmente ter a mesma forma de pensar dos outros homens que a rodeavam, Artemis não teria tido a mínima chance. A cabra. A frustração de Elliot cobrira Phaedra de mais insultos enquan-to terminava o pequeno-almoço no átrio na manhã seguinte. Tendo em conta o inferno pelo qual o seu corpo o fizera passar a noite inteira, abstinha-se de ser um cavalheiro nos seus próprios pensamentos. Ele queria poder retirar alguma satisfação do desconforto que ela sentira naquele quarto quente e fechado enquanto ele deixava a brisa da varanda refrescá-lo. Mas de cada vez que olhara de relance para a porta dela, uma parte dele rezara que esta se abrisse e Phaedra voasse para os seus braços. A porta nunca se mexera, claro está. A contida e independente fonte pessoal de tormento constante para Elliot, Phaedra Blair, nunca lhe concederia tal vitória. A porta acabou por se tornar uma repudiação. Uma acusação. Uma declaração exasperante de autocontrolo. Atrevestes-vos a seduzir em vez de

peticionar? Tivestes a pretensão insensata de me dominar, a mim, entre todas as mulheres? Ele serviu-se de mais café. Os gemidos eróticos de Phaedra ainda entoavam na sua cabeça. Ainda sentia o abraço dela e os seus beijos agressivos e profundos. As memórias começaram a fazê-lo sentir-se duro, mais uma vez. Tinha sido bom. Incrível. Onde diabos encontrara ela a lucidez para falar sequer, quanto mais as forças para parar a torrente que os estava a levar para longe a grande velocidade? 110

Um leve restolhar de passos perturbou a paz do átrio. Ele não precisou de olhar para a entrada para saber quem tinha chegado. Nos breves momentos que Phaedra levou a caminhar até à mesa, ele conseguiu controlar o pior da fúria da vigília quente da noite passada. Porém, o último vestígio da sensação passou-lhe pela cabeça, à medida que lhe acenava a cabeça, em jeito de cumprimento. Não ireis recusar-me da próxima

vez, porque não o querereis fazer. As boas-vindas calmas puseram-na à vontade. A sua postura cuidadosa descontraiu-se. Ela sentou-se à mesa e ele serviu-lhe café. Ela bebeu um pouco. – Obrigada por serdes tão civilizado – declarou Phaedra. Ele não quis acreditar que ela estava a abordar o assunto. Assentou o cotovelo na mesa e apoiou o queixo na mão. Algumas imagens assaz incivilizadas e sexuais formaram-se na sua cabeça. – Estais-vos a referir ao facto de vos ter permitido voltar atrás a noite passada ou ao de vos ter servido café esta manhã? Uma criada interrompeu-os, transportando uma travessa com ovos e fatias de presunto. Matthias podia ter adoptado Positano como o seu lar, mas continuava a oferecer um genuíno pequeno-almoço inglês aos seus hóspedes. Phaedra tirou com uma colher uma pequena porção de ovos para o prato. Os gestos absorviam a maior parte da sua atenção. – Creio que me estava a referir a ambos. – Bem, Marsilio ou Pietro teriam feito um escândalo ontem à noite, a discutir e acusar até acordarem a casa inteira. Os cavalheiros ingleses, porém, são ensinados a sofrer em silêncio. Os lábios dela contraíram-se. Ela manteve o olhar no prato enquanto abria um pãozinho. – Peço desculpa por qualquer sofrimento que vos possa ter causado. Não era essa a minha intenção. Talvez seja melhor, visto que estais a ser um cavalheiro inglês, não falar mais disto para além do que já foi dito. – Isso seria uma atitude muito sensata. 111

Ela comeu lentamente o seu pequeno-almoço. Ele devia retirar-se, mas era óbvio que não conseguia fazê-lo. Ela pousou o garfo e passou o lenço de bolso pelos lábios. – Lord Elliot, se tencionais fazer com que fiquemos aqui mais alguns dias, precisamos de chegar a algum tipo de entendimento em relação àquela varanda. Ela era incrível. Extraordinária. Ela devia saber que a sua vontade era pegar nela, atirá-la por cima do ombro, levá-la até junto de umas árvores ali perto e terminar o que haviam começado. E, no entanto, aqui estava ela, a negociar Deus sabe o quê, quando uma noite muito longa o tinha tornado ainda menos receptivo a qualquer tipo de acordo. – Como assim, Miss Blair? – Aquela varanda é partilhada pelos dois. Não é justo que a sua utilização me seja negada ou que eu sinta que o mero facto de sair pela minha porta fora possa fazer com que vós o interpreteis de uma forma que não corresponde à verdade. – Prometo que não irei interpretar mal o facto de me fazerdes companhia na varanda a meio da noite. As implicações da sua promessa foram sujeitas a um escrutínio exaustivo. Ela era suficientemente inteligente para descortinar o que fora insinuado. – Podemos pelo menos concordar que me é permitido deixar a porta aberta para deixar entrar ar, sem temer que entreis no meu quarto? – Não. – Estou a ver que me sentia demasiado optimista em relação ao vosso carácter. – Nisso estamos de acordo. Eu avisei-vos. – Lord Elliot, eu… – Insisto que me trateis por Elliot em conversas privadas a partir de agora, Phaedra. A informalidade não vos causa estranheza, verdade? 112

Podemos colocar essa regra social estúpida de parte. Afinal de contas, eu beijei o vosso seio nu e gemestes o meu nome en-quanto vos dava prazer. Ela fitou-o, boquiaberta. Ele sentiu vontade de sorrir pela primeira vez nessa manhã. Ela retomou a sua postura de altivez cerimoniosa. – Preferia que evitássemos a companhia um do outro tanto quanto possível, Elliot. – Isso será fácil esta manhã. Greenwood e eu estaremos fechados no escritório até meio do dia. Ela levantou-se da mesa. – Acho que vou dar um longo passeio e evitar os restantes membros do grupo durante várias horas – anunciou e voltou-se para se retirar. – Phaedra. Ela deteve-se e olhou por cima do ombro. – Phaedra, preciso da vossa promessa de que não empreendereis qualquer tentativa de fuga e de que estareis aqui presente à hora de jantar. Ela ergueu uma sobrancelha. – Por causa do vosso juramento ao signore Sansoni? – Também. A sua expressão indicava que ela sabia quais eram as outras razões. – E se eu não vos der a minha palavra? – Posso atar-vos à cama outra vez. Preferis que eu faça isso? O rosto dela avermelhou-se. Ela rejeitou a insinuação, abanando rapidamente a cabeça. – Tenho a vossa palavra? – Sim, tendes a minha palavra, embora seja desnecessária e ridícula. Não faço sequer ideia de como sair deste rochedo, e muito menos de como poderei viajar para o interior. De queixo bem alto, Phaedra marchou para fora do átrio, com as suas velas negras a esvoaçar atrás de si. 113

* Phaedra regressou aos seus aposentos e desfez a mala. Como é que ele adivinhara o seu plano? Ela não se tinha em conta como uma mulher previsível, mas Lord Elliot parecia conhecer os seus pensamentos antes sequer de ela os ter formado. Ela colocou a maleta vazia de parte. Os preparativos para a fuga tinham sido um impulso nascido de uma noite de reflexão honesta a respeito da forma como ele a afectava. Ela corria um sério risco de perder a face e de se transformar num joguete maleável só porque um homem lhe provocava desejo físico. Evitar por completo o desafio parecera uma boa ideia ao amanhecer. Ela sentou-se e calçou os botins. Depois, foi até à varanda e contemplou a cidade. As vozes dos outros hóspedes que estavam a quebrar o seu jejum subiram até si vindas do átrio lá em baixo. Ela inspirou profundamente e invocou a mulher que a sua mãe a ensinara a ser. A decisão de fugir fora cobarde. Ela viera a esta terra para descobrir respostas a respeito da sua mãe e algumas delas podiam estar aqui mesmo, no interior desta casa. Fazia muito mais sentido ficar e aprofundar as suspeitas que fervilhavam sob os seus medos e vulnerabilidades face a Lord Elliot. Matthias Greenwood desaparecera no interior do seu studiolo com Lord Elliot quando Phaedra regressou ao átrio, mas Randall Whitmarsh continuava à mesa com a sua mulher. Phaedra juntou-se a eles, na esperança de que Mrs. Whitmarsh se retirasse em breve. A audiência com Matthias correra tão bem na noite passada que ela estava ansiosa por saber se Mr. Whitmarsh lhe podia adiantar mais alguma informação. Infelizmente, foi Mr. Whitmarsh quem primeiro se retirou para dar início ao seu longo passeio matinal. – Estáveis muito bonita ontem à noite – afirmou Mrs. Whitmarsh. – Obrigada.

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– Não percebo porque é que… – continuou, e percorreu com o olhar a actual indumentária de Phaedra. Phaedra não perdeu tempo com explicações. Mrs. Whitmarsh não era uma mulher que iria compreender o carácter prático e ao mesmo tempo refractário que dera origem a esta excentricidade. – O que quero dizer com isto é que a vossa mãe não adoptou esse género de símbolos tão visíveis das suas opiniões singulares. A atenção de Phaedra aguçou-se. – Estivestes muitas vezes na sua companhia? – Antes de nos instalarmos em Roma, o meu marido frequentava amiúde os seus jantares. Ao invés de outras esposas, eu acedi a acompanhá-lo. Ele estava fascinado por ela. Achei melhor assegurar-me que ela nunca desenvolvesse um fascínio semelhante por ele. Phaedra não achava provável que Artemis considerasse Mr. Whitmarsh fascinante. No entanto, antes de ler as memórias, nunca acharia possível que Artemis tivesse considerado outro homem digno de afeição, para além de Richard Drury. – Os vossos esforços foram bem-sucedidos? Ou a minha mãe demonstrava alguma inclinação desse tipo para com o seu marido? Mrs. Whitmarsh não exibiu qualquer surpresa perante a pergunta arrojada. – Acredito que fui bem-sucedida. É claro que, até bem tarde na sua vida, ela só tinha olhos para Mr. Drury. – Estais a insinuar que os seus olhos acabaram por encontrar outro homem. Não escolhais cuidadosamente as vossas palavras por uma questão de delicadeza. Eu sou a filha de minha mãe e, tal como ela, acho ridículo as pessoas não falarem abertamente de tais assuntos. Mrs. Whitmarsh encolheu os ombros. – Era aparente a frieza que existia entre os vossos pais mais ou menos por volta do último ano. O meu marido não reparou, mas eu reparei. Havia homens que a queriam, sabe. Não como esposa, é claro. 115

O tom crítico e confiante da sua última frase agastou Phaedra e ela lançou-se em defesa de sua mãe, embora Artemis não precisasse de desculpas. – Se não vistes a minha mãe a transferir a sua afeição para outro homem, a frieza pode ter sido apenas o resultado da passagem do tempo e da familiaridade e à-vontade que dois amantes conquistam um com o outro. – Miss Blair, o meu marido e eu ceámos amiúde com a vossa mãe ao longo dos anos. Por norma, Mr. Drury estava presente. A fa-miliaridade e o à-vontade entre eles que descreveis eram palpáveis desde o início. Ninguém teve de me dizer na minha primeira visita que eles eram amantes e que vós éreis filha de Mr. Drury. No último ano, porém, ele não estava tão presente. E quando estava, pairava uma sensação de constrangimento no ar. Podeis considerar-me obtusa em comparação convosco, mas quando noto que as coisas não estão bem entre um homem e uma mulher raramente me engano. Sim, era possível que Mrs. Whitmarsh, ao proteger com tanto cuidado a posse do seu próprio marido, se tornasse cada vez mais astuta nesta área em particular da natureza humana. Seria tão astuta quanto perspicaz? Será que vira tudo? Uma mulher que guardava um tesouro seria a pessoa mais indicada para reparar se a pirata que temia mudara de rota para interceptar outro navio. – Quem era o homem que se tornou o novo objecto das atenções da minha mãe? – Isto é alguma espécie de concurso no qual devo apresentar um nome para que respeiteis a minha opinião? – É uma pergunta sincera de uma filha que gostaria de saber mais acerca dos últimos anos de vida de sua mãe. O melindre defensivo de Mrs. Whitmarsh dissolveu-se. – Não faço ideia. Só tenho a certeza… atrevo-me a dizer a certeza absoluta… de que não se tratava do meu marido. Durante me­ses, ela exibiu um brilho como se tivesse recuperado a juventude, mas depois… – Depois?

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– Foi como se alguém tivesse apagado uma vela com os dedos. Ela estava melancólica nas últimas visitas que lhe fizemos. Talvez quem quer que fosse a tivesse desiludido. Phaedra tinha visto essa melancolia. Não compreendera a sua causa ou magnitude, mas a descrição era apropriada. A sua luz fora extinguida. – Não sois a primeira pessoa a perguntar-se se ela teria tido um novo amante – anunciou Phaedra. – Foram-me sugeridos nomes. Mr. Needly, por exemplo. E Mr. Thornton. – Needly? Bem, imagino que isso faça algum sentido. Ele semelhante em muitos aspectos a Mr. Drury. Da mesma índole. A erudição em arte romana dar-lhes-ia um assunto em comum. Embora, se perguntassem isso, diria que eles não se davam às mil maravilhas. conseguia ser um homem muito arrogante.

era sua me Ele

Mrs. Whitmarsh reagiu com entusiasmo à perspectiva de má-língua. O tema agradava-lhe mais do que Phaedra desejaria. – Por vezes, a atracção pode dar origem a choques tempestuosos, creio eu. – Sem dúvida. Agora o outro, Thornton… – continuou Mrs. Whitmarsh, fazendo uma pausa para reflectir. – Ele era um pouco jovem para ela. E enigmático. Mas era uma visita assídua. Não passava despercebido. Era um homem extraordinariamente belo. Ele tinha presença, mas… – Mas? – É difícil explicar. Ele era impressionante. De uma forma perturbadora. Mas igualmente um pouco… vago. O meu marido usou essa palavra para o descrever certa vez e eu achei-a muito apropriada. Sim, ele era vago em tantos aspectos… Phaedra guardou a descrição num recanto da memória. Quan-do regressasse a Inglaterra, teria de procurar o arrogante Mr. Needly e o vago Mr. Thornton e perguntar sem rodeios a alguns dos amigos mais próximos de sua mãe se Artemis exibira uma preferência por qualquer um destes homens.

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– Eu gostava dela – afirmou Mrs. Whitmarsh. – Não aprovava a vida dela e ela sabia isso. No entanto, ela aceitava as minhas opiniões. Nunca permitiu que os seus outros convidados me fizessem sentir um elemento indesejável. Era uma anfitriã muito delicada. – Atrever-me-ia a dizer que ela estava acostumada às suas opiniões. Afinal de contas, são aquelas que são consideradas normais. Sempre que ela transpunha a porta de sua casa, era apontada como o elemento estranho. Quem me dera que o mundo fosse tão delicado quando confrontado com opiniões contrárias como ela se revelou ser e tão disposto a aceitar a companhia dela como ela aceitou a vossa. Mrs. Whitmarsh corou. A mudança de cor no seu rosto disse a Phaedra mais do que ela desejava saber. Os Whitmarsh nunca haviam retribuído os convites para jantares. Artemis Blair nunca fora incluída no círculo deles e nas festas deles. Estas confidências matutinas pareceram subitamente desleais à memória da sua mãe. Phaedra suspeitou que reproduziam a má-língua alimentada por Mrs. Whitmarsh em conjunto com as suas amigas normais, levada a cabo em salas de estar que nunca tinham estado abertas para a mulher erudita cuja vida desafiava as regras vigentes. Aquelas deram-lhe igualmente uma amostra da má-língua que circularia sobre si própria. Ela sabia que existiam mulheres que se riam, especulavam e davam estalidos com a língua de reprovação, da mesma forma que existiam homens que interpretavam mal a sua liberdade. Este tipo de pessoas era fácil de ignorar se ela não fosse obrigada a suportar a sua companhia. Ela tivera a esperança de que Mrs. Whitmarsh lhe pudesse fornecer a identidade do homem que usurpara o lugar de Richard Drury. Era evidente que não o faria, mas as suas observações não eram totalmente destituídas de utilidade. Phaedra pediu licença e retirou-se. De seguida, caminhou para fora do átrio e aproximou-se do caminho íngreme que ia dar à cidade.

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Positano tornava-se uma cidade de mulheres ao raiar do dia. Os homens aptos haviam partido nos seus barcos de pesca muito antes de Phaedra entrar no centro da actividade comunitária. Demorou imenso tempo a descer passo a passo o labirinto compacto de ruas antigas e estreitas. Mesmo com uma construção gradualmente inclinada, estas continuavam a ser traiçoeiras. Ela arrependeu-se de não ter trazido a sombrinha para usá-la com bengala e para a proteger do sol, que se tornava implacável à medida que se instalava por cima do pico da colina elevada. Mulheres e crianças olhavam fixamente para ela enquanto passeava na rua do mercado, onde pôde admirar os limões e as verduras, assim como os pedaços de carne de cordeiro e vaca. Num dos cantos do mercado, alguns homens sentados numas cadeiras à porta de uma taverna miravam-na com curiosidade e desconfiança. O mais novo, um homem de cabelo negro vestido com uma sobrecasaca castanha elegante, exibia uma vara pesada que encostara à sua cadeira. Os outros pareciam mais velhos e mirrados, como se tivessem renunciado aos rigores da pesca há muitos anos. Ela foi descobrindo as outras ruas principais ao seguir o fluxo de corpos. A sua presença criou um pequeno alvoroço, à semelhança do que acontecera quando passara de burro com Lord Elliot. Despontaram cabeças às janelas e olhares fixos pouco ou nada tímidos seguiam o seu progresso. As ruas conduziram-na a uma pequena praça junto à encosta da colina. Um jorro de água escorria da boca da cabeça esculpida de um leão. Fora colocada numa pequena parede construída ao mesmo nível da rocha da colina. Algumas mulheres estavam sentadas em bancos de pedra à sombra de árvores, à espera da sua vez para encher os cântaros sob a boca do leão. Phaedra escolheu um lugar vazio no banco para descansar na frescura da sombra. Olhos negros olhavam-na de esguelha. Uma jo-vem murmurou qualquer coisa ao ouvido de um rapaz e ele disparou numa corrida acima por uma ruela. As mulheres demoravam-se depois de terem utilizado a fonte,

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conversando entre si num conjunto de vozes melodiosas, mantendo a recémchegada debaixo de olho. Pouco tempo depois, uma mulher descia a ruela na direcção do grupo. A sua saia preta esvoaçava ao ritmo das longas passadas. Ela não se parecia muito com as outras mulheres. Para começar, era loira. O cabelo dourado escuro formava um rolo na nuca, visível sob a aba larga do seu chapéu de palha preto. Não tinha uma pele tão clara como a de Phaedra, mas o bronzeado intenso tão comum nesta terra apenas lhe tingira ao de leve a pele. Phaedra perguntou a si mesma se seria outra estrangeira que, tal como Matthias, teria vindo morar para Positano. Porém, à medida que a mulher se aproximava, os seus olhos amendoados, maças do rosto elevadas e rosto em forma de coração revelaram que era uma autóctone, embora o seu tom de pele tenha provocado alguma confusão inicial a respeito da sua proveniência. Ela sentou-se no mesmo banco que Phaedra e distribuiu algumas saudações entre as amigas. Phaedra tentou traduzi-las, mas as palavras saíam numa torrente e os sotaques em Positano conseguiam ser diferentes até mesmo daqueles que ouvira em Nápoles. A mulher virou-se e mirou longamente Phaedra. As conversas em redor esmoreceram. – Inglesa? Phaedra acenou com a cabeça. – Elas desconfiavam que sim e mandaram o pequeno Paolo buscar-me. A minha prima Julia e eu somos as únicas mulheres aqui que sabem falar a vossa língua. Já conhecestes a Julia. Ela é a vossa anfitriã na villa. Sois viúva? As frases eram formuladas num inglês sofrível, embora a cadência e a pronunciação reflectissem alguma dificuldade. – Não, não sou viúva. O olhar da mulher deslizou sobre o cabelo de Phaedra. – Não me pareceu que fôsseis – observou ela e olhou para a ruela situada à direita com um sorriso matreiro. – Ah, aqui vem o signore Tarpetta. 120

Ignorai-o. Ele gosta de agir como um padrone, mas a sua autoridade e poder só existem na cabeça dele. O homem coxo que estava sentado numa das extremidades da rua do mercado aproximava-se a coxear com a ajuda da vara, exsudando arrogância por todos os poros. Dois dos homens mais velhos acompanhavam-no. Os três foram-se posicionar do outro lado da praça. – Chamo-me Carmelita Messina. Tão-pouco sou viúva, caso o meu vestuário negro vos fizesse pensar isso. – Chamo-me Phaedra Blair e sinto-me feliz por conhecer al-guém que fala tão bem inglês. Tentei aprender a vossa língua, mas… Carmelita sacudiu a mão, interrompendo a justificação de Phaedra. – Aprendi a falar inglês em Nápoles. Vivi lá durante alguns anos com Julia e o seu falecido marido – informou-a Carmelita e apontou com o queixo para o signore Tarpetta, que as observava atentamente, apesar de estar a conversar com os homens mais velhos. – Ele não gosta quando as pessoas da villa vêm cá abaixo. Receia que pessoas como vós corrompam o seu pequeno reino. – Elas vêm cá abaixo muitas vezes? – Nós não passamos de camponeses coloridos para a maior parte deles. Somos as figurinhas nos cantos dos quadros românticos. – O signore Greenwood também não se mistura com as pessoas da cidade? – Por vezes. Ele visitava-nos com frequência no ano passado. De uma das vezes que voltou lá para cima, levou a Julia consigo – declarou. Carmelita lançou a Tarpetta um olhar de desdém. – Ele tinha esperanças de se casar com ela. Espalhou aos sete ventos que agora já não a queria, mas todos sabemos que voltaria a rastejar para junto dela se ela fizesse isto – acrescentou, estalando os dedos. A conversa entre ambas atraíra um público e o som de uma risadinha sacudiu o grupo de mulheres que se haviam aproximado. Carmelita observou Phaedra novamente. 121

– Eu visto-me de preto de luto pelos Carbonari que morreram quando o rei matou a república. Se não sois viúva, estais de luto porquê? – Estou de luto pelo meu pai, mas não com as minhas roupas. O preto não mancha tanto. Carmelita traduziu a sua resposta para o público. Várias cabeças assentiram. – Não apanhais o cabelo, nem usais véu. Perguntar-vos-ia se sois uma puttana, mas não creio que o sejais porque as amantes que chegam com os homens que visitam a casa lá de cima são sempre elegantes. Talvez o façais para o esfregar na cara de homens como o nosso Tarpetta? – Talvez – replicou Phaedra. Ela olhou para a baía que se estendia abaixo a algumas centenas de metros. – Chegam frequentemente visitas para Mr. Greenwood ou barcos especiais só para a villa? – Há visitas com frequência e algumas vêm igualmente com frequência. Ele tem muitos amigos, este signore Greenwood. Não nos é nada, mas muitos aqui engordam com o dinheiro que ele gasta. – Como a família dos rapazes que encontraram a pequena estátua antiga? – Não ouvi falar de nenhuma estátua. As famílias devem querer guardar segredo caso existam mais, para não as partilharem com mais ninguém. Ele gosta de coisas antigas, este signore Greenwood. Carmelita fixou novamente o olhar nos homens que as observavam. – Não estão a gostar do facto de estardes aqui sentada há tanto tempo, por isso espero que ainda fiqueis mais um pouco. Falai-nos da vossa vida em Inglaterra, Phaedra Blair. Ainda não levaram a água que vieram buscar para casa porque estão à espera para ouvir algumas das vossas histórias. Ela começara a traduzir tudo o que diziam e as mu-lheres sorriram e soltaram risadinhas quando ela transmitiu o seu pedido.

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Uma rapariga que não teria mais de dezoito anos aventurou-se para junto delas. Estendeu com cuidado a mão e afagou os cabelos ruivos de Phaedra. Phaedra não se importou com a familiaridade do gesto, mas hou-ve alguém que não gostou. Uma voz masculina rugiu. Do outro lado da praça, um dos homens mais velhos deu um passo em frente e, de semblante carregado, gesticulou à rapariga para ela ir ao seu encontro. De cabeça baixa e olhos amedrontados, esta apressou-se a ir ter com ele. O homem agarrou-lhe o braço e arrastou-a ruela acima, levando-a embora. – Ele é o pai do marido dela – afirmou Carmelita. – Vai dizer à família que ela se fez amiga de uma amante estrangeira da villa. Phaedra não queria pensar na sorte da pobre rapariga se a história enfurecesse o marido. As expressões cautelosas que invadiram de súbito os olhos das outras mulheres na fonte entristeceram-na. – Não quero causar problemas a nenhuma de vós – declarou e começou a levantar-se. A mão firme de Carmelita agarrou-lhe o braço, impedindo-a. – Não há mudança sem problemas. Estas mulheres são ignorantes do mundo que está para além desta costa e já conhecem de cor e salteado as minhas histórias de Nápoles. Falai-nos da vossa casa e de como vos tornastes uma mulher que se aventura sozinha numa terra estrangeira, com o aspecto de uma meretriz de luto que não receia a mão de nenhum homem. Phaedra ficou uma hora na fonte, a desfrutar da companhia feminina. Ela contou a Carmelita e às outras a sua vida e a forma como vivia sozinha e livre em Londres. À medida que o tempo passava, a torrente de palavras estrangeiras começava a fazer algum sentido, ao ponto de conseguir compreender algumas das perguntas que lhe eram dirigidas antes de serem traduzidas. Do outro lado da praça, o signore Tarpetta observava-a. Alguém lhe trouxe uma cadeira para ele se sentar e descansar a perna. O ban-do alegre de mulheres pouco ou nada se importou com a sua desaprovação. Ele podia 123

auto-intular-se de padrone, mas era óbvio para Phaedra que as mulheres obedeciam a um outro poder e este chamava-se Carmelita Messina. As mulheres acabaram por se dispersar, levando os seus cântaros e tagarelando animadamente entre si. – Os homens delas vão regressar em breve nos barcos. Têm de preparar a refeição do meio-dia – explicou Carmelita. Phaedra ergueu-se. – Agradeço-vos por se ter juntado a nós e, dessa forma, eu ter tido a oportunidade de conhecer as mulheres. Vou dar um passeio até àquela torre antes de regressar à villa. – Eu acompanho-vos, pois podeis não encontrar o caminho que vai até lá. Se Tarpetta nos seguir, fingi que ele não existe. É um louco se fizer isso com a perna naquele estado, mas homens como ele provam-nos amiúde que são estúpidos. Ele provou isso naquele dia uma vez mais. Phaedra achou que ele se tinha abstido de as seguir até ao momento em que ela e Carmelita entraram no caminho do promontório. Foi então que ela o avistou a coxear nas docas para as conseguir manter debaixo de olho. – Como é que ele magoou a perna? – inquiriu. Carmelita atravessou a portada que dava acesso ao interior da torre. – Ele era um soldado e fazia parte do grupo que veio à procura do marido de Julia na nossa casa em Nápoles. Ele traiu-nos. Nós lutámos contra ele, mas sem esperança. Bati-lhe com uma frigideira de ferro pesada aqui – descreveu ela, apontando para o joelho. – O meu único arrependimento foi de não ter apontado para a cabeça. – E agora ele segue-vos para todo o lado? – Ele está a seguir-vos a vós, não a mim. Mas ele odeia-me porque fui eu quem fez com que o signore Greenwood conhecesse a Julia. Ela ficou sem nada depois de o marido ser executado e a república cair. – Se ele tem ciúmes, devia odiar Mr. Greenwood e não a si.

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Carmelita assumiu a posição dianteira na subida pelas escadas de pedra em caracol. – Ele não se atreve a odiar Greenwood. Tal como muitos ou-tros, ele engorda às custas do dinheiro do inglês. As duas mulheres subiram ao topo da torre, onde existia uma sala quadrada. Janelas pequenas fendiam cada uma das paredes de pedra. Uma dava para o mar e outra fornecia uma vista límpida da encosta montanhosa. – Aquela era onde vigiavam o mar à procura de árabes ou piratas que pudessem atacar o porto – explicou Carmelita. – Mas nesta aqui virada a leste… Vigiavam outro tipo de coisa, não? Um exército vindo da colina ou tumultos na cidade. Phaedra olhou para fora da janela a ocidente. A vista do mar era interminável e viam-se quilómetros de costa em ambos os lados. De seguida, passou para a virada a leste. O sol pairava directamente sobre o pico da montanha. Esta torre fora construída por razões militares. Durante as madrugadas a meio do Verão, porém, o sol podia aparecer em primeiro lugar directamente em linha com esta torre. Não havia muita coisa a explorar no compartimento do guarda. As paredes de pedra elevavam-se e formavam um tecto abobado, à semelhança das antigas igrejas normandas em Inglaterra. Para além de um cobertor no chão, estava vazio e surpreendentemente limpo. Carmelita tocou no cobertor com as pontas dos pés e revelou a palha que existia por baixo dele. – Os amantes vêm até cá – declarou. – Ao longo dos séculos, esta torre tem tido visitantes nocturnos. Quando Phaedra e Carmelita se viram uma vez mais sob o céu azul no exterior da torre, a figura erecta e resoluta do signore Tarpetta ainda era visível nas docas. – Como é que ele engorda às custas de Mr. Greenwood?

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– Não sei. Mas vive bem, e para além de uma magra pensão do exército, não tem outro sustento. Eles conhecem-se um ao outro. É óbvio pela forma como se cumprimentam nas raras ocasiões em que se cruzam na rua. O mais provável é Greenwood estar a pagar-lhe para não interferirmos com os seus amigos importantes ou talvez apenas para se afastar de Julia – declarou e encolheu os ombros. – Agora, vamos ver se vos encontramos um rapaz com um burro. Nem mesmo eu me atreveria a subir aquele caminho todo até à villa. A meio do caminho de regresso, Lord Elliot surgiu nas docas. Subitamente, o braço do signore Tarpetta e os olhos de ambos os homens fixaram-se no caminho do promontório. Lord Elliot dirigiu-se a grandes passadas para o fundo das docas e seguiu rumo a norte para as interceptar. – Quem é aquele? – perguntou Carmelita. – O vosso amante veio buscar-vos? – Ele não é o meu amante – replicou Phaedra, sentindo um calor a espalhar-se pelo seu rosto. Carmelita soltou uma risada. – Mas ele gostaria de o ser, não? E ele é tão belo que vos sentis tentada a isso, acho eu. Mas vede como ele vos espera ali, tão carrancudo. É melhor terdes cuidado com este, Phaedra Blair. Phaedra apresentou Carmelita assim que chegaram junto de Lord Elliot. Ele respondeu de forma afável, mas não conseguiu esconder o seu desagrado. – Deixastes-nos preocupados, Miss Blair. Não é aconselhável caminhar até à cidade sozinha – anunciou Lord Elliot, com um tom de voz em tudo semelhante ao de uma reprimenda. – Duvido que suceda algum mal às pessoas que visitem esta cidade. Lord Elliot olhou para Carmelita. – Tendes a minha gratidão por terdes oferecido a Miss Blair o vosso auxílio e companhia. 126

– Eu não preciso nem de auxílio, nem de companhia – replicou Phaedra. – Mas estou feliz por ter feito uma amiga e espero ver-vos novamente, Carmelita. Sem abandonar a postura tensa e irritada, Lord Elliot caminhou até junto de uns rapazes com burros para alugar as montadas. – Vou deixar-vos para vos entenderdes com este homem – afirmou Carmelita. – Se precisardes de uma frigideira de ferro emprestada, basta dizerdes.

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Capítulo 9 –V

ou escrever a carta ao superintendente esta manhã

– afirmou Matthias. – Se bem que estou completamente convencido que as cartas de apresentação que trouxestes de Inglaterra serão mais do que suficientes. Talvez seja presunçoso da minha parte pensar que a minha vos dará um acesso mais célere aos locais de trabalho. – Conhecei-lo pessoalmente. A vossa carta será muito bem-vinda. Elliot conseguiu manter metade da atenção concentrada nos preparativos para a visita a Pompeia. A outra metade teimava em ver a varanda que pairava sobre o átrio. Na noite passada, Phaedra deixara as portas abertas. Fizera-o em jeito de provocação? De uma afirmação de indiferença? A única coisa de que estava certo era de que não se tratara de um convite. Ele fumou um longo charuto lá fora durante a noite, a olhar para a escuridão que se estendia para lá das persianas abertas, incapaz de resistir à tentação atroz que a sua proximidade criava. Os únicos sons que vinham daquele quarto eram os suspiros suaves de uma mulher satisfeita a dormir incrivelmente bem. Por fim, recolheu aos seus próprios aposentos numa tentativa de contrariar os impulsos implacáveis que ela instigava. Quando o sono 128

finalmente os aplacou, fora profundo, longo e prolongou-se até depois do nascer do sol. Ao acordar, descobrira que Phaedra havia desaparecido. Ela deixara a villa novamente. Ele dissera-lhe para não o fazer. Depois de andar à sua procura no dia anterior, ele tinha imposto algumas regras. Ela não tinha perdido tempo a desobedecê-las. – Se assim o desejardes, Miss Blair pode ficar aqui enquanto ides a Pompeia – observou Matthias despreocupadamente. Demasiado despreocupadamente, como se compreendesse o que estava a distrair o seu antigo aluno. – Ela está determinada a ir. – Ela não necessita da vossa companhia para fazer isso. É mais do que evidente que ela vos aborrece. Não me importo de a escoltar, em separado, para vos poupar a esse inconveniente. Em relação àquela situação de que me falou a respeito de Sansoni, estou certo de que ele iria aceitar a minha autoridade por procuração caso alguma vez tome conhecimento da troca. – Tenho a certeza de que não aceitaria. Eu dei a minha palavra. Por enquanto, não me posso livrar de Miss Blair. O juramento que fizera a Sansoni não tinha o peso que insinuara, a ponto de ser obrigado a recusar a solução de Matthias. Nem, tão-pouco, neste momento em particular, a necessidade de controlar os planos de Phaedra para aquelas memórias afectava a sua decisão. Não directamente, pelo menos, embora tudo se resumisse à mesma intenção. O seu aborrecimento para com Miss Blair adquirira outras cores e sombras. Ele queria controlar muito mais do que somente quando e como publicaria aquela obra. – Visto que estais determinado em levá-la convosco, permiti que sugira algumas hospedarias apropriadas para uma mulher respeitável – declarou Matthias, lançando-se numa ladainha de alojamentos para turistas cidade a cidade. Na parte final das recomendações, a atenção de Elliot foi desviada para a encosta. Whitmarsh estava a subir, vindo da cidade, com a cara corada do esforço excessivo. 129

– É demasiado íngreme até para vós, não, Whitmarsh? – exclamou Matthias. – Não admira que tenhais regressado tão tarde do vosso exercício matinal. Whitmarsh dobrou-se sobre si mesmo, agarrando os joelhos enquanto se esforçava por recuperar o fôlego. Abanou nervosamente as mãos, forçando Matthias a fazer silêncio enquanto se erguia com dificuldade. – Problemas… Torre… Da cidade... – arquejou e apontou para o fundo da colina, frustrado com o desempenho dos seus pulmões. Elliot e Matthias caminharam até junto dele. Elliot espreitou lá para baixo. A cidade estava a fervilhar com uma actividade intensa. O seu olhar fixou-se na torre. Um grupo grande havia-se reunido no caminho do promontório. Whitmarsh respirou fundo algumas vezes, recompondo-se. – Esta colina mata-nos se a tentarmos subir a correr. – Que é precisamente o motivo pelo qual não devemos subi-la a correr – replicou Matthias. – Porque fizestes isso? Whitmarsh apontou novamente. – Miss Blair está lá em baixo, naquela torre. Eles querem prendê-la. Ela ia acabar por ser a sua morte. Elliot correu até ao quarto para ir buscar a sua pistola para que esta sua reacção exasperada não se transformasse numa verdade literal. Ao sair, encontrou Whitmarsh a inspeccionar a sua própria arma. – Não consigo imaginar o que ela poderá ter feito – perguntou-se Matthias enquanto se apressavam a descer a colina. Elliot tinha uma boa ideia. – Segundo o que percebi, eles acham que ela é uma bruxa ou algo parecido – explicou Whitmarsh entre duas inspirações profundas. Ainda não recuperara por completo da subida e a descida obrigava-o a um esforço físico redobrado. – Maldição – murmurou Elliot entre dentes. 130

– O nosso dever é claro, cavalheiros – declarou Matthias. – Não podemos permitir que eles a detenham. Com a vontade que aquele indivíduo Sansoni tem para arranjar problemas como me contastes, Rothwell, e as noções primitivas de religião e justiça nesta parte do mundo, se eles a apreenderem, as coisas podem descontrolar-se. As exalações profundas de Elliot tinham muito pouco a ver com o passo apressado que mantinham na descida em direcção à baía e à torre. Se Phaedra não tivesse sido tão deliberadamente voluntariosa e tivesse permanecido na villa, três homens não estariam agora prestes a envolver-se em sarilhos. A sua ira revelou ser uma defesa ineficaz contra a outra reacção que pesava como chumbo no seu peito. Isto não era Londres, mas uma cidade isolada numa colina num país estrangeiro. A apresentação e comportamento de Phaedra tornavam-na vulnerável. Não havia nada de cómico numa acusação de bruxaria neste canto do mundo. Ela corria um perigo real. Eles alcançaram as ruelas mais próximas do nível do mar e atravessaram a praça em frente à igreja de Santa Maria. No meio da praça estavam andores acabados de pintar e decorar, à espera da procissão do dia seguinte em honra da festa de San Giovanni. Matthias assumiu a posição dianteira enquanto contornavam a baía. Uma multidão de homens estava a bloquear o caminho que levava ao promontório. Esta pequena turba não era apenas constituída por velhos e inválidos. Alguns dos pescadores haviam decidido que a agitação na torre era mais interessante do que lançar as redes ao mar. As emoções estavam ao rubro entre os homens. Choviam maldições guturais por todo o lado, os olhos escuros estavam inflamados e as mãos agitavam-se excitadamente. Um homem bem vestido estava no centro da multidão, com o peso apoiado numa vara pesada, a exortar os amigos a seguir em frente. Matthias inclinou a cabeça para tentar escutar melhor e recolher o máximo de informação.

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– Ela foi vista na janela ao raiar do sol – sussurrou ele. – A rezar ao sol nascente ou algo parecido. Tarpetta, o indivíduo coxo que está ali no meio, também a viu na cidade ontem, a tentar corromper as mulheres. Do que consegui perceber, ele está a acusá-la de feitiçaria, prostituição e heresia. – Heresia? – perguntou Whitmarsh. – Vamos avançar até à frente desta multidão – afirmou Elliot. – Whitmarsh, é melhor mantermos as nossas armas fora de vista por agora. Com posturas militares, eles irromperam sem cerimónia através do grupo de homens. A sua presença exacerbou ainda mais os ânimos. Uma cena digna de uma ópera aguardava-os no promontório. Os homens tinham-se concentrado à saída da cidade pois o caminho para a torre estava bloqueado por um grande grupo de mulheres. Estas estavam igualmente agitadas e ansiosas por uma luta. Todas as mulheres, sem excepção, haviam-se desembaraçado do lenço da cabeça ou véu e soltado o cabelo. Carmelita Messina erguia-se na retaguarda das mulheres, posicionada como a última linha de defesa. Com o cabelo loiro a ondular ao sabor da brisa e o vestido negro a esvoaçar, parecia encarnar o papel duma sacerdotisa da religião de Phaedra Blair. Ela empunhava uma grande frigideira rasa de ferro na mão. De vez em quando, brandia a sua arma na direcção de Tarpetta, que não recebia as provocações em silêncio. Um homem solitário assomava entre a linha masculina e a feminina. O padre da cidade tinha os braços erguidos, um em cada direcção, como se ele fosse a única coisa que estivesse a impedir as duas ondas furiosas de avançarem uma contra a outra. – Há que reconhecer o pitoresco da situação – afirmou Whitmarsh secamente. Infelizmente, esta era também potencialmente perigosa. Elliot fixou o olhar no cimo da torre. Ao mesmo tempo, Phaedra espreitou para fora de uma janela lá no alto e reconheceu-o. Ele tentou transmitir-lhe calma. 132

– Vamos ver se conseguimos resolver isto de forma pacífica, Greenwood – afirmou Elliot. Avançou, destemido, até se posicionar de permeio entre ambas as facções. Com Matthias ao seu lado, aproximou-se do padre. Greenwood conversou com o padre enquanto a fúria dos ho-mens ressoava aos seus ouvidos. As notícias não eram boas. – A acusação de feitiçaria deve-se ao ritual com o sol, especialmente neste dia. Hoje é o solstício, ou está muito perto disso – informou Matthias. – A acusação de prostituição é genérica. A sua aparência, a sua presença sozinha na cidade, etc., etc. Lamentavelmente, o apoio das senhoras só serviu para confirmar a sua influência corruptora aos olhos dos homens. Existiram, parece-me, algumas conversas estranhas nos quartos desta cidade ontem à noite. – E a heresia? – perguntou Elliot. – Miss Blair tentou explicar a questão do sol com mais pormenor do que seria recomendável. Uma dissertação a respeito das semelhanças entre as religiões do mundo provavelmente não actuou em seu favor. Elliot imaginou uma acusação a ser transmitida pelas mulheres a Carmelita e traduzida a Phaedra. Visualizou a explicação demorada a fazer o mesmo caminho de volta, parágrafo após longo parágrafo, despojada de qualquer sentido à medida que passava por cada um dos elementos até chegar aos homens. Era de espantar que a acusação fosse de heresia e não insanidade. O padre era um homem idoso, de cabelo branco e uma expressão compassiva. O abandono da ordem por parte da cidade afligia-o. Ele falou com Matthias e juntou as mãos numa expressão de prece, sacudindo-as agitadamente para reforçar a sua súplica. Elliot não teve qualquer dificuldade em perceber o teor das palavras do padre. – Dizei-lhe que não vou abandonar Miss Blair aos caprichos de uma turba enfurecida. 133

– Ele tem razão quando diz que a nossa presença aqui no meio só está a servir para deitar mais achas na fogueira, Rothwell – asseverou Matthias. – Os homens acham que estamos a usurpar o seu poder e as mulheres, bem, elas não vêem com bons olhos nenhum homem neste momento. A última parte era verdade. As mulheres observavam-no como se ele fosse o inimigo e lançavam-lhe palavras de desafio repletas de fúria que eram sem dúvida insultos grosseiros. Se ele conseguisse passar por elas, Carmelita da Frigideira de Ferro aguardava por ele. Ele começou a retroceder e puxou Matthias para um lado mal deixaram os homens para trás. – Preciso de entrar naquela torre para falar com ela. – Aquela torre foi construída para fins defensivos. Só existem duas formas de a alcançar: por esta língua de areia ou pelo mar. – Então, terei de chegar lá pelo mar. Phaedra espreitou à borda da janela. O impasse lá em baixo continuava. Sempre que os homens pareciam perder o interesse no cerco, o signore Tarpetta incitava-os a continuarem. Elliot, Mr. Greenwood e Mr. Whitmarsh haviam abandonado a cena. Provavelmente tinham a esperança que esta pequena conflagração se acabasse por extinguir. Com o padre a apelar ao bom senso, ela também esperaria o mesmo. Infelizmente, suspeitava que isto tudo não girava assim tanto quanto parecia em torno da inglesa estranha que estava no interior da torre esta manhã. As facções dividiram-se por outros motivos. Práticas antigas e acontecimentos recentes alimentavam este fogo. Ela receava que as mulheres pagassem bem caro nos dias seguintes esta orgia de rebelião, mesmo que ela própria fosse poupada. Ela esperava que Carmelita não tivesse de o pagar com a liberdade. Ela admirou a mulher de cabelos loiros que brandia a sua frigideira de ferro. Carmelita anunciava que não estava indefesa com esse gesto. Este relembrava igualmente a Tarpetta os seus próprios crimes e o motivo pelo qual ela não permitiria que a cidade se submetesse ao poder dele. 134

Ele era o único culpado disto tudo. Vira-a a caminhar pela cidade nas primeiras horas de claridade. Deve tê-la seguido novamente e notado a sua presença na janela virada a leste lá no alto quando o sol atingia o cimo do pico da montanha. O sol já ocupara muitas outras posições no céu desde essa altura, mas o confronto lá em baixo recusava-se a terminar. Ela correu até à janela virada a ocidente. Carmelita vozeara um aviso para estar atenta a um ataque vindo do mar. Um barco havia-se aventurado ao largo da torre para avaliar essa abordagem há cerca de uma hora, mas ela atirara-lhe umas pedras soltas do cimo do edifício, o que o desencorajara. Um outro barco aproximava-se agora, mas não vinha das docas de Positano. Surgia vindo de ocidente, como se visitantes de Capri tivessem vindo visitar a torre normanda. Três homens erguiam-se na proa do barco enquanto criados da villa remavam. Elliot, Whitmarsh e Greenwood tinham vindo em seu socorro. Eles levaram a embarcação o mais próximo possível da torre. Mr. Whitmarsh acenou-lhe. Mr. Greenwood chamou pelo seu nome. Elliot quase sorriu, mas a linha tensa e recta dos seus lábios nunca se desfez. – Agora já conseguis ver o que eu queria dizer, Rothwell. Se fosse fácil entrar na torre pelo mar, não serviria em nada o seu propósito original – afirmou Greenwood. – Está um dia esplêndido para um passeio de barco, seja como for – declarou Whitmarsh. – Aparentemente, ninguém adivinhou que iríamos voltar atrás. As docas continuam vazias – prosseguiu e voltou o olhar para cima, onde estava Phaedra. – Aquela janela parece muito mais alta de perto. Trouxemos algumas provisões, Miss Blair, mas duvido que o nosso plano para fazê-las chegar até vós funcione. O ruído de gritos invadiu a torre vindo do outro lado. Phaedra correu até lá e olhou lá para fora. Os homens estavam muito mais próximos do padre. As mulheres juntaram-se num grupo mais compacto. Ela voltou para a janela do mar. 135

Elliot inclinou-se e ergueu uma corda longa e um gancho. – Para trás, Miss Blair. Chegai-vos bem para trás dentro da torre. Se conseguirdes fazer entrar o gancho, prendei-o da melhor forma que conseguirdes. – Lord Elliot, não creio que sereis capaz de… O olhar que ele lhe lançou silenciou-a. Phaedra passou para o outro lado da torre. Ouviu três vezes o barulho áspero do metal a bater na pedra e, de seguida, o chape de algo pesado a cair na água. O plano deles não estava a funcionar. De repente, o grande gancho de ferro voou pela janela. Ficou suspenso no ar um longo momento e depois começou a cair. Um dos seus três ganchos apanhou o peitoril da janela e ficou preso. Ela correu até lá, desenganchou-o e passou-o através da janela para o fixar o mais profundamente possível nas pedras da parede. Phaedra olhou lá para fora. Os três homens puxaram em conjunto a corda para testar a sua segurança. Aparentemente satisfeito, Lord Elliot saltou para fora do barco e posicionou-se na língua de areia. Whitmarsh passou-lhe dois cestos grandes. – Mandai primeiro a comida – pediu ela. – Ainda não comi nada hoje. – É óbvio que pensastes que o deus do sol não podia ficar à vossa espera – replicou Elliot, enquanto atava a asa do cesto. – Quando eu era uma criança desobediente, era enviado para o meu quarto sem jantar. Talvez um pouco de fome também seja exactamente aquilo de que precisais hoje. Ela deu um pequeno puxão na corda. – Não vamos tirar conclusões apressadas. E não vamos perder o nosso sentido de humor. O cesto resistiu teimosamente ao puxão durante um momento irritante para no momento a seguir ser libertado. Ela puxou a corda usando ambas as mãos até conseguir agarrar a asa do cesto.

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Examinou o seu conteúdo e atirou a corda para baixo novamente. – Que belo banquete: vinho, presunto, pão e figos! – Desfrutai bem dessa refeição. Se os homens da cidade conseguirem o que pretendem, só ides comer massa com banha de porco durante os próximos dez anos, partindo do princípio que eles não vos levam imediatamente para o cadafalso – previu Elliot. Ele agarrou na extremidade da corda e começou a atar o outro cesto. – Um cobertor e outras necessidades vão aqui dentro. Um bramido ecoou do outro lado da torre. Ele olhou para cima. – O que está a acontecer? Ela correu até à outra janela e regressou para lhe dar conta do sucedido. – Receio ter de comer rapidamente, se quiser desfrutar do meu banquete. O signore Tarpetta está a ordenar ao padre para sair do caminho. – Puxai isto depressa e atirai a corda outra vez para baixo. Os ruídos que chegavam até si vindo da janela oposta deram-lhe uma força redobrada para fazer subir o cesto o mais depressa possível. Assim que libertou a corda, atirou-a para baixo e correu novamente até à janela contrária. O padre desaparecera. A linha dianteira de homens estava colada à das mulheres. Os flancos do exército de mulheres já tinham começado a desertar. Eles iam pô-las em debandada geral. Ela regressou à janela do mar. Greenwood gesticulava em direcção à costa. – Vamos ancorar ali e estaremos de volta às linhas de batalha daqui a alguns minutos – disse a Elliot. – A situação está a ficar preocupante no promontório – gritou ela lá para baixo.

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– Não percais a esperança, querida senhora – gritou-lhe de volta Whitmarsh. – Greenwood tem alguma influência na cidade e Rothwell está armado. Ides ficar em segurança. Se eles estavam a planear entrar no meio da escaramuça que se avizinhava, ela não podia depositar a sua esperança numa vitória. Ela duvidava que os seus corsários ingleses desatassem aos disparos para abrir caminho para a salvar e, caso contrário, estariam numa posição numérica desvantajosa. Elliot examinou a parede da torre. Estudou a pequena língua de areia sob as botas e os grandes blocos de pedra posicionados de forma a desencorajar a aproximação de barcos. – Ainda são uns bons doze metros. Não posso arriscar que caia se lhe pedir para descer. Se a água fosse mais funda… Sem parar de fazer cálculos e a falar baixinho para si mesmo, ergueu as mãos, agarrou na corda e começou a subir. – Ei, Rothwell! Tomai atenção para a queda não ser a vossa – advertiu Greenwood. Subiram gritos à torre vindos do promontório que lhe provocaram arrepios de medo. Ela não foi ver o que se tinha passado. Não conseguia tirar os olhos de Elliot suspenso sobre o mar, a tornar-se cada vez maior à medida que avançava centímetro a centímetro pela corda, com o corpo e o rosto tensos do esforço dispendido. Ela apercebeu-se de que a batalha no promontório não estava a correr de feição para as mulheres, o que significava que não estava a correr de feição para ela. Espreitou para fora da janela e contou a Lord Elliot o que se estava a passar. Ele praguejou e continuou a avançar com uma força redobrada. Um som estranho ecoou pelas escadas acima. Parecia o som de uma frigideira de metal a aterrar em algo macio. A voz de Carmelita apelou aos santos para a ajudarem e o som repetiu-se. Um homem gemeu de dor.

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– Eles invadiram a torre, Lord Elliot – informou Phaedra, apalpando os cestos. – Por acaso não incluistes uma arma no meio da comida ou dos cobertores para eu fazer a minha derradeira defesa? – Sabeis usar uma arma? – perguntou a sua voz estrangulada e cada vez mais próxima. Ela olhou para cima e viu-o à janela. Os braços estavam pendurados no extenso peitoril e os dedos pareciam garras à volta do rebordo interior da janela. Ela lançou-se para a frente e agarrou-o. – Conseguia usar uma se fosse obrigada a isso. Ela puxou-o pelos ombros e pelas calças. Ele agarrou-se a qualquer parte do corpo dela que parecesse seguro. Elliot tombou finalmente para o interior da torre. Pôs-se de pé num salto com a graciosidade de um gato que acabara de tropeçar. Lá fora, Greenwood ordenou aos criados para remarem depressa à volta da ponta do promontório. Elliot extraiu uma pistola do interior do seu casaco maltratado. – Whitmarsh fez o favor de me obsequiar com histórias de justiça grosseira nas cidades das colinas deste país no caminho para cá. Teria sido insensato da nossa parte menosprezar o perigo que corríeis. Ficai aqui. Não me sigais. Se vos parecer que está a correr pelo pior, arriscai a vossa sorte com aquela corda e o mar. Elliot não desceu as escadas em silêncio e permitiu que toda a irritação que sentia ressoasse nos seus passos pesados. A sua aproximação silenciou os homens lá em baixo. Ele dobrou a última esquina das escadas e encontrou Carmelita Messina no último degrau, com a frigideira de ferro a postos na mão. Os quatro homens que a ameaçavam tinham agora toda a sua atenção concentrada nele e não nela. Carmelita olhou por cima do ombro e reparou na pistola que ele empunhava. Ele não percebeu se ela ficou aliviada ou irritada.

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Uns passos igualmente pesados mas irregulares ecoaram fora da portada. O signore Tarpetta surgiu atrás da curva. À semelhança dos outros, também viu a pistola e acto contínuo, assumiu uma postura erecta militar. – Estais a interferir – declarou. – Miss Blair está sob a minha autoridade e também sob a minha protecção. Ele deitou-lhe um olhar de desdém. – Não autorizais bem as vossas mulheres. Elliot não tinha como refutar isso, apesar da sintaxe grosseira que envolvia a crítica. – Desempenho muito melhor a parte da protecção – replicou e apontou a pistola directamente a Tarpetta. – Dizei a todos para irem para casa. – Ela quebrou as nossas leis. – Ela não quebrou quaisquer leis – objectou Carmelita. – Ela só ofendeu as leis privadas de um homem que gosta de pensar que é um pequeno rei. – Estais a ver os problemas que ela causou? Ela enfeitiçou as mulheres e levou a cabo rituais pagãos. Nós não permitimos esse tipo de crimes em Positano. – Vejam só! – exclamou Carmelita, soltando uma risada áspera. – Ele até fala como um rei. O «nós» resume-se única e exclusivamente a ele. Elliot não estava com disposição para discussões e sacudiu a pistola. – Todos para fora desta torre. Signorina Messina, por favor traduza o que eu disser. Tarpetta saiu a recuar da torre. Os homens e Carmelita imitaram-no. Elliot assumiu a posição de retaguarda. Quando se preparava para sair, um ruído nas escadas fê-lo olhar de relance para trás. Uma mecha de cabelo ruivo estava suspensa ao longo da esquina da parede das escadas.

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As mulheres tinham desaparecido. Ele enfrentou os restos da batalha, cerca de vinte homens cuja sede de justiça ainda não estava satisfeita. A sua pistola impressionou-os. À medida que falava e Carmelita traduzia, o barco de Greenwood concluiu a sua volta em redor do promontório e Matthias saltou para o banco de areia. – Chamo-me Lord Elliot Rothwell e sou irmão do marquês de Easterbrook – declarou. – Fui designado responsável por Miss Blair por oficiais na corte do vosso rei. Se algum de vós a ferir, será a mim que terão de prestar contas. Ela não é nenhuma bruxa, herética ou prostituta. Não existe qualquer prova para apoiar essas acusações e têm a minha palavra de cavalheiro de que as vossas suspeitas são falsas. Carmelita disparou uma tradução muito extensa das suas palavras. Com base na ideia geral que ele conseguiu apreender e nas expressões dos rostos dos homens, ele suspeitou que ela tivesse dado ênfase às partes do Lord, marquês e corte. Matthias chegou junto deles quando ela estava a terminar. Tarpetta, reconhecendo que as suas forças haviam perdido grande parte da determinação, aproximou-se dele a coxear. Os dois homens lançaram-se numa conversa a dois. Tarpetta começou a afastar-se. Os outros homens decidiram que acompanhar o líder numa retirada seria uma boa ideia. Greenwood foi até junto da torre. – Tendes a minha gratidão, Greenwood, por seja o que for que lhe tenhais dito. – Ficastes com a impressão errada. Ainda não nos podemos considerar vitoriosos. Vão enviar alguns homens a Nápoles para um parecer e também para solicitar auxílio ao exército. Carmelita lançou os braços para o ar num gesto de exasperação. – Imbecis! Tarpetta estava a regressar à cidade, mas dez dos seus homens detiveram-se à entrada do promontório. 141

– O que estão a fazer? – perguntou Elliot. – A montar uma guarda – respondeu Greenwood. – Com a vossa pistola pronta a disparar, eles não vão tentar entrar na torre, mas não a vão deixar sair de lá até receberem notícias de Nápoles. Suspeito que haverá também um barco ou dois a manter a torre debaixo de olho a partir do mar. Elliot conteve uma maldição. O santuário de Phaedra acabara de se transformar numa prisão. – Nós ficaremos aqui enquanto eles a vigiam para que não haja nenhuma violação desta trégua – anunciou Carmelita. – Não transformeis as mulheres em mártires no vosso zelo em derrotar aquele homem – disse-lhe Elliot. – Agradeço-vos a vossa ajuda, mas receio que o custo desta já seja demasiado elevado para as vossas amigas. Deixai este assunto nas minhas mãos agora. Carmelita Messina fez tanto caso das suas palavras como Phaedra Blair. – Vamos ficar de vigia. Algumas de nós, viúvas e afins, não vivem a meias com uma mão repressora. Vou confiar na vossa pistola para manter a paz e no signore Greenwood para usar toda a sua influência com aquele homem para acabar com este disparate antes do amanhecer. Ela começou a afastar-se, amarrando o cabelo num nó à medida que caminhava. – Ela fala como se conseguísseis resolver isto se o desejásseis – observou Elliot a Matthias. – Ela está equivocada relativamente à minha influência neste lugar. Todavia, irei tentar chamar Tarpetta à razão, assim que ele tiver acalmado, embora mal conheça o sujeito. – Descobri se ele pode ser subornado. Matthias esboçou um sorriso irónico. – Quanto é que ela vale para vós? Elliot guardou a pistola e encaminhou-se para a portada da torre. – Neste momento, estou tentado a pagar-vos para me ver livre dela. 142

Capítulo 10 P

haedra observava os dois homens da janela enquanto Elliot

e Matthias conversavam. Ela não os conseguia ouvir, mas os rostos sérios indicavam que estavam a forjar algum tipo de plano. Um pequeno grupo de homens formou um círculo à entrada do promontório. Um outro grupo de quatro homens aproximou-se de um barco de pesca nas docas, embarcaram nele e lançaram-no à água. Matthias começou a afastar-se da torre. Ela ouviu o ressoar de botas a subir os degraus de pedra. Elliot entrou na pequena divisão. A actividade lá em baixo continuava a prender a sua atenção, mas ela lançou-lhe um olhar sub-reptício. A sua expressão revelava um misto de preocupação e irritação. Ela achou a sua inquietação encantadora, um nada lisonjeira e esperou que a ira desaparecesse depressa. – Não tendes nada a recear por agora – declarou Elliot. Ele pousou a pistola no chão a um canto para que não houvesse qualquer acidente com ela. Foi buscar um odre ao cesto e levantou-o no ar. Um jorro de água caiu sobre a sua boca aberta. Os olhos dela fixaram-se no fluxo puro de água. Sentiu a garganta a retesar-se. Já não bebia nada desde antes do amanhecer. 143

Ele deu-se conta da sua reacção e aproximou-se. – Inclinai a cabeça para trás. Ela obedeceu e abriu a boca. Uma corrente fresca e lenta de água aliviou a sua sede. De seguida, limpou a água dos lábios com a mão. – Estava com medo que esses odres só tivessem vinho. – O outro tem. Se tivermos cuidado, isto vai dar para nos aguentarmos o tempo que for preciso. O tempo que for preciso? Ela olhou novamente pela janela, percebendo as implicações da posição ocupada por aqueles homens à entrada do promontório. – Não posso sair daqui, pois não? O que aconteceu? Ele explicou-lhe a decisão dos homens de irem até Nápoles. Memórias do abominável Sansoni começaram a insinuar-se de modo sinistro na sua cabeça. No silêncio que se seguiu à explicação, o ar ficou carregado com o possível perigo que os aguardava e com o verdadeiro peso de tudo aquilo pelo qual já haviam passado. Ele espreitou por cima da cabeça dela para a cidade lá em baixo. Uma distracção profunda pareceu dominá-lo, como se estivesse a concentrar-se intensamente em algo muito distante. – Desobedecestes-me – afirmou, provando que os seus pensamentos não se tinham afastado um milímetro daquela torre e de Phaedra. – Descestes aquelas escadas. – Não fui vista por eles. Consigo entre mim e o perigo… Foi uma pequena desobediência. – O próprio acto de vir a esta torre foi um acto de desobediência. Disse-vos para ficardes na villa. – Não esperava ser vista nesta torre. – O que infelizmente veio a acontecer. A realizar nada mais, nada menos do que um ritual pagão. Na pior terra possível para isso. 144

– Não houve nenhum ritual. Nenhuma prece ao deus do sol. Tarpetta limitou-se a ver-me à janela ao nascer do sol. Eu não estava a erguer as minhas mãos numa prece. Estava a proteger os meus olhos da luz para poder calcular a posição exacta do sol. – Não me interessa saber o que estáveis a fazer. Fostes negligente com a vossa segurança e reputação. O resultado foi uma batalha entre os homens e mulheres desta cidade e a vossa presente condição de cativa nesta torre – afirmou Elliot, e a sua fúria parecia intensificar-se a cada palavra proferida. – Não vos atrevais a mencionar a vossa independência sagrada. Acabei de escalar a parede de uma torre e ameacei matar homens com os quais não tive qualquer altercação. Ainda posso ter de vir a matar alguns, tudo isto por causa da vossa maldita teimosia. – A única coisa que eu fiz foi uma visita madrugadora à torre. Estais a sugerir que devia ter previsto tudo o que aconteceu? – perguntou, gesticulando na direcção do promontório lá em baixo e para a situação dramática que se desenrolara. – Se eu achasse que alguém se daria conta ou se importaria com isso, não o teria feito. Admito que essa minha decisão agora parece muito estúpida, mas na altura não me pareceu. Não era uma desculpa propriamente dita, mas pareceu dissolver o ímpeto sombrio da sua fúria. A sua atenção e olhar caíram intensamente sobre ela, realçando ainda mais a curta distância que os separava. – Fostes bem-sucedida na vossa missão? É claro que ele tinha de perguntar. – Sim, se o facto de provar o contrário pode ser considerado uma missão bem-sucedida – respondeu e apontou para a elevada colina. – Matthias estava correcto. O sol não nasce directamente por cima daquele pico a partir deste ponto de observação ou em linha recta com esta janela. Primeiro, surge ligeiramente à direita, a sul do pico. Ela preparou-se para a troça que se seguiria ou para mais fúria devido ao facto de a sua pequena experiência ter causado tantos problemas e não ter servido sequer para provar a sua teoria. Em vez disso, ele ponderou os dados apresentados. 145

– Estas coisas não são precisas. O dia exacto do solstício varia e ainda se estão a dar os primeiros passos na análise da forma como mudanças subtis se vão acumulando ao longo do tempo em astronomia. Há cinco séculos, o sol podia muito bem surgir no cimo daquele pico nas alvoradas do solstício de Verão. Ela achou extremamente generoso da sua parte o facto de lhe arranjar desculpas e não lhe chamar tonta. Phaedra sentiu que lhe devia um pedido de desculpas mais explícito. – Não procurei criar todos estes problemas e peço desculpa por isso. Não me surpreende que estejais um pouco zangado. – Estou bastante zangado, Phaedra. Porém, estou ainda mais preocupado com a vossa segurança. Até ter isso controlado, tendes de fazer o que vos mandar, especialmente se tiver mais motivos para pegar naquela pistola. Ele avançou até à janela a ocidente e fez uma expressão de desagrado em reacção ao que viu. Ela aproximou-se e espreitou para fora. Um barco com três homens estava fundeado a cinquenta metros da torre. O sol dera início ao seu declínio rumo ao mar, mas ainda restavam algumas horas de luz. – A vossa prisão está completa – afirmou Elliot. – Temos de aguardar e ter confiança em Matthias para negociar a vossa libertação antes que cheguem mais problemas de Nápoles. Infelizmente, Tarpetta parece ser o poder dominante e Matthias conhece-o apenas superficialmente. Phaedra ajoelhou-se junto aos cestos e esvaziou-os. Dispôs em fila os odres, frutos e embrulhos de comida contra a parede. – Carmelita acha que eles se conhecem melhor do que querem admitir. Elliot encostou o ombro à parede e observou-a enquanto mexia nos cestos. – Seria muito útil se tivésseis razão, mas Matthias não tem qualquer motivo para me mentir.

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Ela ficou contente por encontrar um copo de barro por baixo da comida. Não queria passar o dia inteiro a beber através de um odre, por mais pitoresca que a experiência tivesse sido. – Até que ponto conheceis bem Matthias? – perguntou ela. Greenwood podia ter o seu destino nas mãos, mas esse não era o único motivo por detrás da pergunta. Elliot afastou-se dos raios de sol que entravam pela janela rumo às sombras frescas onde ela organizava as provisões. Sentou-se no chão com as costas encostadas às pedras e estendeu a mão para pegar num dos figos. – Venerava-o enquanto estava na universidade. Ele é um académico respeitado com duas obras publicadas. Encorajou os meus estudos e orientoume nos métodos de pesquisa utilizados para traçar novos caminhos de investigação. O interesse dele lisonjeou-me, especialmente porque ele não acalentava quaisquer motivações predatórias como alguns dos outros tutores – explicou Elliot. Deu uma mordidela no figo e, a seguir, fez um gesto na direcção do resto da comida. – Devíeis comer alguma coisa. Se daqui a três dias tivermos de nadar para salvar as nossas vidas, não ireis querer estar demasiado fraca para isso. Ela escolheu um pedaço de pão e queijo. – Não pareceis venerá-lo agora e a postura dele para convosco não é em nada semelhante à de um tutor. – Bem, já não sou mais um simples aluno e também já tenho uma obra publicada agora. – Parece-me mais do que uma amizade construída em torno dos papéis que desempenharam, era isso que eu queria dizer. Ele não parecia disposto a satisfazer a sua curiosidade e saboreou o figo lentamente. Ela concentrou-se na sua própria refeição. – O meu pai não era um homem afectuoso – afirmou despreocupadamente, como se não se tivessem passados quinze minutos desde o último comentário de Phaedra. – Imaginai um homem como o meu irmão Hayden, mas sem nenhuma das qualidades que servem de contraponto 147

à severidade de Hayden. Quando era rapaz, dei graças por a atenção dele estar tão absorvida nos meus irmãos ao ponto de o obrigar a ignorar o seu filho mais novo. Matthias Greenwood, pelo contrário, decidiu focar a sua atenção em mim. Ele dava valor às mesmas coisas do que eu, era rápido nos elogios e lento nas manifestações de desapontamento. Havia qualquer coisa no seu interesse que me levava a vê-lo como um pai, creio eu. A expressão do seu rosto ao descrever o pai não passou despercebida a Phaedra. Ela conhecia bem a reputação do anterior marquês de Easterbrook. Ele fora, sem qualquer dúvida, o tipo de pai ao qual era impossível agradar, e porventura tão duro com os seus filhos como o que se dizia ter sido em outras esferas da sua vida. No entanto, não fora a brandura intencional de Elliot que prendera a sua atenção. Uma outra emoção faiscara nos seus olhos. Ele insistira que as memórias de Richard Drury insinuavam mentiras a respeito do anterior marquês, mas ele não podia ter a certeza de que eram, de facto, mentiras. Ao observá-lo com toda a atenção a esta pouca distância, Phaedra deu-se conta que ele se perguntava se o pai fora culpado pela morte daquele oficial. Será que essa pequena suspeita se tornaria mais real, e assumiria uma força inevitável, se essa insinuação aparecesse nas páginas de um livro? Alguns cientistas acreditavam que o comportamento criminoso era hereditário, à semelhança de algumas doenças. Saber que o nosso legado incluía a capacidade de planear de forma impiedosa um assassinato podia ser tão mau quanto descobrir que o nosso sangue fora contaminado pela insanidade. – Matthias Greenwood não tem filhos – declarou Phaedra. – Vós sois o seu herdeiro intelectual e parte do seu legado profissional. Se vistes nele um pai, talvez ele tenha visto um filho em vós. Ele encolheu os ombros. – Podeis ter razão. É possível que ele me veja dessa forma, mesmo no âmbito da amizade que partilhamos agora.

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Ela suspeitava que Greenwood o via realmente dessa forma, mas também acreditava que Elliot fazia o mesmo. A forma como procediam um com o outro lembrava-lhe a amizade confortável e amor masculino revelados por pais e filhos crescidos quando uma relação próxima amadurecia. Se fosse esse o caso, Matthias Greenwood era uma pessoa importante para Elliot. Claro que era. Elliot estava aqui, não estava? Ele viera a Positano para discutir a sua nova pesquisa pese embora o facto de o aluno ter ultrapassado o professor enquanto historiador. A partilha da refeição humilde no chão de pedra catapultou-os para longe do resto do mundo. A descrição franca que Elliot fizera do pai tinha começado a abrir portas a uma intimidade mais sedutora do que aquela criada pelo prazer físico. Isto recordava-lhe o estado de espírito em que ela se encontrava na companhia dos seus amigos. – Porque estais tão curiosa acerca de Greenwood, Phaedra? Ela avaliou a familiaridade descontraída que partilhavam e ponderou a sua resposta. – Estou muito interessada nele. – Raios, ele tem idade para ser vosso pai! Ela quase se riu com o seu tom exasperado, mas a irritação que flamejava nos olhos dele conteve-a. Ele estava com ciúmes. Phaedra considerou tal reacção irremediavelmente antiquada e presunçosa, mas um tanto ou quanto enternecedora. O seu primeiro impulso não foi repreendêlo, mas soltar risadinhas. – Interpretastes-me mal, Elliot. Ele conhecia a minha mãe e foi suficientemente amável para tentar responder a umas perguntas que eu tinha a respeito de algumas coisas. – Que coisas? – A minha mãe pode ter tido um amante secreto nos seus últimos anos de vida. Ele franziu o sobrolho. 149

– Richard Drury… – Não no fim. Houve outro. – E Matthias sabia quem era? Ele vivia em Cambridge na altura, e embora visitasse Londres por vezes… – Ele é um homem perspicaz. Não ficou surpreendido quando sugeri que pode ter existido outro homem na vida da minha mãe. Este amante também negociava antiguidades e Matthias foi capaz de me dizer os nomes de alguns homens que correspondiam a essa descrição e faziam parte do círculo da minha mãe. Muitas das suas amigas mais próximas tentaram dissuadir-me desta hipótese, negan-do sempre. Suspeito que não quisessem ver alterada a imagem que o mundo tem de Artemis Blair. Mas ele foi sincero comigo e estou-lhe grata por isso. Ele reflectiu sobre o que ela dissera e parecia tão curioso quanto céptico. – Por que motivo quisestes saber nomes, Phaedra? É possível que esse amante não tenha existido, se as amigas dela o negaram. – Acredito que tenha existido por causa de uma passagem que o meu pai escreveu nas suas memórias. Este homem, fosse ele quem fosse, era um criminoso. A expressão de Elliot ensombrou-se. – Outra referência sem um nome? Outro trecho de má-língua que vai destruir uma reputação? – perguntou e ergueu-se bruscamente. Deu umas passadas em frente, fixou o olhar na parede e, de seguida, virou o rosto para ela. – Seria melhor que o queimásseis, ou que o fechásseis a sete chaves para sempre. – Isso pode poupar a vossa família, mas não vai poupar o último amante da minha mãe. – Porque não? Ela voltou a colocar o queijo no seu embrulho húmido.

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– Porque, mesmo que as memórias não sejam publicadas, irei efectuar as devidas anotações a esta parte a título pessoal e vou ajustar contas com este homem à minha maneira. O seu mau humor não se atenuou e o sobrolho franzido não esmoreceu, mas uma curiosidade cautelosa assomou nos seus olhos. – Falais com toda a calma, mas com uma determinação implacável. O que escreveu o vosso pai sobre este homem para tomardes tão a peito a sua identificação? Ela levantou-se com a ajuda das mãos e sacudiu o tecido negro da saia. – Ele escreveu que este homem a seduziu para de seguida a trair de uma forma tão desonrosa que a conduziu à morte. Tenho de descobrir se isso é verdade. – Quando muito, é ambíguo. – Não é assim tão ambíguo. Havia mais. Não estou completamente louca por pensar que conseguirei identificar este homem. Só meio louca. Ela avançou até ao meio da divisão e olhou em volta. – Se tivermos de ficar aqui dias a fio, devíamos tornar este local habitável – declarou e virou um dos cestos ao contrário. – Isto pode servir de banco se conseguirdes arrancar a asa. Ele pegou na faca que viera junto com a comida. Pousou o cesto nas pedras do peitoril da janela e começou a serrar. – Não devíeis dar muito crédito àquilo que o vosso pai escreveu sobre a vossa mãe. Ele era um amante repudiado e isso pode perverter o discernimento de um homem. Ela pegou no cobertor que cobria a palha no chão e inspeccionou-o para ver se estava limpo. De seguida, reparou nuns ganchos de metal cravados na abóbada em pedra sobre a sua cabeça. – O meu pai sabia aquilo que tinha e não tinha com minha mãe. Ele não escreveu com rancor, mas como um homem que tinha visto a mulher que amava a ser maltratada.

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Elliot continuou a serrar, mas a sua expressão determinada não se dirigia à asa do cesto. – Ponderai bem as vossas anotações às palavras dele a esse respeito, Phaedra. Não acuseis o homem errado ou aponteis o dedo a um homem bom. – Se ele for um homem bom, não terá nada a recear de mim ou das memórias. Nenhum homem bom terá. A asa do cesto cedeu nesse momento, quebrando sob a pressão que ele aplicava na faca. Um estalido seco ressoou nas abóbadas de pedra, como se o mau humor de Elliot tivesse igualmente atingido o ponto de ruptura com aquela última frase. * As horas seguintes foram passadas de forma mais aprazível, falando de coisas mais agradáveis. Alexia, a amiga de Phaedra, havia-se casado recentemente com Hayden, o irmão de Elliot, e os dois fizeram especulações em torno dessa união, e daquilo que tinha e não tinha contribuído para esse desfecho. A troca de impressões aligeirou o ambiente forjado pela conversa anterior. Elliot não a conseguia tirar da cabeça, todavia. O tom e a expressão dela quando falara do amante que traíra a mãe não lhe tinham passado despercebidos. Phaedra não era a turista curiosa que afirmara ser. Ela era uma mulher com uma missão declarada, que, por alguma razão, a levara a Nápoles. Fora por causa disso que o seu estado de espírito melhorara em relação a este atraso na visita a Pompeia. A sua investigação podia muito bem até ter estado na origem das suas amizades com Marsilio e Pietro. Tanto quanto ele sabia, cada um dos seus actos e palavras, desde aquele dia em que lhe falara do jardim sob a sua janela, tinham feito parte do seu plano para saber mais acerca dos últimos meses de vida da mãe e do homem que ela culpava pelo seu declínio e morte. Ela deu instruções de forma a organizar a residência humilde de ambos enquanto conversavam. A pedido dela, ele conseguiu atar a corda a um dos 152

ganchos da abóbada e prender a outra ponta ao chão de pedra com os seus ganchos em metal. Ela dispôs o cobertor velho por cima dela de forma a criar um canto privado no qual colocou o bacio que os criados de Matthias haviam acrescentado, sensatamente, a um dos cestos. O crepúsculo começava a instalar-se quando deram a tarefa por concluída. Com o cobertor novo por cima da palha e o cesto virado ao contrário a fazer as vezes de um banco, Phaedra tinha criado um lar rústico, mas funcional. Para uma única pessoa. No nível imediatamente inferior desta divisão mais elevada da torre, existia um espaço com um tecto baixo. Ele suspeitava que se teria de contentar com isso a não ser que conseguisse granjear um convite da rainha para partilhar o seu santuário. – Tendes um talento especial para a organização doméstica, Phaedra. Isso deve-se a uma existência sem criados? – Creio que aprendi a desenvencilhar-me pois a minha mãe tinha pouca apetência para isso. Isso veio a tornar-se útil porque precisei destas aptidões quando fui desalojada para tomar conta de mim própria. Ela levou o odre e o copo de barro para junto da janela que dava para a cidade. Após uns salpicos errantes, ela encheu o copo com a corrente sinuosa de líquido que saía do odre e ofereceu-lho. Ele juntou-se a ela na janela e bebeu-o. Para lá da sombra extensa da torre, os homens de Tarpetta tinham montado um acampamento à entrada do promontório. Com base nos sons distantes das suas gargalhadas, pareciam descontraídos e de boa disposição. – Porque é que ficastes por vossa conta? Ela era uma visão encantadora rodeada pela luz prateada do crepúsculo que entrava pela janela. Atrás deles, a abertura oposta recebia as cores flamejantes do sol na sua derradeira glória. Esses raios iluminavam a nuca de Phaedra, transformando as suas madeixas de cabelo em chamas que contrastavam com a transparência fria da sua pele alva enquanto olhava na direcção contrária.

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– A minha mãe acreditava que as mulheres aprendem a ficar dependentes com os pais. Somos ensinadas a temer a independência e, de seguida, levadas a rejeitá-la mesmo quando esta é colocada ao nosso alcance. Dessa forma, quando recebi um legado de seu irmão, ela encorajou-me a sair da casa dela e viver sozinha para não correr o risco de me acomodar à minha dependência adulta dela. Phaedra interrompeu-se enquanto se esticava calmamente para conseguir ver o terreno mais próximo da torre. Outro pequeno acampamento fora ali montado, formado por cinco mulheres idosas e Carmelita Messina. – Eu tinha dezasseis anos – acrescentou, ainda distraída com a cena que via lá em baixo. A atenção que concentrara em ambos os acampamentos não lhe permitiu ver a reacção de Elliot. – Não passáveis de uma criança – replicou, tentando esconder o tom condenatório das suas palavras. Phaedra não iria gostar de ouvir críticas dirigidas à sua mãe e ele não queria dar início a uma discussão entre ambos agora. Ela não desviou o olhar do promontório. – Sim, não passava de uma criança. Porém, muitas raparigas são enviadas para o casamento com aquela idade. Suspeito que esse seja um destino bem mais aterrador. São demasiado jovens para os planos dos pais, assim como eu era demasiado jovem para os planos da minha mãe. Ela não se desligou por completo da minha vida, por isso não se tratou de uma rejeição dos seus deveres para co-migo. Ajudou-me a contratar uma governanta para que eu não vivesse sozinha nos primeiros anos. Visitava-a amiúde e víamo-nos quase tanto como quando eu vivia debaixo do seu tecto. Nas suas palavras, esta situação tornava-se quase normal e sensata. Ele não conseguia conceber a imagem de Phaedra aos dezasseis anos na sua própria casa, sem qualquer protecção ou supervisão excepto a fornecida por uma serviçal. A sua prima Caroline, que debutara esta temporada, era tão

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infantil que merecia ser fechada a sete chaves em casa durante os próximos dez anos. Era óbvio que Phaedra Blair provavelmente não fora tão infantil nessa idade, nem tão inocente a respeito do mundo em seu redor. Artemis criara a sua filha para trilhar sozinha e fazer o seu próprio percurso. Mesmo assim, enfurecia-o imaginar isso. Aquela mulher não devia ter utilizado a sua própria filha como uma experiência para provar que as suas ideias radicais eram dignas de mérito. – Na altura, eu não me importei de sair da sua casa e as coisas tomaram o curso que a minha mãe esperava. Quando uma mulher prova esta liberdade, nunca mais abrirá mão dela. Porém, quando ela morreu… senti alguma raiva. Desejei ardentemente que ela tivesse esperado para eu poder ter passado aqueles dois últimos anos com ela. É claro que ela não podia prever que o seu tempo fosse tão curto. – Não consigo imaginar a independência que descreveis. Eu sou um homem e mesmo assim a vida que levo não é por sombras tão singular como a vossa. – Não tem qualquer importância o facto de ainda residirdes na casa imponente de Easterbrook. Sendo um homem, o vosso sexo é sinónimo de liberdade. – Não me referia à lei, a costumes ou a finanças, mas à forma de vida. Eu não estou sozinho ou livre de terceiros. Os meus irmãos estão constantemente presentes na minha vida e existem outros familiares cujos laços nos unem. Eu sou deles e eles são meus. Mesmo se o ódio me vier a separar dos meus irmãos, os fardos da vida são partilhados por todos. O seu rosto adquiriu uma expressão melancolicamente bela. – Eu gostava de ter tido uma irmã ou um irmão. Teriam sido bem recebidos, especialmente agora. Agora que ela estava completamente sozinha no mundo, queria ela dizer. Ela escolhera igualmente um caminho que a iria deixar eternamente sozinha, a não ser que, tal como sua mãe, tivesse uma criança ilegítima. Ele apercebeu-se de que ela compreendia plenamente o que estava a sacrificar. 155

Ela não menosprezara o seu valor. Pesara isso tudo, talvez não aos dezasseis anos, mas depois, quan-do amadurecera. Ele não era da opinião de que o prémio era merecedor do preço a pagar, mas não podia deixar de admirar a sua coragem. Ela parecia um pouco triste. Ele sentiu-se mal por tê-la forçado a enfrentar a sua solidão. – Espero que os vossos amigos vos ajudem a substituir a família que não tendes. Um brilho irreverente iluminou os seus olhos. O sentido de humor e a boa disposição ressurgiram das profundezas dos seus pensamentos. – De certa forma, mas não constituem a família que me descrevestes agora. Alguns são como irmãs e irmãos, e alguns chegaram mesmo a ser como o mais benevolente dos maridos, mas os laços não são permanentes. Quando envelhecer, é provável que me pergunte se fui abençoada com mais independência do que alguém desejaria ter. O que significava que já o fazia neste momento. A referência indirecta aos seus amantes alterou o ambiente entre ambos. Ele não conseguia estar tão perto de Phaedra com esta luz sem pensar em fazer amor com ela. A partir do momento em que subira aquelas escadas, algumas horas antes, começara a sentir as alfinetadas de imagens e vontades sugestivas. Essa estimulação latente fervilhou com mais intensidade com as suas palavras. A forma como ela o encarava parecia-lhe colocar um desafio. De repente, o desejo enlaçava-os com um abraço de ferro. Ela não fez qualquer esforço para contrariar o seu poder. Quase sem dar conta, o corpo dele ficara hirto com a tensão. Era a primeira vez na sua vida que se cruzava com uma mulher que reconhecia com tanta ousadia a excitação sensual que pode existir antes de um beijo ou toque. Se fosse outra mulher qualquer, ele agiria em conformidade, tal como tinha feito com ela no passado. Todavia, as suas últimas palavras naquela noite na varanda ainda estavam bem presentes. Se ela cumprisse a sua ameaça neste momento, ele podia não conseguir reunir a honra necessária para permitir que ela o rejeitasse. 156

Ela provocava o que havia de pior no seu sangue, uma propensão herdada do seu pai. Ele queria tocá-la, abraçá-la, acariciá-la e devorá-la. A tentação de utilizar o prazer para coagi-la de forma a submeter-se ao seu próprio desejo ardente e a ele, ameaçou vingar sobre o pouco bom senso que lhe restara. Elliot afastou-se dela. Agarrou na pistola, num dos cobertores e, sem se deter, começou a descer as escadas. A alternativa era correr o risco de se comportar como um patife da pior espécie ou transformar-se numa daquelas abelhas deploráveis, a zumbir e a implorar à volta da rainha pelos seus favores. Phaedra viu o sol a mergulhar no mar. Cores de tom laranja e púrpura continuaram a tingir a água em raios sedosos enquanto a escuridão se acercava lentamente. Lá em baixo no barco, os homens acenaram-lhe e gritaram saudações amigáveis. Era provável que tivessem igualmente na sua posse alguns odres de vinho, dando origem a uma disposição mais amistosa. Ela encontrou uma grande vela que fora enviada junto com as provisões e acendeu-a. Pousou-a num canto onde a brisa nocturna não a apagaria. Ouviu Elliot a mexer-se lá em baixo, a tentar porventura encontrar algum conforto no chão deitado em cima daquele cobertor. O seu corpo ainda não se acalmara totalmente desde que ele a deixara sozinha e os seus pensamentos tão-pouco se tinham afastado para muito longe dos últimos minutos que haviam passado juntos. Palpitações cálidas teimavam em continuar a latejar, exigindo a sua atenção. Por norma, ela só tinha de lutar contra esse tipo de sensações quando Elliot estava próximo, mas parecia que o seu corpo sabia que ele estava suficientemente perto e decidira não lhe dar descanso. Os seios continuavam tensos e sensíveis, e os seus mamilos reagiam a todo e qualquer movimento quando o tecido do vestido roçava neles. A última conversa que tinham tido desarmara-a. Neste momen-to, era impossível deixar de o ver sob uma nova luz, mais calorosa. Ele compreendera mais do que ela própria havia compreendido. Tão-pouco se comprazera com isso, optando por expressar uma preocupação genuína pelo lado menos perfeito da vida que ela vivia. 157

Ela mentira um pouco para poupar Artemis à censura deste homem, mas, tendo em conta as reacções dele, fora uma mentira desnecessária. A verdade era que Artemis fora correcta a respeito das suas crenças, mas nem sempre o fora nos seus métodos. A sua emancipação aos dezasseis anos fora devastadora e assustadora, muito mais do que ela lhe havia admitido há pouco. A sensação fora a de que a mãe a tinha atirado borda fora para um imenso ocea-no, na esperança de que ela aprendesse a nadar sozinha. Ela perdoara à mãe esse erro de cálculo há anos, mas duvidava que outros o conseguissem fazer se tomassem conhecimento daquele ano vago tão repleto de grandes erros. A verdade seria uma outra prova para o mundo de que Artemis Blair não fora uma boa mãe, ou sequer uma mulher normal. Elliot já não fazia qualquer som lá em baixo, mas ela podia jurar que conseguia ouvi-lo a respirar. Era improvável que estivesse a dormir tão cedo. Ela sentia-o. Phaedra andou de um lado para o outro na divisão, sem fazer barulho, tentando obter algum tipo de alívio em relação à forma como o seu corpo a atormentava. Ela tentou assimilar a forma como o desejo havia deixado agora de ser apenas físico, para se transformar igualmente numa ânsia de explorar a proximidade que sentira hoje com ele à medida que partilhavam perigo e confidências. Ela pousou as mãos nos seios. A sensação acumulou-se, aumentou e desceu pelo seu corpo. Ela fechou os olhos para tentar aquietá-la e recordouse das lições da mãe acerca do desejo.

O prazer carnal é uma necessidade elementar tanto para a mulher como para o homem. Não negueis os vossos desejos, mas tende cuidado com a vossa escolha de parceiro. A maior parte dos homens são, na sua essência, conquistadores. Procurai os poucos iluminados que estão acima desta maldição primitiva. Se escolherdes tomar o vosso prazer com um conquistador, certificai-vos de que cedeis somente o vosso corpo, e apenas temporariamente. E nunca, jamais sucumbais à ilusão de que podeis mudar esse tipo de homem. Phaedra pensou no homem que estava lá em baixo. Ele deixara-a sozinha, pese embora o facto de esta divisão estar saturada do desejo gritante que sentiam um pelo outro. Ele podia ser um dos conquistadores, mas não 158

era estúpido. Ele compreenderia que ela não cederia nada que não quisesse ceder. Ela assegurar-se-ia de que essa parte ficava clara como água.

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Capítulo 11 E

lliot instalou-se para uma noite cuja única companhia

seria a dos seus próprios pensamentos. Com um pouco de sorte, conseguiria parar de imaginar a mulher que estava no cimo das escadas dentro em breve. Ele forçou a mente a voltar-se para dentro, para o mundo das histórias que escrevia. Não precisava dos seus papéis para viajar até lá. As notas e esboços preliminares desempenhavam a função de meros registos, não de suportes de memória. A informação existia na sua cabeça, acessível a qualquer altura. Elliot refugiava-se nesse mundo em muitas ocasiões sociais para gozar de breves períodos de alívio se as conversas o entediavam. Os seus irmãos, Christian e Hayden, possuíam câmaras secretas semelhantes nas suas cabeças. Quando se aventuravam no seu interior, fechavam as portas atrás delas e perdiam o contacto com a realidade. Apenas Elliot fora abençoado com a capacidade de entrar e sair quando queria, como se essa porta se mantivesse sempre entreaberta. A ligação ao mundo real estava sempre ao seu alcance. Neste momento, essa dádiva não era tão bem-vinda como habitualmente. O mundo que forçava ilegitimamente a sua entrada consistia numa frustração física que se recusava a acalmar. Especulações a respeito dos movimentos acima da sua cabeça intrometiam-se incessantemente. O lado

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pior do sangue que lhe corria nas veias calculou o custo de honra e orgulho de tomar primeiro e ressarcir depois o mal causado. De uma maneira ou outra, conseguiu manter grande parte disto à porta, não permitindo a sua interferência completa, concentrando-se em sintetizar a informação de práticas funerárias recolhida em antigos relatos romanos. – Elliot. Ele abriu os olhos. Todos os seus sentidos ficaram alerta. Ele ouviu-a tão claramente como se ela estivesse a poucos passos de distância. As paredes e degraus em pedra transportaram a sua voz até si. Ela nem sequer precisou de elevar o tom de voz. Phaedra não voltou a falar. Limitou-se a partir do princípio de que ele a tinha ouvido. Ou talvez soubesse que ele viria ao seu encontro mesmo se ela apenas o chamasse nos seus pensamentos. Provavelmente só precisava de ajuda com a vela. Ou talvez tenha visto movimento de uma das janelas e antecipasse algum tipo de problemas por parte dos seus carcereiros. Ele podia elevar a voz e perguntar-lhe, mas não o faria, mesmo sabendo que virar-lhe novamente as costas seria quase impossível. Confiando que Phaedra era demasiado inteligente para brincar com o fogo, ele subiu as escadas. Luzes ténues e sombras escuras dançavam por entre as pedras das paredes e abóbadas da divisão superior. O cobertor suspenso ocultava um dos cantos com o seu manto escuro. Uma grande vela solitária refulgia suavemente e a sua chama farta fundia clarões dourados com os clarões mais crus da luz do luar. Este conjunto de luz difusa agrupava-se e intensificava-se num único lugar. Uma estátua pálida absorvia-a, acentuando a sua exibição sensual de cobre rubro e porcelana branca. Phaedra estava ajoelhada na enxerga de palha, sentada sobre os calcanhares. Estava de frente para as escadas e para ele. Ele es-tacou quando a viu, momentaneamente aturdido pela sua beleza e audácia. 161

Ela estava nua. As ondas do seu cabelo caíam em cascata ao longo da pele despida. Pareciam tiras de um tecido sedoso que deixavam entrever ombros cremosos, braços macios, seios redondos e ancas curvilíneas. Ela deixou-o olhar um bom bocado, reconhecendo com o seu próprio observar a forma como a tempestade se erguia dentro dele, admitindo com os olhos que o desejo era igualmente partilhado. Ela ergueu o braço e puxou o cabelo para trás, expondo completamente o corpo. Os seus seios redondos elevaram-se, com os mamilos rosa escuros erectos e duros. – Podemos partilhar prazer esta noite, se quiserdes – declarou. Ele desembaraçou-se do casaco e caminhou até junto dela. – Se eu quiser? Eu quero possuir-vos desde a primeira vez que vos vi. Ela descontraiu o corpo e estirou a sua beleza nua aos pés dele, observando-o enquanto ele despia a camisa. – Não vai ser bem assim que as coisas se irão passar. Vamos possuir-nos um ao outro. – Como queirais. Os termos desta rendição já me são completamente indiferentes. Tudo lhe era completamente indiferente excepto o desejo cada vez mais agudo e premente a cada instante que passava. Ele caiu de joelhos ao seu lado. – Isto não se trata de uma rendição, Elliot. É uma trégua. Uma noite em que desfrutamos da nossa amizade – replicou Phaedra, soerguendo-se para ajudá-lo a desabotoar os botões das calças. As mãos dela tornaram a sua excitação selvática. Ele olhou para baixo, para aquele seu corpo nu, tão vulnerável e receptivo. Imagens invadiram-lhe a cabeça e ímpetos urgentes incendiaram-lhe o sangue. Se ela pensava que isto tinha alguma coisa a ver com amizade, ela não conhecia muito bem os homens. – Sem dúvida, Phaedra. Claro que sim.

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* Ele não falara a sério. A alma de Phaedra sentia-o, mas, neste momento, ela não queria pensar nisso. Ele era sensual e belo. Mesmo de joelhos, parecia alto. O seu torso e ombros nus erguiam-se acima dela e da enxerga de palha, fazendo-a sentir-se pequena e… vulnerável. Essa sensação era nova. Ela nunca a experimentara antes de conhecer este homem. Não era desagradável. Ela permitiu-se gozar o prazer que suscitava porque sabia que ele não representava qualquer perigo real. A luz dava um tom de bronze à pele dele e desenhava linhas escuras ao longo dos traços dos músculos. Não havia nada suave à vista. Nem no corpo nem no rosto. A paixão tornava os traços dos Rothwell ainda mais severos até mesmo no mais afável dos seus filhos. O cabelo escuro, revolto e desalinhado pelas aventuras do dia deixara algumas mechas soltas a tocar ao de leve nas sobrancelhas e rosto. Os olhos transformaram-se em cristais negros quando ela se soergueu para o ajudar a despir. As mãos de Elliot descaíram para os lados, deixando as dela terminar a tarefa. Ele limitou-se a olhar para baixo, porventura a desafiá-la a continuar, a testá-la para ver se iria voltar atrás na ousadia. Ela continuou lentamente, sem afastar o olhar dos olhos dele. O seu corpo foi ateado por sensações maravilhosas. O doce formigueiro que sentia era mais intenso porque ela sabia o que estava para vir. A expectativa interpôs-se entre ambos de forma tão espantosa que se transformou num dos melhores prazeres que ela alguma vez experimentara. Com a tarefa concluída, ela fez subir a palma da mão até à barriga dele, saboreando o toque da sua pele, a combinação masculina de uma superfície suave e um suporte duro. Ela adorava a forma como o desejo intensificava todos os sentidos, incluindo o intuitivo que lhe dizia o quanto ele gostava daquele toque e como o resto da realidade estava igualmente a desaparecer para ele. Quando não conseguiu avançar mais, fez a mão deslizar para baixo novamente até atingir a peça de roupa interior folgada. Com carícias lentas, 163

ela puxou-a habilmente para baixo, libertando-o até o tecido se deter nos seus joelhos. As pontas dos seus dedos familiarizaram-se com o corpo, centímetro a centímetro. Ela fê-las deslizar e pressionou-as acima da musculatura firme das suas ancas e coxas. Com um toque leve como uma pena, ela percorreu toda a extensão da sua erecção até à extremidade e circulou suavemente, para depois a acariciar com mais agressividade. Ele tentou refrear o que isso lhe fazia, mas ela conseguia ver a fúria sensual a assumir o controlo. Esta fazia com que todo ele ficasse mais duro. O seu rosto e o seu olhar, o seu corpo inteiro, ficaram ainda mais tensos. – Correis o sério risco de serdes tomada sem qualquer cortesia ou cerimónia, Phaedra. Ela ponderou a ameaça e a excitação física do seu próprio corpo. – Não me importo. Estou mais do que pronta para isso. Ele juntou-se a ela no cobertor e libertou-se do resto das suas roupas. De seguida, lançou o seu corpo nu para cima do dela, apoian-do-se nos antebraços, que posicionou lado a lado com os ombros dela. Um beijo. Um beijo profundo, íntimo, tão lento e sedutor que uma ânsia doce e estranha conquistou a impaciência dela. Ela afastou as pernas para que ele se encaixasse melhor nela, convidando-o instintivamente a unirse a ela já para que o resto dessa noite fosse tão tocante como esse momento. Ele afastou o rosto do dela para a fitar. – Sois uma mulher muito generosa. – Não se trata de uma questão de generosidade. Se uma mulher é honesta nestes prazeres, ela só tem a ganhar. – Essa é uma perspectiva admirável e democrática. Mas receio que não estejais a ser tão honesta como professais e convidais-me a ser um mau amante por causa disso. – Eu assumi a minha condição carnal da forma mais honesta possível. De forma tão honesta que este atraso a enlouquecia. Ela mexeu um pouco as ancas para o encorajar.

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A resposta dele foi superficial, subtil e devastadora. Ele fez pressão, mas não a suficiente. Ela sentiu-o ali em baixo, mal a tocando, numa provocação horrível e maravilhosa. Ele encostou os lábios ao seu pescoço e ombros, beijando-os. – Dissestes que estáveis mais do que pronta – afirmou, ao mesmo tempo que a estimulava. – Eu sei que isso não é verdade, mas talvez as vossas palavras sejam fruto da ignorância. A indignação trespassou o estado de abandono provocado pelas pulsações maravilhosas do seu sangue. – Eu não sou ignorante. Pensava que isso era óbvio. Ele posicionou o tronco de lado para a poder acariciar e observou as pontas dos seus dedos a percorrer suavemente o contorno da base e protuberância do seio, à semelhança da forma como as dela se tinham movimentado há pouco sobre a anca e coxas masculinas. – Uma mulher mais do que pronta não está assim tão senhora de si. Não estais nem por sombras tão pronta como podeis estar. Se não sois ignorante, sabeis isso. Mas talvez temais o abandono do prazer. Ele friccionou o mamilo. Um tremor profundo abalou-a, estendendose desde o maxilar até aos dedos dos pés. O seu corpo ansiava por o puxar para dentro dela para conseguir fugir à tortura sensual, por mais deliciosa que esta fosse. Ele tocou no seio mais intencionalmente, esfregando a ponta, fazendo o tremor repetir-se de modo deliberado com uma intensidade crescente. Ela dera início a esta sedução com confiança e ousadia. Agora, esta onda de vulnerabilidade tentadora arrastava para bem longe o seu firme autodomínio. Ela não conseguia resistir à corrente. Ele pareceu pressentir as suas tentativas e afastou a mão do corpo dela, como se estivesse a anunciar que ele, e não ela, decidiria quando ela estaria pronta. Esticado ao seu lado, com o torso erguido apoiado num único braço tenso, ele acariciou-a com gestos longos e seguros, levando o toque possessivo a toda a extensão da sua pele e membros. 165

Os seios ansiavam dolorosamente pelo regresso da sua mão. Os outros prazeres e excitações que ele incitava exacerbaram essa sensação. A frustração conduzia-a a passos largos para a loucura. Ela nem sequer o podia abraçar enquanto ele estivesse soerguido sobre ela. A sua posição forçava-a a ficar deitada, aberta e submissa ao seu olhar e mão diabólica. Ela não podia abraçá-lo, mas podia tocá-lo. Ele não estava todo fora do seu alcance. Ela procurou a parte interna da sua coxa com a mão direita. Acariciou-o um pouco acima e fez tudo para não se afogar no prazer sozinha. Ele reagiu como ela esperava, da forma que a sua essência clamava. Acariciou-lhe os seios tão completa e perfeitamente que a insanidade ameaçou tomar conta do seu espírito. O prazer insuportável agravou-se deliciosamente e a avidez por mais ocupou toda a sua consciência. Ele baixou a cabeça para poder pousar a boca num dos seios. Uma nova sensação sobrepôs-se às restantes. Tão doce, intensa e poderosa que dissolveu todo o contacto que ela ainda tinha com a realidade. Agarrou-lhe os ombros num abraço impetuoso para não vaguear sozinha à deriva das sensações. Percepções vagas entraram no lugar escuro e concentrado em que a sua mente se tornara. Sons ecoaram as súplicas nos seus pensamentos e as necessidades que a submergiam. Um abraço de ferro e beijos violentos arrastaram-na mais profundamente rumo à sensação pura. Um novo toque. Um toque bem-vindo e temido e tão necessário que ela pensou que ia desmaiar de alívio. A sua consciência soltou um grito. Ela afastou um pouco mais as pernas para ele não parar. Arrepios profundos concentraram-se lá e disseminaram-se, prolongando a tortura, provocando nela o desejo de implorar por algum alívio. De seguida, ela sentiu todo o corpo dele encaixado entre as suas coxas da mesma forma como isto começara, pressionando ligeiramente, daquela forma exasperante e incompleta. Ele beijou-a com uma autoridade feroz enquanto entrava dentro dela, abafando o seu gemido de alívio. As suas investidas firmes, profundas e completas levaram-na à plena satisfação. A explosão pungente de prazer inundou-a de paz e de sensações

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perfeitas. Ela deixou-se flutuar nelas, extasiada pela violência do clímax e o carácter físico do êxtase. Phaedra emergiu lentamente da escuridão abençoada. Os seus braços sentiram de novo os ombros que abraçava, e as pernas as ancas que rodeavam. Ele continuava duro e completo dentro de si. Ela procurou os olhos dele entre os fios de cabelo transpirados, olhos que ainda estavam acesos e duros com a tensão sensual. – Pareceis plenamente satisfeita, Phaedra. Tão plenamente satisfeita que ela pensou que nunca mais poderia voltar a sentir-se insatisfeita. – Podeis ter a certeza que sim. Ele moveu-se lentamente, provocando uma pressão demorada numa pele ainda intensamente sensível no rescaldo do clímax. – Acho que nunca conheci uma mulher tão decidida a tomar o seu próprio prazer. Elliot assentou um beijo firme nos seus lábios. Nas profundezas do seu ser, a satisfação esmoreceu. Necessidades novas vibraram, subtil mas distintamente. Ele fê-lo acontecer novamente. Elliot fitava-a, demasiado se-nhor de si, demasiado seguro do que estava a fazer com estas investidas lentas e profundas. – Não acredito que alguma vez tenha sido tão absolutamente possuído por uma mulher. – Não me culpeis por não terdes partilhado a satisfação. Por norma, nestas coisas existe uma unidade entre ambos. – Duvido que alguma vez tenha existido alguma unidade convosco. Os vossos amigos encontram o seu próprio prazer enquanto a ajudam a procurar o vosso, mas isso é diferente. Ela divisou um insulto nas suas observações tranquilas. Se ela não estivesse tão consciente do poder masculino que exsudava dele, se os arrepios 167

de uma nova excitação não a estivessem a distrair, ela poderia ter encontrado as palavras para o castigar pelo seu atrevimento. Contudo, a satisfação que preenchia o seu corpo estava a esbater-se rapidamente. Necessidades profundas e ressonantes despertaram, à mistura com uma confusão e um desespero avassaladores. A ausência de consciência começou a instalar-se novamente, mas permaneceu insuportavelmente fora de alcance. Ela continuou demasiado presente no mundo, demasiado ciente do homem que estava a demorar demasiado tempo, demasiado consciente do facto de que ele também não desviava o olhar dela. Ela moveu as ancas, encorajando-o continuar. Mais depressa. Ele acariciou-lhe a anca direita com uma mão e pressionou-a, impedindo-a. – Dissestes que nos iríamos possuir um ao outro e eu quero possuir-vos lentamente. – Foi muito indelicado da vossa parte não ter terminado ao mesmo tempo que eu. Ela nem sequer sabia que um homem podia controlar estas questões até este ponto. Em resposta, obteve apenas um leve sorriso. A mão dele abandonou a sua anca. Ela pensou que ele havia finalmente cedido. Em vez disso, ele rodou o braço para trás e libertou a anca do abraço firme da perna de Phaedra. A outra perna foi igualmente desprendida e uniu as suas duas coxas sob ele. Quando ele se moveu dentro dela novamente, o prazer concentrouse e subiu em espiral tão bruscamente que ela arquejou. As sensações atordoaram-na. Conquistaram-na. Ela não as conseguiu negar e rendeu-se ao abandono. Mas o seu primeiro clímax fez com que este fosse diferente. Ela nunca perdeu completamente o contacto com o mundo. Phaedra conseguiu escutar os seus próprios gritos. A aura dele preencheu-a. A vulnerabilidade regressou, mas mais esbatida desta feita, ainda excitante, mas apenas vagamente assustadora.

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Ele nunca perdeu o controlo, nunca sucumbiu ao prazer. Mes-mo quando as suas investidas aceleraram e se intensificaram, mesmo quando ela estava a gritar no momento do êxtase, ela sentiu a forma como ele controlou o poder no final. Desta vez, houve uma unidade. Ela não estava sozinha na ausência de consciência. Quando muito, a predominância da presença dele intensificou-se. O alívio glorioso atravessou-a da mesma forma que um relâmpago trespassa uma árvore, mas ele permaneceu tangível através das sensações. No rescaldo do êxtase, enquanto a sua alma buscava e reunia o que sobrara do seu autodomínio, enquanto ela se esforçava por reconstituir a mulher que reconhecia, um mau pressentimento insinuou-se nos seus pensamentos. Ela sentiu-o nos seus braços, o corpo masculino a cobrir o seu. Ele estava extenuado, satisfeito e silencioso, mas distinta e estranhamente real. Ela nunca antes se sentira em desvantagem nestas coisas. Sob a sua profusa beatitude, avaliou languidamente esta nova situação. Ela tentou determinar o que significara e de que modo havia acontecido. Esta misteriosa sensação de vazio do ser seguramente desapareceria quando ele se retirasse. Com certeza que era causada apenas pela noite, a escuridão e o prazer. Ele ergueu-se com a ajuda dos antebraços, levantando o seu peso de cima dela. O seu olhar invadiu-a profundamente, e tão ardente e intensamente que ela perguntou a si mesma se ele estava a tentar gravar a sua marca na mente dela. De seguida, rodou o corpo de cima dela e deitou-se ao seu lado, junto ao seu corpo. Adormeceu pouco depois com um braço estendido sobre ela. Ele tencionava ficar ali a noite inteira. Ela nunca permitira isso aos seus amigos, mas dificilmente o podia acordar e exigir que re-gressasse ao cobertor sobre a pedra nua lá em baixo. Mas… Ela fitou as luzes ténues que bruxuleavam entre as pedras sobre ambos. Aquele último longo olhar fora emotivo e comovente, mas exigira igualmente que ela reconhecesse o poder da união entre ambos. Continha a intimidade

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profunda que ainda os vinculava e recusava-se a permitir que ela se libertasse desse vínculo. Mas houvera algo mais, algo que ela nunca vira nos olhos de um homem antes, pelo menos não quando um homem a mirava. Ela tinha acabado de fitar os olhos de um conquistador. Phaedra perguntou-se o que seria aquilo que ele erroneamente pensara ter conquistado. A porta para a sua mente continuou entreaberta. Ele ouviu-a a suspirar e balbuciar durante o sono. Amanhecia e ela ia acordar dentro em breve. Por agora, ele deixou-se desfrutar plenamente da paz, da companhia dela e da brisa fresca enquanto a sua mente acabava de pôr em ordem outras coisas. Fora acordado por um som e descobrira os vagos indícios que precediam um novo dia. Perscrutou através da luz prateada enquan-to uma nova forma, semelhante à de um cesto, se desenhava no espaço. Estava pousado no cimo das escadas. Uma das mulheres mais velhas devia ter subido para lhes trazer mais provisões. Phaedra acordou lentamente como um gatinho ronronante. Enrolou e esticou a sua elegância nua, para de seguida se virar de lado, o que lhe permitiu admirar a linha encantadora que se afundava antes de subir para a sua anca. Ela exibia uma expressão muito doce neste momento e muito mais jovem do que a sua idade sugeria. Despida da sua indumentária negra, liberta da armadura com a qual enfrentava o mundo, ela pareceu-lhe frágil. Na noite passada, tinha revelado este outro lado do seu espírito, de formas não ditas e indefinidas. A sua paixão tinha sido tão mundana como ignorante, tão confiante como intimidada. Ele pressentira a fraqueza e suavidade que ela não se atrevia a deixar o mundo ver. Ela vivia uma vida simbólica que não permitia tais contradições. Ele queria-a novamente, porque ela era belíssima de manhã e porque a Phaedra nua, despida e desarmada, o fascinava. Ele suspeitou que iria continuar a querê-la durante muito tempo. Calculou as horas e os locais, as noites e os dias, enquanto memórias dos seus abraços o tentavam. 170

Ela despertou com um sobressalto, como se tivesse escutado os seus pensamentos e caiu de costas. Através de pálpebras escassamente abertas, avaliou onde estava e quem estava consigo. Um leve rubor tingiu-lhe o pescoço e estendeu-se até aos seus bonitos seios. Os mamilos enrijeceram-se por motivos alheios à fresca brisa marítima que se fazia sentir. O seu embaraço fazia-a parecer inexperiente e insegura. Ele perguntouse que pensamentos estariam a causar o leve franzir do sobrolho que dirigia ao seu próprio corpo. A ousadia da noite passada desaparecera, sem a escuridão para deslocar os acontecimentos para um outro mundo. Ele enfiou algumas peças de roupa para ela não ter de sair do lugar onde escolhera ficar. De seguida, passou-lhe a trouxa negra do seu vestido. Ela sentou-se e enfiou-o pela cabeça. Ele sentou-se ao lado dela na enxerga de palha. Perguntou-se se ela iria falar da noite passada e o que deveria dizer quando ela o fizesse. Ela não era o tipo de mulher que estaria à espera de gratidão ou desculpas. E era mais do que certo que não pretenderia uma oferta de pagamento ou apoio. Ela não esperava rigorosamente nada da sua parte e iria interpretar mal qualquer proposta nesse sentido. – Tendes a Alexia – disse ele. – Ontem dissestes que estáveis sozinha, mas a Alexia é uma amiga leal. As palavras dela tinham ecoado na sua cabeça enquanto estava deitado ao seu lado. Tinha-se interrogado acerca das amizades dela em rapariga, se é que tinha tido alguma. Suspeitava que não existiam muitas mães dispostas a autorizar as suas filhas a manter uma amizade com a filha de Artemis Blair. Ela inclinou-se na sua direcção para lhe dar um beijo no rosto. Ele partira do princípio que a determinado ponto do dia de hoje a intimidade latente iria extinguir-se e que ela trataria a noite anterior como parte do passado. Agora, porém, ela mostrara-lhe com aquele gesto que considerava a sua preocupação, no mínimo, enternecedora. Ele aproveitou a oportunidade para enrolar um braço à sua volta. Sentado na cama de palha, com as costas contra a parede, a cabeça de uma 171

bela mulher encostada ao seu ombro e os sons e odores do mar a entrarem pelas janelas adentro, Elliot concluiu que esta não seria uma má forma de passar o dia. – Ela fez o vosso irmão prometer que autorizava a nossa amizade – declarou Phaedra. – Quando Alexia negociou aquele casamento, ela fê-lo prometer. Eu parti do princípio… Declinei o convite de casamento que me enviou e escrevi-lhe a dizer que a minha presença só iria dar origem à discórdia com o seu novo marido. Ela respondeu-me e explicou-me o que acordara com ele – acrescentou e inspirou profundamente. – Chorei quando li aquela carta. Foi a coisa mais nobre que um amigo alguma vez fez por mim. O facto de ela ter sequer pensado em mim num momento daqueles… Ainda me custa a acreditar que o vosso irmão tenha concordado com isso. Eu não sou o tipo de mulher que a maioria dos homens deseja que faça parte das relações das respectivas esposas. Uma cortesã seria mais bem-vinda do que eu nas mais ilustres salas de estar de Londres – confessou num fio de voz. Elliot suspeitou que a generosidade do irmão fazia parte de um plano mais vasto. Phaedra Blair era uma concessão fácil nas negociações que Hayden teve de levar a cabo para conseguir a mulher que desejava. Elliot não podia apresentar o caso dessa forma. – Hayden nunca foi nenhum escravo da sociedade. Ele quer que Alexia seja feliz. Ele sabe que a amizade dela convosco não encerra qualquer perigo. – Se ele acredita nisso, o amor tornou-o estúpido. Eu não levo a mal os pais e maridos que não permitem que eu seja recebida, Elliot. Se eu fosse eles e acreditasse no que eles acreditam, imporia as mesmas regras. Ele baixou o olhar até à sua nuca. O cabelo de Phaedra parecia mais dourado do que vermelho à luz cristalina da manhã. Ela não queria a compaixão dele pela sua infância solitária. Ela não esperava que o mundo mudasse de forma a adaptar-se a alguém como ela. Ela queria apenas que a deixassem em paz para viver a seu bel-prazer as suas heresias. Compreender isso juntou uma nova onda de afecto à satisfação que ele experimentava neste momento. Infelizmente, deixá-la sozinha agora seria quase impossível. 172

O chamamento de Carmelita não veio das escadas de pedra. A sua voz subiu pelas paredes exteriores da torre. Pelo menos uma das mulheres que se reuniam lá fora tinha-se apresentado sem ter sido convidada antes e agora envidavam todos os esforços para não voltar a fazê-lo. Ele levantou-se e olhou pela janela. As cinco mulheres mais velhas rodeavam, agitadas, Carmelita, falando ininterruptamente, sem arredar pé do seu posto de vigia. – Lord Elliot, o signore Greenwood aproxima-se – anunciou e apontou para a entrada do promontório e para além dos homens que acordavam para um novo dia. Greenwood estava a atravessar as docas, agora repletas de barcos de pesca. Os ruídos que se ouviam na cidade lembraram a Elliot o motivo pelo qual nenhum deles saíra para o mar. Hoje era o dia da festa de San Giovanni. Os homens deixaram Greenwood passar e este disse-lhes algo à sua passagem. Ele reparou em Elliot à janela e acenou-lhe. O seu sorriso e maneira de andar desenvolta indicavam que trazia boas notícias. Matthias fez uma grande mesura a Carmelita e às mulheres mais velhas e depois olhou para cima. – Tenho a haver agradecimentos profusos da vossa parte e de Miss Blair, Rothwell. Fui tão diplomático e brilhante que mereço uma colocação no serviço de negócios estrangeiros. – Convencestes aquele imbecil a pôr um ponto final nisto? – perguntou Carmelita. – Estabeleci um compromisso. Um compromisso de tal ordem que os serviços das senhoras não serão mais necessários no futuro. Carmelita explicou as coisas às mulheres mais velhas. Ela encontrou alguma resistência no grupo. Uma pequena discussão teve início, mas Carmelita levou a melhor sobre ela. Todas as mulheres começaram a encaminhar-se de volta para a cidade. – Vou subir e explicar tudo – anunciou Matthias e a sua cabeça mergulhou por baixo da portada. 173

Elliot virou-se para encarar Phaedra. Ela parecia igual a si própria, senhora de si, orgulhosa e invulgar. Um tecido negro cobria o corpo que ele havia possuído apenas algumas horas antes. Ela ajoelhou-se e esticou o cobertor por cima da palha, eliminando a prova mais óbvia dos acontecimentos da noite. – Devia ter cedido à tentação e ter-vos acordado mais cedo – disse ele. – Uma noite assim não devia ter terminado de forma tão abrupta. O seu pequeno sorriso parecia nervoso. – Abrupta ou lentamente, elas terminam sempre, ao fim e ao cabo. Havia muito para dizer em resposta a isso, mas as botas de Greenwood aproximavam-se da divisão. O cabelo branco de Matthias e o seu rosto sorridente assomaram e elevaram-se. Ele parecia muito satisfeito consigo próprio. – Trouxe-vos a chave da vossa prisão, Miss Blair. Infelizmente, para isto funcionar conforme o planeado, tendes de abandonar Positano imediatamente.

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Capítulo 12 –I

nundei Tarpetta de vinho durante grande parte da

noite – afirmou Matthias. – Convenci-o de que não era do seu me-lhor interesse arriscar incorrer no descontentamento do rei ao criar um escândalo internacional que envolve o irmão de um marquês inglês. – Ter-se-ia esperado que um argumento racional tivesse mais peso do que uma ameaça – replicou Phaedra, exasperada por Elliot ter mais uma vez garantido a sua liberdade. Ela devia estar grata. Depois da noite passada, ela devia considerar romântico o facto de ter sido salva por este homem. Essa reacção florescia dentro dela, mas a sua mente estava igualmente a calcular o quanto ela estaria mais uma vez em dívida para com ele. Se isto continuasse a acontecer, ele podia exigir uma compensação na forma de algo que não fosse do seu agrado. – Aceitaremos qualquer argumento que tenha sido bem-sucedido – declarou Elliot. O seu tom tinha uma mensagem implícita. Silêncio, mulher. Deixai este

assunto nas mãos dos homens. Matthias ofereceu-lhe um sorriso conciliador.

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– Miss Blair, Tarpetta é um homem por demais enamorado com o seu próprio orgulho e sentido de autoridade. O melhor argumento revelou ser aquele que sugeria que a sua linha de acção projectada iria prejudicar ambos. – Se é esse que funciona, assim seja. Eu preferia algum tipo de vindicação, mas contentar-me-ei com a segurança e a liberdade. – Quando diz que Miss Blair tem de abandonar este local sem mais demoras, qual é a pressa que isso implica? – Vamos regressar à villa, reaver a sua bagagem e embarcá-la num barco imediatamente – replicou Matthias e fez um gesto na direcção dos cestos e do cobertor. – Deixai ficar isto. Eu mandarei criados buscá-los mais tarde. Phaedra aceitou a escolta de ambos para fora da torre. Antes de descer as escadas, olhou pela última vez a divisão. Continuava a parecer humilde e doméstica, mas nem por sombras tão encantadora como no lusco-fusco e na escuridão fechada da noite passada. À luz da manhã parecia ser aquilo que era, uma morada rudimentar gerada à força pelo perigo e pelo medo e um simulacro de um lar para ela não se sentir tão desamparada. Ela suspeitava que a noite inteira não passara de uma reacção feminina ao perigo. Nunca compreendera a atracção do cavaleiro destemido, mas, por outro lado, também nunca tinha desempenhado o papel da donzela em perigo. Phaedra analisou racionalmente o que se passara. A luz clara do dia sugeria que o romance da noite havia sido um sonho a ser recordado calorosamente, mas nada mais do que isso. E, no entanto, quando ela começou a descer as escadas, Elliot pegou na sua mão num gesto que tinha tanto de cortesia como de comando, para a guiar e conduzir para fora da torre de amor de ambos. O seu coração contraiu-se em resposta ao modo gentil como ele a escoltava. O pulso acelerou com o toque. Quando passaram por uma fenda estreita na parede da caixa de escada, a luz demarcou o seu belo rosto da mesma forma que ela o recordava na noite passada. Por um momento, ela

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ficou deslumbrada, aturdida com a forma como ele conseguia alterar o ar e o espaço e invadi-la tão completamente. Cá fora, esperava-os um típico dia do pino do Verão, quente e abafado. A brisa marítima matinal esmorecera e o sol gravava a cidade em relevo com uma luz viva e sombras profundas. O promontório estava vazio, assim como as docas. – A festa está em curso – disse Matthias. – Estão todos concentrados na piazza da igreja. – Vamos contorná-la – respondeu Elliot. O seu rosto assumira novamente uma leve máscara de preocupação. Ela percebeu que ele permanecia alerta ao perigo, como um gato a avançar cuidadosamente em território desconhecido. – Certamente, mas não tereis oportunidade de ver os preparativos para a procissão. São deveras pitorescos – afirmou Matthias e conduziu-os para uma ruela que ladeava a praça. – A vossa vigilância é admirável, Rothwell, mas Miss Blair está bastante segura agora. Tarpetta compreendeu que desistir da sua acção serve muito melhor os seus interesses. Não havia rapazes com burros à vista, por isso deram início à longa subida para a villa através de ruelas vazias. Sons vindos da praça retumbavam entre as casas silenciosas. Quando atravessaram uma rua que se dirigia para sul, Phaedra avistou um lampejo negro pelo canto do olho. Nem todos os habitantes da cidade estavam na igreja. Subir a colina foi extenuante. As pernas de Phaedra ficaram doridas e, de seguida, húmidas. O sol brilhava implacavelmente sobre eles e o suor começou a humedecer o tecido do seu vestido. Elliot não parecia nem um pouco desconfortável, mas Matthias não partilhava o seu vigor. A sua respiração tornou-se ofegante. – Tenho de abrandar, Mr. Greenwood. Será que vos posso pedir para ficar comigo? Lord Elliot pode ir à frente e começar os preparativos. – Certamente que sim, Miss Blair. Pareceis um pouco pálida. Quereis parar e descansar um pouco? Conquanto a pressa seja a palavra de ordem, não temos uma pistola apontada às nossas costas. 177

– O sol está a ofuscar-me mais do que gostaria, mas estou certa de que se caminhar mais devagar, ficarei… – Que diabo… O tom exasperado de Elliot interrompeu-a. Ela desviou a sua atenção de Matthias e este desviou a sua dela. Olharam ambos em frente para ver o que tinha detido Elliot. Cinco figuras erguiam-se à sua frente na ruela. Vestidas com o negro das viúvas, e envoltas em véus muito à semelhança de árabes ou freiras, as velhas mulheres de Carmelita bloqueavam-lhes o caminho. – Sorride e continuai a caminhar – aconselhou Matthias, arvorando a sua expressão mais benevolente às mulheres. Isso podia ter funcionado se a barreira continuasse a ser constituída apenas por aquelas cinco mulheres. Infelizmente, juntaram-se-lhes outras. Phaedra reconheceu algumas das mulheres que tinha conhecido na fonte e outras que tinham feito frente aos homens. Todas elas lançavam olhares assaz reprovadores do cimo da ruela. O objecto da desaprovação do grupo era nada mais nada menos do que l’uomo magnifico, Lord Elliot Rothwell. Carmelita furou a multidão que se juntara. Os braços dela pareciam voar, enquanto gesticulava e admoestava as velhas mulheres. A réplica delas foi tão inflexível e incisiva como os olhares fulminantes que continuavam a lançar a Elliot. Matthias deu meia-volta em busca de outro caminho. – Céus – murmurou entre dentes. Phaedra olhou por cima do ombro. Um número crescente de mulheres materializara-se na ruela atrás deles. Carmelita caminhou os vinte passos que os separavam das ve-lhas mulheres e esboçou um esgar que exibia um pedido de desculpas resignado. – Temos um pequeno problema.

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– Tarpetta e Greenwood fizeram um acordo – disse Elliot. – Ex-plicailhes isso. Estas mulheres que se arriscaram para proteger Miss Blair estão agora a interferir com a sua fuga oportuna. Carmelita assentiu solenemente com a cabeça. – A questão é que o propósito delas continua a ser o de a proteger. Neste momento, receiam pela sua honra – anunciou, dirigindo um olhar sabedor a Elliot. – Elas acham que vós… Elas acham… Na verdade, elas sabem, não acham. Phaedra sentiu o rubor a subir-lhe às faces. O rosto de Elliot permaneceu impassível, mas também corou levemente. – Elas não podem saber nada – replicou Phaedra. – Phaedra Blair, o vosso isolamento naquela torre com um homem serviria por si só para vos comprometer aos olhos delas. Porém, ali a Maria levou-vos um pouco de água e pão ao amanhecer e… – explicou Carmelita e abriu os braços num gesto que dizia que tudo tinha sido visto. – Eu disse-lhe que ela devia esquecer o que tinha visto. As mulheres da cidade, porém… Cada uma delas vos vê como uma irmã agora. Lutaram por vós e não irão permitir que este sedutor leve a sua avante sem remediar a situação. – Sedutor? Escutai, eu não sou… O suspiro ruidoso de Matthias interrompeu-o. – Rothwell, meu querido rapaz, fostes desastrosamente indiscreto. Phaedra deu um passo em frente. – Eu não preciso que outras mulheres lutem por mim esta batalha em particular, Carmelita. Sou uma mulher adulta e acredito que… Deus do Céu, o que está agora o padre aqui a fazer? O desafortunado padre da batalha do dia anterior estava a ser empurrado na direcção deles através da multidão. – Creio que é a isto que costumam chamar um desenvolvimento inesperado – afirmou Elliot num tom seco.

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– Elliot, fazei alguma coisa – ciciou Phaedra, num tom que raiava o pânico. A cidade inteira parecia rodeá-los agora. Os corpos formavam um rio com um caudal lento que se estendia através das ruelas. Elliot, Phaedra, Matthias e o pobre padre formavam os destroços de um naufrágio, levados pela corrente. – O que sugeris, Phaedra? Na qualidade de cavalheiro, não me posso recusar a casar-me com uma mulher que eu comprometi. – Oh, por amor de Deus. Isto é uma coerção e recusá-la não faria de vós um patife. Nem tão-pouco me comprometestes. Não podeis estar seriamente a pensar em pactuar com isto. Ele ainda não sabia o que pensava. Só sabia que fincar o pé ali e agora podia ser um erro perigoso. A cidade estava exultante com os esponsais iminentes. Até mesmo os apoiantes mais fiéis de Tarpetta esboçavam sorrisos de satisfação. O sentimento geral, daquilo que Elliot se conseguiu aperceber, era de que a cidade achava que esta seria a melhor festa de San Giovanni de que havia memória. A cada passo que dava em frente, os olhos de Phaedra ficavam mais arregalados. – Nesse caso, eu recusar-me-ei a fazê-lo. Matthias juntou a sua cabeça à dela. – Miss Blair, acabei de passar horas a convencer o signore Tarpetta de que não sois, hum, pouco virtuosa. Se vos recusardes a casar com um homem com o qual fostes vista em, hum, disposições íntimas, todos os meus esforços podem ter sido em vão. – Eu não me irei casar, muito menos sob a ponta de uma espada. Elliot também não tinha qualquer desejo de se casar sob a ponta de uma espada, mas não considerava a igreja que se começava a desenhar lá no fundo tão alarmante como Phaedra. Embora nunca se tivesse sentido impelido a fazer uma proposta de casamento a uma mulher, ele não se opunha ao princípio do casamento como ela. É claro que a história da sua 180

família mostrara que uma má união podia dar origem a um inferno em vida, mas isso não se aplicava a esta situação. Ainda. – Isto será sequer legal? – perguntou ela a Matthias. – Nós não somos católicos. Isto não é Inglaterra. Não haverá qualquer publicação de banhos nem licença. Este género de uniões é reconhecido em casa? Afinal de contas, a própria cerimónia católica não é legítima em Inglaterra e… – Confesso que não sei responder-vos a isso com toda a certeza. Mas estou certo de que poderá ser tudo esclarecido depois. – Esclarecido depois? E se os esclarecimentos não forem do meu agrado? Falai com elas. Dizei-lhes que… – rogou Phaedra, mas a sua resposta foi interrompida por uma mudança de direcção da multidão. A ruela desembocou subitamente na praça. Os corpos reorganizaramse e afrouxaram a sua pressão, mas continuaram a formar uma parede maciça. Uma nova figura juntou-se ao pequeno núcleo no meio da multidão. O signore Tarpetta posicionou-se a coxear ao lado de Elliot. – Este é um bom desenlace para esta história – afirmou com uma aprovação pomposa. – Se ela for una sposa, haverá a lei de um homem sobre ela. Podereis talvez «autorizá-la» melhor agora. Elliot conteve a maldição que lhe veio à cabeça. A presença de Tarpetta não era acidental. Não tinha quaisquer dúvidas de que o homem ouvira a má-língua das velhas mulheres e encorajara a cidade a levar a cabo esta farsa. Matthias forçou a passagem até junto de Tarpetta e murmurou algo lentamente. Não parecia estar a fazer muitos progressos a favor da causa que peticionava. Pouco depois, voltou-se para Elliot. – Vou tratar dos preparativos para o barco de que falámos, Rothwell. A ausência de uma testemunha inglesa poderá ajudar uma futura reivindicação de que esta cerimónia não foi legítima. Elliot já estava a alinhavar essa petição na sua cabeça. Phaedra parecia uma mulher a ser conduzida para a fogueira, não para o altar. A solidariedade dele para com o seu desespero continha uma boa dose de 181

irritação. Ela estava a agir como se casar-se com Lord Elliot Rothwell fosse um destino pior do que a morte. O facto de ser um destino que nenhum dos dois escolhera, previra ou desejara era irrelevante. Ele estava a deixar-se levar para o matadouro para salvar a honra de ambos e a pele dela. Ela podia pelo menos tentar fingir algum tipo de postura graciosa para com esta situação. Matthias afastou-se furtivamente. A multidão abriu-se e deu livre passagem ao padre e aos seus cordeiros sacrificiais às portas da igreja. Phaedra estava muito pálida. O padre deu meia-volta para encarar de frente Elliot e a noiva. Um acólito saiu apressadamente da igreja com uma casula reluzente que o padre colocou. De seguida, este dirigiu-se à multidão. – O que está a dizer? – perguntou Phaedra. – Segundo percebi, está a anunciar que o casamento se vai realizar aqui e depois seguiremos para o interior da igreja assinar os documentos. – Aqui? – exclamou Phaedra, olhando para o chão, como se se estivesse a perguntar onde era esse aqui. Por um momento, ele achou que ela ia desfalecer. – Agora? – Receio que sim – replicou e tomou-lhe a mão. – Coragem, minha esposa. O gracejo devolveu alguma cor ao seu rosto. Ela parecia que lhe queria bater. O padre começou a proferir as suas orações. A multidão aquietou-se. Elliot deu-se conta instantaneamente que a primeira linha de defesa contra a validade desta cerimónia, a de que os votos seriam numa língua que Phaedra não compreendia, não seria válida. O padre estava a falar em latim e ela compreenderia todas as palavras. A sua mente lançou-se num célere debate interno. Os consentimentos de ambos seriam solicitados muito em breve. Ele olhou por cima do ombro para a turba que ouvia as palavras do padre com profunda atenção e desejou ardentemente ter algumas noções a respeito da lei canónica. 182

O padre exibia um entusiasmo crescente para com o papel que desempenhava na celebração. Elevou a voz e esta ressoou sobre as cabeças presentes na praça. Phaedra não parou de olhar em volta como uma donzela à espera do cavalo branco que transportaria o seu salvador. O padre proferiu os votos e virou-se de forma expectante para o noivo. Elliot olhou para Phaedra, que lhe implorava com os olhos para desempenhar o papel de um patife. Tarpetta tossiu levemente, chamando a atenção de Elliot. Era uma lembrança do perigo do dia anterior e dos mensageiros a caminho de Nápoles. Elliot voltou-se para Phaedra. Ele não acreditava que esta cerimónia era legítima, mas podia ser. Nesse caso, eles ficariam vinculados um ao outro para sempre. Podia-lhe ter calhado pior sorte. A ela também. Elliot proferiu as palavras de consentimento. Phaedra pareceu demorar uma eternidade a dizer as palavras. Elas ficaram presas na garganta, recusando-se a subir. Ela podia estar a selar o seu destino de uma forma que evitara conscientemente até aí. Ela podia estar a trocar uma prisão por outra. Olhou demoradamente para Elliot, incapaz de esconder o seu desespero. Ele aguardou pacientemente, com um olhar amável, mas uma expressão firme. Ela sabia a mensagem mental que ele lhe estava a enviar. A figura sinistra do signore Tarpetta rondava-os a cerca de dez passos, uma recordação física de que embora isto tudo lhe parecesse um sonho estranho, pleno de absurdo e farsa, ela ainda não estava fora de perigo nesta terra. O pânico que tentara reprimir atingiu o ponto de ebulição. E se… Ele podia… Podiam passar anos até… Ela confinou os seus pensamentos e impôs-lhes toda a força da racionalidade. É claro que isto não era um casamento legítimo. É claro que Elliot iria ajudá-la a rectificar esta situação da forma mais correcta se surgisse 183

alguma questão. Ele gostava tanto deste desfecho como ela. Uma noite de prazer não fazia um homem mudar de opinião nem transformava o seu cérebro em papas de aveia. A hesitação dela tornou-se constrangedora. Um murmúrio geral começou a levantar-se na multidão. As sobrancelhas do padre ergueram-se, como duas meias-luas apontadas à sua cabeça calva. Carmelita lançou-lhe um olhar curioso, como se estivesse a reavaliar o seu valor. Phaedra respirou fundo e proferiu os votos. Ergueram-se vivas e rebentou um pandemónio geral. O festival de San Giovanni começara da melhor forma. O padre retrocedeu uns passos e pediu à multidão para fazer os preparativos para a saída da procissão. Chamou com o dedo os recémcasados e deu meia-volta para entrar na igreja. – Ele quer que assinemos os papéis agora – explicou Elliot. Phaedra tentou manter a calma adquirida a muito custo. – Pelo menos, vamos sair de baixo deste sol. Nunca tive tanto calor na minha vida. Elliot aproximou-se um pouco mais dela. – Agora que reparo nisso, estais um pouco descorada. Receio que o sol vos tenha indisposto. Espero que não me desmaieis nos braços. No meio do tom preocupado, as suas palavras adquiriram uma inflexão intencional. Ela olhou para ele, para o padre que os aguardava à porta da igreja, e para o remanescente da multidão que ainda os circundava. Phaedra encostou a mão a uma bochecha e depois à testa. – Sinto-me muito tonta e não tenho sais comigo. Toda esta excitação e o calor… – anunciou e cambaleou um pouco. O braço de Elliot apoiou-a imediatamente. – Deixai que vos ajude a ir lá para dentro, minha querida.

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Carmelita deu um passo em frente para os acompanhar e para servir de testemunha na assinatura dos documentos. O signore Tarpetta fez o mesmo. – Não – disse-lhe Elliot. – Não revelastes ser um amigo de minha mulher – acusou-o e olhou para Carmelita. – Escolhei outra pessoa. Qualquer outra pessoa. O mal-estar começara por ser um teatro, mas Phaedra sentia-se verdadeiramente indisposta agora. Elliot conduziu-a para a escuridão fresca da igreja. Carmelita e um pescador seguiram-nos. A porta da igreja fechou-se sobre o barulho que vinha da praça. Através da luz difusa, Phaedra descortinou o padre curvado sobre o púlpito, a escrevinhar energicamente num pergaminho. Um volume grosso estava igualmente a postos. Ela não sabia nada a respeito de casamentos católicos, mas sabia o suficiente a respeito da lei inglesa. Dizer palavras era uma coisa. Assinar documentos era outra muito diferente. Se ela escrevesse o seu nome de livre vontade, esse acto condená-la-ia. Ela pressionou a palma da mão contra o peito de Elliot, deten-do-o. O fingimento deixara de ser necessário. O ar fresco da igreja favoreceu o aparecimento de gotas de suor em todo o corpo. O sangue fugiu-lhe da cabeça e das extremidades. O rosto de Elliot abeirou-se para depois retroceder rapidamente no meio da escuridão. – Ela está a fingir? – sussurrou Carmelita. – Não me parece – respondeu Elliot. Ele olhou para o corpo que segurava nos braços. Pegara nela ao colo quando ela caíra, impressionado pela sua capacidade de fingir um desmaio digno dos melhores palcos. Agora, o peso morto que suportava e a cor acinzentada de Phaedra indicavam que não se tratara de golpe de teatro. O padre correu até eles, torcendo as mãos. Elliot dirigiu-se a ele em latim. 185

– Vou levar a minha mulher para a villa para recuperar. Regressaremos esta tarde para assinar a licença e os registos. Estes dois últimos dias não tinham sido fáceis para o padre. Ele acenoulhes um gesto de despedida, parecendo aliviado. Elliot começou a caminhar ao longo da nave da igreja na direcção oposta ao portão frontal. – Mostrai-me outra saída – pediu a Carmelita. Ela caminhou apressadamente à sua frente, apontando-lhe uma pequena porta na nave lateral. Ele fez uma pequena pausa para agradecer a Carmelita por toda a sua ajuda e, de seguida, caminhou a passos largos por uma ruela deserta em direcção ao mar. Phaedra remexeu-se nos seus braços. Os olhos abriram-se. Ele deu mais alguns passos antes de ela recuperar o domínio sobre si mesma. Acto contínuo, fez uma avaliação crítica da situação. – Porque me estais a levar ao colo? – Porque desmaiastes. – Pousai-me no chão. Eu nunca desmaio. Ele deteve-se e colocou-a de pé. – Desta vez desmaiastes. Caistes redonda no chão. Ela testou a sua estabilidade. – Bem, eu nunca tinha desmaiado antes. – Isso foi porque nunca havíeis sido obrigada a casar-vos comigo antes. A ideia horrorizou-vos tanto que não conseguistes conter o choque. – Fostes vós que me dissestes para desmaiar. Pouco faltou para me ordenardes isso. – Se obedecerdes a todas as minhas ordens com a mesma precisão cuidadosa, uma vida conjugal convosco pode vir a revelar-se tolerável – replicou. Ela parecia ter recuperado. Ele ofereceu-lhe o braço. – Apoiai-vos em mim. O caminho é íngreme. Ela enfiou o braço no dele e saltitou para conseguir acompanhar as suas passadas. 186

– Nós não estamos a voltar para a villa. – Estou a contar que Greenwood tenha o barco pronto antes de a procissão se encaminhar para cá. Com alguma sorte, vamos conseguir zarpar antes que alguém se aperceba. Ela começou a andar mais depressa com a perspectiva da fuga em mente. Quando desembocaram perto das docas, avistaram Matthias à espera ao lado de um barco de pesca tripulado por quatro homens. Ele chamou-os e deu ordens à tripulação para se preparar para zarpar. – Saltai lá para dentro. Não há tempo para cerimónias nem despedidas longas. A vossa bagagem já está a bordo. Elliot ajudou Phaedra a entrar no barco e fez, ainda assim, uma pausa para se despedir. – Um dia destes, tendes de regressar a Inglaterra para uma visita. Já faz muito tempo desde a última vez que pisastes solo inglês. Matthias virou o rosto na direcção do sol abrasador. – Já estou demasiado aclimatado a esta terra, Rothwell. A humidade de Inglaterra não me seduz. Mas talvez… Quem sabe. – Escrever-vos-ei a contar-vos como é que me saí em Pompeia. – A minha carta está no meio dos vossos papéis. Enfiei-a lá para dentro – acrescentou Matthias. Enquanto Elliot subia a bordo do barco, dirigiu-se a Phaedra. – Whitmarsh envia-vos felicitações pelo vosso casamento. – Eu não estou casada. – Bem… O encolher de ombros de Matthias realçava a ambiguidade dessa afirmação. Ele fez uma mesura para se afastar. – Mr. Greenwood – disse ela. – Posso não ter a oportunidade de me cruzar convosco novamente. Aceitai os meus agradecimentos pela vossa hospitalidade e ajuda.

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– O prazer foi meu em ter a filha de Artemis Blair como minha hóspede. Tendes de me escrever e dizer-me se alguma vez solucionardes aquele pequeno mistério de que falámos. O barco flutuou para longe das docas. Phaedra e Elliot ficaram a olhar enquanto a figura de Matthias se tornava mais pequena contra o impressionante pano de fundo da profusão de telhados e ruelas íngremes de Positano. Uma vez em segurança, livre de um perigo que ela nem sequer se atrevera a considerar, o coração de Phaedra foi inundado por um alívio visceral. O braço de Elliot deslizou à volta da sua cintura. Deu um passo atrás e abraçou-a pelas costas. Ela sucumbiu à segurança e protecção oferecidas pelo manto íntimo e humano que ele formava. Deixou-se tombar contra ele e ignorou o modo como a força dele a tentava a renunciar à sua.

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Capítulo 13 P

haedra adormeceu nos braços de Elliot. Ele deitou-a num

banco de madeira longe da amurada do barco e deu instruções à tripulação para prender um toldo de lona improvisado sobre ambos para proteger a sua beleza pálida do sol alto e quente. Duas horas passaram e Phaedra absorveu por completo os seus pensamentos. Os votos que eles haviam proferido em Positano podiam ter sido as derradeiras linhas de uma ópera cómica, mas complicavam as intenções dele. Ele duvidava que ela aceitaria a responsabilidade que ele agora sentia para com ela. Independentemente do que a lei inglesa poderia decidir, ela nunca estaria de acordo quanto ao facto de ele possuir o direito de a proteger. Ela iria negar a qualquer homem a autoridade que o exercício de tais obrigações exigiam. Os olhos de Phaedra abriram-se, como se os pensamentos dele a tivessem convocado para esta batalha. Ainda aninhada contra ele, ela perscrutou o mar até distinguir a linha difusa das colinas do litoral no horizonte a este. Ela olhou de relance para o sol e calculou a sua posição. – Estamos a uma distância considerável da costa. Não deveríamos estar a chegar a Amalfi por esta altura?

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– Disse-lhes para nos levarem um pouco mais abaixo na costa para Paestum, tendo em conta que manifestastes interesse em ver os templos locais. Ela baixou os olhos enquanto considerava esta mudança de planos. – Podíeis ter-me acordado e perguntado se uma visita a Paestum me convinha. Ele não lhe tinha perguntado porque não lhe queria colocar essa escolha à consideração. Quando chegassem a Pompeia, a atenção dela seria novamente absorvida por fosse qual fosse a missão que levava secretamente a cabo. Ele próprio seria obrigado a retomar a sua incumbência quando regressassem a Nápoles, depois disso. Em breve, entrariam novamente em conflito. Ele só queria evitar essa discussão por um ou mais dias. – A vossa indisposição na igreja foi genuína. Precisais de descansar. Ela assentiu ligeiramente com a cabeça e o cabelo dela roçagou contra o seu ombro. Ele ficou contente por ela não fazer qualquer tentativa de se soltar do seu abraço. A Phaedra adormecida era uma visão encantadora. Ele passara as últimas horas a estudar os pormenores e nuances do seu rosto, a inspirar o seu perfume feminino e a cingir o seu corpo macio. Mas a Phaedra alerta e consciente interessava-o muito mais. – É claro que nós não estamos verdadeiramente casados – disse ela, como se estivessem estado a falar disso durante horas. De uma forma silenciosa, talvez tivessem estado. – Na verdade, no Reino das Duas Sicílias, creio que estamos. – Não foram assinados quaisquer documentos. – Esta é uma terra católica. Eles vêem o casamento como um sacramento, não um contrato. – Nós não somos católicos. – Isso pode fazer toda a diferença. Porém, não sei ao certo. Creio que se for legal aqui, é provável que seja legal em Inglaterra – replicou Elliot e preparou-se para a sua negação explosiva.

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Em vez disso, ela expressou uma consternação de formas tão subtis que lhe teriam passado despercebidas se o rosto dela não estivesse a centímetros do dele e o seu corpo não estivesse a ser embalado pelos seus braços. – O que este reino crê ser legal não tem qualquer importância – afirmou ela. – Iremos regressar em breve a Inglaterra onde reinam leis superiores. O que é importante é que ambos saibamos que não estamos realmente casados. O barco mudou de direcção. A sua proa estava apontada para sudeste, na direcção da costa. Ele franziu os olhos para ver melhor o porto distante e minúsculo que era o destino de ambos. – Dizei-o – exigiu ela. – Digo o quê? – Dizei que é claro que ambos sabemos que não estamos realmente casados. Ele podia dizer isso para a tranquilizar, mas não se sentia inclinado a mentir. E as ambiguidades tão-pouco o desconcertavam como seria de esperar. Ele podia protegê-la melhor e envolver a imunidade especial do manto aristocrático da sua família em torno dela. Ele podia igualmente mantê-la debaixo de olho, dia e noite. E se descobrissem quando regressassem a Inglaterra que os votos proferidos em Positano os vinculavam… Essa situação também teria uma certa utilidade. Se estivessem verdadeiramente casados, a decisão de publicar aquelas memórias já não lhe pertenceria. Ele nunca previra uma solução tão drástica para proteger o nome da família, mas o destino podia ter fornecido uma solução inesperada para o problema que o tinha trazido até ela. Ela abominaria essa solução, obviamente. Esse fora o motivo por que dissera à tripulação do barco para rumar na direcção de Paestum. Ele queria submeter-se aos caprichos da sua fascinação tanto tempo quanto lhe fosse possível antes de descobrir se Phaedra Blair iria passar o resto da vida a tornar a sua existência nesta terra um inferno.

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– Estais a exigir que eu diga que ambos sabemos quando eu não posso dizer que sei seja o que for. Nem vós. Na realidade, o que me estais a pedir para dizer é que irei fingir que ambos sabemos que não estamos casados. – Essa seria uma forma sensata de ver as coisas. – Eu não concordo. Acho que isso seria um desperdício criminoso de uma grande oportunidade. Irritada com a sua recusa e quiçá com o tom trocista que invadiu a sua voz, ela libertou-se do abraço e ergueu-se. Virou-se de frente para ele com as mãos nas ancas, encarnando a imagem de uma mulher prestes a admoestar até o persuadir da superioridade do seu ponto de vista. A sombra esbatida projectada pela vela de lona dava à sua pele um reflexo etéreo. A brisa fazia esvoaçar anéis do seu cabelo até dançarem em torno do seu corpo como uma auréola viva. O tecido fino da saia do vestido foi repuxado pelo vento, revelando as formas das suas pernas e ancas, fazendo-o recordar o seu corpo nu e a forma como este dia começara. – Permiti que vos explique todas as razões por que devemos ignorar aquele casamento até regressarmos a Inglaterra – declarou e começou a esmiuçar a lógica desse argumento, assinalando as suas razões com os dedos. Ele ouviu a voz dela como um canto distante. Ele estava de novo na torre, de joelhos, a fitar o seu corpo nu. No momento se-guinte, estava a possuí-la como na noite passada, só que desta vez era um acto de verdadeira posse decretado a um marido pela lei. Ela andou de um lado para o outro à frente dele ao longo do limite da sombra. A sua argumentação prosseguiu ininterruptamente, transformando-se em palavras insignificantes quase inaudíveis do outro lado da porta da divisão onde ele a tomara. Ela deteve-se e as suas mãos regressaram às ancas. – Nem sequer estais a fazer o esforço de me escutar. – Estou, pois. A vossa lógica faria inveja a um professor de Oxford. Nem tão-pouco estou em desacordo com uma palavra que seja.

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Simplesmente pouco me importa quer um desfecho, quer outro, neste preciso momento. Ela soltou um suspiro profundo provocado pelo homem estúpido sentado no banco. – Não achais que merece a pena considerar o facto de poderdes estar unido para a vida a uma mulher que não quereis? – Já tive oportunidade de considerar o facto a que vos referis exaustivamente. Quanto ao ponto de não querer a mulher em questão, é aí que as coisas se complicam. Ele puxou-a para o colo e beijou-a, forçando o regresso da intimidade da noite passada. Ele ordenou ao desejo dela que se juntasse ao seu, para que ela compreendesse a única parte deste desenvolvimento inesperado com que ele se importava nesse momento. A mulher do estalajadeiro abriu a porta do quarto de dormir de Phaedra com gestos floreados dignos da cortesã de uma rainha. Um pouco à frente no corredor, por sua vez, o estalajadeiro mostrava a Elliot o outro quarto. Os seus anfitriões haviam decidido que a chegada deste uomo magnifico em particular obrigava a alguma subserviência. Phaedra olhou de relance para o final do corredor ao mesmo tempo que Elliot olhava para o início. Ela suspeitou que ele estava a calcular os passos de distância entre ambas as portas. A sua excitação tranquila estremeceu de forma intensa mais uma vez durante alguns breves e desconfortáveis momentos. Ela entrou no seu quarto e fechou a porta, procurando um santuário para fugir ao modo como ele a afectava. A última meia hora naquele barco baralhara os seus pensamentos a respeito da situação peculiar em que ela se encontrava. Os beijos dele tinham confundido a sua mente, corpo e coração. Minuto após minuto de puro deleite, ele havia desatado lentamente a corda das amarras que a seguravam de forma firme a um local familiar. Ela sentiu-se a ser puxada para águas desconhecidas. Ela tinha quase a certeza que aqueles votos não resistiriam ao peso de um escrutínio, mas, independentemente disso, prometiam causar problemas 193

terríveis. A atitude mais sensata seria a de presumir que não existia qualquer casamento. Infelizmente, Elliot parecia pensar que seria útil partir do princípio oposto. Ela não acreditava que era apenas a perspectiva de uma ligação amorosa continuada que o atraía. Na qualidade de seu marido, ele podia invocar direitos em outras matérias, como o direito de conhecer pormenorizadamente os seus pensamentos e planos, o de a proteger e possuir e o de interferir se porventura discordasse das suas intenções. Ninguém nesta terra lhe faria a vontade se o seu «marido» não quisesse que esta fosse feita. A mulher abriu a sua maleta. Esticou e sacudiu os seus vestidos e, de seguida, pendurou-os em ganchos no armário. Os seus olhos negros avaliaram o conjunto de tecido leve e crepe negro. – Mi dispiace – comentou. Ela pensou que eram roupas de luto. Phaedra não sabia as palavras que podiam rectificar o mal-entendido. Por outro lado, as suas explicações em Positano não tinham surtido bons resultados. A mulher retirou-se para ir buscar água. Quando regressou, deitou alguma água num alguidar e ofereceu-se para ajudar Phaedra a despir-se. – O vosso marido… bello, elegante – disse, enquanto desprendia os colchetes nas costas.

Ele não é o meu marido. A negação continuava a ser uma objecção silenciosa. Não importava o que esta estalajadeira pensava. Elliot tinha razão numa coisa. Esta viagem seria mais fácil se as pessoas achassem que eles eram casados. Ela já tinha visto a diferença que o pressuposto fizera. Em vez do desdém subtil que ela normalmente suportava no seu dia-a-dia, quer no barco quer na estalagem, ela tinha sido tratada com respeito e deferência. A noite começou a cair quando ela acabou de se instalar. No momento em que a mulher se estava a retirar, Elliot surgiu à sua porta. O seu domínio desta língua italiana do Sul melhorara durante a última semana e deu algumas instruções à mulher do estalajadeiro. – O que lhe dissestes? 194

– Disse-lhe que iremos jantar ao ar livre. Eles têm um jardim encantador. Também lhe disse para nos preparar banhos a seguir. É melhor descermos agora. Tirando aquele pedaço de pão e queijo no barco, não comemos mais nada o dia todo. – Já vos irei fazer companhia. Gostaria de ficar alguns minutos sozinha antes. A porta fechou-se. Ela inspirou o silêncio que se abateu no quarto após a partida dele. Ela aguardou até a sua presença se atenuar, para o ar regressar ao normal e para o seu isolamento ser completo. Demorou mais tempo do que ela esperava. Ela culpou a noite passada por isso. A intimidade fora demasiado intensa. Não restavam quaisquer dúvidas que ele tinha tomado demasiado, e muito mais do que o seu mero prazer. Ela deixara bem claro o que permitia e o que não permitia, mas ele tirara deliberadamente partido da sua vantagem. Ela não teve qualquer pudor em admitir que se sentira impotente para o impedir pois, para começar, ele era o primeiro homem a possuir uma vantagem a partir da qual podia tirar partido. Phaedra olhou em volta no quarto. Ela calculou que era o melhor da estalagem. Este exibia mobiliário em madeira que parecia uma versão campestre das peças elaboradamente trabalhadas tão comuns em Nápoles. Uma coberta com motivos azul-claros envolvia a cama num luxo simples e um tapete profusamente ornamentado disseminava flores ao longo do piso de tábuas de madeira. A ideia de jantar ao ar livre agradava-lhe. O banho também seria muito bem-vindo. Ele antecipara as suas necessidades e ela podia fechar os olhos às presunções por detrás dos seus planos se o desejasse. Ele estava a atender às suas necessidades, à semelhança do que os homens faziam com as suas esposas, e qualquer outra mulher teria ficado encantada. Levantar objecções a isso iria parecer deselegante e quiçá ingrato. O problema é que ela sabia como é que isto iria acabar se ela permitisse que esse tipo de presunções continuasse sem qualquer refreamento. O perigo residia tanto nele como nela. O mundo conspirava para convencer 195

as mulheres a viver as vidas normais decretadas pela sociedade. Phaedra já se deparara com muitas alturas em que a opção de o fazer de modo diferente parecera tão difícil e tão solitária que questionara as suas crenças. Nadar contra a corrente das expectativas do mundo podia ser extenuante. Se um barco passasse corrente abaixo, a perspectiva de subir a bordo era deveras tentadora. Se o homem que se oferecesse para a tirar da água e protegê-la fosse bonito, rico, inteligente e apaixonado, era muito fácil chegar à conclusão de que tinha estado sempre a nadar na direcção errada. Provavelmente passaria muito tempo antes de se dar conta de que perdera a capacidade de nadar. Ela sentou-se no toucador e escovou o cabelo. Atou-o num rolo grosso à volta da nuca por consideração a Elliot, para que ele não se sentisse embaraçado pela sua excentricidade se outros hóspedes também estivessem a jantar no jardim. Ela abriu a maleta, retirou o seu chapéu e prendeu-o. Phaedra observou o seu reflexo no espelho. Esta pequena ce-dência no seu aspecto fora fácil de fazer. Não lhe custara nada e ela fizera-a completamente consciente da razão pela qual fizera essa escolha. Pequenos gestos desta natureza não redefiniam o plano geral do seu carácter. As mudanças que poderiam ter esse efeito pernicioso não seriam tão óbvias, nem tão claramente seleccionadas. Ela pensou no homem que a aguardava no jardim. Tão bonito, tão atraente. Era muito tentador brincar aos casamentos com ele durante alguns dias. Uma parte cansada da sua alma ansiava por deixar alguém cuidar de si durante algum tempo. Talvez ela pudesse colocar de parte a luta durante uma semana ou duas para voltar a empunhar as armas apenas quando regressasse a Inglaterra. A memória de sua mãe imiscuiu-se. Uma sobrancelha céptica erguia-se na visão mental do rosto encantador de Artemis Blair. Artemis nunca havia exigido que a sua filha seguisse os seus passos. Limitara-se a explicar-lhe o que perdia e o que ganhava se reivindicasse essa liberdade. Ela avisara-a igualmente de que não podiam existir meios-termos ou quaisquer suspensões temporárias em favor da aceitabilidade e da respeitabilidade. O mundo não permitia à mulher encontrar uma solução de compromisso. As leis eram 196

escritas de forma a tornar a decisão de ser uma mulher normal e aceitável numa decisão irrevogável. Phaedra deu por terminados os seus esforços. Ela iria permitir que os desconhecidos nesta terra presumissem que ela e Elliot eram casados, mas não podia consentir que ele pensasse o mesmo. Não podia consentir sequer que ele pensasse que talvez estivessem casados ou que se encontravam temporariamente nessa condição. Se jogassem a esse jogo, ela só podia sair a perder. Phaedra tornava-se ainda mais encantadora à medida que o sol se punha. A luz do crepúsculo dava à sua paleta de cores vivas matizes frios, suavizando-a. Elliot consentiu a si próprio uma certa dose de sentimentalidade poética enquanto terminavam a refeição. As flores no jardim formavam um círculo complexo de jóias interpostas à volta do terraço que ocupavam. Tinham passado a longa ceia a falar da visita de ambos aos templos de Paestum no dia seguinte, mas Phaedra ficara mais silenciosa à medida que a noite caía. Ele pressentia que os seus pensamentos se concentravam nas horas que se seguiam e naqueles quartos lá em cima. Os olhos dela reflectiam a consciência da expectativa que se retesava entre ambos. Ela tentou escondê-la pela primeira vez desde que ele a conhecera, sem sucesso. Um por um, os outros hóspedes abandonaram o terraço. O es-talajadeiro trouxe-lhes café, serviu-o com uma deferência meticulosa e, de seguida, retirou-se para o interior da casa. – O sol desapareceu, Phaedra. Os outros hóspedes já se foram embora. Já podeis tirar esse chapéu. Ele não sabia se o chapéu fora um símbolo de uma concessão ou meramente uma precaução contra a reincidência de uma indisposição provocada pelo sol. Todavia, a sua aba projectava agora uma sombra profunda, obscurecendo os seus olhos ousados. Ele não queria que nada escondesse o desejo dela por ele. – Falais como se me estivésseis a dar a vossa permissão, Elliot. Ou a dar uma ordem – replicou. Dito isto, ela desprendeu o chapéu e pousou-o numa 197

mesa ao lado. – Independentemente da vossa opinião a respeito da nossa situação, não me deveis tratar como uma esposa. Eu não irei aceitar isso de bom grado. Como é que ela podia saber isso? Nunca fora a esposa de ninguém. Ela nem sequer crescera numa casa ao lado de uma. Ele esperou que o seu sorriso vago pudesse ser interpretado como uma concordância para poder voltar a desfrutar da sua companhia à luz fugidia. Ela fitou-o, expectante, à espera de uma corroboração mais oficial. Ela parecia determinada a clarificar este assunto agora. Ele adivinhou que não abandonariam este terraço até ela se dar por satisfeita. – Como é que vos devo tratar, Phaedra? Como uma amante? Como um caso amoroso de ocasião? – Como uma amiga. – Fomos amigos ontem à noite. Espero vir a tratar-vos dessa forma tão frequentemente como mo permitais. Ele ficou com a impressão de ter visto um rubor nas suas faces, apesar da luz ténue. – Não exactamente como na noite passada. A minha preocupação prende-se igualmente em parte com isso. – Não me parecestes preocupada na altura. Todavia, estou aberto a uma mudança. Dizei-me, como é que os vossos amigos vos tratam? – Com menos… Isto não tem de ser, como afirmastes ontem à noite, uma rendição ou uma vitória para qualquer um de nós. Não tem de se resumir a uma questão de submissão e posse. E um homem não tem… Não temos de nos intrometer assim tanto no espírito um do outro – declarou ela, parecendo alheada das implicações das suas últimas palavras. Ele reagiu instintivamente a estas referências aos seus amantes passados. Mal, apesar de ela ter admitido que não existira qualquer intrusão espiritual com eles. O ciúme estalou dentro dele. Não era uma emoção que exigira muito de si no passado. Aturdido e repugnado pelo seu poder perigoso, ele tentou 198

empurrá-lo de volta para a masmorra da sua alma. Não tinha quaisquer dúvidas de que, entre todas as coisas que Phaedra decidira que os homens não tinham o direito de sentir por ela, esta estaria no primeiro lugar da lista. Ele controlou este ímpeto violento, mas não o conseguiu refrear completamente. A sua irritação agudizou-se e deu lugar à ira. – Estou a ver que já tivestes oportunidade de ponderar aquilo que isto tem e não tem de ser em pormenor, Phaedra. Dedicastes-lhe muito mais atenção do que eu e a vossa filosofia é demasiado sofisticada e astuciosa para mim. – Eu conheço esse tom. Não vos atreveis a ser grosseiro e cínico comigo, senhor. Eu sabia que nunca poderia… É possível partilhar prazer e… – E o quê? Enfrentar o amanhecer indiferente ao corpo que está ao lado? Se um homem pretender um mero alívio carnal, ele pode comprar uma prostituta. Eu podia dizer que sois uma mulher generosa para não exigir mais nada, se não se desse o caso de achar que falais sem conhecimento de causa. Não enfrentais o amanhecer de todo com os vossos amigos, pois não? Até aposto que os mandais embora muito antes disso para que não existam quaisquer pretensões sobre vós. – Eu não fico indiferente. Mas também não lhes pertenço. Nem tãopouco fico vinculada a eles pelos laços falsos que a paixão pode criar. E nunca fui dominada no próprio acto. Ele não queria ouvir falar mais dela com outros homens. – Os vossos amigos decidiram que seria melhor esconder os seus verdadeiros pensamentos e reacções de vós, ponto final. Agora era a vez dela de ficar zangada. Bem, se eles estavam prestes a lançar-se numa discussão épica em torno dos princípios que ela julgava que ele violara a noite passada, mais valia deitar tudo cá para fora. – Estais a falar de homens bons e honestos e não de imbecis ou patifes. Eles não eram como vós, ponto final. As palavras dela cortaram o ar, tensas e frias. Um homem sensato bateria em retirada agora. 199

Para o diabo com os homens sensatos. – Se eles fossem homens de todo, teriam muitas afinidades comigo. Um homem não pára de pensar como um homem porque está com uma mulher que não gosta da forma como os homens pensam. Os vossos amigos limitaram-se a fingir não pensar como homens para obter os vossos favores. Nós, os homens, fazemos constantemente coisas desse género. – Acho que teria reparado se houvesse algum tipo de dissimulação. – Talvez estivésseis demasiado concentrada em tomar o vosso próprio prazer e em evitar essas inconvenientes intrusões espirituais para reparardes nisso. A expressão dela reflectiu o choque provocado por esta crítica do seu comportamento na noite anterior. – Eu tinha esperança… Só agora vejo que a minha mãe tinha razão. A maior parte dos homens não são suficientemente iluminados para compreender o que descrevo e não podem ser modificados – anunciou. Pegou no chapéu e levantou-se. – Lamento que não possais ser um dos meus amigos, Elliot. Não reunis as condições necessárias para isso. Phaedra marchou através do jardim até à porta da estalagem. A rainha fizera a sua escolha. Esta abelha em particular podia ir zumbir para outro lado. Por norma, ele aceitaria a rejeição de uma mulher com humor e elegância. Por norma, esse facto teria pouca importância, à excepção de um breve desconforto físico. A renúncia imperiosa desta mulher assumia uma tremenda importância, por razões que ele não se sentia minimamente disposto a analisar. Ela lançara-lhe novamente um desafio e ele não o podia ignorar. A situação entre ambos mudara consideravelmente desde a última vez em que ele lhe havia permitido virar-lhe as costas. O homem era impossível. Como é que alguém tão obviamente inteligente podia ser tão estúpido? Como é que ele se atrevia a insinuar, não, não só insinuar, mas sugerir abertamente, não, nem sequer sugerir, mas acusá200

la abertamente de não ser melhor do que uma prostituta na forma de proceder com os seus amigos? Ela resmungou e amaldiçoou-o durante todo o caminho até ao quarto. Ele provavelmente não tinha nenhuma amiga mulher. Não tinha a menor dúvida de que Lord Elliot Rothwell só tinha tido amantes e as prostitutas que ele parecia conhecer tão bem. Ela puxou o ferrolho da porta do seu quarto. Ele era um caso perdido. Agora estava presa a ele durante dias sem fim e ele estaria sempre por perto, a forçar ilegitimamente a sua presença daquela forma irritante que a perturbava mesmo sem uma intimidade física, a fazer o seu coração dar saltinhos estúpidos só por entrar na mesma divisão que ela. Ele deixava-a sem fôlego, mas ela não se atrevia a ceder novamente à tentação. Quando abriu a porta, um calor húmido deu-lhe as boas-vindas. Uma criada fez uma mesura e, numa série de movimentos rápidos, começou a levantar grandes selhas das brasas de um fogo baixo que ardia na lareira e a despejar a água quente numa banheira de metal a postos. De repente, sentiu todas as dores acumuladas dos últimos dois dias. O seu corpo parecia tresandar aos cheiros da noite passada. O odor deteve-se perto do nariz, opressivo e doce, lembrando-lhe o prazer e o poder que acabara de rejeitar. Ia ser bom lavar do corpo os últimos dias da sua vida. A criada acabou de encher a banheira. Ela mandou a rapariga embora e tratou de si própria como fazia há anos. Despiu o vestido e a combinação e anunciou com cada movimento que ela não era nenhuma posse com regalias especiais que um homem protegia pelas suas próprias razões egoístas. Ela era Phaedra Blair, livre e auto-suficiente, uma mulher que não se sujeitava a quaisquer regras, excepto aquelas que fazia para si própria. Ela proferiu um gemido audível quando mergulhou na banheira. O calor da água arrefeceu-lhe a pele. O corpo ficou frouxo, num relaxamento perfeito. Vagas minúsculas amainaram a raiva tensa que ela trouxera consigo do jardim. Deixou-se flutuar durante muito tempo e, de seguida, sentou-se, soltou o cabelo e lavou-o. Utilizou um sabonete perfumado no corpo e brincou com 201

a espuma. Descontraída, limpa e confiante, a sentir-se mais ela própria do que se sentia há dias, ela ergueu-se na banheira e deixou a brisa nocturna secar as gotas de água que lhe pingavam do corpo. Phaedra rendeu-se à sensação e deixou-se levar pelo prazer de se sentir verdadeiramente fresca pela primeira vez em dias. Ela ponderou se havia de deitar mais água pelo corpo abaixo. Um estalido no ferrolho da porta acabou com o seu isolamento. Uma outra presença intrometeu-se, física e espiritualmente. Deliberadamente. Ela ficou imóvel durante um momento, aturdida pela mudança que se operara no quarto e em si mesma, estarrecida com a excitação que estimulava o seu corpo e que tão depressa comprometia as escolhas cuidadosas da sua mente. Phaedra tentou agarrar a toalha que estava em cima de um banco ao lado da banheira. Uma mão masculina bronzeada alcançou-a primeiro.

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Capítulo 14 E

le esperava que ela já tivesse saído do banho na altura

em que a procurou no quarto. Esteve quase a recuar depois de ter aberto a porta, mas não para preservar o seu pudor. Eles já estavam para lá desse ponto. A visão dela nua, de pé na banheira, fê-lo ficar com a boca seca. Ela parecia uma estátua, imóvel e serena. O tempo abrandou enquanto o seu olhar percorreu lentamente as curvas perfeitas das suas costas e ancas e demorou-se na covinha deliciosa na base da coluna. A forma redonda erótica e macia das suas nádegas pingava gotas de água rumo a sombras ocultas. Os ombros quadrados reflectiam o seu orgulho mesmo agora, neste momento tão privado. Não foi a sua resposta física que o fez deter-se, mas uma reacção ainda mais visceral do que o desejo feroz que sentia por ela. Minha. A declaração instintiva trespassou-o, impiedosa e determinada. O desejo era algo familiar, mas esta proclamação não. À semelhança do que sentira no jardim, ele reconheceu fugazmente o seu perigo. Também compreendeu instantaneamente coisas que evitara compreender antes. O seu desejo ardente por Phaedra punha a descoberto verdades que ele não tinha a certeza se queria saber.

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Ele caminhou até ela. Ela não se mexera durante a longa pausa enquanto ele admirara o seu corpo, mas agora fê-lo. Quando ele fez menção de agarrar a toalha, ela imitou-o, com uma rapidez desesperada, como se tivesse medo de algo. Pequenos cristais de água ainda reluziam no seu ombro nu e braço estendido. Os dedos pálidos dela agarraram-se à toalha ao lado do seu próprio punho fechado, que a prendia. Ambos se imobilizaram nessa posição, transformando a toalha em terreno que ela não queria ceder.

Minha. A declaração repetiu-se espontaneamente, um testemunho dos impulsos que Phaedra desencadeara tanto nele como em si própria. Desta feita, fora proferida com uma confiança serena. Ela não lhe pedira para sair. Ela tinha permitido que ele entrasse e a observasse. Ela não fizera nada para dissipar o ambiente de sensualidade provocatória que latejava como um batimento silencioso e primitivo no interior do quarto. Ela já se havia rendido, mesmo que ainda não o soubesse. Ele libertou a toalha. Ela puxou-a para si e envolveu-a em torno da sua nudez, segurando as extremidades à sua frente. A seguir, saiu da banheira e fitou-o. O seu olhar ousado deteve-se no rosto dele o tempo suficiente para o levar à loucura. Ele nunca compreendera antes os homens que desejavam tanto uma mulher ao ponto de agirem de forma irracional e imprudente, mas, neste preciso momento, compreendia-os perfeitamente. Ela olhou de relance para a sua camisa e mangas enroladas, calças e pés descalços. – O vosso cabelo está húmido. Também já tomastes o vosso banho – observou ela e o seu próprio cabelo humedecido precipitava-se num novelo caótico por cima de um dos ombros. Ela desviou o olhar para a banheira. Os resquícios da espuma do sabonete ainda flutuavam aqui e ali. – Eu prolonguei o meu demasiado tempo. Tempo suficiente para ela estar a ter esta conversa embrulhada numa toalha que não a cobria completamente. Agora húmida, esta aderiu às suas curvas, ocultando muito pouco. 204

Ela voltou-lhe as costas e fez menção de puxar o cordão da campainha. – As criadas vão querer retirar a água esta noite. Só precisou de dar duas passadas para a impedir. As mãos dele fecharam-se sobre as dela antes de tocarem no cordão. Ele rodeou o corpo dela com o seu outro braço e depositou-lhe um beijo no om-bro. O cheiro a água fresca e flores perfumadas invadiu-lhe as narinas. Ela tentou reprimir um suspiro lascivo e travar a inflexão subtil e convidativa do corpo. – Eu não vos convidei para virdes aqui. – Não, não convidastes. – Acho que não devíamos… – a voz dela arrastou-se e culminou num sobressalto mudo quando ele a abraçou na íntegra e beijou os pontos de prazer no seu pescoço. – Estais a tentar seduzir-me – murmurou ela. – Eu não estou a tentar nada – replicou ele. Apertou-a mais contra si e acariciou-a ao longo da toalha agora moldada ao seu corpo, vendo com as mãos aquilo com o qual os seus olhos se tinham deleitado há pouco. Ela riu-se suavemente. – Isto é muito errado da vossa parte. – É provável que sim. As mãos dela ainda apertavam a toalha fechada à altura do seu peito. Ele tentou descerrá-las delicadamente, incitando-a a soltá-la. A reacção de Phaedra foi apertá-la com ainda mais força. A sua excitação era óbvia, mas ele pressentiu uma rebelião a formar-se. Fez deslizar as mãos sob a toalha para silenciar a sua voz. Ela tremeu deliciosamente, mas, ainda assim, a voz fez-se ouvir. – Eu disse que não podíeis ser um dos meus amigos. – Eu disse-vos em Nápoles que não tenho qualquer interesse em tornar-me um deles – respondeu e incitou-a uma vez mais a soltar a toalha. –

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Ides largar isto agora porque desejais o que quer que isto seja, independentemente do que lhe quiserdes chamar. – Eu chamo-lhe a tentação perigosa do diabo. Ele beijou-lhe o pescoço novamente. Ela parecia pequena e frágil no seu abraço. – Eu não represento qualquer perigo para vós. Quero-vos esta noite, nada mais do que isso. – Eu não acredito que isso seja verdade. Ela não disse qual era a parte de que duvidava. Talvez pensasse que ambas as afirmações eram mentiras. Ele não a forçou. Manteve os dedos cerrados dela sob os seus, convencido de que ela iria soltar o seu apego inútil à toalha. Fosse qual fosse o teor da discussão interna com que ela se debatia, Phaedra permaneceu silenciosa. Lentamente, uma nova suavidade invadiu o seu corpo. Ele soube com toda a certeza que ela concordara a entregar-se a ele quando os dedos sob a sua mão relaxaram. Ele atirou a toalha para longe para que nada inibisse as suas carícias. A pele dela estava fria e voluptuosa ao toque, mas um fogo interior fluía ao encontro do seu sangue a partir das pontas dos dedos que lhe tocavam. Ele tomou os seus seios nas mãos e brincou com os mamilos até o fôlego acelerado de Phaedra ser acompanhado de gemidos ténues de prazer. Ele enterrou a boca na curva do pescoço dela para poder saborear o pulsar rápido da urgência da necessidade dela.

Minha. Ela passara demasiado tempo a pensar em algo que exigia muito pouca reflexão. Julgara existir mais neste caso amoroso do que algu-ma vez existiria. Ela apenas tomava e dava prazer, afinal de contas. Nada mais do que isso. Essa racionalização foi o último pensamento coerente que Phaedra teve antes de sucumbir à sedução de Elliot. Ele levou-a rapidamente a um estado de sensações avassaladoras no qual era completamente impossível pensar sequer. 206

Ela já estava a meio caminho desse estado quando ele a abraçou. Os fogos que ele incitava continuaram a queimar o bom senso ao qual ela tentara agarrar-se. Por mais que tentasse vasculhar no meio de uma mente nebulosa, ela não conseguia reunir as razões lógicas que estiveram por detrás da sua renúncia a este homem no jardim. Agora, as mãos dele moviam-se sobre ela, excitando e tomando. Com cada afago cálido e lento, ele prometia-lhe que ela conheceria novamente o êxtase que experimentara na noite passada. Todas as suas enunciações com respeito ao perigo e ao custo que isso acarretaria pareciam subitamente patetas e insignificantes. Ela adorava o que as mãos dele lhe faziam. Ela apoiou-se contra o suporte firme do seu corpo e sentiu todos os centímetros de cada carícia plena de confiança. Saboreou a firmeza áspera das palmas das suas mãos nas ancas e barriga, e a provocação deliciosa dos seus dedos nas coxas e seios. O toque dele fazia-a estremecer ainda mais em parte porque ele sabia o poder que possuía. Havia uma certa liberdade na opção que tomou de não se importar com aquilo que podia ou não significar. Uma liberdade irreflectida, imprudente e arrebatadora. A capitulação foi acolhida com alívio depois de ter tentado negar o seu desejo carnal. Ela submeteu-se completamente à sensação de abandono e deixou a previdência e a ponderação para outro dia. Com a sua rendição, o toque dele tornou-se menos sedutor e mais parecido com o de um homem que tomava o que era seu por direito. Ela não se importou. Isso já lhe era completamente indiferente. O erotismo da submissão fascinava-a mais do que a chocava. Ela deixou que a força dele a controlasse. Ofereceu-lhe o corpo, implorando por mais, demasiado extasiada pelos tremores de prazer para pensar no seu significado. Os braços dele prendiam-na no seu abraço. Ela descerrou as pálpebras e observou as gloriosas mãos masculinas nos seus seios, friccionando lentamente os mamilos uma e outra vez, com cada movimento a disparar setas intensas de prazer ao longo do seu corpo. Ela arqueou as costas, elevando os seios, implorando por mais e desesperada por tudo o resto. Toda a sua excitação, toda a sua consciência física se concentrou profundamente 207

um pouco mais abaixo até ela não conseguir controlar a forma como a expectativa a fazia perder a razão. Após uma longa carícia, o abraço mudou de forma. A mão dele procurou a humidade almiscarada entre as suas coxas e fez com que ela se abandonasse completamente ao prazer. Ela mal conseguia aguentar-se de pé. Mal conseguia respirar e cada arquejo ofegante era acompanhado por um bramido impaciente. Ela tentou endireitar-se no seu abraço para poder senti-lo e tocá-lo da forma que o seu corpo ansiava. Ele não a deixou fazer isso. Em vez disso, arrancou as mãos dela dos seus antebraços e colocou-as no cimo do pé da cama. De repente, o seu apoio desaparecera. As suas mãos agarravam a extremidade de madeira trabalhada da cama. Ela visualizou a imagem que ele tinha atrás dela. A vulnerabilidade da sua nudez e posição passiva tomaram-na de assalto. Ela olhou por cima do ombro. Ele estava a despir-se. A camisa já estava no chão. Ela começou a virar-se. – Não. Não vos movais. Estais linda nessa posição. O coração dela bateu descompassadamente. Linda e obediente e expectante. A excitação que sentia adquiriu novas cores, tons de pedras preciosas escuras de uma profundidade espantosa. Uma estimulação nova deslizou ao longo do seu corpo, criando uma tortura dissimulada e insuportável. Ela fechou os olhos para reprimir este novo desejo que parecia tão primitivo. O seu poder assustava-a. Continha uma dose considerável daquilo que tornava este homem um desafio e um perigo. Ele libertou-se da última peça de roupa interior e deu um passo na sua direcção. Uma excitação selvagem fê-la estremecer, quase como um terramoto de expectativa perversa. Ele envolveu-a sem a tocar. Ele dominoua sem se mexer.

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Ela sentiu umas palmas de mãos firmes a deslizar pelos seus ombros abaixo, pelos braços e depois recuarem lentamente. – Não vireis a cabeça. Ficai assim para eu poder ver o vosso rosto. A sua carícia passou pelas costas e à volta dos seios. Os mamilos estavam ainda mais sensíveis agora. O mais pequeno toque disparava choques maravilhosos ao longo de todo o corpo. Ela não virou o rosto, mas manteve os olhos fechados. Havia alguma segurança na escuridão. Alguma negação. Porém, não conseguia retirar-se para um local privado onde o prazer e as sensações imperavam. Ele estava ali, como na segunda vez na torre. Ele queria que ela soubesse quem lhe fazia isto. Ela pensou que ele ia conduzi-la para a cama, mas ele manteve-a ali, a estimular os seus seios com uma eficácia deliciosa, empurrando-a na direcção de uma insanidade gerada por uma necessidade exasperante. Ele deixou-a apoiada no pé da cama, a tremer, com o corpo a esperar por mais. Só quando ela começou a gemer novamente, só quando ela arqueou instintivamente as costas e ergueu as ancas, oferecendo-se-lhe, só quando ela pensou que iria chorar ou gritar, só nessa altura é que ele a abraçou novamente. Um dos seus braços enleou-a para a segurar e a mão rodeou um dos seios. Os dedos da sua outra mão percorreram a cavidade entre as nádegas até atingir o calor pulsante entre as coxas. Ela nunca experimentara nada igual a isto. Phaedra fincou os dedos na madeira, mas qualquer outra sensação do mundo real foi eclipsada pela contracção do prazer e pelo facto de este se tornar mais concentrado e mais necessário. Ela não via, falava ou ouvia fosse o que fosse, mas a sua mente estava repleta de palavras, palavras indispensáveis, evocações insanas ininterruptas de exigências e súplicas. Finalmente, ele tomou-a. Ela não podia negar que fora isso que acontecera. Posicionou as suas ancas com um gesto firme e entrou nela plenamente. Ela vislumbrou o êxtase, mas ele prolongou a agonia divinal,

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utilizando as mãos para a continuar a estimular enquan-to a provocava com a promessa de uma satisfação plena. Ele parecia saber quando os tremores mais profundos começaram. Um prazer mais agudo latejava no seu sangue e enviava arrepios a todas as partes do seu corpo. Ela sentiu-o bem duro nesse momento, preenchendo-a completamente, guiando-a e empurrando-a na direcção do pulsar até este se fundir com o batimento do seu coração e o sopro da sua vida. Ele acompanhou-a sempre, recusando-se a deixá-la, controlando-a mesmo quando o tremor se transformou num rugido e explodiu através dela numa torrente de beatitude. A seguir, ela sentiu os braços dele à sua volta novamente, e ficou rodeada por ele, unida a ele pelos corpos e suor de ambos. A respiração ofegante dele ficou colada à sua orelha ao mesmo tempo que os gritos dos seus últimos momentos enlouquecidos ainda ecoavam no quarto. Ela sentiu o coração dele a bater atrás dela, ao mesmo ritmo das ondas de prazer que se lhe espalhavam pelo corpo. Elliot viu pequenas tiras de luz a formarem-se através das ripas de madeira das persianas. Phaedra iria acordar em breve para se preparar para a visita de ambos aos templos. Ele preferia passar o dia nesta cama. Já conhecia o conjunto de templos neste posto colonial avançado da Grécia antiga. As ruínas serviam de exemplificações daquilo que os textos antigos dissertavam a respeito da forma como a estética e as proporções dos templos se desenvolviam ao longo do tempo. Os exemplos estavam todos lá, desde a musculatura pesada das colunas da basílica de Paestum ao mais elegante e posterior Templo de Hera. Ele já vira estas ruínas, mas Phaedra não. Ela quase não levantara objecções à longa noite de ambos, nem sequer quando ele a procurara pela última vez para uma união tão lenta e descontraída que eles conversaram durante todo o tempo que esta durou. No entanto, ele não achava que ela planeasse continuar assim durante dias a fio, por muito que ele gostasse dessa ideia.

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Provavelmente, o melhor a fazer agora seria tentar esclarecer alguns pontos a respeito desta ligação amorosa, embora ele não fizesse ideia do que esses pontos deveriam ser. Este não era um caso amoroso típico. Normalmente nesta altura, ele estaria a solicitar pelo menos uma fidelidade temporária. Com qualquer outra mulher, esta paixão teria um nome e algum tipo de entendimento e acordo.

Amásia. Amante. Amada. Ela iria rejeitar qualquer um destes rótulos, e tão-pouco lhe assentavam bem. Mesmo assim, ele ponderou a hipótese de mantê-la por conta. Iria gostar de a vestir com roupas que faziam jus à sua beleza e de providenciar os criados que ela não podia ter.

Esposa. Fora de questão e o caminho mais certo para uma discussão, mesmo se, na realidade, fosse a denominação mais correcta.

Meretriz. Pecadora. O mundo podia vê-la dessa forma, mas ninguém que compreendesse a sua mente podia caracterizar o seu comportamento de modo tão errado.

Amiga. Ele deu voltas e mais voltas à palavra na cabeça. Era o único título que ela permitia para os homens na sua vida. A noite tornara-o receptivo a uma solução de compromisso, por isso ele tentou utilizar essa designação para ela, desta feita. A besta primitiva no seu interior tinha sido alimentada e amansada, por isso não rugiu com raiva desta vez. No entanto, falava com uma confiança bem mais firme do que nas suas primeiras proclamações. Ele não podia ignorar aquele impulso possessivo. Não lhe permitia pensar nela como uma amiga. A amizade implicava menos certeza, menos necessidade e mais liberdade. Ela esfregou os olhos. De seguida, abriu-os e deslizou o olhar ao longo da cama para os pequenos montes que ambos os corpos faziam sob o lençol. Girou para um lado e fitou-o. – Devíamos partir para as ruínas em breve, se quisermos evitar o calor do meio-dia – declarou ela. – Podemos ir amanhã. 211

Ela estendeu o braço para caminhar com os dedos no peito dele. – Creio que será melhor irmos enquanto ainda me deixastes capaz de andar. O gracejo dela deixou-o ridiculamente feliz, assim como a indicação de que ela não decidira que esta ligação amorosa iria terminar mal abandonassem esta cama esta manhã. Não que ele tencionasse deixar que isso acontecesse, seja como for. – A loucura apoderou-se de nós ontem à noite – afirmou ela. – No melhor dos sentidos. – Achais que é o sol que faz isto aos Ingleses quando eles viajam? Os nossos conterrâneos têm uma longa tradição de agir de forma assaz estranha quando viajam para o estrangeiro e de pôr de parte o bom senso inglês. Afinal de contas, estamos muito pouco habituados a toda esta luz solar. Cometemos gafe após gafe, desprevenidos e inexperientes face aos seus efeitos. – Eu não preciso do sol do Mediterrâneo para querer uma mulher e, muito menos a vós, Phaedra. Havia mais do que uma ponta de verdade na observação dela do que ele gostaria de admitir. Ele pusera de parte grande parte do seu bom senso com ela. Estava a permitir que o desejo o regesse e as respectivas complicações aguardavam apenas o momento certo para o enredarem na sua teia. Elliot não tinha por hábito deixar obrigações e responsabilidades à espera enquanto satisfazia os seus caprichos. Os seus impulsos para com Phaedra não eram os mesmos que normalmente sentia em relação às mulheres. Ela esboçou um sorriso com a resposta dele, mas a mente dela estava longe. Talvez procurasse a sua própria designação para o bacanal da noite anterior. – É provável que tenhais razão. Não é o sol. É o facto de estarmos longe de casa, arredados das histórias e obrigações que fazem de nós aquilo que somos. Temos outra vida e tornamo-nos uma pessoa diferente quando 212

estamos longe. Quando estrangeiros visitam Londres, provavelmente também experimentam novas vidas. – E provavelmente dizem que é o nevoeiro ou a chuva que dá origem à loucura. Ela soltou uma gargalhada. Deitou-se de costas e o lençol formou pregas elegantes por cima dos seus seios e barriga. A protuberância que se elevava mais abaixo atraiu a atenção de Elliot. – Não vos preocupa a possibilidade de ficardes de esperanças, Phaedra? Tenho sido pouco cuidadoso na minha impaciência, mas de futuro devemos tomar providências. A mão dela procurou a pequena elevação visada e ficou lá. – Não gostaria de tomar quaisquer precauções. Se tiver um filho, vou criá-lo como a minha mãe me criou a mim. Sou uma mulher, afinal de contas, e ter filhos é uma coisa natural para uma mulher. Artemis Blair pode ter dado à luz e criado Phaedra, mas fora tudo menos casada com Richard Drury. O que quer que se estivesse a passar nesta cama, não era nada remotamente parecido com isso. – Espero que não estejais à espera que eu negue a paternidade de um filho que seja meu. O riso dela era demasiado afectuoso para ser trocista. – Vós? Não. Eu nunca esperaria isso de vós, ainda que o solicitasse. Quando muito, contaria que vos transformásseis numa praga intrometida. Contudo, ainda não gerei nenhuma criança até à data e não creio que seja muito provável vir a ser tão abençoada.

Tão abençoada. Ela não receava de todo uma gravidez. A sua perspectiva inesperada sobre esta matéria lembrou-o que ela não vivia no mesmo mundo que ele conhecia, ou obedecia às mesmas leis que governavam os medos e esperanças de outras mulheres. Amante, esposa, pecadora, amiga. Nenhuma das palavras com as quais tentou classificá-la lhe assentariam bem.

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Ele girou para cima dela para conseguir senti-la por baixo de si novamente. Saboreou o calor sedoso da pele dela colada à sua e fitou uns olhos brilhantes repletos de humor. – Sou da opinião de que nos devemos entregar ao nosso desejo, Phaedra. Devemos deixar-nos levar pela loucura à semelhança dos nossos conterrâneos. Desfrutemos da liberdade de viver vidas diferentes sob este sol estrangeiro enquanto percorremos o caminho de volta para Nápoles. Ele acariciou a curva delicada da sua maçã do rosto e maxilar e sentiu um subtil aceno da cabeça sob o seu toque. Elliot beijou-a sem qualquer intenção de concretizar a promessa contida naquele aceno neste momento e apercebeu-se que era a primeira vez que ele a beijara a ela ou a qualquer outra mulher sem nenhuma expectativa ulterior.

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Capítulo 15 –E

stou absolutamente maravilhada, Elliot. Esta

última semana tem sido uma revelação, mas esta experiência foi de longe a mais impressionante. – Espero que esta apenas supere as outras cidades e povoações antigas que tenhais visto e não todas as vossas experiências. Phaedra e Elliot trocaram o mesmo tipo de olhar íntimo partilhado por amantes quando se conhecem bem. Oh, sim, ela falava apenas das povoações antigas. Paestum, em toda a sua glória isolada e em ruínas, Amalfi, tão pitoresca que parecia ter sido criada por um artista, apenas serviam de pano de fundo para outras experiências impressionantes. Eles tinham prolongado a estadia no charme banhado pelo mar de Amalfi mais tempo do que o necessário antes de viajar para o interior na direcção de Pompeia. Até mesmo essa breve excursão de volta ao Norte havia constituído um pretexto para manter o mundo à distância. Elliot organizou a viagem de ambos de forma a demorar três dias quando poderia ter sido facilmente feita num único dia. Eles haviam-se alojado numa pequena aldeola na noite anterior. Fizeram amor louca e desesperadamente. Talvez ambos soubessem que o sonho iria terminar com o fim da noite. A madrugada acordou-a com uma

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tristeza e nostalgia inesperadas. Pompeia chamava por ambos e trazia com ela realidades que até então preferiram ignorar. Teria imaginado ainda agora um pesar semelhante no sorriso conspiratório do seu amante? Era óbvio que os olhos dele reflectiam mais camadas e profundidades do que a alegria descontraída das últimas semanas. Ele viera a Pompeia por causa do seu novo livro, mas ela pressentia que a pesquisa não era o único motivo que estava por detrás dos seus momentos de distracção de hoje. Ela tocou com o pé no sulco cavado que se estendia numa linha recta através do piso de terra batida da rua. – Pensar que as rodas das quadrigas romanas rolaram por esta alameda. Todo este pó deixa de ter importância, pois eu sei que é o mesmo pó que soprava há dois mil anos. – Esta é a padaria. Tem muitas semelhanças com as nossas. Ele conduziu-a para o interior do edifício. Os nichos profundos destinados aos fornos eram visíveis nas paredes. Ela conseguia imaginar as pessoas que coziam o pão aqui e os criados a chegarem para comprar o pão das suas famílias. Conseguia imaginar também o horror quando o Vesúvio começou a cuspir as suas grandes nuvens de cinza e a angústia quando estas caíram sobre a cidade, enterrando Pompeia e todos os seus habitantes. Outros turistas passeavam igualmente ao longo das ruas escavadas. A maior parte tinha guias, mas ela não precisava de nenhum. Phaedra tinha Elliot Rothwell a explicar-lhe tudo. Pouco depois, encontravam-se numa das extremidades das escavações mais recentes. Os trabalhos tinham recomeçado com o final da siesta. Filas de homens passavam cestos de terra numa corrente humana, desenterrando lentamente antiguidades. Outros empurravam carrinhos de mão repletos de terra para um destino fora das muralhas da cidade. A cidade estava a ser lentamente recuperada, secção por secção. – Imagino que eles mantenham um registo de tudo aquilo que encontram – disse ela. – Esse é o método mais correcto, no meu entender. 216

– No passado, eles só escavavam à procura de tesouros, mas agora cada caco de barro e cada tijolo é documentado. – Quando escavavam apenas à procura de tesouros, não se procedia à documentação desses artigos? – Os reis mantêm bons inventários da sua propriedade e os reis de Nápoles há muito que reivindicaram a posse de Pompeia. Os re-gistos do século passado não eram tão científicos como agora, mas tudo que fosse de valor era anotado. Ela passeou ao longo da extremidade da actual escavação. Um pequeno peso batia incessantemente na sua coxa, como um pedido indignado de atenção. Ela quase que se esquecera de trazer o camafeu consigo esta manhã. Só se lembrara dele quando Elliot a deixara sozinha para providenciar uma carruagem. Era isto que o prazer com este homem lhe tinha feito. Agora, o camafeu não parava de lhe bater na coxa bem no fundo do bolso prático do seu vestido. Pá, pá, pá. Não vos esqueçais do motivo real que vos trouxe

aqui. Ela suspeitava que Elliot sentia igualmente um incitamento semelhante. Ele também tivera os seus próprios motivos para viajar de Inglaterra. Uma vez que esta pesquisa em Pompeia estivesse concluída, quanto tempo passaria até ele voltar a atenção para o seu outro objectivo? Ela lamentou não lhe poder prestar esse pequeno serviço. Em Nápoles, ela reagira com indignação à sua presunção de que ela iria editar as memórias. Ele agira como se o dever dele para com o pai fosse mais importante do que o seu próprio dever para com o seu. Agora, ela odiava que esse dever pudesse contribuir para aprofundar o fosso que mais tarde ou mais cedo iria abrir-se entre ambos. O sol começava a cair. O silêncio entre ambos alongava-se tanto como as sombras no chão. Eles pararam de caminhar e olharam ao mesmo tempo para as escavações.

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Ela pensou nessa última semana. A ligação entre ambos iria provavelmente sobreviver mais alguns dias. Pelo menos, até regressarem a Nápoles. Já não seria a mesma, porém. Eles já não podiam fingir que tinham outras vidas e que estavam livres desses deveres. Ela já não podia ignorar mais quem era. – É melhor procurar o superintendente – afirmou ela. – A vossa pesquisa não deve esperar mais. Ele demorou algum tempo a responder. Limitou-se a manter-se ao seu lado, ainda capaz de a afectar pelo mero facto de estar tão próximo dela. A presença dele não a excitava apenas fisicamente. A intimidade não precisava da noite para a comover. Aqui e agora, invadia-a livremente, revelando que os pensamentos de ambos estavam em sintonia. A sensação provocava-lhe a mesma angústia que tomara de assalto o seu coração ao amanhecer. – Sim, creio que chegou a altura – anunciou e a mão dele fe-chou-se na dela. – Vinde comigo. Vou apresentar-vos. É provável que ele conheça o trabalho académico da vossa mãe. Os trabalhadores não levantaram objecções quando Elliot conduziu Phaedra através das escavações, mas pararam o que estavam a fazer para os observar. Elliot sabia que toda esta atenção era dirigida à mulher que estava ao seu lado. O chapéu não escondia o seu cabelo avermelhado ou a sua beleza. Phaedra destacava-se onde quer que fosse, mesmo quando a sua aparência excêntrica se aproximava da normalidade. Naquele jantar, vestida elegantemente, ela conseguira atrair a atenção de todos os homens presentes. Um homem coberto de pó aproximou-se deles, mas pela sua sobrecasaca e chapéu, era óbvio que não se tratava de um dos trabalhadores da escavação. Os seus olhos escuros avaliaram rapidamente os intrusos. O sorriso que esboçou indicava que havia decidido dar as boas-vindas em vez de uma repreensão. – Buongiorno, signore. Senhora – afirmou e fez uma pequena vénia. – Ingleses? – Sim. Peço desculpa pela intrusão. Sou Lord Elliot Rothwell e esta é… – anunciou ele, hesitando na apresentação feita tão amiú-de nos últimos dias. 218

Chamar-lhe sua esposa perante estalajadeiros humildes era uma coisa, mas outra muito diferente era apresentá-la como tal a cavalheiros. – Esta é Miss Phaedra Blair. Procurávamos Michele Arditi, o superintendente. Ele não estava no museu. Informaram-me que ele pretendia visitar as escavações hoje. – Eu sou Michele Arditi. Fico feliz por ver que nos honrastes com a vossa visita, Lord Elliot. O signore Greenwood preveniu-me por carta que a vossa chegada era iminente há cerca de uma semana e eu já receava que algo tivesse acontecido. Lamento não ter estado em Portici quando vos deslocastes até lá e que vos tivésseis visto forçado a desviar-vos do vosso trajecto. – O desvio não foi grande e é sempre um prazer contemplar as villas de Portici. Esta era a primeira vez que Elliot se encontrava com Arditi. O superintendente tinha estado fora de Pompeia nas suas visitas anteriores. Arditi parecia um homem afável que possuía suficiente confiança na sua posição de modo a exibir simpatia, mas não deferência. Arditi abarcou com um gesto vasto a escavação que decorria atrás de si. – Há muitas novidades para ver. Receio que algumas delas não sejam as mais apropriadas para uma senhora e o terreno pode ser igualmente perigoso – anunciou e fitou longamente Phaedra. – Na sua carta, o signore Greenwood escreveu que também viríeis e que sois a filha de Artemis Blair. – Sim. – Tive oportunidade de ler a tradução que ela fez de Plínio. Não está, quiçá, tão finamente vertida como as melhores traduções italianas, mas, para uma inglesa, as suas escolhas foram impressionantes. Phaedra acolheu o elogio indistinto com graciosidade. – Talvez possa ver então as descobertas que são apropriadas para uma mulher. Dessa forma, Lord Elliot pode ver o resto a seu bel-prazer enquanto eu aguardo por ele numa das hospedarias fora das muralhas. Arditi considerou a ideia excelente. Ele conduziu-os pessoalmente numa visita guiada aos edifícios desenterrados recentemente. 219

O pequeno grupo intrometeu-se nos trabalhos que decorriam no Templo da Fortuna e noutras ruínas perto do fórum. Passaram uma quantidade considerável de tempo a observar de perto os primeiros indícios das insulae, ou casas, na Via di Mercurio, uma descoberta recente que estava a gerar um grande entusiasmo entre os historiadores. De seguida, Arditi levouos à Casa de Pansa. Ele brindou Phaedra com a longa história da sua recuperação enquanto um pequeno exército de homens limpava cuidadosamente as paredes. Quando abandonaram a casa, ele pediu a um dos trabalhadores para levar uma mensagem. – Mandei chamar Nicola d’Apuzzo, o actual arquitecto e director da escavação – explicou ele. – Ele vai mostrar-vos tudo aquilo que desejardes ver, Lord Elliot. Estais à vontade para ficardes até aos trabalhos encerrarem ao anoitecer e regressardes com a frequência que desejardes nos dias que se seguem. No entanto, sinto-me obrigado a dizer que não creio que Miss Blair irá encontrar aqui uma hospedaria adequada. Se me permitis, fazia a sugestão de escoltar Miss Blair a Portici. Podeis ir ao seu encontro no museu mais tarde. Nessa altura, posso recomendar-vos alojamentos que serão muito mais apropriados para ambos. Eles concordaram com o plano de Arditi. O director chegou e Arditi deixou Elliot nas mãos dele. De seguida, ofereceu o braço a Phaedra. Elliot observou-os enquanto se afastavam, reparando a forma como Arditi revelava a sua admiração pela jovem mulher que tinha a seu cuidado. As suas lisonjas rebuscadas pairavam sobre as nuvens de pó. Ele riu-se para dentro contra os aguilhões de ciúme que sentiu enquanto observava as adulações de Arditi. Era altura de aprender a fechar a porta novamente, ou não se iria lembrar de uma única palavra que ouviria hoje. A questão que se impunha era se ele se atrevia sequer a deixá-la entreaberta no futuro. Portici era uma aglomeração de villas magníficas a oeste do Vesúvio, todas elas exibindo os estilos clássicos populares ao longo do último século. Era como se alguém tivesse juntado os mais imponentes casarões de campo de Inglaterra e os alinhasse numa estrada a caminho do mar. 220

Quando Michele Arditi se ofereceu para obsequiar Phaedra com uma visita guiada ao museu, ela não declinou o convite. Ela esperou pelo momento certo enquanto o superintendente desfiava com eloquência histórias a respeito da descoberta deste e daquele artefacto. Ele alongou a visita tanto quanto possível, mas, por fim, deu-a por concluída. Elliot ainda não chegara ao museu e ainda faltava pelo menos uma hora até o crepúsculo começar a instalar-se. O signore Arditi realçou este facto com grande ênfase para de seguida lhe oferecer uma chávena de café no seu gabinete. Uma mulher respeitável provavelmente não aceitaria a sua oferta, ainda que o signore Arditi estivesse a desempenhar o papel de protector galante. No entanto, ela não era uma mulher respeitável, no sentido normal da palavra. – Lord Elliot informou-me que éreis superintendente, mas, segundo percebi, não participais activamente nos trabalhos de escavação – disse ela, após ele a ter instalado no seu gabinete espaçoso. Fragmentos da antiga Pompeia adornavam as estantes. – Os arquitectos e directores gerem a escavação e ocupam-se do trabalho de restauração. Eu controlo a logística dos trabalhos e do museu em que nos encontramos agora. – Já estais cá há muito tempo? – Desde 1807. Fui destacado por Napoleão. Quando ele foi derrotado e a monarquia restaurada, convidaram-me para continuar – explicou, num tom que tornava bem claro que o rei reconhecia um superintendente de qualidade superior quando o via. – Os métodos sofreram uma grande melhoria sob a jurisdição dos Franceses. Conseguimos dar início a mudanças importantes na forma como a escavação era conduzida. Com o regresso dos Bourbon, porém… O último rei não apoiava o nosso trabalho. Há oito anos, vimo-nos reduzidos a dezoito escavadores. Mas este rei reconhece os benefícios da recuperação desta cidade e de o fazer da forma mais correcta. É a nossa história. O nosso património.

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Ele dissertou longamente sobre o assunto, descrevendo em pormenor os métodos mais correctos e o importante papel desempenhado por ele próprio no processo de transformação de Pompeia naquilo que era actualmente. Durante todo esse tempo, a mão de Phaedra manteve-se pousada no seu vestido, sobre a pequena elevação do bolso. Quando o entusiasmo dele pelo tema começou a esmorecer, ela abordou finalmente o assunto acerca do qual desejava realmente que ele a elucidasse. – Signore Arditi, pergunto-me se me permitis tirar um pouco mais de proveito dos vossos conhecimentos de perito. Uma necessidade especial a isso me obriga e duvido que algum outro homem me possa vir a ser de tanto préstimo. As sobrancelhas dele ergueram-se imperceptivelmente. As palmas das suas mãos giraram para cima num gesto de humildade. – Se eu vos puder auxiliar, certamente que sim, Miss Blair. Ela retirou o camafeu do bolso e colocou-o em cima da secretária. – Fui informada de que isto provinha de Pompeia. De que fora encontrado nas ruínas e que era antigo. Achei que saberíeis dizer-me se isso é verdade. O camafeu tomou-lhe toda a atenção. Ele olhou-o fixa e longamente e, de seguida, pegou nele e levou-o até à janela. – Como é que isto vos foi parar às mãos? – Preferia não o dizer. Ele examinou o camafeu com toda a atenção, lançando um olhar severo às pequenas figuras esculpidas. – Lamento informar-vos de que isto se trata de uma falsificação. Uma falsificação muito boa. Elas existem em número considerável e nunca conseguimos descobrir quem as faz. Suspeito que seja um dos restauradores que trabalhou aqui há muito tempo. Quem quer que seja, é muito astuto. Não faz muitas e são vendidas em âmbito privado por grandes somas.

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Existem por aí negociantes sem escrúpulos que aceitam esse tipo de artigos e os colocam no mercado sem fazer muitas perguntas. – Estais certo de que se trata de uma falsificação? – Tão certo como um homem pode estar. Ela não estava certa de que isso seria suficiente. – Posso perguntar como o sabeis? Para não ficar à mercê de negociantes sem escrúpulos no futuro. – Sabendo. É meu dever sabê-lo. O relevo exibiria um maior desgaste se tivesse estado enterrado. É demasiado liso, demasiado perfeito. E também há o pormenor do engaste… O ouro devia estar manchado e menos uniforme. Independentemente disso, a minha certeza advém principalmente do facto de supervisionar estas escavações há vinte anos. Nos últimos quinze anos, somos proprietários de todo o terreno dentro das muralhas da cidade para garantir que o património não é dispersado. Eu certifico-me de que cada um dos artefactos, sem excepção, é catalogado e contabilizado. Nada sai de Pompeia que não seja trazido pessoalmente para o museu por mim ou enviado para Nápoles. – Pode ter sido desenterrado antes de chegardes cá? Quando os métodos eram menos científicos? – É um artigo de valor. Nos primeiros anos, artefactos de barro, itens vulgares ou danificados podiam ser atirados para o meio dos escombros, mas não pedras preciosas. Se um trabalhador roubasse um artigo dessa natureza, seria enforcado. Não, trata-se sem dúvida de uma falsificação. Estou desolado por ter de vos dizer isso. Ela estendeu a mão para recuperar o camafeu. Ele pareceu quase relutante em devolver-lho, mas colocou-o na palma da sua mão. O museu ficara subitamente silencioso. Arditi olhou pela janela. – Ah, aí vem a carruagem de Lord Elliot. Tenho de lhe lembrar que apenas e só o vinho tinto consegue limpar o pó que tem na garganta. Em Pompeia, até o pó é especial.

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Elliot presumiu que Arditi sabia do que falava. Levantou o seu cálice para limpar um pouco mais de pó enquanto ele e Phaedra ceavam na hospedaria onde se haviam alojado em Portici. Um número considerável de visitantes ingleses partilhava o mesmo espaço que eles, usufruindo do luxo enquanto visitavam as escavações e desfrutavam da hospitalidade dos aristocratas napolitanos que tinham fugido do calor de Nápoles. Desta vez, ele pedira dois quartos. E tão-pouco a apresentara como sua esposa. Ele não reconhecia nenhum dos outros hóspedes, mas havia boas probabilidades de alguns dos seus conterrâneos o reconhecerem a ele ou à invulgar Phaedra Blair. Ou talvez não. Ela usara um vestido azul para a ceia. Era, explicou ela, a sua única indumentária normal. Também prendera o cabelo ao alto, num estilo mais elegante do que o simples rolo que usara em Paestum. Uma aparência normal seria provavelmente um disfarce eficaz para Phaedra Blair. Ele suspeitava que a sua intenção era essa. – Ficastes a saber tudo aquilo que precisáveis de saber? – perguntou ela. – Sim, mas vou voltar lá amanhã. E ele ficara a saber imenso. A concentração conseguira voltar-se para as descobertas e a mente refugiara-se nesta sua outra paixão. O seu guia ajudarao nessa tarefa ao envolvê-lo numa discussão animada a respeito das ruínas, solicitando a sua opinião e debatendo a origem primordial de alguns dos artefactos. Tinha sido bom mergulhar novamente nos seus estudos. Tinha estado longe deles demasiado tempo. Estivera demasiado distraído por Phaedra. Isso nunca acontecera antes, o que atestava o poder desta mulher invulgar. Hoje, porém, o seu outro eu redespertara, estirara-se e revitalizara-se. Ele abandonara Pompeia mais satisfeito do que entrara, sentindo-se mais ele próprio do que se sentia há semanas. – E vós? Presumo que também ficastes a saber o que pretendíeis saber. – O que vos faz pensar isso? 224

– Viestes aqui por um motivo e o destino ofereceu-vos uma oportunidade para fazerdes as vossas perguntas ao homem que as melhor pode responder. Não me parece que tenhais desperdiçado uma ocasião dessas. – Sim, fiz-lhe as minhas perguntas. E recebi as minhas respostas. – Essas perguntas tinham algo a ver com um outro parágrafo das memórias? A expressão dela ensombrou-se, como se a referência dele às memórias a entristecesse. Era, deu-se subitamente conta, a primeira vez que estas tinham sido mencionadas desde aquele dia na torre. – A minha mãe deixou-me um camafeu. Ela disse que tinha vindo de Pompeia – explicou ela. – O meu pai escreveu nas memórias que se tratava de uma fraude que lhe fora vendida por aquele outro homem. É claro que eu precisava de tirar isso a limpo. Isso afecta consideravelmente o seu valor. – Se se tratar de uma falsificação, credes que esse facto irá dar credibilidade ao resto que ele escreveu a respeito do amante de vossa mãe? – Sim. – Então, eu espero, para a vossa paz de espírito, que seja ver-dadeiro. – Infelizmente, o signore Arditi estava deveras confiante que não é antigo. Trata-se de uma falsificação e ele tem conhecimento de que camafeus semelhantes foram feitos e vendidos ao longo dos anos. Ela serviu-se do sorvete que pedira com a ajuda de uma colher. Ao mesmo tempo que o preparado frio dava voltas dentro da sua boca, os seus pensamentos pareciam dar voltas e mais voltas dentro da cabeça. – Matthias deu-me o nome de dois negociantes que conheciam a minha mãe. Estou a pensar que é muito provável que se tenha de ser um negociante para obter estas falsificações. Havia outros, percebeis. O meu pai refere-se a um esquema de venda de fraudes. Plural. – Vai ser difícil identificá-lo, independentemente dos nomes que tiverdes.

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– Terei de descobrir uma forma de o fazer. Mas não estava a pensar acerca disso agora. É o próprio Arditi que ocupa os meus pensamentos. Não tenho a certeza se acredito nele. – Viajastes até Pompeia em busca da opinião de um perito. Recebestes uma do melhor perito do mundo e agora não acreditais nele? – Ele ficou perturbado ao ver o camafeu. Ele tem motivos excelentes para mentir. Se estão a ser roubados artigos, ele é o responsável. É de todo o seu interesse afiançar que nada foi desviado nos últimos vinte anos, pelo menos. Ela procurara provas com determinação, mas agora rejeitava-as. Ele não sabia se isso se devia ao facto de precisar que o camafeu tivesse um valor real, ou de não querer aceitar que Artemis fora ludibriada. – Phaedra, espero que não sejais insensata ao ponto de acusar Arditi disso. – Não pretendo acusar ninguém. Eu procuro a verdade pelos meus próprios motivos. Ele perguntou-se se ela compreendia o verdadeiro intuito por trás desses motivos. – E se a vossa busca confirmar o que suspeitais? Não é preciso uma acusação para vilipendiar o bom-nome de um homem. Para isso, bastam rumores. Ela fitou os restos do sorvete, que se derretiam velozmente em lagoas cremosas. Ele odiava que, para o resto do mundo, ela parecesse uma esposa que acabara de ser repreendida e que agora escondesse os pensamentos. Um dos seus pensamentos não estava encoberto. Humedecia os seus olhos quando ergueu o olhar na sua direcção. Agora não. Ainda temos

tempo. Muito pouco tempo antes de falarmos de verdades, rumores e do bom-nome de um homem. A tristeza comoveu-o. Ele lamentou as suas palavras e desejou ardentemente que ambos pudessem esperar uma eternidade antes de abordarem novamente esse assunto. 226

– Peço desculpa, Phaedra. Vamos evitar discussões antigas e novas enquanto podemos. O sol italiano pode estar a libertar-me e a enlouquecerme, mas eu não faço tenções de bloquear a sua luz mais cedo do que o necessário. Quereis que vos descreva aquilo que Arditi disse que não podíeis ver hoje? Ela aceitou a oferenda de paz. Um sorriso matreiro dissipou o seu pesar. – Posso dar largas à minha imaginação. Já tive oportunidade de ver a parte restrita da colecção real, afinal de contas. – Duvido que a colecção de Nápoles esteja à altura dos frescos que ainda estão nas paredes de Pompeia. Achei a criatividade destas pinturas deveras impressionante. Não creio que uma mera descrição lhes possa fazer justiça. – Estais a ver? É por esse motivo que é tão injusto que as mulheres sejam excluídas. Nós não somos crianças. Os homens querem acreditar que ficaremos chocadas e escandalizadas, mas é raro isso acontecer. Não concordais que eu também deveria ter sido autorizada a vê-los? Dificilmente. Ele ergueu-se e ofereceu-lhe a mão. – Foi uma injustiça atroz. Meras palavras não farão justiça aos frescos, mas talvez uma demonstração satisfaça a vossa curiosidade. Ela não hesitou. Mais ninguém repararia na expectativa contida nos seus olhos, mas ele viu-a, como sempre. O desejo franco dela intensificava o dele. Ao possuí-la, ele tornava-se possuído. Ele levou-a até aos seus aposentos, não aos dela. Estes careciam da simplicidade dos seus últimos quartos, tanto em tamanho como em mobiliário. Eles caminhavam inexoravelmente de volta à vida normal até mesmo nas superfícies e materiais que os rodeavam. Ele colocou esse e todos os outros pensamentos de parte ex-cepto o seu desejo ardente por ela. Eles tinham evitado uma discussão ao jantar. No entanto, esta apresentar-se-ia em breve, assim como as diferenças de opinião em torno do próprio desejo – o seu futuro e significado. Ele ainda não tinha 227

um nome para aquilo que partilhavam e não esperava que ela aceitasse qualquer um dos títulos escolhidos por si. Ele fechou a porta atrás de ambos e acendeu as velas dos candelabros enquanto Phaedra o observava. O seu mero olhar tornava-o mais duro. Ela parecia bastante senhora de si esta noite, muito à semelhança da primeira vez que visitara os seus aposentos em Nápoles. Ele não fora o único a ver redespertar o seu antigo eu. Isso só serviu para acicatar os novos impulsos que ela desencadeara em si. Os impulsos que queriam deixar a sua marca nela, prendê-la e torná-la sua. Ela parecia muito mundana e independente no seu desejo neste momento. A sua presença irradiava aquele velho desafio. Desejais-me, mas só irá acontecer

porque eu o permito. O que significava que um dia, talvez em breve, ela podia não o permitir. Ele abandonara toda e qualquer racionalidade quando acabou de acender a última vela. Ela aguardava, pronta para partilhar prazer. Para oferecer o que quisesse do seu corpo e alma, e para lhe negar tudo aquilo que desejasse. Ele considerou a noção da negação intolerável. Tudo isso viria até si muito em breve.

Minha. Esta noite, pelo menos. Por agora, completamente minha. Phaedra pediu a Elliot para a ajudar a desprender os colchetes do vestido azul. Eles tinham fechado a porta aos criados e esta indumentária normal possuía todos os inconvenientes normais. Ela achava que ele a iria continuar a despir. Em vez disso, ele deixou-a fazer isso e afastou-se. Ela olhou de relance para ele ao mesmo tempo que fez deslizar o vestido e se curvou para desenrolar as meias. Ele libertou-se das suas próprias roupas calmamente. Hoje havia algo diferente. Ele estava diferente. Não num mau sentido. Era apenas diferente. Talvez a aura dele reflectisse as suas expectativas. Ela prometera o desconhecido ao concordar com as demonstrações das imagens 228

eróticas de Pompeia. Isso podia ter sido insensato, tendo em conta que ela não estava certa do que essas imagens mostravam. A diferença distraiu-a. Ela observou-o enquanto ele se libertava da camisa e despia as roupas. O calor da excitação ardia nos seus olhos, mas outras chamas flamejavam profundamente neles. A excitação sensual não fazia este homem parecer ébrio. A paixão tornava-o perigoso. Esta noite parecia suficientemente perigoso para despertar o seu medo, se não o conhecesse tão bem. Mesmo assim, um medo intuitivo alarmou-a, da fraqueza face ao poder. Ela reconheceu a sua essência. Mais antigo do que as ruínas que haviam visitado, esse medo subsistia desde tempos desconhecidos, quando não havia cidades ou civilizações, quando estes actos para os quais se preparavam continham implicações cujos ecos ainda se faziam sentir. Ele acabou de se despir primeiro. Ela pensou que ele a iria ajudar nessa altura. Em vez disso, limitou-se a observá-la. Ela tentou ser mais comedida nos gestos, mas o olhar dele fê-la enrubescer. Ela não conseguia parar de olhar para o local onde ele estava, a uns bons quinze passos de distância, deveras confiante no poder da sua nudez. Por fim, ela fez cair a combinação. Pela primeira vez com ele, a sua nudez fê-la sentir-se tímida. Ela virou-se de frente para ele e esperou que ele se aproximasse e a abraçasse. Ele olhou-a longamente. Não para o seu corpo, mas para os seus olhos. Os seus próprios olhos estavam insondáveis, ardentes e duros, com demasiados cambiantes para ela conseguir distingui-los a todos. Sim, se ela não o conhecesse melhor, daria mais atenção aos alarmes que haviam soado. Neste caso, transformaram-se num burburinho surdo em torno da sua própria excitação. – Deitai-vos na cama, Phaedra. O orgulho dela franziu o sobrolho perante a ordem. O seu corpo estremeceu. Ele estava a desempenhar o papel do lorde e senhor de modo deveras ostensivo esta noite. Não tinha dúvidas de que teria visto isso retratado nos frescos que contemplara. Em todo o caso… 229

– Já vi que hoje não haverá qualquer sedução ou cerimónia – disse ela, tentando aligeirar o ambiente. Ele não lhe respondeu. Ela subiu para a cama. Ele aproximou-se e ela preparou-se para o receber nos seus braços. Ela pressentia que ia ser rápido e brusco esta noite. Ia ser uma daquelas uniões onde o prazer de ambos raiava a violência na sua fúria. Ela não se importou. A expectativa provocava-a sem dó nem piedade. A ânsia de ser preenchida por ele invadia-a. Ele não se deitou ao seu lado. Nem sequer a beijou. Agarrou nos seus calcanhares e girou o corpo dela de forma a Phaedra ficar reclinada de lado. O movimento apanhou-a de surpresa. – É mais parecido com um divã romano, assim? – perguntou ela. – Creio que ainda teremos de esperar um pouco mais por essas demonstrações. – Espero que não tenhamos de aguardar muito tempo. Dizer isso foi um erro. Ela soube-o imediatamente. Uns olhos ardentes e duros lançaram-lhe um olhar pleno de humor negro. – Tende cuidado com o que pedis. Os frescos mostravam homens com meretrizes. – Não sereis mal interpretado. Eu sei que não me vedes dessa forma. Phaedra não se referira às demonstrações. Ela estava impaciente por ele, independentemente da forma como seria. Ele provocara-a e seduzira-a sem uma única carícia. – Teria sido bem melhor se vos visse dessa forma. Teria mais satisfação nas semanas que se seguem, creio eu. Nunca chegaria ao ponto de querer fechar uma meretriz à chave para nenhum homem a poder ver senão eu. Nunca chegaria ao ponto de querer devorar uma mulher dessas. Ele deu voz à diferença que ela pressentira esta noite. A sua franqueza assombrou-a. Este seu impulso para possuir estivera sempre latente, mas ele geralmente derrotava esse demónio. 230

Elliot separou as pernas dela e ajoelhou-se entre elas. A sua altura impunha-se e ele olhava-a de cima, observando os seus dedos a deslizar vagarosamente pelo corpo dela. A carícia delicada repercutiu-se nos seus sentidos na forma de um tremor delicioso que a fez cerrar os dentes. Mais um toque excitante, leve como uma pena, desta feita na coxa. Ela fechou os olhos para não ver o efeito que isso tinha em si e a prova do quão profundamente ele a conseguia afectar com um toque tão insignificante. Uma outra pressão suavíssima. Mais quente desta vez. Ele beijou a sua coxa perto do joelho e, depois, um pouco mais acima, já na parte interior. De seguida, flectiu os joelhos dela para que a sua boca e mãos pudessem alcançar mais. Ela abriu os olhos e abarcou com o olhar toda a extensão do seu corpo, vendo a forma como ele fazia amor com ela. Ele tratava as pernas dela como algo belo e adorado. Como posses preciosas. O prazer deixou-a aturdida. Transtornada. Toda ela reagiu, mas em particular o vazio quente tão próximo dos beijos dele. Ela sentia-o a latejar de necessidade e frustração crescente. Sentia a humidade a fluir para fora de si e a infiltrar-se na roupa da cama. Ele acariciou o interior da sua coxa e, de seguida, pressionou suavemente a palma da mão contra o monte-de-vénus. Ela cerrou os dentes para reprimir a onda maravilhosa de alívio. Apesar disso, um gemido conseguiu escapar. Ele manteve lá a mão, pressionando-a contra a vulva, provocando uma agonia deliciosa. O seu hálito e beijos continuavam a multiplicar-se, leves como uma pena, nas suas coxas. Uma das suas mãos mexeu-se, tocando-a com uma intenção mais específica. Ela prendeu a respiração face à intensidade das sensações que ele criava. Ele beijou-a mais perto. – Não me ireis impedir.

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Ela percebeu o significado das suas palavras. Já tinha ouvido falar de intimidades dessa natureza. Phaedra sabia o que se seguiria porque a sua essência lhe implorava para fazer isso. Ele não pedira o seu consentimento. As suas palavras tinham sido uma ordem. Ela deixou para trás o choque e juízos de valor. Não o impediu. Não queria fazê-lo. As carícias dele prepararam-na e, de seguida, a língua dele devastou-a. Ela arquejou e estrebuchou em busca de alívio. Quando a explosão chegou, os seus gritos acompanharam o êxtase. A cama moveu-se. Não, ela moveu-se. Ele entrou nela, tão duro e quente e completo que ela proferiu mentalmente uma oração de agradecimento. Quando a bruma de prazer se dissipou, viu-o de pé ao lado da cama. Ele segurava as coxas dela em torno das ancas dele. A sua expressão tensa prometia a fúria que ainda estava por vir. – Dizei que sois minha esta noite, Phaedra. Ela quase o disse. Não era mais do que um rogo de um amante, um rogo oriundo do prazer. A sua promessa expiraria ao amanhecer. Não teria qualquer significado. Mas a verdade é que teria todo o significado do mundo. O fogo nos seus olhos e a firmeza do seu tom de voz convenceram-na de que ele estava a falar a sério. Os seus beijos e toques tinham incessantemente procurado controlar algo mais para além do seu corpo. A diferença que vira nele nessa noite possuía agora um nome. Ele percebeu que ela não o ia dizer. Não voltou a perguntar. Mesmo assim, Elliot tomou-a e fez com que ela o pudesse ver en-quanto isso acontecia. Phaedra lia um livro à luz do candelabro colocado ao lado da cama de Elliot e desviou o olhar das páginas para admirar o homem pelo qual aguardava. Ele estava sentado à frente de uma grande secretária que persuadira o dono desta estalagem elegante a ceder-lhe, fazendo uso de todo o seu charme.

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Ele parecia não se dar conta de que ela estava no quarto. À sua frente, maços de folhas e notas extensamente manuscritas eram remexidos ininterruptamente. Phaedra e Elliot estavam em Portici há uma semana. Durante o dia, Elliot regressava a Pompeia enquanto ela desempenhava o papel da amante indolente. As visitas à cidade antiga tinham reanimado o historiador que existia dentro dele. Elliot e Nicola d’Apuzzo tinham desenvolvido uma amizade e o director já se juntara a ambos para cear por duas vezes. Outras noites longas foram passadas desta forma, com a mente de Elliot a derramar pensamentos sobre o papel. Ele não parecia ter pressa em regressar a Nápoles. Ela perguntou-se se isso se devia ao facto de a sua pesquisa e escrita estarem a correr tão bem. Ela não se importava com o facto de o seu próprio tempo carecer de um propósito tão sério como o dele. Porém, não podia ignorar que, embora conseguisse ocupar-se, as suas actividades não passavam de formas de preencher o tempo enquanto aguardava por ele, como fazia neste momento. O seu perfil parecia quase demasiado perfeito com as suas características irregulares, mas indiscutivelmente masculino. Este não era um rosto bonito e poético como os que eram sumamente preferidos pela sociedade londrina. A sua expressão arvorava aquela dureza subtil que quer a concentração, quer a paixão, realçavam. O olho que ela conseguia ver reflectia uma profundidade que deixava entrever a intensidade das deliberações da sua mente, nas quais Phaedra Blair não se atrevia a imiscuirse. O seu aspecto parecia pouco cuidado, como acontecia sempre que se refugiava durante um longo período de tempo no trabalho. A camisa pendia aberta e o cabelo estava revolto devido ao hábito inconsciente de o empurrar para trás com os dedos. Inevitavelmente, uma madeixa revoltava-se e caía sobre o sobrolho num arco espesso, fazendo o gesto repetir-se. Quando Phaedra acordara na primeira noite que passaram em Portici, viu-o sentado junto ao lavatório. Ele removera a bacia para ter espaço e preparara a caneta e o tinteiro. Ela apercebeu-se de imediato que ele entrara

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num local de isolamento e que a sua intrusão não seria bem-vinda. Podia até nem sequer ser possível. Então, aguardou, como fazia agora, que ele regressasse desse lugar e voltasse para junto dela. Por norma, o amanhecer despontava antes de o fazer. Ela aguardava outras coisas, porém, com impaciência à mistura com um mau pressentimento. Esperava sobretudo que um deles proferisse as palavras que os fizessem regressar a Nápoles. O progresso que ele fazia no seu livro era um motivo mais do que suficiente para adiar a viagem. Quando uma corrente de inspiração desta natureza se abate sobre um escritor, qualquer tentativa no sentido de represar o caudal só pode ser considerada como insensata. Dois dois, apenas Phaedra não tinha qualquer desculpa para se demorar neste lugar. Com excepção dele, é claro. De aguardar por ele. De abandonar-se ao arrebatamento e ao prazer, de se regalar na sua abundância. A própria espera era demasiado reminiscente da existência típica de uma esposa que ela havia repudiado. O calor do corpo dele e a força do seu abraço fazia sempre com que ela se esquecesse disso quando a espera terminava. Ela começava a esquecer-se agora. Reconheceu a sucessão de pestanejos que o despertavam para o resto do mundo. A sua postura descontraiu-se. Inclinou-se para trás na cadeira, roçando a pena da caneta contra o queixo. Mais um pensamento, mais um apontamento e ele pousou a caneta. Elliot virou a cabeça. A madeixa espessa de cabelo caiu, dissoluta, sobre o sobrolho. – Estais acordada – afirmou, erguendo-se e caminhando até junto da cama. Ela estava acordada há mais de uma hora. – Não interrompais a vossa escrita por minha causa. – Já terminei por hoje. 234

– Está a correr bem? – Surpreendentemente bem. Não esperava fazer mais do que algumas notas aqui, mas, em vez disso, escrevi dois capítulos. – Este cenário inspira-vos. Não antevistes isso? – O que antevi foi que a inspiração do cenário não poderia competir com a senhora que eu desejava. Tinha começado a perguntar-me se alguma vez conseguiria terminar este livro. Ela pesou a lisonja, e a ausência dela, neste seu comentário franco. – Bem, não restam dúvidas de que a satisfação do desejo conduz a um esmorecimento do fascínio. Devia ter-vos obrigado a esforçar-vos mais por me apanhar, não devia? – Ainda bem que não o fizestes. Gostáveis de o ter feito? Gostaria? Ela não acreditava na necessidade de jogos desse tipo. Ela não teria gostado de o afastar da escrita e do livro. No entanto, não podia negar que esta semana eles se tinham sentido quase demasiado à vontade um com o outro.

Dizei que sois minha esta noite. E na noite a seguir. E em todas as noites em que partilhemos uma cama. O actual estado de satisfação que Elliot exibia não fora gerado unicamente pelo prazer. Ela nun-ca disse que era dele, mas ele acreditava nisso. E não estava errado. Nem por sombras. Ela vivia como a sua amante aqui. Como a sua mulher por conta. Enquanto permanecessem aqui, à margem das suas vidas antigas, ele desfrutava plenamente da posse que desejava. A sua posição neste caso amoroso agora era a de aguardar pelo toque que neste momento roçava ao de leve o seu rosto. Aguardar pela atenção deste homem belo, agora finalmente e completamente concentrada nela. Aguardar pela excitação que se alterara por causa daquilo que ela temporariamente lhe cedia. Agora, a excitação começava no seu interior e não à superfície. A sua origem parecia localizar-se algures no peito, enraizada profundamente no seu âmago. Espalhava-se a partir daí para os pontos físicos. Fundia-se com as 235

sensações e a insanidade insuportáveis da necessidade, mas a origem nunca se aquietava. E, por vezes, quando se deitavam lado a lado como agora, beijando-se lentamente, enquanto ela aguardava pelas lições eróticas que haviam ocupado as últimas noites, Phaedra sentia, como neste momento, uma vontade incompreensível de chorar. Ela apertou-o com mais força para interromper as suas carícias. Ela não compreendia esta emoção, esta nostalgia avassaladora. Nem tão-pouco fazia sentido que ela quisesse saborear algo tão aflitivamente doloroso. Talvez tivessem sido as próprias lições a fazer-lhe sentir isso. Os frescos secretos de Pompeia retratavam novidades sensuais. Na qualidade de aluna das demonstrações de Elliot, ela tinha estado em desvantagem. Aquele prazer dissimulado de submissão regressara com demasiada frequência, afectando agora todo o seu prazer, e talvez ou-tras coisas. Ele não tirava demasiado partido da sua vantagem na qualidade de seu lorde e senhor, mas isso não a tornava menos sua serva. Ela abraçou-o com mais força, tão próximo quanto possível. Pressionou o nariz contra o ombro dele e inalou profundamente o seu cheiro. Ela sabia, sabia-o inequivocamente, que se iria recordar deste momento em particular para sempre. Dali a décadas, quando ele há muito se esquecera desta paixão de Verão, ela seria capaz de reviver este momento novamente. Essa certeza trouxe alguma paz ao pequeno pânico inexplicável que por vezes assolava o seu peito agora. As emoções acalmaram-se. A sua boca procurou o ouvido dele. – Não podemos ficar aqui para sempre. Ele não respondeu. Por momentos, pensou que o murmúrio entrecortado tinha sido demasiado baixo. Foi então que o abraço dele mudou até os seus braços a rodearem totalmente, prendendo firmemente o corpo dela ao seu. – Regressaremos a Nápoles, se assim o desejardes – afirmou ele. Era isso que ela desejava? Não ao ponto de conseguir dizê-lo com todas as letras. 236

– A questão é que eu já vi o que vim cá para ver. E ficara a saber o que viera aqui para saber, já agora. Havia mais algumas perguntas a ser colocadas em Nápoles, mas as verdadeiras respostas, a existirem, estavam em Inglaterra. – E vós? – insistiu Phaedra. Ele fitou-a com uma expressão muito semelhante à que vira enquanto estava a escrever na mesa. – Nápoles é uma cidade muito pouco saudável no Verão. Preferia manter-vos aqui, longe de todos os perigos que contém. – Tenho assuntos a tratar na cidade, tal como vós. O seu sorriso vago reconheceu, taciturno, que ela se limitara a levantar a ponta do véu sobre aquilo que os aguardava verdadeiramente em Nápoles. Ela achou ter detectado igualmente uma sombra do clarão férreo dos Rothwell nos seus olhos. Este passo era inevitável, mas ele não via com bons olhos o facto de ela o ter forçado a isso. Talvez ele achasse que, se ela permanecesse aqui, a pertencer-lhe, se esqueceria de quem era e o que tinha de fazer. Ela aguardou que ele lhe pedisse para fazer desaparecer as me-mórias. Podia nunca mais voltar a repetir-se um momento tão bom para fazer esse pedido. Ela estava meio tentada a oferecer-se para o fazer. A promessa que fizera a seu pai e as exigências financeiras da editora pareciam longínquas e insignificantes quando o olhava nos olhos. Ele não lhe fez qualquer pedido. Em vez disso, beijou-a. Ne-nhum pedido acompanhou esse beijo ou tudo o resto que ele fez com ela nessa noite.

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Capítulo 16 O

calor tremeluzia em torno dos edifícios de Nápoles e o sol

levantava brumas fétidas na baía distante. Julho não era o melhor mês para visitar a jóia do Mediterrâneo. Phaedra segurava um lenço perfumado junto ao nariz à medida que a carruagem rolava ao longo de Capodimonte. O cocheiro parou o veículo numa encruzilhada particularmente nauseabunda. De seguida, disparou numa troca de palavras gutural com um transeunte. Começou por ser uma saudação, mas ela percebeu que o tom se tornou cada vez mais sério. O olhar de Elliot ergueu-se do livro para escutar. A sua expressão tornou-se tensa, apreensiva. Ele voltou-se, abriu a porta da carruagem e juntou-se à conversa. – Espero que não seja uma revolução – disse ela. Elliot voltou-se novamente para ela. – Houve um surto de malária. É uma ocorrência comum em Nápoles no Verão. Não podeis regressar ao Bairro Espanhol. – Os aposentos da signora Cirillo são arejados e… – Vamos seguir imediatamente para o Palazzo Calabritto. Os funcionários da delegação britânica saberão indicar-nos quartos salutares para arrendar. 238

Ele falou no tom confiante e firme de um homem que sabia que traçara a rota mais sensata a seguir. Não era um tom que dava margem a discussão. E não era igualmente um tom que ela estava acostumada a ouvir, embora por vezes na cama ouvisse algo semelhante, mais baixo e meigo, mas contendo as mesmas presunções de controlo. Ele não queria ter regressado a Nápoles tão cedo. Ela preparou-se para uma repreensão pelo facto de a impaciência dela os ter conduzido ao perigo de contrair esta doença. Ele limitou-se a fazer um compasso de espera para ver se ela contrariava a sua decisão, e quando ela não o fez, regressou ao seu livro. A Riviera di Chiaia parecia deserta. Ou a malária ou o calor mantinham os caminhantes longe do passeio público e do parque contíguo ao mar. A carruagem virou de direcção, passou sob o grande arco elevado do Palazzo Calabritto e imobilizou-se no pátio. – Eu espero aqui – disse ela. – A minha presença ao vosso lado só vos iria demorar e, em todo o caso, seria constrangedora. – Não seria constrangedora de modo algum. Não quero que penseis isso – replicou Elliot. A repreensão acabara por surgir, mas não em torno do assunto que ela esperava. Ele conteve-se e prosseguiu com um tom de voz mais calmo. – Se for sozinho, é menos provável que isto se torne uma visita social, por isso não espero que me acompanheis. Ele não pretendia agir e falar intencionalmente como um ma-rido. Ela estava bastante certa disso. Nem tão-pouco acreditava que ele tomasse como certo que tivesse o direito de pensar como um. Ela suspeitava que esta maneira de proceder era a sua forma de reagir às ambiguidades que invadiam este caso amoroso com o regresso de ambos a esta cidade. Ela iria lembrar-lhe agora que não era uma mulher que aceitava ordens ou precisava de atenções especiais. Afinal de contas, era natural querer agarrar-se a uma fantasia doce de uma paixão que não acarretava quaisquer custos e na qual não existia nenhum passado ou futuro. Ele podia estar a agarrar-se a ela com demasiada força neste momento, mas acabaria por se soltar. 239

Ela também o faria, muito em breve. Naquele momento, a nostalgia que lhe apertava o coração deixava-a demasiado fraca para impor quaisquer limites ou entregar-se a ressentimentos filosóficos. Ele demorou mais tempo do que ela esperava. Ela não se importou. O edifício alto de pedra projectava uma sombra no pátio e uma brisa vinda da baía soprava por entre o arco da entrada. A expressão dele quando regressou à carruagem seria inescrutável para os demais, mas Phaedra tinha ficado a conhecer muito bem este homem. Ela reparou na distracção que flutuava sob o seu sorriso e atenção. Viu emoções complexas nas profundezas dos seus olhos. – A maior parte da sociedade abandonou a cidade. Foram para as suas villas no campo ou para as ilhas – informou Elliot. – Foram-me sugeridos uns aposentos que acabaram de ser desocupados por uma família espanhola. Creio que nos convêm para os poucos dias que ficaremos cá.

Poucos dias. Sim, isso fazia parte do que ela havia visto e ouvido nele hoje. Uma determinação resignada endurecia-lhe a zona do maxilar, à semelhança de um capitão que deve cumprir ordens, ainda que não esteja de acordo com elas. – Onde ficam esses aposentos? Não fora da cidade, espero. – Ficam aqui mesmo em Chiaia. Fui informado de que se tratam de aposentos dignos de uma rainha. – Pensei que estáveis a falar metaforicamente quando dissestes que eram dignos de uma rainha. Phaedra passeou ao longo da fiada de janelas altas que davam para a baía. O longo grande salão da Villa Maresche oferecia um panorama magnífico. – Se convieram à nossa última rainha durante a sua visita escandalosa a esta terra, já devíeis saber que são demasiado grandiosos para mim. – Estavam disponíveis, grandiosos ou não. Este bairro é menos populado e a malária não o afectou.

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Tudo isso era verdade, mas o funcionário da delegação havia fornecido igualmente uma série de boas direcções para além daquela onde a rainha Carolina vivera durante a sua visita a Nápoles quando ainda era princesa. No entanto, a ideia de ter Phaedra nesta villa atraía-o. Ela conhecera muito pouco luxo na sua vida e ele não tivera oportunidade de a presentear com muito nas últimas semanas. Ele gostava de a ver aqui, tão segura de si própria no meio desta divisão espaçosa repleta de cortinados de seda, estofos de damasco e candelabros dourados. – Existe um grande jardim nas traseiras, fora da sala de jantar – anunciou ele. – Um jardim. Então, não é assim tão diferente dos nossos alojamentos recentes. Não era assim tão diferente das estalagens onde ceavam ao ar livre no crepúsculo antes de fazerem amor em lençóis limpos, mas simples. Mesmo assim, era suficientemente diferente de formas que não tinham nada que ver com sedas e vistas. Essa diferença erguia-se agora entre ambos, aguardando o momento oportuno para se revelar. Um papel no bolso da sua sobrecasaca não o deixava esquecer essas diferenças. Uma carta de Christian chegara na mala diplomática trazida por um barco que aportara há uma semana. O funcionário na delegação que lha entregou não achou estranho que Easterbrook tivesse sido autorizado a utilizar esse serviço de correio. Elliot alisou a carta contra o corpo. Esta não incluía nada digno de nota. Nenhuma notícia importante ou sequer uma alusão à missão familiar que levara Elliot a Nápoles. Não havia nenhum motivo real para Christian ter escrito de todo, a julgar pelo seu conteúdo. A não ser o próprio facto de a ter escrito. Era típico de Christian adivinhar como é que as coisas estavam a correr e decidir que um pequeno empurrão podia ser oportuno. Christian possuía uma capacidade misteriosa para pressentir coisas que os que estavam à sua volta não queriam que ele soubesse. 241

Phaedra retirou o chapéu e pousou-o numa mesa ricamente trabalhada. Ele tomou esse gesto como uma indicação de que concordara em viver aqui. Ela sentou-se num sofá rosa pálido. A tonalidade do tecido acentuava ainda mais o preto do seu vestido. Ele esperava que ficassem ali tempo suficiente para a persuadir a encomendar alguns vestidos novos. Ele precisava de a convencer de que o facto de ser a amante do filho de um marquês tinha as suas vantagens. Ela nunca se iria casar e ele também não, por isso, este caso amoroso podia continuar indefinidamente. Enquanto ambos quisessem estar um com o outro. Não existia qualquer razão lógica para o peso que se tinha alojado no seu peito nos últimos dias. Nenhuma razão para a maldita sensação de perda que os envolvia a ambos como um nevoeiro. – Ele está de volta à cidade? – perguntou ela. – Jonathan Merriweather. Já regressou do Chipre? A pergunta dela irrompeu como uma resposta cruel aos seus pensamentos. Na verdade, Elliot, existem algumas razões. Por exemplo, ainda

não decidimos qual de nós irá repudiar uma obrigação familiar, uma promessa e um dever. – Não sei porque motivo vos recusastes a entrar comigo tanto mais se já sabíeis todos os passos que iria dar. – Não queria que a minha presença vos afastasse do vosso propósito na ida à delegação. – Eu fui procurar conselhos para encontrar bons aposentos. O que era verdade, embora o resto não pudesse ser evitado. A obrigação de levar a cabo o seu dever assombrara a sua alegria nos últimos dias e especialmente na viagem breve de Portici até aqui. Ela sabia isso, é claro. As intrusões espirituais funcionavam para os dois lados. – Sim, ele está de volta à cidade. – Talvez ele se mostre inclinado a aceitar o vosso pedido. – Estou certo que sim. Pedi para ele me receber amanhã. Vamos esclarecer esse disparate muito em breve. 242

O sorriso que lhe dirigiu estava repleto de compreensão. Assim como um pouco de compaixão. Muito havia mudado desde que tinham abandonado esta cidade, mas não a sua promessa de proteger o nome da família. Lampejos ousados, os mesmos que o tiravam do sério, invadiram os olhos dela. – Que seja amanhã, então. O que podemos fazer até lá para passar o tempo? O Palazzo Calabritto, projectado pelo arquitecto Vanvitelli, era um edifício imponente com três pisos com um pé-direito alto e pormenores clássicos. Construído no século anterior, servia agora como a casa de todos os assuntos especificamente britânicos em Nápoles. A própria Igreja Anglicana efectuava aqui os seus serviços religiosos a partir da altura em que o rei havia permitido a construção de igrejas não-católicas. Merriweather era um inglês com uma aparência muito inglesa. Loiro, alto, rosado e corpulento, ele podia ser o retrato de um fidalgo rural abastado a caminho da meia-idade. Contrastava tanto com os habitantes de Nápoles que a sua figura devia ser visível a um quilómetro nos passeios públicos. Recebeu Elliot num escritório na ala restrita do edifício. Os dois já se haviam encontrado antes, como todos os filhos da aristocracia acabam por fazer em Inglaterra. O café que ele ofereceu indicou que ele pensou que se tratava de uma visita social. – Foi-me dito que me procurastes enquanto estive no Chipre – disse Merriweather, assim que se sentaram em dois sofás no gabinete. – Lamento não ter estado cá. Os verões em Nápoles não oferecem a melhor das sociedades, mas eu poderia ter-vos sido útil. Estais de visita devido aos vossos interesses históricos? – Essa é uma das razões. – Presumo que tenhais sido bem recebido nessas diligências. Se eu vos puder ajudar de alguma forma, porém, estou à vossa disposição. Ah, aqui está

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o café. Falai-me mais acerca do casamento de vosso irmão e contai-me como tem passado Easterbrook. – Easterbrook está igual a si próprio e o casamento de Hayden foi uma alegria para toda a família. Merriweather possuía umas faces macias, maleáveis e pálidas. Na qualidade de diplomata, aprendera a dominar as suas expressões, o que não impediu que um trejeito de humor perpassasse pela sua expressão naquele momento. Quer estivesse a reagir à inalterabilidade de Easterbrook, ou ao casamento célere e privado de Hayden, isso não era claro. – Viajei até cá por causa do meu trabalho histórico, mas fui igualmente incumbido de um assunto de família. É neste último ponto em que espero contar com a vossa ajuda. – Fazei o obséquio de me dizer como e eu usarei a minha in-fluência da melhor forma que conseguir. – Creio que travastes conhecimento com Richard Drury, que faleceu no passado Inverno. Merriweather soltou uma pequena risada. – Um conhecimento de passagem, quando muito. Ele conseguiu conquistar uma certa influência na Câmara dos Comuns, apesar das suas opiniões radicais, e insinuou-se nas decisões do Ministério dos Negócios Estrangeiros. – Antes de morrer, Mr. Drury escreveu as suas memórias. – Ah, sim? Deve ser uma leitura interessante – replicou Merriweather, cujo sorriso não se alterou nem um pouco, o que era um bom sinal. – Ouvi dizer que são extensas e detalhadas. O editor que as tem na sua posse pretende publicá-las na íntegra, a não ser que sejam apresentadas provas da falsidade das suas passagens. Uma vez que os episódios que são relatados provêm muitas vezes da esfera privada, provas dessa natureza serão difíceis de reunir. – Acredito que isso se possa revelar um embaraço para algumas pessoas. As memórias possuem frequentemente esse efeito pernicioso. Espero 244

que o livro consiga chegar até cá. Nós, os expatriados, apreciamos igualmente uma boa dose de má-língua. – Infelizmente, na versão actual das memórias, vós sois uma das pessoas que serão objecto dessa má-língua. – Eu? – perguntou ele. O seu rosto transfigurou-se em colinas e vales de consternação. – Eu mal… – Um jantar. Um jantar privado há muitos anos com Drury e Artemis Blair, após o vosso regresso da Colónia do Cabo – declarou Elliot. O homem parecia verdadeiramente mortificado. – Parece dar-se o caso de a memória de Drury lhe ter falhado. Se não estivestes presente nesse jantar ou se, caso contrário, falastes impensadamente nessa ocasião, foi cometido um erro. Merriweather franziu com ainda mais força o sobrolho, num gesto reflexo de confusão e negação. De seguida, o seu rosto ensombrou-se. Após um olhar de esguelha e sub-reptício a Elliot, evitou por completo os seus olhos. O silêncio instalou-se. Elliot aguardou. O peso no seu peito ficou inexplicavelmente mais pesado. Não, não era um peso, mas um vazio, um vácuo. – A minha família, e o Easterbrook em particular, estão preocupados com as interpretações que possam ser feitas com base na conversa passada no jantar que Drury descreve. Merriweather bufou de desdém. – E tendes boas razões para isso. Esta não era a resposta que Elliot esperava. O tempo abrandou por um longo momento enquanto ele absorvia a surpresa. Para todos os efeitos, Merriweather não tinha repudiado as memórias. Muito pelo contrário, confirmara-as. – O que escreveu Drury a respeito desse jantar? – perguntou Merriweather. Elliot contou-lhe aquilo que Phaedra lhe dissera. Merriweather abanou a cabeça. 245

– Maldição. Eu sou referido, dizeis vós? Estais certo disso? – Sim. Só vós, segundo compreendi. Não o oficial que morreu e não aquele sobre o qual recaíram as suspeitas. E não qualquer membro da minha família. Porém… Ele parecia assaz preocupado neste momento. Quase desesperado. – Se for publicado que fui indiscreto… – disse e olhou em volta na divisão, fazendo um inventário do ambiente que estava em risco em conjunto com a sua reputação. Elliot deixou o homem pesar o seu dilema. Os factos daquela conversa tinham sido confirmados, mas isso só aumentou a sua determinação em fazer com que estes não viessem a público. A possibilidade de as insinuações que visavam o seu pai corresponderem à verdade deixava-o agoniado. Elliot tentou colocar essa especulação horrível de parte, mas esta instalou-se na sua mente na forma de uma sombra horrível com uma voz acusadora. Vós sabíeis. Claro que sabíeis. Afinal de contas, ela disse-vos. – Como eu disse, o editor está preparado para remover essa passagem se afirmardes que a memória de Drury se revelou errónea. – Easterbrook ofereceu-se para pagar ao editor por esta generosa opção? – O editor deu-se conta da justiça desse gesto sem receber qualquer pagamento. Se as memórias incorrem num erro, não existe qualquer motivo para a boa memória das pessoas ser lesada. Merriweather ergueu-se e caminhou até uma janela alta que dava para o pátio. Deixou-se ficar nessa posição, imóvel, durante muito tempo. Elliot tentou adaptar-se à reviravolta que acabara de ocorrer na sala. Ele entrara nela como um mandatário da verdade, mas representava agora o papel do diabo. Acabara de acenar com a ruína numa das mãos e com a salvação na outra à frente de Merriweather. Ele iria retratar-se, como é óbvio. Iria jurar que a memória de Drury da conversa estava errada e que não existira qualquer morte incorrectamente declarada na Colónia do Cabo. Eles iriam rir-se e trocar gracejos a respeito de 246

velhos radicais e más memórias. Phaedra iria cumprir a sua palavra. As memórias seriam impressas sem qualquer alusão a esse episódio lamentável. Ele devia estar encantado. Triunfante. Em vez disso, o ar neste gabinete parecia-lhe gelado e viciado como o de uma tumba. A verdade era maior do que aquilo que fora dito naquele jantar. A decisão de Merriweather não iria alterar a realidade gritante que o ensurdecia cada vez mais a cada momento que passava. Aquele oficial fora alvejado. Alguém cometera um crime. Os seus lábios cerraram-se numa linha fina. Ele não podia continuar a negar a possibilidade de o seu pai ter feito isto. Elliot apercebeu-se, estarrecido, do longo período de tempo que estivera a negá-lo e da veemência com que estivera a mentir a si próprio. Ele sempre soubera que o seu pai conseguia ser implacável. Ela sabia-o pois esse potencial sobrevivia nos seus irmãos e, aparentemente, em si próprio. Afinal de contas, ele estava aqui, não estava? Ele estava calmamente à espera que um homem se decidisse pela desonra para salvar a sua carreira e meio de subsistência. Ele estava a contar que este homem perdesse a sua alma. O sangue do pai que lhe corria nas veias estava a calcular a quantidade de problemas que seriam solucionados a partir do momento em que Merriweather proferisse essas palavras. Iria eliminar especialmente a necessidade de chegar a algum tipo de entendimento com Phaedra a respeito dessas memórias. Quem sabe até onde é que este caso amoroso os poderia levar então? Era terrivelmente fácil pesar todas estas questões e encarar a honra perdida de Merriweather como um pequeno preço a pagar. Ele suspeitou que sabia a forma como Christian faria pender os pratos da balança a seu favor. A verdade, assim como a realidade, não era absoluta para Christian. – Quem é o editor? – perguntou Merriweather, quebrando o silêncio, talvez esperando que o diabo fosse mais convincente e que acrescentasse ainda mais peso nos pratos que pendiam para o lado do pecado. Elliot aproximou-se da janela. Se ele ia tentar um homem com uma escolha tão terrível, o mínimo era fazê-lo cara a cara. 247

– A filha de Drury, Phaedra Blair – replicou. Elliot passou a explicar a forma como essa herança lhe chegara às mãos. Merriweather fechou os olhos. – Santo Deus. Ela esteve nesta cidade no início do Verão. – Ainda está. Podeis falar com ela em privado. Não haverá qualquer necessidade de confiar a vossa declaração ao papel. – Ela fez-me uma visita e eu… Phaedra não dissera nada a respeito de ter tentado ver Merriweather. Nem uma única palavra. Pouco faltara para negar isso. – Recebeste-la? – Eu… Cidadãos britânicos de todos os quadrantes chamam a esta terra o seu lar. Muitas vezes fazem visitas que não podemos… Interpretei mal as suas intenções. Ele excluíra Phaedra porque ela não pertencia ao «quadrante» normal de pessoas que um diplomata se dava ao trabalho de receber. Não era suficientemente rica, nobre ou aceitável. Elliot sentiu um pouco menos de compaixão por Merriweather e pelo seu dilema moral. – Quando é que ela vos visitou? – Há cerca de um mês, quiçá mais. Eu lembro-me disso, porque… Bem, ela é algo conhecida em Londres e eu conhecia a sua reputação e as… – As suas excentricidades fascinantes? Merriweather esboçou um sorriso desanimado. – Isto é diabólico, Rothwell. Não tenho dúvidas que vos perguntais por que motivo delibero tanto. – Creio que compreendo a decisão que debateis convosco próprio. Lamento que as circunstâncias vos obriguem a ter uma testemunha do referido debate. Retirar-me-ei se assim o desejardes. Também vos posso jurar que ninguém alguma vez saberá da minha boca que tivestes de fazer uma escolha. Ele pareceu grato pela compreensão. 248

– Aquilo pesou-me no espírito, sabeis. Aquela morte. Pareceu-me errado falsificar as circunstâncias. Considerei-a uma medida extraordinária. O melhor será deixar tudo vir a público, disse eu, e deixar que o oficial sob suspeita ilibasse completamente o nome. Mas eu começara há pouco a exercer a minha função e não possuía qualquer influência. O coronel não queria essa mácula no seu regimento. Não havia provas e havia problemas para lá das fronteiras dessa região… – explicou e deu um suspiro. – Era um acontecimento recente quando eu aceitei aquele convite para jantar. Mr. Drury era um indivíduo jovial e Miss Blair… a mãe, entenda-se… possuía uma afabilidade que… Eu devia estar cansado da minha viagem… – A confiança que depositastes em ambos não foi traída. Nenhum deles falou sobre o caso. – Tirando o facto de Drury ter sentido a necessidade de o descrever nas suas memórias, correcto? – perguntou e produziu outro suspiro. – Tudo leva a crer que Easterbrook exija a minha cabeça se eu não lhe der aquilo que quer e se transforme num benfeitor vantajoso na situação oposta. Ele tem mais influência do que parece. Merriweather nem sequer precisou de ouvir falar num suborno para saber que iria receber um pagamento. – Easterbrook, apesar de toda a sua excentricidade, não gosta de ver o nome da família a tornar-se motivo de chacota e de má-língua gratuita. – Má-língua gratuita, nada. Eu estou a par dos rumores que envolvem o vosso pai e o exílio daquele oficial para a Colónia do Cabo. Todos estavam a par desse rumor. O problema era esse. Elliot não podia prometer impedir que a mão de seu irmão se abatesse sobre Merriweather se os pratos da balança dele se inclinassem para um lado considerado inconveniente. Ele sabia que devia tentar exercer a sua própria influência neste momento, tanto por ele como pela sua família. Ele devia chamar a atenção de Merriweather para as ambiguidades. As circunstâncias que rodeavam aquela morte eram suspeitas, mas ninguém sabia realmente o que acontecera. Merriweather soltou um riso amargo. 249

– Em rapaz, o meu pai costumava avisar-me que iria chegar o dia em que a honra viria com um custo terrível. Eu sempre pensei que ele se referia à possibilidade de lutar num duelo. Nunca imaginei que pudesse vir a cair sobre o punho da minha própria espada – declarou. Abanou a cabeça e suspirou profundamente várias vezes. De seguida, virou-se e enfrentou Elliot com firmeza – Não me consigo conformar com a ideia de mentir, por mais que eu queira. – Estais decidido a isso? – Sim, que Deus me ajude. O oficial morreu com uma ferida de bala no peito e havia motivos para pensar que o outro oficial que o acompanhava fora responsável por isso. É um facto que confidenciei isso a Drury naquele jantar. Não posso agora afirmar o contrário. Os dois homens trocaram um olhar de reconhecimento mútuo e silencioso de que era óbvio que ele tinha outra escolha. No entanto, ele parecia satisfeito com aquela que tinha feito e Elliot percebia porquê. Elliot preparou-se para se retirar, mas quando chegou à porta detevese. – O outro oficial… Como se chamava? – O melhor será não remexer no passado, Rothwell. – Sem dúvida. Em todo o caso, gostaria de saber o nome dele. – Wesley Ashcombe. – O que é feito dele? Merriweather hesitou. – Viu-se na posse de uma boa soma de dinheiro pouco tempo depois. Uma herança. Vendeu a sua comissão e comprou uma propriedade em Suffolk. Já ponderei uma ou duas vezes mandar averiguar essa herança, mas decidi que não iria auxiliar o meu repouso à noite. Se ele escapou à justiça, pouco ou nada haverá a fazer agora para alterar isso. Como eu disse, o melhor será não remexer no passado. *

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– Una maritata! Conseguistes ferir-me mais do que a pistola de Pietro com este casamento. Vou morrer! O choque de Marsilio ecoou através do jardim. O seu belo rosto transformou-se numa máscara de pesar. As pestanas fecharam-se sobre os seus olhos negros. Uma das mãos estava encostada ao coração. – Não creio que seja legítimo. Nós não somos católicos, percebeis? Todavia, só poderemos resolver o assunto quando regressarmos a Inglaterra. – Inglaterra! Estais de partida? Cara, entrei num duelo por vós. Estive tão próximo da morte que ouvi os anjos a cantar. E agora casais-vos e ides embora? Quando? – Em breve – respondeu. Muito em breve, suspeitava ela. Mas não demasiado em breve. – Queria ver-vos antes de partir para ter a certeza de que recuperastes por completo desse duelo. Marsilio acalmou-se após uma longa exibição melodramática de consternação. A pedido dela, recriou o grande acontecimento. Percorreu toda a extensão do jardim fazendo poses, mostrando-lhe como tudo se tinha passado. Ele era um rapaz muito bonito, vestido elegantemente, com apontamentos intencionais de estilo e cor de forma a distinguir-se como um artista. Usava o cabelo negro e ondulado mais comprido do que a maioria dos homens e exibia um amplo bigode que não acrescentava os anos que desejava ao seu rosto. Ela abanou-se com o leque enquanto ele continuava com o seu desempenho. Quando chegou à parte em que estava prestes a ser alvejado, ele sentou-se novamente ao lado dela para ela poder exprimir a sua compaixão. – Está melhor – sossegou-a. – Mas, por vezes, ah… Ele girou o torso e fez um esgar, para indicar que iria carregar a memória dela para sempre. O sorriso dele tornou-se melífluo. O seu olhar percorreu-a e deteve-se na cabeça de Phaedra.

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– O vosso cabelo. Porque é que o enrolais e prendeis agora? Ele obriga-vos a isso? – Tenho menos calor desta forma. O dedo dele tocou no rolo de cabelo. – É triste. Soltai-o, cara. Eu ajudo-vos. Ela afastou-lhe a mão com uma palmada. – Não, Marsilio, não ides fazer isso. – Então, façai-o com as vossas próprias mãos. Deixai-o cair e voar novamente, tão livre como o vosso espírito. Fareis isso por mim, não? – Diabos me levem se o fizer. Phaedra estacou com a interrupção seca e masculina. Marsilio também. Os seus olhos varreram o espaço à direita e esquerda à medida que tentava avaliar de onde vinha esta voz pouco amistosa. Vinha mesmo por trás das suas costas, na verdade. O pobre Marsilio não conseguia ver Elliot, que estava de pé a cerca de três metros de distância. Tanto melhor, porque Phaedra conseguia. Ela esperava que Elliot parecesse menos perigoso depois de Marsilio se voltar para o encarar. A sua esperança foi em vão. Elliot aproximou-se para se juntar a eles. Marsilio afastou-se imperceptivelmente, aumentando a distância entre ele e ela ao ritmo lento de uma fracção de centímetros por segundo. Elliot esboçou um sorriso. Não era um sorriso que melhorava a situação. Marsilio tentou parecer confiante e inocente, mas mostrou-se tragicamente incapaz de o fazer. – Elliot, estou muito feliz por terdes finalmente regressado. Este é o Marsilio. Falei-vos dele, recordais-vos? O sorriso não se suavizou. Os lampejos de aço dos seus olhos tornaram-se ainda mais gélidos. – Fico sempre feliz por conhecer um dos vossos amigos, minha querida.

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Marsilio interpretou mal as suas palavras. Sorriu, aliviado, e começou a falar mais depressa do que o seu inglês o conseguia acompanhar. – Si, um velho amico. Solamente un amico, si? A vossa signora é uma querida amiga e eu vim… Vim vê-la para dizer arrivederci e espero voltar a vê-la um dia novamente para podermos voltar a ser bons amigos – anunciou. Ele ergueu-se de um salto e fez uma vénia rápida a Phaedra. – Estou de saída. – Eu acompanho-vos à porta – disse Elliot. – Grazie, mas eu não… – Eu insisto. Elliot demorou algum tempo a voltar. Ela aguardou no jardim. Se se seguisse uma discussão, talvez os serviçais da villa não os conseguissem ouvir aqui. Por fim, ele regressou ao jardim. Ela observou-o enquanto caminhava no caminho de pedra amplo entre sebes cuidadosamente aparadas. Ele não era muito mais velho do que Marsilio, mas nos aspectos mais importantes, os dois homens não tinham qualquer comparação. A severidade de há pouco ainda estava patente nos seus olhos e boca. – O que lhe dissestes? – perguntou ela. – Disse-lhe que se alguma vez o encontrar outra vez sozinho convosco, desafiá-lo-ei e que ele não terá tanta sorte com o desfecho deste segundo duelo. Como é que ele vos encontrou? Nós só voltámos há um dia. – Eu enviei-lhe um bilhete esta manhã. Ela já não via Elliot verdadeiramente zangado há algum tempo. Ele não expressou de modo evidente o que sentia, mas o jardim pareceu estremecer à sua volta. – Esta é a vossa forma de me lembrar que sois livre e independente, Phaedra? Porque isso só me faz desejar que aqueles votos fossem reais para poder fazer com que eu nunca mais tenha de tolerar os vossos amigos novamente. – Os votos não garantem nada parecido com isso, Elliot. 253

– Diabos me levem se não garantem – explodiu ele. Esta era a resposta de um homem que conhecia o poder de um homem demasiado bem e irrompeu quer como uma declaração, quer como uma maldição. Ela aguardou enquanto ele controlava a alma primitiva à qual dera livre curso. – Porque é que o convidastes para vir cá quando eu estava fora? – Contava que regressásseis mais cedo. Pensei que já estivésseis cá quando ele chegasse, se chegasse a vir. – Porque é que o convidastes sequer para vir cá? Já devíeis saber que eu não iria gostar de me cruzar com ele. – Ele envolveu-se num duelo por minha causa. Foi um duelo estúpido, mas eu devia-lhe a cortesia de reconhecer a sua existência e de me assegurar de que ele havia recuperado. Além disso, a última vez em que eu estive nesta cidade, repudiada, excluída e ignorada pelos meus conterrâneos, ele foi um bom amigo. – Um amigo. Maldição, estou a começar a odiar essa palavra. Ela podia dizer muitas coisas para o serenar, mas esta conversa só servia para tornar dolorosamente claro que ele nunca seria o tipo de amigo que ela esperara secretamente que pudesse vir a ser. Elliot Rothwell não era nenhum Richard Drury. A tentação de se render completamente, de lhe dar todos os direitos independentemente dos custos, extravasou para fora do seu coração de uma forma que se tornara familiar ultimamente. O po-der da emoção assustava-a. Ela sentiu o poder que a ira detinha sobre ele a afrouxar. Todo o calor da intimidade que haviam partilhado invadiu o seu olhar, assim como a percepção gerada por todas as intrusões que ela havia imprudentemente permitido. Esse conhecimento alguma vez desapareceria uma vez adquirido? Ela não tinha a certeza se queria acreditar nisso ou não. – Marsilio vai dizer a Sansoni que voltastes à cidade – disse ele. A mente racional assumira novamente o controlo, e estava a reflectir no sucedido. 254

– Presumo que sim. – Sansoni não vai gostar de saber que Marsilio veio aqui. – Provavelmente não. Ele pegou-lhe na mão e fê-la erguer-se e precipitar-se para os seus braços. – Demorei um pouco mais porque fiz uma visita às docas. Já reservei as passagens para Inglaterra. Vou levar-vos para longe desta cidade muito em breve. Em breve. Mas não demasiado em breve. O beijo dele continha vestígios do ciúme que acabara de conquistar. Ele ordenou e tomou com a boca e as mãos. Ela sentiu o vestido a soltar-se do seu corpo e a cair. Ele despiu-a, expondo a sua nudez no meio do jardim tranquilo enquanto as abelhas zumbiam e pairavam em volta da profusão de flores de Verão. Elliot sentou-se no banco de pedra encostado a uma árvore e puxou-a para o colo. Os seus beijos deslizaram pelo pescoço de Phaedra e a língua dele brincou com os seus seios. As suas carícias percorreram o corpo dela. Cada um dos toques era intencionalmente devastador. Ele roçou os dedos sobre os mamilos até ela se contorcer de prazer. – Soltai o cabelo. Não o soltastes a pedido daquele rapaz, mas ireis soltá-lo agora para mim. Ela ergueu os braços e puxou os ganchos. Era uma pequena vitória, esta que ela lhe dava. Um pequeno símbolo de submissão para salvar o seu orgulho. O seu toque não parava de a provocar, com a promessa do êxtase, e atraindo-a rumo ao abandono familiar. Ela renunciou ao controlo como sempre fazia agora. Deixou-o posicioná-la no seu colo para que as pernas nuas o rodeassem e caíssem para trás do banco. Ele arqueou a nudez de Phaedra para poder beijar o corpo dela enquanto baloiçavam em conjunto ao ritmo das suas investidas. Ela agarrou-

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se àquilo que conseguiu sob a sombra pintalgada da árvore, a tomar e a dar tudo aquilo que eles ainda partilhavam.

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Capítulo 17 V

eio chuva nessa noite, e com ela veio também um

intervalo bem-vindo ao terrível calor. Elliot acordou envolto numa brisa limpa e fresca que agitava os cortinados da janela. A luz do amanhecer ainda exibia um tom prateado que dissimulava as formas no interior do seu quarto. Ele levantou-se e enfiou um robe. Caminhou até à secretária e folheou alguns papéis. Na noite anterior, num acesso de inspiração, escrevera durante horas. Agora mal se recordava das palavras que usara. Leu rapidamente algumas páginas, impressionado com o facto de estas não serem más de todo. Ele olhou para a cama. Phaedra estava lá quando ele se sentara à secretária para escrever. Quando é que saíra do quarto? Não se conseguia lembrar. Isso não parecia nada seu. Ele não padecia da maldição de perder o contacto com o mundo quando se refugiava na sua mente. Excepto ontem à noite. Ao fazê-lo, desperdiçara uma das últimas noites verdadeiramente livres com Phaedra. Ele ia fazer com que tivessem alguma privacidade na viagem de barco, mas a necessidade de discrição seria deselegante e constrangedora. Aqui em Nápoles ninguém se preocupava com essas coisas. Ele saiu para o terraço e caminhou até à porta que dava para os aposentos dela. A proximidade entre ambos era muito semelhante à que possuíam em Positano, mas muito mais grandiosa e luxuosa. 257

Phaedra dormia sem lençóis a tapá-la. Usava apenas uma simples combinação que terminava nas coxas. O cabelo dela abria-se em leque à sua volta, e cintilava na luz suave que entrava no quarto. Uma grande pilha de almofadas mantinha o seu torso numa posição vertical, como se ela tivesse adormecido inesperadamente. Um dos braços estava esticado num gesto pouco natural, em resultado do momento em que o sono a assaltara. Com a palma virada para cima, a mão estava meio fechada, com algo entre os dedos. Ele aproximou-se mais. A luz formava pequenos reflexos no objecto que ela segurava. Ele libertou-o suavemente dos dedos que o rodeavam. Um camafeu. Elliot não tinha dúvidas de que era o mesmo que havia pertencido à sua mãe. Tinha um tamanho considerável, com umas figuras esculpidas trabalhadas de modo impressionante. Uma jóia antiga desta qualidade seria muito valiosa. Ele levou-a até à porta do terraço para a examinar mais atentamente. Elliot sentiu o olhar de Phaedra sobre si e olhou por cima do ombro. Ela observava-o. Parecia tão bela ali, envolta em tonalidades de branco e dourado, rodeada pelas sedas e cetins luxuosos das almofadas. Ela conseguia deslumbrá-lo às vezes. Demasiadas vezes. – Abandonastes-me – disse ele, referindo-se à ausência dela no quarto dele. – Não, vós é que me abandonastes – respondeu ela, lembran-do-o da distracção que ele não controlara. – Alexia disse-me que o vosso irmão abandona o mundo da mesma forma, por isso eu já sei como é que as coisas são com os homens Rothwell. Ele juntou-se a ela na cama. – Lamento tê-lo feito. – Faz parte de vós. O sol pode ter-vos feito esquecer isso duran-te alguns dias ou algumas semanas, mas não vos sentiríeis completo se renunciásseis totalmente a esse mundo por minha causa.

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Ele ignorou o aviso implícito nas suas palavras. Ela não estava a falar apenas dele, do seu mundo e da sua capacidade para se sentir completo. Ele depositou o camafeu no vale entre os seios dela. – É encantador. – É, não é? Podia transformá-lo num alfinete se não soubesse aquilo que representa. – Não é menos belo por ser uma falsificação. O valor foi assaz diminuído, mas não a perfeição do trabalho. – Não quero saber do valor dele. Ele conseguia ver o rosto dela claramente agora. Ela parecia cansada e esgotada. Talvez não tivesse dormido muito na noite passada, à medida que recuperava a sua própria capacidade de se sentir completa. Ela pegou no camafeu e observou-o. – Estive cara a cara com a verdade ontem à noite. Foi fácil imaginá-la. As vendas discretas, a promessa de confidencialidade, o regozijo dos coleccionadores ao obter raridades a preços mais módicos se ninguém soubesse a sua origem. Era um esquema muito inteligente. Se dissessem aos compradores que as jóias vinham de Pompeia, eles ficariam com ainda mais vontade de as possuir, mas teriam de guardar segredo porque estariam a comprar bens roubados. – Ainda não tendes a certeza se um esquema desses alguma vez terá existido. – O meu pai afirmou que sim. O intruso era a peça central de um esquema que era tão brilhante como iníquo. Estas são as suas palavras exactas. Ele faz referência a um objecto valioso de proveniência suspeita e de outros da mesma natureza que acabarão por ser descobertos. A menção das memórias ensombrou a sua disposição. O encontro do dia anterior com Merriweather fora providencialmente esquecido durante o tempo que se refugiara no trabalho. As escolhas terríveis que pairavam na sua cabeça desapareceram durante essas horas. Assim como verdades duras, perguntas ininterruptas a respeito do passado ou maquinações cruéis. 259

– Deve ter sido extremamente conveniente para um homem que vendia coisas desta natureza insinuar-se na vida da minha mãe ao ponto de lhe conquistar a confiança. Vender-lhe isto acabou por ser o acto menos grave – divagou Phaedra com amargura. – Ele só a seduziu para poder conhecer o tipo de pessoas que pagaria bem pelas falsificações que ele vendia. Uma apresentação por intermédio dela seria como uma autorização da coroa. Ele desejou poder deitar por terra a sua interpretação com algumas palavras cautelosas. As deduções dela eram demasiado boas, demasiado plausíveis. – Porque é que isso é tão importante para vós, querida? Ela sentou-se bruscamente, afastando o corpo e fitou-o. Ela estava zangada. Furiosa. Mas não com ele. – O meu pai disse que esse homem foi o responsável pela morte dela. Acho que ela ficou a saber o que ele estava a fazer, a forma como a estava a usar. Eu não tinha compreendido isso antes, mas ontem à noite fez-se subitamente luz. Ela acreditava que o que tinha com ele era superior. Superior ao que conhecera com o meu pai. Essa é a única explicação para aquilo que ela fez. O rosto dela endureceu e os olhos brilhavam de emoção. Ela fitou o camafeu com desdém como se fosse um objecto repulsivo. À medida que a luz ficava mais forte, Elliot começou a distinguir sinais de lágrimas nas faces de Phaedra. Ele lamentou duplamente ter-se refugiado no trabalho. Não gostava de pensar nela neste quarto sozinha, a esmiuçar o pouco que sabia e a chegar às suas tristes conclusões. Ela olhou para ele como se estivesse à espera de uma discussão. Como se desejasse lançar-se numa. – Phaedra, mesmo que seja como dizeis, não faz sentido pensar que alguma parte desta história tivesse a ver com a morte de vossa mãe. – Foi a causa do seu declínio, seguramente, mas talvez… Havia sinais de que ela consumia algum tipo de substância. O médico concluiu que não existiam indícios suficientes para aprofundar o caso, mas… 260

– Não é mais provável que ela tenha falecido de causa natural? Ela não me parece o tipo de mulher que se entregue ao desespero por causa de um caso amoroso. Ela ergueu-se nos joelhos, e toda ela tremia de emoção. Os seus olhos fulminaram-no e cerrou os dentes. – Não compreendeis. Aquele homem seduziu-a a ponto de renunciar a tudo. Não só ao meu pai, mas a ela própria. E a mim. Foi isso que a levou a tirar-me de sua casa. Para eu não ver o quão fraca ele a tornava. – Não podeis saber isso. – Sei, pois. Ela pôs de parte as suas próprias crenças com este homem e não queria que eu visse isso. Nenhuma das suas amigas tão-pouco conhece o seu nome. Perguntei às que faziam parte do seu círculo mais próximo e nem uma única pessoa me conseguiu conduzir a este amante, muito embora grande parte delas suspeitasse que ele tivesse existido. Até Matthias. Até Mrs. Whitmarsh. A mão dela fechou-se sobre o camafeu e transformou-se num punho apertado. Pouco faltou para o sacudir à frente do rosto dele. – Ela sabia que tinha cedido demasiado terreno a este homem. Ela não queria que o mundo visse que Artemis Blair permitia que um homem qualquer a transformasse na sua serva. E depois saber que fora tudo uma fraude para ele poder enriquecer às suas custas… É óbvio que isso a levaria ao desespero. Toda ela era fúria. Porém, Elliot deu-se conta de que esta não era direccionada ao amante desconhecido. A raiva de Phaedra tinha como objectivo a mãe que pregara uma religião e convertera uma filha, mas que depois se deixara cair ela própria em pecado. Será que o fracasso da mãe tornaria essas crenças em meras especulações utópicas que não sobreviveriam à realidade? Se uma noite de reflexão a levara até muito perto do ponto de começar a acreditar nisso, então talvez bastasse… O raciocínio frio apanhou-o de surpresa. Quem era este ho-mem que calculava de forma tão célere a melhor forma de tirar partido da sua 261

vantagem? Era como se alguém ou algo tivesse insuflado vida numa parte adormecida de si próprio desde que conhecera Phaedra. Ele estivera tão certo de que não existia nada dele em si. Ao contrário dos seus irmãos, ele fora poupado aos piores legados, quer do pai, quer da mãe. Só agora começava a suspeitar que lhe podia ter calhado o que de pior existia no sangue do pai. Afinal, descobria agora, nunca quisera tanto algo ao ponto de fazer esse sangue correr livremente nas suas veias.

Não houve qualquer traição da parte dela, querida. Ela simplesmente conheceu um homem que a lembrou que era uma mulher. Não existe nenhum pecado nisso e nenhuma autotraição. É a coisa mais normal deste mundo. As palavras estiveram muito perto de serem ditas. Se ele conseguisse convencer Phaedra de que a cedência da mãe era normal e inevitável, seria mais fácil convencê-la a fazer o mesmo. E ele queria muitas cedências da parte dela. Demasiadas. Ele tirou-lhe o camafeu da mão, colocou-o numa mesinha ao lado da cama e depois puxou-a para baixo e para junto dele. Tinham passado a noite longe um do outro, nos seus mundos separados. Em breve, a maior parte das suas existências seria vivida da mesma forma. Por agora, ele só queria estar bem junto dela no lugar que tinham criado juntos. Elliot abraçou-a, oferecendo-lhe todo o conforto que podia. Ela foi-se acalmando pouco a pouco. A raiva flutuou para longe, deixando no seu lugar uma paz repleta de emoção. – Não sejais tão dura com ela, Phaedra. Ela escolheu um caminho difícil na vida. Sabeis isso melhor do que ninguém. Talvez tenhais razão e ela tenha dado um passo em falso nos últimos anos de vida. Se ela não se conseguiu perdoar a si própria, isso é uma tragédia, mas a filha dela pode e deve ser mais generosa. Ela ficou tão quieta que ele não conseguia sentir a sua respiração. A seguir, pressionou os lábios contra o peito dele num beijo. Encostou o rosto ao ombro e moldou o corpo ao dele. 262

– Às vezes, conseguis ser muito sensato, Elliot. Talvez tenhais razão. Se a minha mãe se viu tentada a renunciar a tudo por um homem, eu devia ser mais compreensiva. Ao fim ao cabo, eu própria também não sou imune a isso. Gentile Sansoni visitou-os nessa tarde. Apresentou o seu cartão como se se tratasse de uma visita social. Eles receberam-no no salão. Phaedra achou que ele parecia menos perigoso do que a última vez que o tinha visto. Talvez fosse o pano de fundo que fizesse toda a diferença. Este espaço claro e arejado não possuía qualquer semelhança com aquela sala escura e cavernosa onde ele a tinha interrogado. As suas roupas, cabelos e olhos escuros formavam uma mancha negra muito pequena nas tonalidades pálidas e douradas desta divisão. Elliot fez ressurgir toda a sua reserva inglesa especialmente para este encontro e posicionou-se de pé ao lado da cadeira que ela ocupava, alto e orgulhoso. Todo ele exsudava pretensões aristocráticas. Dos três, apenas Elliot não parecia completamente deslocado neste cenário. Para surpresa dela, Sansoni fez uma mesura à laia de saudação. De seguida, chocou-a ainda mais. Esboçou um sorriso. – As minhas felicitações pelo vosso casamento, signora. Soube que estáveis de volta a Nápoles com Lord Elliot e queria apresentar os meus cumprimentos antes de abandonardes o nosso reino. – Elliot – disse ela. – Ele está a falar inglês admiravelmente bem para um homem completamente ignorante da nossa língua. – Sem dúvida. Sansoni encolheu os ombros. – A ignorância pode ser conveniente por vezes. – Suponho que sim – replicou Elliot. – As vossas felicitações são bemvindas e a escolha do dia da vossa visita foi feliz. Embarcamos para Inglaterra amanhã. Mas talvez já saibais isso. Sansoni inclinou a cabeça numa espécie de assentimento. 263

– É possível que tenha ouvido qualquer coisa a respeito disso. Porém, não tinha a certeza. – Agora já a tendes. – Si. Grazie – replicou e enfiou a mão na sobrecasaca negra para retirar um pergaminho do seu interior. – Um oficial do exército meu conhecido deslocou-se a Positano há pouco tempo. Um amigo chamou-o lá a propósito de um incidente que envolveu uma torre, uma agitação popular e uma herética. – Que pitoresco – afirmou Elliot. – Sim, somos um povo extremamente pitoresco. O meu amigo regressou com estes documentos. O padre de Positano estava in-quieto por não os terem na vossa posse. Phaedra fitou os pergaminhos cuja existência partira do princípio que podia esquecer. De seguida, perscrutou o rosto de Sansoni para descobrir se ele tencionava fazer regressar o homenzinho abominável do passado. Elliot estendeu a mão para receber os pergaminhos. – Obrigado. Regularizaremos a situação mal cheguemos a In-glaterra. Fazê-lo aqui iria exigir que permanecêssemos em Nápoles durante meses, suponho eu. O olhar de Sansoni fixou-se nos documentos, desviou-se para o rosto de Elliot, e de seguida, retornou aos documentos. – Meses? Só precisais de assinar… – As coisas são um pouco mais complicadas do que isso. Se quisermos embarcar naquele barco amanhã, o melhor é deixar os membros da Igreja Anglicana demorarem todo o tempo que precisarem. Sansoni não era um homem que costumava ceder uma vantagem adquirida e fazia-o agora com uma relutância evidente. Assim que Elliot o desembaraçou dos pergaminhos, o homenzinho abominável fez menção de se retirar. – Signore Sansoni, pedia-vos que tivésseis a bondade de trocar umas palavras em privado comigo – declarou Phaedra. – Pensei que Lord Elliot nos 264

teria de servir de intérprete na medida do possível, mas visto que aprendestes milagrosamente o inglês, isso não será mais necessário. Prometo que a conversa será breve. As sobrancelhas de Sansoni ergueram-se em desaprovação perante a ousadia, mas olhou para Elliot à procura da sua concordância. Elliot não exibiu qualquer desagrado em relação a esta proposta. Ela suspeitou que ele guardaria isso para mais tarde. Elliot inclinou a cabeça e dirigiu-se até à porta do salão. Ela acompanhou-o. – Podeis ficar na sala, como é óbvio – sussurrou-lhe ela. – Todavia, não creio que ele represente qualquer perigo. – Pedistes para trocar palavras em privado com ele, Phaedra. Vou deixar-vos sozinha para terdes o que pretendeis. Ela virou-se para Sansoni quando Elliot se retirou. Este juntou as mãos atrás das costas e sujeitou-a ao seu olhar mais crítico. – Presumo que o vosso marido vos deu instruções para vos desculpardes por todos os problemas que causastes aqui e em Positano. – Lord Elliot não me dá instruções de qualquer natureza. Mais, para além da ferida de Marsilio, não tenho nada pelo qual me deva desculpar. Queria fazer-vos uma pergunta acerca de um assunto completamente diferente. Phaedra retirou o camafeu do seu bolso e pousou-o numa mesinha perto das janelas. Sansoni exibia um ar intrigado. Aproximou-se da mesinha e examinou o camafeu. – Ah, já compreendo o vosso desejo por privacidade agora. Não quereis que o vosso marido saiba que fostes intrujada na compra desta falsificação. Lamento não vos poder ajudar nesta questão. Nem tão-pouco me destes qualquer razão para vos poupar da ira de Lord Elliot quando ele ficar ao corrente da vossa falta de cuidado. – Vistes imediatamente que se tratava de uma falsificação? Como? 265

– Já a vi antes. Ou melhor, outras iguais a ela. Sei onde são feitas e de que forma são vendidas. Sei quem são os negociantes que as vendem e as fazem passar por antigas a negociantes estrangeiros e visitantes ignorantes como vós. Já existem há anos. – Se sabeis assim tanto, porque é que não acabais com isso? – O artesão que é o cérebro do esquema possui informações de sumo interesse para me oferecer em troca da sua liberdade. É vantajoso para mim deixá-lo a ele e à sua rede em paz. Em comparação com a protecção do nosso monarca, que me importa se alguns estrangeiros compram bens falsos? – Como se chama esse homem? Ele riu-se. – Signora, eu disse que ele me era útil. Se se souber que ele trafica esse tipo de coisas, terá de abandonar o reino e deixará de ter qualquer utilidade para mim. Ela pegou no camafeu e observou-o. – Existem muitas cópias? – Asseguro-vos de que não ireis ver o mesmo camafeu nos vestidos de metade das senhoras de Londres. Se existissem demasiados, seria suspeito, não? A causa normal da queda desse tipo de homens é mesmo essa. Este homem em particular e os seus amigos são mais inteligentes do que isso. Alguns camafeus, alguns vasos… – informou e encolheu os ombros. – É o suficiente, mas não é demasiado. Compreendeis? Ela compreendia. Seria contraproducente deixar entrar dezenas de falsificações no mercado de arte num curto espaço de tempo. – São feitas aqui em Nápoles? – Não posso permitir isso. O nosso rei aprecia sobremaneira essas coisas e não gostaria de saber que actividades dessa natureza ocorrem debaixo do seu nariz. Por outras palavras, o rei não sabia que actividades dessa natureza ocorriam de todo. Sansoni consentia que os crimes continuassem porque isso lhe dava um informante precioso. Ou porque estava a ser subornado. 266

– Se eles não estão cá, onde estão? Ele suspirou profundamente. – Signora, sois demasiado curiosa. Fingi que é verdadeiro. Ninguém em Inglaterra saberá. – Estou deveras curiosa porque estou deveras aborrecida. Suponho que podia confessar o meu erro a Lord Elliot. Ele podia perguntar aos amigos dele na delegação britânica para averiguarem o assunto. Eles podiam fazer perguntas aos seus amigos na corte acerca disso. Estes podiam perguntar ao vosso superior… – Basta. Capisco – rosnou ele. – Os artesãos estão espalhados em cidades remotas das colinas no Sul. Eu não os procuro pelas minhas próprias razões, como vos disse. Dai-me o nome do negociante e eu dir-lhe-ei para vos devolver o dinheiro. – Não. Afinal, acho que vou ficar com o camafeu. Na verdade, afeiçoei-me muito a ele. Ele revirou os olhos, exasperado. A sua mão moveu-se rapidamente num gesto que ela suspeitou que fosse muito grosseiro. – Sois louca. Amanhã, estarei no barco para me assegurar que partis mesmo nele e direi uma oração de agradecimento ao ver-vos partir – anunciou, fez uma mesura brusca, e caminhou a passos largos para a porta. Elliot juntou-se a ela pouco depois. – Creio que o fizestes lamentar a visita que nos fez. Foi a balbuciar com cara de poucos amigos o caminho todo até à Chiaia. – Aparentemente, o interrogador não gosta de ser interrogado. Elliot reparou no camafeu que ainda estava na sua mão. – Estáveis a contar que ele viesse cá para lhe poderdes fazer perguntas sobre isso, verdade? Foi por isso que escrevestes a Marsilio. – Pensei que Sansoni pudesse saber uma coisa ou outra com respeito a estas falsificações. Ele parece saber tudo o que se passa. – Ficastes a saber o que pretendíeis? 267

– Ele não me deu as respostas de livre vontade e tão-pouco referiu nomes. Fiquei a saber tudo o que podia aqui em Itália e isso não é suficiente – replicou Phaedra e voltou a guardar o camafeu no bolso. – E vós? Ficastes a saber o que queríeis ontem quando vos encontrastes com Mr. Merriweather? A pausa que fez antes de lhe responder reconhecia o facto de ambos terem evitado falar antes sobre esse encontro. Ela esperava que assim fosse porque ele não queria estragar os últimos dias de ambos em Itália com alguma referência às memórias. – Fiquei a saber coisas que não sabia. Fiquei a saber que tentastes vê-lo antes daquele lamentável incidente com Marsilio. Ele evitara a verdadeira pergunta. Ela temia que isso fosse sinónimo de que ele não ficara a saber de todo o que desejava. Ela contara que ele trouxesse Merriweather consigo de volta para a villa para poderem colocar uma pedra sobre esse assunto. Tendo em conta o facto de não o ter feito e a sua vontade em evitar esse tópico agora, tudo indicava que Merriweather corroborara a descrição do seu pai daquele jantar remoto. O desapontamento que sentiu imobilizou-a. Ela suspeitara isso ontem, mas mesmo assim ainda tivera esperanças. Na noite anterior, nas profundezas da sua raiva e honestidade sombria, ela ficara a saber o que realmente se passara com a sua mãe. Talvez Elliot se tivesse refugiado completamente no trabalho para ter um motivo para evitar esse assunto e as suas implicações. – Por que razão vos queríeis encontrar com Merriweather, Phaedra? – Pela mesma razão que vós. – Então eu tinha razão. Tencionáveis incluir anotações e acrescentar nomes. – Não. Tinha esperanças que me dissesse que aquela passagem era falsa. Procurava uma desculpa para a remover, para poupar Alexia. Ela é uma das minhas amigas mais estimadas e é mais leal do que qualquer outra pessoa que eu conheci. Se eu pudesse obter a prova de que o meu pai tinha incorrido num erro, isso significaria que Alexia não seria obrigada a viver à sombra da má-língua e do escândalo. 268

Ele não se mexeu. Ela gostava que ele o tivesse feito. Ela gostava que ele a abraçasse com toda a doçura que sentira esta manhã. E se ele lhe pedisse este único favor, ela iria… O quê? Ela desejou com todas as forças nunca ter visto aquelas memórias. Ou pelo menos, que o seu pai não lhe tivesse extraído promessas. Naquele preciso momento, quase desejava, que Deus a perdoasse, não ter sido chamada ao seu leito de morte.

Tudo o que escrevi é a mais pura das verdades. Não existe ponta de calúnia ou difamação naquelas páginas. Prometei-me que não alterareis nada. Ela tivera esperanças de que ele estivesse enganado e de que essa passagem específica pudesse não ser verdade. Sendo assim, esta podia sair fora do âmbito da sua promessa e do próprio texto. Tudo indicava o contrário. O silêncio arrastou-se, insuportável, enquanto Elliot continuava na mesma posição, a fitar um ponto qualquer, tão próximo, mas também estranhamente distante. Ele encaixava-se tão bem neste pano de fundo hoje. A sua forma de proceder e presença pareciam enquadrar-se melhor neste grande salão do que as mobílias luxuosas que os rodeavam. – Não me ireis pedir que eu faça isso, pois não? A pergunta dela não o apanhou de surpresa. Ele sabia o que ela queria dizer. Ele sentia-o no ar que pairava à volta. – Se o fizer, ireis pensar que cada beijo que vos dei e cada toque foram um passo calculado em direcção a este momento. A imagem dele turvou-se. Os olhos dela encheram-se de lá-grimas. – Talvez não. Talvez fique feliz por ter uma desculpa para não magoar Alexia. Talvez pese os prós e os contras e decida que não é assim tão importante. Talvez… Ele puxou-a para os seus braços e silenciou-a com um beijo delicado. – Talvez façais essas coisas todas, mas nunca ireis acreditar em nenhuma delas. Não digais mais nada. Deixemos tudo isto para outro dia. A

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viagem até Inglaterra é longa e os nossos deveres não chamam por nós, por enquanto. Ela deixou que os beijos dele a seduzissem, afastando a sua tristeza. Apoiou a cabeça no ombro dele à semelhança do que fizera esta manhã. Ser amparada desta forma, rodeada pelo calor e força dele, era a melhor parte deste caso amoroso. Não sentia qualquer perigo ou receio nestes momentos, apenas uma paz extraordinariamente lenitiva. Nessa manhã, o abraço dele também apaziguara a dor e acalmara a confusão. A noite deixara-a destroçada, a sentir-se uma imbecil por se ter tornado uma acólita da sua mãe, por ter sacrificado tanto em prol de crenças vazias. Ele podia ter tirado partido disso nessa altura de tantas formas diferentes. Em vez disso, ajudara-a a reunir os pedaços destroçados e a juntálos novamente num todo. Ele encostou o nariz ao cabelo dela e assentou-lhe um beijo no topo da cabeça. – Qual era a outra razão que tínheis para visitar Merriweather? Dissestes que existia outra para além das memórias. – Tinha esperanças que ele me pudesse apresentar a algumas pessoas da comunidade inglesa local. – Ele devia ter-vos recebido. Não devia ter-vos deixado para vos desenvencilhardes sozinha. – Ao fim e ao cabo, a inconveniência foi de pouca monta. Ela deu-lhe um beijo na cara para o encorajar a deixar isto tudo para outro dia também. Nesse momento, sentia-se demasiado feliz para falar mais desse assunto. Ele recordar-se-ia muito em breve por que razão a filha de Artemis Blair não era recebida e se desenvencilhava sempre sozinha.

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Capítulo 18 L

ondres em Setembro era tão deserta como Nápoles em

Julho. Não era um mês no qual a alta sociedade inundava as lojas em Oxford Street ou enchia os parques públicos durante as horas de passeio. A casa de Easterbrook não fora fechada, porém. Elliot encontrara-a com o batalhão habitual de criados quando chegou de Southampton. Os criados explicaram-lhe que a sua tia Henrietta e a prima Caroline se haviam retirado para a propriedade rural de Easterbrook de Aylesbury, mas que o marquês permanecera na cidade. Elliot presumiu que o irmão estava a deliciar-se no seu isolamento após ter-se visto livre das mulheres. Podiam passar dias antes de ele sequer ver Christian. Ele voltou a habituar-se à casa e aos serviços de um criado de quarto que antecipava todas as suas necessidades. Estivera fora tempo suficiente para a sua vida antiga lhe parecer irreal e alheia e tentou encontrar algum tipo de satisfação no seio dos espaços e das rotinas que conhecia desde a infância. Em vez disso, os seus pensamentos concentraram-se em torno de Phaedra. O início da viagem fora marcado por alegria, mas esta fora substituída por um estado de espírito semelhante ao desespero no final. Na última semana, o seu desejo por Phaedra fora intenso e impregnado de fúria.

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A fome que sentia por ela não tinha fim e atirara a discrição pela borda fora em resultado disso. Apesar do prazer febril, nada ficara decidido. Não voltaram a mencionar as memórias de Richard Drury após aquela tarde em Nápoles. Nem tão-pouco Elliot recebera quaisquer promessas da parte dela a respeito da paixão que partilhavam. Nenhumas declarações de fidelidade. Nenhum tipo de combinação para continuarem como amantes. Nem sequer sugestões de que eles poderiam ser amigos. Elliot deixara-a sozinha fazendo jus à independência solitária que professava na sua pequena e estranha casa próxima de Aldgate. Ele afastara-se na carruagem sem tão-somente a certeza de que ela desejava o seu regresso. Serviu-se de um pouco de brandy e levou-o até aos seus aposentos. A seguir, retirou os papéis da mala e sentou-se à secretária da sua sala de estar. Elliot começara a fechar a porta da sua mente aos caprichos da vida quando chegou um criado, abrindo-a de par em par novamente. – O marquês pede que o acompanheis ao jantar esta noite, senhor. Ele sentiu-se tentado a declinar o convite. A conversa que o irmão pretendia não podia ser evitada para sempre, mas estava a contar com as distracções de Christian, fossem elas quais fossem, para a protelar. – Dizei-lhe que estarei presente. – Mandastes dizer que íeis descer para jantar. A voz colocou todos os sentidos de Elliot em alerta. Estava muito perto da sua orelha. Assim como um rosto. Christian estava debruçado sobre ele, perscrutando os papéis em cima da secretária. Elliot puxou pelo seu relógio de bolso. – Deixai-vos estar. Já passa das dez – replicou Christian, estendendo o braço por cima do ombro dele para virar uma página. – Este comportamento é inaceitável, Elliot. Já é suficientemente mau que, por vezes, Hayden assuma um comportamento estranho, mas pelo menos aquela esposa dele provavelmente irá curá-lo disso. Se agora também decidistes ganhar esses

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hábitos excêntricos… – interrompeu-se e olhou para baixo bruscamente. – Porque ris? – Acho engraçado o facto de descreverdes Hayden como estranho ou excêntrico. – Não achais o comportamento dele estranho em relação àqueles estudos matemáticos? Na última Primavera, ele mergulhou numa existência pouco saudável e hermética e essa nem sequer foi a primeira vez. – Ele não é mais estranho do que o irmão mais velho e eu duvido que alguma vez virei a exibir sequer uma meia parte dessa estranheza. – Se não ficastes estranho, então, ficastes grosseiro. Estive à vossa espera na sala de jantar. Até me vesti e tudo. Christian vestira-se de facto, se se pudesse chamar a isso uma camisa aberta no colarinho e o cabelo longo escovado, mas, por outro lado, não envergava um robe e os pés não estavam descalços. Christian afastou-se. Deixou-se cair em cima dos estofos de uma cadeira de leitura e apontou para uma mesa próxima. – Trouxe um prato e um pouco de vinho. Receei que a viagem vos tivesse maltratado e precisásseis de comida decente. Para minha surpresa, não vos encontrei demasiado combalido para me fazer companhia, mas demasiado ocupado. Elliot ergueu-se e trouxe o prato e o copo para a sua secretária. – Pareceis em forma e saudável, Christian, e não tão magro como na altura em que me fui embora. Christian esticou as pernas e cruzou-as. – Tenho-me dedicado a desportos atléticos. Boxe, remo e afins. Pratico esgrima três vezes por semana. É uma tremenda maçada, mas não tenho outra escolha. Elliot provou um pouco do capão. O cozinheiro de Easterbrook era excelente e a ave nadava num molho aromático. Cheirava divinamente em comparação com as refeições servidas a bordo do navio.

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– O que vos compele a isso quando nada o fazia há apenas alguns meses? Christian levantou-se novamente e procurou algo nas estantes repletas de livros. Encontrou os charutos e serviu-se de um. – É possível que venha a entrar num duelo em breve. É melhor estar em forma militar quando esse momento chegar. Christian parecia a imagem perfeita da satisfação plácida en-quanto acendia o charuto. Podia ter acabado de anunciar que estava a praticar boxe e remo em preparação para uma noite no teatro. – Quem é que vos ofendeu assim tanto ao ponto de vos estardes a preparar em caso de vos desafiarem para um duelo? – Tenciono ser eu a fazer esse desafio e não o contrário – replicou e acenou languidamente com o seu charuto. – A nossa jovem prima Caroline está a ser cortejada por Suttonly, com quem Hayden cortou relações por razões que desconheço. É preciso dizer mais? – Sim. – A primeira temporada dela subiu-lhe à cabeça. A tia Henrietta não fez outra coisa senão encorajá-la. Agora, permitem que Suttonly continue a fazer-lhe a corte depois de Hayden ter tentado esmagar o romance incipiente com a sua bota. Hayden informou a tia Hen que se Caroline se casar com Suttonly, a porta desta casa e o acolhimento dela nesta família lhe serão vedados – explicou ele e soltou uma longa baforada de fumo. – Foi um passo ousado do nosso irmão, uma vez que se trata da minha casa e do meu acolhimento. Seja como for, ele subjugou a vontade da tia Hen de forma tão irrepreensível que não fiz questão de realçar esse facto. – Christian, suspeito que não dirigistes palavra a nenhum outro ser humano desde que a família foi para Aylesbury. A vossa explicação extensa só mostra um fascínio recém-adquirido com a vossa própria voz. – Estou a contar-vos as novidades da família. Não sejais impaciente. – Podeis voltar ao duelo?

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– Hayden disse a Suttonly para se afastar. Caroline chorou dias a fio. A tia Hen e Alexia levaram-na para o campo para recuperar. E Suttonly acabou de abandonar a cidade. É óbvio o que irá acontecer. A única coisa óbvia para Elliot era que Christian não tinha falado tanto ao longo dos últimos oito meses. – Por favor, elucidai-me. – D., o visconde Suttonly não vai desistir da sua demanda. Para ele, tornou-se uma questão de orgulho. Ele vai convencê-la a fugir para se casarem. U., Hayden vai segui-los e apanhá-los antes de se casarem, mas o mal, seja como for, já estará feito. E., Hayden não voltará atrás na sua rejeição de Suttonly. L., A tia Hen vai cair de cama e Caroline ficará com a reputação arruinada; e O., eu desafiarei Suttonly para um duelo. – E porque não é Hayden a desafiá-lo? Ele é o administrador dos bens de ambas e respectivo tutor. – Não posso permitir isso. Se ele perdesse a vida, Alexia tornar-se-ia uma viúva com um bebé por nascer. – Alexia está de esperanças? – Essas são as outras novidades – replicou. Christian assumiu novamente uma pose descontraída na cadeira. Bateu levemente no charuto para deixar cair as cinzas. Subitamente, deixou de ser o irmão sociável que fora até então para se transformar total e plenamente em Easterbrook. – Basta deste assunto. Falai-me da vossa viagem. Elliot comeu mais um pouco do capão e mastigou-o durante bastante tempo. Bebeu o vinho. As pálpebras de Christian baixavam um pouco mais a cada demora gastronómica. – Encontrei Miss Blair no endereço que Alexia me forneceu. – Ela tinha as memórias consigo? – Não, mas estão na sua posse. Tínhamos razão acerca disso. – Quanto é que isto me vai custar? – Infelizmente, ela não quis aceitar o nosso pagamento. 275

A jovialidade sociável que Christian trouxera consigo para a divisão desapareceu. – Quanto é que lhe oferecestes? – Não fui específico. Ela sentiu-se insultada com a mera sugestão de um pagamento. – Todos se sentem insultados com uma mera sugestão. É por isso que não vos podeis limitar a sugerir. Fixai um valor. Um grande valor. Depois não têm tempo para se sentir insultados porque vão estar demasiado ocupados a calcular o que podem comprar com esse ganho. – Nenhum valor a teria demovido. Ela prometeu ao pai no leito de morte que iria publicar as suas palavras e não se deixará desviar dessa promessa. Christian acompanhou o gesto de desdém que sentia pela promessa de Phaedra com outra nuvem de cinzas. – Então, teremos de o fazer de outra forma. Onde está o ma-nuscrito? – Ela não o tinha com ela, por isso parto do princípio que está aqui em Londres algures. – Não deve ser muito difícil de encontrar. O seu património deve ser diminuto. Deve estar na sua casa ou com uma terceira parte, um amigo ou o seu procurador – declarou. Christian pareceu ponderar sobre o problema. – Quando é que ela tenciona regressar a casa? Quanto tempo temos? Elliot considerou a hipótese de mentir. – Ela já está de regresso. Voltou no mesmo barco que eu. A atenção de Christian fixou-se no clarão incandescente do charuto. De seguida, transferiu-se bruscamente para Elliot. Era o olhar de um falcão que vê todos os pormenores no solo abaixo de si com toda a clareza. Christian ergueu-se. – Não tenho dúvidas de que destes o vosso melhor. Eu tratarei deste assunto a partir de agora. Elliot ergueu-se igualmente. 276

– Não. Ides manter-vos afastado dela. Não ireis fazer nada para a coagir. Christian fitou-o atentamente mais uma vez. Procurando. Especulando. E finalmente, sabendo. – Maldição. Ela seduziu-vos. – Não – respondeu Elliot. E ela não o seduzira. Não intencionalmente. – As coisas não se passaram dessa forma. – Independentemente da forma como se passaram, e da natureza que assumiram, ela amoleceu-vos. Enquanto desfrutáveis dos favores dessa bela donzela, tivestes ao menos a bondade de pedir o favor que mais desejáveis? Uma mulher habilmente satisfeita nesse campo pode ser assaz receptiva aos pedidos do seu amante. – Raios, não faleis dela nesses termos. – Em que termos deverei então falar? Como a vossa amada? A vossa amante? – perguntou e gesticulou de forma violenta na direcção da secretária. – Aposto que ela não vos deu motivos para pensar nela como a vossa seja o que for. Foi por isso que vos perdestes naquele mundo morto e remoto. As verdades que desenterrais lá são mais seguras do que aquelas que tendes de enfrentar aqui. Eles não estavam a gritar, mas as vozes de ambos cortavam o ar e o outro como uma faca. – Se algum de nós os dois sabe por que motivo isso acontece, teríeis de ser vós, Christian. Estais a passar toda uma vida nesse lugar, diabos! – Bem, não estou lá agora, nem estarei até isto estar resolvido. As palavras não foram proferidas com a intenção de uma amea-ça, mas Elliot reagiu como se se tratasse de uma. O facto de que, a cada afirmação, o actual Lord Easterbrook se parecer cada vez mais com o último, não ajudava em nada a desfazer essa impressão. – Ela não se mostrou indiferente aos nossos receios a respeito do nome da família – disse Elliot, tentando tornar o seu tom de voz mais razoável de

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forma a apelar ao bom senso do irmão. – Ela estava disposta a abrir uma excepção só para nós e a aceitar uma solução de compromisso. – A abrir uma excepção só por vós, quer dizer. Na verdade, fora por Alexia. Ele explicou o que diziam as me-mórias e a forma como o pai de ambos era mencionado. De seguida, descreveu o seu encontro improfícuo com Merriweather. Christian escutou-o com uma expressão interessada e sombria. – Merriweather é um imbecil. – A honra não o deixou mentir. Seria ignóbil da vossa parte recriminálo por causa disso. – Não me digais que agora também sois o protector de Merriweather, para além do de Miss Blair. Não, esperai, não desempenhais esse papel na vida dela, pois não? A crença dela no amor livre significa que ela está livre quer dos direitos, quer das expectativas que isso daria a um homem. Elliot esperou por mais reacções às suspeitas de Merriweather e as implicações que possuíam em relação ao pai de ambos. Negação. Fúria. Em vez disso, o irmão permaneceu friamente impassível e reveladoramente calmo. – Maldição. Já sabeis a verdade – afirmou Elliot, estarrecido. – Já sabeis se ele é culpado ou não. – Não sei nada disso. – Então sabeis como tirar isso a limpo. – Eu não quero tirar isso a limpo. Nem tão-pouco precisarei de o defender se Miss Blair eliminar essa passagem. Se ela não o fizer e Merriweather não a negar, vamos ver-nos a braços com muito mais do que a má-língua da sociedade. – Se não for verdade, não haverá nada a temer e tudo a ganhar se a história vier a público. Acho que devíamos fazer isso, descobrir se é verdade ou não, para sabermos. – Vou repetir, eu não quero tirar isso a limpo. 278

– Christian, pode não ser verdade. Christian caminhou até à porta. – Que filho optimista vos estais a revelar. Mas, ao fim e ao cabo, também não o conhecíeis assim tão bem. Quanto a Miss Blair, irei considerar evitar interferir por respeito aos vossos sentimentos. No entanto, existem outros com um interesse considerável nessas memórias. É im-provável que ela consiga enfeitiçar todos os homens dessas famílias.

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Capítulo 19 P

haedra deslizou para fora da tipóia de aluguer abraçada a

um embrulho grosso nos braços. Acenou em despedida às mulheres com quem partilhara os assentos. Ela descobrira há muito tempo que, com um pouco de ousadia, era possível encontrar desconhecidas com as quais partilhar o aluguer de um veículo. A sua visita à City não levara muito tempo em resultado disso. Ela protelara a ida à City para recuperar o manuscrito durante vá-rios dias. Primeiro, precisava de descansar após a viagem. De se-gui-da, precisava de se instalar novamente e visitar alguns velhos amigos. Ela aguardava igualmente a visita de alguns velhos amigos e, em particular, a de Alexia. Ela esperava que a ausência de cartas e cartões de Alexia fosse sinónimo de uma visita ao campo e não um repúdio da amizade de ambas devido ao embrulho que ela agora transportava. Ela não podia recriminar Alexia se este último motivo viesse a ser confirmado. Nem um pouco. A honestidade era uma virtude que ela tentava praticar, especialmente consigo própria. E foi por isso que esta manhã tinha enfrentado a verdade enquanto se vestia. Ela tinha um dever que não queria, mas chegara a altura de assumir essa responsabilidade. As cartas que estavam à sua espera quando

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regressara tornavam isso bem claro. A que chegara no dia anterior tinha feito soar o alarme. Havia pessoas para além de Elliot que queriam ver as memórias destruídas e estavam dispostas a pagar generosamente por isso. A carta anónima de ontem tinha ido muito além de ofertas de subornos. Continha uma ameaça velada, mas suficientemente clara para lhe arrepiar os pêlos da nuca. Se ela não tivesse feito aquela promessa ao seu pai, provavelmente terlhes-ia dado tudo o que quisessem. Queimaria estas páginas e deixaria a editora falir. Quase não se importava com a perspectiva de vir a ficar sem um tostão se o fizesse. Ela virou a esquina que dava para a sua rua e começou a aproximar-se da porta de casa. Antes de chegar, parou e deu algumas moedas à pedinte Bess. – Esses gatos sabem que estais cá – disse Bess, apontando com o queixo para o edifício atrás de si. Phaedra não ouvia o miar tão bem como Bess. No entanto, conseguia ver os gatos, um preto e o outro branco, do outro lado do vidro fosco das janelas da casa ao lado da sua. Uma velha mulher afagava um dos animais ao mesmo tempo que uma menina fazia o mesmo ao outro. As vizinhas haviam acolhido os gatos quando ela partira para Itália. O apego da pequena Sally aos dois animais transformava o que devia ter sido uma solução temporária em algo mais permanente. – Apareceu aqui uma carruagem há pouco – disse Bess. – Bem grande, pelo som que fazia. Não parou, mas passou mesmo muito devagar. Ninguém foi à vossa porta antes do que está lá agora. Bess escolhera este lugar para o seu mister há cinco anos. Apesar da sua cegueira, a velha mulher dera-se conta de que as visitas de Phaedra tinham mais dinheiro do que a maior parte das pessoas que vinham àquela rua e que uma proximidade da porta de Miss Blair podia ser rentável.

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Uma dessas visitas aguardava agora por ela, com as costas apoiadas na sua porta. Uma grande pasta de documentos estava encostada às suas pernas e tinha um pequeno livro aberto nas mãos onde desenhava. Harry Lawrence, um jovem artista com o qual encetara uma relação de amizade no passado Inverno, aguardava o seu regresso. Ela esquecera-se por completo da sua carta que chegara ontem a dizer que lhe ia fazer uma visita. Aquela outra carta suprimira essa memória. – As minhas desculpas – disse ela, após se terem saudado. – A minha visita à City demorou mais do que contava. – Não tem qualquer importância. Desenhei a pedinte, assim como a prostituta à janela do outro lado da rua. Um artista nunca se aborrece. Ela conduziu-o até à sua sala de estar. Pousou o manuscrito numa mesa ao lado do divã onde este ficou à espera que ela terminasse de desempenhar o papel de anfitriã. Phaedra e Harry passaram a hora seguinte a olhar para os desenhos. Ela preferia de longe os esboços expressivos do seu caderno de rascunhos aos estudos meticulosos que fizera em preparação para uma pintura extensa que pretendia submeter à Academia Real. Outra visita interrompeu a sua explicação para essa preferência. Quando Phaedra abriu a porta, encontrou Elliot à sua espera. O coração dela deu um salto e a alegria paralisou-a. A sua única reacção foi fitá-lo intensamente, de novo aturdida pela forma como ele perturbava os seus sentidos. Durante um longo momento, limitaram-se a olhar um para o outro. Ele estendeu-lhe o seu cartão. – Espero que Miss Blair esteja em casa hoje. Ela aceitou o cartão e examinou-o com uma expressão crítica. – Bem, talvez esteja, somente para vós. Ela abriu completamente a porta e deu-lhe um beijo na cara quando ele passou diante da soleira da porta. Ele fechou a porta e abraçou-a enquanto lhe dava um beijo menos decoroso. – Não me escrevestes – disse ele. – Eu não podia esperar mais. 282

Ela não lhe escrevera porque não sabia o que escrever. Só sabia que não queria que a ligação entre ambos tivesse uma morte triste e temia que fosse esse o seu destino se fosse continuada em Londres. A sua alegria neste momento, envolta no beijo e no calor dele, na sua mera existência tão próxima da dele, prenunciava a tristeza que poderia vir a sentir. Isso não iria estragar esta felicidade, porém. Só tinham passado quatro dias, mas as saudades que sentia dele já eram insuportáveis. Só agora se dera conta da intensidade desse sentimento. Ela conduziu-o à sala de estar, regalando os olhos com o rosto dele. Ele deteve-se à soleira da porta. O sorriso dele retesou-se numa linha menos amigável. Ela seguiu o seu olhar furioso e dissimulado até ao lugar onde Harry ainda estudava atentamente o seu caderno de rascunho. – Parece que Miss Blair não está em casa somente para mim – murmurou ele. – É um dos vossos amigos, Phaedra? Ela estava tão feliz que, na verdade, achou o ciúme lisonjeador, pese embora o facto de servir de prenúncio a tudo aquilo que estaria errado entre ambos aqui em Londres. Ela apresentou os dois ho-mens. Harry, exibindo toda a doçura e inocência que por vezes lhe eram características, mostrou-se tão efusivo por conhecer um membro da aristocracia aqui na casa humilde de Phaedra, que pouco faltou para desatar a dançar de alegria. Elliot foi a imagem perfeita da afabilidade. Sentou-se ao seu lado e fingiu interessar-se pelos desenhos. Phaedra pressentiu a sua impaciência com uma visita que não estava a correr da forma que antecipara. – Creio que irei dar-vos a oportunidade de brindar ao meu re-gresso sã e salva – anunciou ela. – Voltarei daqui a nada com as bebidas espirituosas necessárias. Ela saiu da sala enquanto Harry explicava as suas intenções artísticas com respeito a uma imagem imponente de um general no dorso de um cavalo. Dirigiu-se à cozinha, serviu duas doses generosas de brandy e regressou à sala de estar.

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Harry desaparecera, assim como todos os seus esboços e desenhos. Elliot estava de pé junto da parede a analisar a sua água-forte de Piranesi que retratava uma prisão macabra. Ele aproximou-se para lhe tirar os copos das mãos. De seguida, colocou um dos copos na mesa ao lado do seu divã e beberricou do outro. – Mr. Lawrence teve de nos deixar – disse ele. – De forma abrupta, aparentemente. – É provável que já tenha visto um homem a mexer-se mais depressa do que ele, mas não me consigo recordar quando. – O que lhe dissestes para o fazer sair com tanta pressa, Elliot? – Admirei o seu talento prodigioso e aludi à possibilidade de adquirir o seu novo quadro para a colecção de arte de Easterbrook. Oh, sim, e também lhe disse para desaparecer ou morrer. Ela reprimiu um risinho ao imaginar a reacção de Harry. – Isso foi muito pouco correcto da vossa parte. – Não estou nada arrependido. Ele olhou em volta na sala de estar. O seu olhar deteve-se nos estofos gastos do divã. Os xailes venezianos que os cobriam não conseguiam esconder completamente o seu tecido puído. – Esta era a casa da vossa mãe? – Ela arrendava aposentos em Piccadilly. Eu comprei esta casa quando dei início à minha vida independente. – Quando tínheis dezasseis anos. A má escolha de vizinhança pode ser explicada pela sua inexperiência, mas continuais a morar aqui. – É a minha casa. Já conheço todas as pessoas que aqui vivem. Sintome feliz aqui. – Há uma pedinte à vossa porta e uma mulher a mostrar os seios à janela do outro lado da rua. – São ambas inofensivas e qualquer uma delas arriscaria a sua própria vida para me salvar de um incêndio. 284

– Não me tranquilizastes em nada com a menção a um incêndio, tendo em conta o estado em que se encontram os edifícios nesta rua. Quero que me deixeis procurar um sítio melhor para vós. Ela sentou-se no divã. Elliot já não exibia a expressão amigável que mostrara à chegada. A severidade dos Rothwell apoderara-se dele. Ela sabia porquê, mas preferia que eles pudessem ter adiado esta conversa pelo menos durante cerca de uma hora. – Viestes até cá para vos oferecer para me manter, Elliot? Ele sentou-se ao seu lado. – Vim porque não consegui ficar longe de vós. – Então a oferta de uma casa melhor foi um impulso? – Não reparei que esta rua era assim tão pobre quando vos deixei aqui no outro dia. Os meus pensamentos estavam unicamente concentrados na nossa despedida e no quanto eu não queria que isso acontecesse. Nem tãopouco esperava encontrar-vos a receber outro homem tão pouco tempo depois… – interrompeu-se, cerrando os dentes. De seguida, bebeu mais um pouco de brandy. – Elliot, os homens visitam mulheres em todas as casas de Londres. Nas melhores casas. Até mesmo nas casas de mulheres por conta de outros homens. Decerto que já o fizestes. Uma visita de um homem não significa que está em curso um caso amoroso. – Estais a dizer que aquele artista não era o amante que aguardava o vosso regresso? Ele tentou evitar que a pergunta parecesse a exigência de uma explicação. Tentou igualmente esconder o seu alívio perante a possibilidade dessa explicação. Ela considerou ambas as reacções assaz enternecedoras. – Estou a dizer que ele não é, actualmente, meu amante e não espero que venha a ser no futuro próximo. Tendo em conta o facto de não serdes casado, nenhuma outra mulher alguma vez vos pôde dar uma garantia maior do que essa. Não consigo imaginar por que motivo precisaríeis de mais garantias da minha parte. 285

A expressão dele sugeria que não estava feliz com a ausência de uma negação definitiva. – Em todo o caso, continuo a preferir ver-vos a morar noutro local. – Eu não sou uma cortesã, Elliot. – Não me estava a oferecer para vos manter. Só quero cuidar da vossa segurança. – Primeiro é a minha segurança, depois, o meu conforto e, de seguida, o meu bem-estar. Chamai-lhe o que quiserdes para começar, mas vai terminar no mesmo sítio – replicou ela. Phaedra colocou a mão no rosto dele. A sensação da pele dele sob a palma da mão deixou-a ligeiramente tonta. – Não me façais lamentar o pouco apoio que aceitei da vossa parte em Itália. Já devíeis saber que eu não podia permitir que isso continuasse aqui. Se alugardes uma casa para mim, tornar-me-ei uma meretriz, independentemente da filosofia que professar. – Pelo menos, dessa forma não vos irei encontrar sozinha com outros homens, Phaedra. Estive muito perto de esmurrar aquele vosso artista hoje – confessou ele, tomando a mão que o afagava para lhe depositar um beijo. – O regresso a Londres não fez com que vos quisesse menos. Aparentemente o meu desejo não foi provocado pelo sol do Sul, mas lamento profundamente perder os poucos direitos que as circunstâncias me deram lá. Ela percebeu o que ele queria dizer. Os beijos dele reanimaram a excitação a um ritmo demasiado veloz, mas algo mais do que o prazer sobrevivera ao regresso de ambos. Ela mergulhara num estado nostálgico que durava há dias à medida que memórias e sentimentos invadiam a sua cabeça e coração. – Não posso permitir que sejais o meu protector. Não serei a vossa amante. Não podemos viver juntos como fazíamos em Itália. Mas podemos ser amigos, Elliot. Podemos continuar as nossas vidas da mesma forma e ainda assim partilhar isso um com o outro. Os lábios dele pressionaram de novo a palma da sua mão. Os olhos dele fecharam-se.

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– Se fizermos isto, não pode existir outro homem. Não sou suficientemente iluminado para isso. – Se eu alguma vez quiser outro homem, dir-vos-ei. Estou certa de que me dispensareis a mesma cortesia. Terminaremos essa parte da nossa amizade com dignidade se um ocaso sobrevir à luz do sol que o ilumina. Ele beijou-a. Ela apercebeu-se da discussão interior que ele levava a cabo nesse preciso momento, como se estivesse a pesar o que perdia e o que receberia num acordo desta natureza. Os olhos dele fitavam-na muito sérios. Um medo terrível fez tremer o seu coração. Ele podia recusar a sua proposta. Estava a ponderar fazê-lo nesse preciso momento. Ela conseguia sentir isso. O coração de Phaedra foi trespassado por uma dor mais lancinante do que a provocada por um mero pesar. A mágoa começou a irromper do golpe profundo gerado pela dor. A mágoa, o pavor, o pânico e o medo. Ela beijou-o furiosamente. Desesperadamente. Evocou o desejo dele com o seu próprio desejo para que ele se lembrasse por que razão a queria. Ele reagiu com a mesma fúria, agarrando-a pelos braços e segurandolhe a cabeça para receber um beijo castigador. Fê-la lembrar dos abraços febris no barco, repletos de exigências mudas. Ela sentiu ira à mistura com o prazer, mas ignorou-a. O seu coração experimentava agora um alívio imenso e uma alegria incrível. – Onde é o quarto? – perguntou ele, com a voz rouca. – Vinde comigo – respondeu ela. Pegou-lhe na mão e conduziu-o escadas acima até ao seu quarto. Ele não reparou no mobiliário modesto que encontrou lá em cima. Ela não lhe deu tempo para isso. Phaedra desfez os laços do vestido e deixou-o cair no chão. Ele esticou os braços para lhe tocar. Ela impediu-o, empurrando o peito dele com as mãos. – Deitai-vos na cama – disse ela.

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Ele mostrou-se surpreendido com a ordem, à semelhança da reacção dela em Portici. Ela deu-lhe um pequeno empurrão. Com uma gargalhada, Elliot deixou-se cair na cama de Phaedra. – Devo recear pela minha virtude? – Sem dúvida – respondeu ela. Phaedra pôs-se em cima dele e prendeu o corpo dele com os joelhos. Os dedos dele afloraram junto à bainha da sua combinação. Ela afastou a mão dele com uma palmada. – Agora é a vossa vez de ser tomado, senhor. – Então, tirai-a por mim, Phaedra. Deixai-me ser tomado pela vossa beleza. Ela despiu-a e recuou um pouco, sem desviar o olhar dele. O sorriso dele maravilhou-a. Os olhos dele exibiam uma profundidade estonteante. – Estou a olhar para uma deusa. Foi o que pensei naquela noite na torre quando subi as escadas e vos vi. Nunca tinha visto uma mulher tão confiante e tão bela na minha vida. E tenho a certeza de que nunca mais irei ver. Ela tentou sorrir, mas a boca dela tremeu. As palavras dele comoveram-na. Ela inclinou-se para o beijar e começou a despi-lo. – Enquanto vos deixais tomar pela minha beleza, eu tomarei a vossa beleza. Ele continuou a tentar acariciá-la enquanto ela se debatia com os botões da roupa dele. Tornou-se um jogo no qual ela se desviava das mãos travessas de Elliot ao mesmo tempo que tentava terminar a sua tarefa. Finalmente, no meio de risos, da sua falta de jeito e de um mau bocado a braços com as botas de Elliot, ele ficou nu por baixo dela. Ela sentou-se novamente em cima das coxas dele. A euforia de ambos dissipou-se lentamente para dar lugar a uma paz doce na qual o desejo e a boa disposição de ambos estavam unidos. Ele agarrou na ponta de uma madeixa de cabelo dela e entrelaçou-a nos dedos, observando-a. A seguir, o seu olhar regressou ao rosto dela.

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A sua expressão ainda estava iluminada com a alegria de ambos, mas o entendimento especial e a intimidade que partilhavam estavam presentes nos olhos dele. – Sabeis como tomar um homem, Phaedra? Apesar de toda a vossa ousadia, duvido que o saibais. Ela sentiu as faces a corar. – Sei. Mas o conhecimento e a experiência não são a mesma coisa. Seja como for, espero dar conta do recado. Existiam razões para ela nunca antes ter tomado um homem. As suas amizades passadas não possuíam qualquer semelhança com esta. Ele puxou suavemente a sua madeixa de cabelo. A cabeça dela obedeceu ao convite. Ela beijou-o. Pressentiu o impulso dele para assumir o comando e tornar o acto da tomada de corpos tão mútuo quanto possível. Em vez disso, ele submeteu-se à sua boca e língua. Ela beijou-o mais abaixo, no pescoço e no peito. O corpo dela foi agitado por reacções novas que a fascinavam mesmo quando o frémito da sua própria excitação se fazia sentir. Ela já fora uma participante activa antes, mas isto era diferente. Phaedra começou a compreender de que forma o prazer dela lhe dava prazer a ele. Ela acariciou-o da cabeça aos pés enquanto beijava e lambia. Saboreou o toque do seu corpo e os sinais dos efeitos que este tinha sobre ele. O seu poder arrebatou-a. Pareceu a coisa mais natural do mundo beijá-lo todo, as suas ancas, coxas e barriga, e até mesmo a erecção que a sua mão cingia. Ele tocou-lhe levemente na cabeça. Era um gesto de encorajamento e um pedido. Ela utilizou a boca para o tomar plenamente, da melhor forma que o seu instinto a comandava. Ele não conseguiu conter o seu próprio abandono. Elliot abdicou do controlo sob si próprio de formas que nunca antes havia abdicado. Quando ela se sentou de novo sobre o corpo dele e o tornou seu, a rendição de Elliot era patente aos olhos dela.

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Esta não era a primeira vez que ela estava por cima dele, mas desta vez era diferente. Ela permitiu que ele a acariciasse, mas a atenção dela estava concentrada na união de ambos. A sua percepção estava imersa na dureza dele dentro de si, nas exigências do seu corpo e nos movimentos das suas ancas à medida que o absorvia. Até mesmo o seu próprio êxtase pareceu diferente, mais poderoso e violento. Ela insistiu para ele aceitar que também chegara a sua altura. Ela nunca se perdeu a si própria, nem por um único instante. Experimentou todas as sensações de prazer num estado completo de alerta. Phaedra deixou-se cair sobre ele muito à semelhança da forma como ele cairia sobre ela. Os braços dele envolveram-na, prendendo-a bem junto a ele. As respirações aceleradas de ambos fundiram-se, reflectindo a exaustão de ambos. Ela rodou o rosto no seu ombro para que o perfil dele ficasse junto ao nariz dela. Os olhos dele estavam fechados, mas ele sentiu a atenção dela sobre si. Um sorriso começou a desenhar-se-lhe nos lábios. – Convosco, não existem meias-medidas, Phaedra. Ela perguntou-se se ele estava chocado por a experiência ter ido tão longe. – Era isso que queríeis, meias-medidas? – Mil vezes não – replicou ele e voltou a cabeça para olhar para ela. – Sou suficientemente egoísta para estar feliz por terdes o conhecimento, mas estou igualmente feliz por não terdes tido a experiência antes. Era-lhe completamente impossível ter tido esta experiência antes, ou muitas das outras que ela havia permitido a este homem. Havia uma diferença entre um amigo e um amante. – É comum dizer-se que não é algo que mulheres normais e decentes façam – disse ela. – Suspeito que muitas pessoas normais e decentes mentem sobre isso. – Alguma vez o tínheis feito com uma mulher normal e decente? – Antes do dia de hoje, é essa a vossa pergunta? 290

Ele provocou-lhe um pequeno sobressalto de surpresa. A seu ver, a parte do decente não andava longe da verdade, mas a do normal… Ele soltou um riso abafado e deu-lhe uma pancadinha no nariz com o dedo. – Estáveis tão arrebatada pelo vosso próprio poder que hesito em dizer isto, mas… Ela aguardou pacientemente. – Também eu possuía o conhecimento, mas não a experiência.

Se um ocaso sobrevir à luz do sol que o ilumina. Os dedos dele desceram pelo peito de Phaedra e ao longo do vale de seda entre os seus seios. Se. A forma como essa palavra o afectara maravilhara-o. Não quando, mas se. A alegria dele tinha sido completa. Infantil. Ridícula. Minha. Ele imaginou o seu futuro se esse ocaso nunca viesse a acontecer. O facto de sentir contentamento e não preocupação perante essa ideia deixou-o assombrado. Talvez a filosofia de Phaedra estivesse correcta e a própria ausência de vínculos legais ajudasse o desejo a sobreviver ao longo do tempo. Mas tudo levava a crer que ela própria não acreditava nisso, ou não acreditava que isso acontecesse com ele. Ela aludira a um para sempre, assim como a um final, na frase imediatamente a seguir. Ela pode ter dito se, mas não tinha esperanças que qualquer parte da amizade entre ambos sobrevivesse à publicação daquele manuscrito, e muito menos esta parte em particular. Iria sobreviver? Poderia sobreviver? Ele não sabia. Não devia encarar o dever dela como uma traição. Ele nem sequer queria que ela o pusesse de parte por sua causa. Esta paixão possuía uma clareza que ele não queria obscurecer com negociações tão ignóbeis. Por outro lado, ele devia à família a sua lealdade de forma tão inevitável como ela. Devia mais do que isso a seu pai, mais do que queria admitir.

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Christian não queria saber. Talvez tivesse até envidado todos os esforços e mais alguns para permanecer na ignorância. Contudo, saber a verdade podia ser a única forma de solucionar o dilema. – Tenho de vos pedir uma coisa – disse ele. – Neste momento, são muito poucas as coisas que vos recusaria, Elliot. Se tendes de pedir, eu provavelmente terei de dar. Isso não era verdade. Ela reservava para si muitas coisas que não queria dar, razão pela qual ele se preparava agora para solicitar tão-só uma pequena parte do que desejava. Razão pela qual ele atravessaria toda a cidade até esta rua humilde para receber aquilo que ela se predispunha a dar. Talvez, com o tempo, se conseguisse habituar à sua ausência total de direitos e àquilo que ela não lhe queria dar, mas duvidava que alguma vez se visse livre da vontade de querer mais. – Em Nápoles, Merriweather não pôde negar que o jantar que o vosso pai descreve ocorreu de facto. Nem tão-pouco que a conversa se desenrolou nesses termos. No entanto, ele não sabe se as suspeitas dele estão correctas. Se eu encontrar provas de que ele estava errado, ou de que aquela morte na Colónia do Cabo não teve qualquer ligação à minha família, eliminareis aquela passagem? Ela pareceu achar a sugestão interessante. – Tendo em conta que eu presumi que tivesse ligações à vossa família, como estou certa de que o meu pai o fez… O meu pai incumbiu-me de fazer com que as suas palavras verdadeiras fossem impressas. Se eu souber que não é esse o caso, ou que podem lançar suposições falsas sobre alguém… Sim, Elliot, podia eliminá-la – declarou ela e sorriu pesarosamente. – Talvez fosse boa ideia colocar um anúncio no The Times a oferecer o mesmo aos demais. Não fostes a única pessoa que me tentou subornar para editar livremente as memórias de Richard Drury. A minha caixa de correio lá em baixo está repleta de ameaças e súplicas. Não restam dúvidas de que o meu antigo sócio tentou este esquema com outros e de que estes já sabem quem detém agora quer as memórias, quer aquela editora.

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– Se fôsseis menos honrada, teríeis em breve os meios para adquirir uma casa melhor sem a ajuda de ninguém. Podíeis vir a receber uma fortuna só da parte de Easterbrook. Ele não queria dar a impressão de uma possível reabertura das negociações com as suas palavras, mas se ela expressasse o mais pequeno interesse na dimensão dessa fortuna… Ele devia preparar-se para enumerar todas as razões pelas quais ela devia ser prática. Ele não se importaria de fazer este problema em particular desaparecer se ela pensasse da mesma forma. – Dissestes uma fortuna? Só de Easterbrook! Deus do Céu, não fazia ideia de que a chantagem era assim tão lucrativa – exclamou Phaedra, e ostentou uma expressão de falsa hesitação e ponderação. – Uma fortuna de que tamanho? – Cinco mil. A quantia fora-lhe comunicada esta manhã. Chegou no seu tabuleiro do pequeno-almoço, escrita na letra irrepreensível do irmão. Sem palavras, sem o símbolo da libra, somente o algarismo cinco e os zeros necessários. Ele interpretou-a como a ordem que era, e igualmente como um aviso de que Christian não aceitara que Phaedra devia ser deixada em paz para decidir o seu próprio rumo. – Isso é uma quantia ridícula. Receio que Easterbrook esteja de facto meio louco. Felizmente, vou poupá-lo a um desfalque dessa magnitude porque não tenciono aceitá-lo. Eis a prova. Christian estava errado. Um grande suborno não fazia vacilar toda a gente. Phaedra não se sentira insultada, mas também não estava a calcular o que podia comprar. – Se eu recebesse uma fortuna dessa natureza, depois teria de viver de acordo com ela – devaneou ela. – Pensai nas consequências. Um novo guarda-roupa, é claro. Um sem-número de espartilhos, fitas e ganchos. Depois, precisaria de criados para tratar dos meus luxos e para me vestirem. Afinal, também ela começara a calcular. Era irritante constatar que Christian tinha razão. 293

– Iríeis aprender a gostar dos luxos. E ele gostaria de a ver a recebê-los. Ela merecia melhor do que esta casa e o hábito de contar tostões de que devia padecer. – Oh, mas todos aqueles criados seriam uma grande maçada. Seria difícil ficar na cama assim durante toda a tarde e toda a noite, saindo dela apenas por breves momentos para um jantar simples que eu própria tratarei de cozinhar. – Estais a convidar-me para ficar para o jantar? Um jantar que será cozinhado por vós? A ideia evocou imagens encantadoras e domésticas. Quase tão encantadoras como aquelas que tinham a ver com a noite que se seguiria ao jantar. E dos dois, era Phaedra quem receava perder vontade própria. Se ela soubesse… – Claro. Estais com fome? Ele mexeu ligeiramente a mão. O seio dela retesou-se sob ela. – Tenho sempre fome quando estou convosco, Phaedra. * Ele vestiu-se nas sombras cada vez mais ténues do quarto. De seguida, olhou para o corpo pálido e adorável de Phaedra no meio dos lençóis desalinhados. Ela estava deitada de barriga para baixo com o rosto meio coberto pela almofada que abraçava. As pernas continuavam afastadas e as suas nádegas redondas expostas, tal como na última vez que ele a possuíra, apenas uma hora antes. Ele podia ter ficado ali a olhar para ela durante horas. Sabendo que isso só iria aumentar a obsessão que já sentia por ela, ele deixou-a a dormir e desceu até ao piso inferior. A cozinha ainda exibia os restos do jantar que ela servira na mesa corrida perto da lareira. Tendo em conta o facto de estarem os dois nus, teria sido ridículo pôr a mesa na sala de jantar.

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A sala de estar, com a sua colecção heterogénea de mobília e arte, era a divisão que exibia mais luz da alvorada entre todas as outras. Ele caminhou até ao divã e à mesa junto dele. O segundo copo de brandy ainda estava lá, intocado, mesmo ao lado de um embrulho de volume considerável embrulhado em papel. Ele reparara naquele embrulho no dia anterior quando chegara. Tinha aproximadamente as mesmas dimensões de uma resma de papel. O tamanho perfeito de um manuscrito de um livro. Elliot quebrou o selo do embrulho, que caiu no chão. No mo-mento seguinte, fitava a primeira página das memórias de Richard Drury. Ele partiu do princípio de que as memórias estariam organizadas por ordem cronológica. Se quisesse encontrar as páginas ofensivas, não seria difícil localizá-las. O silêncio que envolvia a casa rodeou-o. Phaedra dormia profundamente lá em cima. Da rua chegavam escassos sinais de vida. Ele não conseguiu resistir a tocar nas páginas empilhadas de forma tão ordenada. Fez deslizar o polegar pelos cantos das páginas, espalhando-as de forma cautelosa em forma de leque. Ele duvidava que existisse uma cópia. Phaedra tinha sido muito pouco cuidadosa com o manuscrito ao abandoná-lo ali. A ideia de que ela queria que ele cedesse à tentação invadiu-lhe a mente. Se o manuscrito, ou até mesmo aquelas páginas, desaparecessem, ela seria desobrigada da promessa a Richard Drury. Ela própria jamais quebraria essa promessa, mas podia-se dar o caso de ela não lamentar não ter tido qualquer escolha nessa matéria. E se, por outro lado, ela o considerasse uma traição? Christian consideraria que o final do caso amoroso do irmão seria um preço pequeno a pagar. Christian encontraria igualmente uma forma de compensar Phaedra sem ela se dar conta disso, se Elliot o exigisse. Dessa forma, ela seria dotada de alguma segurança. Não teria de viver de modo tão frugal. Se ela se vestisse de acordo com os ditames da moda e se mudasse para a parte ocidental da cidade, podia ocupar o lugar deixado vago 295

pela sua mãe entre os homens de letras e deixar de ser a encantadora mas estranha filha de Artemis Blair que residia no meio dos bairros fétidos da parte oriental de Londres. Um pequeno furto e a vida dela mudaria para melhor. O seu dever estaria concluído. Ninguém diria em surdina que o falecido Lord Easterbrook havia pago a um homem para matar o seu rival. Os seus filhos poderiam continuar a fingir que não sabiam que existiam boas probabilidades de o ter feito. A forma extraordinariamente implacável através da qual ele pesava e calculava a situação não lhe passou despercebida. A melhor parte de si já deixara de ficar surpreendida ou chocada com isso. Nem tão-pouco podia oferecer melhores argumentos para além dos de teor sentimental com respeito à confiança e ao afecto. Estes tinham um peso muito reduzido no mundo. Ele nem sequer estava certo de que tivessem um peso elevado para Phaedra. Elliot fez deslizar uma vez mais o polegar pelos cantos das páginas. Phaedra acordou já a manhã ia adiantada e descobriu que Elliot saíra da sua cama. As roupas dele também tinham desaparecido, por isso ela presumiu que ele se tivesse ido embora ou descido para o piso inferior. Deslizou a mão até ao local onde ele estivera deitado. Imaginou que ainda conseguia senti-lo ali, saciado como ela e sem fome em-bora tivessem sido precisas várias refeições para os encher a ambos. Ela voltou a deslizar a mão para cima até à almofada onde a sua bela cabeça repousara. A mão tocou em outra coisa para além de musselina e penas. Phaedra soergueu-se com a ajuda dos cotovelos, curiosa. O manuscrito do seu pai estava pousado em cima da almofada, embrulhado grosseiramente num papel castanho. O selo do embrulho fora quebrado, mas as páginas permaneciam na mesma formação militar, formando um bloco maciço. Ela susteve o fôlego. Ela deixara-o em cima da mesa quando entrara em casa com Harry e, a seguir, esquecera-se completamente dele. É óbvio que

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Elliot não deixaria de adivinhar o que cobria aquele papel. O seu tamanho e forma praticamente gritavam a palavra «manuscrito». Ele acordara mais cedo e fora tirar isso a limpo. A seguir, abrira o embrulho para ter a certeza. Era provável que tivesse tirado as páginas que não queria que ela publicasse. Uma explosão de alívio irrompeu dentro de si. Um alívio profundo e grato. Anulou todas as outras emoções até os olhos dela ficarem turvos. Ela sentou-se para compor o embrulho. Ela não falaria disso com ele. Não agora. Não já. Talvez nunca. Fora pouco correcto da sua parte roubar as páginas, muito pouco correcto, mas ela não o iria repreender. Nem tãopouco alguma vez lhe falaria da dor a que a tinha poupado. Quiçá agora, talvez… Os dedos dela imobilizaram-se sobre o embrulho. Ela inclinou a cabeça. Uma página nova havia sido adicionada ao manuscrito. Ela puxou-a de baixo do embrulho castanho.

Minha querida, Tendes de ter mais cuidado com este legado. É o tipo de tesouro que pode tentar os que não olham a meios para atingir os seus fins. Existem muitos que o roubariam de bom grado, como provam as cartas que recebestes. Não é seguro mantê-lo em vossa casa. Levai-o até à sala de leitura do Museu Britânico. Eu informá-los-ei de que ireis preparar um trabalho para posterior publicação nessas instalações. Podeis entregar estas páginas à guarda dos bibliotecários entre as vossas visitas. Aqueles a quem o manuscrito diz respeito saberão em breve onde este se acha em segurança e vós e a vossa casa não serão molestadas. Eu não tirei as páginas que procurava, por isso escusais de o verificar. Temi perder a nossa amizade à custa de um abuso tão grave da vossa confiança. Obrigado pelo jantar. Estava delicioso. O vosso amigo grato, Elliot

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Capítulo 20 –O

brigada por me acompanhardes – disse Phaedra. –

Não espero que o homem admita tudo e a vossa percepção da reacção dele à minha pergunta pode vir a ser útil. – Uma vez que estais determinada a colocar-lhe essas perguntas, não quero que façais esta visita sozinha – disse Elliot. – A vossa descrição do encontro com Needly levou-me a crer que estes homens não estão a encarar com bons olhos as vossas suspeitas, o que não me surpreende. – Needly não estava zangado. Ele riu-se de mim. Isso dificilmente pode ser considerado um comportamento perigoso. No entanto, o riso de Mr. Needly possuíra uma grande dose perceptível de desdém. Desdém por ela e pela sua mãe. Fora um encontro breve num escritório sóbrio no dia anterior. O primeiro vendedor de antiguidades que Matthias mencionara, Mr. Needly, era um homem idoso elegante, erudito e arrogante. Ele havia respondido rápida e sucintamente às suas perguntas a respeito do camafeu. – Uma fraude – afirmara ele, arrepanhando a boca presumida num trejeito de repugnância. – Disse-lhe o mesmo quando ela o trouxe até mim e

ela não deu o devido valor à minha opinião, apesar de me ter procurado para a obter. Discutiu comigo. Como se tivesse algum tipo de experiência nestas coisas. A grande Artemis Blair tinha sido levada como uma 298

rapariguinha da província. O facto de a sua filha me vir questionar sobre a mesma jóia diz-me que ela se recusou a encarar a verdade, sem dúvida porque a verdade fazia dela uma imbecil. – O facto de o último se ter rido de vós não significa que as insinuações das vossas perguntas passem despercebidas a este – disse Elliot. – Eu sei que isto é importante para vós, mas peço-vos que sejais discreta. Eles caminhavam nas ruas juntos, na direcção de uma morada que Phaedra obtivera. O destino de ambos não era muito distante dos escritórios da editora de Langton em Paternoster Row. Elliot não fizera qualquer comentário a respeito das actividades da editora nem expressara tão-pouco aversão a encontrar-se com ela nesse local. Ela duvidava que o facto de ter deixado o manuscrito intacto há três noites tivesse feito com que ele se conformasse com a publicação iminente das memórias. Provavelmente continuava a acreditar que ainda iria conseguir obter provas suficientes para ela lhe dar o que ele queria, tal como ela lhe havia prometido. Ela desejava ardentemente que ele conseguisse. Ela queria ver essa nuvem negra banida da felicidade de ambos. Os últimos dias tinham sido idílicos, melhores ainda do que as semanas passadas em Itália. A diversão e a amizade que agora partilhavam comprovavam que a paixão podia sobreviver ao regresso de ambos a Inglaterra. Phaedra apercebeu-se de que nunca se sentira tão feliz como agora. Nem o facto de prosseguir as suas investigações com respeito a Artemis conseguia esmorecer a sua boa disposição. A livraria de Thornton ocupava uma pequena loja numa ruela perto do Museu Britânico. A fuligem de muitos anos cobria os vidros das janelas que espreitavam para uma caverna escura de grossos volumes. – Tomei a liberdade de obter algumas informações – disse Elliot. – Ele tem uma história obscura. Afirma ter um pai inglês e uma mãe italiana e ter completado os estudos em Bolonha. Seria difícil contestar isso e aqueles que já travaram conhecimento com ele dizem que ele parece ser instruído. – Se ele é meio italiano, pode estar numa posição que lhe dê acesso a objectos lá fabricados – replicou Phaedra. 299

– É possível que tenhais entre mãos o homem certo desta vez. Ao contrário de Needly, a reputação deste dificilmente se poderá considerar inatacável. Foram-me mencionados determinados ru-mores. Eles entraram na loja. Um silêncio e uma escuridão tumulares envolveram-nos. As estantes iam até ao tecto, todas elas apinhadas de capas antigas. Ao lado, em pilhas maiores do que a altura da cabeça de Phaedra, erguiam-se mais restos de espólios de bibliotecas particulares. As sombras no canto mais afastado da loja deslocaram-se. Uma figura assomou atrás de uma parede de livros e encaminhou-se na direcção de ambos. O proprietário aproximou-se para os saudar. Elliot deu meia-volta e abriu a porta novamente, para que caísse alguma luz sobre o homem em questão. Nigel Thornton não era o velho e bafiento vendedor de livros que estas instalações impunham. Ele aparentava não ter muito mais do que trinta anos, embora as suas feições demasiado perfeitas, uma sobrecasaca elegante e um cabelo escuro pudessem estar a esconder mais alguns anos. Em todo o caso, era muito mais jovem do que Phaedra pensara. Ela imaginou-o mais jovem ainda, com o viço da beleza intacto, e a irradiar a energia própria da juventude. À medida que os derradeiros vestígios da própria juventude de Artemis se desvaneciam, será que esta procurara um rejuvenescimento na forma de um caso amoroso com um homem muito mais novo? Ele saudou-os de modo afável, mas, ao mesmo tempo, conseguiu dar a entender que tinham interrompido afazeres importantes que colocara de parte por respeito a ambas as visitas. Os seus olhos escuros examinaram Elliot e reflectiram um clarão de reconhecimento. Em seguida, o rápido olhar que lançou a Phaedra pareceu comunicar que a presença dela complicava a avaliação do quadro que tinha à sua frente. – Lord Elliot, sinto-me honrado pela vossa visita. Tencionais, porventura, completar uma nova biblioteca? Temos as melhores edições das

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histórias romanas cujas encadernações podem ser renovadas, se assim o desejardes. – Por agora, estou satisfeito com a biblioteca de Easterbrook. É a senhora que vos procura e ela está interessada numa única história em particular, e não numa biblioteca repleta delas. Eu estou aqui na qualidade de mero acompanhante. Thornton assentiu em concordância, mas os olhos baixos denunciaram o seu desapontamento por esta visita não ser sinónimo de uma tarde lucrativa. – Permiti-me apresentar-vos Miss Phaedra Blair – anunciou Elliot. – Creio que conhecíeis a sua mãe. A luz que vinha da porta e iluminava o rosto belo de Nigel Thornton permitiu a Phaedra ver a sua reacção. Este ficou cuidadosamente impassível, mas ela pareceu detectar um brilho cada vez maior sob as pálpebras dos seus olhos baixos e escuros à medida que ele examinava o rosto dela. E ele examinou-o atentamente durante um bom bocado, com um grande interesse. – Conheci a vossa mãe na qualidade de uma anfitriã generosa muito ocasionalmente, Miss Blair. Não a conheci suficientemente bem para vos contar histórias a seu respeito, porém. – Eu ouvi o contrário, Mr. Thornton. Chegou-me aos ouvidos que a visitáveis frequentemente, e não de forma ocasional, nos últimos anos em que esteve viva. Ele inclinou a cabeça num aceno que não concordava, nem discordava da afirmação feita, mas dava a entender que o nível de amizade estava aberto a discussão. – Também me chegou aos ouvidos que, no passado, vendíeis mais do que livros, Mr. Thornton. – Ainda hoje artigos de outra natureza me chegam às mãos, por vezes. Phaedra retirou o camafeu do bolso e pousou-o em cima de uma pilha de livros na qual um feixe de luz vindo da porta incidia directamente. O

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camafeu cintilou contra os volumes escuros e poeirentos, exibindo toda a minúcia dispendiosa do seu relevo trabalhado. Os olhos dele iluminaram-se quando o fixaram. Phaedra pareceu ver uma centelha de reconhecimento neles. Uma aura peculiar irradiou da sua presença, como se uma onda de sentimento tivesse aberto uma brecha num molhe. Ele começou a sorrir, mas deteve o impulso antes de avançar para além de uma linha vaga e triste. – Vendestes ou destes a Artemis Blair esta jóia, Thornton? – perguntou Elliot. – Foi essa a história que viestes à procura? A história deste camafeu? – Sim – respondeu Phaedra. – Receio não vos poder ajudar. Oh, sim, ele podia. Ela sabia que podia. – Mas vejo que o reconhecestes. Ele pegou-lhe com delicadeza e observou-o mais de perto. A seguir, fez deslizar um dedo pelas figuras minúsculas. – Era dela. – Fui informada por alguns dos melhores peritos existentes nestas matérias que se trata de uma falsificação. – Nesse caso, não duvido que o seja. Mesmo assim, é um trabalho magnífico e é lindíssimo. Neste momento, ela pouco se importava que fosse lindíssimo. – A minha mãe recebeu isto das vossas mãos? – Se eu afirmar que sim, estarei a admitir a autoria de uma falsificação, correcto? E se afirmar o contrário, não tendes ne-nhuma razão para acreditar em mim. – Isso prende-se com o facto de esta não ser a vossa única falsificação – disse Elliot. – Estou ao corrente do caso daquelas moedas há alguns anos. Thornton soltou um suspiro. 302

– Essas moedas chegaram até mim através de uma fonte fiável. Nem tão-pouco as vendi com a promessa de uma autenticidade absolutamente verídica. Transacções desta natureza estão sempre sujeitas a uma certa dose de risco e os coleccionadores ouvem aquilo que querem ouvir. Que é precisamente o motivo pelo qual eu prefiro livros antigos. – Foi isso que aconteceu com este camafeu? A minha mãe ouviu o que queria ouvir? – Não tenho qualquer forma de saber se ela pensou que era autêntico. Tudo aponta nesse sentido, porém. Ele devolveu o camafeu a Phaedra. Por um momento, os dedos de ambos ficaram agarrados ao camafeu ao mesmo tempo, como se ele hesitasse em soltá-lo. – Se alguma vez decidirdes vendê-lo, gostaria de saber. – Por que motivo o compraríeis? Para poderdes vendê-lo novamente? Ele deu meia-volta em direcção ao canto escuro de há pouco e o vulto desmaterializou-se no seu castelo de livros. – Comprá-lo-ia porque é lindíssimo. E porque é dela. – O que achais? – perguntou Phaedra. Os dois caminhavam no interior do Museu Britânico enquanto ela dava voltas à cabeça a pensar no encontro com Thornton. – O que achais vós? – Eu acho que foi ele. Ele praticamente o admitiu. Se eu não tivesse dito que sabia que era uma falsificação, é possível que ele me tivesse contado tudo. Isso foi um erro. Ele não podia satisfazer a minha curiosidade sem afirmar que era um criminoso. Mas toda a sua forma de proceder, a forma como ele o reconheceu, as suas palavras, embora circunspectas, indicaram que ele sabia que o camafeu era da minha mãe e que ela acreditava que era autêntico. Ela pressentiu uma resposta a formar-se em Elliot, mas demorou muito tempo a sair.

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– Então, o que achais? – insistiu ela. – Acho que já tendes a vossa resposta, mas é algo diferente daquela que o vosso pai concluiu. – Como assim? – Nigel Thornton não interpretou o papel de um patife que tirou partido da sua posição, roubou afectos e tomou parte de um grande esquema de fraudes. Ele estava apaixonado por Artemis. Creio que ainda está. A observação dele apanhou-a de surpresa. Ela queria discordar desta sua conclusão. Ela não encaixava com a imagem do intruso malvado que o seu pai pintara nas memórias. Roubava-lhe o direito a sentir-se indignada e zangada a respeito do caso amoroso de sua mãe. Se o outro homem amava Artemis, isso complicava tudo. Mas ela suspeitava que Elliot podia estar certo. Quando Thornton pusera os olhos no camafeu, todo o ambiente no interior da loja se alterara. As memórias e os sentimentos evocados pela jóia tinham sido quase palpáveis. – Se ele a amar, não o posso odiar, pois não? – Que história preferis, Phaedra? A de que um homem seduziu a vossa mãe com vista a fazer uso das suas relações e envolvê-la em crimes que a destroçariam mais tarde? A de que este caso amoroso a levou a tirar a sua própria vida? Ou a de que a vossa mãe se apaixonou por um homem muito mais jovem que, sem o saber, lhe vendeu ou ofereceu um artefacto sem estar certo da sua autenticidade? Tereis de decidir de que forma a história se passou, mas eu não acredito que aquele homem que acabámos de deixar iludiu deliberadamente a vossa mãe. – Custa-me acreditar que o meu pai estivesse tão errado a respeito do carácter e motivos de Thornton. – O vosso pai perdera o amor da vida dele, o centro da sua existência, em detrimento de um rival muito mais jovem. O mais provável foi ter pensado que a vossa mãe tinha perdido a razão em conjunto com o coração. É muito pouco provável que ele fosse capaz de encarar a situação com um olhar objectivo. 304

Ele falou como se não tivesse qualquer dúvida da forma como tudo se tinha passado. Ela podia ter achado Nigel Thornton um enigma, mas Elliot abandonara aquela loja incrivelmente seguro da sua convicção de ter reconhecido os sinais de um homem apaixonado. – Se lhe vender o camafeu, ele provavelmente irá colocá-lo novamente no mercado como uma antiguidade original. Afirmastes que existiam reticências com respeito a algumas das suas transacções. Se isso for verdade, é provável que ele tenha de facto tirado partido da minha mãe. Ele pegou-lhe na mão e conduziu-a até um dos cantos da galeria. – É assim tão importante para vós acreditardes nisso, Phaedra? É importante acreditardes que ela foi vítima de uma injustiça? Afirmastes em Nápoles que conseguíeis compreender por que motivo ela podia ter escolhido este novo amante. Se o homem correspondia ao seu amor, isso não torna isto tudo mais fácil de aceitar em vez de mais difícil? Ela não sabia o que lhe dizer. O seu coração revoltava-se face a esta explicação simples que Elliot aceitara tão facilmente. – Suspeito que se examinássemos as transacções de Thornton, podíamos encontrar ambiguidades e alusões, mas não reivindicações falsas – afirmou Elliot. – Como ele próprio disse, os coleccionadores ouvem o que querem ouvir. Não tenho dúvidas de que ele sabe como tirar partido disso sem entrar no âmbito da fraude. Em relação ao camafeu, se lho venderdes, não acredito que tencione vendê-lo. Acredito que irá guardá-lo como uma recordação dela até o dia da sua morte. Ela imaginou Nigel Thornton na sua livraria. A seguir, imaginou-o oito anos mais novo, a deslumbrar uma Artemis cada vez mais velha com a sua confiança e o seu rosto belo. Phaedra viu novamente a forma como os olhos dele se haviam iluminado com afecto quando vira o camafeu e falara da sua mãe. Deus do Céu, era bem possível que Elliot tivesse razão. Isso também explicava o facto de nenhuma das amigas da mãe estarem a par do nome do novo amante. Thornton era tão jovem que Artemis provavelmente manteve

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a relação de ambos em segredo para que o mundo não a considerasse uma mulher duplamente tonta. – Que desfecho embaraçosamente vulgar para o meu grande mistério – murmurou ela. Elliot rodeou os seus ombros com um braço e apertou-os, confortando-a. – Estais desapontada? Estava? A sua ira em torno do amante acalmara nas últimas semanas, mas as palavras acusatórias do pai ainda ardiam no seu coração. Talvez ela quisesse apenas culpar alguém pela morte da mãe e o seu pai lhe tivesse dado um meio para isso. Talvez ela estivesse na realidade zangada com Artemis por trair a perfeição que o amor livre podia ser. Ela deixou partir aos últimos vestígios da fúria profunda que levara consigo para Nápoles. Existiam boas probabilidades de Nigel Thornton não ser um modelo ideal de integridade, mas também não era um conquistador com segundas intenções. Artemis provavelmente ficara desapontada por descobrir a verdade acerca do camafeu, mas era pouco provável que o episódio a tivesse destruído. Ela passou os dedos pelo camafeu dentro do bolso. Talvez devesse dálo a Nigel Thornton uma vez que guardara Artemis Blair no coração. – Podeis regressar à vossa vida dissoluta, Christian. Não haverá nenhuma tentativa desesperada de casamento. Nenhuma fuga e nenhum duelo. Caroline aceitou a minha autoridade neste assunto. Lord Hayden Rothwell falou no tom firme e confiante de um homem que espera que o mundo obedeça à sua autoridade. Phaedra duvidava que essa presunção estivesse muitas vezes longe da verdade. Ele proferiu esta declaração a partir do lugar que ocupava do lado oposto da mesa. O grupo dos convidados do jantar no qual ele e Alexia desempenhavam o papel de anfitriões era muito mais pequeno do que Phaedra esperara. Este consistia apenas nos três irmãos Rothwell, Alexia e na própria Phaedra. 306

Quando Alexia lhe escrevera com o convite, ela ponderara não aceitar. Alexia e Hayden haviam regressado da casa de campo da família alguns dias antes e era provável que já estivessem ao corrente do assunto das memórias. Nesse caso, ela não iria ser realmente bem-vinda. Agora, porém, suspeitava que Alexia e Hayden não sabiam de nada. Easterbrook sabia, como era evidente. O seu comportamento para com ela fora correcto, e até afável, mas ela apanhara-o a fitá-la diversas vezes da mesma forma que um falcão observa um rato. – Sendo um homem, duvido que tenhais compreendido plenamente o assunto ou tenhais interpretado correctamente o estado de espírito da nossa prima – disse Easterbrook em resposta à confiança de Hayden. – Ficaria mais descansado se a vossa mulher se juntasse à conversa ou, pelo menos, assentisse com a cabeça em sinal de acordo com as vossas palavras. O rosto de Alexia enrubesceu-se perante a solicitação de Easterbrook para que apoiasse ou comprometesse a opinião do marido. O facto de Alexia se ter apaixonado por Hayden continuava a espantar Phaedra. Alexia casara-se por razões de ordem sumamente prática e depois perdera o seu coração. Phaedra jamais esperaria um desenvolvimento dessa natureza, especialmente com o homem em questão. Lord Hayden era um homem bonito, sem dúvida, mas severo e frio. Ao contrário de Elliot, o seu comportamento e carácter não suavizavam o rosto dos Rothwell. Alexia, porém, insistia que o mundo não conhecia o verdadeiro homem. – Christian, não deveis plantar as sementes da discórdia entre marido e mulher – disse Elliot. – Se Alexia decidir discordar do marido, fá-lo-á. A nossa anfitriã nunca hesitou em dizer o que pensava quando achou necessário. Alexia pareceu grata pela interferência de Elliot. Phaedra apercebeu-se do vínculo de amizade que partilhavam. Todos os irmãos pareciam ter Alexia em grande estima. Esta constatação impressionou-a e fê-la sentir-se mais à vontade no jantar, embora não tivesse sido tratada como o elemento alheio que era, tanto na sociedade como a esta mesa. O convite de Alexia implorara-lhe para 307

vir. As duas amigas tinham partilhado uma conversa amena e novidades na sala de estar antes de descerem para o jantar. – Que disparate – disse Easterbrook. – Hayden não se importaria se a sua mulher pusesse de lado uma posição de neutralidade. Ele sabe que as mulheres sabem o que vai na cabeça das outras mulheres melhor do que nós. O que diz de vossa justiça, Alexia? Caroline foi intimidada ou maquina uma intriga? – Ninguém pode saber com toda a certeza o que vai na cabeça de alguém, Lord Easterbrook – atalhou Phaedra. – Nem tão-pouco todas as mulheres pensam da mesma forma. Alexia é demasiado sensata para saber o que se passa na cabeça de uma jovem que se deixou deslumbrar por um titular. Ela foi demasiado bem-sucedida em desviar a atenção de Easterbrook do rosto de Alexia. Ele fitou-a tão directamente que o seu corpo reajustou a posição que ocupava na cadeira. Elliot veio em seu socorro. – Creio que não é o que vai na cabeça de Caroline que importa, mas o que vai na cabeça da tia Hen. Ela pode estar ainda mais deslumbrada do que a própria filha. – Exactamente – replicou Alexia. – É Henrietta quem deve ser dissuadida do seu propósito. Estamos a fazer grandes progressos nesse sentido. Hayden mudou de assunto. Os homens fizeram as despesas da conversa. Phaedra e Alexia levavam a cabo a sua própria conversa, silenciosamente, ao trocar olhares femininos bastante significativos. Elliot apercebeu-se disso, mas não esboçou qualquer reacção. Ele estava um pouco estranho esta noite. Desde que fora ao encontro da sua carruagem lá fora, ele parecia… diferente. Ela apanhou-o a olhar para ela da mesma forma como aquela primeira vez nos seus aposentos em Nápoles, como se estivesse a vê-la pela primeira vez e a avaliar o que tinha. Talvez fosse este jantar que o estivesse a afectar. Ela estava completamente imersa no mundo dele nesta noite. Phaedra não fingira ser 308

alguém que não era, à excepção da escolha do vestido azul como vestuário. Não havia qualquer vantagem no facto de fingir ser dócil e normal. E era impensável permitir que Easterbrook a silenciasse ou intimidasse. Quando terminaram a refeição, Alexia convidou-a a regressar à sala de estar. A porta fechou-se atrás delas, deixando os irmãos sozinhos com vinho do Porto e charutos. Phaedra perguntou-se se os homens iriam discutir o apego precário de Caroline à sua virtude ou o assunto premente das memórias de Richard Drury. – Estou-vos imensamente grata por terdes aceite o meu convite – disse Alexia, sentando-se ao seu lado num canapé. – Para começar, isso deu-me uma desculpa para deixar Hen em Aylesbury. Por outras palavras, Hen não via Phaedra Blair com bons olhos e não se sentaria numa mesa a seu lado. – Então, estou feliz por ter vindo, se isso vos proporcionou algum descanso da companhia dela. – O serão foi do vosso agrado? Eu sei que Easterbrook pode ser… – Agradou-me imenso. O que era verdade. Phaedra achara a relação que os irmãos exibiam entre si comovente. Sentiu uma grande pontada de inveja de Elliot e compreendeu melhor por que motivo o sangue geralmente ganhava em qualquer competição onde se pusesse à prova a lealdade de alguém. – Também me deu muita satisfação ver que agora já fazeis completamente parte da família deles, Alexia. Ainda não vos tinha visto na companhia de todos eles como tive oportunidade de ver esta noite. Esta já é a vossa família, de um modo tão inequívoco como se tivésseis nascido no seio dela. Não tenho dúvidas de que qualquer um dos homens que estiveram à mesa daria a sua própria vida para proteger a vossa e a do vosso bebé. Alexia corou. – São a mais viva imagem de irmãos extremosos, não são? Elliot falou comigo de forma muito afectuosa quando o reencontrei hoje. No entanto, pergunto-me se a visita a Itália terá sido do seu agrado. Ele parece distraído 309

por algo, como se não se importasse de estar sozinho em vez de jantar com um grupo de pessoas hoje à noite. O homem visado entrou na sala de estar. Este não parecia absolutamente nada distraído neste momento, apenas sério e determinado. – Alexia, peço-vos que me perdoeis, mas gostaria de falar com Miss Blair sozinho. Importais-vos que eu a roube durante uns mo-mentos? É uma conversa que não pode esperar. As sobrancelhas de Alexia ergueram-se ligeiramente e ela lançou um subtil olhar de relance a Phaedra. Espero ser informada daquilo que motivou

este pedido. – Certamente que sim. Não me importo nada. Irei para a bi-blioteca. – Não precisais de vos incomodar. Hayden e Christian juntar-se-ão a vós em breve. Miss Blair, talvez vos agrade dar um passeio pelo jardim. Podemos conversar ao mesmo tempo que desfrutamos do perfume das flores tardias. Phaedra ignorava a interpretação que Alexia faria destas palavras em particular. Ela aceitou o seu convite, perguntando-se que motivo levaria Elliot a solicitar este extraordinário pedido de privacidade.

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Capítulo 21 O

jardim estava abrigado de olhares curiosos e as flores de

Verão eram tão perfumadas como Elliot prometera. – Os vossos irmãos deram-vos ordens para regressardes à primeira linha de combate comigo, Elliot? – Eles ficaram tão espantados pela minha partida da sala de jantar como vós ficastes com o meu pedido – respondeu Elliot. Ele conduziu-a a um banco de ferro e fê-la sentar nele, mas permaneceu de pé. – Se bem que se tivesse abandonado a sala num gesto de ira, esta teria sido justificada. Christian estava a contar tudo o que diz respeito às memórias a Hayden. Atrevo-me a dizer que eles irão discutir esse assunto durante algum tempo. – Ou seja, estão a discutir a minha pessoa. Ela sentiu uma pontada de arrependimento por ter acedido ao seu pedido. Se Lord Hayden pensasse da mesma forma que Lord Easterbrook, ela podia ter acabado de renunciar aos últimos minutos que seria autorizada a passar na companhia de Alexia. Ela não conseguia ver a expressão de Elliot no escuro, mas pressentiu que a sua mente estava a trabalhar. A ponderar. A decidir. – Phaedra, deu-se um desenvolvimento inesperado a propósito do nosso desenvolvimento inesperado. 311

Ela demorou um momento a perceber que ele se estava a referir ao casamento em Positano. – Não demasiado inesperado, espero. – Extraordinariamente inesperado – respondeu Elliot. Colocou o pé em cima do banco ao lado dela e inclinou-se por cima do joelho para que o seu rosto e voz estivessem mais próximos. – Esta manhã, o meu procurador informou-me que o casamento é muito provavelmente válido e será ratificado como tal se esse estatuto for contestado. Todo e qualquer pensamento e emoção desapareceram enquan-to Phaedra assimilava o choque. De seguida, uma miscelânea de emoções irrompeu no seu coração, gritando e colidindo entre si, descontroladas, criando um caos. Na sua mente, porém, imperava uma clareza espantosa. – Não admira que me estivésseis a olhar de um modo tão estranho durante o jantar. É um milagre que estas notícias não tenham feito com que vos refugiásseis no álcool. Ele não respondeu às suas palavras, o que foi delicado da sua parte. Ela também percebeu por que motivo queria falar aqui fora, no escuro. Duvidava que ele conseguisse esconder a consternação que sentia, tal como ela. – Não consigo perceber como posso estar casada se a minha vontade não foi essa, se eu não assinei qualquer contrato e se se tratou de uma cerimónia católica – afirmou ela. – Passei a tarde inteira com um causídico que já trabalhou com casos semelhantes e ele explicou-me como é que isso tudo é possível. Um casamento que seja legal no país onde tem lugar é vinculativo aqui. Essa conclusão é extensivamente apoiada pelos tribunais eclesiásticos. Nem tãopouco é necessário ser um padre da Igreja Anglicana a solenizar os votos nesse tipo de casos. Ele acredita que uma contestação não irá vingar, mas sugeriu que, para ter a certeza, se repetisse a cerimónia aqui. – Por que motivo repetiria eu votos que não sabia ter feito? Ele virou a cabeça e olhou na direcção da casa. O seu olhar su-biu até às janelas que davam para o jardim. De seguida, ofereceu-lhe a mão. 312

– Vamos caminhar um pouco, Phaedra. Vou dizer-vos exactamente o que me disseram. Ele colocou o braço dele sobre o dela e falou tranquilamente enquanto caminhavam para cima e para baixo no carreiro do jardim. O coração dela batia cada vez mais depressa a cada palavra que dizia e a cada passo que davam. – Aquele casamento não se encaixa nas categorias vulgares da lei. Sendo assim, a sua validade torna-se uma questão de interpretação dos tribunais. Não há previsões seguras do desfecho de uma sentença do nosso caso – disse ele. – Quando o causídico sugeriu a repetição dos votos, ele estava a pensar na hipótese de uma contestação futura, em questões que digam respeito a heranças ou à legitimidade da perfilhação de crianças. Era a isso que o meu solicitador se referia quando afirmou que o casamento sobreviveria a uma contestação dessa natureza. Ambos estavam tão confiantes de que o casamento será considerado válido que se limitaram a recomendar outra cerimónia para evitar que alguém criasse um escândalo numa tentativa futura de explorar essas ambiguidades. – Os advogados partiram do pressuposto oposto ao analisar esta questão, Elliot, e o conselho de ambos revelou-se desacertado, em resultado disso. Nós não pretendemos garantias da sua validade. Nós queremos assegurar-nos precisamente do oposto. – Existe uma presunção de validade no tribunal. Se afirmarmos que não foi válido, o ónus da prova recairá sobre nós. O pânico que lhe corria pelas veias começou a subir-lhe à cabeça. – A meu ver, deveria ser outra pessoa a ter de provar que é válido. – Phaedra, hoje fiquei a saber mais a respeito da jurisprudência aplicada nesta matéria do que um homem precisa de saber. Mesmo em Inglaterra, os estatutos nem sempre são aplicados com tanta clareza como se esperaria. Algumas das sentenças que foram citadas espantaram-me. Casamentos considerados válidos apesar da inexistência de uma licença adequada, por exemplo. O facto de não termos assinado aquela licença em Positano tem muito pouca importância, especialmente tendo em conta que as 313

nossas próprias palavras bastam para tornar um casamento válido naquele país, de acordo com as nossas leis – declarou, conduzindo-a para debaixo da abóbada da folhagem de uma árvore. – Parece que estais presa a mim, querida. Ela não conseguia acreditar nos seus ouvidos. O pânico aumentou, ameaçando a sua compostura. Ele fez menção de a abraçar. Ela libertou-se dos seus braços. – Isto não é um desenvolvimento inesperado, Elliot. Isto é um desastre. Ela começou a andar de um lado para o outro, fazendo um grande esforço por recuperar uma linha de pensamento racional. Era óbvio que ele tinha percebido mal. Tinha de existir uma forma de contornar a questão. – Há pouco, referistes-vos a ambiguidades. A meu ver, estas existem em número suficiente para invalidar isto desde o início. Quais são aquelas que os vossos advogados acharam que pudessem criar problemas mais tarde? – Phaedra… – Não. Não. Existe um motivo para nunca me ter casado, Elliot. Tomei essa decisão depois de reflectir intensa e longamente sobre esse assunto. Não vou agora pactuar com uma situação na qual me vejo casada por acidente em vez de ser por escolha. Insisto que me digais se existe alguma forma de corrigir esta situação. Ele cruzou os braços. O gesto realçava o seu tamanho em comparação com o dela e transmitia o seu estado de espírito, tornando o ar pesado em torno deles. Ela odiava quando os homens assumiam essa postura. Odiava. – Eu posso divorciar-me de vós. Essa é uma das formas de corrigir a situação. Teríeis de me dar um motivo para isso, porém, e eu não estou disposto a permitir isso.

Permitir isso? Céus, ele já estava a falar como um verdadeiro marido. – Um divórcio significa que se realizou um casamento e eu nego isso – replicou Phaedra. O fio veloz dos seus pensamentos agrupou-se em volta

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desta última declaração. – Temos de explicar que não o fizemos de livre vontade. Temos de explicar que não existiu um consentimento. – Uma cidade inteira ouviu-nos a proferir aqueles votos. Ninguém viu uma espada encostada aos nossos pescoços nesse momento. – A situação era tão má como uma espada junto aos nossos pescoços. Assim que a descrevermos, isso será claro para a nossa Igreja. Se explicarmos que nenhum de nós disse aquelas palavras de livre vontade, isso deve bastar. Ele olhou-a fixamente. Ela procurou sinais de alívio nas sombras do seu rosto. – Eu não fui coagido, Phaedra. Eu disse-o para vos proteger, isso é verdade. Mas disse as palavras perfeitamente consciente de que me podiam vir a vincular a vós. Não vou mentir a respeito disso. A sua aceitação calma deste casamento chocava-a. – Não podeis querer isto. – Não procurei este desfecho, isso é certo, mas não estou tão desconcertado como vós pareceis estar. Depois daquilo que já partilhámos, é um passo pequeno a dar. – Não ireis tardar muito a ficar tão desconcertado como eu. Não precisais de um casamento para terdes tudo aquilo que podeis partilhar comigo. Não ganhais nada com isso, a não ser responsabilidade por uma mulher que nunca aceitará os vossos direitos sobre ela. Mal disse isso, a verdade trespassou o seu desespero. Ele tinha algo a ganhar com isso. Algo que ele e a sua família queriam a todo o custo. Ela fitou a sua forma escura envolta nas sombras negras da noite. Uma esposa perdia tudo num casamento. A lei dava ao ma-rido os seus bens, a sua voz, os seus filhos, até mesmo a sua individualidade. Ele seria capaz disso? Seria capaz de tomar um passo tão imprudente para obter controlo da editora e das memórias? Ela achou que o que ganhava era muito pequeno comparado com o que lhe iria custar.

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Ele acercou-se dela e puxou-a para os seus braços. Beijou-a furiosamente, como se a paixão pudesse aniquilar a suspeita terrível que invadira o seu espírito. – Não se trata disso – disse ele, com a voz rouca. – Se não me apoderei daquele manuscrito quando deixei a vossa cama na semana passada, não me venderia a mim próprio para isso agora. O beijo dele confundiu-a ainda mais. Ela não conseguia organizar os pensamentos porque estes voavam em todas as direcções. – Então porquê? – Por causa disto – respondeu ele, beijando-a de novo, longa e profundamente. – Isso já é vosso – sussurrou ela. – Vai deixar de o ser se solicitardes ao tribunal a invalidação deste casamento. – Se for essa a minha vontade, continuará a sê-lo. A decisão é minha… – Já deixou de o ser. Se afirmardes que as vossas palavras foram ditas sob coacção, não podemos continuar como antes. Não podemos dizer os votos que dissemos, partilhar uma cama e depois afirmar que não somos casados. Se o nosso passado for conhecido, só esse mero facto pode fazer com que o casamento seja considerado válido. Não fomos discretos em Itália. Continuar a ligação amorosa aqui e manter contactos privados daria mais do que motivos suficientes aos juízes para rejeitar a vossa petição. O tom dele, tão claro e firme, tão isento de compaixão genuína, parecia cruel. Ele acabara de descrever uma escolha terrível. Uma sensação de desamparo e ira inundaram o coração de Phaedra. Ela não tentou reprimir o efeito que isso tinha em si. Não estava certo abdicar dele por um motivo tão estúpido. Ela via a escolha demasiado claramente e isso angustiava-a. Abrir mão da amizade de ambos, nunca mais sentir o toque dele, abandonar toda e qualquer intimidade – ou aceitar os grilhões legais que a lei construía para as mulheres e submeter-se em todos os sentidos ao mando de outra pessoa. 316

Ela conhecia-os a todos. Ouvira a sua mãe a enumerá-los du-rante os seus primeiros dezoito anos de vida. – Não tem de ser assim – exclamou ela, rejeitando violenta e completamente ambas as alternativas. – Ninguém sabe ao certo o que se passou em Itália. Ninguém se apercebeu ao certo de nada. Se formos discretos aqui, continuarão a não saber. Ele prendeu os antebraços dela com ambas as mãos, como se estivesse a tentar controlar uma louca. – Vamos estar sob juramento. Eu não vou mentir. E vós também não. – Não podeis querer isto. Não podeis. Pensai, Elliot. O mundo in-teiro vai fazer troça de vós se formos marido e mulher. Eu não mudarei quem sou, nem por vós, nem pela vossa família. Todos se vão rir de vós e dizer que tendes uma mulher estranhíssima, com ideias bizarras e hábitos excêntricos. Vão… – Vão dizer que me casei com uma mulher que é quase tão estranha como o meu irmão. Pouco me importa o que dizem. Os olhos dela ficaram toldados. Cobriu-os com as mãos e pressionouas com força, tentando conter as lágrimas. O coração parecia ter todo o peso do mundo. Ele libertou-lhe os braços e abraçou-a novamente. Isso só piorou as coisas. O calor e as memórias comoveram-na de forma tão profunda que ela perdeu a batalha contra a emoção e começou a chorar. Phaedra provou uma amostra do sofrimento que a aguardava, da perda que seria se se separassem, da nostalgia que iria despedaçar o seu coração. Ela queria desesperadamente que essa dor a convencesse a aceitar a alternativa e suplicou a essa emoção para lhe dizer que um casamento com este homem seria bom, não uma prisão. Ele amparou-a enquanto o pior da sua dor era levado pelas lágrimas, num abraço apertado. O calor da boca dele estava pousado no cimo da sua cabeça.

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O coração dela contorceu-se, retraiu-se e despedaçou-se. Era disto que ela sentiria mais falta. Disto e do conhecimento mútuo que ia mais além do que qualquer amizade. A aura dele alterou-se. Era como se a severidade dos Rothwell tivesse cedido terreno. A brisa nocturna arrastou-a para longe. Ela pressionou os olhos húmidos contra o seu ombro. – Nenhum casamento deve ser feito desta forma, e muito menos o meu. Tenho de tentar corrigir esta situação, Elliot. A palma da mão dele pousou sobre a sua nuca. O gesto reconfortante levou-a quase às lágrimas de novo. – Ireis ajudar-me, Elliot? Não espero que mintais por mim, mas não ireis opor-vos? – Estais a pedir-me para abdicar completamente de vós, Phaedra. Não sei se o consigo fazer. – Não completamente. Quando tudo estiver terminado, podemos voltar a ser amigos. Não quero pensar que ficaremos para sempre separados por causa disto, Elliot. – Vai passar muito tempo até eu poder tocar-vos novamente, querida. Os tribunais trabalham devagar – respondeu ele. Ele virou-lhe a cabeça e beijou-a na cara. – Estais a pedir-me mais do que alguma vez sabereis. – Agora pensais isso, mas ireis dar-vos conta muito em breve de que eu nunca poderia ser uma boa esposa. O meu carácter é demasiado malformado para me sentir realizada nesse papel – anunciou, tentando sorrir, mas só conseguiu fazer a boca tremer. – Estou a salvar-vos. Procurais ser honrado e fazer o mais correcto, e isso é muito bom e nobre da vossa parte. Mas uma vez passado o desejo, iríeis odiar esta união inconveniente e sentir-vos-íeis extremamente infeliz por terdes sido forçado a aceitá-la. Ele tocou nos lábios dela com os dedos. – Esta separação será mais antinatural do que o casamento que me descreveis. Há já muitas semanas que penso em vós como mi-nha. Beijai-me para poder sentir o sabor da vossa boca uma última vez. 318

O coração dela revoltou-se contra a forma como ele classificava este beijo como o último. Gritou de raiva quando as suas bocas se encontraram. Chorou com frustração ao mesmo tempo que ela se agarrava a ele com todas as forças num abraço frenético. Ele susteve-a com um pouco mais de firmeza, como se estivesse a ordenar à tempestade para se acalmar. O espírito dela obedeceu à sua ordem silenciosa. As nuvens dispersaram-se, a brisa fresca fluiu entre ambos e ela esteve totalmente com ele mais uma vez, num local repleto de calor, luz e liberdade. – Estais bêbedo? – perguntou Hayden ao mesmo tempo que fechava a porta da biblioteca. Olhou de relance para a garrafa de cristal em cima da mesa e para o copo na mão de Elliot. – Essa é a última coisa de que preciso agora. Porém, queria alguma privacidade. – Vou deixar-vos a sós, então. – Que diabos, a casa é vossa. A biblioteca é vossa e a bebida também. Quem tem de sair sou eu. – Ficai – respondeu Hayden, com um sorriso que indicava que se tratava de um pedido. – Estou contente por vos terdes demorado um pouco mais. Desta forma, tenho uma oportunidade para falar convosco a sós a respeito das revelações que hoje me foram tardiamente dispensadas. Elliot recordou-se da expressão no rosto de Hayden após o jantar enquanto Christian expunha o assunto das memórias. A irritação de Hayden não fora direccionada a Phaedra ou a Richard Drury, mas aos dois irmãos que haviam descurado o dever de o pôr ao corrente da situação mais cedo. Essa irritação veio ao de cima novamente, de um modo mais tranquilo. – O facto de ter sido informado a respeito dessas memórias explica muitas coisas. Chalgrove contactou-me o mês passado, a perguntar se Alexia possuía alguma influência junto de Miss Blair e se ela podia aprazar um encontro com ela. Pensei, estupidamente, que ele tinha desenvolvido uma fascinação por ela. Agora, acho muito mais provável que ele esteja 319

preocupado com uma possível referência ao seu próprio nome naquelas páginas. – Eu não as li. Não sei se isso é verdade. – Podíeis fazer-lhe uma visita e descobrir até que ponto ele necessita dessa influência. – Se fui incapaz de ajudar esta família, dificilmente o poderei ajudar a ele. – Basta uma palavra vossa a Miss Blair para descobrir se ele precisa de ficar muito preocupado. Ele é um velho amigo que já enfrentou suficientes dissabores ultimamente. Fazei-me esse favor e eu esquecer-me-ei do facto de me terdes mantido na ignorância desta intriga. – Christian decidiu que não precisáveis de saber. Esta era uma desculpa débil de um homem a quem faltavam forças de momento. Ele não sentia nada dentro de si, à excepção de um vazio no peito que quase o sufocava. A sua alma era um grande espaço em branco desde que regressara do jardim. Phaedra acreditara que era a única a fazer uma escolha lá fora, mas ele fora igualmente confrontado com o reflexo sombrio das suas próprias escolhas. Ele não ficara nem um pouco chocado ao ser informado a respeito da situação de ambos nessa tarde. Os seus advogados haviam delineado um caminho a seguir de forma a garantir que a sua posse da mulher que queria era completa e permanente. Se ela tivesse dado a mais pequena indicação de que este desenvolvimento era bem-vindo, ele teria tirado partido da sua vantagem. O seu desejo não era ajudá-la a colocar os votos de lado. Ele queria-a vinculada a si para sempre para que nunca tivesse de perguntar-se se um novo amigo a podia roubar dos seus braços. Ele dissera a si próprio o dia todo que ela iria acostumar-se à ideia. A sua oposição era filosófica e as suas crenças careciam de espírito prático. O prazer, a luxúria e a ternura não tardariam a suavizar a sua perspectiva. Ele não exigiria quaisquer mudanças no início e muito poucas mais tarde. 320

Porém, ao mesmo tempo, fora atormentado por uma memória. Ainda o atormentava agora e o brandy não estava a ajudá-lo a esquecê-la. Não se tratava de uma memória de Phaedra ou tão-pouco de sua mãe. Nela, Elliot viu o pai à porta da biblioteca em Aylesbury, a olhar fixamente para a mulher cuja cabeça estava inclinada na direcção da sua pena, a escrever. O rosto estava tão severo como sempre e a postura igualmente inflexível. Com a atenção totalmente concentrada na sua mulher, ele não reparara no rapazinho que estava no chão ao lado das estantes. Elliot só agora compreendia essa memória, de formas que nunca havia compreendido em rapaz. O falecido Lord Easterbrook estava a olhar para a sua mulher com os olhos de um homem apaixonado. Desesperada e tragicamente apaixonado. Ele fitou o irmão. Hayden estava à espera que ele mantivesse uma conversa a respeito de outra coisa qualquer quando só conseguia pensar naquele beijo no jardim. – Christian sabia que eu não iria aprovar os seus métodos – disse Hayden. – Nem tão-pouco percebo por que motivo ele se importa tanto com isso. Todos sabem que o pai não era nenhum san-to. Se quiserem começar a perguntar-se se ele matou um ho-mem, deixá-los. As palavras de Hayden arrancaram um sorriso a Elliot. – As pessoas dizem que sois o filho que mais se parece com ele, Hayden. Talvez isto vos tenha permitido reconciliar-vos com aquilo que ele era ou pode ter sido. – É isso que as pessoas dizem? Interessante. Eu diria que seria um de vós os dois. Eu nunca faria a Alexia o que ele fez à nossa mãe. Nem tãopouco me vingaria de um rival após este ter sido derrotado. – E achais que eu o faria? – Não sei. Só estou certo dos meus próprios actos. Elliot não tinha a mesma certeza a respeito dos seus próprios actos. Ele fora amplamente instruído em matérias do desejo nos últimos tempos e as lições não tinham sido todas boas. Os olhos que ele teimava em ver naquela 321

recordação inquietavam-no porque se pareciam de forma assustadora com os seus quando se olhava ao espelho ultimamente. Talvez Phaedra pressentisse isso. Talvez durante uma daquelas intrusões espirituais, ela vira isso nele ou talvez receasse que fosse um dos legados que ele tivesse herdado do pai. – Nós não sabemos se ele se vingou de ninguém – disse ele. Não queria acreditar que a falta de compaixão dos Rothwell chegasse tão longe. – É irrelevante se ele é culpado ou não. O facto de dois dos seus filhos recearem que o seja é muito mais significativo do que o próprio acto, não é? Desta feita, Elliot não estava a pensar no soldado na Colónia do Cabo. – A mãe não estava isenta de culpas. Hayden ponderou essa observação. – Mesmo sem saberdes se ele é culpado, tentais justificar esse acto? Não, ela não estava isenta de culpas. Ela era uma adúltera. Pior do que isso, não se tratou de um caso amoroso frívolo, mas de um que envolveu o coração. Ele não podia permitir que ela o abandonasse, mas também não tinha de a isolar. O casamento já era uma prisão suficiente para ela. Ele não lhe tinha de criar uma prisão verdadeira em Aylesbury. – Ele não a obrigou a ficar lá. Ele disse-me que não o tinha feito. – Ele pode não lhe ter dado essa ordem, mas tornou o casamento de ambos impossível de suportar. Ele não a perdoaria mesmo que ela quisesse o seu perdão. Talvez ela tenha decidido ficar lá. Quer se tratasse de um santuário ou de uma prisão, pelo menos, ela não estava com ele. – Pareceis compreender o que se passou melhor do que ninguém. – Melhor do que eu desejaria. É uma lição dos perigos do orgulho, creio eu. Uma história exemplar da forma como este pode transformar o carácter de um homem, para o mal assim como para o bem. Elliot não acreditava que tivesse sido o orgulho a provocar o tratamento cruel do pai em relação à mãe de ambos. Fora uma emoção muito mais básica do que essa.

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Hayden fixou o olhar nas gotas cor de âmbar que repousavam no fundo do copo do irmão. – Elliot, não vim ter aqui convosco por acaso. Alexia está preocupada. Ela comentou comigo a cor vermelha que Miss Blair exibia na boca e nos olhos quando regressastes ambos à sala de estar. Eu confesso que não reparei – declarou. Ele serviu-se de um pouco de brandy e instalou-se numa cadeira. – Ela acha que aquela boca foi muito beijada. Alexia tinha razão. Eles tinham-se beijado durante o que pareceu uma eternidade. Mesmo assim, o beijo terminara demasiado cedo. – Não duvido que ela esteja chocada. – Alexia aceita os comedimentos do decoro, mas muito pouca coisa a choca. E muito menos quando o assunto envolve Phaedra Blair. Foram os olhos vermelhos que a deixaram preocupada e a fizeram enviar-me cá abaixo para vos extrair informações com falinhas mansas. Elliot ponderou até que ponto estava disposto a ceder informações. – Parto do princípio que não a tenhais molestado no jardim – disse Hayden. – É muito pouco provável que um homem que moleste Phaedra Blair sobreviva para contar essa história. Hayden soltou um riso abafado. O som fez Elliot rir-se também. O seu humor melhorou, embora o peito ainda estivesse repleto e vazio ao mesmo tempo. – Maldição. Criei um desastre, Hayden. Se Christian subitamente se começou a preocupar com a má-língua, vai sofrer uma apoplexia quando souber do material de entretenimento que estou prestes a dar à sociedade londrina. – Presumo que Miss Blair tenha o papel principal. – E eu tenho o outro. Servi-me outro copo de brandy e eu contar-vosei todo o enredo para que possais apreciar plenamente a lição moral no seu desfecho. É uma história de desejo e paixão, de sedução e fantasia e perigo, de casamento e… 323

– Casamento? – Oh, sim. De casamento, repudiação e… Hayden estava ocupado a servir os copos e não reparou na forma como a frase inacabada ficou a pairar no ar. As palavras finais ressoavam no interior da cabeça de Elliot, porém. Aquilo que lhe enchia o peito ficou ainda mais vazio.

De casamento e repudiação e amor.

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Capítulo 22 P

haedra pousou o lápis e esfregou os olhos. O manuscrito do

pai precisava de uma revisão mais atenta do que ela antecipara. A sua caligrafia ficara pior no final e tão má que era muito pouco provável que os compositores conseguissem reconhecer as letras. Ela calculou que tivesse pelo menos mais uma semana de trabalho à sua frente. Olhou em volta na sala de leitura do Museu Britânico. Ou-tras cabeças e costas estavam igualmente curvadas sobre volumes noutras mesas. A maior parte eram homens, mas havia algumas mulheres. A sua atenção concentrouse nos primeiros, um por um. Elliot não estava ali. Procurá-lo tinha-se tornado um hábito. Eles não se podiam encontrar em privado, mas um encontro públi-co não possuía qualquer perigo. Se por acaso ele trabalhasse aqui ao mesmo tempo que ela… Não precisava de haver qualquer reconhecimento de parte a parte. Nenhuma saudação ou conversa. Ela só queria vê-lo novamente. Podia limitar-se a retirar prazer do mero facto da sua existência nesta sala, mesmo que ele se sentasse no canto mais distante e nunca voltasse a cabeça na sua direcção. Ela fechou os olhos e imaginou-o. Sentiu o sabor daquele último beijo e inalou o seu cheiro. A mão dele deslizava pelo seu corpo, acariciando-o. Ela saboreou as memórias, revivendo-as na-quele preciso momento. 325

Quando tempo passaria até estas se desvanecerem? Ela temia que isso acontecesse, e que o mesmo destino coubesse às emoções que instigavam a sua alma. Ela evocava demasiadas vezes as memórias porque receava que estas já tivessem começado a fugir-lhe entre os dedos. – Phaedra, estais a dormir? Ela abriu os olhos, sobressaltada. Um chapéu chique e elegante inclinara-se por cima da mesa. Uma mulher fitava-a, curiosa, e falara num murmúrio. – Alexia, o que fazeis aqui? – Disseram-me que passais os vossos dias aqui. Ela olhou em volta na sala. Os murmúrios elevaram-se no ar e alguns olhares carrancudos foram lançados na direcção de ambas. – Vamos sair. Preciso de apanhar ar – pediu Phaedra. Alexia aguardou enquanto ela atava o manuscrito. De seguida, levou-o até ao bibliotecário que o guardou numa estante. As duas amigas abandonaram a sala de leitura e a Montague House4. – Podemos dar um passeio na praça Bedford – sugeriu Phaedra. – Então aquele é que é o tal manuscrito infame – disse Alexia enquanto caminhavam na direcção da praça. O coração de Phaedra ensombrou-se. – Já sabeis de tudo. – Hayden e eu guardamos poucos segredos um do outro. Não precisais de ficar tão aflita, minha querida amiga. Não vim ter convosco para implorar a vossa misericórdia. Easterbrook quer que eu o faça, mas eu finjo que não ouço as suas insinuações a esse respeito. – Fostes a primeira pessoa em que pensei. Quando li aquilo, não me preocupei com os sentimentos do vosso marido ou dos irmãos, mas com os vossos…

4

Nome do primeiro edifício londrino no qual o Museu Britânico se veio a instalar. (N. da T.) 326

– Isso é muito amável da vossa parte e estou-vos grata por isso. Todavia, eu compreendo a lealdade que devemos à família. Se o vosso pai vos incumbiu de um dever, não podeis seleccionar e escolher que parte dessa promessa ireis cumprir. Phaedra mantinha uma compostura periclitante desde aquele jantar. Neste momento, a generosidade de Alexia fê-la estremecer de novo, de forma assustadora. A amiga olhou-a de relance e esboçou um sorriso tranquilizador. – Quem foi que vos disse que eu estava a trabalhar no manuscrito na Montague House? Mais um olhar de relance. Mais um sorriso. Um sorriso repleto de compaixão. – Não foi ele. O visconde Suttonly regressou a Londres e a tia Hen seguiu-o insensatamente com Caroline de volta para a cidade. Hayden está furioso e instituiu regras extremamente rigorosas. Encarregou Easterbrook de as aplicar. – Não consigo imaginar o marquês a pregar um sermão a uma jovem acerca da sua virtude. – Ele não disse uma palavra sobre o assunto, segundo a deveras perturbada tia Hen. Em vez disso, faz questão de limpar todos os dias as pistolas de duelo na biblioteca, mesmo à frente de Caroline. Phaedra soltou uma gargalhada ao imaginar a cena. – Eu compreendo a perturbação de Henrietta. Casar a filha com um titular está ao alcance dos seus dedos, afinal de contas. – Na verdade, não lamentei o seu regresso. Permite-me ficar igualmente na cidade. E ela é um íman para a melhor má-língua de Londres e arredores. Foi ela quem me disse onde vos podia encontrar, por exemplo. – Lord Elliot recomendou-me que entregasse o manuscrito à guarda dos bibliotecários do museu. Foi mais sensato do que eu. Tenho a certeza de que alguém esteve em minha casa ontem à noite, sem dúvida à procura dele. Ela não ouvira qualquer ruído enquanto dormia, mas de manhã, quando entrou na sala de estar, algo lhe parecera errado e ligeiramente 327

alterado, com os xailes venezianos dispostos de forma diferente e as estantes dos livros demasiado ordenadas. – Não foi nenhum de nós – disse Alexia. – Não teríamos qualquer razão para isso. Easterbrook e Hayden sabem onde guardais essas páginas. As duas amigas deram uma volta no pequeno parque da praça Bedford. As casas que a circundavam pareciam modestas, mas confortáveis. De construção similar, eram o tipo de casas que escritores bem-sucedidos, causídicos e diplomatas estrangeiros habitavam. As suas fachadas elegantes alinhavam-se num estilo uniforme, com telhados que não eram excessivamente elevados. As casas coadunavam-se lindamente com as pequenas proporções da praça. – Elliot tenciona deixar Londres em breve – afirmou Alexia, como se estivesse a responder a uma pergunta. Talvez tenha ouvido a que estava na ponta da língua de Phaedra. Elas caminharam um total de dez passos antes de Phaedra lhe responder. – O que é que sabeis, Alexia? – Sei quase mais do que desejaria. Não concordo com a vossa filosofia, Phaedra. Nunca fingi concordar. Agora temo que estejamos prestes a descobrir a calamidade que pode causar. No entanto, uma vez que nunca me tentastes converter, eu também não farei qualquer tentativa nesse sentido – declarou Alexia. Ela conduziu ambas ao parque e deixou-se sentar num banco de pedra. – Elliot envolveu-se numa discussão com Easterbrook ontem. – Foi uma grande discussão? – Nas palavras da tia Hen, foi uma discussão épica. Phaedra sentou-se ao seu lado. – Henrietta conseguiu ouvir o que diziam? – Henrietta jamais perderia a oportunidade de ouvir uma discussão atrás de uma porta. No entanto, consegui convencê-la de que a ouviu mal desta vez. Ela afirmou que esta discussão era a respeito de um casamento.

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– Um mal-entendido, sem dúvida – replicou Phaedra, fitando com toda a atenção a gavinha de uma folha de hera que se enrolava em espiral perto do seu sapato. – Ela disse que esta altercação girou em torno dos direitos de um marido e a necessidade dos maridos de exercer esses direitos. Em suma, Christian estava a dizer a Elliot que se algo semelhante a um casamento existisse entre ele e vós, ele devia tomar posse daquela editora que recebestes em herança. – Se Elliot não concordou com ele, isso foi muito nobre da sua parte. – Que resposta estranha, Phaedra. Pensei que iríeis desatar às gargalhadas com a mera ideia de existir algo semelhante a um casamento entre ambos – anunciou ela, inclinando a cabeça de forma irónica. – Qual é a dimensão desta calamidade, Phaedra? Phaedra preferia que Alexia não tivesse utilizado a palavra «calamidade». Embora talvez esta tivesse sido uma escolha apropriada. A situação podia ter destruído algo valioso e era possível que viesse a causar mais mágoa. Ela contou a verdade à amiga. A expressão de Alexia reflectiu um assombro crescente. – Estou de acordo que esses votos não deviam ser válidos – disse ela. – Hayden não partilhou tudo comigo, afinal de contas. Porém, a vossa história explica este bilhete. Ela pousou a bolsinha no colo, abriu-a e tirou um pedaço de papel dobrado. – Ele pediu-me para vos dar isto. Na altura, não percebi porquê, uma vez que reparei que são todos advogados. Phaedra leu os três nomes que estavam escritos no papel. Ela reconheceu um deles. Este tinha representado uma condessa que pretendia separar-se do marido. Todos os pormenores relativos ao caso apareceram nos jornais. Ela anteviu que os pormenores respeitantes à sua acção judicial seriam igualmente publicados. 329

– Não posso pagar os honorários deste tipo de homens. – Quem me deu esse papel foi Hayden e disse-me para vos dizer que ele faria contas com eles. Agora que compreendo as circunstâncias, estou certa de que ele queria dizer que se encarregaria de pagar os respectivos honorários. O próprio irmão de Elliot oferecera-se para pagar os custos resultantes da sua petição. O seu outro irmão até podia querer que ele exercesse os seus direitos maritais enquanto ainda fossem ambíguos, mas Easterbrook ficaria igualmente feliz por livrar a família de Phaedra no final. Talvez Elliot tenha chegado à mesma conclusão. No mínimo, a ajuda de Hayden provavelmente também queria dizer que Elliot não iria contestar as suas declarações. O nó de desapontamento que envolvia o seu coração era uma reacção ridícula. Os corações não pensam com clareza suficiente para tomar decisões. Entregam-se ao sentimento e não prevêem o futuro. O arrependimento pleno de nostalgia não esmoreceria facilmente, mas isso não significava que ela devia permitir que esta emoção traiçoeira a dominasse. Guardou o papel no bolso e desviou a conversa para assuntos que a distraíssem de Elliot. Mr. Pettigrew batia incessantemente com as pontas dos dedos no seu queixo papudo. O hábito deixara há muito de impressionar Phaedra como um sinal de concentração pensativa. Ela começava a pensar que o homem passara todo aquele tempo a sonhar acordado. – O que me dizeis, senhor? A minha petição terá uma audiência justa? A pergunta demorou igualmente uma quantidade apreciável de tempo a penetrar na sua concentração. Por fim, os dedos grossos abandonaram o queixo flácido e a cabeça inclinada e grisalha endireitou-se. – Este é um caso muito interessante, Miss Blair. Deveras interessante. Estou fascinado pelas potenciais ramificações e implicações que uma sentença neste caso irá ter.

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– Nada me dá mais prazer do que proporcionar-vos essa estimulação mental. Porém, esperava algum tipo de corroboração da vossa parte de que estou correcta na minha forma de ver o assunto em causa. A sua atenção fixou-se nela. Mr. Pettigrew era um homenzinho corpulento cujo plastrão parecia estar a estrangulá-lo. Os seus olhos azuis conseguiam tornar-se extremamente penetrantes quando queria. – Se optardes por este caminho, o percurso será moroso. Quan-to a provas, o melhor será obterdes cartas ajuramentadas de terceiros que estiveram presentes e só essa tarefa demorará meses. As testemunhas dessa cerimónia de casamento estarão dispostas a dizer que fostes coagidos? – A mulher sim. Também creio que o padre estava consciente da inexistência de um consentimento verdadeiro. Não me parece que ele estivesse à vontade enquanto realizava a cerimónia. – Reparai, o problema reside precisamente aí. Nas vossas próprias palavras. Consentimento verdadeiro. Esse é o busílis da questão. Destes o vosso consentimento, mas não foi, afirmais, um consentimento verdadeiro. O tribunal não receberá com agrado uma declaração dessa natureza. Quantos outros não diriam então que não existiu um consentimento verdadeiro? E, no entanto, contais uma história que pode possivelmente corroborar essa reivindicação. Fascinante. – É suficientemente fascinante para me representardes? Pettigrew não era o primeiro nome da lista. Ela já tinha sido recusada pelos outros dois. Ele perscrutou o rosto dela de forma crítica. – Estais certa de que Lord Elliot irá contar a mesma história? É essencial que ele não conteste isto. Se ele o fizer, nenhum tribunal o anulará. Afinal de contas, ele é o filho de um lorde. – Ele não fez nada para reivindicar os direitos que aqueles votos lhe dão. Não vivemos como homem e mulher e não tomou quaisquer providências no sentido de se apoderar dos meus bens.

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– Ah, bem, se ele deixou em paz os bens… As coisas passar-se-ão da seguinte forma, Miss Blair. O tribunal ficará desconfiado de que isto se trata de uma tentativa de desfazer um casamento realizado à pressa numa estadia no estrangeiro. Esse género de casamentos impulsivos não é inédito quando os nossos conterrâneos são estimulados pelo contacto com climas mais quentes e respectivos povos de temperamentos mais arrebatados. O bom senso muitas vezes regressa demasiado tarde. – Não estais a descrever o que sucedeu connosco. Os votos foram meramente proferidos para que eu não fosse sujeita a acusações de crimes que não cometi. Tratou-se de uma tentativa desesperada para me salvar e nada mais do que isso. Ele aceitou as palavras dela sem qualquer comentário, mas Phaedra detectou uma ponta de cepticismo na sua expressão diplomática. – Depois, temos a questão da noite na torre – disse ele. – Irão inquirirvos e a Lord Elliot a propósito da ocorrência de um encontro de índole sexual nesse local. Se se confirmar, todo o seu caso ficará comprometido – explicou, para, de seguida, fazer uma pausa e contrair os lábios. – Se esse tipo de actividade continuou após terdes deixado Positano, bem… E se porventura esta ligação amorosa der frutos na forma de uma criança, será um caso perdido. Ela preparou-se para a rejeição que se seguiria. Estes não eram os únicos três advogados disponíveis. Ela teria de encontrar outros, um pouco menos fastidiosos. Um deles acabaria por ver a legitimidade da sua posição. – Quer-me parecer que não considerais a minha petição merecedora do vosso tempo, senhor. – Limitava-me a explicar-vos as dificuldades – afirmou. O seu rosto redondo enrugou-se num sorriso. A mão cortou o ar num arco longo e abrangente. O gesto abarcava a visão que tinha de Phaedra. – Normalmente, esta petição seria em vão. No entanto, vós não sois normal, pois não? – Perdão? – Miss Blair, a vossa antipatia em relação ao casamento é bem conhecida. A vida da vossa mãe é lendária e a vossa própria excentricidade e 332

provável ausência de fidelidade não é algo a que um filho de um lorde se queira ver associado de livre vontade. Se qualquer outra mulher afirmasse que não dera o seu consentimento para se casar com Lord Elliot Rothwell, o tribunal expô-la-ia ao ridículo. Vós, porém… – declarou e repetiu o gesto com a mão. – O vosso comportamento e crenças virão em apoio da vossa afirmação. O tribunal estará predisposto a libertar Lord Elliot de quaisquer obrigações que tenha para convosco. Sim, aceitarei o vosso caso e certificarme-ei de que tereis o melhor causídico a defender o vosso caso. Não tenho dúvidas de que iremos receber ambos convites para jantar durante anos a fio às custas da notoriedade desta petição. A promessa de notoriedade não ajudou a melhorar o humor de Phaedra. Ela abandonou o escritório de Pettigrew no mesmo estado aturdido e triste no qual entrara. Como o dia estava bonito, decidiu ir a pé até ao Museu Britânico. Ela enfiou a mão dentro do bolso e pousou-a sobre uma carta lá escondida. Elliot escrevera-lhe há dois dias, expressando a sua preocupação a respeito do intruso da outra noite. O tom da carta era formal, quase distante. Será que fantasiara o facto de que, através daquelas expressões desprendidas de cautela e preocupação, ele estaria na realidade a dizer outra coisa? Desisti e vinde até mim, e nunca

mais correreis qualquer perigo. A carta não continha nada remotamente semelhante a isto. Não existiam quaisquer palavras de paixão ou alusões ao que haviam partilhado. A mensagem podia ter sido dirigida a um conhecido que não via há cinco anos. Talvez ele não quisesse arriscar escrever uma carta que desmentisse as suas afirmações a respeito daquele casamento. Ou talvez já tivesse começado a vê-la de forma diferente. Ela não podia censurá-lo por isso, se fosse esse o caso. Afinal de contas, ela escolhera a liberdade em detrimento dele. Ele convencera-se a si próprio a aceitar a validade daqueles votos e ela não tinha dúvidas que ele se sentira insultado pela sua recusa em fazer o mesmo. Ela não tinha esperanças que ele alguma vez compreendesse por que motivo não o podia fazer. 333

Ela própria começava a perguntar-se porque não o podia fazer. O mero facto de tocar na carta dava-lhe algum conforto. Ela, que nunca antes se sentira sozinha nesta vida que escolhera, sentia agora o peso da solidão. Também nunca antes questionara essa vida na sua essência, mas agora, nas horas mais avançadas da noite, fazia-o com o coração repleto de tristeza e solidão. Phaedra não conseguia resignar-se à infelicidade que esta separação lhe causava. A dor era uma presença constante na sua alma, nunca esmorecendo. Ela entrou na sala de leitura e foi buscar o manuscrito. Phaedra começara a odiar esta obrigação diária. Pegou nas páginas como se estas tivessem todo o peso do mundo. Deixou-as cair numa mesa e fulminou-as com o olhar. O ar atrás de si moveu-se de uma forma subtil. Uma presença insinuou-se bem próximo dela. O seu coração deu um salto. Ela fechou os olhos e saboreou a felicidade que se espalhava por todo o seu ser como raios de sol a irromper através de nuvens negras. Phaedra voltou-se para ver Elliot a depositar um volume encadernado e fólios de papel na mesa em frente à sua. Ele brindou-a com um sorriso, mas era o tipo de sorriso cortês oferecido a um conhecido, não a uma pessoa ao lado de quem já dormira. – Miss Blair, é um prazer encontrar-vos aqui por acaso. Não sabia que o vosso trabalho ainda vos prendia aqui. – Estou prestes a terminá-lo, Lord Elliot. O olhar dele deteve-se fugazmente no manuscrito que tinha feito com que os seus caminhos se cruzassem. De seguida, gesticulou na direcção da sua própria mesa. – Eu também estou prestes a terminar o meu. Não irei bloquear a luz da janela se me sentar ali, pois não? Há outras mesas disponíveis se a minha presença for inconveniente de alguma forma. – Está um belo dia de sol e toda a luz que houver pode ser partilhada.

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Ele não voltou a falar. Ocupou a cadeira, abriu o volume e os papéis e abstraiu-se nos seus exercícios mentais. Ela sentou-se e dispôs o manuscrito à sua frente. Não desviou o olhar dele e fingiu estar a lê-lo. Na verdade, os seus olhos não viam os escritos do seu pai, apesar de Elliot não estar a bloquear minimamente a luz. Ela não conseguia deixar de o sentir ali, tão próximo de si. Deleitou-se com a sua presença e com a forma como aliviava a sua dor. Saboreou o modo como o coração inchava de emoção. Maravilhou-se com a facilidade com que as lágrimas lhe assomaram aos olhos. Ela tinha-se apaixonado por ele. Era isso que todas estas emoções significavam. A alegria, a dor, a paz, e a confusão – estas eram as reacções de uma mulher que tinha perdido o seu coração. Ela não sabia por que razão essa verdade a alcançara agora, aqui, durante esta hora de intimidade distante. Ela pensava que estivera apaixonada antes, mas aqueles breves estados de entusiasmo não possuíam qualquer comparação com isto. Phaedra interpretara mal muitas coisas sobre si própria e sobre os vínculos que formara nesta amizade tão especial. Ela perdeu a noção do tempo que permaneceu naquela posição, a sentir a presença dele e a maravilhar-se com o contentamento que esta lhe trazia ao coração. Quando ele se ergueu da cadeira, ela foi arrancada bruscamente ao seu doce alheamento. Ele dirigiu-se às estantes, retirou outro livro e caminhou de volta à sua mesa. Ela não conseguiu evitar olhá-lo. Não teve forças para o libertar do seu olhar. Ele estava tão bonito no seu elegante casaco escuro, plastrão e gola engomados. O facto de os olhos continuarem a reflectir a absorção intelectual e de o cabelo parecer ligeiramente revolto só o tornava mais atraente. Não era só o corpo que fazia o homem. Ele reparou na atenção dela e a sua emergiu dos seus pensamentos. Os seus passos pareceram abrandar. Ele avançava agora com os olhos pregados nos de Phaedra. O desejo ardia-lhe no olhar, tranquila e subtilmente, oculto a todos excepto ela.

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Ela reagiu como sempre reagira. Como sempre reagiria. Imaginou-se já idosa e de cabelo branco a encontrá-lo por acaso na cidade após terem estado separados durante décadas. Se ele olhasse para ela desta forma nesse momento, ela recordar-se-ia num abrir e fechar de olhos do quanto ela sempre o desejara. Desta vez, ele não se sentou. Aproximou-se tranquilamente da sua mesa, como um intelectual curioso acerca do trabalho de um dos seus semelhantes. Deixou-se ficar ligeiramente atrás dela e inclinou-se por cima do seu ombro. Ela sentiu-o a poucos centímetros do seu corpo de forma tão evidente, tão quente que cerrou os dentes para controlar o impulso de virar a cabeça e beijar-lhe o peito. – Só vos faltam algumas páginas – disse ele. – É possível que precise de revê-lo todo novamente. Ainda pode demorar algum tempo até estar em condições de ser entregue na tipografia – afirmou e ergueu o olhar para ele. – Confio que agora também preciseis de vos deslocar frequentemente até aqui, para verificar os pormenores do vosso livro. – Por norma, existe muito trabalho de verificação na parte final. – Então, é possível que partilhemos a luz do sol novamente, Lord Elliot. – Creio que não. Amanhã abandonarei Londres e estarei fora pelo menos uma semana. Deveis dar por concluído o vosso trabalho muito antes da data do meu regresso. Os olhos continuaram calorosos. Sabedores. Ela viu o seu afecto, ainda que mais ninguém o conseguisse ver. Os lampejos de aço também não lhe passaram despercebidos. – Não vos alongueis demasiado na vossa tarefa, Miss Blair. A vossa vontade foi respeitada neste e noutros assuntos e eu não interferi. Porém, seria insensato da vossa parte confiar que me deixarei convencer para sempre de tão nobres sentimentos. Confesso que os pratos da balança da minha consciência têm pendido para o lado errado ultimamente. O aviso dele fê-la corar intensamente. 336

– Aguardo um último pedido relacionado com o conteúdo deste trabalho – afirmou ela. – Quaisquer pedidos nesse sentido, se se confirmarem, chegarão até vós na próxima semana. Após essa data, tomai a vossa decisão. Ou seguis em diante ou não. Mas não proteleis este assunto, senão irei questionar a vossa determinação nesta e noutras matérias. Estou demasiado consciente, e sou demasiadas vezes lembrado, que uma palavra da minha parte iria resolver de modo assaz conveniente todas as questões pendentes a respeito da vossa pessoa de formas que seriam muito mais do meu agrado. Ele caminhou até à mesa que ocupara, pousou o livro e reuniu os seus papéis. – Foi um prazer desfrutar da vossa companhia hoje. Um prazer demasiado intenso. Não consegui fazer mais nada durante a última hora e meia que não fosse imaginar-vos nua nesta mesa, a implorar-me para vos possuir. Ele olhou em volta na sala repleta de livros para os leitores com lunetas e os bibliotecários de semblante grave. – Raios, Phaedra. Nunca mais vou olhar para esta biblioteca da mesma forma. Elliot tencionava viajar até ao Suffolk para visitar Chalgrove como Hayden lhe pedira, mas tinha adiado a visita por uma multiplicidade de razões. Enquanto a sua carruagem o transportava através da região rural, ele admitiu a si próprio que a verdadeira razão fora Phaedra. Ir à sua procura na sala de leitura fora uma cedência menor à melancolia que o atormentava. Ele jurara a si próprio que não se sentaria perto dela. Nem sequer pretendia ser visto por ela. Depois, mal ela entrara na sala, gravitou instantaneamente na sua direcção para poder absorver a sua presença como um alcoólico sóbrio há demasiado tempo. O facto de saber que estava a agir de forma ridícula não conteve o ímpeto de se expor ainda mais ao ridículo. O amor era um inferno e não havia nada a fazer quanto a isso.

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Ele fixou o olhar nas quintas que a carruagem ia deixando para trás, mas na realidade só conseguia vê-lo a ele com ela nos anos que se seguiriam. A visitá-la naquela casinha. Ela provavelmente nem sequer aceitaria o género de presentes normais que um amante oferecia à sua amada. Passariam dias a fio nos quais ele não a veria de todo. Independentemente da duração deste caso amoroso ou do facto de declararem um amor eterno um pelo outro, ela não faria verdadeiramente parte da sua vida. O homem dentro de si revoltou-se contra essa perspectiva. Assim como o amante apaixonado. Ela podia ter crescido a aprender que uma relação dessa natureza era normal, mas a noção não fazia qualquer sentido quer para a sua cabeça, quer para o seu coração. Pior, instalara-se-lhe a suspeita de que ela conseguia aceitar esse tipo de vida porque não desejava realmente que ele partilhasse a sua vida. O que levantava a questão da possibilidade de se ter apaixonado estupidamente por uma mulher que não retribuía esse amor. Eles nunca tinham falado de amor. Ele tinha a desculpa da ignorância, mas ela podia ter uma razão muito diferente. A carruagem desviou-se da estrada para um caminho secundário e ele concentrou os seus pensamentos no encontro que tinha à sua frente. Este seria o mais bem-vindo dos seus deveres enquanto estivesse fora de Londres, mas, ainda assim, Elliot não estava ansioso. Não podia influenciar Phaedra no que dizia respeito às memórias, e muito menos em nome do conde de Chalgrove. A propriedade de Chalgrove dava mostras da permanência prolongada do seu senhor. Os campos pareciam produtivos e o solar bem cuidado. Hayden afirmara que as finanças de seu amigo não gozavam de boa saúde, porém. Dívidas herdadas e perdas de capital durante a recente crise bancária tinham obrigado Chalgrove a manter cuidadosamente um equilíbrio financeiro precário. Este recebeu Elliot no seu escritório. Era uma divisão com um recheio irrepreensível. Se alguns volumes raros tivessem desaparecido e algumas paredes tivessem perdido alguns quadros, ninguém o adivinharia.

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Chalgrove era um homem corpulento com um porte atlético. Nos seus anos de juventude, na qualidade de homem de sociedade, era conhecido por fazer parte de uma elite de desportistas amadores. Raramente vinha à cidade agora e estivera particularmente ausente na maior parte da última temporada. Os dois homens estavam sentados no escritório, com bebidas na mão. Os olhos cinzentos encovados de Chalgrove quase não reflectiam as suas preocupações, mas a sua presença ostentava a circunspecção de um homem com mais responsabilidades do que desejaria. – O vosso irmão escreveu-me. Foi muito amável da vossa parte ter vindo – disse ele. – Não sei se vos poderei vir a ser útil. Eu não li o manuscrito. – Não tenho dúvidas que a pessoa que o vai publicar o leu. Aquela mulher, Miss Blair – redarguiu ele. Ele pousou as botas num banco e adoptou uma posição descontraída, beberricando a sua bebida. As botas exibiam pedaços de lama seca, como se o conde tivesse saído para os campos que vira lá fora hoje. – Fui abordado por Merris Langton antes da sua morte. Aparentemente, Richard Drury incluiu o meu nome naquelas memórias de forma incorrecta. Elliot suspeitou que todos aqueles que fossem referidos, mas não elogiados, insistiriam que Richard Drury se equivocara. – Trata-se de um assunto pessoal? – Político. Drury exagerou grandemente as minhas ligações com determinadas facções radicais quando eu era mais novo. Não há nada de ilegal ou sequer sedicioso no seu relato dos factos, e eu não passava de um rapaz quando isso aconteceu, mas seria embaraçoso se se soubesse. Preferia que o erro não fosse impresso de modo indelével. Estou certo de que me compreendeis. – Receio que seja pouco provável que eu vos possa ajudar. Miss Blair prometeu ao seu pai publicar o manuscrito na sua forma original e integral. Fazeis parte de uma longa fila de pessoas que querem alterações e ela não está a tomar em consideração quaisquer pedidos nesse sentido.

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– Maldição – lançou Chalgrove. As sobrancelhas escuras baixaram para dar forma a um olhar furioso e zangado. – Isto foi um acto de vingança daquele homem. Todas as memórias postumamente publicadas não passam disso, geralmente. De uma oportunidade de ajustar contas a partir do túmulo sem sofrer quaisquer consequências perniciosas. – Nunca ouvi o vosso nome a ser ligado ao dele. Chegastes a co-nhecê-lo suficientemente bem para dar azo a este ajuste de contas? Chalgrove franziu o sobrolho sobre o copo que tinha na mão enquanto bebia um longo gole. De seguida, pousou o copo vazio no chão e lançou à sua visita um olhar longo e duro. – Mal o conhecia, mas tivemos uma conversa que não acabou bem. Foi há cerca de oito anos. Eu era jovem e estava apaixonado e, apesar das minhas perspectivas e nascimento, a família da senhora não me aceitou. Não tenho dúvidas de que o pai dela conhecia as limitações dessas perspectivas de formas até então desconhecidas para mim. Ele gesticulou na direcção da sala, da casa e de tudo que a circundava. A sua exasperação abatida expunha melhor as responsabilidades financeiras do que qualquer explicação verbal. – Fui ocasionalmente incluído no círculo de Artemis Blair. Por isso, era óbvio que conhecia Richard Drury. Uma noite, ao jantar, ele obsequiou-me com uma prelecção a respeito do meu desapontamento. – Isso foi uma atitude muito insensata da parte dele. Um homem desapontado não lhe ficaria grato por isso. – Este homem não, asseguro-lhe. Ele brindou-me com uma longa e aborrecida explicação do quanto era melhor para mim assim, da forma como o casamento destruía o amor, do quão preferível era amar livremente, etc. – Era a filosofia pela qual regia a sua vida. – Para o diabo com a sua filosofia! Fiquei zangado com o modo como arengava de modo altivo as suas opiniões superiores e iluminadas. Por isso, disse-lhe que ele era um mau exemplo do que pregava, uma vez que Artemis Blair havia arranjado outro amante – explicou. O seu rosto contorceu-se 340

fugazmente num esgar de descontentamento e encolheu os ombros. – Como eu disse, era muito jovem. – Ele não gostaria que lhe atirásseis isso à cara, mas não éreis o único que sabia. Não creio que tenhais dado azo… – Ele ainda não sabia na altura. Foram as minhas palavras que o tornaram consciente desse facto. Tenho a certeza absoluta. Ele ficou chocado. Zangado. Cheguei a pensar que me ia desafiar para um duelo por fazer tal sugestão. Pouco depois, porém, tornou-se claro que ele tinha saído da vida dela. Depois de os seus olhos terem sido abertos, não teve qualquer dificuldade em descobrir a identidade do homem, suponho eu. Ou talvez ele lhe tenha simplesmente perguntado. – Sabíeis de quem se tratava? – Creio que sim. Penso que se tratava de um indivíduo com o qual fiz uns negócios. Era um patife. Um ladrão. Vendia antiguidades que eram fraudes. Gostava de fazer propostas de venda de artigos dessa natureza a jovens ricos e inexperientes como eu. A expressão de Chalgrove manteve-se plácida. Se os seus olhos reflectiam alguma ira, esta estava voltada para dentro. Elliot pensou em deixar morrer o assunto, mas parecia que ele e Phaedra haviam sido demasiado generosos ao interpretar as actividades de Thornton. – Falais como se tivésseis comprado algumas dessas fraudes. – Não tenho provas de que ele sabia que eram fraudes, embora acredite que sim. Seja como for, não irei difamar o nome dele através da málíngua. Optei por não tornar a história pública há anos, quando tudo aconteceu, e fazê-lo agora… – Sem dúvida. Na verdade, creio que sei de quem se trata. Procurava apenas uma confirmação. Chalgrove parecia estar a ponderar sobre algo. A seguir, ergueu-se da cadeira, decidido. – Tende a bondade de me acompanhar. Vou mostrar-vos uma coisa.

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O conde conduziu Elliot para fora da divisão rumo à parte dianteira da casa. – Sempre me julguei um coleccionador, mesmo quando ainda frequentava a universidade. Comecei por coleccionar moedas romanas. A seguir, passei para alguns fragmentos do passado. Foi isso que me atraiu para o círculo de Miss Blair e levou à minha breve inclusão nele. Por isso, perante a oferta privada da jóia da coroa para a minha colecção da parte de alguém que seria um perito nesse tipo de coisas e que gozava da amizade de Miss Blair, senti-me seguro ao pagar uma grande soma de dinheiro. Chalgrove virou na direcção de um salão de baile. As botas de ambos ecoavam na enorme divisão. A mobília estava tapada com lençóis e uma camada espessa de pó cobria os castiçais da parede. Esta sala já não era utilizada há anos. – Quando o meu pai adoeceu, confidenciou-me finalmente os problemas da propriedade. Tinha andado a viver como se o dinheiro não tivesse fim e fiquei a saber que o fim, afinal, estava bem à vista. Por isso, comecei a vender a colecção. Foi nessa altura que fiquei a saber que a jóia da coroa era uma falsificação. – Estais certo disso? – Nada mais nada menos do que quatro peritos diferentes asseguraram-me o mesmo. Após cada resposta negativa, procurava ou-tro na esperança de que discordasse dos demais, sem sucesso. – Confrontastes o homem com a vossa descoberta? Os dois homens entraram num corredor que percorria uma das partes laterais da casa. Chalgroves de séculos passados observavam-nos do cimo das suas molduras ornamentadas. – Sim. Ele insistiu que os meus peritos estavam errados. Por isso, dirigime a Miss Blair com as minhas provas. Não acredito que ela fosse sua cúmplice, mas não aceitou imediatamente que eu tinha razão. A sua reacção, a própria expressão do seu rosto… Ela mostrou-se consternada, mas continuou a defendê-lo. É por essa razão que penso que ele era o seu novo amante. 342

Chalgrove deteve-se à frente de um mostruário de vidro e apontou para a prateleira do meio. – Aqui está ela. Impressionante, não? Tento dizer a mim mesmo que não fui demasiado crédulo, mas guardo-a aqui para me lembrar de que fui crédulo quanto baste. Asseguraram-me que é uma falsificação muito boa, identificável em grande parte devido ao facto de terem utilizado um método mais moderno de fundição de metal que apenas um punhado de arqueólogos conseguiria reconhecer. – Sim, é bastante impressionante. – Descoberta no mar ao largo de Itália, afirmou ele. Diabos o levem, ele sabia exactamente como tirar partido da minha vaidade. Os dois homens ficaram parados lado a lado em frente do mostruário de vidro. Chalgrove sorria pesarosamente perante a prova do seu erro de juventude. Um novo vazio abriu-se no peito de Elliot. – Sugiro que faleis com Miss Blair pessoalmente, Chalgrove. Ide até à cidade e pedi à esposa de Hayden para combinar um en-contro em vosso nome. Contai a Miss Blair a história que acabastes de me contar. Tenho razões para crer que ela possui um interesse especial no homem que vos vendeu isto e, por conseguinte, poderá ouvir o vosso pedido a respeito daquelas memórias com uma mente aberta. – Não me agrada a perspectiva de o denunciar, Rothwell. Não depois de todos estes anos e nem sequer numa conversa privada com Miss Blair. – Não tereis de o fazer. Basta levardes aquilo convosco. Ele apontou para o mostruário e para a pequena estátua de bronze de uma deusa nua idêntica àquela que vira recentemente no escritório de Matthias em Positano.

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Capítulo 23 P

haedra cruzou as mãos no colo para esconder as nódoas de

tinta na luva direita. Estivera reunida com o tipógrafo um pouco antes para discutir a produção do livro do seu pai. Um gesto descuidado perto de umas páginas com tinta ainda fresca havia manchado o seu único par de luvas que não era preto. A sua anfitriã não se importaria se as faces de Phaedra estivessem cobertas de tinta. Alexia nunca a julgara pela sua aparência. O impulso de Phaedra para parecer mais normal hoje não tinha nada a ver com a amizade que existia entre ambas. Ela não sabia muito bem porque usara o vestido azul e fora desencantar estas luvas brancas infantis da sua adolescência. Talvez o contexto desta visita a encorajara a isso. Alexia escrevera-lhe, pedindo-lhe para a visitar e teve o cuidado de enviar a sua carruagem para lhe facilitar a visita. Se o marido de Alexia estava disposto a tolerar a presença de Phaedra Blair na vida da esposa, talvez fosse sensato da sua parte não exibir de modo demasiado flagrante a habitual ausência de «normalidade» dentro da sua própria casa. – Tenho um presente para vós – disse Alexia, após uma pausa na conversa entre ambas.

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Alexia perdera imenso tempo a pedir conselhos a Phaedra sobre a situação das suas primas no Oxfordshire e o comportamento imprudente de Henrietta com respeito a Caroline. Descrevera pormenorizadamente uma decoração nova que estava a ser planeada para a biblioteca na qual se encontravam agora. Levara-a a admirar o novo conjunto da carruagem de Inverno recém-adquirida. Alexia ocupara quase duas horas a falar acerca de tudo excepto das coisas sobre as quais Phaedra queria desesperadamente falar. Infelizmente, Phaedra não sabia como as abordar. Alexia ergueu-se e foi buscar um pacote embrulhado com musselina pousado na mesinha do canto. Phaedra desembrulhou a trouxa e encontrou um chapéu novo. – Achei que pudésseis precisar de dois – declarou Alexia. Phaedra tocou instintivamente no que lhe adornava a cabeça. – Receio que este tenha sido objecto de um uso excessivo recentemente. O novo também é uma das vossas criações? – Claro. Deu-me um grande prazer fazê-lo. Phaedra tirou as luvas manchadas para não estragar o chapéu. As criações de Alexia nunca deixavam de a impressionar. Conseguiam parecer elegantes e evitar ao mesmo tempo os piores excessos de mau gosto que se viam por toda a cidade. Afirmavam a sua superioridade através do comedimento, e linhas e proporções perfeitas. – Sois uma verdadeira artista, Alexia. O vosso marido não se im-porta que ainda façais uso das agulhas? – Porque é que se havia de importar? Phaedra conseguia pensar em várias razões. A perícia de Alexia na criação de chapéus era uma pequena bandeira de independência que agitava à frente do rosto do marido. Essa bandeira existira sempre, mesmo durante a corte peculiar de Lord Hayden. – Li o panfleto da vossa mãe. Aquele que ela escreveu a respeito do casamento – disse Alexia. – Está na biblioteca de Easterbrook. 345

Phaedra desviou o olhar do chapéu para ela. – Porquê? – Como nunca me tentastes converter, também nunca me explicastes realmente as vossas crenças. Achei que as conseguiria compreender melhor se as lesse. Achei que também vos conseguiria compreender melhor. – E que conclusões tirastes? Alexia reflectiu um pouco sobre a pergunta. – Admito que existe alguma lógica nos argumentos que ela apresenta. As leis são más e necessitam de ser reformuladas, isso é inegável. Mas a rejeição completa e total do casamento…. Phaedra ficou em silêncio, aguardando a conclusão da amiga. – Perdoai-me, Phaedra. A minha intenção não é criticar. Porém, senti que aquilo foi escrito por uma jovem mulher que não sabia muito a respeito da vida ou do casamento como é vivido na realidade. Achei-a muito parecida com aqueles filósofos que dissertam acerca do significado da vida de formas que têm muito pouco que ver com as preocupações práticas que são uma presença constante na vida dos demais. Phaedra não conseguiu reprimir um sorriso. Elliot dissera algo muito semelhante. – Artemis ainda era jovem quando escreveu esse panfleto. Porém, mesmo depois de adquirir mais experiência de vida, não renunciou aos pontos essenciais. – Sim, jovem – repetiu Alexia, de modo sabedor, como se isso explicasse muito, se não tudo. – Antes de terdes nascido, sem dú-vida. E muito provavelmente antes de ela alguma vez ter amado um homem. A observação calma de Alexia espantou Phaedra. O impulso de defender a mãe trespassou-a, mas ela respeitava demasiado Alexia para rejeitar o comentário, classificando-a de ignorante. Este também tocava na ferida de algumas questões que a atormentavam de noite, enquanto dava voltas na cama a pensar no preço a pagar pelas suas próprias escolhas.

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– Alexia, nunca questionais o poder que destes a Hayden quan-do vos casastes com ele? Ele tem o vosso futuro e a vossa felicidade nas mãos. Alexia pareceu achar a pergunta divertida. – E eu tenho o futuro e felicidade dele nas minhas mãos, Phaedra. – Não é o mesmo. Tornastes-vos uma posse dele. A lei… – A lei rege outras coisas e outros tipos de propriedade. Eu sou dele, isso é verdade, mas ele também é meu. O nosso amor torna isso possível, assim como os votos que fizemos. Neste ponto, até mesmo a lei é clara. Eu não perdi nada de mim própria nesta união, minha querida amiga. Nada de nada. Agora, sou mais do que aquilo que era antes de o conhecer, não menos. Ela falou com uma confiança calma que alterou o ambiente entre ambas. A intimidade inesperada comoveu Phaedra. Sentiu o mesmo tipo de emoção que a envolvia nos seus tempos de menina enquanto ouvia as lições da sua mãe. Phaedra tomou a mão de Alexia entre as suas. – Não podeis saber se ele alguma vez irá utilizar esse poder de forma errada. – Admito que é possível amar e não saber isso com toda a certeza. Porém, eu sei. É uma das poucas coisas na vida das quais tenho a mais absoluta das certezas – replicou. Ela apertou a mão de Phaedra. – Vamos, tenho de vos ver com a minha nova criação. Pode ser que eu precise de fazer algumas alterações para ficar perfeito. A passagem para distracções femininas não dissipou a intimidade mas tornou o ambiente mais ligeiro. As duas amigas caminharam em conjunto até um espelho situado na parede. Alexia retirou o chapéu que Phaedra usava e colocou o novo no seu lugar. – Ainda pensei em fazer um modelo mais justo, mas ia ficar estranho se não prendêsseis o cabelo – disse Alexia. As suas mãos davam voltas à fita larga e macia na copa do chapéu. – O azul-da-prússia fica-vos ainda melhor do que eu esperava. É uma cor suave para o tom da vossa pele, não achais? 347

Phaedra observou o reflexo do seu próprio rosto. A imagem não condizia com a que tinha de si própria. O chapéu fazia-a parecer ligeiramente mais pálida, mas também menos jovem. Ela viu uma mulher a aproximar-se de uma maturidade plena, uma mulher que já não era uma inocente. Que já não era uma rapariga. Que já não era uma filha. Aproximou-se e olhou com mais atenção, afastando as memórias de outros reflexos para conseguir ver quem era realmente a mulher que tinha à frente dos seus olhos. – É lindíssimo. E sois lindíssima. O elogio provocou-lhe um sobressalto que a arrancou do seu devaneio. O reflexo da sala alterara-se no espelho. A pessoa que ocupava agora o lugar atrás de si não era Alexia, mas Elliot. Ele preferia ter sido prevenido. Talvez Alexia temesse que ele recusasse o encontro clandestino se ela o propusesse. Talvez ela fosse da opinião de que ele e Phaedra não pudessem afirmar posteriormente que fora um encontro acidental, caso ele estivesse de sobreaviso. Em todo o caso, estava longe de imaginar que iria encontrar Phaedra aqui quando respondera ao bilhete de Alexia a solicitar uma visita sua. Phaedra nem sequer o ouvira a entrar na sala. A sua atenção estava completamente absorvida pelo reflexo no espelho e ela examinava-o como se não conhecesse o rosto que via à sua frente. Alexia silenciara a sua saudação levando um dedo aos lábios e, de seguida, retirara-se, ignorando o seu gesto de desaprovação na forma de um sobrolho franzido. Phaedra virou-se, surpreendida, ao mesmo tempo em que a porta da biblioteca se fechava silenciosamente atrás de Alexia. – Não a repreendais – disse Elliot. – É óbvio que ela pensa que nos está a ajudar. – Não é essa a minha intenção – afiançou Phaedra. Ela ergueu cuidadosamente o novo chapéu da cabeça e pousou-o numa cadeira. – Estou contente por vos ver, Elliot. Pensei que estáveis fora da cidade. – Regressei ontem. 348

Ele também estava contente por a ver. Ridiculamente contente. Eufórico como um adolescente. Ele ignorou a prova mais do que evidente de que não fizera quaisquer progressos em recuperar o poder que ela tinha sobre si. Phaedra sentou-se num divã. Ele não se atreveu a fazer-lhe companhia. O desejo que sentia por ela era de tal forma intenso que cerrou os dentes de forma instintiva. Se ela ficasse ao alcance dos seus braços, não se conseguiria conter. Ele ficou de pé a uns bons cinco metros de distância. – Este encontro acabou por ser conveniente – disse ele. – Ia escrevervos. Ireis ser contactada pelo conde de Chalgrove. Ele quer falar convosco a respeito das memórias. Peço-vos o favor de escutardes o que ele tem para vos dizer. Ela não se opôs, mas a expressão dela reflectiu a sua impaciência para com todos os pedidos que recebera a propósito das memórias. – A vossa casa continua segura? – perguntou ele. – Não houve mais nenhuma invasão de propriedade. O tipógrafo já tem o manuscrito na sua posse e irá mantê-lo num lugar seguro. – Quanto tempo… – Um mês, diz ele. Um pequeno sorriso assomou aos lábios dela. Ele sabia que este não fora provocado pela perspectiva da publicação iminente das memórias. Ela parecia simplesmente feliz, muito à semelhança daquele dia na biblioteca enquanto olhava para ele. Ela confundia-o. Como é que uma mulher o podia fazer sentir-se tão orgulhoso e, ao mesmo tempo, tão infeliz e zangado? – Encontrei-me com Pettigrew ontem – declarou, abordando de forma impulsiva a questão que colocara a si próprio. Ela pegou numas luvas brancas, alisando-as de modo a formarem um par idêntico. – Isso foi muito simpático da vossa parte. – Sim, eu sei – replicou. A sua voz denunciava mais ressentimento do que desejava. Ele abandonara aquela reunião a ferver de raiva. – Ele tenciona 349

ridicularizar-vos, Phaedra. Vão apresentar-vos como uma mulher que nenhum homem racional com algum estatuto podia querer como esposa. Vão utilizar esse argumento para convencer o tribunal de que os votos não foram consensuais e de que eu me limitei a cair sobre o punho da minha própria espada para vos salvar. Ela desviou o olhar das luvas para ele. – Ele limitar-se-á a dizer uma verdade que o mundo inteiro já aceita e outra que ambos sabemos ser fiel aos factos. – Estais muito tranquila, Phaedra. Muito confiante naquilo que achais ser verdade. Raios, estive a dois passos de o mandar bugiar. Estive prestes… Ela ficou à espera do resto.

A dizer-lhe que nos casámos de livre vontade. A tomar posse de vós como minha para sempre. A mentir, se isso fosse necessário, para acabar com esta separação e para evitar esta vida de meias-medidas que me ofereceis. – Phaedra, quero que desistais da vossa petição. Far-vos-ei todas as promessas que desejardes para vos tranquilizar a respeito deste casamento. – Iríeis até esse extremo para nos salvar do escândalo que isto irá criar? – Pouco me importa o escândalo. Não é algo que me assuste. Porém, não quero ver-vos a passar por uma coisa dessas, e esta solução evitará isso. – Eu consigo sobreviver ao escândalo. Toda a minha vida fui sempre um tanto ou quanto escandalosa. Acho que sei qual é a verdadeira razão que vos leva a dizer isso e esta possui vistas curtas. Eu também sinto a vossa falta, Elliot. Sinto falta do prazer e da vossa companhia. Conto os dias até poder sentir-vos nos meus braços novamente. No entanto, seria um erro agir de modo precipitado para apressar esse momento. – Mais uma vez, partis do princípio de que compreendeis a situação quando o que se verifica é o oposto. Ela ia obrigá-lo a dizê-lo com todas as palavras. É claro que ia. Ela não sabia onde tinham estado a cabeça e coração de Elliot nas últimas semanas. – Quero que este casamento se mantenha em vigor, Phaedra. Quero repetir os votos para que a sua validade não seja questionada. Estive a pensar 350

acerca disto e dou por mim a rezar para que a vossa petição seja recusada. Não vos queria ver casada comigo dessa for-ma, mas Deus me perdoe, dou por mim a desejar isso com todas as forças se não houver outra alternativa. Ela ergueu-se e avançou na sua direcção. Parecia um anjo na-quele vestido azul, com os caracóis acobreados a ondularem até às ancas. Mas nenhum anjo podia ter uns olhos que revelavam tão abertamente o desejo que sentia. Ele cruzou os braços para conter o impulso de a agarrar. Ela percebeu o motivo que estava por detrás do gesto e deteve-se a uma distância aceitável. – Sinto-me lisonjeada, Elliot. Todavia, é a nossa separação que vos faz pensar dessa forma. Quando estivermos juntos novamente… – Não, diabos! Não estou a falar de ímpetos licenciosos ou luxúria. Se pudesse possuir-vos outra vez, isso não seria suficiente. Eu amo-vos, Phaedra e ser o vosso bom amigo não me satisfaz. Não consigo viver dessa forma. Ele não tinha planeado este ultimato. O seu coração zangado falara sem consultar o cérebro. Agora era tarde de mais para voltar atrás e as suas palavras ficaram a pairar pesadamente entre ambos como uma espada. – Dizeis que me amais pela primeira vez, Elliot, e, a seguir, enumerais condições – respondeu Phaedra. Ela parecia aturdida e triste. Tão triste que sentiu um aperto no coração. – Eu não estava autorizado a falar de amor antes. Eu queria coisas da vossa parte, recordais-vos? Mas isso já são águas passadas se a publicação está iminente. Quero-vos mais do que tudo já há muito tempo e tenho de falar sinceramente para que compreendais porque não posso fazer as coisas à vossa maneira. Ela deu um passo em frente. A tensão de um desejo há muito negado atravessou o seu corpo inteiro, fazendo-o retesar-se. – Se nos amamos verdadeiramente, qualquer caminho que escolhermos será correcto, Elliot. Não será melhor partilhar um amor livre, como temos feito até agora? 351

– Nós não estivemos a partilhar um amor livre até agora, Phaedra. Estivemos a partilhar um prazer livre. Sinto falta disso, mas vi com mais clareza na sua ausência. Isso já deixou de ser suficiente. Assim como a mera amizade. Pelo menos para mim, é claro. Ela ergueu o braço e tocou delicadamente no seu rosto. O to-que dos seus dedos assemelhava-se ao de um veludo frio que queimava em contacto com a sua pele. Elliot agarrou-lhe a mão e beijou-a. Fechou os olhos en-quanto tentava controlar o que ela lhe fazia sentir. A sua vida transformara-se num inferno desde aquele jantar. Agora, suportava a pior tortura desse inferno ao tocá-la novamente. Isto, mais do que qualquer outra coisa, provava que ele tinha razão. Ele não podia fazer as coisas à maneira dela. O seu autodomínio escapava-lhe entre os dedos. Ele queria acabar esta discussão como sempre faziam, tomando o corpo dela e tentando gravar o seu nome naquela alma. Ele olhou-a directamente nos olhos. – Eu falei de amor, mas vós não. Talvez esteja errado e não o sintais. Talvez o temais, assim como àquilo que faz a uma pessoa, ou talvez isto tudo não tenha passado apenas de desejo da vossa parte, afinal de contas. Ele não queria saber se tinha razão. Não precisava de enfrentar também essa verdade hoje. Largou a mão de Phaedra e caminhou até à porta. – Eu também vos amo, Elliot. Mais do que consigo suportar. Amo-vos tanto que chega a ser doloroso. Ele deteve-se. Olhou para trás. A emoção contorcia o rosto dela e os seus olhos estavam inundados de lágrimas. – Se isso for verdade, então sabeis que o amor livre não existe, Phaedra. Se existir verdadeiramente amor, não podemos continuar verdadeiramente livres. – Podemos. Nós podemos. Ele abanou a cabeça.

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– O ímpeto da posse é demasiado forte e a tendência para o ciúme demasiado humana. Amar alguém sem pedir nada em troca, sem qualquer desejo ou esperança de permanência, não é natural. Eu perdi a minha liberdade quando me apaixonei por vós, minha querida. Agora, estou acorrentado a esse amor independentemente do que aconteça entre nós. Temo que esses grilhões durem uma vida, mas diabos me levem antes de me submeter à tortura constante de não saber se sois minha. Ela reagiu como se ele lhe tivesse batido. O impulso de voltar atrás e tomá-la nos braços, de aceitar fosse o que fosse que ela oferecesse, abateu-se sobre ele como uma onda gigantesca. Era possível que conseguisse descobrir um simulacro de felicidade na vida que ela queria. Ele esperou um longo momento para ver se ela dizia alguma coisa. Qualquer coisa. Por fim, abandonou a biblioteca, a sentir-se tão vazio por dentro que achou que nunca mais conseguiria voltar a respirar normalmente. Elliot desaparecera há muito quando Phaedra conseguiu vencer a confusão que a dominou. O choque que sentira deixara-a a tremer. Sentou-se no divã, desorientada e descrente. A realidade, na forma de uma vaga de ar gélido, começou a deslizar através do seu espírito, gelando-a de medo. Ela tentou assimilar o que acontecera. No espaço de alguns mi-nutos, Elliot declarara o seu amor, exigira um casamento e deixara-a.

Deixara-a. Ou faziam como ele queria, ou não faziam de todo. Resumidamente, era isto. Uma atitude típica de um homem. O seu coração tentou oferecer-lhe uma espécie de armadura. Foi buscar a couraça das suas crenças e desenterrou o escudo da ira. Não funcionou. Nenhum dos dois. A verdade abriu cortes profundos no seu coração. Ele abandonara-a. Total e irremediavelmente. Mesmo se a sua petição fosse recusada e o casamento de ambos validado de facto, ele decidira sair da sua vida. Os olhos ardiam-lhe tanto que não conseguia ver. A garganta inflamara e contraía-se, e ela arquejou para conseguir respirar. Um soluço 353

irrompeu, abalando o seu corpo de alto a baixo. Depois, seguiu-se outro e mais outro, até que ela escondeu o rosto no colo. Dois braços rodearam-lhe os ombros e ergueram-nos. Uma voz suave murmurou-lhe palavras de conforto ao ouvido. Ela aceitou o calor maternal e o apoio próprio de uma irmã, e chorou todas as suas mágoas no ombro de Alexia.

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Capítulo 24 –J

amais irei perdoar a Hayden. Quem podia imaginar

que ele seria tão rígido e caprichoso? A vexação da tia Henrietta penetrou finalmente na concentração de Elliot. Ele conseguira não ouvir a maior parte das suas queixas. Virou a última página do seu manuscrito e concedeu-lhe relutantemente a sua atenção. Ela recusara-se a regressar a Aylesbury no mês passado e mantivera igualmente a filha em Londres ao seu lado. Christian limpara as pistolas de duelo todas as noites até Suttonly deixar a cidade. Agora, mãe e filha exibiam permanentemente expressões carrancudas que punham de parte qualquer hipótese de perdão. – Não precisais de ficar aqui, tia Hen. Voltai para a vossa casa no Surrey. Se ele for um pretendente legítimo, não terá qualquer dificuldade em vos encontrar a ambas lá. Só tendes de dar o vosso consentimento e o assunto está resolvido. – Abandonar esta casa? Easterbrook não consegue passar sem mim. Ele é completamente indiferente a todos os assuntos domésticos e a sua governanta e mordomo andavam a roubar. Tenho o dever de permanecer nesta casa. Com o final do drama em torno da figura de Suttonly, Christian regressara aos seus velhos hábitos. Raramente descia para as refeições e 355

passava todo o tempo nos seus aposentos. Por norma, Elliot também desapareceria, deixando a casa ao cuidado de Hen, mas não se atrevia a aventurar-se novamente na sala de leitura do museu. Se ele visse Phaedra ali, ia abandonar todo e qualquer bom senso. Ia implorar-lhe o seu perdão e concordar com tudo o que ela quisesse, independentemente da infelicidade que isso lhe trouxesse. A seguir, ia despila, deitá-la, erguer-lhe as ancas e pôr a boca… Maldição. A biblioteca de Easterbrook tinha tudo o que ele necessitava. O livro correspondera às suas expectativas. Já estaria terminado há pelo menos uma semana se não fossem as intrusões frequentes da tia Hen. – Esperava que Alexia me tivesse apoiado mais – anunciou Hen, com um trejeito irritado. – Ela, melhor do que ninguém, compreende a importância de um bom casamento. – Bem, Hen, podemos fazer com que Caroline tente o método da Alexia. Podemos deixá-la sem um tostão, obrigá-la a aceitar um lugar de governanta e esperar que um homem como o meu irmão se apaixone por ela. Hen podia ser um pouco oca e dada a devaneios, mas não era estúpida. O sarcasmo das suas palavras fê-la erguer as sobrancelhas. – O que é que anda a perturbar o vosso estado de espírito? Ultimamente, começais a ficar cada vez mais parecido com Easterbrook. O seu estado de espírito estava a ser perturbado por muitas coisas. Noites sem dormir e dias inquietos. Desejos ardentes do corpo e iras persistentes no coração. Uma outra reunião dois dias antes com o advogado de Phaedra não ajudara em nada a situação. A fúria de Christian perante a recusa do seu próprio irmão em tomar posse da editora de Phaedra enquanto o casamento entre ambos permanecesse ambíguo criara um fosso entre os dois que talvez nunca viesse a ser colmatado.

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A nuvem negra do seu estado de espírito provinha sobretudo do facto de não ver Phaedra desde aquele dia na biblioteca de Alexia, há um mês, dois dias e vinte horas. Depois de todo este tempo, já deveria ter começado a recuperar qualquer que fosse o poder que ela detinha sobre si. Ele não era completamente desprovido de bom senso. Mas também não era nenhum poeta, diabos. Irritava-o saber que se tinha apaixonado estúpida e intensamente pela única mulher em Inglaterra que não compreendia as vantagens de um bom casamento e que abominava a própria instituição do casamento. Ele tinha esperanças de que a sua tia o deixasse em paz com o seu mau humor. Ela era o tipo de mulher que acreditava ser o seu dever ajudar o próximo a ser feliz. Se ela se lançasse nesse género de empresa neste momento, ele não teria outro remédio senão estrangulá-la. Felizmente, um lacaio entrou na biblioteca no preciso momen-to em que ela começava a persuadi-lo a adoptar uma visão mais risonha das coisas. O homem transportava um pacote que colocou em cima do manuscrito de Elliot. – Lord Easterbrook pediu-me para vos trazer isto, senhor. Um bilhete de Christian acompanhava o pacote. Parabéns. Assim que os seus dedos tocaram no papel que o envolvia, Elliot adivinhou o que era. O aparente elogio do seu irmão não passava da expressão de uma fúria cínica. Elliot rasgou o papel. Este revelou páginas soltas, ainda sem qualquer encadernação. A primeira folha impressa exibia um título extenso. Memórias

de um Membro do Parlamento durante os Reinados dos Reis Jorge III e IV: As reminiscências de Richard Drury com respeito a acontecimentos políticos e culturais em Londres e arredores, com comentários consideráveis acerca de pessoas famosas e infames. Ele já sabia que a distribuição do livro aconteceria mais dia, me-nos dia. Christian devia ter dado ordens aos lacaios para rondarem as livrarias e adquirirem o primeiro exemplar que saísse da tipografia. 357

– O que tendes aí, Elliot? Um livro? – Sim. Um ensaio político extremamente insípido – redarguiu. Ele pegou no monte de papéis, levando o seu próprio manuscrito ao mesmo tempo que o livro de Drury. – Por favor, permiti que me retire agora. Tenho de tratar de uns assuntos. Ele deixou Henrietta na biblioteca e levou a pilha de papéis para a saleta do pequeno-almoço para ter alguma privacidade. As páginas já tinham sido cortadas. Christian já o lera antes de o mandar entregar. Parabéns, sua amostra inútil e desleal de um filho. Elliot virou a primeira página. Ver este livro despertara mais ira em si do que a que esperava sentir. Não tinha qualquer direito a sentir essa ira. Não se arrependia de não a ter impedido. Elliot ficara apenas profundamente ressentido com o facto de ser obrigado a escolher entre uma atitude pouco correcta por uma boa causa e a atitude correcta por uma causa sem qualquer esperança. Ele colocou de parte as emoções evocadas por este livro, o dever de Phaedra e o seu próprio amor. Lidaria com estas mais tarde. Com o passar do tempo, tudo isso acabaria por fazer parte de uma outra vida. Elliot começou a ler. Phaedra escrevinhou alguns números no seu livro de contabilidade nos escritórios da Merris Langton, Editora. De seguida, somou os resultados. O valor final trouxe-lhe um novo alento ao coração. Se as coisas continuassem assim, era bem possível que a editora conseguisse sobreviver. As dívidas podiam ser suficientemente abatidas para pelo menos manter os oficiais de diligências longe da sua porta. Jenny entrou na divisão, trazendo outro maço de papéis na mão. – Hatchard vai levar mais quarenta e Lindsell outros vinte. Phaedra apontou as encomendas. Alguns destes livreiros tinham ficado surpreendidos com a perspectiva de fazer negócios com uma mulher, mas o sucesso das memórias de Richard Drury tornara esse tipo de juízos de valor 358

insignificantes. Se o facto de serem recebidos por Jenny, uma mulher escriturária, os deixara igualmente surpresos, esse pormenor ainda menos importância tinha. – Está a correr muito bem, não está, Miss Blair? – perguntou Jenny. – Bastante bem, Jenny. À medida que as pessoas forem falando, deverá haver um aumento de vendas nos dias que se avizinham. Creio que teremos de mandar imprimir mais exemplares. Jenny retirou-se e Phaedra regressou às suas contas. Ela recordou-se do pai, deitado na cama, a colocar aquele manuscrito nas suas mãos, exigindo a promessa que provocaria tantos problemas desde essa data. Será que ele soubera desde o início que iria ser assim? Será que incluíra a parte que se referia a «comentários consideráveis acerca de pessoas famosas e infames» para garantir que o livro se vendesse bem e lhe proporcionar mais segurança financeira? Ele não possuía muito mais para lhe deixar e as cerca de cem libras do legado do seu tio tinham de ser utilizadas com bastante parcimónia. Era provável que pudesse ficar com algum dinheiro para ela própria em breve. Se escolhesse bem o próximo livro, este negócio podia garantir-lhe um rendimento regular. Mergulhou a pena em tinta, matutando no que podia comprar com as primeiras libras. Talvez um divã novo… Uma pontada abaixo do coração não deixou o devaneio ir mais longe. Não, não seria um divã. Tudo indicava que surgissem em breve outras necessidades para esse dinheiro. A pontada fez-se sentir novamente, assim como uma outra sensação, a de uma mão a apertar-lhe o coração. Ela pousou a pena. Agora que o livro fora publicado, chegara a altura de falar com Elliot. Hoje era um dia tão bom como outro qualquer. O pensamento fez o seu coração disparar com temor à mistura com excitação. Isso não queria dizer que ela não recebesse com agrado a ideia de o ver. Quando muito, recebia-a com demasiado agrado, ainda que acreditasse que o encontro não iria correr muito bem.

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Phaedra ergueu-se e respirou fundo, reunindo toda a sua coragem. De seguida, lançou uma capa negra sobre o pescoço. Pegou num exemplar embrulhado do livro do pai, avisou Jenny que já não voltava mais nesse dia e deu início a uma longa caminhada a pé. Elliot contemplava a vista das janelas da saleta do pequeno-almoço. As árvores do jardim estavam a começar a mudar de cor e os botões das flores tardias estavam curvados em reacção ao frio que se fazia sentir nesse dia. Uma memória invadiu-o, de flores aveludadas que rodeavam um terraço em Paestum à noitinha. Ele olhou para trás na direcção da mesa. As memórias de Richard Drury repousavam sobre ela numa pilha ordenada de páginas. Demorara cerca de três horas a ler o livro. Uma coisa era certa: o livro ia causar sensação. Drury tinha olho para os pontos fracos dos seus conterrâneos. As suas observações eram incisivas, inteligentes e demasiado reveladoras. Ele devia escrever a Phaedra e felicitá-la pelo sucesso da sua publicação. Ele devia também escrever-lhe a respeito de outras coisas. Não, o melhor seria visitá-la. Um lacaio entrou na divisão. – Senhor, uma mulher pede para ser recebida. Elliot dedicou-lhe um décimo da sua atenção. – Conduzi-a até a minha tia. Não estou em casa para visitas hoje. – Ela foi bastante explícita ao afirmar que não pretende encontrar-se com a vossa tia, mas convosco. Elliot concentrou toda a sua atenção no lacaio. – Onde está o cartão dela? – Não tem qualquer cartão, senhor. Eu tentei dissuadi-la, mas ela foi bastante insistente – declarou ele, com uma expressão de descontentamento. – Está vestida de uma forma assaz estranha. Quase como aqueles reformistas. Ou talvez, na verdade, se pareça mais com uma… Com uma…

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– Com uma bruxa? – Sim, senhor. Como é que sabíeis? Ele não conseguiu evitar um sorriso. – Trazei-a para aqui. Elliot retomou o seu lugar à janela, mas agora já não via o jardim à sua frente. Imaginou Phaedra a caminhar na direcção desta divisão, com o hábito negro a flutuar à sua volta e o cabelo solto a cair livremente sobre os seus ombros. Ela viera até si antes de ele poder ir ter com ela. Ele não sabia as razões que a tinham feito vir, nem tão-pouco lhe importavam. Fechou os olhos e sentiu a presença dela na casa. Depois, escutou o ruído dos seus passos, espantado pela alegria que se espalhava dentro dele. O lacaio conduziu-a até à saleta do pequeno-almoço. A divisão não estava vazia. Um homem estava de pé perto da janela com as costas voltadas para ela. Um homem suficientemente belo para emudecer qualquer mulher. Um homem suficientemente confiante para conquistar o direito a uma arrogância que ele optava por não alimentar. Bello. Elegante. Ele voltou-se. Ela viu o calor do seu sorriso e olhos e suspirou de alívio. – Phaedra. Estou feliz por vos ver aqui. Ia agora mesmo ao vosso encontro. Podíamos ter-nos cruzado na rua sem nos apercebermos. Ela não sabia o que esperar. As suas boas-vindas encheram-lhe o coração de alento. O efeito que ele tinha sobre ela não esmorecera nem um pouco com o mês de separação. Ela deu por si sem fôlego. Elliot convidou-a para se sentar à mesa do pequeno-almoço. Sentou-se na cadeira à sua frente. Ela recuperou a voz. De seguida, colocou o embrulho que trazia em cima da mesa. – Trouxe-vos um exemplar do livro do meu pai. 361

– Obrigado, mas já o li – respondeu ele, apontando para um maço de páginas na outra extremidade da mesa. Ela suspirou profundamente para controlar a compostura. E para absorver a sua presença, odor e realidade. Vê-lo aqui assemelhava-se demasiado aos sonhos que lhe haviam invadido a cabeça durante muitas noites seguidas. Mas nesses sonhos ele envolvia-a nos seus braços e eles caíam na cama e… Ele parecia distante, ainda que estivesse suficientemente perto para lhe tocar. A sua postura indicava que ele fizera progressos no sentido de pôr um ponto final em qualquer que fosse o encantamento a que ambos haviam sucumbido. Esta constatação gerou um profundo desapontamento. No peito, o seu coração ardia. Mas que outra coisa podia ela esperar? Ele tocou no embrulho que ela lhe trouxera. – Tendes um sucesso entre mãos, Phaedra. Ela quis encostar os lábios à mão dele. Só tinha passado um mês. Parecia uma eternidade. O coração dela chorava e ria ao mes-mo tempo. – Reparei na ausência de qualquer menção a Chalgrove – disse ele. – Ele convenceu-me de que o meu pai tinha exagerado essa parte. Ele foi a única pessoa cujos argumentos me conseguiram persuadir nesse sentido. Ele assentiu com a cabeça. – Reparei igualmente que incluistes alguns comentários no que diz respeito à vossa mãe. – Odiais-me por isso? Eu sei o que ele significa para vós. – Dessa forma, mais ninguém será ludibriado. Suspeito que aquelas estátuas e camafeus continuam a chegar a Inglaterra. Ele deve ter descoberto aquele círculo de falsificadores quando visitou o país após a guerra. Os artigos que ele trouxe consigo venderam-se facilmente, por isso decidiu mudar-se para lá e fazer disso vida – declarou e sorriu pesarosamente. – Eu próprio me ofereci para fazer parte da sua fraude com aquela estátua nova que nos mostrou. 362

– Ele não aceitou a vossa oferta, Elliot. Não permitiu que a vossa reputação fosse manchada por isso. Matthias permitira que a reputação de outros ficasse manchada, porém. Abusara ignominiosamente da confiança de Artemis, da única vez que ela permitira a si própria apaixonar-se romântica e irremediavelmente. – Na verdade, recebi uma carta dele na semana passada – replicou Elliot. – Deve tê-la escrito pouco tempo depois de abandonarmos Positano. Entre outras coisas, expressou interesse em aceitar a minha ajuda para encontrar um lar para a pequena deusa, afinal de contas. – Lamento ouvir isso, Elliot. Tinha esperanças que ele tivesse escrúpulos pelo menos no que vos dizia respeito. – Aparentemente não. Ela imaginou um jovem Nigel Thornton a sofrer em silêncio, enquanto a mulher que ele amava era conquistada por Matthias Greenwood. Thornton pode ter visto o camafeu na posse de Artemis, mas esta não o recebeu das suas mãos. – Eu podia nunca ter sabido que o homem que procurava era Matthias e não Thornton se não tivésseis aconselhado Chalgrove a vir ao meu encontro e feito com que eu me encontrasse com ele, Elliot. O sorriso triste de Elliot confirmou as suas palavras. – Escrevi-lhe de imediato e avisei Matthias que já sabíeis a verdade. Que tudo se ia saber. – Eu fiz o mesmo – redarguiu Phaedra. Ela fizera-o por Elliot. Não por Matthias. Ele riu-se em silêncio. – Bem, ele pode abandonar a Itália antes que as vossas acusações, presentes naquelas memórias, cheguem lá. – Ele pode vir a ter um companheiro de fuga. Suspeito que Whitmarsh está envolvido no esquema. Ele tinha a obrigação de saber que aquela estatuazinha de bronze que Matthias nos mostrou não fora submetida a uma 363

fundição apropriada para um trabalho antigo. Fingiu ignorar isso. Mr. Sansoni disse-me que as falsificações são feitas nas cidades das colinas situadas a sul. Creio que era isso que Whitmarsh fazia naquelas caminhadas matinais: visitas às oficinas. Só tenho pena que Tarpetta não precise igualmente de se pôr em fuga. Tenho razões para crer que aceitou subornos de Matthias para fechar os olhos. – Se isso for verdade, Carmelita Messina fará tudo o que puder para que toda a cidade de Positano fique ao corrente – afirmou ele. Os seus olhos exibiam admiração. – Conseguistes juntar todas as peças, verdade? Sentis que a vingastes agora? Sentis-vos mais conformada com as vossas últimas memórias dela? Era uma boa pergunta. Todas as suas memórias de Artemis haviam-se modificado nas últimas semanas. Era como se Phaedra se tivesse finalmente libertado dos últimos vestígios da sua infância e conseguido ver Artemis sob um olhar mais honesto. Ela continuava a reverenciá-la e a respeitá-la. Mas já não sentia a obrigação de a defender pelos erros de discernimento que cometera. E tal como qualquer pessoa, Artemis cometera alguns. – Sinto-me mais em paz com tudo isso, Elliot. A mão dele fechou-se sobre a sua. – Podeis ter incluído anotações em algumas partes, mas eliminastes outras, minha querida. Ela fitou a mão que pousara sobre a dela. Em comparação com a sua, era uma mão mais escura, forte e indubitavelmente masculina. Ela adorava as mãos dele. Adorava tudo o que tinha a ver com elas, mas adorava especialmente o toque delas contra a sua pele, na forma de abraços e carícias firmes mas suaves. Uma mulher podia aprender muito acerca de um homem a partir das suas mãos. – Porque não me dissestes que íeis eliminar a passagem sobre aquela morte da Colónia do Cabo, Phaedra? – Foi uma decisão bastante tardia, Elliot. Os compositores já estavam numa fase avançada do trabalho do livro – explicou. Ela descreveu a sua 364

corrida impulsiva à tipografia com a sua exigência de última hora para fazer uma derradeira alteração. – Não tinha perdido a esperança que me trouxésseis provas de que aquilo não era verdade. O mais pequeno indício nesse sentido teria sido suficiente. Mesmo depois da forma como nos despedimos na última vez que nos vimos, estava certa de que ainda iríeis tentar saber a verdade. A prova de que precisava não viera até si. Nem ele. Ela teve de decidir sozinha, sem quaisquer desculpas ou racionalizações excepto aquelas que o seu coração lhe ditava. Ele fitou a mão dela enquanto deslizava o polegar sobre ela. A carícia subtil provocou-lhe arrepios ao longo do braço. – Não tenho nenhuma prova para vos dar, Phaedra. Encontrei-me com o homem. Procurei-o ainda antes de vos ver na casa de Alexia. Coloqueilhe essa pergunta. É uma coisa diabólica, isto de perguntar a um homem se o nosso próprio pai lhe pagou para matar uma pessoa. – Ele negou-o? – Claro que sim. – Então, porque é que não me dissestes isso, Elliot? Eu ficaria aliviada por ter tido qualquer razão que fosse para… – Não acreditei nele, Phaedra. Ela não sabia o que dizer a isso. Bastar-lhe-ia uma única palavra para eliminar aquela parte. Uma, mesmo que aquele homem tivesse mentido. Elliot decidira que não iria utilizar a mentira dessa forma, porém. Ele tinha sido honesto com ela. Mais honesto do que ela desejaria. – Talvez seja melhor decidirdes que acreditais nele, Elliot. – Não consigo continuar a mentir tanto a mim mesmo. No entanto, começo a compreender melhor o meu irmão Christian. Começo a concluir que eu não quero ter a certeza. Em breve, até é possível que concorde com Hayden e me dê conta de que a verdade pouco me importa. – Hayden possui uma boa forma de olhar para as coisas. Se de facto aconteceu, foi o pecado e as escolhas dele, não dos seus filhos. 365

– Sangue é sangue e a mácula que deixa é indelével – afirmou Elliot. De seguida, encolheu os ombros, pondo de parte as ambiguidades da sua frase, como se não quisesse pensar mais nelas. – Christian ofereceu-vos cinco mil libras se eliminásseis aquelas páginas. Aconselhava-vos a aceitá-las agora. Iria ajudar-vos a estabilizar a vossa editora. Cinco mil libras. Esse valor liquidaria todas as dívidas e deixaria o negócio numa posição razoavelmente segura. Phaedra perguntou-se se Easterbrook investigara o valor que ela precisava antes de fazer com que Elliot lhe oferecesse o suborno. – Confesso que me sinto tentada, Elliot – replicou Phaedra. Ela sentiase tão tentada que um esgar de sofrimento lhe assomou ao rosto. – Não o fiz por dinheiro, porém, e não irei aceitá-lo. – Então porque o fizestes? Ela engoliu em seco. – Fi-lo porque as suspeitas de Merriweather podiam estar erradas. Fi-lo por causa da amizade que tenho com Alexia – anunciou. Uma ligeira ferroada ardeu na sua garganta. – Mas, sobretudo fi-lo por vós, Elliot. Quando cheguei ao ponto em que tudo se tornaria irreversível, de repente pareceu-me uma pequena cedência a fazer no meu dever para com o meu pai. Por um momento, ela pensou que ele a ia beijar. Os olhos dele traíram esse impulso. – Agradeço-vos de todo o coração, Phaedra. Mostrastes mais generosidade do que aquela que eu mereço. A vossa decisão poupou inocentes de serem alvo de olhares acusatórios e os nomes dos meus pais de serem vítimas dos piores dos rumores. – Estou contente com a minha escolha, Elliot. Não tenho dúvidas de que foi a mais acertada. Ele olhou em volta na saleta do pequeno-almoço, detendo o olhar nas janelas e na mesa. De seguida, agarrou-lhe novamente a mão. – Vinde comigo. Temos de falar e a biblioteca é um local mais confortável. 366

Ele sentou-se ao lado dela no sofá da biblioteca. Suficientemente perto para a tocar. Ela tentou reorganizar os pensamentos. Eles precisavam de falar, mas agora, chegado esse momento, todas as suas frases ensaiadas lhe fugiam da memória. Ele não olhou para ela durante um bom bocado e não falou. Quando voltou de novo o rosto para ela, porém, o seu olhar era finalmente o de um amante há muito ausente. Ele despertou de imediato o corpo dela, da mesma forma de sempre, mas agora a tristeza e a saudade acumuladas de um mês intensificavam cada uma das sensações e emoções. – É um inferno ver-vos e não vos beijar, Phaedra. – Eu não disse que não me podíeis beijar. A sua expressão endureceu. – Enquanto a vossa petição estiver em vigor, não vos posso beijar. Isso não mudou. Assim como as minhas intenções. – Preferis que eu me vá embora, Elliot? Ver-vos trouxe o sol de volta à minha vida, mas não quero fazer com que vos zangueis. – Eu não estou zangado. Estou feliz por estardes aqui ao meu lado, mas sinto-me mais tentado do que esperava a submeter-me aos vossos planos. Ela queria que ele trancasse a porta, a tomasse nos braços e desse rédea livre aos seus piores impulsos. Em vez disso, ele levantou-se e começou a andar de um lado para o outro, de sobrolho carregado. A seguir, voltou-se para ela e cruzou os braços. Teria de lhe dizer para não fazer mais isso de futuro. – Passei um mês a tentar lutar contra aqueles grilhões, Phaedra. Em vão. O que devo dizer ou fazer para vos convencer de que devemos estar juntos? – Tudo o que quiserdes, Elliot. Vim aqui para escutar o que tendes para me dizer. Vim aqui para ser convencida, se ainda me quiserdes dessa forma.

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Ele desfez a distância entre ambos com duas passadas e puxou-a para cima, para os seus braços. Finalmente, o abraço pelo qual ela ansiava. Por fim, o contacto e a reiteração que o seu coração tanto precisava. – Não sou nenhum Richard Drury, mas também não sou o meu pai. Se tendes medo que eu me torne igual a ele, não tenhais – declarou com determinação, como se tivesse feito uma escolha e agora efectuasse um juramento. – Todos os homens têm esse potencial dentro deles, Elliot, mas eu não tenho medo disso. Se alguma vez um homem me aprisionasse ou me submetesse a ele contra a minha vontade, eu libertar-me-ia. Mas já deveis saber que isto não tem nada a ver com o vosso carácter. Não fostes vós que eu rejeitei. – Eu sei por que motivo não acreditais no casamento. Eu compreendo isso. Não espero que mudeis. Eu apaixonei-me por Phaedra Blair e não quero que ela mude. Não vos vou pedir isso e é óbvio que não o irei exigir – anunciou e olhou de relance para o seu corpete. – É-me indiferente se continuardes a usar os vossos hábitos negros. Podeis manter a vossa editora – acrescentou. Fez uma pausa e encolheu os ombros. – Não irei interferir com os vossos estranhos amigos, desde que os homens não queiram mais do que isso. Ela encostou a palma da mão à face dele. O contacto parecia fazer todo o sentido do mundo. – É-me indiferente se eles quiserem mais do que isso. Eu nunca quererei mais. Já vos tinha dito que não precisava de um casamento para isso. Ele suspirou ruidosamente. Ela não sabia se o suspiro se devia ao alívio que sentira com o seu toque ou à frustração face à sua resistência. – Quero este casamento, Phaedra. Preciso dele para saber que sois minha. Amo-vos ainda mais do que vos desejo. Quero-vos comigo para sempre. Quero regressar a uma casa que também seja vossa. Nunca sonhais com isso? Ele beijou-a devagar. Era o primeiro beijo depois de muitas semanas separados e subiu-lhe à cabeça, como um excesso de vinho. 368

As palavras dele tocaram o coração de Phaedra. Não só a declaração de amor, embora esta a comovesse ao ponto das lágrimas. Ele não podia ter tomado uma atitude mais honrada para com ela. Concordara com esta petição, ainda que não a desejasse. Não tirara partido da vantagem que os votos de casamento lhe concediam no passado e ela sabia que também não o faria no futuro. Ele tinha sido justo e honesto. As escolhas que fizera foram baseadas no amor. Escolhas altruístas. Tantas escolhas… – É bom saber que continuais a querer que este casamento se mantenha em vigor, Elliot, porque existe uma boa probabilidade de a minha petição não ser bem-sucedida. É possível que se tenha dado outro desenvolvimento inesperado. – Então, retirai-a, meu amor. Não vos sujeiteis a ela se o vosso advogado vos dá poucas hipóteses de sucesso. Prometo que nunca vos ireis arrepender… – ele interrompeu-se, inclinou a cabeça e franziu o sobrolho. – Que desenvolvimento? – O meu advogado advertiu-me que a minha petição não receberia uma sentença favorável se surgisse alguma questão, fruto deste casamento. – Existem muitas questões, por isso… – redarguiu Elliot. O so-brolho franziu ainda mais. De seguida, a expressão de dúvida dissipou-se. – Referisvos a frutos do casamento, como, por exemplo, filhos? Ela assentiu com a cabeça. – E surgiu algum? Ou irá surgir? Estais… – Ainda não tenho a certeza absoluta. No entanto, aparentemente, é um cenário possível. – Quão possível? – É mais possível a cada dia que passa. Complicou muitas coisas, como é óbvio. – E não me dissestes nada? Não faz mal. Isso não tem qualquer importância. Phaedra, esta é uma das razões pelas quais vos disse que não podíamos fazer as coisas à vossa maneira. Uma criança merece melhor do que 369

isso e mais tarde ou mais cedo, iríeis ficar de esperanças. Isto não complica nada. Simplifica tudo. A aceitação dele encheu-a de alento, ao contrário do seu ra-ciocínio. – Eu não tive melhor do que isso e saí-me bem, Elliot. Sou a mulher que sou devido à forma como a minha mãe me educou. Richard continuou a ser um pai para mim. E a rejeição de um tribunal não significa que devamos morar juntos. – Claro que iremos morar juntos. Vamos começar já a procurar uma casa. Diabos me levem se vou fazer visitas matinais à minha própria mulher. Tendes de desistir disto agora. Decerto vedes que tendes de o fazer. Sim, tinha. Ela via isso. Ela vira isso mesmo antes de reconhecer os sinais que indicavam uma possível gravidez. A ideia não a horrorizara. Na verdade, um risinho de felicidade borbulhou dentro dela quando pensou num lar e numa família com Elliot. O medo de que pudesse ter destruído a oportunidade de tornar este casamento num casamento feliz apoderara-se dela. Não era teimosia nem uma devoção cega a uma crença que provocava esta última rebelião contra a aceitação deste casamento acidental. Ou sequer a certeza de que o mundo a veria como uma derrotada e a Elliot como apanhado numa armadilha. A emoção que fazia o seu coração disparar provinha do espanto, da admiração e de uma surpresa genuínos. O desejo abrira o seu coração ao amor, e de seguida, o amor levara-a mais longe do que alguma vez achou possível um coração poder ir. Agora, dava por si num equilíbrio precário, no abismo que anunciava o término do mundo que sempre conhecera. O próximo passo que desse obrigá-la-ia a caminhar sobre nada mais do que o ar da esperança, confiança e amor. Aqui estava ela, Phaedra Blair, filha da famosa Artemis, uma mulher que, tal como sua mãe, construía o seu próprio destino, a encolher-se de medo como uma criança face ao imenso desconhecido. Esse passo empolgava-a. Mas também a apavorava.

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Ele sentiu esse medo. Ela apercebeu-se de que ele a compreendia e sentia compaixão por ela. – Sois uma mulher forte, Phaedra. Forte e orgulhosa e eu amo-vos por causa disso. Mas e se a nossa filha não for assim tão for-te? E se ela sentir a dor de lhe serem negadas amigas e ouvir as provocações que a apelidarão de bastarda? – perguntou. Ele segurou-lhe na cabeça com ambas as mãos e olhou-a profundamente nos olhos. – Conseguistes superar tudo isso, mas muitas almas não conseguem fazer o mesmo. E sereis feliz, Phaedra. Eu certificar-me-ei disso, custe o que custar, porque vos amo mais do que ao meu próprio orgulho. Ela inclinou o rosto para cima para o fitar. Phaedra nunca olha-ra tão profundamente nos olhos de uma pessoa como fazia agora com este homem, neste momento. Nunca tinha tido tanta certeza de que via a verdade no coração de uma pessoa como nesse momento. Eu sei. É uma das poucas coisas

na vida sobre a qual tenho a mais absoluta das certezas. Sim, querida Alexia, minha sábia amiga. Uma mulher pode saber isso. Ela tocou na sua mão e apertou-a contra o rosto. – Concordo convosco, Elliot. É assim que deve ser. Sinto-me afortunada e aliviada por continuar a querer isto. Acredito que me ameis mais do que é preciso para sermos felizes. Confio que ambos saibamos que eu vos amo mais do que é preciso para esta amizade durar uma vida inteira. Phaedra fá-lo-ia pelo bebé. Por ele também. Porém, fá-lo-ia principalmente por si própria, pela oportunidade de amar e ser amada e deixar-se envolver pelo vínculo de intimidade que unia ambos. Ela fá-lo-ia para não deixar partir a única coisa boa sobre a qual tinha a mais absoluta das certezas. Nem tão-pouco estaria só nesse percurso enquanto caminhasse sobre o ar. Elliot estaria com ela, a ajudá-la a encontrar um apoio firme. Ela não disse mais nada, mas ele sabia todos os pensamentos que corriam no seu coração. Os olhos dele diziam-lhe isso. Assim como o beijo que ele lhe deu.

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Ela não se importou quando viu um brilho triunfante e fugidio no olhar de alegria terno e afectuoso que lhe lançou e sentiu uma carícia possessiva a acompanhar esse beijo. Ele era um homem, afinal de contas. Phaedra sentiu o vestido a cair. Ele deitou-a no sofá para o abraço ser completo. Desta vez, ia ser intenso e rápido. Ela ficou contente por isso. Eles tinham estado separados demasiado tempo e a sua impaciência igualava a dele. Ela apertou-o contra si enquanto o prazer e o amor a transportavam para o mundo de ambos. Respirou o ar que ele exalava e ge-meu quando ele a preencheu, gritando o seu amor por ele enquanto a febre de ambos alcançava o clímax. Na paz que se seguiu, numa beatitude tão repleta de uma unidade tranquila que o seu coração não conseguia conter por completo, ouviu uma palavra ser murmurada.

Minha. Ela já não a temia. Ela compreendia que significava partilhar amizade e um amor eterno. Prometia felicidade e o final da solidão. Prenunciava um novo todo criado pela união de ambos numa posse mútua. A palavra foi murmurada uma e outra vez com uma satisfação plena de confiança e uma intensa gratidão. Não foi proferida por Elliot. Foi proferida pelo seu próprio coração.

Meu.

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