coleção TRANS

Ma urice de Gandillac GÊNESES DA MODERNIDADE Tradução Lúcia Cláudia Leão e Marilia Pessoa

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editora.34 INSTITUTO DE PSICOLOGIA - UFRGS

BIBLIOTECA

EDITORA 34 - ASSOCIADA À EDITORA NOVA FRONTEIRA

G~NESES DA MODERNIDADE

Distribuição pela Editora Nova Fronteira S.A.

R. Bambina, 25 CEP 22215-050 Te!. (021) 286-7822 Rio de Janeiro - RJ

7 Prefácio à edição brasileira Copyright © 34 Literatura S/C Ltda. (edição brasileira), 1995 Geneses de la modernité © Maurice de Gandillac, 1991

11 I. CIDADE DOS HOMENS E CIDADE DE DEUS

A FOTOCÓPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO É ILEGAL, E CONFIGURA UMA APROPRIAÇAO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR.

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11.

O PAPEL E O SIGNIFICADO DA TÉCNICA NO MUNDO MEDIEVAL

Título original:

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Geneses de la modernité

III. INTRODUÇÃO AO "RENASCIMENTO" DO SÉCULO XII

Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica:

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Bracher & Malta Produção Gráfica

IV. A "QUESTÃO DISPUTADA" DA "FILOSOFIA CRISTÃ"

Revisão técnica: Ernesto Guisti

67 V. A NATUREZA EM ALAIN DE LILLE

Revisão:

Leny Cordeiro

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Copy e tradução do prefácio, capítulo XI e post-scriptum:

Marilia Pessoa

VI. Os DOIS FUNDAMENTOS DA ORDEM ESCOTISTA

Vl.a. Fé e Razão em Duns Escoto 81 Vl.b. Lei Natural e Contrato Social segundo Duns Escoto 91

I' Edição - 1995

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34 Literatura S/C Ltda. R. Jardim Botânico, 635 s. 603 CEP 22470-050 Rio de Janeiro - RJ Te!. (021) 239-5346 Fax (021) 294-7707

CIP - Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. r'._~:,,

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5472

VII. A "DIALÉTICA" DE MESTRE ECKHART

167 VIII. DUPLA FACE DA FILOSOFIA NO "CONVIVIO" DE DANTE

183

IX.

PLATONISMO E ARISTOTELISMO EM NICOLAU DE CUSA

201 X. O "RENASCIMENTO" PLATÓNICO SEGUNDO MARSILIO FICINO 209

.1.94

XI. VIAGENS ALEGÓRICAS E UTÓPICAS

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(DANTE, MORUS, RABELAIS, CAMPANELLA, BACON)

PSICO 1998/161280-4 1998/07/17

219 Post-scriptum

PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA

Os textos aqui reunidos - prefácios, artigos de revista, comunicações para congressos - abrangem um período de mil e duzentos anos, do início do século V ao início do século XVII, quando progressivamente se construiu uma civilização "moderna", nascida na Europa ocidental, sobre uma base mediterrânea, mas cada vez mais atlântica e que atravessa, enfim, o Oceano para se impor, não sem golpes ou violência, nas novas terras. A ausência de autores tão importantes quanto Tomás de Aquino, Guilherme de Ockham ou Giordano Bruno, nessa coletânea, não significa desconhecer o papel histórico desempenhado pelo compromisso escolástico entre aristotelismo e a fé cristã, a dupla crítica nominalista da abstração e de um dogmatismo de lugares e qualidades, enfim, essa entusiástica descoberta do infinito, cujas premissas o Renascimento encontrou em Nicolau de Cusa. Mas achamos útil destacar aqui figuras, a seu modo tão essenciais, dos Platônicos de Chartres aos de Florença, sem esquecer o escocês Duns Escoto e o turíngio Eckhart, abrindo espaço também para os poetas visionários Alain de Lille e Dante Alighieri. Esses ensaios, escritos ao longo de várias décadas e cuidadosamente relidos, tratam da filosofia entendida em um sentido bem amplo para chegar até a teologia, que durante muito tempo foi difícil separar da reflexão sobre o homem e sobre o mundo e que, para dar lugar às subestruturas econômicas e políticas, foi freqüentemente negligenciadas pelos historiadores das "idéias". A primeira referência ao De civitate Dei, escrito pelo orador africano feito bispo quando os bárbaros ocupam e pilham Roma, longe de subestimar a contribuição de Agostinho para a análise do tempo e o primado da interioridade, pretende ligar a uma filosofia da consciência o esboço de uma filosofia da história. Se na outra extremidade colocamos simbolicamente a Nova Atlântida, apólogo inacabado escrito exatamente mil e duzentos anos mais tarde, por um chanceler britânico, caído em desgraça, esse privilégio concedido à utopia que veio de Platão através de Morus e de Munzer, fonte de uma linhagem deliberadamente revolucionária que se pretende científica, não exclui uma referência indireta ao Novum organum, texto incontestavelmente anunciador da modernidade científica. Ao oferecer aos leitores brasileiros essa coletânea, para a qual meu amigo Eric Alliez selecionou os textos que lhe pareceram mais oportunos, Gêneses da Modernidade

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o que muito lhe agradeço, confesso que, nascido antes da Primeira Guerra Mundial, testemunha de tantos progressos técnicos e de tantas abominações, eu resisto a me deixar embalar pelo canto da sereia (ainda mais em uma economia de mercado regulada pela lei do lucro, onde as cotovias farão seus ninhos?). Como última palavra fica, contudo, a esperança razoável de uma cooperação ativa, sem ilusão, acima das diferenças e das controvérsias, entre os homens de boa-vontade.

GÊNESES DA MODERNIDADE

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Maurice de Gandillac

I. CIDADE DOS HOMENS E CIDADE DE DEUS"

A cidade de Deus nesta terra, velho sonho que se transformou, às vezes, em carnaval (como em Münster, na Westfália, na época de]oão de Leida) e que terminou em banho de sangue. Não faz muito tempo - após o episódio de um suposto "terceiro império de mil anos", mais exigente do que qualquer Baal em massacres de inocentes, e, após uma segunda guerra mundial, seguido por uma falsa paz baseada no equilíbrio de terrores - tomamos conhecimento, especialmente em Kampuchéa, dessa busca de um paraíso terrestre utilizando-se de métodos expeditivos em nome de uma dialética que anunciava a reconciliação do homem consigo mesmo e com a natureza. Imaginário que remonta a alguma idade de ouro, descrição (onírica ou pedagógica) de ilhas distantes onde tomaram forma as utopias da República platônica, exigência de compensação ou proposta de pura fraternidade - nenhum desses componentes diversamente dosados, históricos ou fictícios, que servem de base aos milenarismos, parece estar presente em Agostinho, quando ele começa a escrever, em 412, uma Cidade de Deus que abrangerá vinte e dois Livros e que seria mais apropriadamente intitulada, como o tratado de Oto de Freising setecentos anos mais tarde, Sobre os dois Reinos. Nesse começo do século V, a "nova Roma", ligada por Constantino ao ponto de junção dos dois continentes, não parecia ameaçada; ela conservará ainda por um milênio, contra ventos e marés, uma tradição de "cesaropapismo" retomada em seguida pela Moscóvia dos czares. Em contrapartida, já se encontra quase agonizante a Roma de Augusto e de Tibério, aquela à qual Agostinho, que só lê o grego traduzido, deve toda a sua cultura de africano latinizado. Em Ravena, sob a precária proteção de uma região alagadiça, ela sobreviverá apenas algumas décadas e, em breve, nas dioceses do império, os encargos administrativos serão assumidos pelos bispos cristãos. Muito mais tarde, uma vez restaurados pelos francos da segunda geração tanto o título de imperator quanto a missão de proteger a Sé romana, após a desagregação do domínio carolíngio, os césares germânicos continuarão sem autoridade para além do Mosa e do Reno, diante de reis que se pretendem "imperadores em seu reino" e, pela unção de uma ampola sagrada, capazes de curar as escrófulas. Mal aceitos nessa Itália onde foi preciso "descer" para se fazerem coroar, limitados em seus avanços meri.. Versão resumida e ligeiramente modificada de um prefácio à edição de Cidade de Deus pelo "Clube do Livro", 1976. Gêneses da Modernidade

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dionais por essa Bizâncio que, lentamente, irá erodir a maré islâmica e onde reina como senhora uma "ortodoxia" detalhista (para muitos cruzados bem menos suspeita do que a "infidelidade" dos judeus ou a dos muçulmanos) - enquanto, na direção do leste, para além das terras não totalmente latinizadas em que se confrontam eslavos, bálticos e germânicos, tártaros agora expulsos ou assimilados, cresce um jovem e vigoroso ramo do helenismo cristão -, ser-lhes-á necessário defender seu poder temporal contra os papas romanos que, orgulhosos de sua tiara imperial e apegados a seu título arcaico de sumos pontífices, pretendiam ser, pela graça de uma doação duvidosa, aO mesmo tempo sucessores de Pedro e herdeiros legítimos de Constantino. Mas não antecipemos, pois o que freqüentemente é denominado "agostinismo político", ideologia medieval e, por vezes, moderna, está muito longe das verdadeiras posições do De civitate Dei. No princípio do século V, o acontecimento que abala todos os espíritos é, sem dúvida, a tomada e o saque de Roma, em 410, pelo visigodo Alarico. Alguns pagãos já censuram os imperadores batizados por terem afastado da Urbs a proteção de seus antigos deuses, ao passo que outros - precursores de Maquiavel e de Nietzsche - acusam o Evangelho de enfraquecer as forças vivas da pátria, ao pregar o amor ao próximo e o perdão das ofensas (que, aliás, os sucessores de Constantino não praticam). Sem ignorar essas polêmicas, Agostinho se situa em outro campo. Certamente, ele chega a apontar para a Igreja a vantagem de serem varridos de Roma, por um príncipe cristão, "templos e estátuas de demônios" (V, 2), mas já a partir do capítulo seguinte especifica - após ter prestado homenagem ao devoto Teodósio - que os ambiciosos que vêem na fidelidade ao Cristo vencedor uma garantia de longo reinado, às vezes, se decepcionam, pois o fielJoviano manteve seu trono por menos tempo do que o "apóstata" Juliano. Agostinho o escrevera desde o início: apenas no além serão recompensados, segundo seu mérito, os bons e os maus; a felicidade e a infelicidade continuarão, neste mundo, como que "comuns" a todos, e essa é a condição necessária para evitar que os eleitos invejem esses bens materiais, por vezes usufruídos pelos condenados, e que temam, como opróbio, os males que se abatem sobre o inocente (I, 8). Além do mais, o teólogo - a quem, certamente, inspiram entusiasmados elogios os produtos, úteis ou agradáveis, da engenhosidade humana, e que, entretanto, os vê apenas como "consolos" concedidos às criaturas para as quais, na maioria das vezes, é reservada uma eternidade de martírios (XXII, 24) - insiste com excessiva complacência nas conseqüências da mácula original, por estar tentado a conceber, neste mundo corrompido (o homem, freqüentemente, faz de sua arte apenas usos perversos, preparando venenos mais do que remédios e produzindo com mais facilidade gládios do que relhas de arado), uma cidade terrestre que se 12

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quer "Santa" e que, comparada à Jerusalém celeste, é mais do que uma "figura" ou uma "sombra" ""'"'- termos que devem ser compreendidos segundo sua significação "tipológica", aquela que não remete da imagem ao modelo mas que vê, por exemplo, na Eva pecadora, o anúncio da impecável Maria. Se é verdade que, para Agostinho, só a graça sobrenatural permite ao príncipe fundar na justiça uma autêntica paz, isso não significa que a instituição eclesiástica - com aquilo que o Maritain de O Camponês do Garona chamará, não sem insolência, seu por demais humano "pessoal" _ possa, ela mesma, santificar o poder temporal, quer o papa se arrogue os "dois gládios", quer pretenda controlar o exercício da autoridade civil a ponto de não lhe deixar outro domínio próprio que não seja o da proteção dos bens da Igreja (e, se possível, seu aumento), o da defesa da pura ortodoxia, assim como o das baixas tarefas atribuídas ao "braço secular". Na verdade, o bispo de Hipona - muito censurado e por vezes tratado como o primeiro inquisidor - , inquieto diante do sucesso de determinadas heresias, recorreu, para combatê-las, a poderes temporais, sem imaginar que esse apoio limitado e, ao que parece, provisório, pudesse instituir neste mundo alguma prefiguração do reino de Deus. Para ele, com efeito, ao longo de sua "peregrinação" neste mundo, a "família dos redimidos" permanece indiscernivelmente misturada aos batizados que serão finalmente excluídos da beatitude, enquanto que, inversamente, dentre os inimigos declarados da fé cristã, dissimulam-se predestinados que encontrarão, um dia, seu caminho de Damasco (I, 35). Será somente quando os corpos ressuscitarem - tema extensamente abordado no Livro XXII - que cada um saberá se pertence à Cidade de Deus, mas não se deve por isso supor que, até então, nossas cidades humanas sejam totalmente entregues ao "Príncipe deste mundo". Ao assumir as funções de doutor e de bispo, o antigo mestre de retórica situava-se, de fato, em um campo prático onde nossos atos seriam irrisórios se, não obstante os impenetráveis mistérios da Predestinação, tudo estivesse antecipadamente determinado. Como nenhum mortal tem, neste mundo, acesso aos desígnios de Deus, cada um deve, a seu modo, trabalhar como pode para o triunfo do bem. Em geral, considera-se Agostinho como um dos pais da "filosofia da História"; certamente, seria melhor vê-la como uma "teologia do tempo", pois a seqüência dos acontecimentos, tal como ele a encara, diz respeito menos ao desenvolvimento das sociedades enquanto tais que à sua posição (aliás pouco discernível) no interior de um processo, ao mesmo tempo, cósmico e escatológico. Interpretada, alegórica e anagogicamente, mais do que em seu sentido literal, a Bíblia fornece um quadro geral a essa reflexão sobre o devir. A divisão da família original em duas cidades adversas tem início, de fato, Gêneses da Modernidade

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com o episódio de Abel e Caim, o primeiro significando o pertencimento à pátria celeste e, o outro, a instalação futura nas cidades terrestres (XV, 2). E é igualmente com referência a esse primeiro fratricídio que se pode considerar o legendário assassinato de Remo por Rômu!o (XV, 5). Entretanto esses dois mundos permanecem tão entrelaçados, que Sara (a que simboliza a promessa feita a Abraão), figurando a cidade de baixo, representa a de cima, enquanto Agar (numa metáfora de segundo grau) é, na qualidade de mulher "carnal", a imagem de uma imagem (digna, no entanto, de ser abençoada, na medida em que dela sairá um grande povo). O melhor "tipo" de uma cidade humana considerada como "peregrinação" é, sem dúvida, a arca de Noé. Não só porque seu material e suas dimensões significam simbolicamente a Cruz e o Crucificado, mas sobretudo porque, aqui embaixo, todos os membros da cidade celeste devem "viajar neste mundo ruim como em um Dilúvio" (XV, 26). Reinos e impérios pagãos são "Babilônias" face a "Jerusalém", na qual se conservam - com dificuldade - a língua do Paraíso e a fé monoteísta, enquanto Jacó, após sua noite de luta contra o Anjo de Deus, continua a mancar daquela Coxa da qual sairão os infiéis (XVI, 39). Moisés transmite a Lei ao povo eleito, mas, como diz Paulo, com esta aflui, igualmente, o pecado; assim o demonstram as crueldades dos reis Davi e Salomão, freqüentemente próximas àquelas das nações idólatras, sobre as quais Agostinho prazerosamente se estende (especialmente no Livro XVIII). Até a Encarnação, a divisão da história em períodos possuía um sentido específico; o Dilúvio, a Promessa, a Lei e os Profetas aparecem como etapas da marcha rumo à salvação. Parece que após a Paixão, a Ressurreição, a Ascensão e o Pentecostes, o tempo não dá mais lugar a semelhantes cortes. Agostinho certamente não pertence a esses primeiros fiéis que aguardavam o fim do mundo; tampouco pertence à categoria de hermeneutas que calculam a data da chegada do Anticristo, pois ele leu (Atos dos Apóstolos I, 6) que "não nos cabe saber o tempo que o Pai possui em seu poder". Para interpretar acontecimentos como aqueles que manifestam a decadência e anunciam a ruína de Roma, seria necessário dispor de uma chave análoga à "tipologia" que ilumina as promessas do Antigo Testamento pelos feitos do Novo. Através de experiências fragmentárias, um observador descobre fenômenos de sentidos opostos: extensão da fé, mas persistência de perseguições e surgimento de heresias. Assim, parece inextricável, até o fim, o imbróglio das duas cidades que, "de modo igual", partilham fortuna e infortúnio (XVIII, 54). No momento em que muitos de seus contemporâneos adotam posições contrárias, uns se agarrando ao mito da romanidade, outros depositando suas esperanças na conversão dos "bárbaros" capazes de injetar sangue novo na cristandade, Agostinho evita esse tipo de previsão e de engajamento. 14

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Em tradução latina, Agostinho conheceu vários textos importantes de Plotino, especialmente os das Enéadas m, 7, onde o próprio tempo descreve a fraqueza de uma Alma - terceira hipóstase - que deixa de contemplar o inteligível e, tomada de vertigem, dispersa-se em momentos sucessivos, através de uma multiplicidade de produções nas quais o filósofo discerne, inseparavelmente, a imanência do Belo-e-Bom (em um cosmos que não pode vir de um demiurgo mau como pensam os gnósticos e maniqueus, dos quais, durante um período, Agostinho foi adepto) e a presença inevitável de um "mal", nascido da divisão e da dispersão. Para escapar a essa "queda", as almas individuais - que só vivem, elas mesmas, em sua singularidade, na medida em que a Alma do mundo está "inclinada para baixo" - não dispõem de outro recurso a não ser o da purificação e iluminação platônicas, e chegam, no melhor dos casos, em breves êxtases, ao contato indizível com o Um (Enéadas m, 8; VI, 7 etc). Do plotinismo, que o marcou permanentemente, Agostinho irá entretanto recusar as teses incompatíveis com sua fé: em primeiro lugar, a metensomatose e a suposta elaboração, pelas próprias almas, em vidas sucessivas, de corpos que correspondam a seu próprio nível espiritual (Enéadas IH, 2). Agostinho recusou igualmente a ilusão de que, para que elas mesmas se atribuíssem esse "demônio" que, às vezes, falava a Sócrates e que se confunde com a mais alta potência do intelecto humano, bastaria que essas almas o desejassem intensamente (En. IV, 4). Recusou também a esperança de que seu "pai Zeus", apiedando-se de sua "lassitude", as libertasse de seus corpos, permitindo-lhes, assim, ascender simplesmente, segundo a exigência inata de uma natureza que não teria cometido nenhum pecado hereditário, até a "região intelectual" onde reside, pelo menos no que diz respeito à sua parte superior, incessantemente contemplativa, essa "Alma do mundo" que um Abelardo, em seu enfoque harmônico, tentará, vez por outra, identificar ao Espírito Santo. Agostinho recusou, enfim, a tese análoga de uma "simpatia" universal, proveniente do Pórtico, da qual participariam todas as almas, tanto em suas descidas como em suas ascensões, em seus conflitos e em suas concordâncias, segundo as vicissitudes que dependem do ritmo dos astros e de um modo que parece implicar uma espécie de eterno retorno (Enéadas IV, 3). Já em 389, em seu tratado "Da verdadeira religião", Agostinho, ao confrontar suas próprias experiências vividas, referentes à consciência e ao tempo, com os esquemas platônicos, descrevia a criatura humana como submersa naquilo que ele denomina a "penosa riqueza" do sensível (XXI, 42), reduzida a forjar ídolos para si, testemunhos de sua busca do intemporal no interior de um universo que é feito apenas de sombras (XXV, 84). Nessa época, em seu primeiro comentário do Gênesis, ele compreendia os três primeiros dias do mundo (antes da criação do Sol) como significando Gêneses da Modernidade

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a lenta germinação do celeste e do terrestre. Pouco tempo depois, em seu "Livro inacabado sobre o Gênesis entendido no sentido literal" (esboço de uma imensa obra que só será terminada em 415), ele renunciará a essa interpretação para admitir, apoiando-se no Eclesiastes (XVIII, 1), que tudo foi criado "simultaneamente", sendo o temporal, desde a origem, signo e figura do eterno. Mas é sobretudo nas Confissões, face à sua própria história - a de um combate entre o desejo libidinoso e o arrependimento , que o filho de Mônica pensa descobrir, perscrutando sua alma imortal, imagem de Déus, a verdadeira significação do tempo. As aporias clássicas de uma dimensão vivida, cujo conteúdo não é senão passagem do não-ser-mais ao ainda-não-ser, adquirem aqui uma ressonância singular, porque o autor institui como interlocutor de seu eu a "eterna Razão na qual nada começa ou termina", o Verbo co-eterno ao Pai que diz tudo simultaneamente e deixa, entretanto, que se sucedam as criaturas nascidas desse dizer (XI, 7-8). Se é sem dúvida leviano (mas sempre inquietante) interrogar-se acerca de um "antes" da Criação - pois o "eterno" só precede o tempo por sua transcendência (XI, 12-16) - , isso não resolve o problema de uma medida da duração, cujas porções julgamos serem algumas maiores, outras menores, ainda que, na verdade - já que "do futuro o presente imediatamente voa ao passado" - , tudo nela se reduza a fugidios instantes. Eis então que intervém, com toda sua polissemia, a misteriosa faculdade que Agostinho denomina "memória". A rigor, a palavra deveria designar apenas a rememoração de um passado que desapareceu; de fato, intimamente ligada a essa mens que Agostinho define como "o que é excelente na alma" (De trinitate, IV, 11), a memoria refere-se, para ele, a toda forma superior de presença a si (Confissões XIV, 10-14). Reservatório do instantâneo e do efêmero, se a memória é também a "imensa capacidade" de qualquer experiência e de qualquer saber, é porque o próprio Deus fez dela sua morada e porque, através desta, o Eterno de algum modo confere ao temporal, para além da dispersão e da impotência, um valor positivO de reunião e de energia. Desse modo, portanto, a autêntica duração não se reduziria à medida dos movimentos celestes; mais do que "número" , ela é essa maneira de "distensão" que o exemplo do poema ou da melodia bem demonstra e no qual, mediante uma "atenção" global ao presente, reúnem-se o passado e o futuro (11, 34-37). Semelhante temporalidade, porém, pode ser vivida de duas maneiras, sob o modo do puro escoamento ou sob o do recolhimentO interior, quando o sujeito, esquecendo-se do passado enquanto tal e não aspirando a nenhum futuro definido, tende para o eterno. Para o Agostinho convertido, isso não ocorre sem lágrimas ou lamentações, mas é exatamente essa prova que, graças ao "fogo" do "amor", permite que o "peregrino" terrestre se "firme" na "Verdade" (XI, 40). 16

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É igualmente o uso próprio do tempo vivido que constitui a principal diferença entre as duas cidades: todas as duas avançam, mas uma sucumbe à dispersão, enquanto a outra se unifica no recolhimento. Ao término da viagem, ambas irão perceber a sucessão dos acontecimentos, como Agostinho remotamente sugere, ao mostrar como um canto pode se oferecer inteiro ao primeiro olhar de um músico (XI, 41). Todavia, entre o tempo e a eternidade, o autor das Confissões localiza um tipo de intermediário, que parece corresponder ao "céu" e à "terra" dos primeiros dias do Gênesis, criaturas anteriores à seqüência regular dos movimentos astronômicos; por um lado o mundo angelical nascido da própria Luz e, por outro, a confusão, o quase-nada da matéria pura (XII, 15-20). O comentário, denominado "literal" (mas que não o é), do primeiro Livro da Bíblia, sugere, para essas criaturas, um estatuto análogo ao da beatitude e da perdição que devem se "seguir" ao "fim do mundo", nO tempo "escatológico" que simboliza o "repouso do sétimo dia" (De Genesi ad litteram IV, 31). Mais significativa para o nosso propósito é a atribuição, nesse mesmo texto, de uma verdadeira "subsistência" das realidades que surgem para o ser por ordem de um fiat divino, apesar da alternância do "diurno" e do "noturno", correspondendo ao duplo aspecto do devir: estabilidade das formas ou idéias (que Agostinho nomeia species) , fluxo das coisas sensíveis. Se tudo foi efetivamente criado de uma só vez, esse ato divino, entretanto, sem o qual tudo retornaria ao nada, nunca cessa. Ainda que "novo", cada dia é, de algum modo, "repetição" do primeiro, pois tudo está presente desde a origem nas "razões seminais" que contêm "causalmente" e "racionalmente" todas as coisas futuras e pelas quais Deus, presente no coração de sua obra, faz nascer e crescer, deixa que definhem e morram essas criaturas que ele pensa, desde sempre, "como nas raízes do tempo" (De Genesi, V, 11). A história propriamente dita só começa, como vimos, no sétimo dia. O homem desempenha aí um papel central devido à sua potência laboriosa, colaboração da natureza e da razão, mas as indicações" humanistas" do De Genesi (VIII, 15-17) serão pelo menos infletidas em um sentido pessimista pelo De civitate Dei que, até o fim (Cf. XXII, 24), enfatiza o infortúnio da condição humana. Contrariamente aos maniqueus, Agostinho sustenta, entretanto, que o pecado original não apagou deste mundo todas as marcas da sabedoria criadora, aquela que, após ter inspirado Jó, o Idumeu, fez falar a Sibila de Cumas. Aos donatistas africanos, tão desejosos de pureza, a ponto de só considerarem válidos os sacramentos conferidos pelos ministros de uma impecável moralidade, ele responde que a coexistência de carnais e espirituais não impede uma lenta ascensão do corpo social em direção a um estado menos estranho ao ideal evangélico. Gêneses da Modernidade

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Até mesmo a Roma pagã oferece belos modelos de virtude cívica; para conferir-lhes pleno valor, basta sublimar o gosto pela glória terrestre aspirando à eterna beatitude (V, 11-9). São inúmeros os paralelos e as analogias entre a história santa do povo hebreu e a história profana dos gentios. Sem reconhecer expressamente o valor próprio da antiga civilização egípcia, Agostinho menciona o papel desempenhado pelo império faraônico - de José a Moisés - na tomada de consciência, pelos filhos de Abraão, de sua excepcional vocação; mas, sobretudo - tema discretamente insinuado na Cidade de Deus e destinado a uma grande difusão - , não será preciso atribuir uma significação providencial ao fato de o reino pacificador de Augusto ter precedido por tão pouco o nascimento do Salvador em uma terra controlada por um procurador romano (XVIII, 3, 7, 9 e 46)? Isso não quer dizer que durante o tempo de graça (e de espera) em que vivem os homens, desde o Pentecostes, o reino de Deus possa algum dia encarnar em uma sociedade na qual reina a tranqüilidade na ordem, ideal que certamente se esforçam por impor, cada um em seu domínio, tanto o honesto governante quanto o bom pai de família, mas ao qual constituem obstáculo a inevitável diversidade das línguas, dos costumes e das opiniões, as desilusões da amizade e as armadilhas do amor (XIX, 1-16). Retomando a definição ciceroniana da respublica como um agrupamento de seres humanos baseado no jus e na utilitas, Agostinho mostra que um Estado pagão, subjugado aos ídolos, preocupado como era com a utilidade comum, não podia conhecer uma justiça autêntica (XIX, 20). Mas será que se deveria, por isso, qualificar de "justas" as cidades que se dizem cristãs? Seria necessário que todos os seus membros se encontrassem repletos desse "amor de Deus que chega ao desprezo de si", ao qual o autor do De civitate Dei opõe o "amor de si que chega ao desprezo de Deus" (XIV, 28). Ora, na realidade, não só esses dois extremos são raros, como também a vida política é feita de compromissos que tornam sempre problemática a "concórdia" entre "seres racionais que partilham, juntos, os bens que amam" (XIX, 25). A única "paz" verdadeira dos eleitos encontra-se "com Deus" (na terra, pela fé; no céu, com a glória) e a única justiça verdadeira é essa "justificação" sobrenatural que não procede senão da graça (XIX, 27). Encontramos aqui um aspecto do agostinismo que Lutero levará aos mais extremos limites, conforme as terríveis descrições do Livro XXII, no qual Agostinho, fazendo um levantamento das opressões do pecado, insiste no valor pedagógico do castigo, na utilidade do sofrimento, no recurso necessário aos métodos repressivos (XXII, 22-24). Criticando as exegeses por demais literais do Apocalipse, ele recusa a imagem de um millenarium porvir, concebido como um retorno à felicidade edênica. Para ele, os mil anos da "primeira ressurreição" (Ap. 20,5-6) devem ser enten18

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didos como designando, simplesmente, a "plenitude" dessa nossa duração, que começou com a Redenção e cuja verdadeira extensão, como vimos, ignoramos. Desde o momento presente, com efeito, as almas predestinadas, pelo batismo e pela fé, "renascem" propriamente, e essa regeneração justifica, no texto da Escritura, a descrição poética de uma vitória do Cordeiro sobre a Besta (19, 12-21), mas semelhante certeza não garante absolutamente a fundação, neste mundo, de uma autêntica cidade de Deus. Não há dúvida de que Maligno, devidamente "atado", está, daí em diante, "no Abismo" (20,2-3), mas isso significa apenas que tem por única companhia os condenados que, em meio aos eleitos, formam uma "inumerável multidão" comparável, de fato, aos "precipícios profundos". Não creiamos, contudo, que os "santos" possam jamais desfrutar, neste mundo, uma espécie de "repouso sabático". Pois quando João escreve que o Anjo marcou Satã com um "selo", o faz para mostrar que permanece para nós "secreta" a identidade daqueles que já, invisivelmente, pertencem ao Inferno, e cuja massa envolve o pequeno núcleo dos eleitos. E se o Apocalipse anuncia que o Diabo será, por um tempo, novamente "desatado", essa breve retomada não terá outro fim senão o de melhor destacar, com o triunfo final da nova Jerusalém, a potência efetiva, por ora um tanto oculta, de seu terrível Adversário (XX, 6-8). Assim, pois, até a conflagração final - não, como para os estóicos, começo inevitável de um novo ciclo temporal, mas transmutação de perecíveis corpos de carne em verdadeiros corpos de glória (XX, 16) - , eleitos e condenados viverão juntos, sem nenhum sinal visível que os distinga, nas cidades terrestres ora prósperas e pacíficas, ora afligidas por guerras e sedições, às vezes submetidas a seus pastores, quase sempre indóceis. Porém, por mais improvável que seja um substancial progresso dos costumes e das instituições, pode-se esperar que, pelo menos, o "envelhecimento" do mundo será compensado, de algum modo, pelo crescimento, por sobre as terras, de comunidades eficientemente apostólicas. Por mais intrinsecamente corrompida que seja a raça humana, Agostinho aponta tanto a sua eminente vocação quanto a sua inata unidade. Se é verdade, como o atesta a Escritura, que Cam foi amaldiçoado, e que, aos filhos de Sem, Deus prometeu uma melhor herança temporal do que a dos filhos de Jafé, em todos os ramos dispersos da antiga herança de Noé, mesmo depois da confusão das línguas, eleitos e condenados coexistem segundo dosagens análogas, não importando sua cor ou estatura, incluindo-se aí - e admitindo·se que realmente existam - os monstros descritos pelos naturalistas como Plínio: ciclopes, pigmeus, hermafroditas, ciápodos (com pés tão grandes que lhes podem servir de guarda-chuva), até mesmo esses hipotéticos antipodianos que, para alcançar o outro extremo da Terra, têm de atravessar o terrível Oceano (XVI, 8-9).

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Criados para viverem na paz e para gozarem de felicidade, ei-Ios agora, pelo erro de Adão, sujeitos a uma eterna punição, à qual só escapa, por pura misericórdia, uma pequena minoria. Recusando-se a concordar, com Platão, em dar aos castigos necessários um valor mais purgativo do que punitivo, Agostinho rejeita categoricamente a idéia de que certos pecadores de menor envergadura, ao final de um determinado tempo de provação, pudessem ter atenuada, ou mesmo suspensa, a pena que merecem; semelhante concessão abriria O caminho à "louca" imaginação de um Orígenes, admitindo, com os pagãos, o retorno final de todas as coisas à unidade original e, indireta e conseqüentemente, salvação de Satã (XXI, 11-17). Repitamo-lo: se esse rigorismo inumano esvazia a ilusão de um reino terrestre que pudesse sacralizar sua inata subordinação ao Reino celeste, isso não implica nenhum catastrofismo. Nada, com efeito, no De civitate Dei, parece justificar atitudes como as do prior bávaro Gerhoch de Reichersberg que anuncia, no século XII, depois da humilhação do imperador germânico em Canossa, a "quarta vigília da noite" (aquela após a qual apenas um pequeno número de "testemunhas" conservaria intacto, na impiedade universal, o depósito da fé); nem tampouco as "visões" de uma Hildegarde de Bingen, que, mais ou menos na meSma época, utilizando-se de símbolos nos quais se mesclam à imagética apocalíptica alguns restos de mitologia nórdica, descreve a triste sucessão de cinco idades caracterizadas. pela brutalidade do cão fulvo, o agressivo humor do leão amarelo, a frivolidade do cavalo rosilho, as vilezas do porco negro, e a final abominação de um lobo negro comparado ao Anticristo. Menos sombrias parecem as perspectivas de seu compatriota e contemporâneo, o bispo ato de Freising em seu De duabus civitatibus mencionado no início desse texto; ao descrever um combate impiedoso, até o fim dos tempos, entre forças adversas do bem e do mal, o autor vê na reforma cisterciense um avanço decisivo para toda a ordem moral e social. Já seu predecessor, Bernardo de Clara vai, hostil à civilização urbana e desconfiado de qualquer outra escola que não o claustro, não tinha medo de deixar freqüentemente sua cela para trabalhar na instauração de uma cristandade tal como a desejava. Quanto a Oto, este pode efetivamente denunciar a senilidade do mundo, crê suficientemente na missão providencial do império romano de nação germânica (destinado, segundo ele, a durar até a Ressurreição) para saudar a ascensão ao poder de seu sobrinho Frederico; aquele que será apelidado de Barba-Roxa. Depois dele o premontratense Anselmo, bispo de Havelberg na Prússia (posteriormente de Ravenal, conseqüentemente em contato com os eslavos e os gregos, irá descrever, em uma série de Conversações, a lenta pedagogia do Espírito Santo operando ao longo de toda a História humana 1. 20

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É efetivamente uma brusca mutação a que anuncia, um pouco mais tarde, o eremita calabrês Joaquim de Flora, ao profetizar que, em breve, aos reinos ainda demasiadamente carnais do Pai e do Filho irá suceder o tertium regnum do Espírito Santo, mito transmitido aos mais radicais dos franciscanos e que estará por trás ainda, no início do século XVI, da revolta de um Müntzer. Mas estamos longe, então, das perspectivas de Abelardo, que insiste, em seu Dialogus (verso 1140), no avanço geral dos conhecimentos profanos, desejando um progresso conexo da teologia, enquanto os mestres de São Vitor, abadia e escola parisiense, mostravam o papel reservado aos povos outrora "bárbaros", aqueles que irão suceder a Jerusalém, Atenas e Roma. Para o escocês Ricardo, cujo Liber exceptionem (versos 1150 ou 1160) é largamente inspirado em obras de seu mestre e predecessor, o saxão Hugo, a partir do momento em que o papa transmite a dignidade imperial aos carolíngios e a seus sucessores, o basileus bizantino não tem mais nenhum direito de se dizer o rei desses romanos dos quais agora os francos - também eles supostos descendentes dos troianos - são os valorosos herdeiros. Mas essa enciclopédia, cujo ponto de partida histórico remonta ao primeiro dia da Criação, quer-se igualmente atenta à atualidade e menciona em seu último capítulo, ao lado das pias fundações capetíngias, a expansão dos normandos na Sicília 2 • Ainda mais significativa é a maneira pela qual nossos vitorinos analistas tão cuidadosos, por outro lado, quanto à ascensão das almas rumo à pura contemplação - assinalam, nessa pequena ponta da Europa atlântica, agora engajada na via das conquistas3, o valor positivo dos saberes e das artes nos quais Agostinho via simples (e por demais irrisórios) "consolos" para futuros danados - e, em particular, sua definição da navigatio como meio precioso para "descobrir nOvas margens" e, através da troca de mercadorias e de idéias, "tornar comum o que era privado"4. Estudando, pois, as Métamorphoses de la Cité de Dieu s , Etienne Gilson tomava acertadamente, como ponto de partida de seu afresco histórico, o próprio período em que se afirma, no Ocidente, a vontade que Descartes representará ao desejar se fazer, pela ciência, "mestre e senhor da natureza". À galeria de quadros apresentados por Gilson - desde a "república cristã" de Rogério Bacon (esse franciscano inglês que pensou colocar a serviço da fé máquinas de guerra imaginadas em um estranho fervor místico-teológico), até o culto positivista da "Humanidade (romantizado pelo encontro entre o politécnico Augusto Comte e a "tísica" Clotilde), passando pela monarquia universal (com a qual Dante sonhava no momento em que ocorriam as maiores desordens em sua pátria), pela "paz da fé" desejada (mais do que esperada) em um diálogo que Nicolau de Cusa escrevia no mesmo ano da tomada de Constantinopla pelos turcos, sem esquecer a ilha de Utopia e a Cidade do Sol, seguidas pela Nova Atlântida Gêneses da Modernidade

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- dever-se-ia acrescentar, dentre tantas outras quimeras, a arte combinatória de Raimundo Lúllio, intrépido pacificador que contava aproximar do cristianismo muçulmanos e tártaros pelas vias conjugadas do amor e da razão, mas que termina impiedosamente apedrejado em Túnis - e, mais tarde, os imensos esforços de Guillaume PosteI - arabista e hebraísta , que, impressionado pelas visões de uma virgem veneziana, procurará, de diversas maneiras, nos caminhos do mundo, os meios para fundar uma verdadeira concordia orbis terrarum. Esse resumidíssimo catálogo das tentativas de transposição terrestre de um tipo de civitas Dei ficaria ainda mais incompleto se não lembrássemos sucintamente, para terminar com uma nota mais atual, por um lado, os mitos do liberalismo e da livre empresa, o paraíso das "harmonias econômicas" nascidas de supostas regulações pela falência e pela miséria e, por outro, as encantações mágicas ou as pretensões científicas de um socialismo pleno de sedução mas que, aparentemente, não instalou, até agora, em nenhuma de suas formas concretas e de modo duradouro, modelos convincentes. Apesar de tantas evidentes diferenças de conjuntura e de ideologia, essas experiências (e muitas outras) intentadas pelos humanos, seja in mente, seja in vivo, apresentam, em variados graus, a característica comum de iluminarem cruelmente, mais ou menos cedo, o que Platão descrevia como "causa errante", e que Agostinho associa ao pecado original: a resistência obstinada - senão mesmo diabólica - que o real impõe aos esforços de nosso livre querer organizador. Não se pode sem dúvida esquecer que essa "negatividade" (que não é apenas, nem mesmo intrinsecamente, a da "matéria" como tal) desempenha um papel, essencial, de motor no devir histórico; nesse caso, não seria absurdo atribuir-lhe uma significação análoga - mutatis mutandis - àquela que usualmente os teólogos atribuem à queda de Lúcifer e à desobediência de Adão e até à traição de Judas. Não parece, entretanto, que consigam com isso jamais eliminar - ou, pelo menos, tornar de algum modo transparente à razão, senão mesmo à fé - nem o incerto trabalho da "distensão" diacrônica, nem tampouco, por elas mesmas, nossas "extensões" optativas rumo a uma forma qualquer de intemporalidade.

NOTAS 1 Sobre esses temas, cf. Friedrich Heer, L 'Univers du Moyen Âge, trad. fr., Paris 1970, p.289 sg .. 2 Ed. Châtillon, Paris 1958, p.209-212. 3 Cf. Piem: Chaunu, L 'Expansion européenne du XIlleme siúle, Paris, 1969. 4 p.l10, cf. Hugo de São Vítor, Didascalicon, ed. Buttiner, Washington 1939, p.4I. 5 Paris-Louvain, 1952.

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11. O PAPEL E O SIGNIFICADO DA TÉCNICA NO MUNDO MEDIEVAL"

No capítulo 79 de sua Doetrina pueril, Raimundo Lúllio - pedagogo de vocação e encarregado, por Jaime o Conquistador, de educar o futuro rei de Maiorca - descreve, por volta da metade do século XIII, as "artes mecânicas" como sendo as "ciências" próprias aos homens que "trabalham com seus corpos". Aqui o treballan do texto catalão perdeu, evidentemente, qualquer referência ao tripalium, instrumento de tortura reservado aos escravos, e a palavra não é mais pejorativa do que o laborant latino. Para Lúllio, essas artes mecânicas não estão exclusivamente reservadas a uma classe inferior da sociedade (aquela que Platão situava, por assim dizer, à margem de sua República). Burgueses, cavaleiros, príncipes e prelados não apenas devem lembrar que sem os ferreiros, os marceneiros e os lavradores eles morreriam de fome e de frio, mas também que têm interesse, como os mais ricos sarracenos, em praticar, desde a infância, uma dessas artes; se o acaso, um dia, os desfavorecer, poderão assim ganhar seu pão cotidiano. Logo, é por razões tanto pedagógicas quanto econômicas que Lúllio reabilita o trabalho sem se referir a uma teologia (quase desconhecida na Idade Média) que invocava o exemplo de Jesus carpinteiro, de Paulo fabricante de redes, para enaltecer essa Formierung, através da qual a matéria bruta encontra-se tecnicamente "elaborada", transformada em obra propriamente humana. Meio século depois, essa reabilitação assumirá, nos místicos renanos, uma nova forma, igualmente incompleta. Em um curioso sermão, Eckhart irá opor à contemplação ainda "sensível" de Maria, sua irmã mais nova, a perfeição da mais velha. Dentro do mesmo espírito, Tauler acusará seus irmãos de permanecerem freqüentemente aquém da espiritualidade alcançada pelos artesãos ou pelos camponeses. Eckhart e Tauler não chegam entretanto a exaltar, como tal, o fruto material do trabalho. Parece-lhes, somente, que a condição normal do homo viator implica um operari in mundo, e que os pretensos contemplativos que, neste mundo, querem se passar por anjos freqüentemente passam por animais. Estamos ainda distantes das correntes que, um pouco mais tarde, chegarão à apologia do "engenheiro" (como em algumas páginas do idiota cus ano que o século XVI irá transformar em mechanicus, para ver .. Comunicação apresentada no Colóquio organizado em Roma pelo Instituto di Studi Filosofici em janeiro de 1964 (Diogime, Paris, julho-setembro 1964). Gêneses da Modernidade

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no interlocutor de De staticis experimentis um precursor de Leonardo da Vinci ou de Cardano), e igualmente muito distantes da ética calvinista (ou pseudocalvinista), que fará do êxito econômico (e, conseqüentemente, da produtividade técnica) um signo sensível da eleição. O fato é que não há propriamente, seja para Lúllio ou para os pregadores dominicanos que acabamos de citar, nenhuma "profissão tola". O trabalho manual não pertence para eles, de forma essencial, a uma raça inferior que só possuiria plena dignidade humana no plano espiritual e não na ordem de uma hierarquia social, da qual a angeologia tomista poderia nos fornecer uma analogia típica (os Anjos e os Arcanjos condenados às "operações" propriamente ditas, milagres e missões junto aos homens, ao passo que os Serafins e os Querubins continuam simplesmente contemplativos, e as ordens intermediárias dedicam-se a funções de comando que concernem mais à prudência do que à técnica). Mais "aristocratas" em geral do que o fidalgo maiorquino - que se tornou eremita e missionário, poliglota e lógico para assegurar a paz do mundo na unidade da doutrinaou do que o nobre turíngio - doutor pela Sorbonne e mestre de desprendimento espiritual-, a maioria dos escolásticos de seu tempo permanece fiel à classificação dos modos de vida definidos por Aristóteles e situa bem abaixo do lazer contemplativo, mas igualmente da vida política e militar, essa árdua busca do progresso material e do lucro que, desde essa época, tornam possíveis, mais do que a crematística grega, as técnicas do grande comércio e do banco, os primórdios da indústria e a introdução, na terras das abadias e em certos domínios senhoriais, de novos métodos agrícolas. Se Santo Tomás se adapta às .realidades de seu tempo (por exemplo, ao comentar o livro V da Ética, negligencia as formas arcaicas da justiça distributiva, como divisão de honras e de subsídios, para definir o justo salário segundo a proporção exata do tempo de trabalho), é interessante notar que, ao retomar as teses de Aristóteles acerca do "regime misto", exclui, de saída, a "oligarquia" (isto é, o regime que está em vias de se instalar nas novas comunas burguesas) como o governo dos "ricos", em suma, cada vez mais, é o governo da classe ascendente que extrai seus recursos de um trabalhador tecnicizado. E se esse desprezo pelos ricos pode parecer evangélico, é em um tom bastante desagradável que o santo doutor, a propósito dos perigos da "democracia" em estado puro, descreve os plebeus, "pobres, ignorantes, que exercem profissões miseráveis" (In Pol., VII, 10). Dentro dessa visão social, na qual enfatiza-se a "virtude" e, subsidiariamente, a "honra", quase não parece sobrar lugar para qualquer forma de "engenhosidade" técnica. E, entretanto, o século XIII ocidental não carecia, fosse no plano teórico ou na ordem prática, de nenhum dos elementos doutrinais que teriam podido torná-lo mais sensível a esse tipo de valor. Dos sofistas aos vitorinos,

passando pelo médio-estoicismo e pela patrística, a tradição filosófico-teológica capaz de fornecer suas cartas de nobreza ao homo faber segue, na verdade, uma linha contínua, apesar das resistências que surgem às vezes, em Platão, por exemplo, quando ele nega que o verdadeiro músico use cordas e cavilhas (Rep. VIl, 531 a) ou, mais explicitamente, em Sêneca (Ep. 80), quando este censura Posidônio pela apologia dos inventores que descobriram a arte de fundir os metais e de forjá-los para as necessidades do homem. Para ele, os únicos "sábios" são os que lêem no cosmos a harmonia da razão universal e que zelam, através de uma educação moral, para tornar o homem mais digno da centelha divina que traz em si. Em seu tratado sobre a Criação do homem, Gregório de Nissa evoca a grande novidade que a obra do sexto dia traz ao universo criado. Tendo feito surgir do nada o céu e a terra, os astros, as plantas e os animais, eis enfim que Deus instala, nesse magnífico "palácio", o ser que formara à sua imagem e semelhança e que deve se tornar simultaneamente o "contemplador" e o "senhor" de tudo aquilo que assim foi "preparado" para ele. Aqui a exegese bíblica retoma, por uma outra via, o tema biológico de Aristóteles, fazendo do homem o mais perfeito dos seres vivos, e atribui, de saída, um valor providencial às insuficiências originárias destacadas pelo mito protagórico. Lembramos, com efeito, que quando Epimeteu faz sair O anthropos da terra e do fogo (como o Criador do Gênesis "jeovista", 11, modela o humus terrestre, insuflando nele sua própria vida para transformá-lo em homo), essa gata-borralheira da criação, longe de ser, logo de início, o "rei" do universo, continua sendo um pobre animal totalmente nu, sem nenhuma arma natural, que só sobreviverá porque Prometeu irá roubar para ele o dom do fogo, segredo de toda técnica. Protágoras, sem dúvida, não iria mais longe do que isso. Platão acrescenta que, domesticador dos animais e senhor dos minerais, o homem continua incapaz de viver em paz em uma república bem ordenada; falta-lhe, pois, o dom divino de novas technai, transcendentes a todas as outras e de ordem universal: as "virtudes" do pudor e da justiça (Prot., 322 cid). Na Bíblia, ao contrário, é desde o começo, e não por acaso, que o homem - física e corporalmente - foi criado como o rei de todas as coisas. Em contrapartida, a desobediência voluntária introduz a desordem em todos os níveis e dá o sentido de castigo a um "trabalho" que, sem aquela desobediência, teria sido apenas a harmoniosa valorização do reino terrestre. Apesar de todas essas diferenças, Gregório de Nissá não hesita em integrar à perspectiva bíblica - com tudo o que esta implica de desconfiança, em um povo pastoril, quanto à raça dos ferreiros, descendentes de Caim (Gênesis, IV, 22) - os lugares-comuns que encontra em Cícero sobre a inferioridade física do homem, e que compensam suas aptidões técnicas, elas próprias favorecidas tanto pelo privilégio da posição ereta quanto pela posse das

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mãos. Sabe-se que é sobre esse último ponto que Aristóteles, em uma perspectiva mais estática, sem se referir nem à imprudência de Epimeteu nem tampouco a uma queda original qualquer, insistiu, nesses mesmos textos biológicos nos quais sugere (sem recorrer a nenhuma forma de evolucionismo, e até rejeitando expressamente o "pré-Iamarckismo" de Anaxágoras assim como o "pré-darwinismo" de Demócrito) uma continuidade estrutural e hierárquica entre a planta, cuja cabeça se encontra, por assim dizer, fixada no solo, e o homem que, ereto sobre seus pés, olha para o céu (reproduzindo em sua própria atitude a ordem "natural" do alto e do baixo), dotado pela própria natureza (para servir à sua inteligência) de duas mãos com dedos oponíveis, sendo, cada uma, uma "ferramenta que se utiliza de ferramentas" (De partibus animalium, IV, 10, 687a). É então apenas aparentemente que o homem nasce desarmado e desvalido. Para Aristóteles, ele prevalece, desde sempre, sobre todos os seres vivos devido à sua habilidade manual e ao poder de sua razão. O homo sapiens é, desde o início e para todo o sempre, um homo artifex, e a inteligência, que assegura sua soberania, é inseparável de sua engenhos idade técnica. Nas dimensões históricas que a tradição judaico-cristã superpôs a essa visão, parece que não havia nenhum obstáculo para que a síntese do Capadócio encontrasse eco e servisse de base a todo um desenvolvimento teológico. A Idade Média teria podido meditar muito mais sobre todas essas fórmulas se, com a palavra ars, tivesse herdado um termo com múltiplas significações que, como seu homólogo alemão, se aplica a quase todas as capacidades humanas 1. Sabe-se o que representa a própria idéia da "grande arte", aquela do iniciado que se esforça ao mesmo tempo para transmutar artesanalmente os metais e, na verdade, em um nível superior de hermenêutica, tenta, por sua "operação", descobrir o verdadeiro sentido da natureza 2 . Todo um setor medieval conheceu essas artes secretas que exigem uma "técnica" minuciosa, no sentido mais moderno do termo, mas que utilizam-se simultaneamente da magia simpática para agir à distância. Judeu ou batizado, o médico continua sempre sendo suspeito de feitiçaria. Na própria caçada a cavalo, ars nobilis, entre todos, sabe-se que desde a época pré-histórica o encantamento jamais foi totalmente separado da habilidade para a caça. A arquitetura, rica em fórmulas esotéricas; a escultura, que mescla a uma efervescência alegórica a representação minuciosa dos gestos artesanais; a própria política, que coroa de poderes mágicos o cavaleiro ou o rei, todas estão longe de ser inteiramente racionalizadas (a despeito do que se poderia imaginar lendo os comentários de Aristóteles). Dessas técnicas quase misteriosas, parece que a Idade Média dos "intelectuais", aquela da universidade e dos clérigos, nunca deixou de desconfiar, assim como de tudo aquilo que, nas profissões propriamente ditas, nas "máquinas", nos segredos de fabricação, evocava esse segundo plano sus26

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peito. Corriam lendas sobre "mestre Alberto" afirmando que este, assim como mais tarde Fausto, e talvez Descartes, teria construído um autômato, quem sabe até um homuncu/us, e que, em pleno inverno, teria feito florescer em Colônia árvores frutíferas 3 . Ainda que a ars magna de Lúllio fosse se tornar, aos olhos da posteridade, o modelo mesmo de um sistema lógico totalmente formalizado, a própria vontade de utilizá-la para fins práticos a desvalorizaria aoS olhos dos clérigos, e em pouco tempo o maiorquino também seria considerado uma espécie de mago. Desconfiava-se dos comerciantes, não apenas porque seus lucros dificilmente teriam lugar, apesar de todas as casuísticas, no quadro rígido da economia aristotélica, mas também porque os primeiros grandes negociantes foram, na Europa, os sírios de tez mais ou menos morena, os vikings, três quartos piratas, os aventureiros, cujos estabelecimentos eram antes depósitos de receptação do que lojas de atacadistas. E se se respeitavam mais os grandes construtores, conservando em pergaminhos fechados os segredos de construção (que talvez não fossem nada além de fórmulas matemáticas, provavelmente de geometria projetiva, que não encontrados em Boécio ou mesmo em Vitrúvio), basta ler o Liber de consecratione ecclesiae, de Suger, para imaginar tudo o que a edificação de uma abadia ou de uma catedral encobria. E ainda, no caso de SaintDenis, trata-Se de um empreendimento parcialmente político, essencialmente capetíngio. O próprio abade beneditino escolheu, nas florestas dominiais e nas pedreiras da Ile-de-France, os materiais da primeira igreja "gótica", e foi com o apoio dos principais bispos do "domínio" que recolheu os fundos necessários à obra. Porém, se fala de sua obra como um técnico frio, pode-se perceber, entretanto, que, para ele, o essencial dessa arte é a maneira pela qual finalmente "a luz misteriosa e uniforme penetra" em Saint-Denis "pelas altas e santas janelas". Luz e matemática, tudo isso é bastante presente, não apenas em Chartres no século XII, mas em seguida em Oxford com Grosseteste, e até na Silésia com Witelo. Mas a Universidade de Paris, em sua grande época, pouco se interessa por esse enobrecimento místico da técnica arquitetura!. As únicas "artes dignas de verdadeira estima são efetivamente as artes liberales, que a Idade Média herdou da antiga paideia helênica e helenística (quadrivium platônico, mas sobretudo trivium de dominante lógico-grama· tical). "Técnicas", seguramente, mas que não visam senão a finalidades desinteressadas, que, de algum modo, agem diretamente na matéria e que não exigem nenhum aprendizado manual; técnicas sobretudo - e eis sua única justificação contra as suspeitas da "anti dialética " - que permanecem subordinadas à teologia. Seguramente, cada vez mais, ao lado dos mestres da sacra pagina e da doctrina sacra, a universidade formaria canonistas, legistas, os grandes "escriturários" que farão da Igreja e do Estado "má>l-

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quinas" jurídicas e burocráticas, mas justamente em um nível que o "mecânico" não se revela imediatamente como tal, porque não se utiliza do trabalho dos dedos a não ser por intermédio dos "escribas". Por sua vez, os lógicos se tornarão "técnicos" tão hábeis que, ainda aqui, o sutil "mecanismo" da disputatio dissimulará, por um bom tempo, seu possível veneno e de modo que, se Pedro de Ailly denuncia publicamente o perigo do juridismo, ainda revela muito pouco ao fim do século XIV (menos que seu amigo Gerson) do frio demonismo dos "formalizantes". Cada vez mais separada do real, a dialética, pelo menos, não parece correr o risco de erigir o homem como novo Prometeu, de arrancá-lo da contemplação para submetê-lo ao trabalho da criação. E se os religiosos percebem aqui o perigo de uma alienação mais secreta, seu contemptus mundi também se compraz, com bastante freqüência, com técnicas mecanicizadas, ricas em gradus e em scalae. É sonhando com esse tipo de "tecnicização" que os eckhartianos reabilitam eventualmente, e como que por acaso, o mais humilde trabalho do artifex, mas despojando-o de tudo aquilo que faria dele o inquietante intermediário de um verdadeiro "confisco" sobre a natureza. E entretanto, se os filósofos e os teólogos quase não se abrem para um mundo novo (sobre o qual os manuais de confessores são, ao contrário, o testemunho), na "prática" mesma da vida, a Idade Média assiste ao desenvolvimento de todas as espécies de técnicas" de conquista" , porém freqüentemente sem falar delas, sem se vangloriar por possuí-las, sem assimilar seu caráter revolucionário. Dessa floração, por longo tempo desconhecida, tomamos lentamente consciência através dos inventários das abadias, das miniaturas de manuscritos, dos capitéis e pórticos das igrejas, através da própria análise dos monumentos. Friedrich Heer observa que durante muitos séculos a ética do "trabalho" e da "conquista" permaneceu, em grande parte, um fato "rural". E é certo que ao longo da Idade Média, quase sem o conhecimento dos estudantes parisienses que comentavam a Bíblia e Aristóteles, o homem desbravou florestas, drenou pântanos 4 , não apenas colonizou, no norte e no leste da Europa, imensas regiões quase desertas, mas mesmo, no interior de antigas regiões romanizadas, entre Carlos Magno e São Luís, duplicou, às vezes triplicou, em média, o rendimento das terras, alcançando um nível de "produtividade" que quase não será alterado posteriormente, antes do salto técnico dos últimos cento e cinqüenta anos. Nesse trabalho, algumas grandes abadias desempenharam um papel decisivo; são elas que nos fornecem os documentos mais reveladores. Seus intendentes lêem e adaptam antigos tratados de agricultu-. ra, aprimoram os apetrechos, introduzem métodos novos de afolhamento. Mas, como mostrou G. Duby, em um livro tão rico em investigações quanto prudente em suas sínteses5 , não foram só os monges que trabalharam nessa evolução; soberanos que, como Henrique Plantageneta no vale do Loire,

contêm os rios em diques para proteger das águas seu vergel angevino, grandes senhores que, vítimas de seu gosto pelo luxo e freqüentemente endividados, precisavam então que suas terras "frutificassem", aceitam até renunciar parcialmente às alegrias da caça e, para encher seus celeiros de belos grãos selecionados, encorajam as iniciativas técnicas de seus ministeriais. Não é apenas em Corbie ou em Saint-Germain-des-Prês que se pratica a agricultura de modo cada vez mais racional, como uma "arte mecânica" digna da mais alta estimé. Afolhamento trienal, esterroamento regular, multiplicação das fundições (atestada pelos inventários, mas também pela banalização dos Lefévre, dos Smith, dos Schmidt), arados de ferro com rodas e cuiveca (desconhecidas pela Antigüidade e que quase não sofrerão alterações na forma até a "brabante" do século XIX), invenção da ferradura, da braçadeira de atrelagem, do jugo frontal, substituição dos pavimentos romanos rígidos por um sistema elástico de calçamento das estradas, implantação de moinhos de vento e de moinhos d'água (que, de um único regato da região de Ruão passarão, em dois séculos, de 10 a 17) todos esses, testemunhos evidentes de uma verdadeira revolução técnica. Mas uma revolução que está longe de se restringir apenas ao domínio da agricultura. Ao mesmo tempo em que os viajantes trazem do Oriente, diretamente ou pelo Islã, procedimentos tão preciosos quanto o algarismo dito arábico (na verdade indiano), o astrolábio e a pólvora, vêem-se desenvolver a arte e o uso do vidro, a fabricação de lentes e de lunetas, a construção de relógios, a indústria do papel, e logo depois o leme de grandes profundidades que possibilitará viagens marítimas mais longas. Longe de desprezar as artes mechanicae, o homem medieval já tomou destemidamente o caminho que fará de seus netos os senhores e donos da natureza. Ora, é de se notar que, na própria alvorada dessa revolução, os monges de São Vitor apenas o registram, sem pudor ou surpresa, de forma mais precisa e mais significativa do que o farão, mais tarde, casos isolados como Lúllio, Eckhart e Tauler. O Didascalon de Hugo e em seguida o Liber Exceptionum de Ricardo são, a esse respeito, testemunhos significativos. Retomando a divisão aristotélica das ciências em "teóricas", "práticas" e "poéticas", ao lado da teologia e da matemática (que formam a theoretica), da ética, da economia e da política (que constituem a practica), antes da lógica (gramática, dialética, retórica), à qual, aliás, ele consagra apenas algumas linhas, Ricardo apresenta em duas páginas concisas a importante seção da "mecânica" ,que contém, segundo ele, universa quae humanis necessitatibus inveniuntur grata, commoda, necessaria. Mesclando os testemunhos livrescos da Antigüidade às próprias realidades de seu tempo, ele divide (por razões talvez simbólicas) essa mechanica em sete artes que - englobando a caça, em todas as suas formas, a medicina (incluindo a cirurgia), a teátrica, ou conjunto dos jogos que inclui os dos gladiadores e o

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trabalho das tocadoras de flauta nos banquetes - dão lugar, de modo mais interessante, a toda uma série de profissões, cuidadosamente descritas com grande riqueza de termos técnicos, por vezes difíceis de interpretar. O primeiro grupo é o /anificium (que concerne, em todos os seus níveis, à preparação do linho, da lã e de Outras fibras têxteis, animais ou vegetais). O segundo, a armatura (que compreende a arquitetura e a metalurgia, a arte de talhar as pedras, de fabricar tijolos e telhas, com a lista de todos os instrumentos ad hoc). Seguem-se a navigatio, que inclui o comércio em todas as suas modalidades (industria vendendi et emendi). A agricultura (que precede, de fato, na ordem da exposição"a venatio, a medicina e a theatrica), enfim, é brevemente descrita em seus quatro aspectos: cultura dos cereais e dos legumes, arboricultura e viticultura, atividade pastoral, arte dos jardins. Porém o mais importante é a afirmação vitorina segundo a qual essa arte, como todas as outras, deriva simultaneamente da filosofia e da pura tecnicidade: ratio agriculturae pertinet ad philosophum, administratio ad rusticum. Assim, o artesão encontra seu lugar em um sistema universal que valoriza a técnica pura, recusando-se a separá-la do saber teórico e da finalidade moral. Reconciliando, por assim dizer, Sêneca e Posidônio, Ricardo cita ao acaso, entre os inventores artium, os iniciadores da teologia e os da física, os descobridores da arte têxtil e os da aritmética, os primeiros músicos e os primeiros navegantes. Nessa estranha lista, Abraão e Moisés aparecem ao lado de Ésis e de Ceres; Orfeu, Varrão, Escoto Erígena juntam-se à industriosa Minerva; e pármênides situa-se ao lado de "Jubal filho de Caim" (cuja linhagem, conseqüentemente, não é de modo algum amaldiçoada). Todas essas descobertas se situam na perspectiva, simultaneamente histórica e comunitária, de uma luta ativa de toda a humanidade contra as conseqüências do pecado. Privado, com efeito, dos três bens conferidos a Adão (conhecimento, virtude e imortalidade corporal), o homem dispõe de três "remédios"?: a sabedoria (theorica), a virtude (practica) e - no mesmo nível- a técnica (mechanica). Nessa perspectiva, a dura lei do trabalho não é simplesmente a punição da falta original; torna-se um meio positivo de redenção s. E as artes mecânicas parecem mesmo prevalecer, de um certo modo, sobre o trivium; o fato é que a gramática, a retórica, ou mesmo a dialética (cujo suposto inventor, Parmênides, figura entretanto na lista de seus grandes benfeitores) não são expressamente citadas como "remédios" para as conseqüências do pecado. Jean Châtillon, o probo editor do Liber Exceptionum, observa que essa "visão bem compreensiva da humanidade terrestre" (ligada, nos vitorinos, ao esboço ingênuo de uma grande história, das origens à conq uista da Inglaterra) irá "logo desaparecer do horizonte escolástico". Desaparecimento (ou pelo menos eclipse parcial) ainda mais paradoxal, como dissemos, por coincidir com os séculos nos quais se preparam ativamente as

estruturas econômico-tecnológicas da nova sociedade prometêica. Entre o século XII e o XV encontrar-se-ão, sem dúvida, algumas apologias da arte mecânica; ainda que cada um dos temas que contenha sejam, eles mesmos, tradicionais, acreditamos detectar entretanto uma ênfase nova no sermão pronunciado para a festa da Epifania, em janeiro de 1456, pelo Cardeal de Cus a, bispo de Brixen. Neste, o predicante evoca ao mesmo tempo o mito de Protágoras e a idéia de um progresso no tempo para o qual colaboram - por referência explícita à Encarnação - o trabalho "natural" do homem e as graças "sobrenaturais" que àquele se acrescentam para lhe atribuírem seu pleno valor:

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Todos os homens nascem nus, como os animais. Mas a arte da tecelagem os vestiu, permitindo que vivam melhor do que aqueles. Do mesmo modo, eles usam alimentos cozidos, moram em casas, domesticam os cavalos, praticam todas as espécies de arte que os permitam viver melhor, e são muito gratos àqueles que as inventaram. Acrescentemos que muitos vivem na tristeza e na penúria, enquanto outros são ricos e levam uma vida feliz. É portanto natural que, por alguma graça ou por alguma arte, o homem se esforce para alcançar o máximo de paz e o máximo de felicidade 9 Ainda que o homem obtenha êxito parcial com essa "diversidade de artes e dos produtos da arte", sobre a qual o Compendium de 1463 dirá que "manifesta, de forma evidente e diversa, o intelecto uno e indivisível do homem"lO, e que requer, antes de tudo, o estudo teórico da ética, da política e da economia, nada disso é totalmente suficiente, pois apenas a religio O conduzirá finalmente à "vida eterna". Mas, de todas as doutrinas da salvação, a mais completa é a do Cristo, que convida todos os homens a partilharem sua divina "filiação", visto que é "ao mesmo tempo a via da graça e da natureza" 11 . Em um estilo mais elaborado, não se encontra aí o humanismo integral que já sugeriam os vitorinos? Entre os dons de Zeus e os de Prometeu, o Cusano destaca a continuidade. Ao se desprezar as artes do fogo pelas quais o homem prepara progressivamente seu próprio reino, não se está correndo o risco de mutilar a vocação trabalhadora do homo viator? Em um artigo de dezembro de 1963 (Forum-France), o ex-ministro André Philip escrevia: "Se se deseja democratizar os tecnocratas, é preciso, ao mesmo tempo, tecnicizar os democratas." Por democracia, o autor dessa fórmula entende, na verdade, toda uma concepção "espiritual" do homem. A reconciliação necessária da "sabedoria" e da "técnica" exige, diz ele, que se aprenda, antes de tudo "a levantar os problemas concretos do mundo", de modo 31

que cada pessoa possa livremente "assumir suas responsabilidades". Será que o erro dos escolásticos, do qual tantO se ocupam os puros "intelectuais", em todas as épocas e em todos os estilos (como o da retórica existencialista), não é justamente o desconhecimento, quem sabe até o menosprezo, tanto

desses "problemas" quanto dessas "responsabilidades"? Se o homem esquece sua vocação de homo faber, ele corre o sério risco de ser sempre apenas aparentemente homo sapiens, luxo inútil, puro epifenômeno, em uma sociedade na qual o instrumento técnico - por não ter seu próprio valor reconhecido e, assim, não estar situado em seu verdadeiro lugar - escapa ao controle da racionalidade e perde sua significação autêntica.

NOTAS [ Para toda uma tradição germânica, a gottliche Kunst designará, por muito tempo, a mais alta sabedoria da criatura que se assemelha a seu Criador. 2 Esses dois níveis estão bastante ligados em uma frase que Friedrich Heer, sem citar a fonte, atribui ao monge franciscano do século XIV João de Rupescissa (Mittelalter, Zurique, 1961, p.479), que passou uma parte de sua vida na prisão: "De nada adianta visar ou alcançar o auge dessa arte se não se purificam seus sentidos através de uma vida santa e de uma profunda contemplação, não somente para conhecer o interiot da natureza, mas também para saber modificar a natureza modificável, segredo que pertence apenas a pouquíssimos homens." Uma tal declaração poderia ser encontrada em um outro monge como Rogério Bacon, que via uma "graça de Deus" na invenção de um espelho ardente pelo qual, renovando a experiência de Arquimedes, os cristãos triunfariam sobre os infiéis por meio de máquinas baseadas em um saber capaz - uma vez perscrutados os mirabilia naturae - de transformá-los em técnicos conquistadores. 3 Essas lendas continuam a circular nos círculos esotéricos contemporâneos, que as propagam a portas fechadas. 4 Em uma exortação improvisada, em Royaumont, Louis Armand observava o papel da abadia no desenvolvimento das culturas "hortícolas", nascidas justamente desse trabalho de "drenagem". Ele via, aí, a prova de um sentido "técnico" e de um gosto pelo" prospectivo" . Mas se os cistercienses, amigos do rei Luís IX, contribuíram assim para mudar o aspecto dos arredores parisienses, não parece que esse trabalho tenha deixado muitas marcas em sua mística teórica. S G. Duby, L 'économie rurale et la vie des campagnes dans l'Occident médiéval, 2 vaI., Paris, 1962. 6 Ch. Südhof, "Die Stellung der Landwirtschaft im System der mittelalterlichen Künste", Zeitschri(t (ür Agrargeschichte und Agrarsoziologie, 1956. 7 Agostinho examina, no último livro de Civitas Dei (XXII, 24), as damnatorum solatia que Deus confere aos "homens de carne". Sua enumeração retórica serve sobretudo para valorizar, através de um raciocínio a (ortiori, as recompensas reservadas aos "bem-aventurados" após a ressurreição dos corpos (quae igitur illa sunt, si tot ac talia ac tanta sunt ista?). Não se trata absolutamente, então, de "remédios" providenciais, comparáveis àqueles da sabedoria e da virtude. Santo Agostinho, que não tenta distri-

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buí-Ios sistematicamente, toma cuidado em insistir na "ambivalência" dessas artes. partim necessariae, partim voluptuariae. Ele cita, no mesmo plano, ao lado da medicina, a arte dos venenos e, em uma linha bastante platônica, a técnica do cozinheiro que prepara os condimenta et gulae irritamenta. Da eloqüência e da dialética, afirma apenas que serviram aos mais ilustres filósofos para "espalhar os erros e suas falsidades". Falando da maravilhosa complexidade do corpo humano, enfatiza que, para conhecê-la, o homem deve recorrer à crudelis diligentia daqueles que chamamos anatomici. Se é verdade que Deus, ao criar o mundo, preparou para o homem um quadro maravilhoso, e que, dotando-o da estatura ereta e da mão, colocou à sua disposição úteis instrumentos técnicos, no mundo do pecado, não se pode esperar dessas virtualidades a não ser um mau uso. Se os vitorinos se inspiraram nesse texto, fica claro que lhe atribuíram um outro sentido. S No

sermão) citado mais acima) ,\ÇtTCa de Marta e Maria, Eckhart observará que)

desde a recepção do Espírito, os Apóstolos nào pararam de "trabalhar" na promoção do reino de Deus, como Jesus havia "operado" na terra para a salvação dos homens. Ele verá, aí, a justificação do "trabalho" de Marta a serviço do Cristo e de seus discípulos, mas não chegará, entretanto, a glorificar, em si mesmo, o trabalho que transforma a matéria. 9 Cusanus-Texte, I: Predigten, 1/5, Vier Predigten im Geiste Eckharts, ed. Koch, Heidelberg, 1937, p.94 sq. 10 O quarto livro do Idiota (Dialogus de staticis experimentis, 1450) já marcava de forma precisa o interesse do cardeal pelo desenvolvimento de uma ciência fundada nas matemáticas e orientada para a invençào de ferramentas práticas da observação e do progresso material. 11 O sonho do Cusano é a uniftcação moral e religiosa da humanidade graças à doutrina do Cristo como homo maximus. A Encarnação, cuja exigência crê reconhecer em todos os filósofos, fornece, para ele, seu pleno sentido ao esforço coletivo da humanidade rumo ao progresso do saber científico, da técnica da conquista, da concordia catho/ica e da pax (idei. Karl Jaspers destaca o "fracasso" daquilo que nós mesmos denominamos, em outro texto, as "semi-utopias", mas vê nesse próprio fracasso a "marca" de um êxito, o signo metafísico de um lúcido apelo à liberdade humana (Nikolaus Cusanus, Munique, 1964).

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UI. INTRODUÇÃO AO "RENASCIMENTO" DO SÉCULO XW

Baseada em quadros tradicionais e prisioneira de classificações escolares, a visão histórica comum reserva o termo "Renascimento" a mais ou menos dois séculos (grosso modo os séculos XV e XVI), nos quais se manifestou, na Europa ocidental, uma "ruptura" mais ou menos decisiva com as "trevas medievais". Ocorre, sem dúvida, que se remonte o início desse período a uma época um pouco anterior, mas quando se anexa a esse período, por exemplo, sobretudo na Itália, uma boa parte do Trecento, enaltecendo-se especialmente Petrarca e Bocaccio por terem ilustrado (após Dante, mas com um espírito novo) o volgare da T oscana, é em geral para que se atribuam então a esses "precursores" (e, em pintura, remontamos naturalmente a Giotto) traços que, conscientemente ou não, "anunciariam" uma nova era mais seguramente do que a via moderna dos últimos escolásticos, ainda entravados, pensa-se, em um formalismo lógico exagerado e em uma excessiva veneração à autoridade do "Mestre daqueles que sabem" (mas o que dizer então do aristotelismo dos averroístas de Pádua?). Naquele tipo de anexação deixa-se às vezes de fazer jus aos alemães como Eckhart e Tauler e ao francês Oresme pois, também eles, desde o século XIV, utilizaram arrojadamente seu idioma materno para traduzir noções abstratas reservadas até então à língua culta, não sem voltar, pelo menos no que concerne ao chanceler de Carlos V, um olhar bastante audacioso às matemáticas e a uma cosmologia por vários motivos "modernas". Alguns, para quem Rinascimento significa antes de tudo Umanesimo (termos que os historiadores ultramontanos tendem entretanto a dissociar), recuam ainda mais na localização dos primórdios do "humanismo" (termo deveras equívoco, visto que designa simultaneamente um determinado lugar atribuído ao homem no mundo e um certo tipo de cultura clássica). Constatando o gosto de tais autores do século XII por um latim mais ciceroniano e sua freqüente referência a modelos antigos (à sua Heloísa, obrigada a se tornar freira após a mutilação de seu amante, Abelardotodavia mais preocupado com uma sólida dialética do que com elegância lingüística - atribui, não sem verossimilhança, a recitação, em plena igreja, .. Redação sensivelmente modificada de uma Introdução apresentada no Centre Culturel International de Cerisy, na abertura de um Colóquio ocorrido em 1965 (texto posteriormente publicado em Entretiens sur la "Renaissance" du XII siecle, Éditions Mouton, La Haye-Paris, 1968). Gêneses da Modernidade

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de dois versos tomados da Farsália). Outros vêem naturalmente em um João de Salisbury, senão o herdeiro do mundo greco-latino (como já foi dito de Dante, tipicamente medieval e "anunciador" às vezes de uma modernidade), ao menos o ancestral, ainda tímido, de Erasmo e de Budé. Evidentemente, ninguém pensa em negar ou em subestimar as características propriamente medievais do século XII, por vários motivos "auge" brilhante de um período que se tem muito freqüentemente a tendência a só fazer culminar na época da síntese tomista e das catedrais góticas. É certo que os trovadores e os trave iras, os autores de romances, os imitadores de Virgílio e de Ovídio (mas primeiro de Boécio) que criaram ou renovaram gêneros e estilos literários, tampouco os arquitetos, os escultores, os pintores de afrescos que - em continuidade com a arte romano-bizantina - transformaram pouco a pouco uma herança jamais renegada, ou mesmo os filósofos e teólogos que, com temperamentos diversos, repensaram o tesouro que haviam recebido da Antigüidade latina, pagã ou patrística, foram por isso, com três séculos de antecedência, os antecipa dores do período - de contornos tão indeterminados que devia suceder ao "crepúsculo" ou ao "outono" medieval, com seus traços bastante característicos: entusiasmo com as grandes descobertas filológicas e cosmológicas, viagens ao redor do globo, desenvolvimento da imprensa, fragmentação da cristandade ocidental, tentações panpsíquicas e panteístas. Com essa restrição fundamental, tornou-se banal atualmente usar a palavra "renascimento" (com ou sem maiúscula) para designar primeiramente os tempos carolíngios, mas também, e mais ainda, os decênios particularmente fecundos que viram prosperar, de Anselmo de Aosta, de Bec e de Cantuária, a Alain de Lille, de Monptpellier e de Paris, o mais ousado esforço de especulação acerca dos fundamentos da fé, e que correspondem às mais belas realizações da arte romana. Já em 1927, Haskins dava a uma grande obra de síntese o nome de The Renaissance af the Twelfth Century, título retomado cinco anos mais tarde pelos quebequenses Paré, Brunet e Tremblay para seu remanejamento de uma obra de Robert sobre as "escolas e o ensino da teologia no início do século XII", transformada, em 1933, em O Renascimento do século XII. As Escolas e o Ensino. Ao preferirem esse título, os autores pensavam seguramente em duas marcas características de todo revival em qualquer época em que este se produza: progresso patente após um período de estagnação ou de decadência, mas também retorno consciente e voluntário às fontes antecedentes de um saber mais autêntico, traço essencial porque distingue nitidamente o Rinascimento ticiniano das certezas triunfantes da época cartesiana e do século das Luzes, que valorizavam as certezas do homem adulto mais do que os ' balbucios da infância ou as quimeras da adolescência.

Destinando suas maiores condenações à "noite" medieval e ao "psitacismo" escolástico, a "modernidade" principiante rejeita, como perecida, grande parte da herança antiga; do Discurso do método ao Discurso preliminar à Enciclopédia de Diderot e d' Alernbert, encontramos a mesma subestimação das origens, a mesma confiança no presente grávida de um imenso futuro. Ao contrário, pelo menos se acreditarmos em um dos mestres da célebre escola chartriana, os homens mais lúcidos do século XII latino, ainda que - sobre os ombros dos Antigos, como os Evangelistas sobre os dos Apóstolos (segundo a imagem de um célebre vitral) - fossem persuadidos a enxergar mais longe do que seus predecessores, consideravam-se "anões" que assumiam, de forma modesta, a sucessão de autênticos "gigantes". Na lista de "inventores" de artes liberais e "mecânicas" (realizada por Isidoro de Sevilha), encontramos em todos os autores medievais de enciclopédias, didascálias, livros de excertos, tesouros ou espelhos os mesmos personagens misteriosos que Marsilio Ficino evocará como "autoridades" maiores para sua própria Teologia: Moisés, Orfeu, Hermes, Pitágoras, Platão. Um outro traço aproxima esse "Renascimento" daqueles dos séculos XV e XVI; trata-se, sem dúvida alguma, em ambos os casos, de "transições". Todos os períodos, em graus diversos, é verdade, merecem ser assim definidos, e, particularmente, essa media tempestas que Andrea de Bussi evoca em 1469, em seu elogio fúnebre ao cardeal de Cusa, dizendo que esse grande homem tinha lido, não apenas os livros dos Antigos e dos Modernos, mas os de todo o período "intermediário". Media tempestas, media aetas, medium aevum; trata-se, efetivamente, de um tempo "mediador", que não é mais a Antigüidade, e que prepara, a seu modo, os tempos "modernos". Nesse longo milênio - que vai de Platina e de Santo Agostinho a Galileu, a Bacon e a Descartes - , as "transições" intermediárias formam, elas mesmas, uma cadeia contínua, mas seria injusto negligenciar seu aspecto singular, e às vezes original, para considerar apenas as fontes e a posteridade. É fácil observar que o século XII, particularmente, tem suas raízes na patrística (ela mesma prolongada e renovada no tempo de Alcuíno e de João Escoto) e anuncia, simultaneamente, a escolástica. Alguns frisam, naturalmente, os aspectos "arcaicos" da escola chartriana, da mística cisterciense ou vitorina; outrOS insistem mais naquilo que prepara o século seguinte: traduções do árabe e do grego, reflexão teológica de Abelardo e de seus discípulos, primeiras realizações da arte ogival. Sem desconsiderar as sobrevivências e os pressentimentos, gostaria antes de destacar a especificidade de um tempo que viu nascer ou morrer tantas verdadeiras novidades e que - em oposição aos "endurecimentos" posteriores, onde denuncia tantos "fechamentos" - Friedrich Heer, no primeiro capítulo de seu Mittelalter (Zurique, 1961; brilhante e por vezes

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discutível síntese), apresenta como sendo aquele da "Europa aberta", cujas fronteiras permanecem obscurecidas e ainda permeáveis, no Leste e no Sul, e onde as regras demasiadamente rígidas não paralisam ainda o impulso místico, a reflexão teológica, ou mesmo a criação artística. Qualquer que seja o respeito aí professado pela tradição, não se vê nela, entretanto, uma verdade pronta, e é isso o que distingue o século XII do século XV. Na base de supostos fundamentos astrológicos, Ficino e seus amigos conceberão seu "renascimento" como uma autêntica palingenesia, como o despertar da Bela Adormecida. Evocarão a imagem da fênix que renasce de suas cinzas. E, se retornam a Plotino, é na medida em que este é platônico. Ensinam uma "teologia platônica \ mas em uma perspectiva na qual Platão é o sucessor de Zoroastro e do Trimegisto. Não se tem nada disso nos "príncipes encantados" dos quais iremos falar: estes possuíam apenas uma vaga sensação de surgirem de uma noite profunda, portadores de uma varinha mágica, para fazerem reviver arquétipos originais. Se veneravam os Antigos, queriam igualmente subir em seus ombros para ampliar sua visão. Mais preocupados com uma bela linguagem do que muitos de seus sucessores, seguem regras tradicionais de grammatica, mas sem excesso de purismo e, na maioria das vezes, sem ostentação de vã erudição. Quer se trate de epopéia ou de poesia lírica, de narrativas romanescas ou de construções arquitetônicas, os modelos antigos os estimulam sem limitar sua potência inventiva. Nesse aspecto, aliás, assemelham-se aos gênios de todos os tempos. Apesar das teorias ficinianas, os artistas florentinos não serão, mais do que os arquitetos do vale do Loire, copistas servis; do românico ao gótico, do flamboyant ao barroco, do jesuítico ao clássico, temse uma permanente novidade, no próprio interior da imitação. E o que é verdadeiro para a arte não o é menos para o pensamento. Mas os homens do século XII escapam sem dúvida melhor do que seus sucessores à obsessão de um tempo cíclico. Durante o frágil reinado do luxemburguês Henrique VII, Alighieri sonhará em se tornar o Virgílio de uma nova era saturnina. Outros desejarão ressuscitar Platão, Aristóteles, Epicuro, Marco Aurélio. Nem João de Salisbury nem Alain de Lille escreveram sua Quarta Écloga; os comentaristas do Timeu não divinizaram o mestre da Academia. Permanece vivo, sem dúvida, ao longo de toda a Idade Média, o tema de uma progressiva decadência; lamenta-se que a Igreja seja menos pura do que antes e o Império menos sólido. É entretanto raro que, na época em que se constroem as grandes catedrais, fique-se hipnotizado pela imagem do passado; a maioria dos espíritos que contam trabalha audaciosamente para seu século, e o próprio São Bernardo, que só reforma para voltar às fontes, prega a Cruzada e prepara o futuro. Do mesmo modo, em sua Civilização do Ocidente Medieval - ainda que ele enfatize, parece, mais naturalmente, as sombras do que as lu38

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zes - Le Goff não se contenta em aplicar ao século XII o termo, agora clássico, de "renascimento". Ele sugere que se estenda, com esse termo, eminentemente, o campo de aplicação a parte ante, e que se marque o início da renovação um pouco depois do Ano Mil, isto é, na própria época que nos fora há pouco descrita como tão sombria, tão cheia de terrores. Se assim o é, poder-se-ia dizer que - ele mesmo preparado, dentre tantos perigos e catástrofes, pelas breves florações de Ravena e de Sevilha, pelo paciente trabalho de alguns mosteiros e particularmente dos claustros irlandeses, e sem deixar de lembrar a sobrevivência de certas tradições romanas nas províncias imperiais onde, os invasores nunca formaram mais do que uma camada bastante insignificante - a preciosa contribuição da época carolíngia se prolongou quase sem descontinuidade até a época de Santo Anselmo. Nesse sentido, é característico que os vikings, ainda que tenham contribuído muito ativamente, como afirma Le Goff, para "clivar" o império de Carlos Magno, tenham sido, eles mesmos, tão rapidamente assimilados. Às vésperas de nosso século XII, no momento em que atravessam o Canal da Mancha, os normandos de" Rolo já se tornaram portadores bem ativos de civilização; se instalaram, desde 1029, na Sicília, e, nessa antiga terra grega, posam de monarcas esclarecidos. Na outra extremidade do mundo ocidental, os magiares, que sucederam os hunos, já se encontram igualmente fixados e amansados. A partir do Ano Mil seu rei Estevão, que havia direcionado seus súditos à obediência romana, recebe do papa sua coroa e se faz reconhecer pelo imperador Oto 11. O século XII é, todavia, ainda apenas um prelúdio. Constata-se, aí, um importante progresso do comércio - provavelmente associado ao desenvolvimento das cidades e das frotas muçulmanas - , preciosas melhorias na técnica agrícola (na verdade a atrelagem mais racional dos animais de tiro e o arado com rodas remontam ao século IX) e um reforço notável da ração alimentar, graças à introdução maciça dos legumes secos (em Lynn White Jr., Medieval Technology and Social Change, OxfordNova Iorque 1962). Mas no plano intelectual e artístico, ainda que se tenha freqüentemente avaliado erroneamente a influência negativa - ou retardadora - de um Pedro Damião, eloqüente adversário de todo saber profano (a aritmética e a dialética lhe pareciam igualmente diabólicas), é apenas com o Proslogion de Anselmo, contemporâneo das primeiras grandes abaciais romanas, que se afirma plenamente o "Renascimento". Em seu prefácio ao livro de Paré-Brunet-Tremblay, o Padre Chenu define - com referência a um sonho que só faz consolidar a contribuição das gerações precedentes e permitir toda sua expansão - um método de abordagem cuja inspiração localiza em Focillon, tomando do grande historiador da arte algumas fórmulas retiradas do tomo VIII da obra coletiva - um tanto ultrapassada atualmente - publicada em 1933 com o tÍGêneses da Modernidade

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tulo de A civilização ocidental na Idade Média. Privilegiando, bem entendido, "as pedras das igrejas" (que ele conhecia melhor do que ninguém) como "meios de encontrar, ainda presente e de pé, entre nós", "o homem da Idade Média, definido por um sistema social e por uma atividade intelectual" (fórmula um pouco simplificadora, que gostaríamos de corrigir, pelo menos substituindo aqui os singulares pelos plurais), após ter lembrado a íntima união, por um lado, entre "o arquiteto, o iluminador de estampas, e o pintor" e, por outro, "o filósofo e o poeta" (seria necessário acrescentar "o teólogo e o místico", mas também "o homem de ação"), Focillon concluía evocando - eis, com efeito, o funclamental- "essa potência de coesão entre as diversas ordens da investigação e da invenção" que é "a marca das grandes épocas". Mas o perigo é o de querer definir formas rígidas de unidade aí onde a "coesão" permanece suficientemente maleável para dar lugar a um grande número de diversidades. Falando do "corte vertical" que, segundo Robert, Paré, Brunet e Tremblay, desejou-se efetuar nos primeiros anos do século XII, o padre Chenu define, com propriedade, que não se trata de "lance teatral" nem de "começo absoluto", mas, antes, de um "tipo de nó" em uma "imensa curva". Diríamos, entretanto, que essa curva é "a reconquista do capital da civilização antiga"? Sem desconsiderar essa perspectiva, parece-nos que a contribuição de nosso "renascimento" é superior. Chenu toma de L.]. Paetow, autor de um Cuide to the Study af Medieval History (Nova Iorque, 1931), uma lista - incompleta, é verdade, mas já bastante significativa - de traços que anunciam o que o autor denomina enfaticamente "uma nova era": decadência da nobreza feudal e primeiro esboço de monarquias nacionais, reforma monástica, ressurgimento do dualismo maniqueu, movimento das cruzadas, depuração do latim, interesse pelo árabe e pelo grego, retorno ao direito romano, novo impulso da ciência médica, "sistematização da filosofia e da teologia", desenvolvimento das escolas, primeiro esboço daquilo que virão a ser as universidades, progresso das línguas e das literaturas "nacionais", expansão da arte romana e nascimento da arquitetura ogiva!. Como se vê, dentre todos esses fenômenos históricos, apenas dois ou três resultam propriamente da "reconquista do capital". Renascimento significa, aqui, menos retorno às origens do que revivescência de um poder de invenção e de adaptação. Em seu livro de 1933, Paré, Brunet e Tremblay esboçavam um uso bastante revolucionário das explicações de tipo econômico e sociológico. Insistiam especialmente na passagem das escolas monásticas às escolas urbanas. Seu esquema, naturalmente, é menos rígido do que o de Mme. Sidorowa, soviética de uma ortodoxia impecável que, em seu Prefácio à tradução russa de História calamitatum mearum, de Abelardo, acompanhada por algumas citações do Diálogo entre o filósofo, o judeu e o cristão, e 40

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do Prólogo do Sic et non (Moscou, 1959), buscava explicar todos os conflitos do século XII ocidental pelo antagonismo entre um conservantismo "feudal" (aqui simbolizado por São Bernardo) e o "progressismo" da nova burguesia urbana (cujo porta-voz seria Abelardo, proveniente, entretanto, de pequena nobreza provincial e que só foi verdadeiramente feliz na sua região de Paracleto). Os historiadores do século XIX deram provavelmente muita importância às cartas comunais, que foram, em muitos casos, os meios de limitar a liberdade das cidades; e não esqueçamos que muitas bastidas são criações autoritárias. Mais essenciais, provavelmente, são o desenvolvimento do grande comércio e determinados progressos tecnológicos. Não se deve, porém, exagerar sua influência imediata (ponto que será retomado mais adiante). Mesmo se esses fatores efetivamente operaram, seriam necessárias ainda muitas pesquisas para que permitissem esclarecer a genialidade de um Gilberto Porretano, de um João de Salisbury, de um Chrétien de Troyes. É mais importante confrontar estudos precisos de textos e de documentos biográficos do que chegar a definições sintéticas. Será pouco a pouco que se destacarão as visões de conjunto. A visão de Paré, Brunet e Tremblay parece restringir a importância dos cistercienses e dos canonicatos regulares de São Vítor. Seu enfoque permanece, por outro lado, singularmente galocêntrico. O renascimento que valorizam situa-se, sobretudo, no quadrilátero Orléans-Melun-LaonChartres, isto é, no domínio dos bispos capetíngios que ajudaram Suger a construir Saint-Denis. Qualquer que tenha sido a atração desse quadrilátero para os bretões - como Abelardo e Roberto de Arbissel - , ingleses _ como Adão Parvipontano e Ricardo de São Vítor - , italianos - como Pedro Lombardo - , saxões - como Hugo de São Vítor - , flamengoscomo Alain de Lille - , parece no mínimo exagerado atribuir à Paris do século XII um papel comparável ao que desempenhará Florença no século XV. Será apenas mais tarde, com o desenvolvimento da monarquia capetíngia e os privilégios concedidos à Universidade, que Paris será verdadeiramente o centro da cristandade ocidental, mas em sentido inteiramente diferente do da cidade dos Médicis. Não apenas os autores do Renascimento do século XII subestimam um pouco a influência das abadias antigas e de certas cortes principescas, comO seu propósito particular os induz a negligenciar a Aquitânia, e o Languedoc, a Itália, o Santo Império (e a Escandinávia, onde irá nascer a escola dos grammatici speculativi), mas igualmente o domínio anglo-normando. Tantas lacunas que os Entretiens de Cerisy preencherão apenas parcialmente, por não tratarem, com toda a seriedade que merecem, o movimento cátaro e o erotismo provençal, e por não cuidarem igualmente das Cruzadas e das relações do mundo cristão com o judaísmo e com o Islã.

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Os autores do Renascimento do século XII insistem, como foi dito, na emancipação das classes rurais; frisam de forma bastante romântica (e percebe-se a influência de Michelet) o papel "criador" do povo. Trabalhos recentes, especialmente os de GimpeI, mostram que as catedrais não surgiram de um entusiasmo religioso (e tampouco da transmissão de fórmulas esotéricas nas "celas" de iniciados). Sua edificação lembra muito a que temos agora: levantamento de capitais, escolha de um mestre de obras, recrutamento de operários qualificados (disputados de um país a Outro e freqüentemente muito bem pagos), campanhas interrompidas pela falta de dinheiro, pelo desaparecimento do príncipe ou do bispo que foi o instigador de todo o empreendimento, por todos os tipos de catástrofes sociais ou naturais. Mas pouco importam esses detalhes; o essencial é corrigir um pouco as páginas nas quais, sob a inspiração de Luchaire, os três dominicanos de Ottawa enfatizam o "apetite de cultura" desse "povo" cuja "emergência social" eles afirmam sem apresentar provas mais concretas (p.53). É essencial também restringir a importância atribuída às corporações que são, de fato, em seu pleno desenvolvimento histórico, um fenômeno sensivelmente mais tardio. Assim, estabelecidas essas premissas, quase já não se trata mais do povo, mas sim de escolas, de instrumentos de trabalho de uma classe bastante determinada - a dos clérigos, regulares, e, sobretudo, seculares. O objeto do livro não era a poesia, o romance, a arquitetura ou a iluminura, ou mesmo propriamente o conteúdo teológico das obras nascidas nas escolas ou às margens destas. Com efeito, o que está por trás do pensamento de nossos três autores é a idéia de que todo o "renascimento" que descrevem já se orienta, há muito, para o auge que será, no século seguinte, a síntese tomista. É nessa perspectiva, creio, que se deve entender o que eles dizem acerca do retorno aos Antigos (a mais fecunda redescoberta sendo, finalmente, a de Aristóteles) e acerca da confiança conferida ao raciocínio dialético na elaboração do fundamento da fé. Eles destacam, entretanto, um "equilíbrio intelectual" e uma "saúde religiosa", ligadas a uma "alegre expansão de vida" (p.312) que são efetivamente fenômenos próprios do século XII (posto que não se incorra no erro de se ater a uma imagem demasiadamente elogiosa de um tempo que também teve suas fraquezas). Os modos de expressão e o estilo da investigação são certamente mais "livres" e - como diz Heer - mais "abertos" do que no século seguinte (mas a contrapartida é uma ausência evidente de rigor e a tendência, às vezes, ao ecletismo). Aí onde prevalece sem dúvida alguma o positivo, tem-se o domínio dessas "belas-letras", em breve condenadas a um verdadeiro "exílio". Os doutores do século XIII, e sobretudo do XIV, escreverão uma língua técnica, cada vez mais bárbara. Mesmo o latim de Santo Tomás, tão sóbrio e tão preciso, já é bem menos literário do que o de São Bernardo. No século XII, o corte entre a literatura profa42

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na, a preocupação artística e a exposição das idéias filosóficas ou religiosas é menos marcante. Dom Leclerq considera o rígido cisterciense Bernardo de Claraval como testemunho do "renascimento das letras". Os poemas de João de Salisbury e de Alain de Lille, os diálogos de Abelardo, certos sermões dos vitorinos são verdadeiras obras de arte, e, ao mesmo tempo, exposições teológicas. Não parece, entretanto, que esse período tenha conhecido uma verdadeira unidade cultural; os romances e os poemas de amor não se dirigem ao mesmo público que o Livro das Sentenças, e é provável que os canonistas e os médicos só se preocupem secundariamente com o belo estilo. É de se lamentar, contudo, que os autores do Renascimento do século XII, após terem retomado o tema de uma espécie de "emergência", de movimento criador surgido das profundezas populares, tenham depois negligenciado um pouco um traço muito mais evidente: a coesão relativa entre diversos tipos de expressão estética e de atividade cultural. Durante uma conferência em nosso Centro de Pesquisas Comparativas acerca do Pensamento da Idade Média, Jacques Le Goff distinguia, em face de um fenômeno de cultura, três atitudes possíveis: ou considerálo de fora, com um distanciamento total - o que é quase impraticável e completamente estéril-, ou situá-lo em seu ambiente histórico - o que, com certeza, é melhor, mas ainda demasiadamente exterior - , ou tentar, enfim, explicá-lo como parte de um todo global. Tudo, se ouso dizer, deve ser entendido a partir do que significa essa noção, cômoda mas um pouco arbitrária, de "todo". O próprio Le Goff, a esse respeito, é bastante prudente, e as opiniões que nos apresentou continuam, parece-nos, um tanto negativas demais. Ele deseja antes de tudo (e quem não o aprovaria?) que não se privilegie uma escola como a de Chartres porque esta teve, sem dúvida, alguns scholars mais brilhantes do que as outras. Mesmo no quadro capetíngio, Reims ou Laon são também interessantes, pois espíritos mais medíocres podem ser representativos de um tempo, ao passo que os gênios o são menos (e Chartres, em particular, é a cidadela de um platonismo ainda carolíngio). O segundo erro seria o de aumentar o papel das contribuições gregas e árabes, sem dúvida importantes, mas que só adquirem todo seu sentido pela própria necessidade à qual respondem, o empréstimo sendo menos essencial do que o uso que dele se faz. O retorno às fontes é, por vezes, apenas uma máscara ou um álibi. A observação vale também, naturalmente, para o aristotelismo averroísta dos séculos posteriores, para a conseqüente fama de Platão, de Epicuro ou de Marco Aurélio, e para certos aspectos do classicismo. Terceiro erro, ou exagero, que já assinalamos, e que Le Goff denuncia muito apropriadamente: a ilusão de um marxismo simplificado que desejaria encontrar, com a emancipação das comunas, o aparecimento de uma verdadeira burguesia, já consciente de seu papel histórico de "classe Gêneses da Modernidade

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em ascensão", decididamente "racionalista" e virtualmente "revolucionária". Tolerável (a rigor) em tal escritor contemporâneo que imagina Heloísa explicando sua alienação aos operários que constroem Notre-Dame, enquanto Abelardo conversa como "filósofo" esclarecido com o irmão do rei (grande senhor libertino), essa forma - mesmo atenuada - de anacronismo antecipatório pouco esclarece os autênticos antagonismos sociais do século XII. Sem dúvida, para além da tripartição oratores-belllatores/aboratores (grosso modo: clérigos, cavaleiros, camponeses), velho esquema que, através da divisão platônica da alma, remonta talvez às estruturas arcaicas da sociedade "indo-européia", mas que só se aplica muito aproximativamente à nossa Idade Média, é preciso considerar, como nos convida nosso amigo Mollat (cujas preciosas pesquisas explicam as revoltas rurais, o movimento valdense e a aventura franciscana), a imensa massa de miseráveis, marginais que vivem de esmolas e de roubos. É indiscutÍvel, contudo, que entre a aristocracia dos proprietários de bens de raiz e os agricultores de condição ainda servil tenha se desenvolvido, além da categoria não desprezível dos "trabalhadores" e de outros "rendeiros" livres, uma nova camada social, em sua grande maioria urbana, mas apresentando uma homogeneidade bastante relativa: administradores de bens, funcionários imperiais ou reais (que em pouco tempo formarão uma nova nobreza), chefes de pequenas empresas artesanais, grandes comerciantes, sobretudo especializados na importação de produtos de luxo, etc. Mas essa classe em ascensão está ainda longe de ser "reconhecida" (no sentido hegeliano do termo). O antigo desprezo da crematística continua sendo a ideologia dominante. É verdade que, em seu Didascalicon, Hugo de São Vítor fala das "artes mecânicas" como remédios providenciais à miséria humana e, ao tratar da navigatio, frisa o valor das trocas que tornam, diz ele, "comum" o que era "privado", mas é ainda mais sensível aos benefícios das viagens que tornam os homens familiares uns aos outros e favorecem a paz. Ele não faz alusão, bem entendido, ao enriquecimento do importador nem ao sistema bancário que irá se esboçar assim que se saia um pouco mais do sistema fechado de uma economia de pura subsistência. Será necessário ainda muito tempo para que se distinga a investida da usura, e para que a sociedade por comandita, cujo papel prático desempenhado, muito cedo, na colonização dos territórios do Leste, nos grandes arroteamentos e no nascimento de novas cidades, Duby tão bem demonstrou, encontre seu eco na moral teórica e se reflita nas obras culturais. Assim, para falar a linguagem econômica, o "acúmulo" permanece bastante limitado ao século XII. Mesmo "livre", o agricultor é, na maioria das vezes, esmagado sob o peso dos foros (enorme renda de propriedades do grande proprietário, leigo ou eclesiástico); o pequeno senhor se endivida imitando a vida suntuosa de seu suserano; a própria Igreja des44

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pende em construções de prestígio, em obras de arte, uma grande parte do "tesouro dos pobres", e o resto é simplesmente -"distribuído" aos miseráveis sem contrapartida produtiva. Como o resto do mundo - mas de modo tanto mais grave porque precisamente o período em questão conheceu um imenso crescimento demográfico - , todo o Ocidente latino, apesar das belas aparências, é subequipado, "subdesenvolvido", constantemente ameaçado pela fome, afligido pelo subemprego e pela subprodução. Mas é ainda difícil, a partir de análises - cujo excelente resumo encontramoS no capítulo VII de A civilização da Idade Média - tirar conclusões suficientemente esclarecedoras no que concerne tanto à estrutura quanto ao conteúdo das obras e das doutrinas. Em contrapartida, e com todas as reservas quanto a um vocabulário um tanto anacrônico, pode-se desde já destacar alguns elementos significativos do estudo de Le Goff sobre Os Intelectuais na Idade Média (Paris, 1957). A nova c/asse social, que é aqui definida como um tipo de "intelligentsia" medieval, busca, sem dúvida, seu lugar. Ela se coloca freqüentemente a serviço dos "poderosos", únicos que podem alimentá-la; ao mesmo tempo que zomba naturalmente do povo, despreza os ""burgueses", acusados de avaritia. E se define, contudo, como Abelardo, pela necessidade que se impõe a ela de "trabalhar" - não com suas mãos mas através do espírito. Proveniente de diversos meios, essa nova classe social é recrutada em parte nas massas, que ascendem, assim, pelo saber, a um nível social superior. Parece, sobretudo (simplificando bastante as coisas), que ela desempenha um papel essencial na promoção desses valores de "subjetividade" (que Maritain, em Humanismo integral, definia um tanto apressadamente como estranhos à Idade Média). Le Goff sem dúvida não está equivocado ao associar esse fenômeno (ainda que tenha fontes agostinianas fundamentais) à própria evolução da estrutura social. A teoria abelardiana da intenção como fonte única do mérito ou da culpabilidade, inquietante na medida em que parece inocentar os judeus tão comumente acusados de "deicidas" e, mais geralmente, de carrascos do Cristo e dos mártires, terá lugar nos Manuais de confessores apenas tardia e dificultosa mente. Com certeza se relaciona com uma valorização nova do indivíduo, bastante sensível nas cartas de Heloísa, mas também na vida de certas personalidades fortes, especialmente femininas, como Eleonora de Aquitânia. A teoria foi vinculada ao primeiro nominalismo, à curiosidade pelo singular (que Crombie destaca em sua Histoire des sciences de saint Augustin à Galilée, Londres, 1952). É no século seguinte que a "profissão" de docente começará a ser verdadeiramente reconhecida como tal (parece que Abelardo, que vivia dos cursos que administrava, é ainda uma exceção), que o trabalho intelectual encontrará seu verdadeiro lugar em uma sociedade de "estados" e não mais de "ordens", que uma Gêneses da Modernidade

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cadeira de professor em uma universidade de grande cidade não será mais indigna de um monge e nem mesmo produzirá o mesmo efeito de escândalo aos olhos daqueles que, corno São Bernardo, não queriam conhecer outra escola a não ser a scho/a caritatis do convento cisterciense, longe das "Babilônias" urbanas. Mas o movimento se inicia no século XII e não COncerne exclusivamente aos clérigos propriamente ditos. O antigo jogral ambulante está em vias de se tornar um escritor por assim dizer "profissional", corno o construtor ou o decorador. O poeta da Corte está longe, todavia, de conhecer uma verdadeira independência e, da "boêmia" dos goliardos ao Sobrinho de Rameau, e ao fauno de Saint-Germain-des-Prés, a tradição de intelectuais famélicos, oscilando entre a servidão e o anarquismo, se manterá através dos séculos.

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IV. A "QUESTÃO DISPUTADA" DA "FILOSOFIA CRISTÃ'''>

Etienne Gilson deixou-nos apenas alguns meses antes de que um pequeno grupo de especialistas - na maioria seus alunos e amigos - pudesse celebrar o nono centenário de Abelardo. Nessas sessões de trabalho e nessas festividades, esteve sempre presente a lembrança do mestre que tão bem falou de Heloísa e de seu amigo Pedro - amante, esposo, guia espiritual-, que desejava que amássemos a Deus como ele próprio o havia amado, pobre criatura, como o amou até o fim a sobrinha de Fulbert, a mãe de Astralabe, a abadessa do Paracleto. Mas o signatário dessas linhas tem ainda outras razões para associar Etienne Gilson ao "peripatético do Pallet". Se devemos a ele, antes de tudo, o fato de nos ter iniciado, desde 1925, em um domínio de pesquisas que parecia então, rue d'Ulm e rue de la Sorbonne, um pouco marginal, senão completamente insólito, e de nos ter em seguida indicado certas figuras e períodos de transição como campo de estudos particularmente férteis, não nos esqueçamos de que, quando Fernand Aubier desejou publicar textos escolhidos de Abelardo, Gilson nos orientou em nossa seleção, frisando particularmente a importância do Dialogus inter Philosophum, fudaeum et Christianum, obra inacabada e entretanto significativa quanto ao problema tão disputado da "filosofia cristã" porque nesta se vê, de algum modo, um cristão incontestável dialogar consigo mesmo, consciente das fontes e raízes hebraicas de sua fé e que ao mesmo tempo se quer, até o fim, verdadeiro filósofo. Assim, para Abelardo como para tantos outros (pelo menos desde o tempo de São justino, tão freqüentemente evocado por Gilson) - mas talvez em um modo mais dramático para o autor do Diálogo (se imagina-mos todos os tipos de suspeitas e censuras que essa espécie de dupla obediência lhe valeu), a questão vitalmente levantada, bem diferente de um simples debate acadêmico, estava bastante próxima, pelo menos à primeira vista, daquela que, por meio século, iria ocupar por algumas temporadas uma (pequena) parte do mundo dos professores, sem a caixa de ressonância dos mass media que repercutem hoje em dia o "ruído" da mais derrisória polêmica em "praças públicas" dificilmente comparáveis àquelas nas quais, segundo a Escritura (Prov. I, 20) se erguia, na época de Salomão, a voz da sabedoria. * Originariamente publicado em Les Études philosophiques, 1980, n.1, p.1-2I.

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Sob a aparência de cortesia polida ou às vezes apaixonada, o debate concernente à própria noção - e à realidade histórica - de uma autêntica "filosofia cristã" foi muito mais animado do que se teria imaginado. Competidor intrépido, Gilson possuía as armas ofensivas e defensivas em várias frentes. Alguns adversários, eles mesmos por vezes divididos quanto aos limites do racionalismo (admitindo ou recusando, por exemplo, Plotino ou Schelling como autênticos "filósofos"), defendiam a pureza de uma disciplina que, tanto em moral quanto em epistemologia, deveria continuar isenta de qualquer contaminação religiosa. Outros, às vezes os mesmos, invocavam a história, recusando-se a descobrir nesta algo que se parecesse com o círculo quadrado de uma verdadeira filosofia merecedora do epíteto de "cristã"; sob esse rótulo falacioso, viam apenas, diziam, fragmentos de platonismo, de aristotelismo, de estoicismo, mesclados e costurados de forma artificial a mitos e a ritos que não decorriam, por sua vez, de nenhum tratamento racional. Vindos de um extremo bem diferente, os defensores da "neo-escoIástica", certamente sem negar a harmonização final entre razão e fé, defendiam a autonomia e o rigor próprio daquilo que consideravam uma philosophia perennis, podendo servir, bem entendido, de auxiliar à apologética e à teologia, mas possuindo em si mesma, de maneira universal, seu pleno valor demonstrativo e uma espécie de suficiência. Entre os reticentes é preciso também mencionar a coorte pouco homogênea dos defensores da pureza evangélica. Por desconfiarem de qualquer filosofia pagã, estes opunham, em termos às vezes simplistas, o "realismo cristão" ao "idealismo grego", censurando, não sem irritação (e de forma freqüentemente injusta) os tomistas medievais e modernos por preferirem ao Deus-Pessoa, que ama e salva suas criaturas, o Ato puro de Aristóteles, motor indiferente de ilusórias esferas cristalinas - ao passo que outros (que não intervieram no debate instituído em torno das teses gilsonianas, mas que foram por vezes visados através de Karl Barth) opunham dramaticamente o salto existencial na fé às dialetizações hegelizantes. A dificuldade se deve, por um lado, à polissem ia da palavra "filosofia". Opondo-a à "filomitia" (simples etapa na via que leva a uma busca racional da sabedoria), Aristóteles duvidava que alcançar que é "o melhor na natureza inteira" fosse tarefa propriamente "humana" (Metafísica A2, 982 b 7-28). Ora, é a esse áriston que corresponde, no último texto de Abelardo, o summum bonum (definido em termos ciceronianos) que o Philosophus coloca como objetivo último de sua investigação. Não é, portanto, surpreendente que o defensor da Lex naturalis não se furte a completar suas certezas racionais aderindo a uma Lei revelada. Se o autor, de acordo com sua intenção, enfatiza a moral mais do que a teoria, ele alcança, de fato,

as posições da Ética a Nicômaco IX, 7-8, 11 77 b 29-1178 a23) quanto ao caráter "mais do que humano" de uma virtude perfeita. Se o autor tivesse podido levar a termo essa última obra (talvez imaginada antes da condenação de Sens, mas realizada, muito provavelmente, em seu retiro de Cluny), teria sem dúvida advogado a lex naturalis, encontrando no cristianismo simultaneamente a realização das promessas do Antigo Testamento (às quais ele mesmo se associa, lateralmente, através de seu ancestral Ismael) e o meio de atribuir pleno valor e eficácia às mais Íntimas exigências de sua razão natural. Sem que se possa afirmar que Abelardo tenha qualificado de "cristã" uma "filosofia" assim firmada ou coroada por uma adesão à fé, a relação entre os dois domínios pareceria bastante clara se Pedro o Venerável, compondo, por ocasião da morte do amigo e protegido, o seu epitáfio, não usasse fórmulas que não somente parecem sugerir um verdadeiro corte entre sabedoria profana e autêntica vida religiosa, como operam também um tipo de derivado semântico. Ele começa, com efeito, por celebrar a vis rationis do dialético e sua ars loquendi, mas, após tê-la apresentado como uma reencarnação conjunta de Sócrates, de Platão e de Aristóteles, reserva a palavra philosophia para designar exclusiyamente a última etapa de sua vida, sua profissão e seus hábitos de monge beneditino na pax clunisiana, após uma "vitória" sobre a sabedoria deste mundo e uma "passagem" a um estado superior. Um uso semelhante do termo "filosofia" é bem antigo e o encontramos, no Dialogus, justaposto àquele que opõe aos fiéis das Leis reveladas o defensor da lex naturalis. Seria absurdo, portanto, atribuir ao Venerável uma atitude como a de um São Pedro Damião, que rejeitava, tomando-as por quase demoníacas, a lógica, a gramática e a aritmética. Nem para o abade de Cluny nem, menos ainda, bem entendido, para Abelardo mesmo tendo "passado" à Christi vera philosophia, isto é, vivendo segundo a disciplina do claustro - se poderia tratar de renunciar ao exercício da dialética, outrora justificada por Agostinho. Quando Abelardo, justamente no período em que compõe seu diálogo, declara que recusa o título de "filósofo", se for necessário sê-lo para usá-lo, em desacordo com São Paulo, e quando se recusa a "ser Aristóteles" se o preço a pagar for o de "se separar do Cristo" (Confessio fidei), é certo que desacordo e separação permanecem, nesse caso, puramente hipotéticos. Se ele marca aqui, talvez melhor do que em outros textos, o primado de uma fé entendida no sentido paulíneo, está longe de reduzir a "verdadeira filosofia do Cristo" aos exercícios de devoção. Na verdade, uma vez que o crente ultrapassa a atitude denunciada (desde o começo do Dialogus) pelo judeu - a adesão da criança a tudo o que lhe ensinam aqueles que a cercam e que ela ama, e, no caso, como escolher legitimamente entre as diversas religiões dentre as quais cada uma pretende ser a única verdadeira? - , só um esforço da ra-

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zão permite julgar sobre quais testemunhos se funda uma fé refletida, e, em seguida, ordená-la em sistema teológico. Sem que tivesse plena consciência disso, a idéia que Abelardo faz da "filosofia" baseada apenas na razão é profundamente marcada pela certeza de uma harmonia virtual com a sua própria fé. E certamente partilha essa convicção com muitos outros cristãos. Gilson entretanto pensa que, nesse sentido, ele foi mais longe do que a maioria. O prefácio que lhe consagra em sua Philosophie au Moyen Age 1 insinua que, para o "peripatético do Pallet", a "razão dos filósofos" parecia "semelhante demais" à sua crença de cristão, para que esta, por sua vez, não parecesse "semelhante demais à razão dos filósofos". Foi efetivamente o que pensaram São Bernardo e Guilherme de Saint-Thierry, inquietos ao ouvirem tais discípulos do mestre pretenderem que após ter escutado suas lições nada restava de obscuro quanto aos mistérios da fé. Mas isso significava equivocar-se acerca do propósito confessado (e provavelmente sincero) de um teólogo que não confunde os planos e recusa-se somente a opô-los, convencido de que razão e revelação provêm do mesmo Lagos. Se determinadas fórmulas, nas sucessivas Teologias de Abelardo; puderam sugerir a intenção - explicitamente agostiniana - de encontrar nos platônicos um pouco mais do que o pressentimento do dogma trinitário, as claras precisões da Dialectica 2 indicam que ele compreendeu as dificuldades de qualquer aproximação verdadeira entre a terceira hipóstase plotiniana, voltada para o tempo e a produção do cosmos, e, por outro lado, o Espírito Santo, sem dúvida consolador dos homens (patrono, por esse motivo, do Paracleto de Champanha), mas igual ao Pai e ao Filho e vínculo de amor entre eles. A esse respeito, no Dialogus, é ainda mais significativa a determinação dos princípios comuns aceitos pelos três interlocutores (incluindo-se aí o Judaeus que, indignado em passar por fideísta, encontra na história antiga e recente de seu infeliz povo motivos para denunciar o fanatismo engendrado por toda crença que se afirma como exclusiva verdade sem sólidos fundamentos de credibilidade). Esses pressupostos não dão nenhum espaço à Trindade como tal, nem à Encarnação propriamente dita e ao sacrifício redentor da Cruz, isto é, ao que concerne especificamente à revelação. Parece então que estamos aqui bastante próximos das posições tomistas. Mas o Dialogus ficou inacabado; deve-se então ser prudente, e Gilson pode se apoiar em textos anteriores para esclarecer as diferenças que poderiam constituir um pouco mais do que nuances, e que, de qualquer modo, não deixam de ter importância, para o problema da "filosofia cristã". A partir de tais passagens das Teologias e das Cartas, ele lembra que Abelardo, jogando um pouco com as palavras, designa às vezes como "filósofo" ("amigo da sabedoria") alguém que (a não ser na prática) segue os preceitos, até

mesmo os conselhos evangélicos, fiel assim ao ensinamento do Cristo, que, como Filho de Deus, é identificado à própria sabedoria. E Gilson enfatiza, sobretudo na Theologia christiana, uma dupla e concomitante extensão dos dois termos, o substantivo "filosofia" e o adjetivo "cristã". Na verdade, uma vez que tal "gentio" reconheça plenamente os requisitos da lei natural, Abelardo sugere que ele é pagão apenas "de nação", não "de fé". Por essa referência a uma implícita (ides do não-crente virtuoso, ele parece admitir um deslizamento da natureza para a graça e - por intermédio da "filosofia", entendida, é verdade, mais como modo de vida do que como sistema de ?ensamento - a possibilidade de uma salvação fora de qualquer quadro eclesiástico e de qualquer adesão consciente aos data (idei.

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Considerando~se tais antecipações, até mesmo substituições, da filosofia, não se poderia dar mais um passo e defender que todo uso autêntico do pensamento reto - inseparável, bem entendido, de uma prática correta - , mesmo sem referência a uma revelação particular (ou origina!), já contém, pelo menos virtualmente, o núcleo essencial da doutrina e da moral cristãs? Outros além de Abelardo professaram-no quase abertamente, provavelmente Raimundo Lúllio, talvez Rogério Bacon (que se refere a São Justino), certamente, mais tarde, Nicolau de Cusa. Este último, na linha de João Escoto e dos chartrianos, inspirando-se, inicialmente em Eckhart e Tauler, depois em Proclo, constituirá todo um sistema metafísico-religioso, não qualificado expressamente como "filosofia cristã" ainda que vise a englobar os principais dogmas da Unitrindade (baseada, principalmente, no ternário unitas-aequalitas-nexus, colocado como fundamental tanto no ser quanto na inteligência) e da Encarnação (concebida como vínculo necessário, pelo homo maximus, horizonte do tempo e da eternidade, como o infinitum absolutum do Deus indizível e o infinitum contractum do cosmos, através do qual ele se manifesta segundo uma variedade inesgotável de modos). Deve-se acrescentar que se o cardeal da Mosela pensa encontrar o pressentimento ou a tradução parcial dessas verdades essenciais em todas as doutrinas dos filósofos (sem excluir Epicuro, graças, é verdade, à falha de copista em um manuscrito de Diógenes Laércio), de forma que a seus olhos toda filosofia é virtualmente cristã, a Cribratio Alchorani e sobretudo o De pace (idei de 1453 (o mesmo ano em que Constantinopla sucumbe) pretenderão revelar, no interior de todas as religiões (e não apenas daquelas que inspirou, na descendência abraâmica, a tripla revelação de Moisés, de Cristo e de Maomé 3 ), uma referência central, freqüentemente obscurecida e deformada, aos dogmas da vera religio, única quanto à diferença (local e temporal) de ritos e a aparente divergência de fórmulas teóricas. Dessas posições, e mais ainda das exegeses ulteriores do cristianismo em filósofos como Kant,

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Hegel ou Schelling, muito menos engajados na experiência vivida da espi- do Vaticano II (especialmente algumas discutíveis traduções na missa franritualidade e da disciplina cristã, as leituras são numerosas, desde o deísmo cesa). Aberto a todo tipo de diálogo, era às vezes reticente diante de formas moralizante de um Semler traduzindo o De pace (idei no Século das Luzes de ecumenismo que favorecem o vago e o equívoco. Se o estudo dos escoaté às abundantes construções de um romantismo com tendências teosóficas, lásticos latinos nele suscitava, necessariamente, uma crescente atenção aos judeus e aos árabes do mesmo período, se ele orientou cada vez mais alucom bases em Para celso e em Boehme. Gilson certamente não ignorava os pensamentos do Renascimento nos e amigos para a islamologia, colaborando, ele mesmo, com orientalistas (consagrou a Pomponazzi páginas precisas e abrangentes) nem os sistemas como Vajda e Pines; se nos últimos tempos falou freqüentemente de uma mais recentes (um grande capítulo do L'Etre et l'Essence demonstra sua "filosofia do Antigo Testamento" (entendida de forma bastante ampla para familiaridade com Hegel). Mas evidentemente a "filosofia cristã", para ele, incluir o Corão) quando em trabalhos anteriores evocava, a filosofia "crissignificava algo bem diferente. Gilson se preocupava muito pouco em dis- til", ainda que se trate de temas comuns às religiões monoteístas, como a cernir temas vindos da teologia cristã no interior de construções, a seu ver, criação, a contingência do mundo e o valor da pessoa, parece ter mantido, incompatíveis com a religião na qual fora educado desde a infância, tal em relação às igrejas da Reforma, a despeito de grandes amizades pessoais, como a vivia e a sentia em sua prática cotidiana. Se o naturalismo do sé- uma distância bastante crítica. Mostrou-se provavelmente menos interesculo XVI e o idealismo alemão permaneciam para ele como um mundo sado que Maritain nas contribuições das teologias bizantina e eslava, nos estranho, não possuía nenhuma simpatia real por uma filosofia agostino- pensamentos de um mais longínquo Oriente. Esse incontestávellatino-cencartesiana como a de Malebranche, que um Léon Brunschvicg interpreta- trismo (que não excluía uma vasta cultura e a prática de muitas línguas, va, com tanta facilidade, no seu próprio sentido. Cada vez mais seu inte- inclusive a russa) permitiu, sem dúvida, que se concentrasse melhor nas resse de historiador pelo tomismo se tornava plena adesão do coração e doutrinas com as quais tinha mais afinidade, e é nesse quadro, voluntariado espírito. Sem ignorar a importância das reflexões patrísticas, o papel mente restrito, que conduziu sua investigação e defendeu suas teses, cada de Santo Anselmo (com sua palavra de ordem de uma (ides quaerens intel- vez mais marcadas pelo primado da teologia. lectum) e a participação das escolas franciscanas na elaboração da filosoNa perspectiva que havia adotado, não poderia cogitar de se interrofia cristã, à medida que, a cada edição, o livro de Gilson sobre o pensa- gar acerca dos elementos babilônicos, egípcios, iranianos, que constituíram, mento de Santo Tomás se avolumava, o autor se sentia cada vez mais pró- em parte, o pano de fundo sobre o qual se fixou, pouco a pouco, a revelação paleotestamentar (e sobre a qual o texto bíblico, em suas camadas suximo das principais posições do doutor angélico. Para expor suas teses, Gilson tinha decididamente adotado não a or- ' perpostas e justapostas, traz ainda mais de um vestígio, apesar da purificadem artificial de uma neo-escolástica que se queria pura filosofia, mas a i ção "sacerdotal" das diversas tradições, na época do cativeiro babilônico). da Suma teológica, convencido de que o Aquinate tinha expressado com: Se tivesse se detido nesses temas, talvez tivesse reconhecido a inextricável exatidão seu pensamento de filósofo através da própria edificação daqui- ' confusão entre imagem e razão, entre o núcleo de uma mensagem proprialo que chamava doctrina sacra (melhor, em todo caso, do que nos comen- mente religiosa e todas as sedimentações culturais que moldam os modos de tários de textos aristotélicos, nos quais ele traduz menos diretamente sua i expressão, que freqüentemente o falseiam ou o deformam. Ora, é todo esse posição pessoal). Nessa filosofia, colocada a serviço de uma teologia, tra-!i complexo conjunto -ligado a outras contribuições posteriores e, simultatava-se, para o historiador, de definir a impregnação e a modificação pe-: neamente, ou pouco após, às conquistas da razão helênica - que o cristialos data fidei de um conjunto de doutrinas aristotélicas, já infletidas (e i nismo devia herdar enquanto corpo de doutrina e realidade sociopolítica. Para enriquecidas) pelos elementos neoplatônicos (provenientes, sobretudo, do: discernir esses diversos elementos e instituir um rigoroso confronto entre aquilo Pseudo-Dionísio e de Santo Agostinho). que diz respeito à fé e aquilo que pertence, antes, à reflexão filosófica, seria Gilson compreendia esses fundamentos da fé - e é um bom método necessário um trabalho muito minucioso, extenso e ardiloso, e que ousasse -tal como Santo Tomás os havia compreendido, mas igualmente tal como abrir espaço a certas analogias estruturais (não por isso "redutoras") entre ele mesmo os havia recebido no catecismo e no seminário. Ele se interessa! omistériocristãoeessesgrandesmitosdevastaextensão~concernentes à morte muito pouco, parece, pelos trabalhos dos exegetas e pelos métodos moder- e à ressurreição de um jovem deus salvador, aos sacrifícios de inocentes, às 4 nos da hermenêutica (segundo ele, o único "modernismo" que tivera êxito purificações pelo fogo e pelo óleo, às comunhões omofágicas . fora o de Santo Tomás). Católico fervoroso de estilo tradicional (não se diz Igualmente complexo é o pano de fundo religioso de toda filosofia. "tradicionalista "), iria se inquietar, mais tarde, com as diversas subseqüências Gilson bem o sabia, e, por várias vezes, evoca os resíduos politeístas na meI

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tafísica e na cosmologia de Aristóteles. Apesar de seu evidente esforço de sentadas em Aberdeen, e depois reunidas em dois volumes, com um vasto desmitificação, o Estagirita permanece ligado a uma crença para ele ime· aparato de notas e uma preciosa bibliografia crítica (L 'Esprit de la philomarial (mantida através de todos os ciclos de regressão e de retorno à cul· sophie médiévale, Paris, 1932). Esses textos dão seguramente ao doutor tura), que situa o divino em uma quintessência celeste, perfeitamente in- angélico um lugar central, mas sem negligenciar a contribuição agostiniana. corruptível (da qual procedem também o calor animal e, em um nível supe· Falando em uma famosa universidade escocesa, o autor enaltece Duns rior, o intelecto agente "vindo de fora", o nous thyrathen). Mais evidentes Escoto; frisa várias vezes as concordâncias de suas teses com as de Santo ainda são os elementos órfico-pitagóricos do platonismo, a constituição de Tomás, chegando mesmo a sugerir uma espécie de equivalência (pelo menos uma nova teologia neoplatônica contemporânea da cristã e coexistente, como de intenção) entre o actus essendi tomista e a univocitas escotista, na meela (à custa de várias contaminações), com todo um conjunto de gnoses de dida em que, com efeito, ambos doutores visam ao próprio esse, considedominantes dualistas. Aí também o esclarecimento seria um verdadeiro cado aqui como peça principal dentre as inovações decisivas introduzidas suplício de Sísifo. Sem se prender à hipotética "pureza" de uma filosofia ex· na história do pensamento pela reflexão filosófica acerca do dogma da clusivamente racional (ave rara, senão mesmo impossível de encontrar, dentre criação ex nihilo (11, p. 60). os mais modernos positivismos), Gilson tomou muito simplesmente o piaGilson reconhece, desde o início, que, como tal, a "filosofia cristã" tonismo, o estoicismo dos padres, o aristotelismo dos escolásticos (ele mesmo é "obscura e difícil de ser definida", não apenas porque mal se separa freqüentemente platonizante) como fundamentado de fato, tal como os daquela dos judeus e dos muçulmanos, mas sobretudo em virtude da "dihaviam recebido os teólogos cristãos. E se se interrogou demorada e pacien· ferença de essência" comumente admitida entre filosofia e religião. Contemente sobre a maneira pela qual esse instrumento conceitual (ele mesmo sidera, entretanto, que um problema como o da origem radical das coinão isento de mitologia) foi pouco a pouco, às vezes inconscientemente, sas, propriamente metafísico, só foi realmente levantado a partir da Bíinfletido e retificado (alguns diriam pervertido), de tal modo que após aquilo blia. Invocando, a esse respeito, o testemunho de Leihniz no final de seu que denominamos (desde o fim do século XV) a Idade Média - apesar de Discurso (onde se trata, sobretudo, da ordem providencial e da repúblitodos os "retornos" à Antigüidade e de todas as "conquistas" da moderni· ca dos espíritos) e sua referência às verdades que "Jesus Cristo expressou dade (mas os próprios medievais, que se diziam todos moderni, de Alcuíno divinamente", mudando assim "inteiramente a face das coisas humanas", a Ockham, não deixaram de viver sucessivos "renascimentos") - ninguém Gilson esclarece que essas mutações, implícitas no fundamento revelado, mais sente nem filosofa sem estar, vo/ens nolens, profundamente marcado só foram progressivamente inseridas no domínio específico da filosofia por esse longuíssimo episódio da história humana. universal (em todo caso européia ou "ocidental") por um trabalho da raPara o jovem Gilson o problema se colocava ainda menos, visto que, zão, iniciado com São Justino e continuado, não sem conflitos, durante a filosofia, vagamente espiritualista, que lhe haviam ensinado no Henri.; longos séculos. Foi essa tarefa que a posteriori, e graças a conceitos parIV (em nada diferente, pensa ele, daquela que teria aprendido se tivesse: cialmente estranhos aos próprios artesãos dessa obra, permitiu definir permanecido, até o final, no seminário de Notre-Dame-des-Champs), quase: como "cristã" toda filosofia que, "ainda que distinguindo formalmente não possuía vínculo aparente (nem simpatia nem hostilidade) com o con·' as duas ordens, considera a revelação cristã como um auxiliar indispenjunto de crenças e de hábitos religiosos com os quais ele fora, desde a in· sável da razão" (I, p.39). fância, solidamente impregnado. Paradoxalmente, foi na Sorbonne, a con· Em vez de "considera" poder-se-ia dizer "utiliza", o que permitiria selho de Lévy-Bruhl (a quem sempre rendeu uma calorosa homenagem)" estender melhor a noção às filosofias posteriores, menos organicamen!e que estudou as fontes medievais de Descartes, prolongando em seguida sua! ligadas ao cristianismo, por vezes hostis, e por meio das quais se manifespesquisa em tese de doutorado. E apenas então - de maneira progressi·! ta, entretanto, (como Gilson bem demonstrou) a mudança operada em um va, à medida que conhecia melhor o. tomismo e que, pa.ra situá-lo com ~aisi ce~t~ númer,o .de conceitos ao longo de sua ,associação med~eval c..?m reprecisão, ele estudou Santo Agostmho e todo o con) unto das doutrmasl qUlSltoS teologlCos. Talvez fosse melhor tambem levar em conslderaçao que, medievais - , se definiu, para ele, a "questão discutida" an sit et quae sitl na maioria dos escolásticos, o apelo à revelação como "auxiliar indispenphilosophia christiana. ! sável da razão" permaneceu, no mínimo, inconsciente. Certamente, se ocori reu que, dentre eles, alguns recitassem Platão ou Aristóteles acreditando Nos anos 1931 e 1932, Gilson iria expor e defender sua concepçãol comentar o Evangelho, o contrário é verdadeiro na maioria dos casos, grada "filosofia cristã" em uma série de conferências (Gifford Lectures) apre· ças a todo um sistema de "interpretações piedosas". Mas, por várias ra-

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zões e primeiramente porque se queriam mais teólogos do que filósofos, julgaram paradoxal, senão inconveniente, inverter a fórmula de uma philosophia ancilla theologiae. O fato é que, se houve auxiliaridade e serviço (senão servidão, o que Dante rejeita vivamente, por respeito à donna gentile, consoladora de Boécio e inspiradora do "mestre daqueles que sabem"), essa ajuda foi recíproca, e a relação operou-se nos dois sentidos. Dentre os temas escolhidos por Gilson para sua demonstração, o mais caro é, seguramente, o ontológico. Evocando, não sem humor, Condorcet e o culto revolucionário do Ser supremo, o conferencista de Aberdeen sustenta que, mesmo reduzida à abstração deísta, essa noção seria impensável sem a reflexão patrística e medieval acerca da revelação a Moisés do nome divino tal como reportado no Êxodo. Ele não ignora que o "Eu sou quem sou" significa, antes de tudo, de forma negativa, o mistério do insondável, e que sua interpretação ontológica só foi historicamente possível através do on ne on do Estagirita (senão o pantelous de Platão, subordinado ao Bem sobre-essencial). Ele pensa, entretanto, que essa osmose ressaltou uma noção nova do Ser infinito como ato de existir e fonte de existência. Ao elaborála, em diversos graus de precisão, os escolásticos discerniram, diz Gilson, conseqüências que implicavam sem dúvida determinadas intuições platônicas e aristotélicas, mas das quais os Antigos não puderam ter plena consciência; de forma que a leitura medieval de suas obras teria acarretado, para a "metafísica grega", "progressos decisivos" (mas sem ruptura radical, visto que esse desenvolvimento iria no mesmo sentido do pensamento helênico; "arco magnífico cujas pedras, todas, ascendem em direção a essa pedra angular", I, p.86).I! Não se pode seguir o encaminhamento de Gilson em todas as suas I etapas. Se concordamos com ele, quanto ao essencial, no que diz da analogia, da causalidade e da finalidade, que possamos entretanto marcar ai-I, guma reserva quanto ao capítulo dedicado ao "otimismo cristão" (I, p.llll sq.), o qual parece subestimar um pouco, no cerne de uma experiência vi-! vida e pensada durante longos séculos, a obsedante atualidade do demônio como "príncipe deste mundo", a corrupção da natureza pelo pecado original, o apelo ao contemptus saeculi, o horizonte de um inferno eterno. Temas que tiveram seguramente fortes ressonâncias práticas e teóricas no universo pós-medieval, e que, precisamente - abusando, às vezes, da fórmula - tem-se o costume de definir, em geral de um modo pejorativo, como herança "judaico-cristã". O que não é completamente sem pertinência, mesmo se for necessário revelar, em um certo desprezo do mundo sensível como na depreciação do corpo, mais de um componente platônico-gnóstico, mas infiltrado muito rapidamente no cristianismo e, por um lado, já presente no judaísmo posterior. É bem verdade que Santo Tomás, afirmando a eficácia das causas segundas e atribuindo ao intelecto um trabalho positivo, mantém melhor do I

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que Agostinho (com sua concepção das razões seminais e sua teoria da iluminação) os dois extremos da cadeia (nada de liberdade e predestinação, aqui, mas dependência radical do finito e estatuto ontológico da criatura). A esse respeito, o capítulo 7 do tomo 1 (sob o signo da gloria Dei) é bastante esclarecedor, mas, por mais eloqüentes que sejam as fórmulas agostinianas acerca das "magnificências do mundo" e acerca do homem - corpo e alma - , definido, com efeito, como opus magnum et admirabile, não se deve esquecer que o vibrante elogio das artes e das ciências concerne expressamente, na Cidade de Deus (XII, 24), aos derrisórios "consolos" reservados, desde a queda, a essa humanidade na qual os raros eleitos mesclam-se à massa damnata; humanidade que faz, na maioria das vezes, o pior uso dos melhores dons5 . Não há dúvida de que Gilson mostra, em seu capítulo sobre a "antropologia cristã" (I, p.173 sq.), que a "reabilitação" do corpo exigida pelo dogma da Ressurreição (mas não se trata, na boa doutrina, de um "corpo glorioso" ao qual parece difícil atribuir funções propriamente biológicas?) fornecia argumentos em favor do hilemorfismo aristotélico. Essa posição tomista, com o papel atribuído à inteligência como forma única do animal racional (e conferindo por ela mesma sua substancial idade ao composto humano), destaca, sem dúvida, a dignidade de uma criatura criada no último dia como imagem de Deus e, por sua forma-intelecto, aproximando-se das inteligências puras. Mas não se deveria restringir excessivamente, na busca dos elementos constitutivos do "humanismo", a participação dos Antigos (o aspecto divino do nous aristotélico como da psiché platônica, o valor reconhecido por Epicteto à pessoa singular desempenhando seu papel no teatro do mundo etc.). Gilson se conforma, de forma bem honesta, ao fim de seu livro (11, p.20S): para levar seu projeto a termo, seria necessário que ele apresentasse mais de uma vez "uma grave injustiça em relação ao pensamento grego". Tratando, por exemplo, da teologia de Aristóteles, Gilson mantém, com certa predileção, um politeísmo remanente (sem insistir, aliás, na angeologia cristã, nos espíritos motores dos astros e em um culto dos santos no qual, sobretudo no caso de Maria, a dulia toca, às vezes, em uma quase-latria). Ele mantém, sobretudo, a imagem de um primeiro motor, primus inter pares (isto é, subordinado a muitos outros). E entende o Pensamento do pensamento como excluidor de qualquer conhecimento do universo sublunar - o que sugerem seguramente vários textos, mas o que parecem invalidar passagens como Met. LI0, na qual a imagem do general e do exército implica uma consciência desempenhando, na oikia cósmica, o papel de um chefe único (1075 a 14.:.24). E, a propósito do personalismo, se é normal lembrar que, para o Estagirita, os indivíduos passam, enquanto apenas as espécies permanecem, é exagero observar aqui uma "irrealidade" (p.197) dessa substância primeira que, em sua singularidade, é justamente a única existente.

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No que diz respeito ao Pórtico, pode-se considerar excessivo, na leitura do De finibus (I1I,6), o lugar reservado ao kathekan como simples função social (Gilson, II, p.145), enquanto esses mesmos textos haviam confortado Abelardo no privilégio dado, pela sua Ética, ao kathorthoma enquanto consentimento interior à vontade diviné. E numa ordem próxima de idéias, uma vez reconhecidos os serviços prestados por Aristóteles para a constitui· ção de uma doutrina da liberdade (11, p. 100 sq.), frisar que, nele, nenhum termo corresponde exatamente ao que depois se chamou de "livre-arbítrio" talvez não seja o melhor argumento em favor da libertas christiana, se se pensar em todos os limites que o pecado impôs ao efetivo exercício da vontade reta, verdadeira cruz para os filósofos cristãos que, sem sucumbirem à tentação pelagiana, quiseram evitar o que será em Lutero o "arbítrio servil". Um dos capítulos mais convincentes - ainda que o tema não seja novo - é aquele que o autor intitula "Conhecimento de si e socratismo cristão". A referência ao mestre da ironia e da maiêutica determina bem que, ainda aí, trata-se menos de revolução do que de aprofundamento. Gilson insiste na contribuição agostiniana que, em uma frase do De symbolo (1,2, citada em II, p.13), observa que a idéia de um Deus perfeito e insondável (próximo, sem dúvida, de determinadas reflexões plotinianas acerca da potência infinita do Uno, mas ligado aqui ao tema bíblico do homem como imago et similitudo Dei) convida a reconhecer no coração humano insondáveis abismos, abrindo assim para a filosofia o universo do inconsciente. Ao que se acrescenta, em Descartes (mais preocupado com idéias claras), a noção de infinito como marca divina sobre a criatura. i Gilson ressalta de modo também pertinente o significado histórico do "realismo" medieval, ligado - sobretudo em Santo Tomás - ao "dom" i do ser (verdadeira doação, não simples empréstimo) por um Deus criador: que se nomeia Eu sou. Contrapartida freqüentemente ignorada de uma certa i depreciação deste mundo, esse aspecto do cristianismo parece pouco contestável a quem, por exemplo, observa na Índia a diferença de comportamento entre populações mais marcadas por um certo "acosmismo" védico e as que, tendo conhecido há muito tempo a influência de comunidades cristãs (por exemplo em Kerala), confiando menos, parece, nos ciclos de reencarnações para justificar sua presente miséria, foram muito rapidamente sensíveis à propaganda comunista, porque valorizavam mais a busca da justiça e da felicidade nessa terra. No início de um livro muito denso, L 'Expansion européenne du XIIle au XVe siecle (cal. "Clio", Paris, 1969), Pierre Chaunu afirmava que, a partir de Alberto Magno e de Tomás de Aquino, o Ocidente latino, preferindo Aristóteles a Platão, construiu para si - diferentemente da China e de uma parte do mundo islâmico que dispunha, então, de trunfos análogos - os meios ideológicos de utilizar seus recursos demográficos e eco58

nômicos para preparar, e mesmo empreender, a conquista do mundo7 . Havíamos notado que, desde o século precedente (sem influência direta do Estagirita), essa é uma tendência sensível, por exemplo, nos textos em que os vitorinos, evocando os "consolos" de que Agostinho falava, os interpretam menos negativamente do que ele. O bispo de Hipona assistia, com a tomada de Roma, à agonia de um mundo. Hugo e Ricardo parecem perceber uma nova era quando enaltecem a "arte mecânica" da navigatio, capaz de permitir descobrir "margens desconhecidas" e, pelas trocas de bens complementares, tornar "comum" o que era "privado" (ver "O papel e o significado da técnica no mundo medieval", incluído neste volume). Um tema como esse do Cristo-Rei (paradoxalmente revalorizado no mesmo momento em que as monarquias tradicionais perdiam muito de sua sacralidade) foi muito freqüentemente entendido (em uma linha constantiniana) como justificação de várias derivas rumo a aplicações temporais no mínimo discutíveis. Mas, então, parece tratar menos de filosofia (política) autenticamente "cristã" que de um efeito natural das condições sócioeconômicas. Ainda mais porque o Gênesis bíblico, nas duas narrativas da Criação, prescreve ao homem comandar os animais e cultivar a terra. Quer os lamentemos ou nos regozigemos com eles, esses apelos ao trabalho neste mundo prevaleceram finalmente sobre o convite pitagórico e platônico à fuga aos mundos por detrás das aparências. Pouco contestável é o que Gilson escreve acerca da "influência do cristianismo sobre a concepção da história" (11, p.191) e igualmente sobre a espera escatológica da paz e da concórdia (p.197). Mas não se pode esquecer, em contrapartida, a idéia de que com a Redenção tudo está feito, sendo o tempo de graça (antes do retorno do Cristo em glória) apenas uma (sempre incerta) prorrogação concedida aos pecadores para permitir que se arrependam. E, ao lado de temas parcialmente progressistas (mais do que um avanço, a transiatio studii mostra a permanência de uma aquisição cultural; a parábola dos anões nos ombros dos gigantes implica acúmulo de saber, mas também diminuição de tamanho), a Idade Média conheceu os grandes pavores, o sentimento de que o mundo envelhece e se gasta, e como não temer a passagem anunciada do sinistro reino (mesmo provisório) do Anticristo? Admite-se, entretanto, que, evocando os céus novos e a nova terra que devem surgir no final da história, o cristianismo - sobretudo nesses setores mais ou menos "milenaristas" - forneceu o modelo, sempre vivo, de uma compensação de catástrofes próximas pela esperança de uma outra idade de ouro, ao menos como horizonte quase transcendente (a total desalienação, a perfeita transparência sonhada pelo jovem Marx após a humilhação e a privação do proletariado, o wohin das utopias militantes caras a Ernst Bloch, ele mesmo influenciado pelos Profetas e leitor do Sermão da montanha).

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Se o propósito de Gilson - como apresentado em sua última conferência -corre o risco de ser "taxado de apologético" (ao que ele responde que, em toda hipótese, uma demonstração é julgada quanto a seus argumentos e não quanto ao uso que dela se fará, 11, p.206), ele toma o cuidado, entretanto, de limitar ao terreno propriamente filosófico os efeitos doutrinais que atribui à ação de uma "fonte religiosa". Sua atitude é, no mínimo, reservada diante de pensadores imaginativos que acreditam dis. cernir em tais "estruturas ternárias" do criado os "vestígios" do Deus trinitário. Gilson observa que Santo Tomás, ao assinalar semelhante "marca" na tríade da substância, da forma e da ordem (Sum. Theol., I, 47,7), continua, nesse campo, de uma sobriedade exemplar. Preocupado, ao que parece, e,m restringir a dimensão teológica das análises psicológicas de tipo agostiniano, Gilson - sem subestimar a característica quase sacramental que o cosmos adquire em muitas visões medievais (e que, com raras exce.: ções, se tornará estranha ao pensamento ulterior) - enfatiza mais os pri. mórdios - em um Grosseteste, um Rogério Bacon, até mesmo em Santo Tomás - de uma concepção já "científica" da natureza, ligando-se aqui a finalidade teocêntrica que dá sentido à totalidade (que se pense no pa. pel do monoteísmo na perspectiva de Comte) a uma reflexão, virtualmente fecunda, acerca da fórmula de Sabedoria XI, 21: omnia in mensura et numero et ponderes. De qualquer modo, a filosofia cristã, tal como a definiu Gilson, não' pretende incorporar vitalmente os mistérios, por eles mesmos irredutíveis,: à obra própria de uma razão criada, mesmo angélica, a fortiori humana.; Apoiando-se em um texto paulíneo, e de acordo com Gregório de Nissa,' o Pseudo-Dionísio, tão atento à dignidade dos espíritos celestes, julgaval' neles imprevisíveis, de uma certa maneira incompreensíveis, os "fatos" da i Natividade, da Crucificação, da Ascensão (Hier.cel., VII, 3, 209 a-b; Ep., I III, 1069 b). É com dificuldade que o Aquinate aprimora a tese, ao reco-' nhecer às inteligências separadas, "desde o princípio de sua beatificação",: um "conhecimento geral" da Encarnação e não o saber de suas "condi-I ções especiais" (Sum. theol. I, 17, 3-5). O paradoxo gilsoniano não seria sobretudo o de aplicar o epíteto "cristã" a uma filosofia fundada na razão e que, mesmo auxiliada pela fé, só pode considerar as crenças específicas do cristianismo como dados exteriores a seu próprio domínio? Evitando tocar diretamente no domínio do mistério, O historiador trata, entretanto, do "milagre", após ter lembrado que os escolásticos, para quem o mundo é a obra de um Criador dotado de sábia razão, permanecem em geral (sem excluir os ockhamistas quando estes consideram a potentia determinata, os "hábitos da natureza") presos ao que chamamos determinismo, mas que se mantém em parte astrológico por referência a uma cosmologia obsoleta. A tyke e o automaton aristotélicos, sem que sejam

No meSmo ano em que Gilson proferia, em Aberdeen, sua primeira série de palestras, Emile Bréhier publicava, em La Revue de métaphysique et de morale (abril-junho 1931, p.133-162), um artigo intitulado "Existe uma filosofia cristã?", no qual inopinadamente contestava que o cristianismo tivesse introduzido algo novo na filosofia como tal. Mesmo Santo Agostinho, dizia, nada acrescenta a Plotino nesse domínio, senão precisamente a menção de um Homem-Deus que ele confessa não descobrir nesse seus caros "platônicos" e que permanece não assimilável por qualquer tratamento racional. Quanto ao tomismo, este seria, sob sua aparente transparência, feito de peças e de pedaços e, segundo sua própria confissão, considerando-se os limites e incertezas da razão quanto a pontos importantes como a novatio rerum ou a eternidade do mundo, incapaz de se constituir

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eliminados, encontram-se agora integrados, como a existência dos monstros, na totalidade unitária do plano divino. Porém, para opor radicalmente essa visão das coisas ao finalismo estóico, seria suficiente dizer (11, p.167) que o Pórtico elimina o acaso - enquanto a teologia cristã, reservando um determinado lugar à contingência, tende a lhe atribuir um estatuto racionalizável e, como a própria liberdade, se esforça para inseri-lo (com bastante engenhosidade dialética) nas coincidentiae oppositorum da Presciência e da Providência divinas? Além disso, mesmo eliminando-se, como populares, todos os tipos de narrativas maravilhosas e de exempla edificantes, não é certo que a idéia medieval do milagre diferisse tanto daquela dos Antigos, para quem mirabilia e portenta assumiam em geral (sobretudo, mas não exclusivamente, na perspectiva estóica) um valor significativo em relação a alguma concepção global do mundo e do homem. Para os teólogos medievais, qualquer violação da ordem natural (que supõe na natureza uma bastante misteriosa "potência obediencial") remete aos desígnios de um Deus de amor, mas tão personalizado que, por assim dizer, dificilmente escapa aos perigos de antropomorfismo. E principalmente, o caráter - ao menos para nós - insondável da vontade eterna (e todavia, em cada conjuntura, temporalizada) não torna finalmente a hermenêutica do miraculoso quase tão ambígua quanto aquela dos antigos oráculos? Se o Destino antigo era freqüentemente concebido como Razão (transcendente ou imanente ao universo), a Providência cristã passa, às vezes, por Fatum. De qualquer modo, essa espécie de especulações (que só tinham pleno sentido para a fé vivida ou para a experiência mística se justamente, nesses níveis, não se parecessem com os espirituais derrisoriamente abstratos) e não conseguiu nenhum avanço notável rumo a epistemologias modernas, qualquer que seja o papel que possam desempenhar em certas formas de indeterminação sem relação autêntica com o milagre nem com o livre-arbítrio.

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em "filosofia sistemática e coerente" (p.1S0). Bréhier considera em segui-' da o cartesianismo, o "tradicionalismo", o blondelismo e algumas outras doutrinas para concluir que "não se pode falar de uma filosofia cristã mais do que de uma matemática ou de uma física cristã". Com o problema assim colocado, a discussão com Gilson corria o sério risco de parecer um diálogo de surdos. Mas a leitura de Histoire de la philosophie revela, em Bréhier, posições sensivelmente menos abruptas. Tanto que ele reconhece a dificuldade de marcar o exato limite entre as gnoses, o cristianismo e o neoplatonismo; e, falando de uma "subordinação do intelectual ao religioso" como de uma "mudança prodigiosa" que iria dominar uma dezena de séculos, recusa discernir, entre a Antigüidade, e a Idade Média, uma "revolução violenta", reconhecendo, assim, ao menos: implicitamente, a existência de uma especulação autônoma no interior da Igreja e a importância dos fatores religiosos nas filosofias "pagãs" da época: imperial. Em nenhum caso as próprias nuances - e as simultâneas oposi- ' ções a tantas convergências - deveriam justificar uma especificação dos traços próprios a cada grupo, tanto no domínio da especulação racional quanto no da pura crença. E, ao enfatizar que o uso da filosofia conduzia quase sempre os cristãos a "heresias" (nestoriana, ariana, sabeliana etc.), se Bréhier subestima um exercício concomitante da razão nos doutores que combatiam a heresia, ao menos admite uma osmose entre os dois domínios, de forma que não fica claro como semelhante contato não teria modificado pouco a pouco, mais ou menos profundamente, o sentido e a dimensão de determinadas noções. I Gilson, contudo, certamente concordaria que não teria havido surgimento ou invenção de idéias absolutamente novas (ele fala mais freqüentemente de transformação); mas finalmente o conflito - que se acreditaria situado no nível da história - deve-se mais a opções prévias quanto_ao valor respectivo do pensamento racional e das crenças religiosas. E a esse respeito a posição de Gilson não mudou quanto ao fundamental. Parece apenas que, sem renunciar a afirmar a estrita especificidade do filosófico - o que exclui toda uma série de doutrinas onde o próprio dogma se encontra racionalizado, ou intelectualizado, até mesmo supra-intelectualizado, como é talvez a tentação de certas dialetizações neoplatonizantes - , ele mesmo tenha se sentido mais teólogo. Essa tendência pode ser notada através de alguns leves sinais como, por exemplo, a nota 14 do capítulo 9 na segunda parte do L'Esprit de la philosophie médiéval (p.274), na qual ele não fala mais de um simples reconhecimento da revelação como "auxiliar indispensável da razão", mas sim de uma "obra própria dos teólogos cristãos trabalhando em nome do cristianismo e para ele". Trata-se certamente, aí, de distingui-los dos doutores judeus e árabes, mas a ênfase é antes colocada na finalidade teológica do empreendimento.

Seria necessário seguir toda essa evolução, e já retivemos demais o leitor. Contentar-nos-emos com algumas observações. Mas convém, inicialmente, lembrar aquela sessão da Sociedade Francesa de Filosofia, em 21 de março de 1931, na qual Léon Brunschvig, reconhecendo o que devia a Malebranche (para ele sem dúvida o único verdadeiro filósofo cristão, fiel ao Evangelho porque substituía "à visão pagã dos intermediários uma ligação Íntima entre a criatura e o Criador pela mediação direta de um Deus que se fez homem", vendo nas matemáticas um tipo de revelação do "Verbo, essência eterna") e, bem entendido, a Pascal ("filósofo para além da filosofia"), após ter recusado qualquer aristotelismo (antigo ou medieval) como substancialmente pueril, e entretanto qualificando Gilson de "historiador probo e profundo", com ele concordava bastante ao declarar: "Eu não me reconheceria naquilo que penso e sinto se não tivesse existido todo o movimento do cristianismo" (p.73). E, por sua vez, se Maritain se recusava a admitir que o adjetivo "cristão" pudesse concernir à essência (abstrata) da filosofia, reconhecia que o homem concreto pode receber de sua fé, no exercício da especulação, como que uma "graça de estado", luzes que a razão, entretanto, não podia ignorar totalmente. Em 1936, em Christianisme et philosophie, para ilustrar seu propósito, no dossiê de Aberdeen, Gilson acrescenta algumas peças, especialmente acerca da querela Erasmo-Lutero e da posição de Calvino. Definindo a filosofia cristã como um equilíbrio (a seus olhos tipicamente "católico") entre pelagianismo e calvinismo, ele vê aí a obra de uma razão obscurecida pelo estado de pecado, certamente não totalmente "cega" a respeito de Deus e de uma vida futura, mas que tem necessidade da fé para ser "purificada" e "retificada" (p.37 sq.). Mais nitidamente ainda do que na 50' ciedade Francesa de Filosofia, ele recusa - suspeitando-a próxima do "averroísmo" - uma "teologia natural" que nada devia à revelação; possível para Platão, Aristóteles e Proclo, ela não o é mais, diz Gilson, para aqueles que sabem agora o quanto uma natureza "decaída" necessita de ajuda (p.96 sq.l. E por fim ele conta como acaba de encontrar a expressão contestada sob a própria pena de Leão XIII, no título, e não no texto, da Encíclica Aeterni Patris, recomendando, em 1879, o tomismo como filosofia a ser ensinada nas escolas cristãs. Seria interessante também considerar o conteúdo da obra inglesa publicada em Nova Iorque em 1937, The Unity of Philosophical Experience, e sobretudo L'ftre et l'essence (Paris, 1948,2. ed. revista e ampliada, 1962). Nela, Gilson está certamente mais eqüitativo do que Aberdeen para os platônicos; irá dar mais lugar à oposição entre Averróis e Avicena (o qual freqüentemente, como Duns Escoto notara, teologizava acreditando filosofar). Ele mesmo, um pouco paradoxalmente, à medida

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que sua própria filosofia se torna mais religiosa, concorda mais com as intuições de Aristóteles, vendo nelas os elementos de uma espécie de praeparatia evangelica (segundo o Contra Gent. lU, 25, remetendo a Et. Nic. X, 7, 1177 a 12-18). Gilson acha,entretanto, que para Santo Tomás, esclarecido por sua fé, o Estagirita continue, a respeito de Deus, como uma coruja cega pelo Sol (cf. Met. L, I 993 b 9-10). A ligação de Gilson com a teoria tomista do ser (tal como ele a ensinou após ter passado dez anos a desembaraçá-Ia das falsas interpretações) é no momento tão exclusiva, que podemos nos perguntar, lendo certas discussões, por exemplo, com o jesuíta Descoqs (p.114, sq.), se não se encontrariam doravante excluídos da verdadeira filosofia cristã (ou pelo menos situados em um nível inferior) todos os "essencialistas", incluindo-se aí talvez os escotistas e uma boa parte daqueles que recorrem ao testemunho de Santo Tomás.j Exegese evidentemente excessiva, pois Gilson jamais imitou a intolerân-' cia de um Laberthonniere ao excluir do cristianismo mesmo um verda-: d~iro discípulo do Aquinate. Em 1960, em La philosophie et la théologie, ao mesmo tempo testamento e memórias, Etienne Gilson presta a homenagem mais calorosa à Sorbonne de sua juventude, bem longe da imagem que dela deixou Péguy. Em contrapartida, é severo para com a má escolástica que engendrou o modernismo; declara-se contra (e com que verveJ) a "filosofia duvidosa" que, nos novos catecismos, tende a tomar o lugar dos simples data fideP. Paradoxalmente, ainda que o Angélico tenha sido também vítima de seu tempo, evoca as advertências dos papas do século XIII contra o abuso da filosofia; e ele mesmo se associa cada vez mais a uma teologia que desejava bastante "transcendente" para "assumir os elementos do saber natural e utilizá-los sem se deixar contaminar" (p.11 O). Respondendo a uma objeção que seríamos tentados a lhe fazer quanto à universalidade do tomismo, lembra que os teólogos condenaram Bergson em nome de Caetano e de Suarez, e lamenta expressamente que não tenham buscado nos aspectos liberadores de sua filosofia (mais próxima do cristianismo do que a de Aristóteles) um meio de desenvolver a metafísica do actus essendi 10 , a fim de que esta estivesse em conformidade (em suas aplicações epistemológicas e cosmológicas) com a ciência moderna. Assim a "filosofia cristã" teria podido florescer novamente sob formas diversas; mas seria ainda necessário que novos Aristóteles fizessem-se repensar (até mesmo deformar) por novos santos Tomás!

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NOTAS 1 Referimo-nos à terceira edição, Paris, 1947, p.289 sq. O título francês do livro sugere a existência da "filosofia" como uma disciplina autônoma que o historiador considera em um período determinado, aqui "das origens patrísticas ao fim do século XIV". O título inglês da obra homóloga (não idêntica), publicada em Nova Iorque em 1955, especificará expressamente o pensamento medieval (apesar de dois capítulos acerca da filosofia árabe e da filosofia judaica) como christian philosophy. 2 Ver a esse respeito, no Abélard de Jolivet, coleção "Seghers", Paris, 1970, os textos citados, p.157-163, com o título de: "Deux opinions successives sur l'Ame du monde". 3 :t. verdade que o Corão não é, para o Cus ano, senão uma revelação parcial, d~stinada aos pastores do deserto da Arábia, que não acrescenta nada à Bíblia, mas a limita provisoriamente para torná-Ia acessível. Através de fórmulas antitrinitárias e apesar da negação da divindade do Cristo assim como de sua verdadeira crucificação, os muçulmanos mais sábios deviam ler em filigranas, no texto corânico, os dogmas fundamentais do cristianismo. Não falta engenhosidade ao Cardeal- em seu grande projeto irênico - para extrair de toda tradição um elemento consonante à sua fé, pois está convencido de que uma luz única brilha por toda parte através da infinita diversidade dos sinais teofânicos. 4 Em uma síntese brilhante, de um contestável rigor, utilizando os trabalhos de comparatistas e de mitógrafos de desigual valor, Alain Daniélou - propagandista de uma restauração do dioniso-shivaÍsmo como remédio para os males de nossa Idade de Ferro, neopoliteísmo orgíaco que dá lugar a teses bem próximas das mais suspeitas afirmações, não-igualitárias e quase racistas, da "nova direita" -lembra, de forma às vezes significativa, um conjunto de comparações difíceis de ignorar e que impedem que se reduza nosso problema à simples relação entre duas entidades elementares, filosofia grega e teologia cristã (Shiva et Dyonisos, Paris, 1979, em particular, p.284 sq.) 5 Não existe otimismo, "cristão" ou "filosófico", concernente ou não a uma queda original, que não esbarre no irracionalismo inato do mal, físico ou moral. Essa consideração distanciava cada vez mais Gabriel Marcel, em seus últimos anos, de uma adesão incondicional a pseudoconciliações teológicas (ou metafísicas) que justificariam os genocídios, os Gulags, ou mesmo simplesmente o sofrimento das crianças inocentes e até dos animais. Nietzsche não é o único a se indignar com O fato de que, para Santo Tomás, a visão dos suplícios infernais possa contribuir para a beatitude dos eleitos. Quase no final do Dialogus, o Cristão e o Filósofo tocam nessa aporia, mas sem que Abelardo ouse extrair daí todas as suas conseqüências (cf. as páginas 161 e 162 da edição crítica organizada por R. Thomas, Stuttgart-Bad Cannstatt, 1970). 6 Seríamos mal vistos por questionar Gilson pelo fato de ele entender (I, p.156) - conforme uma imensa tradição latina - a eudoxia de Lucas 11, 14, como significando "de boa vontade" e não, segundo a tradução atual, mais conforme ao original, "que Deus ama" - o que remete ao tema da predestinação, e absolutamente não à interioridade do querer. 7 Um texto característico, a esse respeito, é o apelo de Ulisses (segundo Dante, Inferno, XXVI, 91 sq.) a seus antigos companheiros para partirem em conquista do Oceano: "Não queiram recUSar a experiência/Reto em direção ao Sol, de um mundo sem povos". Essa viagem pela Terra havia sido prevista pOr Aristóteles de forma expressa (De caela, lI, 14,298 a 7 sq., e Meteoro!., 11, 5, 362 b sq.) 8 Gilson não desconhece absolutamente o obstáculo principal que constituía, a esse respeito, a física aristotélica. Uma vez destruídos (a princípio, sob os golpes ockha-

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mistas) alguns dos pilares do vetusto edifício, serão necessários três bons séculos para que o recurso à medida, ao número e ao peso (ainda teórico e optativo em Nicolau de Cusa) adquiram valor científico. 9Lá onde tal cat.ecismo de 1889 dizia: "Creio em Deus porque ele se me revelou" (acrescentando, em seguida, apenas: "Mas a razão diz também que existe um Deus"), a edição de 1923, que começa pelos preâmbulos filosóficos, declara toscamente que se deve acreditar em Deus "porque nada se faz sozinho", o que é confundir credere e scire e usar, de resto, um argumento tirado de Lucrécio (ex nihilo nihil). 10 Essa metafísica que ele mesmo por tanto tempo desconheceu (p.203) e que só se pode compreender (pensa ele, em 1960) com a condição de "se instalar desde o início na fé". É improvável que Santo Tomás tenha assim falado, pois a fórmula é mais anselmiana.

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V. A NATUREZA EM ALAIN DE LlLLE

Remontando por diversas vias históricas, especialmente através de Boécio, o texto da Metafísica (D 4, 1014 b ss.) - no qual Aristóteles, após ter partido do sentido originário de physis, ligado ao verbo "nascer", parece privilegiar, como aliás o resto de sua obra nos convida a pensar, o sentido de forma substancial unido a uma matéria e princípio interno de movimento -, as Distinções, de Alain de Lille (citadas por G. Raynaud de Lage 1 ), assinalam onze significados para natura, englobando quase o tudo do real- e do possível- desde Deus como Causa eficiente do mundo até a matéria primeira, tal como a define mais precisamente o sermão "De sphoera intelligibili" (publicado por Marie-Thérése d'Alverny em seus Textes choisis, p.300 sq.). Este a situa em um nível intermediário - o das formas que "flutuam", por assim dizer, entre o estado de separação, no qual permanecem naquilo que o autor chama, audaciosamente, de a "alma do mundo" , e, por outro lado, esse plano inferior do sensível, no qual estão como que imersas nas matérias determinadas. E, aqui, o que o Estagirita chama "substâncias primeiras" são - segundo uma perspectiva platonizante - apenas "ícones" dos verdadeiros "modelos" contidos, em toda pureza, na mens divina. Entre esses dois extremos, a palavra "natureza" pode se aplicar também, por extensão, ao hábito, que toma às vezes seu lugar, até mesmo à morte, na medida em que esta é a condição exigida para que se sucedam os seres perecíveis, conservando a especificidade de sua forma através das gerações. Das onze acepções notadas por Alain, Raynaud de Lage privilegia as duas últimas: a que corresponde à razão natural e a que prescreve ao semelhante engendrar o semelhante. De fato todas têm sua importância e, de diversas maneiras, teriam seu lugar em uma exposição completa do problema. Reaparecerão, de passagem, com a exposição, aqui, de alguns aspectos significativos de uma teoria bastante complexa e à qual por vezes falta coerência. Na suma dita Quoniam homines, ao distinguir três potências cognitivas - sentido, intelecto e inteligência (esta última denominada intellectualitas no "De sphoera", cuja divisão das faculdades é quadripartida, com inserção da imaginatio) -, Alain revela pouca indulgência pela naturalis philosophia, consagrada ao terrestre e dependente do sensível, ao passo que, para ele, as duas "teologias" - a "subceleste" e a "supraceleste" -, resultantes das duas potências superiores, concernem, respectivamente, primeiro aos Anjos e às almas e, em seguida, aos mistérios divinos, TrinGêneses da Modernidade

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dade e Encarnação. Ao evocar Sócrates, Hermes e a Sibila, Alain denuncia as tolices de Epicuro e as argúcias de Aristóteles; se é sobretudo severo quanto à loucura maniqueísta (de fato, a dos cátaros que, segundo ele, deviam seu nome ao fato de se relacionarem com gatos, mas cujo crime era sobretudo o de pretenderem se libertar do "mau" princípio - o da geração - através de um luxurioso desperdício de seu líquido seminal, ed. Glorieux, p.130), parece julgar "insano" esse mesmo Platão que, em um texto de estilo completamente diferente (Anticlaudianus I, 132-134), ele louva por ter sabido, "mais divinamente" do que outros, "sonhar, com um espírito profundo, os arcanos das coisas". Segundo a Suma Quonian homines (p.125), seu mais grave erro seria o de ter explicado a eternidade, sem dúvida não a do mundo (Alain não ignora o Timeu) mas a das Idéias e da matéria (condenação que precisa e limita o que sugere o "De Sphoera" quanto à materia prima). Nessa mesma perspectiva, o teólogo lembra a rejeição, pela Igreja, das teses como as de Orígenes sobre a preexistência das almas (p.289). A polissemia do termo natura (de forma alguma próprio a Alain) se manifesta com total evidência quando lemos, por exemplo (p.139), que "a natureza do próprio Deus" não poderia ser "plenamente" compreendida nec in via nec in patria, em nenhum de seus quatro aspectos: essentia, subsistentia, substantia e persona. Mas não resta dúvida de que aqui o teólogo - diferentemente de João Escoto descrevendo a divisio naturae, e certamente de Honório de Autun em sua Clavis physicae - evita englobar, sob a denominação de "natureza", o conjunto do incriado e do criado. Insistindo no caráter "gratuito" da justificação e da exprobração (Deus "coroa" apenas seus próprios "dons", não os "méritos" humanos, e sua graça procede apenas de "sua vontade", segundo um justum judicium que exclui sem dúvida tudo o que é arbitrário, mas que permanece pela razão natural perfeitamente occultum), Alain enfatiza que, per se, o homem é um spiritus vadens ad peccatum e non rediens ad bonun (p.243-245). E nota várias vezes o caráter de algum modo "milagroso" da criação propriamente dita, a que se realiza ex nihilo e sine ministerio inferioris causae ("Expositio prosae de Angelis", Textes inédits, p.199). Quoniam homines precisa que o homem não foi absolutamente feito opere naturae, sed sola Dei auctoritate (veremos entretanto que, no De planctu, quando se trata de produzir um novo Adão, uma espécie de homo perfectus feito para um mundo que chegou à perfeita harmonia, Deus cria apenas o spiritus, deixando à Natura o resto da obra). Essa (actio divina, prolongada por uma necessária conservatio (sem a qual a "natureza" do homem, como a do Anjo, não poderia subsistir), se distingue da simples procreatio, operação reprodutora dos seres mortais engendrando-se segundo a mais rigorosa taxinomia (eis aí, com ou-

tros nomes e com uma indispensável fecundidade, uma das obsessões de Alain; esta parece excluir, se não as anomalias morais denunciadas no De planctu, especialmente o homossexualismo que aos "martelos de Vênus" substitui as "bigornas" [P.L coI. 450 b], pelo menos a existência real de monstros e de híbridos) - mas antes de tudo, e mais fundamentalmente, operação específica da Natura procreatrix, esse personagem alegórico que aparece, com diferenças sensíveis de posição e de função, nas duas grandes obras "literárias" de nosso autor. Antes de chegarmos a esses escritos singulares, lembremos - para melhor percebermos determinados contrastes - o tom desdenhoso (em um texto posterior que poderia ser um arrependimento, senão uma retratação) com o qual o autor do sermão "De clericis ad theologiam non accedentibus" (Textes inédits, p.274 sq.) considera tudo o que para ele pode ter relação com uma vana philosophia. Certamente não desconhece a prescrição feita aos hebreus de carregar em seu êxodo os "despojos" dos egípcios (lembrada, aliás, desde o início de Quoniam homines, p.120); mas o sermão "De clericis" frisa sobretudo a obrigação, para a ratio naturalis, de se manter em seu nível de "servente". Alain escreve aqui ancilla coelestis philosophiae, tomando "filosofia", no sentido antigo, como significando modo de vida mais do que disciplina científica. O trabalho da razão não é senão um tipo de "estribo" em direção a essa intelligentia (ou intellectualitas) que mal se distingue daquilo que certos textos (mesmo o De planctu e o Anticlaudianus) designam como (ides (às vezes ela mesma personificada como o são ratio e natura). Mas é preciso sobretudo destacar o quanto Egito é aqui desvalorizado, com suas triplas "trevas" - palpáveis, interiores e exteriores - , que simbolizam o próprio "mundo" (objeto de um necessário desprezo, assim como todos os seus carnales scientiae quae sunt vasa (ictilia, p.277). Em uma tal perspectiva, a philosophia terrestris não é senão uma árvore inútil, sine (oliis e sine (ructu. Menos radical, a posição indicada por Quoniam homines corresponde melhor, sem dúvida, ao que foi o pensamento de Alain na maior parte de sua carreira. Primeiramente porque ela dá lugar a certas continuidades e transições entre natureza e graça, notando, por exemplo, a inserção, na própria "natureza" de Adão, de uma "possibilidade" de não morrer. A natureza, com efeito, tende ela mesma à vida, não à morte; graças à "árvore da vida" plantada no paraíso terrestre, o homem inocente podia subsistir colhendo e consumindo frutos "naturalmente" destinados à sua subsistência; assim, ele teria podido escapar (sem milagre) à doença e ao envelhecimento. Como se vê, as fronteiras entre o antes e o depois da queda são permeáveis (Alain pensa, bem entendido, que Adão, caso não tivesse pecado, teria se dedicado a um "comércio carnal", meio normal de "crescer e multiplicar"; ele não acrescenta, como fará Tomás, que, senhor de

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seus movimentos carnais, Adão tivesse experimentado mais prazer do que o pecador nesses folguedos, mas observa que tudo foi efetuado sem libidinis fervor nem pruritus, frutos da falta original, p.293-295). Posição ainda mais matizada porque, ao subordinar as seminales rationes (que asseguram o bom funcionamento do cursus naturae) às aeternae rationes resultantes da voluntas divina, o autor destaca que essa vontade, sem nada de arbitrário, se identifica à ratio e à sapientia divinas. Mas igualmente que, quando o Criador - tendo se reservado um domínio próprio no qual opera ad nutum suum, por exemplo para tirar Eva da costela de Adão (não de um germe específico) - age acima da natureza, respeita contudo suas leis, pois havia tomado cuidado para que a costela do primeiro homem contivesse os elementos "naturais" necessários para se constituir e subsistir como um corpo de mulher. Certamente, as "razões eternas" estão somente in Deo, mas tudo o que depende do "curso natural" (mesmo na operação divina ad extra) se situa simultaneamente in Deo et in natura (p.296). Mas é sobretudo nas duas grandes obras alegóricas de Alain - uma que mistura prosa e verso no modelo da Consolatio; a outra, em nove cantos, feita inteiramente de hexâmetros regulares (que, por lapso ou por brincadeira, Gilson denomina "alexandrinos", qualificando-os, com alguma severidade, de "laboriosos", La Philosophie au Moyen-Age, 2. ed., p.315) - que essa colaboração entre Deus e Natura adquire aspectos singulares e que um texto poético, rico em reminiscências pagãs e símbolos mitológicos, corre o risco de sugerir interpretações arriscadas (como a idéia, muitas vezes retomada por Raynaud de Lage, especialmente na p.70 de sua tese, de que o tempo e a historicidade seriam aqui reduzidos a um papel menor). Herdeiro e elo de uma corrente vinda da mais alta Antigüidade cristã, poderosa no século XII, em seguida um pouco recalcada e disciplinada (ou adquirindo, em João de Meung, aspecto escandaloso pelo resvalar do tema da fecundidade em direção ao hedonismo), mas que reaparecerá, com outros componentes, mais tarde, em Nicolau de Cusa, em Marsilio Ficino e em todo um vasto setor daquilo que se denomina "Renascimento", Alain descreve um universo fortemente hierarquizado, rico entretanto em transições e em correspondências bastante complexas. Entre o cume e a base, Natura desempenha um papel central. O autor não duvida de que essa nobre operária, a serviço bem ativo do Criador, e às vezes tratada até mesmo como "rainha" (como a donna gentile de Dante), participe plena e inequivocamente, sem concessão dualista, qa bondade de Deus, pois foi efetivamente por seu intermédio que se fizeram todas as coisas que a Escritura declara valde bona. E no entanto, nesse universo alaniano - mais ainda, parece, que em muitos de seus predecessores e de seus sucessores de mesma família intelec-

tual- a presença do mal continua obsedante, no Anticlaudianus, onde se trata de lutar contra ele fazendo nascer um homem perfeito, núcleo de um mundo regenerado, mas mais ainda no De planctu naturae, que chega à solene excomunhão dos pecadores. Mesmo se se abstrai o pecado propriamente dito, que diz respeito ao homem (Alain fala pouco da queda de Lúcifer), o cosmos, por mais harmonioso que seja, visto que os extremos se compensam, está longe de aparecer como um hortus deliciarum; o tigre é feroz, o camelo desgracioso, o elefante grotesco; aos ouvidos do purista o zurro do asno é como um barbarismo, e a cabra, "vestida de lã sofística", incomoda as narinas por seu odor nauseabundo (De planetu, r.L. 438 a-b). Sigamos adiante: Alain discerne no mundo, assim como no próprio homem, uma luta permanente entre duas forças adversas: de um lado a rationalitas e, do outro, essa sensualitas que talvez se seja tentado - reunindo, em um registro dessa vez mais platônico do que bíblico, as severidades do "De clericis" - a comparar à "causa errante" do Timeu, visto que o autor a assimila à errância sem lei das estrelas cadentes. É o universo inteiro, não apenas o homem que, assim, tem de ficar entre dois chamados, um que o arrasta a debacchari cum brutis, o outro que o exorta a disputare cum angelis (443 c). Mas, para compreender a significação desse "duelo", devese ver que, aos olhos de Alain, a Dama Natureza mantém, em tudo isso, uma inocência plena - e eis sem dúvida aí uma das dificuldades de sua doutrina, visto que ela exclui, aliás, tudo o que pode sugerir a presença, em qualquer nível, de um tipo de Antiphysis mais ou menos substancializada. Alain de Lille, com efeito, tem como indubitável que Natura, realizando a serviço de Deus sua obra procriadora, tenha tudo ordenado para que - nesse conflito entre razão e sentido - os argumentos daquela fossem os mais fortes. E quando esse entretanto prevalece para "exilar" o homem de sua "pátria" (dir-se-ia uma espécie de queda natural, mais do que uma punição infligida do alto), é essa mesma Ratio que leva o homem decaído a subir em direção a seu lugar natural, não ainda o céu, mas uma espécie de "subúrbio" do universo, no limite inferior da "república" regida pelos Anjos, aí onde, ao "obedecer", ele pode se "recriar", se "restaurar" (444 b). Certamente, se considerarmos as coisas estritamente, é o próprio Deus, não a Natureza, que propriamente "recria a vida" (446a), mas o autor quase não enfatiza a perda das asas como conseqüência da desarmonia interna; se fala de uma terra que se tornou "prostíbulo", o atolar no lamaçal não é para ele um verdadeiro cativeiro, com correntes que um libertador deveria vir quebrar. Apesar de algumas fórmulas episódicas, raramente se trata de um sacrifício redentor resgatando graciosamente os pecados de uma raça entregue, desde sua primeira falha, ao império do demônio. O leitor que se ativesse às obras literárias de Alain se-

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ria tentado a ver uma versão humanista do drama cristão, até mesmo uma apresentação do platonismo que atenuaria sensivelmente seus aspectos mais dualistas. Apesar da alusão feita às tentações do cosmos (mais ou menos impostas pela concordância postulada entre macrocosmo e microcosmo), quase não se encontra aqui o equivalente da aventura descrita por Plotino, quando este mostra a terceira hipóstase, por mais divina que seja, abandonando-se aos prestígios da multiplicidade e do tempo. Assim, os efeitos do "duelo" universal, que se poderia acreditar os mais graves, se reduzem, no nível cósmico, a simples dissonâncias, finalmente integráveis na harmonia de uma justa medida. Mesmo os terríveis pecados humanos descritos, não sem alguma complacência, no De planctu - brutalidade, infanticídio, narcisismo, sodomia - , se apresentam menos (segundo a definição de Abelardo) como "desprezo de Deus" e revolta contra ele, do que como um desconhecimento culposo das leis da natureza; e essas violações parecem inicialmente erros lógicos e gramaticais; aqui, como no caso do asno e da cabra, Alain fala naturalmente de sofisma e de paralogismo, de solecismo ou de barbarismo (450 a-b). É pelo erro desses falsos passos lingüísticos que a própria beleza, graça natural e de si inocente, pode por vezes se tornar uma armadilha do demônio. Faz-se necessária aí, entretanto, uma outra intervenção (mais incerta) do que a da Natura. E é bem característico que a responsabilidade das fraquezas essenciais seja imputada a uma deusa pagã, cuja ambivalência a tradição platônica fortemente enfatizava. Com efeito, o "elegante Arquiteto" divino, para fazer passar à realis existencia as Idéias que ele concebera, conservando entre as espécies a unia pacifica que Alain compara tão freqüentemente a um casamento legítimo, delega à Natura a tradução "finita" do "infinito", a imitação temporal do eterno. Operação que não comporta nenhuma falha, nem mesmo o efeito dessas telas que o Areopagita mostrava operando para enfraquecer a difusão da luz e do calor. É sob o controle contínuo de Deus que, no éter onde ela reside (pelo menos para o De planctu) essa "auxiliar no mundo procriadora pela graça de Deus, princípio originário de todas as coisas". (Dei gratia mundana civitatis vicaria procretrix - nativarum omnium originale principium), não simples serva (ancilla), como o exige o teólogo de Quaniam homines, mas sim, como já dissemos, rainha do mundo (mundane regionis regina) (479 a) - procede a seu trabalho, com a mão que o próprio Criador se digna a guiar. Nesse nível, não se poderia esperar nenhum verdadeiro erro. Mas justamente Natureza é dama demais para descer ela mesma até os subúrbios terrestres onde moram os mortais. Do mesmo modo que o Demiurgo do Timeu - a quem ela deve vários traços - delega uma parte de seus poderes a acólitos, a Dei vicaria envia Vênus para esse mundo, com seu filho Cupido, nascido de seu esposo legítimo - Hi72

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meneu _, para presidir aqui a fecundas uniões; mas é então que as coisas lCão se corromper. Os platônicos distinguiam duas figuras de Afrodite, a uraniana e a trivial, preocupando-se pouco, por sua vez, em atribuir àquela do alto um tipo de fecundidade animal que a teria antes desonrado. Aqui, ao contrário, O tema da fecundidade desempenha um papel principal. Seria necessário ver nele o eco desse desenvolvimento demográfico assinalado pelos historiadores no século XII e que, apesar das epidemias mortíferas do século XIV, devia preparar de longe -ligada, segundo Chaunu, ao "racionalismo" escolástico - a grande "expansão" européia dos séculos XV e XVI? Não nos demoremos em uma questão lançada en passant, e retenhamos antes o que mais importa aqui: a transferência de toda culpabilidade para a própria Vênus, que se tornou infiel a seu esposo. Estabelecendo, com efeito, vínculos culposos com um certo Antigamus (alegoria de todas as faltas contra o casamento e, mais geralmente, contra a ordem natural), a mãe de Cupido lhe dá um meio-irmão adúltero, perversor e subversivo, denominado Jocus. Ainda que "gracejo" não seja "alegria", poder-se-ia se perguntar (dessa vez ainda um pouco por brincadeira) se a joy dos poetas corteses não estaria aqui sendo visada. De qualquer modo, ainda que ele evoque virtudes cavalheirescas, como Generosidade e Lealdade (outro sentido, agora profano, de Fides), Alain não pode alimentar nenhuma complacência pelos amores estéreis e ligações o mais das vezes adúlteras. Seja como for, é efetivamente pelo erro de Jocus que aO liberale opus do amor autêntico se substitui muito freqüentemente um mechanicum opus, à obra segundo as regras uma produção desordenada, a um trabalho civilizado um "rústico" trabalho (o uso pejorativo desse epíteto não basta para nos convencer de que Alain, de Lille, e em seguida de Paris e Montpellier, representava, como se disse de Abelardo, a nova civilização urbana). Os prejuízos são tão sérios que Natura, emocionada por ver sua obra desfigurada, especialmente pelos crimes de clérigos do mais alto nível sodomia certamente, objeto próprio de sua" queixa", mas igualmente embriaguez, gula, avidez, arrogância, ódio, adulação - chama em seu socorro um velho com aspecto juvenil, Gênio, aqui porta-voz da superessentialis Usia (481 c). Com ele alcançamos um dos procedimentos favoritos de Alain, o das "duplicações". O sentido desses deslizamentos, substituições e delegações permanece, por mais de uma vez, obscuro. E é essa uma das razões que torna incerta a definição mesma de Natura, que não ocupa exatamente o mesmo lugar nas duas grandes alegorias de Alain. No De planctu, essa bela mulier -logo reconhecida como virgo e como mater - é descrita em termos de um erotismo deveras insistente. Entretanto, ela habita o céu e é daí que desce para deplorar os crimes cometidos contra suas leis. E é igualmente do céu que ela faz vir, no final, esse Genius que o autor designa alhures 73 Gêneses da Modernidade

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como Natura vel Deus naturae ("Hierarchia Alani", Textes inédits, p.228). Com exceção do sexo (e talvez da idade) ele praticamente não se distingue de nosso Dei vicaria com o qual parece muito intimamente associado, tanto no "sacerdócio" quanto na obra de procriação. É ao contrário como uma habitante do mundo sublunar que o Anticlaudianus apresenta Natura. Parece que esta não deve absolutamente abandonar ela mesma sua morada terrestre, pois para trazer ao Céu a súplica deliberada com as Virtudes é forçada a recorrer à mediação de uma outra ela-mesma, Prudência ou Fronésis (observemos que, se tomarmos essa palavra grega em seu sentido platônico mais do que aristotélico, ela evoca a Sabedoria em pessoa). Mas isso não é tudo. Essa mensageira - qualificada, assim como Natureza, de virgo parens rerum - não percorre senão uma parte da estrada em sua primeira carruagem. Em Dante, após ter substituído Virgílio (e Estácio), Beatriz cederá o lugar a São Bernardo. Aqui ela vai até o final, mas conhece até na última etapa, diante do céu empíreo, uma dessas fraquezas que marcam, para Alain, a presença de um tipo de ruptura, de passagem a um nível superior, sem que nenhuma dessas aberturas seja intransponível. Abandonando o carro preparado pela Ratio, Fronésis recebe o reconforto de uma outra dama, chamada muito enigmaticamente Regina poli; ela é geralmente identificada à teologia, mas apresenta traços que a aparentam, senão à Sofia gnóstica, pelo menos à Sabedoria bíblica, aquela que estava presente em Deus desde a criação do mundo, símbolo superior da virtude da sabedoria e da natureza procriadora, ligada, ela mesma a esse Noys~' que se é tentado a comparar ao Verbo, de forma que a continuidade se afirme desde a matéria até mesmo ao mistério da Trindade. Mas o que mais cria problema no Anticlaudianus é o projeto de Natura e de seus companheiros terrestres; pois não se trata mais apenas de "excomungar" os vícios contra a natureza para encontrar uma harmonia anterior. O trabalho conjunto pelo qual o supremo Artesão e sua colaboradora (terrestre sem dúvida, mas igualmente cósmica, em virtude da ligação, sempre reafirmada, entre o microcosmo e o macrocosmo) irão constituir um "homem perfeito", dotado de uma "alma pura", quase não pode se identificar à missão do Verbo encarnado, inicialmente porque a relação entre pessoa divina e pessoa humana de Jesus corresponde muito pouco à relação que indica o poema entre a alma celeste descida aqui por intermédio de Fronésis, e corpo material que forja para ela Natura, mas mais simplesmente ainda porque a viagem simbólica aqui narrada ocorre expressamente após a Encarnação (guiada pela Regina poli, Fronésis aprende lá em cima de que maneira maravilhosa, "em vista de nossa salvação", o Filius artificis summi ); Transcrição latina do naus grego. (N. da T.)

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se fez receber, como em um leito nupcial, pelo seio de uma virgem, "conjuntamente filha do Pai e mãe do filho", V, 480-485). Não se trata igualmente do Adão Kadmon das tradições cabalistas, ainda mal elaboradas na época em ambiente judaico e pouco conhecidas pela cristandade; tampouco do Adão de antes da queda do Gênesis, já que precisamente o homo perfectus não é um retorno ao passado, mas o anúncio de tempos novos. Em alguns traços ele prefigura o homo maximus de Nicolau de Cusa, tal como aparecerá no terceiro livro da Douta ignorância, verdadeiro nexus entre o infinito divino e o indefinido cósmico. As diferenças são evidentes, pois a entidade postulada como exigência dialética, culminação de todas as potências naturais chegando à ultrapassagem de si, se identifica no Cusano ao Deus-Homem da fé cristã (ainda que a Natividade, como em Eckhart, se despoje nele, bem mais do que em Alain, de qualquer determinação temporal). Pode ser que Nicolau tenha, diretamente ou não, se inspirado em Alain. Quando escreve suas Con;ecturas, ele lamenta não ter marcado suficientemente, em sua obra precedente, a transcendência de Deus. A esse propósito, retoma um dos vocábulos do sermão alaniano "De sphoera" (a intellectualitas superposta à intelligentia) e, ao aplicá-lo não apenas a Deus mas também - em uma outra perspectiva - ao próprio cosmos (que perde então sua aparência medieval), encontra igualmente a famosa imagem da esfera infinita (outra versão: inteligível) cujo centro está por toda parte e a circunferência em lugar nenhum (poder-se-ia lê-la nas Regulae, no Livro dos XXIV sábios, em São Boaventura, e ainda em vários outros lugares). Três séculos após o autor do Anticlaudianus, em uma conjuntura completamente diferente, o Cusano explicitará (em ligação com seu tema do homo maximus) os elementos de algum modo "progressistas" da civilização humana, imaginando um trabalho coletivo e convergente, um avanço, ao mesmo tempo científico e religioso, rumo à "concordância católica" e rumo à "paz da fé". Alain imagina antes uma Natureza que recebe do alto, por puro dom divino, a alma do homem perfeito, e fabrica em seguida, como tudo o que a humanidade até então produziu de melhor, tanto antes como após a Redenção, um corpo adaptado a essa alma, em vistas de um tipo de idade de ouro, muito inspirada nos Antigos, e que seria talvez o fim da história, visão atenuada de uma escatologia simplificada e desdramatizada. Apesar do uso da palavra spiritus para designar a alma do novo homem, não parece que haja nada em Alain que anuncie verdadeiramente o Terceiro Reino de Joaquim de Flore, e, se a excomunhão do De planctu, proferida contra os violadores da lei natural, é como que o substituto de um Juízo Final, o ordo novus do Anticlaudianus descreve sobretudo um universo sem doenças, sem enfermidades e sem ódio, não verdadeiramente uma Jerusalém celeste. Conforme já observamos, encontramos, através de toda a obra literária de Alain, o grande tema central da ascensão progressiva, mas tamGêneses da Modernidade

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bém uma sumária dialética dos opostos de tipo platônica (um e múltiplo, mesmo e outro, finito e infinito), com uma multiplicação freqüentemente fatigante de oxímoros (eis alguns exemplos, dentre tantos outros: inaequalis aequalitas, de(ormis con(ormitas, divisa identitas, odor sapidus insipidusque sapor, mors vivens, moriens vita, in De planctu naturae, 443 c, 445 etc.). Mais do que uma coincidência de opostos, Alain acentua paradoxos que provocam, em seus personagens, síncopes fisiológicas e "êxtases". No De planctu, é o desfalecimento do próprio poeta quando lhe surge em sonhos a dama Natureza e quando ele se encontra "sepultado na alienação do êxtase, nem morto, nem vivo" (in extasis alienatione sepu/tus, nec vivus nec mortuus) (442 b) - estado que não corresponde a nenhuma das duas espécies de "saídas de si" apresentadas no Prólogo da suma Quoniam homines: nem o arroubo místico diante do indizível mistério divino nem, ainda menos, esse mergulho degradante nas paixões que faz do homem, metaforicamente, um lobo ou um porco. O êxtase é aqui o assombro de ver surgir essa Dei auctoris vicaria que, no momento desejado, extraiu, diz ela expressamente, da matéria informe, o rosto humano do poeta, organizando um corpo digno de receber como consorte o espírito que lhe convém (spiritus é aqui tomado por anima, devido à metáfora nupcial) e conferindo-lhe a harmonia sem a qual ele teria repugnância pelo sponsus diretamente saído das mãos divinas (442 c). Esse discurso de Natura nos lembra que a vicaria é responsável apenas por um receptáculo, mas comparado à esposa do Cântico, e que deve ser compreendido no sentido mais amplo, visto que comporta explicitamente, além do sentido, a memória e o raciocínio (o que veio do céu sendo apenas, em suma, a ponta superior da alma intelectiva, esse nous que também Aristóteles dizia vir "de fora"). O todo fabricado "à semelhança" do "grande mundo" do qual nosso corpo é de certa forma o "espelho" (443 b). Sem dúvida permanece a oposição entre a operação divina e a de sua auxiliar, reduzida a forjar seres caducos (de uma certa maneira potentia impotens, ela forja "para a morte", ela que tanto ama a vida). Se é verdade, entretanto, que ignora os mistérios da Natividade no que estes possuem de insondável, ela é incessantemente conduzida até à fé. Ainda que o domínio propriamente celeste não seja seu "ofício", ao Credo ut intelligam de Anselmo ela opõe literalmente um Seio ut credam (446 b). Assim, como o comparativo entre o positivo e o superlativo (Ala in adora as metáforas gramaticais), ela é efetivamente o meio entre o humano e o divino. No Anticlaudianus, quando Fronésis, diante do Céu empíreo, perde a consciência e recebe da Regina poli (chamada matrona (ides) um maravilhoso espelho que, assim como as etapas intermediárias oferecidas na República de Platão aos prisioneiros libertados, deve proteger seus olhos do excesso de luz, de forma que ela possa progressivamente (apesar do falso 76

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hiato da síncope) perscrutar os mistérios da ordéhl divina (VI, 73-155). Certamente, nesse nível, reina a sola voluntas e, sob o "ditame do mestre", "a regra se cala"; o que se busca, para além de qualquer ratio, é, sem dúvida alguma, a sola (ides (VI, 180): a coisa, no entanto, não é tão simples, pois longe de eliminar a razão, a fé aqui tende a satisfazer seus verdadeiros desejos e, antes de tudo, a sistere seus somnia (VI, 80). O que no momento Fronésis discerne lá no alto, incluindo-se os mistérios da predestinação e o motivo original de todas as vocações, é muito menos um conjunto de decretos do que todo um jogo complexo de celestes ideae e de ingenitae speeies (VI, 214 sq.), realidades, pois, em nada heterogêneas aos modelos oferecidos à Natura para conduzir sua obra demiúrgica. No outro extremo da escala, as continuidades são igualmente manifestas. O projeto renovador de Natura é deliberado em concílio e é um desejo comum do universo criado que Fronésis irá apresentar a Deus. Pilhas dessa mensageira, nas quais ela mesma infundiu "todos os dons de Sophia" (Il, 331), as sete artes liberais que constituem as partes do carro ascensional pouco lembram os sombrios despojos egípcios. Aqui a velha mitologia funde-se sem falha aparente com a analogia cristã. Minerva, com efeito, vendo as artes resplandecerem com um tal brilho, ordena ela mesma ao maravilhoso veículo que tome a rota do Céu para aí perscrutar "os segredos de Noys". Ao longo da subida, é com o mesmo olhar que Fronésis parece perscrutar, à sua passagem, as hierarquias celestes (e diabólicas), os fenômenos meteorológicos, e o movimento dos planetas com seu duplo aspecto físico e astrológico. Certamente, para além das constelações, os arcana Dei a assombram e fazem-na balbuciar (V, 126-127), mas logo o auxílio de uma espécie de irmã mais velha a conduz para além de si mesma, na ascensão daquilo que Alain não hesita em denominar um "Olimpo" (V, 258 sq.). Ora, é curioso que, mesmo nesse nível, que diríamos puramente teológico, ao lado dos Serafins, dos Querubins e dos Tronos, em companhia agora dos bemaventurados que, sem renegar a carne, forçaram-na a servir ao espírito (V, 457), a viajante contemple ainda realidades paradoxais, mas de ordem física, não apenas as águas celestes presas ao cristalino, cujo gelo nenhum fogo derrete - fenômenos que excedem as leis da Natureza mãe (excedunt matris naturae jura) (V, 368) e diante dos quais a filosofia fracassa, pois eles correspondem a "formas novas" e a "novas leis" (V, 425) - , mas, ainda uma vez, realidades de ordem simplesmente meteorológicas, responsáveis pelas precipitações de granizo e pelos temporais (V, 325). Seria cansativo acompanhar todos esses episódios que se sucedem e se repetem. Face a tantos mistérios, Fronésis passa mal mais uma vez. Intervém agora Pides, caridosa matrona diante da qual vemos Ratio se inclinar (Ratio que, como Abraão, obedece às ordens primeiramente entendidas como contrárias à moral natural e reconhecidas em seguida como Gêneses da Modernidade

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resultantes de uma harmonia superior). E quando Deus, enfim, no final da ascensão, aceita formar o spiritus que virá animar o corpo do homo perfectus (verdadeiro peregrinus in orbe terreno), é bastante significativo que também ele, assim como Natura na outra extremidade, delibere e consulte. Alain mostra que recorreu a Noys para que esse auxiliar divino lhe prepare como queira um modelo ideal do Antropos, e o mostra in speculo (o espelho tem, aqui, muitos usos) como a reunião de tudo o que pôde ser realizado de melhor na ordem espiritual (a força de Jó, a fé de Abraão, a simplicidade de Tobias, etc, VI, 436 sq.). O homem novo, assim, não será senão a perfeição suprema mas elaborada por todos os profetas e todos os santos. Munida de um ungüento (que os críticos comparam, geralmente, ao batismo, sem que o texto imponha essa exegese), Fronésis agora volta à Terra, sem sofrer o frio saturnal nem os ardores de Marte; tendo reencontrado o carro de Razão, ela oferece o dom celeste à Dei vicaria, que se põe a trabalhar, unindo bastante bem os elementos para que o fogo, longe de incomodá-los, ao contrário, apazigue os humores. O resultado é "um novo Narciso", um "novo Adônis", tão belo, que uma "nova Vênus" (aqui pura metáfora, a deusa pagã não desempenha o papel ambíguo de acólita meio infiel que o De planctu lhe atribuía), ao vê-lo, só poderia sucumbir a seu "habitual furor" (VII, 41-43). Obra tão bem-sucedida que a própria Natura se espanta com ela. Conseqüentemente, resta apenas eliminar o acaso ou, antes, sob o controle de Razão, neutralizar Fortuna, que, também ela, desejava participar (outra continuidade) na obra comum, e finalmente aceita parar com suas mentiras para se colocar a serviço de uma Nobilitas que parece aqui remeter à Proeza dos cavaleiros. Sem dúvida o último canto do Anticlaudianus mostra a revolta de um Inferno que até então não havia adquirido um aspecto dramático. Não é de surpreender que a instável Fortuna seja tentada a ceder aos assaltos diabólicos, mas Natura não se deixa absolutamente seduzir. A fria e convencional série de duelos singulares entre Vícios e Virtudes termina, bem entendido, com a vitória da Dei vicaria, que parece ao mesmo tempo a exclusão dos deuses antigos, incluindo-se esse Excessus que, de uma maneira na verdade bem próxima dos filósofos gregos e latinos, o autor opõe à necessária Moderatio. Como se vê, essa espécie de apocalipse permanece bastante razoável. Na nova idade de ouro - prefigurada de várias maneiras pela primeira descrição de Natura, com seus pés que representam as ervas do solo, suas roupas de baixo e sua túnica simbolizando plantas e animais, seu diadema correspondendo aos astros e às constelações - os opostos agora se juntam. A terra toca o céu e brilha tanto quanto o éter, o ferro não fere mais o solo que tira de si mesmo suas colheitas, as rosas não têm mais espinhos, mas não parece se tratar de uma Terra nova nem de 78

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um novO Céu. Simplesmente a antiga Terra recobrou sua plenitude anterior e nada aparentemente a separa, daí em diante, do reino da Graça. A rigor, seria possível questionar se o mistério não seria aqui uma forma superior de inteligibilidade. É verdade que as obras mais tecnicamente teológicas de Alain, assim como seus sermões, sugerem outras linhas de reflexão, mas a leitura do De planctu naturae e do Anticlaudianus anuncia, a despeito da evidente diferença estilística, a teoria malebranchiana do milagre, e até mesmo as grandes construções unificadoras de Leibniz.

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VI. OS DOIS FUNDAMENTOS DA ORDEM ESCOTISTA

Vl.a. FÉ E RAZÃO EM DUNS ESCOTO"·

Contra a persistente lenda que imputa a Eseoto um "voluntarismo" inimigo da inteligência e um "fideísmo" que desprezaria a razão (essa razão que, por outro lado, acusam-no às vezes de levar a um excessivo refinamento), os próprios textos, quando lidos sem preconceito, trazem geralmente a mais clara resposta. Foi assim especialmente que Fernand Guimer - por ocasião do Congresso Escotista de 1966, ao reler a distinção 27 do Livro IH da Ordinatio - mostrou, em Escoro, o papel da recta fatio (noção tipicamente anselmiana), no exercício da mais nobre virtude teologal 1 • Conformitas é a expressão mesma da Ordinatio; nas passagens correspondentes da Reportatia lê-se consonantia. Os termos são significativos; remetem, ambos, a essa "sinergia" cara ao doutor franciscano que, sem ignorar o escalonamento hierárquico das potências cooperantes, recusa-se a reduzir as causas subordinadas a simples causas instrumentais, e menos ainda a causas ocasionais (tal como foram mais de uma vez compreendidas pelos ockhamistas, e não apenas na perspectiva de uma dialética na qual a animosidade do contestador - o protervus - visa à estrita delimitação do necessário e do provável). No mesmo congresso do sétimo centenário, tentamos mostrar2 que a sociedade, definida em termos agostinianos como" disposição congruente de pessoas iguais e desiguais", no estatuto do após a queda, que exclui a harmonia espontânea e a comunidade das posses e dos poderes, funda-se em acordos livres estabelecidos pelos homens à luz de sua recta ratio 3 , em conformidade com um "direito natural" que, certamente, não rege de maneira absoluta os preceitos da "segunda Tábua", afetados por uma certa contingência e suscetíveis, por isso, a "dispensas" divinas e a modificações segundo as conjunturas, mas cujos conteúdos permanecem, em todos os casos, "consoantes aos princípios da lei e da natureza, ainda que dela não se deduzam de maneira necessária"4. Esse encontro entre os preceitos divinos (que, adaptando-se a diferentes estatutos, poderão ainda variar no futuro) e a instituição humana de pactos de associa". Comunicação apresentada no Congresso Escotista de Pádua (setembro 1976; posteriormente publicada em Regnum hominis et Regnum Dei, Roma 1978, p.125-132). Gêneses da Modernidade

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ção e de submissão permite estabelecer, segundo os tempos e os locais, a melhor (ou a menos ruim) divisão de bens e de autoridades, o limite razoável dos ganhos e dos benefícios. Esse jogo de dois termos encontra-se igualmente operante, pro statu isto - aí onde se impõe de fato o recurso ao sensÍvel- na negocia tia por meio da qual o intelecto agente se apóia no fundamentum in re, tal como lhe é oferecido pela experiência imediata, para encontrar as articulações do ser indeterminado, formas genéricas ou específicas, e mesmo essas diferenças singulares que, em nossa condição de viatares, não assimilamos senão em nível da espécie, por não podermos alcançar a "razão própria" do indivíduoS. Se a recepção da imagem não é algo anterior à formação no intelecto humano de um canceptus realis, no status iste (o qual poderia efetivamente estar ligado às conseqüências do pecado), deve-se frisar que a cooperação entre causas hierarquizadas pertence, como tal, à própria natureza do criado, Do mesmo modo, à questão de saber se o intelecto é "a causa total que engendra um conhecimento atual, ou a razão desse engendramento" (o que não constitui uma alternativa, mas os dois aspectos de uma mesma hipótese), Duns Escoto responde que um intelecto dotado de um tal poder não deixaria de conferir a si próprio presentemente um saber sem imperfeição, o que não é, evidentemente, o caso. É preciso, portanto, admitir um "concurso" entre a "alma" e o "objeto presente,,6, mas sem entender com isso que a causa ativa colocada como superior já contivesse em si, em um modo "eminente", a virtude causal da causa ativa subordinada, contentando-se, por assim dizer, em delegar-lhe uma parte de seus próprios poderes, ou mesmo em usá-los como uma ferramenta, Quando se trata, como aqui, da cooperação entre o espírito e a coisa, ou, em um plano completamente diferente, das respectivas participações do macho e da fêmea na obra procriadora, cada virtus desempenha seu papel particular, de forma que o resultado que produzem "a mais perfeita e a menos perfeita" pode ser "mais perfeito" do que seria, sozinha, a ação da "mais perfeita"?, Também o calor solar, ainda que seja "menos nobre" que o do animal, pode cooperar com este para engendrar um ser vivos, e vemos aqui como esse procedimento permite conciliar com a cosmologia judaico-cristã (que atribui mais dignidade às criaturas vivas do que aos corpos celestes inanimados) um princípio da biologia aristotélica no qual se discernem traços de teologia astral. Mecanismos análogos permitem que o intelecto, único capaz de conceber o princípio da indução, se apóie na própria experiência para ultrapassar a simples expectativa daquilo que Ockham denominará os hábitos da natureza e, assim, constituir um saber autêntico acerca das causalidades naturais (por mais contingentes que sejam em relação à liberdade primeira da onipotência criadora 9 , Em um campo totalmente diferente - no qual a posição escotista é freqüentemente distorcida, desempenhando a inteligência, dessa vez,

o papel de causa subordinada em companhia da imaginação, mas em um nível superior - encontramos, de maneira sem dúvida mais complexa, o mesmo tipo de cooperação. Certamente a vontade é "potência principal", pois a beatitude, fim último visado pelos atos humanos, diz respeito à posse e à fruição mais do que ao puro saber, Mas se é verdade que Duns Escoto opõe mais nitidamente do que os outros a livre escolha da vontade a essa espécie de necessidade que força o espírito a não mais abandonar o bem reconhecido como tal, o Doutor sutil afirma a função "ostensiva" dessa própria adesão 10 , a propósito da "sindérese"). E essa causalidade, subalterna mas efetiva, da razão se aplica mesmo com tanta insistência ao caso limite do actus fidei, a ponto de um tomista como Caetano ter podido se perguntar se Escoto aqui não atribuía um peso exagerado ao intelecto 11, Que não se desconsidere, assim, no que concerne às relações da fé e da razão (e especialmente a delimitação das credibilia e scibilia), a diferença de perspectiva entre Escoto e Tomás. E também não se deve confundir com a verdadeira doutrina do doutor angélico interpretações como as que Dante tende a tecer, quando parece atribuir ao "filósofo" e ao imperador, ao lado do domínio reservado ao papa (a beatitude no além), uma vasta esfera, teórica e prática, correspondente à felicidade que se pode alcançar neste mundo graças às lições do maestro di calor chi sanno 12 • Entre esses setores, o equilíbrio deve ser assegurado por meio da referência comum a um Deus único, porém muito paradoxalmente o poeta que pinta com tal refinamento os sofrimentos infernais parece esquecer as conseqüências do pecado (e mesmo os limites que sua finitude impõe a todas as criaturas) quando descreve como possível um império terrestre que una todos os homens sob a sábia direção de um chefe, atento às lições de Aristóteles, acrescentando que, visto que "Deus e a natureza não fazem nada em vão" 13, nessa comunidade ideal se atualizará plenamente, em todas as épocas e locais, o que encerra "em potência" a "virtude intelectiva" da humanidade 14 , Fórmulas que fazem pensar que a humanidade assim unificada poderia alcançar esse "último fim" que lhe conferia o "quase divino" Aristóteles, "digno de fé e de obediência"lS, Certamente a posição de Santo Tomás é inteiramente diferente, O autor do Convivia parece acusá-lo exatamente por ter feito da filosofia uma "serva" da teologia, ao passo que, para ele, esta merece, como qualquer autêntico saber (aqui a donna gentile, consoladora de Boécio, encontra-se com essa teologia que é raciocínio sobre a fé mais do que verdadeira "ciência divina"), a posição de "rainha" em uma espécie de harém que comporta várias delas (como as concubinas e as criadas), todas subordinadas à "pomba sem mácula" da pura contemplação 16 . Confirmada pela própria estrutura do Paraíso descrita por Dante, seus céus superpostos e por fim esses degraus escalonados a tal ponto que mesmo Beatriz deve ceder o lugar ao

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místico Bernardo 17, essa perspectiva se concilia mal com o culto de Aristóteles; em contrapartida, se afina bastante bem - com a única exceção da fórmula "ancilar" aplicada à filosofia, mas que não tem nada de desdenhoso já que a Virgem é dita serva de Deus e que o papa se quer servidor de seus filhos - com a definição tomista da doctrina sacra como ciência teórica que extrai seus princípios da visão beatífica assim como a perspectiva é subalterna à geometria e a música à aritmética 18. Eis aí justamente um dos pontos em que Duns Escoto - que visa freqüentemente a outros doutores - critica explicitamente o Angélico 19 • É claro que não para denegrir, como se poderia pensar, o que ele chama "nossa teologia" (que certamente não é a de Deus e nem mesmo comparável à dos anjos e dos bem-aventurados), mas porque, com todos os seus limites, e com o que faz dela essencialmente uma scientia practica, ela repousa nesses princípios próprios, sem que lhe seja necessário se submeter a uma visão normalmente inacessível in via. E apesar das inegáveis diferenças de ponto de vista e de sensibilidade (mas também de terminologia), constatam-se entretanto certos paralelismos e várias convergências entre Escoto e Tomás, e isso pode ser confirmado, parece-nos, por um breve cotejo da controversia inter philosophos et theologos (no prólogo da Ordinatio) com o começo das duas Sumas. É verdade que, para o Aquinate - em um universo livremente criado, mas segundo uma lex aeterna que, através de sua "irradiação", se manifesta mais ou menos claramente a toda criatura racional 2o , universo tão bem ordenado que nenhum valor poderia ser aí modificado sem abalar a harmonia do todo, pois para fazer um mundo melhor do que o nosso seria necessário transformá-lo inteiramente, como se substitui um instrumento musical por um outr0 21 _ , a razão é capaz, por seus próprios meios, de demonstrar a existência e a unicidade de Deus, até mesmo sua potência criadora. Mas Santo Tomás logo especifica que o homem, visto que seu fim último escapa a qualquer apreensão natural, não pode viver sem a revelação. Não apenas porque os mistérios da Trindade e da Encarnação confundem a razão, mas igualmente porque, mesmo aí onde vias demonstrativas prevêem a existência necessária de uma excellentissima substantia que "transcende todos os inteligíveis"22, nós, que somos, segundo o próprio Aristóteles, como que morcegos cegos diante das realidades mais próximas, alcançaríamos, apenas com nossas forças, o que nem mesmo os anjos podem saber, eles cuja ciência está ultrapassada pela divina mais ainda do que a nossa pela angélica, e que a do ignorante pela do sábio? Mesmo no nível da teologia natural, acessível aos gentios, as verdades só são alcançadas por uma minoria, após um imenso trabalho, à custa de uma massa de erros que são como o joio no meio do bom grão. Muitos aliás são impedidos e outros se cansam. Mas sobretudo o saber obtido desse modo, 84

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por mais estimável que seja, e bastante útil para ordenar as verdades da fé, para extrair delas todas as conseqüências, continua insuficiente em muitos casos, por exemplo quando se trata de responder filosoficamente à difícil questão da eternidade do mundo oposta à novitas rerum 23 , mais geralmente ainda quando se trata de ultrapassar o fato de que Deus seja para apreender algo do que ele é. Assim, a referência de Santo Tomás24 às duas demonstrações possíveis da redondeza terrestre - que Duns Escoto25 contestará em nome do princípio de economia - tem justamente por propósito eliminar a objeção segundo a qual a teologia natural, no sentido aristotélico, forneceria de Deus um conhecimento suficiente. Se respondemos que o mesmo objeto pode ser apreendido segundo dois modos, isso não quer dizer que sejam de mesmo valor e, no caso considerado, parece que a demonstração do astrologus, que abstrai a matéria, prevalece sobre a do physicus. Em várias circunstâncias, especialmente a propósito da prima via tomista, Escoto se deleitou em mostrar a insuficiência da demonstração "física" porque esta parte das criaturas (contingentes), não das próprias estruturas da "criabilidade"26. De modo que a sua crítica surpreenderia se justamente a prova astronômica - que repousa na experiência do eclipse tal como evocada por Aristóteles nas Anal. posto lI, 2, 90a - não se referisse, também ela, às "criaturas", remetendo a um estado de fato cósmico que, senão para o próprio Aristóteles, ao menos para todo cristão, poderia ter sido de outra natureza. Mas isso não é tudo: a principal justificativa da proposta escotista parece ser a de que, com efeito, para o homem persuadido pelas provas físicas da redondeza terrestre, o saber suplementar recebido do astrônomo não seria de forma alguma um conhecimento absolutamente necessário (cognitio simpliciter necessaria). Ora, sabemos que o mesmo não ocorre quando se trata dessa theologia que é apenas, segundo o Aquinate, uma parte da filosofia (pars philosophiae) e que por isso, tanto para ele quanto para Escoto - é indispensável completar com uma doctrina sacra que repouse nos fundamentos da fé. O conflito aparente resulta aqui, parece, de fórmulas colhidas, remetendo a uma analogia mais sedutora do que convincente entre um saber exigido para a salvação e, por outro lado, um conhecimento profano concernente à forma física deste nosso mundo, conhecimento há muito adquirido e, sem dúvida, mais difundido do que imaginamos entre os homens da Idade Média, mas que tinha pouca importância para sua vida cotidiana e menos ainda para seus fins sobrenaturais. Não há dúvida de que Duns Escoto enfatiza a liberdade criadora de Deus, mas a diferença que ele aponta (de modo menos sistemático e menos paradoxal do que Ockham) entre potentia absoluta e potentia ordinata não era absolutamente estranha ao Aquinate, que a usa bastante sutilmente para escapar às armadilhas de uma aporia que já havia colocado Abelardo Gêneses da Modernidade

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em perigo: se Deus sabe de antemão e preordena o que irá fazer, seria possível dizer que ele poderia fazer algo diferente do que efetivamente fez? Ao que o Angélico responde que, não sendo a vontade de Deus determinada por isso ou aquilo de forma necessária, - senão talvez ex suppositione (isto é, em virtude de uma coerência lógica com o resto de suas decisões) _, "nem sua sabedoria nem sua justiça são determinadas por tal ordem" e tem-se o direito de dizer que, segundo sua "potência absoluta", ele pode impor um outro estado de coisas, mas denomina-se "potência ordenada" o que decretou segundo sua "justa vontade"27. E, por sua vez, se o Sutil recusa colocar em Deus, anteriormente à criação, um mundo platônico de "Idéias" entendidas como" relações eternas" e "reais" que limitariam de algum modo sua potência absoluta, se - utilizando uma linguagem que erroneamente interpretaríamos em um sentido temporal, pois trata-se, antes, de níveis por assim dizer estruturais - ele admite comO provável que a criatura só seja "comparada" a um "inteligível" (isto é, introduzida em um sistema de relações que podem servir como regras ao intelecto humano) em um "instante" posterior ao da criação, entendido como aquele em que "Deus produz a pedra e seu ser inteligível" (Deus producit lapidem in esse intelligibile) (a relação, nesse nível, existindo apenas na pedra assim "inteligida" à intelecção divina, não em sentido inverso), deve-se destacar que o que ele considera como primum instans, "anterior" (não cronológica mas logicamente) a qualquer produção de coisa e de idéia é muito explicitamente 28 aquele no qual Deus intelligit essentiam suam sub ratione mere absoluta • Só com essa fórmula já se poderia eliminar, de uma vez por todas (mas não se ousa esperá-lo), todas as exposições caricaturais que, mesmo em autores mais sérios como Landry, pretendem reduzir o Deus escotista a um tirano arbitrário e fazer de sua obra um simples "mosaico" de essências justapostas. A esse respeito, dentre tantas outras referências, lembremos o significativo texto no qual- com o único senão de que as verdades ditas eternas só o poderiam ser secundum quid em virtude da contingência que afeta todo o criado e porque elas são somente os objecta secundaria desse intelecto divino que é o único a merecer ser chamado de uma "luz eterna" - Duns Escoto não teme afirmar, com Santo Agostinho, que vemos "verdades infalíveis" em "regras eternas,,29. Na "controvérsia entre filósofos e teólogos", Escoto não coloca em cena, bem entendido, epicuristas, céticos ou mesmo, a não ser com raras exceções, discute diretamente com Platão ou Aristóteles. Seus supostos interlocutores são, antes, como os do Contra Gentes, muçulmanos, judeus ou cristãos influenciados pela filosofia árabe (como já no século XII o "filósofo" do Diálogo de Abelardo, mas aqui a vontade polêmica prevalece sobre o irenismo). Não se trata de ateus nem de idólatras; esses adversários falam de "natureza criada" e invocam mesmo, eventualmente, certos temas 86

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de Agostinho. Seu erro é o de pretender apreender pelas vias exclusivamente racionais todos os desígnios de um Deus do qual, em seu entender, todas as coisas procederiam de modo necessári0 30 , e o de imaginar assim alcançar a beatitude apenas a partir das exigências e das vias da natureza, desprezando ou ignorando o mistério da criação e a gratuidade da salvação. Todos esses "filósofos", sem distinção, consideram supostamente a "natureza" como "perfeita". O que significa que, para eles, a qualquer potência passiva natural deva corresponder algum activum naturale, sem o qual seria necessário dizer que a natureza trabalhou em vão. Assim, o homem é feito para compreender tudo O que pode ser compreendido, pois as três ciências especulativas definidas por Aristóteles cobrem o domínio inteiro do ser. Além do mais, é apenas do conhecimehto dos princípios que se podem inferir todas as conclusões suscetíveis de serem conhecidas (omnes conclusiones scibiles) (n. 7-10). Não se está longe dos argumentos de Dante e, para além do que se costuma chamar "averroísmo" (ou "aristotelismo heterodoxo"), reconhece-se todo o movimento de "laicização" que as condenações de Tempier aliavam deploravelmente a certas teses tomistas. É igualmente tentador, em um campo vizinho, evocar o Roman de la Rose e a posição naturalista de João de Meun que, da simples presença dos órgãos genitais, extrai não o apelo incondicionado ao prazer, mas a certeza, no entanto, de que um uso máximo da sexualidade, alcançando maior fecundidade, realiza os desejos divinos. Face a essas pretensões, sem negar a consistência e o valor próprio do natural, o papel dos "teólogos" é o de denunciar os defeetus, logo a necessidade da graça e o apelo de uma perfeição sobrenatural (n.S). Mas para isso eles não poderiam argumentar através de puras razões naturais, e suas persuasiones comportam necessariamente premissas de fé, pois pro statu isto nada mais lógico, na verdade, do que a posição dos "filósofos". Contra eles, o vigor da argumentação escotista provém dessa própria noção de status viae. Aqui neste mundo o homem não pode conhecer "distintamente", mas somente pressentir, que o seu verdadeiro fim é uma contemplação que ultrapassa o sensível e deve durar eternamente. Esse fim corresponde entretanto à sua verdadeira natureza, e não comporta, conseqüentemente, nenhum "salto" de tipo kierkegaardiano, assim como a condição pecadora não provoca uma total degradação da natureza. Desse modo, o viator, apesar da referência dos "filósofos" à mens agostiniana, não pode conhecer, sob sua "razão própria e especial", a disposição que o ordena à beatitude sobrenatural (n.38). Tem-se aqui o que distingue essa posição - em que o sobrenatural é de algum modo natural, apenas ocultado pelo estatuto de viajante - de uma outra que admite dois níveis superpostos de eudemonia e de verdadeira contemplação. Acrescentemos que, na hipótese de o homem, por si mesmo, conhecer esse fim superior, ele não poderia alcançá-lo por suas próprias forças. Gêneses da Modernidade

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gumento dialético que retomará exaustivamente o protervus das discussões ockhamistas), Duns Escoto responde, muito significativamente, que convém mais à perfeição divina comunicar à sua criatura uma atividade própria, a cognitio imperfecta que representa a fé, precedendo assim e preparando a cognitio perfecta ad quam fina/iter ordinatum (n.50), o que se aproxima bastante da fides quaerens intellectum e confirma as aproximações já observadas com os temas anselmianos. Assim se justifica igualmente o papel dos predicantes e ilustradores da fé, substitutos necessários do objeto sobrenatural, encarregados de transmitir o conhecimento imperfeito "virtualmente contido no conhecimento perfeito cuja causa seria o objeto conhecido em si mesmo" (n.63). E no agente imperfeito já se manifesta uma "potência obediencial" que inclina o intelecto para a verdade que o ultrapassa (n.92). Do mesmo modo - e é nessa ambigüidade um tanto surpreendente que é necessário fechar, senão concluir, essas modestas reflexões - , a própria noção de status iste, especialmente como detalhada na Ordinatio 3 3, longe de ser somente uma conseqüência enfraquecedora e humilhante da primeira falta, remete explicitamente a uma "ordem" desejada por Deus, uma stabilis permanentia firmata fegibus sapientiae. Conseqüentemente, algo inteiramente diverso da sombra inconsistente que o Eclesiastes descrevia. Escoto parece hesitar quanto às razões desse "estatuto". Duas hipóteses podem ser invocadas: uma, que é freqüentemente referida e que é a punição do pecado original; a outra, bastante negligenciada, pela qual reencontramos o tema da sinergia entre causas subordinadas: o valor de uma concordância efetiva entre as operações das diversas potências do homem. O que sugere igualmente que de um mal possa sair um bem, mas igualmente que os sentidos não estão excluídos de uma cooperação na qual a razão e a fé desempenham, cada uma, seu papel positivo.

Essa ignorância do estatuto próprio à natura fapsa tem também por efeito impedir que os humanos que se apegam apenas à natureza conheçam, a priori ou a posteriori, a verdadeira estrutura dos anjos; não se imaginam "absurdamente" outras naturezas separadas a não ser os regentes dos astros, que são tidos como espontaneamente bem-aventurados e impecáveis. Pensa-se igualmente que eles agem de modo necessário e que seus movimentos determinam nossos destinos. O mesmo erro faz com que seja difícil admitir como possível que a essência divina se comunique a três pessoas, pois neste mundo o ser infinito só pode ser alcançado através de conceitos imperfeitos, comuns ao Criador e à criatura (n.49). Nada disso está em contradição radical com as posições tomistas (a não ser sem dúvida a idéia de que o recurso necessário ao sentido só é imposto ao nosso intelecto pro stato isto, mas esse problema técnico toca apenas indiretamente no problema das relações entre a fé e a razão). Para melhor mostrar que as diferenças entre os dois métodos de pensamento só se referem afinal a pontos secundários (pelo menos na nossa presente perspectiva), seria necessário ter a oportunidade de enfrentar algumas das difíceis questões que, apesar de tantos excelentes estudos, continua a suscitar o uso escotista de "nossa metafísica", a serviço de demonstrações propriamente "naturais": definição da analogia e da univocidade, da distinção formal e dos pares de transcendentais, demonstração de Deus pela passagem da possibilidade à existência atual, reformulação original da argumentação anselmiana, mas, sobretudo, a maneira pela qual Escoto reconsidera, tanto no De primo principio 3l quanto na Ordinatio 32 , a noção de ordem e a rejeição de tudo o que, "vão", não seria "nem fim nem subordinado a um fim". Gostaríamos sobretudo de reter o que, na pars prima do Prologus. afirma vigorosamente os direitos positivos da natureza e da razão. É assim que o próprio dom da graça só pode ser conferido a uma natureza capaz de recebê-lo, em virtude de uma ratio specialis que possui, com efeito, a criatura humana em relação ao sobrenatural, e que somente nossa condição nos impede de aprender como ral (n.32). Melhor dizendo: para Escoto, a excelência mesma da natureza humana requer seu direcionamento a uma perfeição superior que, longe de aviltá-la, corresponde justamente à sua verdadeira dignidade (n.74). No plano da criação se impõe, assim, a necessidade de um "agente dispositivo" capaz de conduzir o homem a seu destino final e, conseqüentemente, a necessidade de uma cognitio surnaturalis que, mesmo sem o acidente do pecado, não seria menos requerida do que a ostentação terrestre de Deus na Encarnação do Verbo e na missão do Espírito (n.49). E, se se objeta que Deus, o "agente perfeito", poderia imediata e diretamente reparar a criatura de suas imperfeições e de sua degradação (ar-

1 F. Guimet, "Conformité à la droite raison et possibilité surnaturelle de la charité", in De doctrina Ioannis Duns Scoti, III p. S39-597, Roma, 1968. 2 Cf. "Lei natural e contrato social segundo Duns Escoto", incluído neste volume. No mesmo sentido, mas sobretudo comparativamente a Santo Tomás, Angelo Marchesi, "L'Aurorita politica c la legge naturale nel pcnsiero di Giovanni Duns Scato et di s. Thomaso d 'Aquino", loc. cito II p. 671-682. 3 Duns Escoto, Ordinatiu, III d.1 q. n.17; Vives XIV 45a. 4 Ordinatio, IV d. 26 q. uno n.7; Vives XIV 139b. 5 Ordinatio 11 d. 3 p. 1 q. 5-6 n.192. 6 Ordinatio I d. 3 p. 4 q. 2 n. 487. 7 Ihid. n. 487. Cf." De primo principio III c.2, 40-41. 8 Ibid. n. 507. p..lOO.

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NOTAS

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, Cf. In Met., I, 4, 5 sq. 10 Ordinatio, 11, d.39, q. 2. 11 Cf. E. Longpré, La philosophie du Bienheureux Duns Seot, Paris 1924, p. 209. 12 Dante, La Divina Commedia, lnf. IV 131. Cf. Etienne Gilson, Dante et la philosophie, Paris 1939. E igualmente "Dupla face da Filosofia no Convivio de Dante", incluído neste volume.

13 De coe/o, I, 4, 27a. 14 De monarchia, I, 3 _ texto bastante enigmático devido à sua referência final à doutrina averroísta, entretanto condenada explicitamente em Purgo XXV 63-66. 15 Conv. IV, 6. 16 Conv., 11,14. 17 Par., XXXI, 94 sq: 18 Sumo Theol. Ia q. 1 a. 2 resp. 19 Reportatia, prol. 113; Lectura, prol. p.3, g.l, 0.119-121. 20 Sumo Theol. Ia I1ae q.93 a.2 resp 21 Ibid. Ia q.2S a.6 ad 3 um 22 Contra Gentes la, 3. 23 Sumo Theol., Ia, q. 46 a. 2 24 Ibid. Ia, q. 1 a. 1 ad 2 um. 25 Ord. prol. p.l q. uno 0.79. 26 Ord. Ia, d. 2 q. 1-2, n.41. 27 Sumo Theol., Ia, q. 25. 5 ad 1 um. 28 Ordinatio, I d. 35 q. uno n. 32. 29 Ordinatio I d. 3 p. 1 q. 4 n. 261-262. 30 Ordinatio prol. p. 1 q. uno o. 18. 31 Especialmen~e 111, concl. 19. 32 Por exemplo, prol. p.l q. 1 n. 75. 33 Ordinatio I d. 3 p. 1 q. 3 n. 187.

VI.b.

LEI NATURAL E CONTRATO

SOCIAL SEGUNDO DUNS ESCOTO"

Felizmente já se foi o tempo em que, a partir de alguns textos isolados e mal compreendidos, críticos impertinentes afirmavam ver no escotismo os germes de uma perigosa anarquia social e a justificativa para o despotismo político. Como observa um historiador (que entretanto não tem nenhuma simpatia pelo Doutor sutil) 1,a exigência ontológica do "calendário eclesiástico" e a definição da natura como entitas absoluta ultra partes excluem, de saída, qualquer visão "atomista" da comunidade humana 2 • Duns Escoto certamente não imagina que a convergência dos instintos naturais seja suficiente para instituir uma sociedade harmoniosa, mas não conhecemos nenhum filósofo sério que tenha jamais sustentado algo desse tipo. Platão enfatiza, tanto quanto Aristóteles, o processo de decomposição que ameaça qualquer politeia; para ele, a cidade humana precisa de uma proteção constante dos deuses ou da utópica intervenção de sábios que desçam mais uma vez à caverna após um estágio prolongado em um mundo por detrás 3 . Aristóteles enfatiza os riscos próprios a todos os regimes políticos, e mesmo que lhe parece o menos ruim não é senão um precário compromisso4 . Conseqüentemente, não basta absolutamente definir o homem (anthropos) como animal político (gnou politikon) para solucionar os problemas práticos que coloca, dia após dia, a adaptação desse animal social às exigências objetivas do bem comum. É verdade que Duns Escoto fala às vezes uma linguagem menos aristotélica do que Santo Tomás 5 ; contudo, os dois autores concordam, com algumas variações, ao reconhecerem a importância de determinadas decisões livres, de ordem prudencial, de nenhum modo arbitrárias em seu princípio ou em seu fim, já que visam à manutenção de uma ordem sempre ameaçada, e obedecem, dentro do possível, ao ditame da reta razão. O papel que o mestre franciscano atribui à idéia de contrato livremente aceito não implica de forma alguma - como tentaremos mostrar - que a sociedade humana se reduza a uma simples reunião de indivíduos, fundada nas eventualidades da força ou em um frio cálculo de interesses esgoístas. Se o pacto vem substituir uma harmonia original- que era concebível apenas in statu innocentia, e cuja estrutura familiar não podia manter os traços subsistentes em escala suficiente para o desenvolvimento da humanidade - é justamente para que, a despeito

• .. Comunicação apresentada no Congresso Escotista Internacional, em Oxford e em Edimburgo em setembro de 1966 (posteriormente publicada em Studia schoLasticoscotistica, Roma 1968).

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de sua degradação, as pessoas livres que se constituem em corpo político possam viver em condições menos ruins, considerando-se as "circunstâncias", em uma comunidade humana, ela mesma definida da forma mais clássica, como "disposição conveniente de pessoas iguais e desiguais" (personarum parium et imparium congrua dispositio)6. O pecado de Adão não é, todavia, o único motivo que impede Duns Escoto de considerar sem restrições essa" disposição conveniente" como uma realidade própria e simplesmente "natural". Às conseqüências específicas da primeira desobediência somam-se, com efeito, o caráter finito e contingente da criatura como tal, a união, aqui neste mundo sempre precária, entre a alma e o corpo; enfim - e sobretudo - a irredutível autonomia da pessoa, essa ultima so/itudo da liberdade, capaz de aderir ou de se recusar ao que lhe dita a reta razã0 7 . Os dois primeiros motivos são essencialmente extraídos da Escritura, ainda que os platônicos já os tivessem mais ou menos pressentido; o terceiro tinha alcançado, neles, tanta importância que corria o risco de desembocar em um dualismo que desmente, para Duns Escoto, o fato central da Encarnação, com seu valor próprio, independente de iure da Redenção como tal 8 ; o quarto não era certamente ignorado por autores antigos que haviam definido a lex naturalis, mas a dupla reflexão dos moralistas e teólogos devia lhe assegurar um valor novo (ainda que desconhecido por vezes pelos doutores que destacam insistentemente o primado da inteligência). Duns Escoto jamais comentou de forma sistemática os textos políticos e econômicos de Aristóteles; é de modo incidental que ele retoma, quanto às questões concernentes aos sacramentos, no livro IV das Sentenças, vários problemas referentes ao direito natural e à lei positiva, às modalidades do casamento e da servidão, às origens da autoridade paterna e legisladora, às normas da apropriação e da troca. Por mais alusivas que sejam, essas observações - que se apóiam em uma cultura jurídica bastante importante - fornecem os elementos de uma doutrina deveras coerente. Deve-se ainda lembrar, para que se tenha uma interpretação correta, que ius naturae não é, em sua obra, diferenciado de ius gentium, e que o emprego desse termo se situa em uma perspectiva teológica (e metafísica) na qual a "natureza" não pode ter exatamente o mesmo sentido nem desempenhar completamente o mesmo papel que em Santo Tomás. A diferença aparece mais nitidamente a propósito especialmente da questão clássica Ultrum omnia praecepta decalogi sint de lege naturae: a resposta negativa do doutor franciscan0 9 se opõe, indubitavelmente, à tese tomista 10. Qualquer esforço de concordismo desfiguraria o pensamento dos dois mestres; é preciso perceber, entretanto, em que nível está situada smi' divergência e qual é o verdadeiro alcance das conclusões práticas que ela acarreta. 92

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Santo Tomás aceita perfeitamente a distinção tradicional entre as duas "Tábuas da Lei". A primeira Tábua, que concerne aos deveres em relação a Deus, visa "ao bem comum e final de todas as coisas", ao passo que a segunda congrega os preceitos exigidos pela "ordem da justiça, tal como deve ser observada entre os homens". Mas nos dois casos o Aquinate reconhece uma mesma intentio legislatoris; as duas Tábuas relacionam-se pois, para ele, ao mesmo direito natural e, apesar de certas aparências 11 , não contêm senão obrigações "indispensáveis". Duns Escoto, ao contrário, recusa situar no quadro de uma única e mesma lex as decisões divinas que, dependendo diretamente da natureza de um Ser primeiro e infinito, foram impostas ao Criador em qualquer hipótese e, por outro lado, aquelas que se referem ao contingente e permanecem por isso suscetíveis a certas violações 12 . O fato de que, nesse sentido, os preceitos da segunda Tábua não sejam propriamente de lege naturae não significa que resultem de uma vontade arbitrária. Mesmo em Ockham - que, atribuindo uma verdadeira natureza apenas à res individua, levará mais longe a tese voluntarista - não é certo que esse modo de raciocínio chegue à negação de qualquer hierarquia objetiva de valores. Para Duns Escoto, de qualquer modo - e o Venerabilis Inceptor não deixará justamente de criticar algumas de suas fórmulas porque pensará (erroneamente) que implicariam uma limitação da potentia absoluta -, a lei divina jamais comanda algum ato que não seja "bom" por si mesmo, senão de forma incondicional, ao menos nas circunstâncias ou segundo o estatuto no qual ela o prescreve à liberdade humana13. Se o Doutor sutil se recusa, entretanto, a considerar como pertencente ao ius naturale na sua mais estrita acepção os preceitos da segunda Tábua, é sem dúvida porque estes concernem às relações entre dois seres criados, que não apenas teriam podido ser (por livre decisão divina) diferentes do que foram, mas que se encontram de fato seriamente alterados no desdobramento de sua desobediência. A recusa talvez se deva também a uma razão ainda mais fundamental, visto que se prende à essência mesma desse querer divino, que Duns Escoto define como uma "vida", de modo que em nenhum caso e de maneira alguma poderia estar submetida a nenhuma "necessidade" limitadora de sua liberdade 14 . Seguramente Deus estaria se contradizendo se quisesse algo diferente do que o implicado por sua própria bonitas; seria extremamente inconveniente sustentar, por exemplo, como fará Ockham (em um modo dialético), que Deus "podia" prescrever ao homem a adoração de um asno. No nível da primeira Tábua, isto é, em relação à "Natureza incriada", nenhuma violação é racionalmente concebível. E, entretanto, mesmo aí, é livremente que Deus decide 15 , e a mais perfeita ratio é sempre, em relação à voluntas, apenas uma potência "ostensiva"16. O que interessa, pois, é que mesmo quando ordena atos que teriam sido bons em qualquer hipótese, ex solo obiecto 17, a deciGêneses da Modernidade

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são divina é comunicada na forma de preceitos; a fortiori, quando se aplica às relações inter-humanas e prescreve apenas atos de uma certa maneira "indiferentes", isto é, suscetíveis de serem "bons ou maus segundo as circunstâncias"18. Ao destacar o caráter voluntário dos decretos "indispensáveis" - e mesmo quando admite que, sem os ter colocado, Deus se contradisse - , Duns Escoto indica que os preceitos que se aplicam ao contingente não são por isso simples caprichos que escapariam a qualquer justificativa racional, ligada a uma análise da "natureza" como tal. No início de sua argumentação contra a tese tomista acerca das dispensationes, Duns Escoro define como sendo de direito natural, no sentido mais rigoroso do termo, qualquer princípio necessário notum ex terminis e qualquer conclusão imposta necessariamente por tal princípio. Tomada literalmente, essa fórmula reduz consideravelmente o domínio da lex naturae, visto que só infringem formalmente o princípio de não-contradição os atos livres que seriam incompatíveis com a própria essência do Ser primeiro e infinito. De fato, o doutor franciscano estende, por diversas vezes, o campo de aplicação da "lei natural". Vários textos sugerem particularmente que a natureza "criada" - por exemplo, a de Adão antes da queda - pode servir de base a uma inferência legítima quanto a determinadas obrigações concretas de caráter social, com a condição, bem entendido, de que se determine sempre, por um lado, que essa natureza teria podido ser diferente por ordem da vontade divina e, por outro, que as regras assim inferidas (sejam ou não explicitamente comunicadas sob forma de preceitos, enquanto leges divinae) só valem incondicionalmente em circunstâncias determinadas. Tendo essas circunstâncias se modificado após o pecado e fora do Paraíso, a lei pôde ser (no caso do casamento) reiterada e confirmada, ou, ao contrário (no que concerne à "comunidade das posses"), revogada. De qualquer modo, nos limites de sua validade, tal lei possui um conteúdo "natural", mais ou menos claramente demonstrável pela reta razão. E também, para um estatuto e um tempo definidos, ela não admite - regulariter, isto é, sem intervencão sobrenatural- nenhuma verdadeira dispensatia. É preciso prestar atenção aos advérbios ou expressões adverbiais (tais como propriissime e secundario, ou primo e secundo sensu) que especificam aqui ou ali o uso (mais amplo ou mais restrito) da expressão lex naturae. Ao distinguir o caso do fogo, que se eleva rumo ao céu pela necessidade de sua essência, e o da criatura dotada de livre arbítrio, "inclinada" a se reproduzir e a coabitar pacificamente com seus semelhantes, Santo Tomás qualificava sem restrições esses dois movimentos como "naturais" e não hesitava em estender essa "naturalidade" às modalidades constitutivas do casamento legítimo e da ordem política 19. Mais sensível aos aspectos contingentes do real criado (mas também, como veremos melhor mais adiante,

escotistas, simultaneamente curtos e densos, concernentes à origem da auctoritas legislatoris 22 só assumem seu pleno sentido através de um confronto prévio de duas instituições sociais essenciais - família e cidade _ com esses diversos aspectos, tão matizados, da lex naturae. O paradoxo é aqui o fato de o pacto social, descrito como tardio e livremente aceito pelos próprios homens, se acrescentar, sem negá-la, a uma "autoridade paterna" que parece ser imposta desde a origem e de maneira incondicional. Todavia, o estatuto dos dominia distintos, que leva progressivamente os homens a se agregarem em comunidades cívicas (e não mais apenas familiares), aparece, ele mesmo, como o substituto de um estatuto primitivo de posse indistinta cujo caráter plenamente "natural" o Doutor sutil destaca. De modo que se veria facilmente em toda essa evolução (condicionada pelas conseqüências do pecado) uma passagem (em parte voluntária, em parte imposta) da lei de natureza à lei positiva, da espontaneidade inocente (ou da obediência primitiva) à convenção arbitrária, se ao mesmo tempo Duns Escoto não marcasse, com notável insistência, que, para ele, a instituição matrimonial, fonte aparente de uma auctoritas paterna reconhecida como válida sobre todos os estatutos, pertencesse entretanto ela mesma ao ius naturale apenas em um sentido relativo e de forma derivada. Para Santo Tomás, que segue aqui bem de perto seu mestre Aristóteles, o caráter "natural" do casamento não é senão um caso privilegiado desse instinto que leva o homem a viver em sociedade; o fato de o "Filósofo" ter afirmado que somos animais políticos faz com que daí resulte a fortiori que sejamos animalia coniugalia. Os dois domínios estão tão ligados que o segundo fim do casamento se define como uma "certa associação do homem e da mulher" em virtude da diferença de suas competências e de suas tarefas naturais, e segundo um princípio de complementaridade que está na base de qualquer coabitação 23 . O encaminhamento de Duns Escoto é bem diferente, visto que, para ele, a instituição da cidade propriamente dita é bem mais tardia e contingente do que a da família, e é por isso que, para grande indignação de certos comentadores, ele nunca se refere à famosa fórmula

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ao papel positivo das livres decisões contratuais), Duns Escoto se recusa a fazer depender de simples exigências do ius naturale (entendido em sua mais estrita acepção) normas familiares, econômicas e cívicas que poderiam ter assumidQ historicamente diversas formas e que não poderiam, por conseguinte, ser de'duzidas de um princípio "absolutamente necessário em virtude de uma razão natural e de maneira evidente" (simpliciter necessarium ex ratione naturali evidenter)2o. E, entretanto, ele estende a noção de direito natural àquilo que, em circunstâncias determinadas e sem ser incondicionalmente necessário, se manifesta como "mais conforme à lei da natureza,,21.

Os elementos de teoria política que podem ser extraídos de alguns textos

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de Aristóteles. Porém, ainda que reconheça o caráter natural, senão do próprio ato carnal, pelo menos de uma vontade procriadora da qual esse ato é - de potentia ordinata - a condição necessária, considera sobretudo o casamento na dupla perspectiva (cuja própria dualidade é paradoxal apenas aparentemente) de uma lei divina positiva e de um livre contrato de troca (que, de certo modo, prefigura o pacto social). O Doutor sutil aceita a fórmula de Pedro Lombardo, que vê na instituição matrimonial uma lei ad officium, promulgada desde a criação de Eva "a fim de que a natureza se multiplicasse". Mas ele logo determina que querer engendrar um semelhante é para o homem um actus rectus apenas circumstantionabilis. O que quer que tenham pensado certos hereges - e o catarismo não era uma lembrança muito longínqua na época em que contudo o hino de um João de Meung à fecundidade representava um perigo mais atual - , o ato procriador não é de se malus pois, ainda que não tivesse perdido sua imortalidade inicial, o homem devia "comunicar sua perfeição". Após pecado, porém, meio dessa comunicação se tornou suspeito e arriscado (no próprio momento em que, paradoxalmente, se revela mais necessário). Se o preceito de crescer e de multiplicar era, no Paraíso, senão de direito natural propriissime (pois Deus teria podido, de potentia absoluta, assegurar por outras vias a extensão de uma humanidade ainda inocente), pelo menos bem próximo de uma lei incondicional, o mesmo não ocorre quanto às reiterações da mesma ordem após a queda. São Paulo insistirá no tema da "permissão" concedida em vistas de um mal menor. Nos primeiros tempos da história, o objetivo essencial da instituição matrimonial era a fecundidade; mas aos seres pecadores, que perderam sua "perfeição" de criaturas ad imaginem et similitudinem, a união carnal só é doravante prescrita em uma perspectiva na qual se associa de fato à dura lei do trabalho e às dores do parto. O casamento, sem dúvida um remédio à conscupiscência carnal, mas antes de tudo (desde o exílio do Paraíso, e novamente após o dilúvio) imediata necessidade social, perdeu por isso mesmo uma parte de sua harmoniosa finalidade original. Pertence ainda ao ius naturale (entendido em um sentido amplo), mas na qualidade de "secundário", e sua principal justificativa é doravante o preceito divino. É por isso que Deus o reiterou após o pecado, em duas ocasiões (Gén.3, 6; 91-7), não apenas porque toda lei, mesmo "consonante com a reta razão", é melhor imposta quando comunicada pela autoridade suprema2 4, mas sobretudo porque apenas a monogamia e a indissolubilidade tornam realmente moral aquilo que corre o risco, desde a queda, de se reduzir, de fato, senão em direito, ao encontro de dois desejos25. Por não estar destinada a um fim mais nobre, a união dos sexos degenera facilmente em vaga coniunctio, e essa promiscuidade prejudica conjuntamente a criança, a família e a cidade 26 .

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Orientado, assim, para objetivos que o bem comum requer, esse mandamento divino nada tem de arbitrário; dirige-se à reta razão do homem e só faz guiar para um contrato eqüitativo a liberdade de duas vontades. Pode-se duvidar que os contratantes estejam por si mesmos ligados por uma promessa irrevogável; na falta de uma "lei de natureza" imediatamente impositiva, a "lei positiva humana" permaneceria insuficiente (pois os príncipes pensam com mais freqüência no bem carnal da cidade do que no destino espiritual das pessoas); convém que uma "lei positiva divina" forneça uma norma segura ao livre contractus (ou simul tractus duarum voluntatum)27 e o defina como perpetua adhaesio28 , Com o Evangelho, o pacto conjugal será elevado à categoria de sacramento, mas, ao mesmo tempo, o apelo a uma mais nobre perfeição - sem desvalorizar a figura carnal da união espiritual entre o Cristo e a Igreja 29 _ frisará o caráter "segundo" de um estado lícito (e santificado), no interior de uma sociedade na qual os mais dignos são chamados à vocação do celibato voluntári0 30 . Instituídas antes de tudo para assegurar a sobrevivência do povo eleito, as antigas leis do casamento apresentavam, assim, um caráter "relativo", claramente confirmado por todas as "revogações" freqüentemente assinaladas pelos Padres: incesto inevitável entre os filhos do primeiro casal (que parece ser evidente para o narrador inspirado e ao qual Duns Escoto não dedica nenhum comentário); episódio escabroso das filhas de Lot embriagando seu pai para se unirem a ele em seu sono e, sem torná-lo pecador, assegurarem entretanto uma descendência ao único sobrevivente de Sodoma (o Doutor sutil tampouco se detém em um caso que não pode servir de "precedente" e que textos posteriores da Escritura parecem implicitamente desaprovar 31 ); aparecimento da bigamia com Lamech (é verdade que em uma narrativa na qual o personagem surge como o descendente de Caim, Gên. 4, 19, e não se identifica necessariamente ao pai de Noé); mas sobretudo generalização do concubinato na época dos Patriarcas, e tolerância mosaica do repúdio para evitar o mal maior do uxoricídi0 32 . Todas essas "dispensas" permanecem "circunstanciais" e só se justificam porque a oportunidade de uma descendência numerosa varia de acordo com os tempos e lugares 33 . Deve-se enfatizar que em nenhum caso o mestre franciscano admite que a lei de justiça, imanente ao contrato conjugal, tenha podido ser intrinsecamente violada, a despeito das revogações examinadas pelo Lombardo, na distinção 33 do livro IV das Sentenças, A promessa através da qual os esposos trocam mutuamente seus corpos requer, com efeito, um mínimo de "igualdade", na qual Duns Escoto insiste com um rigor bem jurídico. Ora, se a principal finalidade do casamento é a da procriação, pode-se admitir que nesse aspecto o corpo do marido vale mais que o da mulher, visto que ele pode tornar mães várias mulheres ao mesGêneses da Modernidade

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mo tempo; em "justiça estrita", a poligamia teria então sido "possível" no Paraíso, isto é, lá onde a multiplicação de uma natureza ainda inocente seria a única razão natural do preceito divino. Hipótese fantástica, contudo, pois não se podia temer esterilidade, dilúvio, doença ou mesmo morte; nada impunha, assim, uma troca (em si mesma eqüitativa) entre um corpus maioris valoris e vários corpora minoris valoris. Após a queda, o problema é bem diferente. A segunda justificativa do casamento (pro fornicatione vitanJa) exige, com efeito, a igualdade de "valor" entre o corpo do homem e o da mulher e, do ponto de vista do debitum coniugale, não se pode duvidar que o harém lesa seriamente os direitos de cada uma das esposas. Mas essa verdade, bem clara na época em que nosso doutor escreve, o era certamente menos na perspectiva histórica do Antigo T estamento. A salvaguarda imediata do povo privilegiado exigia que a procriação fosse inequivocamente a "finalidade principal" do casamento. É por isso que, ao instituir desde a origem a commutatio unius cum uno, somente conforme com a "justiça completa", Deus concede aos Patriarcas, ad maiorem mu/tiplicationem cultorum Dei34 , determinadas dispensas úteis ao bem comum. Agora, porém, que a verdadeira fé foi propagada (e o casamento reconhecido como sacramento), como tais revogações são ainda possíveis? Seriam então certamente necessárias justificativas referentes a uma conjuntura excepcional mas, em direito natural, nada impede que uma sociedade cristã se encontre coagida por alguma catástrofe a restabelecer provisoriamente antigas tolerâncias: "Se ocorresse que, como conseqüência de guerra, massacre ou epidemia, um grande número de homens tivesse sucumbido ao passo que um número maior de mulheres tivesse sobrevivido, a bigamia poderia então ser lícita em estrita justiça comutativa, e as mulheres, por sua vez, deveriam querer fazer a troca de seu corpo com os homens plus pro minore quanto ao segundo fim, sendo a troca, todavia, equivalente à primeira; e não haveria aí erro a não ser o desse complemento de justiça que vem da aprovação divina, a qual seria talvez concedida, e especialmente revelada, à Igreja"35. A hipótese é bastante improvável para que sejamos tentados a ver nesse raciocínio o exemplo de uma dessas situações-limite que servem, em Duns Escoto, à análise formal das estruturas e que permitem distinguir com particular precisão a potentia ordinata da potentia absoluta. A última frase sugere, contudo, que não se trata de pura e simples dialética. O retorno à poligamia não seria, em todo caso, lícito, a não ser após notificação da dispensa pela via hierárquica, e esta mesma suporia uma revelação particular. Deve-se notar a insistência com a qual o mestre franciscano enfatiza que a troca dos corpos permanece submetida ao máximo de igualdade possível. É por isso que, se não é sem dúvida "impossível" em si (quer dizer, contraditório) que Deus nunca autorize a biviria, não se pode humanamente 98

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imaginar nenhuma circunstância na qual se imporia para bem comum uma pluralidade de maridos, o que não apenas seria totalmente inútil, mas que transgridiria duplamente a aequitas da commutatio, quer se trate da primeira ou da segunda finalidade do casamento36. Ainda que seja, também ela, teoricamente concebível em relação à onipotência divina, a hipótese de um estatuto humano no qual as crianças seriam dispensadas de obedecer a seus pais parece igualmente fantástica. De fato, o poder paterno foi imposto desde a origem; a obediência aos pais é um ato "justo segundo a lei da natureza". A Lei mosaica e a lei do Cristo não fazem senão "confirmá-la "37. Duns Escoto ignora evidentemente a existência de sociedades matriarcais fortemente organizadas e, ainda que evoque sem separá-las a autoridade do pai e a da mãe, é, bem entendido, em uma perspectiva patriarcal que considera a auctoritas paterna. Qualquer que tenha sido o papel por ela desempenhado nos primeiros tempos da humanidade, não lhe parece suficiente para constituir, entretanto, uma autêntica respublica, e é então que ele enCOntra o problema do consensus e da electio. No contexto em que se apresenta aqui - a propósito do dever de restituição - , essa questão está ligada à dos dominia e à da passagem de um estatuto paradisíaco, no qual tudo era comum de direito (com exceção, é claro, das esposas, que são personae e não res), a um estatuto de pecado que implica a divisão das posses e dos poderes. Ainda que a autoridade paterna se enCOntre confirmada após a falta e sobreviva (em virtude de uma necessidade primordial) a todas as vicissitudes da sociedade humana, a comunidade de terras e de rebanhos se torna, ao contrário, impraticável fora do Paraíso. Sem precisar aqui em que textos ele se apóia (de acordo com outras alusões, porém, podemos pensar nas partilhas bíblicas, implícitas entre os filhos de Noé - Gên. 11, 32 - e explícitas entre Abraão e Lot ou entre Esaú e Jacó, que "tinham bens muito grandes para poderem habitar juntos" - Gên. 12, 6 e 36, 7), Duns Escoto admite que o direito igual dos homens a desfrutar em comum todos os recursos da terra foi "revogado" pelo próprio Deus, COmo incompatível com um estatuto no qual a indistinção acarretou mais injustiças do que a apropriação individual. Sem essa circunstância ele foi, entretanto, imposto como que de si mesmo e independentemente de qualquer prescrição positiva. Santo Agostinho via aí uma lex divina ao passo que alguns juristas apresentam COmo [ex naturae.

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Na Ordinatio, o mestre franciscano parece considerar as duas fórmulas como praticamente equivalentes 38, Sem que sejamos autorizados por isso, e nós sabemos por que, a considerar essa quase-identificação no sentido que lhe atribuem os tomistas. À primeira vista, o texto da Reportatia, Gêneses da Modernidade

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um pouco mais extenso, sugeriria um primado da própria natureza sobre o querer divino, mas a exegese é contradita por tudo o que ensina Duns Escoto em outras passagens. Se este efetivamente declarou em sua cátedra que, justa segundo o direito divino, a indistinção originária dos dominia o é "bem mais" segundo o direito natural 39 , pode-se compreender com esse multo magis que Deus aqui tomou sua decisão em virtude mesmo daquilo que impunha à reta razão a natureza inocente dos seres que havia criado. Trata-se daquilo que está mais próximo de um ius naturale no sentido óbvio do termo (ainda que, propriissime, como vimos, só esteja estritamente interditado pela natureza como aquilo que é contraditório à própria essência divina). Antes da falta, o regime comunitário era sem dúvida alguma o mais apto a manter a paz entre os homens, cada um recebendo o útil e o necessário, nem mais nem menos, na exata medida de suas necessidades. Fórmula seguramente teórica, visto que o homem foi banido do Paraíso antes que o problema de qualquer partilha de bens fosse colocado. Fórmula entretanto significativa, não porque justificasse para o doutor franciscano um eventual retorno ao regime primitivo (de qualquer modo, Duns Escoto não o imagina, mesmo como hipótese dialética, pois concorda inteiramente com a crítica aristotélica da república platônica) e tampouco porque legitimasse "naturalmente" o modo de vida dos religiosos (o qual se baseia nos conselhos evangélicos e não tem nenhuma necessidade de confirmação no nível da lex naturae), mas simplesmente porque os motivos racionais que, após o pecado, conduzem à partilha dos bens (e indiretamente à constituição contratual da civitas) são exatamente da mesma ordem que aqueles que impunham, na origem, um regime comunitário. Trata-se, nos dois casos, de assegurar a paz entre os homens, e a melhor satisfação de suas necessidades 4o . Se o regime válido no Paraíso tivesse sido mantido quando o homem foi obrigado a trabalhar penosamente a terra da qual saíra (Gên. 3,19.23), os maus rapidamente teriam açambarcarcado uma grande parte dos bens comuns; além disso, e por todas as espécies de razões psicológicas que parecem evidentes a nosso autor, esses próprios bens teriam sido malgeridos e fracamente defendidos. Duns Escoto fala aqui como analista da natureza corrompida, a única que Aristóteles conheceu, e é por isso que seus argumentos, que se tornaram clássicos, são tirados da sabedoria grega mais do que da Escritura. O que era natural antes da queda cessou de sê-lo, e a comunidade dos dominia só é aplicável a pequenos grupos de homens ligados por um voto de pobreza (mas submetidos ao mesmo tempo a um voto de obediência, que permite resolver da melhor maneira possível os inevitáveis conflitos). Para falar a linguagem dos sociólogos modernos, poder-seia dizer que, na perspectiva em que Duns Escoto se situa aqui, é a "cultura" que supre, de qualquer maneira, as deficiências de uma "natureza" decaída. E, por mais que possamos pensar hoje em dia - em circunstâncias 100

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bem diferentes daquelas que conheceu o doutor franciscano - em méritos efetivos da apropriação privada 41 , é claro pelo menos (e é o que nos interessa aqui para compreender e julgar a doutrina escotista) que a "disposição conveniente de pessoas iguais e desiguais" constitui efetivamente o ideal rumo ao qual tende racionalmente toda comunidade humana, preocupada em não degenerar em pura horda. Assim considerada, a partilha dos bens surge menos como uma conseqüência espontânea do pecado do que como um esforço racional de organização social, consecutivo à "revogação" de um direito que só valia in statu innocentiae. Para justificá-lo, Duns Escoro teria podido evocar alguns preceitos do decálogo, formulados em termos que parecem pressupor a existência de posses distintas 42 , mas é claro que entre a expulsão do homem do Paraíso e a promulgação explícita da Lei mosaica numerosas gerações se sucederam na terra; seria preciso então que, antes mesmo que Deus promulgasse os mandamentos quanto ao respeito do bem de outrem, a razão natural já estivesse capacitada a regular a divisão dos dominia 43 . Sem dúvida - de potentia absoluta - o Criador teria podido impor qualquer modo de posse; nem é mesmo proibido imaginar que ele tenha erigido um único indivíduo como mestre e senhor absoluto de todos os bens terrestres, mas, no contexto teológico no qual se apresenta, essa hipótese-limite visa apenas a mostrar, por analogia, que o pecador justificado, que deve tudo à graça, não é mais devedor à justiça original. De fato, desde o início, a justa divisão dos bens, segundo a regra imperativa do dar a cada um o que lhe pertence (reddere unicuique quod suum est), é a condição normal de salvaçã044 . Isso significa dizer que o pecado não alterou a natureza criada a ponto de tornála inapta a conceber uma ordem que - considerando-se um número variável de fracos e de maus - permite aos outros homens viverem virtuosamenté s. É por isso que Duns Escoto - segundo uma tradição vinda de Platão e de Aristóteles-enfatiza tanto quanto Santo Tomás a importância da lex iusta e, após ter lembrado as virtudes do bom legislador, escreve essa frase (à qual já nos referimos), que esclarece bastante a responsabilidade própria dos viatores na organização coletiva da cidade terrestre: "É certo que, mesmo após o pecado, os homens puderam ter suficiente sabedoria e prudência para instituir leis de forma sábia e prudente,,46. A lei, entretanto, é uma "verdade prática promulgada por qualquer um que tenha autoridade" (veritas practica indicta ab aliquo habente auctoritatem); de nada adianta, pois, que aquele que a coloca se refira ele mesmo ao bem comum; é preciso ainda que tenha recebido para isso a "autoridade" exigida, e é aqui que alguns se surpreendem em ver o Doutor sutil recorrer à noção de contrato. Constatando com inquietação que Duns Escoto nunca se refere à famosa frase de Aristóteles sobre o homem "animal político", M. de Lagarde critica a definição de uma autoridade que se exerce Gêneses da Modernidade

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sobre pessoas estranhas umas às outras e diversas, reunidas em qualquer comunidade (auctoritas extraneorum et diversorum congregatorum in aliqua communitate); esta reduziria, pensa ele, a communitas nascida do pacto social a uma simples reunião extrínseca de «indivíduos isolados e autônomos"47. Se o epíteto "autônomo" quer dizer capaz de decisões livres, concordamos naturalmente que os homens que entram em acordo - segundo certas condições determinadas - no reconhecimento da autoridade de um chefe eleito não são simples engrenagens inertes no interior de um conjunto funcional; mas será que o seriam mais em uma perspectiva tomista? Nenhum aristotélico concebeu a sociedade como uma res - ou mesmo como uma persona - «coletiva"; por mais "natural" que seja uma associação baseada na necessidade mútua, ela não se identifica entretanto à queda dos corpos graves, e a physis dos seres racionais não é a dos elementos. Em política, sem dúvida, ainda que o consentimento de súditos desempenhe um papel positivo no regime misto que segundo seu mestre ele julga o melhor, Santo Tomás dá menos peso do que Duns Escoto ao caráter constitutivo da eleição, mas os dois doutores concordam acerca da importância fundamental do bem comum; a originalidade do franciscano consiste no cuidado de definir juridicamente o vínculo contratual no qual se baseia primeiramente a auctoritas do legislador. Os extranei entre os quais se atualiza um verdadeiro contrato social não são todavia considerados como seres originariamente separados uns dos outros. Não parece que Duns Escoto tenha jamais considerado um estado pré-contratual de pura discórdia. Ainda que suas fórmulas sejam pouco explícitas, poder-se-ia dizer que o estado virtual de sociabilidade (de algum modo latente no grupo familiar, mas encoberto pela existência efetiva de uma auctoritas paterna) se torna plenamente consciente quando os homens, que pelo sangue permanecem "estranhos" uns aos outros, concordam juntos em contrair um pactum subiectionis. Esse pacto, aliás, não é a aceitação de urna tirania e a respublica escotista lembra pouco O Leviatã de Hobbes 48 , É preciso insistir nesse ponto, já que muitos aí se equivocaram. Os "estranhos" não são absolutamente indivíduos isolados e hostis; o adjetivo significa apenas que os contratantes se situam, enquanto tais, fora da esfera reservada à autoridade paterna e que o vínculo novo que os une é, por sua própria definição, exterior à família. Duns Escoto pensa talvez nesses grupos étnicos provenientes, segundo a Escritura, dos filhos de Noé, mas pouco a pouco separados pela história e pela geografia do pequeno círculo privilegiado no interior do qual se haviam conservado - desde antes da promessa da Aliança - as mais puras tradições religiosas e morais. Mas, mesmo no que concerne à história interna do povo eleito, pode-se pensar que, no campo das instituições cívicas, o consenso popular precedeu por diversas vezes a intervenção explícita de Deus ou de seus porta-vozes.

Determinados textos da Escritura sugerem nitidamente que a iniciativa dos homens - em um domínio no qual o Decálogo deixava, por seu silêncio, uma margem de liberdade - pôde desempenhar um papel constitutivo, senão desde o tempo dos ]uízes 49 , pelo menos quando os judeus, cada vez mais ameaçados por poderosos vizinhos (que, nesse plano, os haviam há muito precedido), desejaram se organizar em monarquia so . Seja como for, o pacto cuja gênese o Doutor sutil esboça (em linhas muito gerais) não surgiu ex nihilo; ele reúne pessoas que já pertenciam a famílias e a autoridade que indica por meio da "eleição" não é heterogênea à autorictas paterna; aplica somente a domínios novos, e em um quadro mais amplo, uma ordem que, desde a origem, não havia nunca deixado de se exercer. Assim, a relação entre essas dúas "autoridades" - das quais uma só é "natural" no sentido em que não requer nenhuma convenção e não dá lugar a nenhuma revogação -lembra um pouco aquela que ligava a indistinção dos dominia no estatuto de inocência à ulterior distinção que se estabelece (em vistas de um mal menor) no estatuto do pecado. A diferença, portanto, é dupla. Por um lado, trata-se menos de substituir daí em diante um regime novo por um regulamento "revogado" do que de completar um tipo originário (e sempre válido) de vínculo social por uma união mais vasta, livremente aceita em vistas de fins úteis e racionais. Por outro lado, se Duns Escoto não pensa evidentemente em nenhuma ordem política antes da queda s 1, frisa, ao contrário, como vimos, a continuidade do fato familiar, de forma que nenhum pacto seja exigido para que as crianças se submetam aos pais, segundo uma "lei justa, reta e natural" que foi imposta, de Adão a Moisés, a todos os que vivem "sob um mesmo pai, não somente no corpo mas no espírito" (sub uno patre, non tantum corpore, sed etiam mente), antes mesmo, pois, que o Decálogo fizesse disso um preceito explícito (situado no ponto de articulação entre a primeira e a segunda Tábua). Essa lei, todavia, não concerne senão aos membros de uma mesma família. Se ocorre que estranhos queiram Se agregar espontaneamente a tal grupo natural, eles só o fazem de modo individual, por uma adoção que não cria nenhuma realidade coletiva de tipo novo. Ora, à medida que a história avança e que a "malícia dos homens" acelera a degeneração da solidariedade familiar (alusão possível à anarquia descrita no Livro dos Juízes), sente-se a necessidade de uma auctoritas politica. Sem pertencer ela mesma, stricto sensu, ao domínio da [ex naturae (visto que aparece posteriormente e deixa um amplo campo às iniciativas dos constituintes), essa autoridade responde a necessidades "naturais" e - pelo menos do modo como é descrito aqui - a livre escolha que a fundamenta é bem diferente da simples submissão de fato a um poder já estabelecido. O Doutor sutil descreve expressamente wna vontade de associação entre gentes ex-

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traneae et diversae, quarum nulla tenebatur alteri obedire. Teria ele pensado no famoso pacto de aliança realizado em 1291 entre os três primeiros cantões da Confederação Helvética? Nada o indica, mas também nada exclui essa possibilidade. De qualquer modo, a frase é duplamente interessante, pois mostra, por um lado, que nenhuma das partes constitutivas era obrigada antecipadamente "a obedecer à outra"; por outro lado, que se trata aqui de grupos preexistentes, qualquer que seja a extensão que se reconheça, aliás, à gens. O fato "social" é, portanto, anterior à sua determinação contratual, e pode-se perguntar se ele se não confunde, nesse nível, COm o próprio falO familiar. O texto no qual Duns Escoto trata do direito do primeiro ocupante esclarece um pouco o problema, sem resolvê-lo completamente. Tendo declarado ser bastante improvável que tal direito pertença ao domínio do ius naturae52 , o mestre franciscano admite que possa ter sido instituído por uma lei positiva, análoga à convenção concluída entre Abraão e Lot para dividir entre eles a planície do Jordã0 53 . Observa, a esse respeito, que o cuidado de estabelecer essa lei pertence ao pai de família como tal, a um chefe eleito, ou a árbitros designados pela "própria comunidade"54. A comunidade no sentido próprio do termo, enquanto pode eleger ou indicar um príncipe ou um juiz, se distingue assim do grupo familiar como realidade "natural" sobre a qual o pai exerce de íure divino e naturae uma autoridade plena. Parece, com efeito, que, coextensiva a esse grupo, ela já possuía virtualmente, enquanto realidade "política", um poder implícito independente da auctoritas paterna. É esse poder que o consensus e a electío atualizarão, delegando-o ao detentor da auctoritas política, tal como ela resulta do pacto social. De qualquer modo, o pacto não pode desempenhar seu poder constitutivo a não ser que expresse o "consentimento mútuo de todos". Duns Escoto nada diz do direito que eventualmente possuiria a maioria, de prosseguir na oposição da minoria; tampouco evoca, como fará Rousseau, a encarnação possível da "vontade geral" em um grupo (às vezes minoritário) de cidadãos mais esclarecidos, ainda que a doutrina clássica dos egregii cives possa ter fornecido uma base a idéias desse gênero. Lembremos sobretudo que, se se apóia em um poder coletivo virtual, o contrato exige a convergência refletida de um conjunto de liberdades singulares. Retomando, a propósito da discussão sobre a escravidão (que discutiremos mais adiante), o princípio de São Gregório Magno (freqüentemente invocado pelos escolásticos) segundo o qual "é contra a natureza que o homem domine o homem", de modo que somos todos em direito aequales 55 , Duns Escoto afirma que de lege naturae omnes nascuntur liberi 56 . Bastará que os juristas completem a fórmula e acrescentem, com Nicolau de Cus a no Concílio de Basiléia: et aeque potentes, para que, à primeira vista pelo menos, 104

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nos imaginemos próximos da Revolução Francesa e de sua famosa Declaração dos Direitos 57 . Mas não se deve esquecer que a "lei da natureza" aqui evocada é a do Paraíso, não uma regra de direito imediatamente aplicável a sociedades pecadoras. Desde o início essa liberdade de princípio foi, aliás, limitada pela subiectio filialis (que é, também ela, no segundo sentido do termo, de lege naturae)58. Em seguida, são aí acrescentados, após a falta original, todos os tipos de "servidões" das quais voltaremos a falar e das quais uma das menos "vis" é seguramente a submissão dos cidadãos a uma legítima autoridade política. Duns Escoto resume muito sucintamente o processo através do qual os extranei entram em acordo para indicarem um "príncipe" ao qual obedecerão "em tudo o que não é contrário à Lei divina", mas somente até sua morte, ou para aceitarem antecipadamente se submeter aos sucessores hereditários desse príncipe, segundo condições estabelecidas e que os contratantes determinam à sua vontade (secundum conditiones quales vellent. sic vel sic). Uma terceira hipótese se aplica a instituições republicanas de tipo burguês ou aristocrático, pois pode acontecer que, sentindo a necessidade de uma autoridade, os homens tenham concordado em confiála "a um indivíduo ou a uma coletividade". Quando nosso doutor evoca o caso das "pessoas reunidas para edificar ou habitar uma cidade", pensamos imediatamente em uma outra forma conCreta de sinecismo, o contrato de edificação pelo qual os colonos são libertados e associados no quadro de uma nova cidade 59 , mas a fórmula é mais vasta e remete, cremos, a toda civitas (ou respublica) baseada originalmente em um consentimento. De fato, todas as monarquias medievais recorriam mais ou menos a uma eleição e, mesmo onde a hereditariedade adquiria um lugar preponderante (ou a designação do sucessor pelo príncipe reinante), permaneciam freqüentemente alguns traços do apelo ao "consenso", senão do próprio povo, pelo menos dos notáveis ou dos barões. Mas o interesse do texto escotista - testemunho de uma evolução que se prepara no domínio do direito público - é o de remontar às origens da primeira autorictas politica e de procurar o próprio fundamento da lei. Segundo uma tradição doutrinai bastante antiga - que reencontraremos até em Montesquieu e em Rousseau - , ele insiste no papel "legislador" do indivíduo ou do grupo de homens escolhidos pelo pOVO. Singular ou coletivo, o nomoteta preenche uma função essencial. O bom chefe é, antes de tudo, aquele que redige boas leis. É preciso, pois, que, "quer em si mesmo, quer em seus conselheiros", possua a "virtude de prudência", não apenas para aplicar em cada caso as regras tradicionais da comunidade, mas basicamente e sobretudo "para fundar leis justas em vistas a conservar a paz". Sua única prudência não lhe confere, entretanto, nenhuma verdadeira autoridade; ainda que seja concebida, a lei só tem vigor Gêneses da Modernidade

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em virtude de uma situação de "presidência" concedida ao soberano e que é, como sabemos, de origem eletivéo. Esse requisito teórico não acarreta certamente nenhuma conseqüência revolucionária, pois parece apenas concernir à fonte constitutiva do poder político em geral. Mas, para Duns Escoto, o mais importante é ter definido em todo rigor as únicas bases legítimas do principatus de tal maneira que, por outro lado, ele destaca mais os direitos do soberan0 61 , sem dúvida não por servilidade a respeito dos poderosos, mas por reverência à regra de justiça. Seria surpreendente, contudo, que, assim concebida, semelhante autoridade pudesse realmente legitimar a servidão 62 . Eis aí um problema que merece atenção, pois, sem acusá-lo, como outros, de favorecer a escravatura 6 3, Lagarde julga Duns Escoto mais indulgente do que Santo Tomás em relação às formas arcaicas de dominação do homem pelo homem. A bem dizer, o único texto invocado concerne ao matrimonium servi, e é verdade que, por razões de princípio que são para ele de grande importância, o doutor franciscano critica aqui a tese tomista, defendida por Ricardo de Middlerown, segundo a qual todo homem, em qualquer situação de dependência que se encontre, pode exercer seu" direito natural" ao casament0 64 . A objeção de Duns Escoto deve-se à sua concepção do ius naturae, mas visa ao mesmo tempo a defender contra certos ataques os votos de religião. Se alguém, com efeito, não pudesse alienar sua liberdade "natural" para se submeter a uma superior, isso seria o fim do estado monástico, que se tornaria propriamente ilícito 6S . Ainda que o texto aqui não faça nenhuma menção explícita a isso, pode-se acrescentar, acreditam, que o respeito incondicional das liberdades baseadas no ius naturae seria incompatível com o próprio pacto social, o qual substitui (ou pelo menos superpõe) à autoridade natural do pai o poder convencional de um soberano eleit0 66 . Mas a argumentação do Doutor sutil remete sobretudo aos vota religionis. Se a liberdade individual fosse inalienável, ninguém teria o direito de se vincular por votos perpétuos - e é isso, com efeito, o que pretenderão os "filósofos" do século XVIII e os partidários de um certo "laicismo". Raciocinando aqui a fortiori, Duns Escoto pretende esclarecer algumas possíveis implicações de uma teoria que absolutiza perigosamente a idéia de direito natural. Visto que se admite a legitimidade do voto de obediência - o qual, entretanto, se opõe indubitavelmente a um ius naturae - como invocar esse mesmo ius para impedir que o senhor faça valer suas prerrogativas, e isso em benefício, não de uma obrigação, mas de uma simples permissão concedida em vistas a um mal menor? O peso do argumento, como se vê, ultrapassa o caso particular do connubium servi, mas através de seu alvo essencial (que é o voto de religião), ele pode justificar que, sem ofender os direitos da pessoa humana, certas funções sociais acarretam a obrigação ou a necessidade do celibato. 106

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Dito isso - que tende sobretudo a salvaguardar o pleno valor do estado religioso contra uma concepção (cada vez mais difundida em fins do século XJII) segundo a qual o uso normal dos órgãos genitais, tal como foram criados por Deus e confiados providencialmente à Dama Natureza, corresponderia a uma espécie de obrigação universal 67 - o Doutor sutil julga muito severamente o senhor que se utiliza de seu direito e proíbe efetivamente que o servus se case. E ele afirma explicitamente que se o dominus, como assim o convida a Igreja em nome da caridade, renuncia ao exercício dessa prerrogativa, encontra-se desde então obrigado (sob pena de pecado mortal) a autorizar o pleno exercício d~s debita que implica para os cônjuges de condição servil - entre eles e em relação a seus filhos seu enlace matrimonial. Nesse ponto Duns Escoto não é menos exigente do que Santo Tomás, ainda que ambos indiquem efetivamente as dificuldades com as quais o servus depara para preencher sem falhas seus deveres conjugais 68 . O Doutor sutil especifica que o senhor deve "abrandar" as obrigações do escravo casado no que concerne a seu próprio serviço e que ele pecaria ainda mais gravemente se separasse o casal cuja união anteriormente autorizou. Não obstante, seu direito de veto não é, por si mesmo, de uma natureza tal que o servus seja obrigado a se submeter a ele em qualquer circunstância; com efeito, se o escravo julga racionalmente que sua condição servil lhe permitirá conciliar tudo o que deve ao dominus e tudo o que pode exigir dele seu uxor, não parece cometer nenhuma falta grave em transgredir um impedimento que só é ele mesmo justificado pelo direito do senhor em se beneficiar plenamente de todos os serviços que lhe são devidos 69 . Essa casuística se esforça por conciliar, como vemos, bem ou mal, as exigências espirituais de uma sociedade que se dizia cristã com estruturas em grande parte herdadas do paganismo. Na verdade, não é certo que a condição trabalhadora, tal como a descobriram os primeiros "cristãos sociais" ou o estatuto colonial do trabalho forçado, tenha provocado freqüentemente crises de consciência igualmente tão inoportunas a homens muito mais próximos de nós 70 . Mas, a não ser por alguns casos de conflito manifesto, os posicionamentos concretos aos quais chegaram praticamente os doutores de diversas escolas (e que com muita freqüência pouco influíram na realidade dos costumes) diferem menos, em geral, do que seus pontos de partida teóricos. Ora, precisamente no que concerne à origem e à legitimidade da escravatura, a posição de Duns Escoto parece menos ligada do que a de Santo Tomás aos princípios definidos na Política aristotélica. Pode-se mesmo pensar que, tomadas ao pé da letra, suas definições e suas distinções deveriam tornar bastante excepcionais os casos aos quais se aplicaria com todo rigor uma legislação que parece menos severa se examinado de perto o contexto no qual ela se apresenta. Gêneses da Modernidade

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'" o que surpreende o·leitor moderno é uma certa indiferença dos escolásticos a uma distinção, que hoje em dia nos é bastante familiar, entre o servus antigo e o "servo" medieval. Sabe-se que a condição propriamente servil se prolongou por muito tempo, mesmo nesse Ocidente cristão que não ignorava o comércio dos prisioneiros e no qual os termos franceses e italianos esclave e schiavo lembram os comboios vindos dos países eslavos e os pagãos do Leste vendidos nos cais de Veneza. Essa escravidão propriamente dita se confunde tão pouco com a situação jurídica (e real) dos "servos" de tipo feudal (presos ao território feudal e submetidos à capitação) que os historiadores citam o caso de pagãos não"livres, mas enriquecidos, que possuíam, eles mesmos, a seu serviço, "escravos" no sentido mais rigoroso do termo. 71. Às vezes, parece ser nesses últimos que pensam os autores medievais quando comentam os textos do Estagirita ou quando se referem ao famoso versículo de São Paulo (Epif. 6,5) prescrevendo aos douloi que obedeçam aos kurioi "com temor e tremor". Mas eles estendem muito freqüentemente o alcance de fórmulas cujo exato contexto histórico desconhecem; sem explicitá-las tanto quanto desejado, levam em consideração, de fato, diversas formas de servidão, de modo que é preciso sempre ter cuidado quanto às precisões anexas que determinam o uso do substantivo servitus ou do adjetivo servus. A esse respeito, o epíteto vilis, em Duns Escoto, é de grande importância. Para Santo Tomás, que segue aqui bem de perto os textos bastante conhecidos da Política, o fato de que tal indivíduo (que pode pertencer à nobreza cativa e possuir uma alma de senhor) se encontre contudo escravo é, sem dúvida, um acidente infeliz, e sem "razão natural"; a servidão, todavia, não vai "contra a intenção da natureza,,72. Como a desigualdade dos bens, ela se justifica por uma certa "utilidade" social, segundo a qual o "mais sábio" deve reger o "menos sábio" e utilizá-lo como seu instrumento, para sua dupla vantagem. Se esse princípio não pertence, entretanto, ao ius naturale - já que o estado paradisíaco não conheceu dominium oposto a uma verdadeira servitus, mas apenas as autoridades paterna e política - , a ele se relaciona por uma adinventio ulterior da ratio naturae (pela mesma razão que a apropriação individual das riquezas, segundo a regra do primeiro ocupante) e constitui, assim, um aspecto universal dessa lei humana que se denomina ius gentium 73 . Duns Escoto não nega absolutamente que a dominação daquele que potest mente providere seja natural e razoável. Esse princípio, contudo, justifica apenas as formas superiores de servitus, isto é, por um lado, o poder paterno (que pertence, sabemos, ao setor "amplo" do ius naturae) e, por outro, a autoridade do legislador, livremente aceito pela via da electio. Em ambos os casos, com efeito, o mais fraco se submete ao princeps bene regens que deve guiá-lo in bonum. O mesmo não ocorre quanto à servidão vil, a que reduz o su-

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jeito ao estado de coisa inanimada e o priva de bens essenciais à sua dignidade de homem, de modo que se pode aplicar aqui as definições aristotélicas do despotismo a qualquer dominação que visa menos à felicidade do inferior do que à sua infelicidade e seu sofrimento 74 • A "servidão vil" - sem dúvida inevitável in statu peccati - só poderia, então, derivar de uma lex positiva, e o problema é o de saber se essa lei pode ser "justa", isto é, instituída por um legislador prudente dotado de verdadeira autoridade. Assim como a apropriação individual das terras (necessária de facto após a revogação do comunismo original) contradiz a disposição natural do homem que o levava a viver de uma forma completamente diferente 75 , a escravidão é, em si, incompatível com o princípio segundo o qual os homens "nascem todos naturalmente livres". Por mais diferentes que sejam em sua origem, a submissão filial e a sujeição cívica são os limites "secundariamente" naturais (e, por isso mesmo, justificáveis) de uma liberdade que, como sabemos, não é incondicional no sentido em que a entenderão determinadas doutrinas modernas, visto que ela não poderia impedir o voto canônico de obediência. No que concerne à escravidão propriamente dita, Duns Escoto examina primeiramente duas hipóteses (e nenhuma, notemos, o remete à função social do trabalhador enquanto manipulador de instrumentos)76: a submissão voluntária e o encarceramento penal. A primeira resulta de uma decisão perfeitamente "tola"77, mas, se esse ato livre, pelo qual o indivíduo aliena sua liberdade, não é jamais recomendável fora das condições regulares instituídas pela Igreja para os fiéis chamados a seguir os "conselhos" evangélicos, uma vez realizada fora de qualquer coerção, a "justiça" impõe que se torne fonte de estrita obrigação moraF8. O segundo se justifica facilmente no caso do homem incuravelmente "viciado"; para este a perda aflitiva de uma liberdade que usou mal é, não apenas um sofrimento menos cruel do que a morte 79 , mas um meio preventivo de evitar a recaída no pecado; para a "república", ela constitui a única garantia sólida contra novos crimes 80. Deve-se admitir, entretanto, o direito de guerra como terceira fonte legítima de vilis servitus? Duns Escoto reencontra aqui um problema difícil a respeito do qual Aristóteles esboçara apenas conclusões hesitantes 81 e que, mais tarde, deveria inspirar a Hegel sua famosa dialética do senhor e do escravo. Em caso de guerra "justa", o doutor franciscano, que se conforma às idéias de seu tempo, não duvida que seja permitido matar seu inimigo, considerado como "rebelde perseverante". Mas ele logo acrescenta que, mesmo nesse caso-limite, a misericórida deveria substituir, para um cristão, o rigor do ius positivum. De qualquer modo, é desumano infligir ao prisioneiro uma punição "contra a natureza" e deve-se sempre esperar que ele não abusará absolutamente da graça que pode lhe conceder o venGêneses da Modernidade

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cedor. Longe de imaginar um tipo de transação pela qual o vencido, em troca da vida salva, renuncia a ser "reconhecido" como consciência e se S2 aliena inteiramente , Duns Escoto encara o problema sob um ângulo da misericórdia e não faz mesmo nenhuma alusão explícita ao uso do "resgate". Se ocorre, entretanto, que o prisioneiro libertado se volte contra seu benfeitor, estamos novamente diante do caso do criminoso, e é então no interesse comum, não pelo direito de posse, que o vencedor priva mais urna vez o vencido de uma liberdade que usou mals3. Em favor dos homens de boa-fé que, desde uma certa época, têm em seu poder prisioneiros, adquiridos por herança ou por compra, invocarse-á um direito de prescrição, cuja validade Duns Escoto absolutamente não reconhece? A resposta do doutor é prudente e constitui mais um apelo à consciência generosa do que uma obrigação jurídica. Ela Se refere, contudo, ao ius naturae para destacar a diferença essencial entre um proprietário de ouro e um detentor de escravos 84 e para concluir que seria "difícil" justificar por essa via as seqüelas de um costume bárbaro, que remonta sem dúvida a Ninrode (Gên. 10,8). É em todo caso uma "grande crueldade" reduzir ao estado de "brutos"85 seres dotados de livre-arbítrio, e impedi-los de agir virtuosamentes6. Quanto ao versículo da Carta aos Efésios que prescreve ao escravo que se mostre obediente em relação a seu senhor, este cria menos problema para Duns Escoto, visto que, para ele, é a própria "justiça"87 que impõe o respeito escrupuloso de qualquer obrigação, nascida de um contrato livre ou imposta por uma autoridade legítima, qualquer restrição feita, por outro lado, quanto ao valor ético dos contrata'ntes ou do legislador88. Efetivamente, na perspectiva pastoral em que São Paulo se situa, ele não pretende aprovar ou criticar a instituição da escravatura; o texto da Escritura significa que, não importa a situação na qual se esteja, deve-se respeitar, através dos homens, o único Senhor autêntico, que "está nos Céus e não tem nenhuma preferência de pessoas" (Epif 6, 9). Os medievais, todavia, tinham uma forma diferente da nossa de ler a Escritura, e Duns Escoto pensa encontrar em outro lugar - na primeira Carta aos Coríntios - uma desaprovação formal da vilis servitus; parece-lhe, com efeito, que São Paulo convida o escravo a desejar, se é que é possível, sua ascensão ao estado mais louvável de homem Iivre89. Esses breves desenvolvimentos não formam um sistema; indicam uma evidente desconfiança quanto aos princípios herdados do paganismo e a preocupação moral neles existente corrige o rigor jurídico. É verdade que não há uma análise precisa das formas concretas da servidão e da nova condição do assalariad0 9o . Outros textos, que iremos agora analisar rapidamente, parecem dar atenção mais específica à evolução da sociedade medieval. Lagarde pensa detectar aí uma "regressão" e denuncia nas fórmu110

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las concernentes à expropriação um lamentável desconhecimento da "verdadeira autoridade social"91. Pode-se naturalmente preferir outras doutrinas a essa de Duns Escoto; mas deve-se ainda notar que ele nunca considerou a transferência incondicional à autoridade pública de um direito individual de propriedade, que exatamente só pertence para ele ao "cidadão", e nos limites fixados por um legislador, cujo poder repousa antes de tudo na eleição e no consentimento. Uma vez "revogada" a indistinção primitiva dos dominia (que era apenas de direito natural), qualquer apropriação (singular ou coletiva) resulta da prudência desse legislador. É normal, pois, que a degradação eventual de tal possuidor "negligente" seja proferida em nome da comunidade inteira e ela supõe, assim, de um certo modo, o consensus prévio da própria vítima. Visto, com efeito, que não se trata mais de urna simples partilha familiar, dependendo da autoridade natural do paterfamilias, a divisão toma sua legitimidade de um assentimento unânime de homens que instituíram a civitas; ora, a translatio dominii deriva da mesma fonte de autoridade que a divisio dominiorum 92 . Como todo ato humano in statu peccati, essa transferência pode dar lugar a múltiplos abusos em sua aplicação concreta. Dizer que se efetua em favor de quilibet não implica, no pensamento de nosso autor, nenhuma justificação do arbitrário, mas significa somente que cada membro da comunidade está habilitado a se beneficiar dela, uma vez que a decisão do legislador assegure ao melhor a pacifica conversatio civium. O fato de a expropriação supor, da parte do possuidor negligente, uma renúncia implícita a seu direito de propriedade não implica absolutamente que esse direito fosse incondicional. Trata-se, aliás, apenas de uma ficção jurídica e a lei o "pune" antes de tudo por ter sido o mau "ministro" de seu bem, qualquer que tenha sido, no plano da consciência, sua intenção "real,,93. Esses princípios, como vemos, justificam transferências que vão muito além do uso feudal. No espírito de um verdadeiro "direito social", permitirão pronunciar a degradação de proprietários que cultivam mal suas terras ou que açambarcam os produtos em detrimento dos trabalhadores; eles poderão mesmo, em um grau ulterior de evolução econômica, autorizar a transformação em serviços públicos de empresas privadas cujo monopólio seria contrário ao bem comum. Duns Escoto de fato mal podia prever os campos de aplicação considerados em recentes encíclicas; ele limita seu exame às hipóteses clássicas concernentes aos direitos de prescrição e de usucapião, mas, seguindo a esse respeito a opinião comum dos juristas, observaremos que subordina inequivocamente o direito de propriedade à regra suprema da pax reipublicae 94 • Quaisquer que sejam os poderes reconhecidos aos detentores da autorictas politica no que COncerne à repartição e à transferência dos domimá, o proprietário "imediato" desfruta certos direitos sobre eles. Pode dá-los a outros, vendê-los ou alugá-los, mas com a condição de que teGêneses da Modernidade

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nha uma autorização que pode ser, de acordo com o caso, do pai de família, do suserano ou (para os clérigos) do superior hierárquico. Em nenhum dos casos a doação feita a um religioso mendicante pode transgredir seu voto de pobreza e fazer dele um dominus 9S • As transações onerosas só são legítimas com a condição de que se exclua toda forma de engodo e de que se refira à regra tradicional da aequalitas valoris. As fórmulas de Duns Escoto nada têm de original, seja porque ele define o papel da moeda, seja porque enfatize a oposição entre o valor de uso (o único que intervém aqui) e o valor "intrínseco" de uma coisa, isto é, seu lugar

É possível que Santo Tomás permaneça, no campo econômico, mais ou menos tributário das idéias "arcaicas" da pequena nobreza proprietária 103 . De qualquer modo, é certo que a esse respeito o Estagirita é para ele uma autoridade decisiva. E, entretanto, vê-ma-lo, como quase todos os seus contemporâneos, adaptando-se a estruturas novas. Não apenas ele se afasta do texto de Aristóteles quando concede o caráter "honroso" de um ofício que pode fornecer à comunidade bens necessários, como admite que o vendedor assegure para si um ganho razoável uma vez que visa assim a satisfazer necessidades de sua família e até mesmo ter seu lugar na

na hierarquia dos seres 96 . O Doutor sutil se afasta, contudo, de certos mestreS seculares recentes quanto à fixação do preço justo, pois admite, entre duas avaliações extremas, uma muito forte, a outra muito fraca, uma magna latitudo 97 cujos limites podem ser determinados pelo costume ou pela lei. Porém, ao passo que à latitude fixada por um legislador mais preocupado com a ordem pública do que com rigor moral (e que só declara inválida uma transação operada a um preço inferior a medietas iusti pretii) Santo Tomás opunha uma exigência mais severa do foro íntimo e tolerava apenas uma modica additio vel deminutio 98 , Duns Escoto considera como provavelmente lícitos desvios maiores, com a condição de que seja com o acordo das partes e para tornar menos" duras" as cláusulas de um contrato que deve sempre permitir uma certa liberalidade. O paradoxo é aqui o de que a máxima "Não faze a outrem o que não deseja que façam a ti" (Hoc facias alii quod tibi vis fieri)(Mat. 7, 12) é invocada pelo Aquinate com sua referência evangélica, mas para exigir uma estrita igualdade de prestações fornecidas pelas duas partes, ao passo que o doutor franciscano, que a apresenta como um aspecto da lex naturae, a direciona mais à generosidade e à caridade do que a uma troca de serviços.99 Essa consideração da indulgência mútua remete a um tipo de trocas que, segundo o Filósofo, se justificam pela satisfação de uma necessidade imediata, em um quadro restrito, propter necessitatem vitae 100 . O caso do "negócio" propriamente dito é bem diferente, pois ele visa apenas ao "lucro" e Aristóteles qualificava a crematística de "indecorosa". Tornou-se difícil defender essa posição extrema - sem casuísticas sutis - em uma Europa na qual, após uma regressão e uma estagnação que parcialmente se devem, sem dúvida, à instalação do Islã em uma vasta porção dos litorais mediterrâneos 101 , o grande comércio está em vias de readquirir uma importância análoga àquela que pôde ter na antiga Grécia (e que os filósofos contudo se recusaram a admitir, vítimas talvez de tradições indoeuropéias muito antigas)102 e é em uma escala bastante extensa, visto que os sucessores dos vikings, que possuem entrepostos em Novgorod e ligam agora a Escandinávia a Bizâncio, atravessam por outro lado o Mar do Norte e mesmo o Atlântico até os confins das costas americanas.

sociedade, e que exerce a beneficência em favor dos pobres I 04 Fórmulas bastante amplas para autorizarem efetivamente formas de comércio (que não tinham, aliás, esperado o papel assinado em branco pelos moralistas para que pudessem se instituir e se desenvolver). Parece que Duns Escoto, meio século mais tarde, está sensivelmente mais atento ao papel dos grandes comerciantes. Se é "útil ao Estado ter objetos dos conservadores para vender, que possam rapidamente encontrar aqueles que deles necessitam" 105, é mais útil ainda possuir negociantes que forneçam à pátria produtos raros e que transportem as mercadorias "das regiões nas quais elas abundam para aquelas que delas carecem"106. Seguramente, elas são mais caras lá onde faltam, e os historiadores assinalam a vantagem que o comércio ocidental pôde tirar de uma certa estabilidade dos preços orientais. O comerciante se beneficia de uma diferença de valor que não corresponde, por sua vez, a nenhum trabalho, mas sua industria consiste justamente em descobrir conjuntamente as necessidades de um país e os recursos de um outro. Um legislador avisado pagaria muito caro os serviços do ministro capaz dessa análise sócio-econômica e cuja tarefa apropriada seria a prospecção dos mercados. Quando o importador assume por si mesmo essa tarefa tão útil e corre espontaneamente os riscos que esta comporta, é normal que, ao invés de poder "alugá-los" ao príncipe, "venda" aos particulares uma habilidade e um talento muito caros, o que não o priva, aliás, em nada, de legítimas indenizações que deve receber da república no caso em que, sem ter cometido nenhuma falta, tenha seus entrepostos queimados ou seus navios afundados. Em um texto freqüentemente alusivo e condensado, quase nos surpreende ver a insistência com a qual o mestre franciscano enfatiza o valor de uma forma de atividade que, após a recessão econômica do século XIV, iria se tornar tão decisiva para a Europa ocidental, e propiciar tamanho enriquecimento à Grã-Bretanha 107. Os únicos negotiatiores que Duns Escoto vilipendia sem reserva parecem se situar no nível do pequeno comércio, o que não implica certamente que toda especulação em vasta escala seja para ele legítima, pois o benefício do grande mercador é medido, afinal, na escala do bem comum. Mas

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seus inimigos jurados são antes de tudo aqueles que ele chama (introduzindo uma palavra francesa no texto latino) de regrattiers 108 . No caso em que, com efeito, tendo-se dois particulares, um possui o que falta ao outro, se poderia querer uma troca direta ao preço justo, deve-se considerar como parasitas os homens que fazem mister de comprar do primeiro para revender ao segundo; seu lucro diminui necessariamente a renumeração do vendedor, ao mesmo tempo em que majora a soma a ser paga pelo comprador 109 . É igualmente no campo desse comércio local (aí onde o intermediário não tem o encargo de transportar as mercadorias nem o cuidado industrioso de ir muito longe em busca de objetos raros) que se aplica provavelmente a condenação do comerciante que, beneficiando-se de uma carência, assegura para si uma vantagem em detrimento dos mais desprovidos, sem poder ele mesmo invocar esse dano pessoal que, segundo a doutrina comum, seria a única justificativa de um aumento de preçoll0, No que concerne ao empréstimo a juros, apesar de certas divergências mínimas concernentes à transferência de dominium 111, Duns Escoto não traz nenhuma atenuação de princípio às condenações que são formais nos textos da Escritura. A única justificativa do empréstimo é a de prestar serviço ao próximo de modo que não seja jamais lícito exigir do beneficiário um prêmio correspondente a seu próprio prejuízo. Responder-se-ia que se pode pelo menos extrair alguma vantagem de ganhos que o devedor pôde propiciar a si mesmo graças a esse empréstimo? Existe sem dúvida, como veremos, com a condição de que se compreenda bem a natureza desses ganhos, meios de solucionar um problema difícil, considerando-se o desenvolvimento de novas instituições bancárias. Mantém-se ileso, entretanto, o princípio segundo o qual em nenhuma circunstância o dinheiro é por si mesmo fecundo. Quando se trata de um contrato de locação, pelo qual coloco um lingote de metal precioso à disposição de um homem que não tem nenhum projeto senão o de desfrutá-lo e de ostentá-lo, é normal que exija desse homem um certo aluguel de juro, mas emprestei um ornamento e não dinheiro. A operação que as leis consideram contra a usura é o empréstimo de consumo, de uma importância capital nas sociedades subdesenvolvidas, em que o numerário é raro e nas quais a maioria dos homens vive nos limites da miséria. O dinheiro aqui traz tanto menos frutos quanto serve para assegurar uma subsistência imediata. Ao impedi-lo de morrer de fome, exerço em relação a meu próximo um ato de humanidade; se sua situação melhorar, ele me reembolsará, mas não tenho o direito de exigir dele um suposto "juro" nem mesmo de exigir uma restituição com data fixa enquanto sua situação continuar mais miserável do que a minha. É justamente para evitar qualquer especulação acerca da incompressível necessidade dos pobres que se criarão mais tarde essas casas de penhores que, antes de degenerar, se apresentaram primeiramente como instituições de caridade l12 , 114

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Já, entretanto, o caso das grandes empresas necessárias à comunidade é totalmente diferente. O dinheiro, nestas, é, Com efeito, produtivo, na medida em que permite à industria frutificar eficazmente. Sem comanditas, muitas cidades nOvas não poderiam ter sido fundadas e muitas terras teriam permanecido incultas. O comércio de importação exigia uma quota de capitais, que ninguém arriscava sem o atrativo de um certo ganho113. Para justificar esse ganho, foram necessárias alguma sutileza e numerOSas discussões que se prolongarão, pelo menos, até o século xvn 114. Duns Escoto quase não entra em detalhes quanto aos meios jurídicos, e o comentarista da edição Wadding (que preenche essa lacuna através de extensas notas) observa que o mestre não considerou expressamente o mecanismo das cauções e das hipotecas nem as cláusulas do contrato de sociedade. Encontramos, contudo, em sua obra, a afirmação de algumas regras essenciais, das quais pelo menos uma - a do "risco compartilhado" - mantém-se hoje em dia atual, pois nossos sistemas de "seguros" fazem-nos às vezes perder de vista as verdadeiras fontes do lucro e a maneira pela qual se constitui efetivamente a riqueza. A doutrina segundo a qual não se pode "vender o tempo" é tradicional, e alguns sociólogos vêem nela um desconhecimento das leis econômicas. Deve-se compreender, todavia, o que esta significa. Se entrego hoje uma mercadoria que muito provavelmente será mais cara em alguns meses, tenho sem dúvida o direito de prever o futuro e de utilizar essa previsão em meu benefício ou em benefício da comunidade, mas não de tirar, desde já, proveito daquilo que ainda não existe. A coisa é evidente se sou pago imediatamente; continua verdadeira no caso em que aceito um certo atraso para que o comprador quite seu débito. Ninguém, com efeito, me forçou a vender hoje, e o contrato não deve considerar senão o valor presente ou, a rigor, esse aumento sazonal razoavelmente previsível em uma determinada data; mas não posso jogar antecipadamente, com toda segurança, com as variações fortuitas de preço. Quaisquer que sejam as modalidades do contrato - e certas tolerâncias que podemos admitir "em benefício da dúvida" porque uma rígida exclusão do tempo seria por demais vantajosa para o comprador a prestações - , o fundamental é que nenhuma parte seja jamais "assegurada" de um certo ganho, qualquer que seja ele, ao passo que a outra apenas permaneceria exposta a um prejuízo provável ou certo115. Essas regras só são indicadas por Duns Escoto a propósito da commutatio oeconomica, isto é, de uma troca de bens de consumo que o comprador não tem intenção de revender ou de utilizar em vistas de um lucro qualquer. Parece que a aplicação disso pode ser estendida, especialmente - como sugere Hiquaeus - , a esses contratos de sociedade pelos quais vários homens se associam para fundar e explorar uma empresa de interesse geral. O pacto é, com efeito, legítimo, desde que as eventualidades e Gêneses da Modernidade

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os lucros sejam igualmente partilhados, sem nenhum privilégio de segurança para qualquer um dos participantes: aquele que traz os "capitais" (bens de equipamento ou meios financeiros para adquiri-los) e aquele que coloca em jogo sua habilidade e sua audácia 116. É nesse sentido que alguns, mais tarde, quererão interessar os trabalhadores pelos lucros de uma empresa à qual seria injusto pedir, ao contrário, que assegure sem risco e sem trabalho uma renda aos financiadores. Essas antecipações e essas extrapolações serão talvez desculpadas se se pensar que, desde a aurora dos tempos industriais, os discípulos de Duns Escoto puderam encontrar, nas notas sucintas de seu venerado doutor, alguns princípios reguladores capazes de moralizar as instituições econômicas, nascidas no final da Idade Média na Itália, nos Países Baixos, nas cidades da Liga Hanseática, e logo difundidas por toda a Europa ocidental. No quadro de que dispomos aqui - e que já abordamos amplamente - não se trataria de buscar as origens de cada doutrina escotista nem de confrontá-las exatamente com as opiniões de outros doutores. Nosso projeto foi sobretudo o de mostrar que, ainda que a regra moral não seja quase nunca inferida diretamente da lex naturae entendida no sentido mais rigoroso, longe de reduzi-la a um conjunto de disposições arbitrárias impostas de fora, Duns Escoto confia inteiramente na iniciativa e na engenhosidade do homem. Foi o que nos pareceu, especialmente quando se tratava de fundar - sob o controle deveras flexível da recta ratio - uma verdadeira autorictas politica, e de determinar melhores maneiras de repartir e de trocar os dominia primitivamente indistintos. Por mais decisiva que seja a autoridade da Escritura, e por mais respeitável a dos filósofos, o mestre franciscano, nos domínios que poderiam lhe parecer secundários, se adapta com muito cuidado à variedade concreta das conjunturas. Longe de abandonar às forças do mal esse status iste abalado pela falta de Adão, e de ver para a cidade terrestre apenas a pura submissão a uma autoridade despótica, encarregada de fazer reinar um mínimo de disciplina e de virtude 1l7 , foi possível constatar qual o lugar que ele atribui aos recursos engenhosos de uma natureza que continua capaz, em grande parte, de prudência e de retidão. Sem que seja necessário opor aqui as exigências incondicionais da razão às certezas da fé, os "peregrinos" deste mundo têm vocação para reger sua contingente comunidade, por mais provisória que seja, segundo a ordem menos injusta e mais eficaz. No respeito às pessoas e segundo a regra da estrita eqüidade, os próprios homens devem se mostrar dignos das responsabilidades que implica para eles uma voluntas concebida, como sabemos, como a "causa total" de qualquer volitio 118 • Esse "humanismo" não é apenas "teológico"119. 116

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Tudo o que Duns Escoto afirma acerca da lei natural e de seus limites, do consentimento e da eleição, da propriedade e de sua transferência, da condição servil, do papel reservado às trocas comerciais, da necessidade da industria e do risco compartilhado, esboça a imagem de uma antropologia que seria perigoso modernizar demais, e absurdo separar de suas fontes teológicas, mas que é parte integrante da mais autêntica herança franciscana.

NOTAS 1 G. de Lagarde, La Naissance de l'esprtt lai'que au déclin du Moyen Âge, 11: Secteur social de la scolastique, Louvain-Paris, 1958, p. 214-261. Essa segunda edição traz algumas correções a uma exposição anterior que havíamos levemente criticado em nOSsa contribuição à Histoire de l'Eglise de Fliche-Martin-Jarry, tomo 13, 2a ed. Paris, 1956, 367-370. O autor sustenta, quanto ao essencial, suas posições; quando nos censura por julgarmos "pagã" a idéia de que o homem seja um animal político (p.253, n.l13), temos a impressão de uma leitura um tanto rápida da frase na qual dizemos apenas que Duns Escoto ultrapassa a fórmula por demais "naturalista" do "pagão" Aristóteles; a mesma expressão pode assumir sem dúvida outros significados em Santo Tomás. Nossas divergências quanto a detalhes valorizam ainda mais o texto que citamos aqui, pois as preferências tomistas de M. de Lagarde não o impedem de defender às vezes Duns Escoto contra a absurda diatribe sumária de Landry, tão justamente refutada em sua época pelo P. Longpré. 2 Ord. lI! d.22 q. uno n. 18 (ed Vivés XIV 772 bl. 3 Platão, Político (ed. Bekker, 269 b); República VI, 501 b. 4 Aristóteles, Politica VII (ed. Bekker, 1325 b sq.). 5 Santo Tomás (S. teoi. I q. 96 a. 4) não hesita em invocar a autoridade do Estagirita para definir no estatuto de inocência necessidades de hierarquia e de desigualdade cujos traços quase não encontramos na Escritura. Duns Escoto é, nesse sentido, mais reservado; é, entretanto, a essa mesma tradição que remete, ao menos em parte, sua conviccão de uma superioridade natural do homem sobre a mulher (que certamente não impediu Maria de receber um privilégio que nenhum outro homem conheceu, mas que explica todavia que a Imaculada não tenha recebido da Igreja nenhuma forma de ordem sacerdotal; cf. Ord. IV d. 25 n. 4 [ed. Vives XIX 140 ab]: "Nec matrem suam posuit [Christus] in aliquo gradu Ordinis in Ecclesia, cui nulla alia potuit vel non poterit in sanctitate aequiparari. Ratio autem naturalis huic dieto consOnat. O argumento extraído do pecado de Eva não vale evidentemente para Maria; trata-se, pois, de uma distinção de natureza entre os sexos, que não vale no plano da graça nem no da glória, mas que permanece decisiva para a divisão das funções na Igreja militante). 6 Cf. Agostinho, De civitate Dei XIX c. 13 (PL 41, 640). Sobre a communitas aggregationis como definição da cidade (Ord. IV d. 46 q. 1 n. 11 [ed. Vives xx 427 a]), deve-se observar que Duns Escoro só destaca seu caráter inferior em relação a uma communitas eminentis continentiae, que é de ordem sobrenatural. O emprego do termo communitas acrescenta um elemento essencial à definição da ordo aggregationis como unitas minima (Ord. I d. 2 n. 403 [lI 356]). 7 Ord. lI! d. 1 q. 1 n. 17 (ed. Vivés XIV 45 ai.

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li Apesar de alguns vestígios da natureza original, Santo Agostinho (De Civitate Dei, XIX c. 13 [PL 41,640-6411) era sobretudo sensível à desordem da cidade carnal. Duns Escoto (Rep. IV d. 15 q. 4 n. 9-11 [ed. Vives XXIV 234b-235b]) confia mais no "príncipe cristão" e não duvida que, mesmo após o pecado, o homem possa criar para si "justas leis". Veremos que ele não parece fazer a esse respeito nenhuma distinção de princípio entre a cristandade e as comunidades antigas, mas seus exemplos remetem à história judaica, não à dos povos pagãos. As sociedades que considera não estão absolutamente abandonadas apenas a suas forças; sua fé religiosa e a Providência divina não cessam de esclarecê-las em seu uso livre da vontade guiada pela recta ratio. Quanto a isso, a situação do cidadão não deixa de ser análoga à do teólogo especulativo quando cle raciocina como filósofo (d. Gilson E.,Jean Duns Scot, Paris, 1952, 625s). 9 Ord. 1II d. 37 n. 1 (ed. Vives XV 741 b). lO Santo Tomás, S. Teol. I-lI q. 100 a 8. 1! Para Santo Tomás (ibid. ad. 2. 3. 4.), Deus nada pode mudar quanto aos preceitos que resultam naturalmente de sua própria Justiça. A casuística permite entretanto alguma margem na definição daquilo que são, em cada caso, o homicídio, o roubo ou o adultério. Se os judeus se apoderaram sem dispensatio dos despojos dos egípcios, é porque Deus os havia exatamente destinado a seu povo como bens legítimos (Ex. 12, 35-36); Oséas pôde se casar e retomar em seguida como mulher legítima a que Deus lhe havia destinado como tal (Os. 1); quanto à autorização de combater no dia de Shahat (l Macch. 2, 41), esta é apenas uma interpretação da Lei, não uma verdadeira dispensa. 12 ~enos sensível à necessidade de conservar o valor absoluto de uma regra do que de interpretações que permitiriam uma acomodação às circunstâncias, Duns Escoto admite que Deus efetivamente ordenou a Abraão um assassinato proibido pela Lei, que efetivamente prescreveu a Oséas uma conduta contrária às prescricões do Decálogo e que os egípcios foram propriamente "despojados", como diz explicitamente o próprio texto da Escritura. Ele acrescenta que, segundo São Paulo (Rom. 3,20), é a Lei que dá o conhecimento do pecado. Ora, o que é malum ex lege naturae é conhecido naturalmente como tal; a Lei teria sido então inútil se esses preceitos fossem de direito naturaL Enfim, a [ex naturae obriga em qualquer circunstância; se o Decálogo tivesse obrigado Adão antes do pecado, teria podido ser promulgado desde o início. Dito isso, o Doutor sutil admite que as dispensas efetivas são raras e supõem uma intervenção explícita de Deus (Ord. IV d. 33 q. 1 n.4 fedo Vivés XIX 362b-363a]; q. 3 n. 5 [p. 386bll· Li Rep. 11 d. 22 o. 3 (ed. Viv(:~ XXIII 104 b): "Omnia peceata quae sunt cirea deeem praecepta, formaliter non tantum sunt mala quia prohibita, sed quia mala ideo prohibita. Através de seu ato livremente criador Deus deu então às coisas uma "natureza" que determina a seu respeito uma certa "justiça" (Ord. IV d. 46 q. 1 n. 7 9-10 [ed. Vives XX 424b. 425bA27a)). Ockham, ao contrário, define sempre o bem moral em relação a uma prescrição positiva cujo caráter coativo prende~se como tal apenas à decisão divina. Não esqueçamos entretanto que, ainda que, para ele, Deus é forçado pelo princípio da não-contradição somente a não odiar a si mesmo, de modo que não se poderia excluir _ de potentia absoluta - a hipótese teórica de uma decisão que tornaria meritórios não apenas o roubo c o adultério, mas mesmo a idolatria (isto é, a transgressão de um preceito da primeira Tábua), Ockham (Sent. II d. 19) admite, de fatode potentia ordinata - a existência de um direito natural no qual cle integra o conjunto das instituições jurídicas de seu tempo. 14 Quodl. q. 16 n. 18 (ed. Vivé, XXVI 201 ab). 1 ~ Em uma perspectiva análoga - porém mais radical, visto que se estende às verdades matemáticas e, de certo modo, ao princípio de não-contradição - Descartes (Lettre

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à Mesland, ed. Adam-Tannery IV 118) se recusará a "falar de Deus como de um Júpiter

ou de um Saturno", isto é, de "sujeitá-lo ao Estige e aos Destinos" (A Mersenne, 1142). 16 Ord. pró!. n. 330 (1216). 17 Ord. IV d. 26 q. uno n. 3. 4 (ed. Viv(:s XIX 148a. 148b): "Nullus actus est sufficienter bonus moraliter ex ratione agentis vel obiecti. nisi amare Deum ... Nullus actus est perfecte bonus ex genere tantum, sive ex solo obiecto, nisi amare Deum. 18 Rep. IV d. 28 q. uno n. 6 (ed. Vives XXIV 378a): Omnís alius actus est indifferens, qui est respectu alterius obiectí, et potest esse circumstionabilis bene aut male. O adjetivo "indiferente" designa, aqui, um ato que, em outras circunstâncias (ou se, desde a origem, Deus tivesse tomado outra decisão quanto a isso) poderia receber uma outra qualificação moraL Parece adquirir um outro sentido onde Duns Escoto (Ord. 11, d. 41 q. uno n. 4 [ed. Vives XIII 436a]) - opondo-se formalmente a Santo Tomás (cf. S. teol. 1-11 q. 18 a 8. 9.) - a aplica não apenas a atos que procedem somente da imaginação, como mexer na barba ou na mão, mas a livres decisões racionais que, entretanto, não implicam obediência nem desobediência a uma lei moral. Para o Doutor angélico (cf. Sento IV d. 26 q. 1 a 4) qualquer ato é, por si mesmo, bom ou mau (ainda que o casamento, enquanto "concedido", seja simultaneamente um mal menor e um bem menor, o ato matrimonial pode apenas ser, de acordo com as circunstâncias, meritório ou demeritório). Na linha de Abelardo (que remonta de fato aos estóicos), Duns Escoto reserva as qualificações propriamente éticas a atitudes voluntárias de consentimento ou de recusa diante de uma ordem reconhecida como taL 19 Santo Tomás, Sento IV d. 26 q. 1 a 1 - Cf. Summa contra gentiles III c. 123 (onde a naturalidade do casamento é definida a partir do bonum hominis, exigindo a verdadeira ordo naturalis a sobrevivência da espécie por uma successio seeundum speciei similitudinem, mas também a instituição de um vínculo indissolúvel entre os cônjuges, pois se a educação das crianças requer a duração, a amizade recíproca a exige ainda mais). Em Summa contra gentiles III c. 139, Santo Tomás evoca a conjunção entre uma lei humana (baseada no instinto e na reflexão) e uma lei divina "sobrenatural" (concernente à significação mística do casamento). De qualquer modo, ea quae divina lege praecipiuntur rectitudinem habent non solum quia lege posita, sed etiam seeundum naturam (ibid.). Duns Escoto, sem negar essa retidão, insiste mais no caráter contingente dos preceitos aplicados às relações inter-humanas, de modo que, nele, o contraste entre a "natureza" propriamente dita e exigências de perfeição sobrenatural é menor. E quanto a essas últimas o Aquinate enfatiza seu aspecto de sacrifício, pois implicam a amputação de certos aspectos do communis modus humanae vitae (ibid. c. 131). 20 Ord. IV d. 26 q. uno n. 7 (ed. Vives XIX 149b). 21 Aqui o próprio jogo dos comparativos e dos superlativos destaca uma certa margem de indeterminação entre ius naturale c ius positivum; cf. ibid. (p.IS0a): "Sicut dictum est supra, distinctione 17, propriissime de lege naturae est principium practicum per se notum, et conclusio demonstrative descendens ex tali principio; secundario autem de lege naturae est verum evidenter consonum talibus princiípis et conclusionibus, /icet non necessario sequens; et hoc modo marem et feminam obligari ad finem praedictum est de lege naturae. 22 É a propósito da penitência que Duns Escoro (Ord. IV d. lS q. 2 fedo Vives XVIII 255a-354a] e Rep. IV d. 15 q. 4 fedo Vives XXIV 233a-2S4b]) examina a obrigação de restituir os bens injustamente detidos e considera antes de tudo o próprio princípio da apropriação. 23 Santo Tomás, Sento IV d. 26 q. 1 a. 1: "Alio modo dicitur naturale ad quod natura inclinat, sed mediante libero arbitrio completur... Et hoc modo matrimonium est naturale,

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30 Sem desconhecer seguramente o melius (acitde I Cor. 7, 38, Santo Tomás insiste na variedade das vocações "naturais": a natureza não inclina igualmente todos os homens para as mesmas atividades, ainda que todas sejam úteis à comunidade; conseqüentemente, se o casamento não é absolutamente exigido (como já o sabiam os filósofos antigos), é porque é importante que alguns se ocupem da contemplação: Et sic contingitquod quidam

quia ratio naturalis ad ipsum inclinat dupliciter: primo, ad principalem eius finem, qui est bonum prolis ... ; secundo, quantum ad secundarium finem matrimonii, qui est mutuum obsequium sibi a coniugibus in rebus domesticis impensum. Sicut enim naturalis ratio dictat ut homines simu/ cohabitent, quia unus non sufficit sibi in omnibus quae ad ipsam vitam pertinent, ratione cuius dicitur homo naturaliter politicus; ita etiam eorum quibus indigetur ad humanam vitam, quaedam opera sunt competentia viris, quaedam mulierihus. Unde natura movet ut sit quaedam viri ad mulierem associatio, in qua est matrimonium. Concordando com o Aquinate quanto ao primeiro fim, Duns Escoto define o segundo como um contrato de troca entre dois corpos mais do que como uma divisão natural das tarefas. 24 Ord. IV d. 26 q. uno n. 9 (ed. Vives XIX 161 a): Minus obediunt homines soli legi naturae quam Deo praecipienti, quia minus timent et reverentur conscientias proprias quam auctoritatem divinam. 25 Ibid. n. 19 (p.189b): Unde ergo primo est honestas contractus huius, vel obligationis isto modo, vel institutio, vel approbatio divina respectu eius ad istum finem. Respondeo: non apparet facile quod secundum rectam rationem debeat quis in illo actu praecise ad delectationem aspicere, immo magis oppositum videtur consonum rationi; ergo magl:s tolerandum, quia non videtur inveniri ibi (inis laudabilis, nisi procreatio prolis. Ratio etiam naturalis non videtur conc/udere aliquam honestatem in actu iIlo, nec per consequens in obligatione, vel cum contractu obligatorio mutuo ad illum actum, nec per consequens quod legislator recte debeat contractum, ve/ obligationem, approbare vel instituere. Após ter examinado a "justiça" própria à dupla doação de corpos entre CÔnjuges, Duns Escoto prefere recorrer ad institutionem Dei, tendo essa instituição como único fim a propagatio e tornando finalmente lícito (a título de concessão) o contrato mútuo dos cônjuges (ibid. n. 20 [p. 190ab]). 261bid. n. 5 (p. 149a). Notemos a ordem dos três bens que representa uma hierarquia descendente. Santo Tomás coloca aqui como fim primeiro a educatio prolis. A diferença é que Duns Escoto cita de Aristóteles apenas a definição do homem como animal natura/iter coniugale et domesticum, não como animal politicum; a faml1ia, com efeito, para ele, é mais imediatamente "natural" do que a cidade. 27 Ibid n. 8 (p. 159b). Em uma perspectiva em parte feudal, mas de alcance mais amplo, todo contrato exige a aprovação do dominus superior. Não é pois contraditório descrever o contrato conjugal como um pacto livre (submetido, às vezes, à estrita regra do do ut des) e subordiná-lo às leis impostas por Deus, enquanto senhor de todos os corpos. Esse duplo aspecto é retomado a propósito do uso dos dominia e mesmo no que concerne ao pacto social, mas apenas a lei divina pode impor a indissolubilidade do casamento; as sociedades políticas relacionam-se mais, em sua própria estrutura, à livre decisão dos contratantes. 28 Essa adhaesio não é por isso imposta arbitrariamente; é aqui que intervém o consonum rectae rationi. A doação mútua e definitiva dos corpos é, com efeito, razoáve~ para evitar as dissensões, e a título de mal menor; como um bom suserano, Deus aprova apenas uma translação" honesta (cf. ibid. n. 10 [p. 161b]: Corpus cuiuscumque est Dei, iure creationis; ergo nul/us potest transferre il/ud in dominium alterius, nisi in quantum Deus approbat; ergo, si translatio est honesta ... , sequitur quod congruum est Deum istam translatíonem corporum approbare). Trata-se apenas, bem entendido, de aprovação, não mais de ordem formal. O homem é livre para se vender como escravo (ainda que a Escritura não aprove essa tolice, mas Deus permite tudo o que não é contrário ao Decálogo; cf. ibid.: in quibus Deus non obligat sibi hominem vel sua, relinquit ea voluntati hominis) A fortiori ele tem a licença para estabelecer um vínculo que a Escritura aprova expressis verbis. 29 O que só seria possível após a paixão de Cristo, fonte de toda graça.

eligant matrimonialem vitam et quidam contemplativam. Unde nul/um pericu/um imminet (Santo Tomás, Sento IV d. 26 q. 1 a. 3). O conselho evangélico de castidade é aqui aproximado da vocação filosófica, correspondente à divisão natural das funções no interior de uma sociedade hierarquizada. O Doutor angélico não ignora evidentemente que esse conselho se dirija a todos os homens (não a uma casta restrita). Mas é por demais realista para considerar o caso em que, tendo a grande maioria (ou mesmo uma minoria muito forte) de cristãos escolhido o caminho estreito, haveria efetivamente "perigo iminente", não apenas para a cidade inteira, no plano demográfico e no que concerne à produção e à troca de riquezas, mas mesmo para o grupo ampliado dos contemplativos que só podem ser recrutados se o casamento for o prêmio do maior número e que só subsistem, dia após dia, pela caridade dos menos perfeitos. Em uma hipótese como essa, seria necessário que os clérigos e os monges voltassem aos primeiros costumes dos primeiros tempos, quando São Paulo fabricava tecidos de tendas e o casamento seria provavelmente necessário como na época dos Patriarcas. Para solucionar um problema teórico desse tipo, as teses escotistas fornecem talvez mais elementos do que a visão tomista. 31 A dupla maldição lançada sobre as crianças nascidas desse incesto (Deut. 23, 3-4 e sobretudo 32, 31-32) não faz alusão de forma explícita à falta cometida pelas filhas de Lot. Seu próprio pai será considerado como um "justo" (Sap. 10,6 e 11 Petr. 2, 7) ainda que tenha oferecido suas filhas virgens à cobiça de seus compatriotas (Gên. 19, 9). Duns Escoto não se detém na exegese desses casos difíceis (associados a um estado arcaico da moralidade), pois estes quase não lhe fornecem argumentos utilizáveis para sua teoria das dispensationes. 32 Cf. s. Agostinho, De bono coniugali c. 25 (PL 40, 395). 33 Esses textos poderiam fornecer alguns elementos ainda utilizáveis para o problema da limitação dos nascimentos nos países superpovoados nos quais a doença e a fome não desempenham mais seu papel de equilíbrio demográfico. Na Idade Média a questão era colocada, antes, em termos inversos, mas Duns Escoto (que escreve ainda em um período no qual a população acabava de conhecer um crescimento provisório) não imagina mais do que Santo Tomás a hipótese de um perigo iminente de diminuição da natalidade. 34 Ord. IV d. 33 q. 1 n. 2 3. 4 (ed. Vives XIX 359b. 360a. 362a). O argumento não vale evidentemente para Lamech, que desposou duas mulheres por sua própria iniciativa e sem que a recta ratio justificasse aqui nenhuma dispensa. No entanto, é apenas "provável" que ele tenha pecado contra a lex naturalis (entendida secundo modo). O caso dos Patriarcas é diferente, pois a impiedade crescente fazia temer um desaparecimento próximo do pequeno núcleo dos piedosos fiéis (ibid. n. 8 [p. 364b]). 35 Ibid. n. 6 (p. 364a). Nessa hipótese, a justiça da troca permaneceria salva no que concerne à função procriadora (para a qual um só homem equivale a várias mulheres); no que se refere ao debitum conjugale, seria necessário que uma dispensa explícita liberasse os maridos de uma parcela de sua obrigação. 36 O paradoxo é aqui o de ver Duns Escoto (que é freqüentemente acusado de voluntarismo e de convencionalismo) multiplicar as justificações "naturais" e "racionais" de "dispensas" e de "revogações" que dependem apenas da decisão divina, ao passo que inversamente Santo Tomás (Sent. IV d. 33 q. 2a. 2) -que assimila mais a lei divina à lei da natureza - vê antes nessas intervenções sobrenaturais fatos semelhantes a milagres.

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"Ord. IV d. 15 q. 2 n. 7 (ed. Vivés XVIII 266a). lbid. n. 3. 6 (p. 256h-257a. 265ab). A expressão

não vem acompanhada aqui de nenhuma especificação, mas sabemos que apenas a primeira Tábua da Lei contém preceitos rigorosamente "indispensáveis". t preciso, entretanto, distinguir o que poderia ser de outro modo de potentia absoluta (e especialmente toda a segunda Tábua, como a própria natureza do homem criado) e o que comporta uma determinada variabilidade, mesmo de potentia ordinata. A comunidade original parece se impor absolutamente desde que Deus criou o homem tal como o fez efetivamente, sendo a revogação legitimada apenas a partir do pecado. 39 Rep. IV d. 15 q. 4 n. 7 (ed. Vivés XXIV 233b-234a). 40 Ainda aqui a posição de Santo Tomás é bastante diferente. Para ele, a apropriação privada é de direito natural (o direito positivo apenas especificando as modalidades peradinventionem rationis naturae, S. teol. lI-lI q. 66 a. 2). No próprio Paraíso não se podia conceber verdadeira "igualdade" pois, como disse Santo Agostinho (De civitate Dei XIX c. 13 [PL 41, 640J), e como o mostrou Dionísio em sua De caelesti hierarehia na qual todos os Anjos são estritamente subordinados, ardo ... maxime videtur in disparitate eonsistere (S. teol. I q. 96 a. 3). 41 Pode-se duvidar que um filho de São Francisco tenha se iludido tanto acerca da aptidão da propriedade privada em salvaguardar o quinhão dos pobres no interior de uma sociedade desigual. Mas a própria mendicância supõe que se insira em um mundo no qual preexiste um determinado acúmulo de bens. Os dominicanos e os franciscanos não imaginaram instituir falanstérios produtivos, como tentarão fazê-lo mais tarde os jesuítas do Paraguai. Sonhos desse gênero derivam a seus olhos da utopia milenarista, e apenas os elementos "joaquinzantes" da Ordem dos Menores puderam ser seduzidos pela extensão institucional de um tipo de comunidade que Duns Escoto julga tão severamente quanto Santo Tomás. 42 Ex. 10, 17: "Não ambicionarás a casa de teu próximo ... , seu servo, sua criada nem seu boi ou seu asno; em suma, nada do que é dele". 4, Além dos mandamentos explicitamente formulados no Paraíso (fecundidade, trabalho, casamento, proibição de comer o fruto da árvore do conhecimento), ao lado das ordens circunstanciais dirigidas a determinados indivíduos (Noé ou Abraão), não encontramos, no Gênesis, senão proibições alimentares e o prece-ito ritual da circuncisão. O único texto que anuncia diretamente o Decálogo é, cle mesmo, apresentado sob a forma de prevenção e de ameaça mais do que de mandamento ("Quem verte o sangue do homem pelo homem terá seu sangue vertido," Gên 9, 6). No entanto, o dilúvio e a destruição de Sodoma (após a vã procura dos "justos") indicam suficientemente que Deus espera dos homens, mesmo após a queda, uma certa moralidade "natural", que conceme tanto a suas relações sociais quanto a sua vida propriamente privada. A esse respeito, Duns Escoro destaca freqüentemente o papel da liberdade humana. Veremos que para ele a autoridade política não é essencialmente fundada no "direito divino" nem mesmo em uma pura exigência da ordem como tal; como o contrato matrimonial, o pacto social, quaisquer que sejam suas finalidades superiores, é antes de tudo obra da vontade. 44 Rep. II d. 33 q. uno n. 20 (ed. Vives XXIII 164a): Regulariter de necessitate salutis est reddere unicuique quod suum est... Si tamen Deus... diceret alicui: 'Constituo te dominum totius mundi', ipse tune posset capere ubicumque vellet, quia Sua esset, et non esset debitor, reddendo euilibet quod modo est suum. Duns Escoto aplica aqui, como vemos, a uma hipótese puramente dialética, o princípio de exegese utilizado por Santo Tomás a propósito das aparentes dispensas do Decálogo referidas na Escritura; a 38

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decisão divina modifica os próprios termos do preceito, e tudo pertenceria de direito a um único homem, como os bens dos egípcios pertenceram aos hebreus e como a prostituta se tornou a mulher legítima de Oséas. Não haveria aqui exceção à regra, mas uma formulação diferente do princípio de justiça. 45 No narrativa do Gênesis - que opõe (de passagem) a vida pastoral dos hebreus à organização urbana e agrícola dos egípcios (Gên. 46, 34) e que descreve demoradamente (na única perspectiva providencial da sobrevivência assegurada ao povo eleito) a instituição, por José, de um verdadeiro socialismo de Estado (Gên. 47, 15ss), nada indica uma preferência fundamental por esse ou aquele regime social. Ao proibir o roubo, o Decálogo visa a um pecado que pode muito bem existir no interior de uma comunidade na qual tudo pertence ao soberano (ou em um falanstério no qual a apropriação individual de um objeto comum é feita em detrimento de todos). 46 Rep. IV d. 15 q. 4 n. 9 (ed. Vivés XXIV 234b). Cf. Ord. IV d. 14 q. 2 n. 7 (ed. Vivês XVIII 59b): Finis autem legis positae ab homine legem (erente nOI1 est ipse legislator, vel bonum eius, sed honum eommune. É por isso que a vindicta ad istum (inem é mais razoável do que a vingança privada. 47 Lagarde, op. cito p. 253. 48 O termo eongregatio, diversas vezes empregado aqui, tem suas cartas de nobreza na história eclesiástica. Quanto à palavra aggregatio, esta define, em Boécio, uma operação que é mais do que a justaposição de unidades; no latim de César, se aggregare ad amicitiam alicuius sugeriria algo bem diferente do que a coligação exterior de interesses. 49 Até o momento em que a pressão dos filisteus se torna mais diretamente ameaçadora, os grupos seminômades que Josué havia instalado no país de Canaã tinham permanecido simples famílias, ou clãs exogâmicos, não tendo outra unidade a não ser o culto do mesmo Deus (e ainda seria necessário que os Juízes lhes lembrassem periodicamente a fé de seus ancestrais). Quando as "gentes de Israel" propõem a Gedeão a instituição em seu favor de uma monarquia hereditária, o vencedor dos madianitas responde: "Não sou eu que reinaria sobre vós e tampouco meu filho, é Iavé que deve ser vosso soberano" (Iud. 8,22). Ao lado da auctoritas paterna ele não reconhece então nenhum outro poder legítimo a não ser a ação imediatamente protetora e punitiva de Deus. Abimelech, ao contrário, exigirá se tornar um verdadeiro chefe político (em nome, é verdade, de seu parentesco materno) e se fará reconhecer como rei pelos notáveis de Sichem (fud. 9,2-6), mas o apólogo profético de Yotham (Iud. 9, 7s) indica bem a repugnância dos hebreus quanto à instituição de uma monarquia. O problema seria colocado de uma outra maneira a partir de Samuel, e se tratará efetivamente de justapor assim à simples autoridade familiar uma autorictas po/itiea no sentido mesmo em que a entende Duns Escoto, sem que nenhum desses poderes seja subtraído à regulação suprema de Deus (cf. R. De Vaux, Les livres de Samuel (Bihle de Jérusalem], Paris, 1953, Introdução 12-13). 50 Aos judeus que exigem agora um rei, Iavé dá, parece, total liberdade; sob suas ordens, Samuel se satisfaz em colocá-los em guarda contra os inconvenientes do pactum suhiectionis. É verdade que é Deus que designa expressamente Saul (e que em seguida o pune por sua desobediência favorecendo a ascensão de David), mas uma outra narrativa evoca claramente um "sorteio", seguido por uma "aclamação" e por uma "proclamação" (I Reg. 10,21-24; 11, 5). O próprio David será primeiramente "ungido como rei" pelos "homens de Judá" (lI Reg. 2,4); após negociações, será um verdadeiro pacto o que concluirão com ele "os homens de Israel", seguramente "na presença de Iavé", mas Deus não sendo aqui senão testemunho e garantia (lI Reg. 5, 3).

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51 Santo Tomás insiste, ao contrário, na ordem já institucional que devia regulamentar no Paraíso as relações de subordinação. Do mesmo modo que Adão recebeu poder para regulamentar as competições naturais entre animais e dar a sua justa alimentação aos animais carnívoros (como atualmente o senhor sacrifica suas galinhas a seus falcões), foi preciso regulamentar as ordens de precedência entre indivíduos necessariamente desiguais (quanto não fosse devido à "disposição do ar" e à "influência dos astros"). A escravidão só foi impensável porque comporta uma certa poena subiectorum, mas a subordinação política dos menos sábios e dos menos fortes é naturalmente aceita pelo ser razoável (cf. s. Teol. Ia q. 96 a. 4: Unde homines, in statu innocentiae, socia/iter vixissent. Socialis autem vita multo rem esse non posset, nisi a/iquis praesideret, qui ad bonum commune intenderet. Não chega a ser surpreendente, assim, que o Angélico invoque aqui Aristóteles como autoridade principal!). Apoiando-se em Santo Agostinho, que não faz nenhuma distinção no Paraíso terrestre entre autoritas paterna e autoritas politica, A. Hiquaeus, Commentarius ad Ord. IV d. 15 q. 2 fedo Vives XVIII 267 a., 269a, 270b], defende Duns Escoto ao declarar que no estatuto da inocência os filhos obedeceriam espontaneamente aos pais, sem iurisdictio e no plano da pura amizade, e que todo mundo obedecia a Deus, sem nenhuma auctoritas principans, a qual supõe sempre uma indigentia e um defectus na vontade ou no intelecto; nesse campo é preciso seguir o conselho dos Padres, não o de Aristóteles, que conhece apenas o status peccati. 52 Segundo a Reportatio, Duns Escoto pensa que o princípio quod nul/ius iuris est, primo occupanti conceditur foi instituído, seja pelo próprio Adão em favor de seus filhos, seja pelo "consentimento comum" desses últimos (o que sugere a possibilidade de um tipo de primeiro pacto social, mas limitado à divisão das terras e dos rebanhos) (Rep. IV d. 15 q. 4 n. 12 [ed. Vivés XXIV 235b·236aJ). 53 Ord. IV d. 15 q. 2 n. 8 (ed. Vives XVIII 270b-271a). Aqui Duns Escoto remonta apenas a Noé, o qual post diluvium ... filiis suis distinxit terras, quas singu/i occuparent pro se... ; vel ipsi de communi concordia inter se diviserunt, sicut legitur, Gên. 13 [6-13] de Abraão e de Lot". Se a lei instituída pelo príncipe ou pela comunidade estipula que as terras livres pertençam ao primeiro ocupante, deve-se observar o interesse de todos, mas essa não é absolutamente uma obrigação de direito natural. 54 Ibid. (p.271a): Vellex a/iqua promulgata est a patre, vel ab aliquo electo ab eis in principem, ve/ a communitate, cui ipsamet communitas commisit istam auctoritatem. 55 S. Gregório M., Regu/ae pastoralis liber pasto 2 c. 6 (PL 77, 34). 56 Ord. IV d. 36 q. 1 n. 2 (ed. Vivés XIX 446a). 57 Nicolau de Cusa, De concordantia catho/ica 11 C. 14 (Opera omnia, XIV-2, ed. Kallen G., Hamburgi 1965, 162): Si natura aeque potentes et aeque liberi homines sunt, vera et ordinata potestas unius communis aeque potentis naturaliter non nisi electione et consensu aUorum cOnstitui potest, sicut etiam lex ex consensu constituitur. Apesar dessas fórmulas categóricas, o pacto assim definido será mais nitidamente do que em Duns Escoto um pactum subiectionis (pacto generali convenit humana societatis velle regibus obedire). O Doutor sutil está mais próximo, a esse respeito, de Godofredo de Fontaines que, em seu Quodl. XI, q. 17 (PhB V 77), a propósito do direito do príncipe em impor uma taxa ao povo, eScrevia que os homens livres não devem pagar impostos a não ser após seu consentimento expresso, acrescentando que o príncipe "não tem o direito de governar a não ser a comunidade inteira, pois é esta que o elege, o institui, o aceita ou lhe dá seu consentimento", com a condição de que ele exerça seu poder "para o bem comum". Senão os súditos podem resistir "até que conselheiros qualificados tenham podido examinar a oportunidade das medidas propostas" (de acordo com Lagarde, op. cito p. 196-197). Godofredo havia se formado em um ambiente mais "republicano"

do que Duns Escoto, mas seus pensamentos são próximos, ainda que um insista mais nos "direitos" atuais dos súditos, o outro na origem legítima do poder. 58 Ord. IV d. 36 q. 1 n. 2 (ed. Vivés XIX 446a). 59 Sobre a constituição dos "sauvetés", "bastides" ou "villes franches" sob a conduta de um promotor que chama colonos c lhes dá uma carta, cf. G. Duby, L'économie rurale et la vie des campagnes dans /'Occident médiéval, I, Paris 1962, p. 148. 60 Santo Tomás define sobretudo o poder real por sua função e pelas virtudes de um bom pastor que se faz amar por seus súditos. O papel do príncipe é mais importante do que a origem histórica de sua autoridade. As leis que ele promulga procedem direta ou indiretamente da lex naturae e, em todos os regimes, encontramos as mesmas articulações fundamentais (S. teol. I-lI q. 95 a. 4), mas a idéia de um poder "confiado" por via contratual continua estranha à tradição aristotélica (da qual Dante é também testemunho) que concorda com a Bíblia para apresentar modelos superiores de bons príncipes. A posição escotista parece em parte inspirada pela experiência inglesa das liberdades e das franquias. Sobre a necessidade de uma "presidência" que se funda em outras bases institucionais além do simples exercício concreto da virtude de prudência, cf. Ord. IV d. 15 q.2 n. 6 (ed. Vives XVIII 265b): Lex positiva iuste requirit in legislatore prudentiam et auctoritatem. Prudentiam, ut secundum rectam rationem practicam dictet quid faciendum pro communitate. Auctoritatem, quia dicitur lex a 'ligando'; sed non quaecumque setentia prudentis ligat communitatem nec aliquem, si nulli praesideat. 61 Especialmente, como veremos adiante, no que concerne ao controle das trocas e ao direito da propriedade. 62 A palavra latina servitus é de ampla extensão; pode designar a submissão política ou a escravatura antiga, situando-se as formas medievais da servidão em uma zona intermediária, freqüentemente mal delimitada. 63 Cf. B. Landry, La philosophie de Duns Scot, Paris, 1922, especialmente p. 351353, e as justas críticas de E. Longpré, mesmo título, Paris 1924. 64 S. Tomás, S.teol.lI-I1 q. 57 a. 3 ad 3. Em seu comentário das Sento IV d. 26 q. 1, após ter estabelecido o caráter natural do casamento, Santo Tomás se pergunta se o preceito matrimonial vale ainda sob a nova Lei. Ele observa que a natureza se inclina de duas maneiras, seja no que é necessário à perfeição do indivíduo (e nesse sentido essa tendência desemboca em uma obrigação comum a todos), seja no que é necessário apenas a perfectio mu/titudinis (e nesse sentido ninguém está obrigado ao casamento, não mais do que à profissão agrÍCola, visto que convém que algumas se dediquem à vida contemplativa e parece que essa exceção concerne apenas por acaso a indivíduos de condição servil). 65 Ord. IV d. 36 q. 1 n. 5-6 (ed. Vives XIX 448ab). Para Duns Escoto ninguém está obrigado a "multiplicar a espécie". Th. Sánchez (De matrimonii sacramento VII dispo 21, tomo 11, Venetiis 1726, 64b-65a) objetará que é preciso distinguir entre direito e obrigação, e sobretudo que o segundo fim do casamento é o de evitar a fornicação. Forçando o escravo ao celibato, corre-se o risco de induzi-lo ao pecado. É justamente por isso que o Doutor sutil deseja que de fato o senhor renuncie a tal imposição. Mas lhe parece indevido e perigoso basear essa renúnica em uma verdadeira ius naturae. 66 E isso sem que uma quase-sacralização da "vontade geral" permita aqui aplicar os paradoxos de Rousseau quanto ao caráter inalienável de uma vontade que, em um contrato social, se afirma plenamente a cada vez que concorda com o bem público, resolvendo-se os aparentes conflitos pela recusa das vontades privadas que seriam apenas falsas manifestações da liberdade (Cf. Rousseau, Contrato Social III C. 2, onde a "vontade própria do indivíduo, que tende apenas à sua vantagem particular", é expressamente oposta à "vontade do povo, ou vontade soberana", que deve ser "sempre domi

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nante e a regra de todas as outras". É por isso que o pacto social era definido como uma agregação na qual "cada um de nós torna comum sua pessoa e todo seu poder sob a suprema direção da vontade geral" libido I c. 6], e Rousseau admitia finalmente, o que prepara todos os excessos jacobinos, que se pode "forçar" o cidadão a "ser livre"). 67 Essa tese é extensamente desenvolvida na segunda parte do Roman de la Rose, onde se enfatiza o valor natural da procriação de modo que o homossexualismo aí não é menos condenado do que a castidade. Mas as censuras de Estevão Tempier referem~ se igualmente às proposições mais radicalmente hedonistas. 6SSe o escravo casa com uma mulher livre, esta deve ser advertida de que este só pode lhe dar a parte "módica" de poder que ele mesmo conserva sobre seu corpo (Ord. IV d. 36 q. 1 n. 8 fedo Vives XIX 452 b]). É por isso que todos os doutores reconhecem como inválida uma união entre pessoas que esconderam sua condição servil uma da outra. A única nuance de expressão entre Santo Tomás e Duns Escoto (no caso do casamento autorizado pelo senhor) é que um se dirige diretamente ao escravo e declara que este deve praetermittere servitium domini imperantis et reddere debitum uxori, pois a autorização dada implica por si mesma "a concessão de tudo o que o casamento implica" (Santo Tomás, Sento IV d. 36 q. uno a. 1 ad 3), ao passo que o segundo apela mais à consciência do senhor, pois não é senão "implícito" que, por sua autorização, dominus relaxat iIla servitia consueta. t. desejável que o bom senhor vá o mais longe possível nesse caminho, mas o casal de escravos só tem direito de desfrutar seu casamento tanto quanto o que lhe permitem os servitia consueta (Ord. IV d. 36 q. 1 n. 8 fedo Vives XIX 452 bJ). 69 A única restrição é que a esposa deve saber de todos os perigos que corre uma união realizada sem a autorização do senhor e que, conseqüentemente, não cria para ele nenhuma obrigação, mesmo restrita. Se decide enviar o marido para a África e a mulher para a França, o senhor dá provas de evidente crueldade, mas não ultrapassa seus direitos. Como observa A. Hiquaeus em seu comentário (ed. Vives XIX 457a), muitos doutores julgaram "dura" uma sententia que só se justifica na ordem do ius civile et politicum (e que devia surpreender um leitor do século XVII porque não correspondia mais à situação efetiva de sua época). 70 Sem evocar certos conflitos mais recentes, que concernem, por exemplo, à oposição entre o dever militar de obediência imediata e o caráter desumano de certas ordens (genocídios, massacres de civis, uso da tortura). 71 Cf. Duby, op. cit, I, capo 1. Esse autor observa que o destino desses escravos tinha sido bastante abrandado desde a época carolíngia, mas eles podiam ainda ser vendidos e comprados. Na época de Duns Escoto as diferenças de estatuto jurídico contavam menos do que a oposição dos níveis de vida entre os trabalhadores, proprietários de um cavalo e de uma carroça, e os trabalhadores braçais que possuíam apenas sua força de trabalho para vender. 72 É verdade que a servitus, que por si mesma pertence aos fugienda (ao passo que o casamento é um per se expetendum), não responde à "primeira intenção da natureza" e é por isso, como já vimos, que o Paraíso excluía a poena subiectorum, ligada à condição servil (S. Tomás, s. teol. I q. 96 a. 4), mas ela corresponde à secunda intentio naturae, visto que foi introduzida in poenam peccati (como a submissão da mulher ao homem, cf. Gên. 3, 16, e a aproximação nada tem de impertinente, visto que a natureza visa antes de tudo a fazer homens e só produz como segunda intenção (eminam quae est mas occasionatus [5. Tomás, Sento IV d. 36 q. 1 ad 2]). 73 Cf. Santo Tomás, S. teol. 11-11 q. 57 a. 2 e 3. 74 Apoiando-se em uma diferença biológica entre os corpos de escravos, vigorosos para o trabalho pesado, mas excluídos da verdadeira "posição ereta" que caracteri-

za O homem livre, Aristóteles (política I led Bekker, 1254bJ) sugeria entre essas duas raças uma diferença de ordem moral, que é difícil de sustentar em uma perspectiva cristã. Os comentadores medievais insistem mais na "fraqueza" daqueles que, como as crianças, têm necessidade de mestres que os conduzam à virtude. Duns Escoto particularmente fornece desses textos célebres uma pia interpretatio que justificaria, não a condição propriamente servil, mas a necessária submissão dos cidadãos ao "príncipe que os rege, não para o mal, mas para o bem. Ora, a vil servidão é exatamente uma situação quae est ad malum hominis. Pode~se, pois, defini-la como pure naturalis, sed tantum de lege et iure positivo (Rep. IV d. 36 q. 2 n. 5 [ed. Vives XXIV 459a]). É bem verdade que, como disse o Filósofo, pollens mente debet praesidere, pollens viribus debet servire, mas esse princípio só vale de servitude politica, qua inferior disponitur a superiore, non tamen sicut inanimatum, sed sicut minus vigens mente ordi114tur per il/um qui magis pol/et mente (Ord. IV d. 36 q. 1 n. 3 fedo Vives XIX 447a]). Duns Escoto não ignora entretanto as passagens nas quais Aristóteles comparava o escravo a um animal de carga, pelo menos no uso que dele faz seu senhor, ainda que o Estagirira reconheça uma certa superioridade daquele que usa ferramentas em relação àquele que é, ele mesmo, apenas uma ferramenta. O doutor franciscano estende essa diferença até o nível do "livre-arbítrio, ainda mais nitidamente definido em sua obra do que na do autor da Política I c. 4 (ed. Bekker, 1253s) (o qual falava apenas de uma forma sensitiva da razão, não inteiramente passiva), e ele conclui (Ord. IV d. 36 q. 1 n. 9 fedo Vives XIX 453a]): Quod Philosophus dicit de servitude dia maledicta, qua servus est sicut pecus, potest intelligi quod est domini sui sicut possessio vel pecunia, non tamen quod in actibus suis ducatur tantum et non ducat, quia quantumcumque sit servus, est tamen homo, et ita /iberi arbitrii. 75 Ord. IV d. 15 q. 2 n. 6 (ed. Vives XVIII 265b): {Lex naturaeJ determinavit in natura humana hoc, quod omnia essent communia. 76 No início do século XIV, na Europa ocidental, ainda que a atrelagem racional dos animais de tração, a multiplicação dos moinhos, o progresso das técnicas agrícolas tenham aproximado um pouco a humanidade do tempo do qual Aristóteles falava (sem acreditar nisso), em que "as lançadeiras teciam por si mesmas", a participação da força física continua preponderante no trabalho produtivo, mas o assalariado está em vias de substituir, à servitus antiga, uma outra forma de exploração do homem pelo homem, que não depende menos de regras morais definidas por Duns Escoto. 77 Ord. IV d. 36 q. 1 n. 2 (ed. Vives XIX 446b): Ista vilis servitus non potest esse iuste inducta, nisi dupliciter. Uno modo, quia aliquis vo/untarie se subiecit tali servituti, licet talis subiectio esset (atua, immo forte contra legem naturae quod homo libertatem suam a se abdicet. Bem entendido, esse argumento não vale, como vimos, contra os votos de religião e tampouco contra a subiectio civilis. Aplica-se, antes de tudo, ao caso de uma escravatura que privaria o indivíduo de sua autonomia moral (Rep. IV d. 36 q. 2 n. 6 fedo Vivós XXIV 459aJl. 78 Ord. IV d. 36 q. 1 n. 2 (ed. Vives XIX 446b): Postquam tamen facta est, necesse est servare, quia hoc est iustum. 79 Ibid. - Duns Escoto espera do príncipe cristão que este use castigos severos contra a blasfêmia e a idolatria, que contradizem a "honra de Deus", mais do que sancionem com excessivo rigor as faltas que não dependem senão do commodum temporale (Ord. IV d. 15 q. 3 n. 5 fedo Vives XVIII 366ab]). Se a [ex de vita pro vita reddenda parece conforme à natureza, ela só é contudo legítima potque foi confirmada por Deus (admitindo-se, bem entendido, como fazem os escolásticos, que o versículo de Mateus 26,52, sobre o destino prometido àqueles que usam a espada, justifique uma punição legal). Deus ama tão pouco o sangue que ele afastou da honra de construir o Templo

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um rei como David que tanto tinha combatido e que matava "justamente" tantos inimigos (cf. II Reg. 7, 13; III Reg. 5, 19; 8 16-20, implicitamente evocados em Ord. IV d. 15 q. 3 o. 6 fedo Vives XVIII 367a]). Cf. ibid. n. 7 (p. 374b): Nulla {ex positiva constituens hominem occidendum, iusta est, si in illis casibus statuat quod Deus non excipit. Essas próprias "exceções" foram restringidas pelo Novo Testamento, pelo menos no que concerne ao adultério (lo. 8, 11). A fortiori, a misericórdia valeria no caso, muito menos grave, do simples roubo, se Moisés já não tivesse previsto uma simples multa (cf. Êx. 22, 3; Provo 6, 30-31, ao qual remete aqui Duns Escoto, ibid. n. 8 [p. 375ab] para lembrar a maneira pela qual Salomão parece desculpar o furto do homem faminto, até mesmo o comércio da prostituta em busca de pão [Provo 6,26] em relação ao crime do adultério, perdoado entretanto por Jesus). 80 Ord. IV d. 36 q. 1 n. 2 (ed. Vives XIX 446b): Alio modo, si aliquis tuste dominans communitati, videns aliquos ita vitiosos quod libertas eorum nocet eis et reipublicae, potest iuste punire eos poena servitutis (continuação do texto citado na nota 77). 81 Aristóteles observa, com efeito, que a guerra é freqüentemente injusta e que os prisioneiros podem ser de raça nobre; admite-se, em geral, que não é preciso submeter à escravidão gregos de condição livre, mas será que se pode considerar seriamente que todos os bárbaros sejam sub-homens? Por outro lado, serão os filhos de escravos necessariamente dotados de almas servis? É o caso em geral, mas não sempre. O Estagirita (Política I c. 6 fedo Bekker, 1255a slJ conclui essa enumeração de aporias distinguindo a servidão "natural" (que corresponde ao duplo interesse do senhor e do escravo e pode vir acompanhada por uma certa amizade) da servidão "contra natureza" (que exclui qualquer verdadeira relação humana). Diz-se que, em seu testamento, o Estagirita prescreveu ele mesmo que seus próprios escravos fossem libertados. 82 Cf Hegel, Fenomenologia do Espírito, B, IV, A, 3. Sabe-se que para o filósofo alemão o escravo em seguida encontra pelo trabalho a consciência de si (mas basicamente "infeliz"). 83 Rep. IV d. 36 q. 2 n. 6 (ed. Vives XXIV 459b). Qualquer outra forma de tornar o prisioneiro escravo de guerra é propriamente "despótica". 84A propósito da prescrição (da qual tratou extensamente na disto 15), Duns Escoto (Ord. IV d. 36 q. 1 n. 4 fedo Vives XIX 447a]) pensa que esta se aplica mal aos descendentes dos prisioneiros: Sed i/lud extendit se ad possessiones, non autem ad servitutem, quia non est eadem ratio in possidendo aurum et servum, quantum ad legem naturae. Et ideo esset difficile salvare per praescriptionem iustitiam esse detinere tales servos". 85 O comentarista precisa que o senhor só tem poder sobre as "obras" do escravo, não sobre seu corpo, que pertence apenas a Deus, menos ainda sobre sua alma e sua liberdade (A. Hiquaeus, Commentarius ad Ord. IV d. 36 q. 1 fedo Vives XIX 455b]). Vemos que a definição da servitus tende cada vez mais a se confundir com a da condição proletária, no sentido moderno do termo. 86 Ord. IV d. 36 q. 1 n. 9 (ed. Vives XIX 453a): Ex quo patet magna crudelitas fuisse in prima inductione servitutis, quia hominem arbitrio liberum et dominum suorum actuum ad virtuosse agendum, facit quasi brutum et /ibero arbitrio non utentem, nec potentem agere virtuose. Duns Escoto exclui aqui a idéia estóica de uma liberdade moral puramente interior, independenre da condição servil no sentido mais cruel do termo. 87 Não importa o que M. de Lagarde diga (op. cito p. 257), Duns Escoro não pede ao escravo que "sofra pacientemente a injustiça" por pura virtude cristã; ele o submete a uma obrigação de "justiça" (suum cuique reddere), que deve ser respeitada não importa o que se pense a respeito de seu fundamento original (cf. a nota seguinte).

88 Ord. IV d. 36 q. 1 n. 4 (ed. Vives XIX 447b): Multae obligationes sunt iniustae ex parte illorum quibus fiunt, et tamen, postquam factae fuerint, servandae sunt. A dificuldade aqui é a de comparar a servitus a um verdadeiro contrato (fora do caso da submissão voluntária). A escravatura nascida do direito de punir se associa sem dúvida ao próprio pacto social (visto que este é instituído por uma lei positiva cujo autor está investido de uma legítima auctoritas). Aquele que se prende ao direito de guerra baseiase em leis que Duns Escoto julga cruéis, mas contra as quais ele não dispõe de outro meio de luta a não ser o apelo à misercórdia. 89 Na perspectiva de conjunto na qual se situa, o texto de São Paulo: Servus vocatus es? Non sit tibi curae, sed et si potes fieri liber, magis utere (I Cor. 7,21) significa provavelmente que, em vez de desejar sua libertação, o escravo deve permanecer no lugar em que a Providência o situou e fazer um uso melhor de sua condição. Duns Esçoto se aproveita de um determinado equívoco para atribuir ao apóstolo um juízo de valor quanto a uma instituição que, sem o aprovar em si mesma, ele considerava aqui apenas de um ponto de vista pastoral (Ord., IV, dist.36, quo 1, o. 4 [Éd. Vivés, XIX, 447b]: Unde Apostolus ostendens servitutem secundum se non esse laudabilem, nec multo magis detentionem alicuius in servitude, ait: Si servus vocatus es [... ]). 90 Nos grandes domínios da Alta Idade Média, os trabalhadores imediatamente à disposição pessoal do senhor tinham uma posição bem próxima daquela dos servi antigos e conservavam o nome de mancipia. Os donos das propriedades rurais (manses), ligados hereditariamente ao solo, presos ao trabalho gratuito e ao trabalho em prestações, dependiam da justiça senhorial, mas seu destino se tornou cada vez mais parecido com o dos pequenos proprietários "livres" (ver H. Pirenne, Histoire économique de /'Occident médieval, s.l., 1951, p.213 s.). Em contrapartida, os "artesãos" dos primeiros ateliês de tipo industrial, verdadeiros proletários, foram chamados em alemão Knechten e em inglês servingmen, termos que evocam uma forma nova de servidão (a dialética hegeliana do senhor e do escravo é a do Herr e do Knecht) [ver Pirenne, p.326]. 91 Lagarde, op. cit., p.255: Na primeira edição de sua obra, o autor qualificava como "deplorável" a interpretação de Duns Escoto; O adjetivo (que nos surpreendera) desapareceu da redação mais recente, mas a nota 104 evoca ainda um "argumento inverossímil", que o autor se felicita (equivocadamente, parece) por não encontrar na passagem correspondente da Reportatio. (O texto citado, que concerne à punição de uma negligência, tem seu exato equivalente na Ordinatio e só diz respeito aos motivos imediatos da expropriação, e de modo algum ao direito originário do príncipe ou da comunidade.) 92 Ord. IV d. 15 q. 2 n. 9 (ed. Vives XVIII 271b-272a): Haecergo translatiodominii potest fieri, vel auctoritate publica, ve{ principis, vel auctoritate legis, vel auctoritate privata ipsius domini immediate possidentis. De prima translatione sit haec conc/usio prima in isto articulo: translatio dominii auctoritate legis iustae iusta est. Probatur, quia si lex iusta potuit iuste determinare prima dominia, et non minor est auctoritas legis vel principis (quos habeo hic pro eodem) post divisionem dominiorum quam ante, - ergo propter eamdem causam et eumdem finem potest iuste transferri dominium, postquam fuerat alicui appropriatum. Esse apelo à "justa lei" e essa referência à "justa determinação" originária dos dominia parecem indicar que Duns Escoto visa aqui a algo diferente do costume feudal de dividir os bens conquistados e de punir eventualmente os vassalos mais inquietos tomando-lhes os feudos (como fez, por exemplo, em grande escala, Guilherme de Normandia após a conquista da Inglaterra). Não se nega com isso que o regime antigo dos feudos, comparável a um usufruto mais do que a uma propriedade nua (cf. Le Goff, La Civilisation de /'Occident médiéval, p. 126), tenha podido inspirar em parte reflexões cujo alcance

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ultrapassa entretanto uma instituição em vias de decadência na época em que Duns Escoro ensina. O texto criticado por M. de Lagarde só adquire seu pleno sentido quando rela~ cionado àquele que o precede e que acabamos de citar; observa~se que ele se situa expres~ samente no nível da "probabilidade" (cf. Ord. IV d. 15 q. 2 n. 10 [ed. Vives XVIII 272b]): lstud etiam [isto é, o direito de expropriação das terras tidas como abandonadas] apparet probabile per hoc, quod si quilibet posset suum dominium transferre in alium, tota com~ munitas posset cuiuslihet de communitate transferre dominium in quemlibet, quia in facto communitatis suppono includi consensum cuiuslibet; ergo iUa communitas, habens istum consensum quasi iam oblatum, in hoc quod quilibet consensit in leges iustas condendas a communitate vel principe, potest per /egem iustam cuiuslibet dominium transferre in quemlibet). Se ele evoca basicamente aqui o direito do indivíduo em transferir ele mesmo seu próprio bem (por doação ou venda), o autor procede a fartiari, pois exatamente, como veremos, esse direito é agravado por reservas muito fortes. Não se trata, pois, absolutamente de um ius naturae que o pacto de submissão alienaria previamente em favor do soberano, mas de uma concessão fundada na autoridade legítima do legislador; por motivos ainda mais sérios, a própria comunidade pode usar um direito de transferência que está implícito no direito originário de divisio dominiorum; ao fazer isso, ela só lesa o proprietário em um uso segundo e, por definição, precário. 93 lbid. (p. 272b): Neg/igens rem suam tanto tempore, transgreditur, ita quod eius transgressio est in detrimentum reipublicae, quia impedimentum pacis; ergo iuste potest lex, sicut rem illam applicare fisco, ita ad maiorem pacem transferre illam in illum qui tanto tempore accupavit, tamquam in ministrum legis. É por isso que a lei supõe que o proprietário faltoso abandonou seu bem (ibid: Etsi enim hoc non sit verum in re, tamen legislator punit istum, ac si habuisset eam pro dere/icta). 94 Esse é, com efeito, o verdadeiro fundamento da prescrição. Sem esse uso, essent tales tites, quod impossibi/e esset eas decidere, quia nec probationem sufficientem hahere, et ex talibus litibus perpetuis essent contentiones et forsitan adia inter litigantes, et sic tota pax reipublicae perturbata (ibid. n. 9 [p. 272a]). 95 A transferência gratuita só é lícita se o doador e o beneficiário não estão impedidos de dar ou de receber por "nenhuma lei superior". Duns Escoto fala ora da autorização do superior, ora de cláusulas explícitas de uma lei. Não pensamos que ele oponha contudo (ou justaponha) ao arbitrário da decisão individual a legalidade de uma instituição, pois é justamente a lex que confere certos poderes ao dominus superior, e sabe-se que ela mesma é posta por um legislador que recebeu mandato da comunidade. 96 Duns Escoto retoma aqui o exemplo agostiniano (cf. S. Agostinho, De civitate Dei Xl c. 16 [PL 41, 331]) do rato, mais nobre enquanto ser vivo, e todavia menos desejável que o pão para a alimentação do homem. 97 Ord. IV d. 15 q. 2 n. 15 (ed. Vives XVIII 283b): Ista autem aequalitas secundum rectam rationem non consistit in indivisibi/i, sicut dicit quidam doctor, motus ex hoc quia iustitia hahet tantum medium rei, sed ceterae virtutes medium rationis. Hoc enim falsum est, ut declaratur libro IH d. 34 q. 1; immo in isto medio, quod iustitia commutativa respicit, est magna latitudo, et intra illam latitudinem non attingendo indivisihilem punctum aequivalentiae rei et rei, quia quoad hoc quasi impossibile esset commutantem attingere, et in quocumque gradu circa extrema fiat, iuste fito O Dourar criticado é Ricardo de Mida, seguido, nesse ponto, por Henrique de Gand. A distinção invocada é a que faz Aristóteles entre as virtudes que se definem como justo meio entre dois extremos e a justiça, que se opõe apenas à injustiça (visto que essa última é simultaneamente excesso e insuficiência, de acordo como se considera aquele que recebe demais ou aquele que é lesado); exposta de forma muito obscura em Ética a Nicôm. V C. 9, essa doutrina não implica que

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o valor de troca dos bens seja pontual, pois a vontade de justiça deve ser rigorosa, mas nem sempre o meio efetivo de sua realização concreta. Em Ética a Nic. V C. 8 (ed. Bekker, 1133b s) o Filósofo observa, com efeito, certas flutuações inevitáveis no preço das mercadorias e no próprio valor da moeda. É por isso que Santo Tomás (5. teol. lI-lI q. 77 a. 1) admitia uma leve margem, muito fraca contudo para toUere iustitiam. 98 Santo Tomás, ibid. Toda a doutrina tomista baseia-se na vantagem mútua das duas partes e visa, conseqüentemente, a não lesar nenhum dos contratantes. O texto do Evangelho é aí interpretado à luz das exposições aristotélicas, aquelas da Política I sobre a solidariedade humana, e as da Ética sobre a virtude de justiça como lsates. 99 Ord. IV d. 15 q. 2 n. 15 (ed. Vives XVIII 284a): Durum est enim ínter homines esse contractus, in quibus contrahentes non intendant aliquid de illa indivisibili iustitia remittere sibi mutua, ut pra tanto omnem contractum concamitetur aliqua danatia. Et si iste est modus commutantium, quasi fundatus super iUud legis natural 'hoc facias alH, quod tibi vis fieri', satis probabile est quod, quando sunt mutuo contenti, mutuo volunt sibi remittere, si secundum aliquid deficiunt ab illa iustitia requisita. 100 Esse tipo de economia (doméstica, mas também "política") é, para Aristóteles, o simples desenvolvimento de um direito natural de colheita e 'de caça; o enriquecimento moderado que ele assegura prolonga o acúmulo instintivo das provisões necessárias à subsistência do grupo (Política I c. 8 fedo Bekker, 1256b]). 101 Cf. H. Pirenne, "Mahomet et Charlemagne", em Revue Belge de philologie et d'histoire 1 (1922), eLes villes du moyen âge, Bruxelas, 1927. ,02 Esses grandes mercadores, que formam já, no início do século XIV, importantes associações, são ainda mais estimados pelos ricos porque lhes fornecem produtos raros - especiarias, sedas, peles - , e porque seus ganhos, justificados por seu trabalho, sua engenhosidade e os riscos que correm, permitem que acedam eles mesmos à posse de bens de raiz e que formem um patriarcado urbano. O exemplo de Godrico de Finchale, várias vezes evocado por Pirenne, mostra que desde o início do século XII um miserável de Lincolnshire, que se tornou vendedor ambulante, depois se associou a um grupo de mercadores que iam de feira em feira, podia acumular bastante dinheiro para fretar com alguns associados um barco que assegurava a cabotagem no Mar do Norte e, por um conhecimento dos mercados, construir muito rapidamente uma grande fortuna. Mas o cronista que conta sua vida é sobretudo sensível a seu fim edificante de pobre eremita (Libel/us de vita et miraculis sancti Godrici, heremitae de Fincha/e, auctore Reginaldo monacho Dunelmensi, ed. Stevenson, Londres 1847). 103 Le Goff, op. cit p. 285. 104 Santo Tomás, 5. teoI. II-II q. 77 a. 4. 105 A commutatio negotiativa vellucratíva que Duns Escoto acaba de definir como o ato pelo qual um comerciante compra, non ut utatur, sed ut vendat, et hoc carius _ encontra-se assim integrada de pleno direito a essa forma de trocas, que Santo Tomás, após Aristóteles, julgava a única completamente "natural", porque non proprie pertinet ad negotiatores, sed magis ad oeconomicos vel po/iticos, qui habent providere vel domui vel civitati de rebus necessariis ad vitam (Santo Tomás, S. teol. 11-11 q. 77 a. 4). 106 Desde o século XII, Ricardo de São Vítor incluía, entre as sete artes "mecânicas" consideradas úteis e honrosos remédios à condição nascida do pecado, a navigatio, à qual pertinet omnis industria vendendi et emendi. Seu mérito é o de descobrir invisa litora, de estabelecer pacem et familiaritatem cum exteris nationibus e, enfim, de privata bona communia facere (Richardus A Sancto Victore, Liber exceptionum, I c. 1 n. 17 [ed. Chatillon, Paris 1958, p. 110]). Esse monge de Conques conta ter reencontr"do, na época das Cruzadas, um clérigo do Puy que havia se instalado em Jerusalém questus

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, capiendi causa. O cronista enfatiza o conhecimento que esse homem havia adquirido dos itinerários, dos países, de suas instituições, de seus costumes e de suas línguas (Liber miraculorum Sanctae Fidis, ed. Bouillet, p. 63, citado em Pirenne, Hist. économique, 28). Duns Escoto insiste na utilidade desse negócio, menos no valor de descoberta geográfica, e passa em silêncio sobre seu papel "pacificador". Mas sabemos a importância de uma viagem como a de Marco Pólo. É possível que, ao provocar litígios e conflitos, as trocas comerciais entre o Islã e a cristandade tenham por vezes permitido um melhor conhecimento mútuo e favorecido outros tipos de comunicação. 107 Às regras gerais'concernentes ao comércio, Duns Escoto (Ord. IV. d. 15 q. 2 n. 22-23 fedo Vives XVIII 317a-318a]) acrescenta duas que se aplicam à negotiativa commutatio: Primum est quod talis commutatio sit utilis reipublicae. Secundum est quod talis iuxta diligentiam suam et prudentiam et sollicitudinem et perícula accipiat in commutatione pretium correspondens. Prima condicio exponitur, quia reipublicae est utde habere conservatores rerum venalium, ut prompte possint inveniri ab indigentibus, volentibus illas emere. In ulteriore etiam gradu utile est reipublicae habere afferentes res necessarias, quibus illa patria non abundat ... Sequitur secunda {condicio}, quia unumquemque in opere honesto reipublicae servientem oportet de suo labore vivere ... Nec hoc solum, sed unusquisque potest industriam suam et sollicitudinem iuste vendere: industria illius transferentis res de patria ad patriam requiritur magna, ut consideret quibus patria abundet et indigeat; ergo potest iuste ultra sustentationem necessariam pro se et familia sua ad istam necessitatem deputata recipere pretium correspondens industriae suae, et ultra hoc tertio aliquid correspondens periculis suis ... Propter huiusmodi periculum potest secure aliquid accipere correspondens et maxime si quandoque sine culpa sua in tali servitio communitatis damnificatus est uptote mercator transferens quandoque amisit navem onustam maximis bonis, et a/ius quandoque ex incendio causali amittit pretiosissima, quae custodit pro republica ... Haec omnia confirmantur, quia quantum deberet a/icui ministro reipublicae legislator iustus et bonus retribuere, tantum potest ipse, si non adsit legislator, de republica, non extorquendo, recipere. Sed si esset bonus legislator in patria indigente, deberet locare pro pretio magno huiusmodi mercatores, qui res necessarias afferent et qui eas allatas servarent, et non tantum eis et familiae sustentationem invenire, sed etiam industriam, et perícula omnia locare; ergo etiam hoc possunt ipsi in vendendo. Esses meios de enriquecimento são os que Aristóteles considera como particularmente caros a qualquer um que estima a crematística; um filósofo hábil como Tales não hesitou em mostrar o valor prático de seu saber prevendo, por meios astronômicos, uma abundante colheita de azeitonas; tendo alugado a baixo preço todos os lagares de Mileto e de Quios, ele os subloca por um preço ainda mais alto, provando que um sábio pode enriquecer se desejar, mas que esse não é absolutamente o objeto de seu zelo. Dionísio de Siracusa, tendo apreciado a inteligência de um homem que havia astuciosamente comprado todo o ferro das forjas, deixou-lhe com seu ganho, mas o baniu de seu reino. Outros príncipes deram grande valor ao enriquecimento de seu tesouro público por tais métodos (cf. Aristóteles, Política I c. 11 fedo Bekker, 1259a]). Nem o Estagirita nem Santo Tomás, em seu comentário, dão a essa aplicação da sabedoria crematÍstica ao bem comum um julgamento categórico. É possível que Duns Escoto, ao evocar o bom legislador que louva os serviços de um hábil intendente, pense primeiramente no Faraó e em José, pois trata-se menos de enriquecer o Estado do que fornecer aos cidadãos reservas necessárias em caso de penúria. 108 Ord. IV d. 15 q. 2 n. 23 (ed. Vives XVIII 318a): Vocantur tales gallice 'regrattiers', quia prohibent immediatam communitationem volentium emere vel commutare oeconomice, et per consequens faciunt quodlibet venale ve/ usuale carius ementi quam

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deberet esse, et vilius vendenti, et sic damnificant utramque partem. O uso de um termo francês não é surpreendente na Grã-Bretanha da época de Duns Escoto. Regrattier - um pouco antiquado - é ainda usado, em um sentido pejorativo, para designar um revendedor de segunda mão, que impede a venda direta do produtor ao consumidor, isto é, o ideal "econômico" da transação admitida por Arsitóteles, que alguns redescobriram hoje em dia como uma novidade. Mas esse ideal só vale no quadro restrito da sociedade de trocas que o Filósofo descrevia ao evocar o caso do sapateiro, do fabricante de camas e do construtor de casas (Úica a l\1.·ic. V c. 8 [ed. Bekker, 1133a]). Parece que Duns Escoto percebeu a importância de uma outra economia, muito mais vasta, que supõe profissionais da importação-exportação e do armazenamento. \09 A regra clássica é que se deve vender sem benefício da coisa que permaneceu integra et immutata entre as mãos do intermediário. Se Santo Tomás admite a indenização correspondente a riscos corridos e mesmo um certo ganho lícito correspondente às necessidades do comerciante, mal parece dar lugar ao pagamento da industria como tal nem à idéia de um "valor" acrescido à mercadoria pelo transporte e armazenamento. 110 Sobre esse ponto, Duns Escoto (Ord. IV d. 15 q. 2 n. 16 led. Vives XVIII 289]) defende uma doutrina tradicional: In istis .. contractibus !icet pcrmutantem vel vendentem pensare damnum suum, non autem commodum ipsius ementis, sive cum quo permutat ... Et inteIligo sic: si quis multum indigct re sua, et per magnam instantiam inducatur ab alio ut vendat ve/ permutet pro re alia, cum possit se praeservare indemnem, et ex venditione ve/ permutatione ista multum damnificatur. potest carius vendere... Sed si emens magnum commodum consequatur ex iUa sihi vendita ve/ permutata, non potest carius vendi vel permutari. A rigor esse princípio excluiria qualquer economia de mercado, pois a regra moral que me impede de beneficiar da necessidade do outro falseia desde o início o jogo "natural" da oferta e da procura. Mas vimos que Duns Escoto reconhece como trabalho legítimo o estudo das necessidades e dos mercados; o hábil calculador pode assim ter lucro - de forma lícita mas indireta - da penúria que determina em seu próprio país "justos preços" mais elevados do que no estrangeiro. 111 Seguindo Santo Tomás (S. teol. lI-lI q. 78 a. 1), Ricardo de Middletown argumentava contra a usura mostrando que não se pode vender ao mesmo tempo a coisa que se consome (dinheiro ou vinho) e o uso dessa coisa. Se Duns Escoto critica o raciocínio, é porque o dominum é às vezes separado do usus; é melhor dizer, pois, que tendo transferido a quem emprestou a posse plena e total do dinheiro emprestado, eu não poderia me beneficiar ou pagar pelo uso vantajoso ou danoso que ele fez dele. Seu único dever é o de me fornecer na data fixada o equivalente exato daquilo que eu mesmo lhe dei, na medida em que o pode fazer sem se privar ele mesmo do estrito necessário (Ord. IV d. 5 q. 2 n. I 71d. Vivés XVIII 292b·293aJl. 112 Essa criação, à qual os franciscanos darão um apoio bastante ativo, está destinada a permitir, por acúmulo de doaçôes gratuitas, a outorga aos pobres de empréstimos sobre penhores. Concebida para limitar a atividades dos banchieri judeus, ela contribuirá, de fato, para o desenvolvimento de novos bancos. Noonan J. T., The Scholastic Analysis ofUsury, Cambridge, Mass., 1957, p. 121ss, mostrou em um exemplo preciso (o empréstimo municipal de Florença no século XIV) o quanto os Frades Menores eram atentos a esses novos mecanismos financeiros. Note-se que a exposição escotista não traz aqui nenhum traço de anti-semitismo (sobre o problema da usura judaica e cristã, cf. L. Poliakov, Les banchieri juifs et le Saint-5iege, Paris, 1965). 113 Menos indiferente do que se disse às vezes às instituições econômicas exigidas pela evolução da sociedade, Santo Tomás (5. teol. lI-lI q. 78 a. 2 ad 5) expõe claramente as regras lícitas do contractus societatis pelo qual o arrendador de fundos conti-

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nua como possuidor jurídico de seu bem e pode, assim, ter lucro com os benefícios que produz o trabalho do mercator ou do artifex. 114 Elas referem-se particularmente à poena conditionalis, que estipula um reembolso rápido e admite uma indenização periódica para os atrasos que os contratantes não estão obrigados a ter querido ou previsto (ainda que de fato se os considere como um meio normal de introduzir a usura), ou sobre a cláusula do lucrum eessans, isto é, o fato de levar em consideração um prejuízo que sofre quem empresta porque não pode obter lucro do dinheiro imobilizado. Santo Tomás (ibid. ad 2) recusa expressamente esse método, pois não se pode vender aquilo que ainda não se tem; julga todavia lícita a indenização, a título "amigável", não de quem empresta e que se queixa por não ter podido ter um ganho de seu dinheiro, mas daquele que teve problemas por não ter podido efetuar compras necessárias. Discutindo uma tese bastante rigorosa de Molina, Hiquaeus (Commentarius ad. Ord. IV d. 15 q. 2 [ed. Vives XVIII 297b-298b]) admite, com a maioria dos "modernos", que um empréstimo gratuito - o único conforme com as regras canônicas - não deve ser a fonte de nenhum prejuízo para nenhuma das duas partes; mesmo na falta de qualquer cláusula explícita, a prova trazida de um damnum efetivo sofrido pelo emprestador abre um direito legítimo à indenização. 115 No caso do pagamento diferido, as duas regras complementares são, primeiramente, quod eommutans non commutet vel vendat tempus, quia tempus non est suum, em seguida quod non ponat se in tuto de lucrando, et illum eum quo eommutat de damno. Essa "segurança" deve ser entendida no sentido mais amplo, semper vel ut in pluribus (Ord. IV, d. 15 q. 2 n. 20 [ed. Vives XVIII 303 a]). O vendedor é desculpável ratione dubii se ele fixa - de acordo com a outra parte - uma majoração "moderada" do preço real quando o pagamento deve ser efetuado em uma data precisa na qual se sabe de antemão que o valor terá aumentado. Ele não é desculpável se pretende exigir, entre o momento a e o momento b estipulados pelo contrato, o pagamento ao preço mais vantajoso para ele, e no momento imprevisível; cf. ibid n. 21 (p. 304a): Si autem velit pretium determinari pro tempore indeterminato, hoc modo ut'ponat se in tuto luai, ut in p/uribus, et alium in damno, utpote 'volo quod tantum solvas mihi pro isto quantum valebit in quocumque tempore usque ad, quando earius vendetur', usura est, quia ponit se ve/ partem suam quoad lucrum, ut in pluribus, in tuto, et illum cum quo contrahit ad damnum; et tune habet pro se illud quod evenit ut in pluribus, et contra se illud quod evenit ut in paucioribus ... In tali pacto facit se certum de lucro ultra quam humana industria pertingere posset. 116 Cf. Hiquaeus, Commentarius ad Ord. IV d. 15 q. 2 (ed. Vives XVIII 312-313a). 117 Essa será nitidamente a posição de Lutero em seu Traktat der Obrigkeit e em sua polêmica contra Münzer (cf. E. Bloc., Thomas Münzer, trad. fr. Paris, 1964, p. 174s). 118 Additiones magnae 11 d. 25 q. 1 (ed. C. Balic, Les Commentaires de Jean Duns Scot, Louvain 1927, 299). 119 Cf. P. Vignaux, "Humanisme et théologie chez Jean Duns Scot", em La Franee franciscaine 19 (1936) 209s.

VII. A "DIALÉTICA" DE MESTRE ECKHART*

Deve-se observar que várias entre as proposições, questões e exposições que serão lidas aqui parecerão, à primeira vista, monstruosas, duvidosas ou falsas, mas se as estudarmos com habilidade e com mais atenção veremos que será diferente!. Advertências desse tipo não são raras em Eckhart; diante dos inquisidores de Colônia, ele afirmará que <'espíritos grosseiros" são incapazes de apreender o verdadeiro sentido de suas fórmulas aparentemente <'monstruosas"; sustentará, contudo, que, se seus modos de falar são freqüentemente "raros" e "sutis", são todos "verdadeiros"2. Já no Livro da divina consolação ele afirmava:

o que posso fazer se não entendem isso? .. Basta-me que em mim e que em Deus seja verdade o que digo e escrevo 3.

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Todavia, a obra de Mestre Eckhart nada tem de solilóquio, de um diálogo Íntimo da alma com Deus. Tanto em alemão quanto em latim, é a outros homens que ela se dirige, a clérigos, monges e monjas, rainhas ou simples fiéis. Interessa, conseqüentemente, que seja entendida, e qualquer incompreensão pode se transformar em escândalo. É por isso que, por ocasião dos ataques de Wenck - o professor de Heidelberg que pretende encontrar na Douta ignorância um perigoso eco das teses eckhartianas - , Nicolau de Cusa escreverá sua Apologia, esclarecendo que, se homens "dotados de inteligência" podem encontrar no dominicano alemão muitas verdades "sutis e úteis", é importante, contudo, não divulgá-las para auditórios mal-preparados para entendê-las (Apologia, ed. Klibansky, p.23 I. Essa portanto já seria - como demonstra claramente o preâmbulo da bula In agro - a principal preocupação dos juízes de Avignon. Quaisquer que sejam os dons literários de um escritor excepcionalmente dotado - e que talvez tenha sido, dois séculos antes de Lutero, o verdadeiro fundador da prosa alemã - , só muito excepcionalmente, em sua obra, os "chistes" e os concetti podem passar por puros jogos verbais. A inesperada aliança de termos visa menos a surpreender ou a agradar do .. Comunicação apresentada no Colóquio de Estrasburgo, sobre" A Mística renana", em maio de 1961. (Posteriormente publicada por PUF, Paris, 1963, p.59-94.)

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que a fazer sobressair os aspectos aparentemente contraditórios de uma verdade essencial, a única que importa a Eckhart e que é basicamente, para ele, aquela da Escritura - freqüentemente enfraquecida pelos "padres" _, mas igualmente a da Tradição, posível desde que se aceite extrair dela todas as conseqüências que implica. Do mesmo modo, imediatamente após as linhas que citamos no início deste texto, o mestre acrescenta que tudo o que escreveu é "atestado" pela Escritura ou pela autoridade de santos e de doutores ilustres 4 . Não é sem razão, contudo, que as fórmulas eckhartianas pareceram freqüentemente mais perigosas do que as auctoritates às quais elas se referem segundo um modo de citação que não é feito sem artifícios. Com efeito, bastante atento para não apresentar nada que possa parecer inovação, o mestre confere por vezes a fórmulas tradicionais um sentido extremo que estas não possuíam em seu contexto original. Editando o comentário da Sabedorias, o P. Théry, prematuramente afastado de estudos que muito lhe devem, observava, com um tom de irritação que reencontramos ao longo de suas notas, que Mestre Eckhart, mais do que um "intuitivo", foi um "dialético", isto é, sem dúvida um lógico intrépido, mais atento à análise de conceitos do que à experiência vivida de seu conteúdo. Sem fazer nossa uma interpretação que se aplica muito melhor, acreditamos, aos analistas de uma escola na qual o predicante dominicano, como sabemos, jamais foi bem visto, mantenhamos contudo o termo "dialético", conferindo-lhe aqui um outro sentido, justificado simultaneamente por lembranças platônicas e antecipações hegelianas. Precisemos todavia que muitas das fórmulas paradoxais vêm diretamente, em Eckhart, de uma tradição teológica e mística que se preocupa muito pouco com o raciocínio "dialético" no sentido aristotélico. Quando o comentarista do Êxodo declara, por exemplo, que o que sabe de Deus é apenas nada saber sobre elé, além da dupla referência - bastante clássica - à necedade socrática e aos oxymora da apófase patrística, como esquecer que a própria Bíblia definiu Jeová como Deus absconditus: Mas quando o comentarista do Liber sapientiae declara audaciosamente:

Toda criatura é por si nada, pois [Deus! criou [todas as coisas] para que elas fossem, e antes de todas as coisas não há nada. Logo, aquele que ama as criaturas nada ama e se torna nada?, ou quando afirma, um pouco mais adiante, que "Deus está inteiro em qualquer coisa, de tal modo que está inteiro fora de qualquer coisa"g, o uso de termos como enim e ergo, e sic quod exige uma justificativa que só poderia ser, parece-nos, "dialética". À primeira vista (primo aspectu), quer 136

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dizer, no plano de uma ratio que não está elevada ao nível do verdadeiro intellectus, parece efetivamente "monstruoso" supor que uma realidade qualquer, se divina for, esteja exatamente inteira em cada coisa de tal modo que esteja inteira fora de qualquer coisa; e mais estranha ainda pode parecer a afirmação de que nenhuma criatura é digna de amor precisamente porque Deus a extraiu do nada, ele que, tendo tudo criado, reconheceu que sua criação era "completamente boa". Tomadas separadamente, cada uma dessas fórmulas paradoxais pode se apoiar sobre sólidos argumentos bíblicos; o que inquieta o leitor é o uso de conjunções que parecem implicar uma relação causal justamente onde o espírito enfrenta uma aparente contradição. Mas, mesmo onde estão ausentes os enim e os ergo, a simples justaposição de enunciados literalmente contraditórios surge mais como o sinal de uma estrutura dialética do que como estabelecimento de uma lista de "aporias", tais corno Aristóteles naturalmente as arrola no momento de estudar o ser, o tempo, o lugar ou o vazio, e também como as enumera Abelardo no Sic et Non, como o catálogo de todas as dificuldades que a doctrina sacra tentará resolver. No belo estudo sobre" A teoria da analogia em Mestre Eckharr" (Mélanges Étienne Gilson, Toronto-Paris, 1959, p.327 sg.l, Josef Koch apontava que o Opus propositionum, no qual o dominicano pretendia desenvolver sua ontologia, permaneceu infelizmente apenas como esboço, de modo que nos é necessário, por assim dizer, reconstituir o pensamento eckhartiano a partir de sermões e de comentários que não passam de exegeses de auctoritates fragmentárias. Não é que haja dúvidas, mas, a esse respeito, as Questões parisienses não são tão diferentes de outras obras latinas e pode-se acreditar que a justaposição de enunciados literalmente contraditórios, mas na verdade complementares, traduz da maneira menos inexata a concepção eckhartiana do ser. Sem desconhecer o inconveniente de certos anacronismos e sem cair nos excessos daqueles historiadores que, "modernizando" Eckhart ou Nicolau de Cusa (fazendo desses grandes espíritos puros "precursores"), desfiguram o papel histórico que desempenharam em sua época, pode-se pensar - com um pesquisador próximo como nosso amigo Vladimir Lossky (em seu livro póstumo, Théologie négative et connaissance de Dieu chez Maitre Eckhart, Paris, 1960) - que o termo "dialética" define bastante bem, desde que se determine seu sentido, um modo de filosofar que anuncia, em Eckhart, a ars coincidentiarium do cusano e que, apesar das diferenças, que tentaremos destacar, se nutre das mesmas fontes bíblicas, patrísticas e neoplatônicas. Certamente, nenhum desses dois pensadores define seu método como "dialético" e, se Nicolau de Cusa se justifica bem acerca do que entende por" douta ignorância" , Eckhart se mantém mais discreto sobre seus princípios metodológicos. Com todas as reservas impostas, nos permitiremos Gêneses da Modernidade

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entretanto, nem que seja por comodidade, retomar aqui a antiga e respeitável denominação platônica para designar um procedimento que o cusano devia definir com mais precisão que seu predecessor. Dentre tantos textos que visam a esclarecê-lo, tomemos, a esse respeito, um dos mais característicos; extraído da carta na qual o cardeal responde aos monges de Tegernsee que interrogam seu amigo acerca do emprego legítimo da theologia mystica. O cusano julga igualmente equivocados aqueles intérpretes de Dionísio que insistem, de forma unilateral, no momento negativo - o das Trevas - e aqueles que só consideram, ao contrário, o momento positivo - o da Iluminação. A verdadeira exegese do texto aeropagítico implica uma ultrapassagem da oposição entre os dois momentos; em vez de considerá-los em seu aspecto disjuntivo, é preciso colocá-los em um movimento copulativo, melhor ainda coincidencial, de modo a que se chegue ao nível "no qual a Treva é Luz e o não-saber, saber". A única preparação "intelectual" para uma compreensão misteriosa - que, por si mesma, depende da mística - é, assim, uma crítica do princípio de identidade tal como o concebe toda "razão" pouco perspicaz, uma compreensão sintética (ou supra-sintética) de termos aparentemente opostos e que no entanto o intelecto - visto que usa do único método que ultrapassa a aparência - só pode colocar em sua necessária coincidência. Assim descobrirá ele finalmente que "o que a razão julga impossível- ser e não ser conjuntamente - é a própria necessidade" (Ep. V, in Vansteenberghe, Autour de la Docte Ignorance, Münster, i/W, 1914, p.114-115). Incontestavelmente, o momento da "disjunção" - o imêma platônico entre a realidade efetiva e a pura aparência - desempenha um papel mais importante no místico Eckhart do que no metafísico Nicolau. Naquele, entretanto, trata-se menos de uma disjunção racional entre conceitos que se excluem mutuamente e muito mais, na esfera superior da unia mystica, desse "despojamento" pelo qual a alma deificada se libera de tudo o que, nela, é da ordem do criado (a Kreatürlichkeit). Apesar de toda a sua cultura de professor, Eckhart continua sendo sempre, mesmo em suas obras latinas, o predicante de uma Abgeschiedenheil, que supõe um radical e decisivo "corte", a afirmação, várias vezes repetida, de um Tudo ou Nada. Sem negligenciar as poucas passagens de seus tratados ou de seus sermões nas quais ele atribui um lugar positivo a um progresso espiritual, adquirido por uma luta de cada dia, é certo que esse tema pedagógico tem menos lugar nele do que, por exemplo, em Tauler, e é certo que ele se situa, mais freqüentemente, em um nível onde nada conta mais do que a "abertura" total e definitiva, aquém da qual uma alma não ainda plenamente "esvaziada" de sua "criaturidade" se mantém, não apenas na regia dissimilitudinis, mas, mais exatamente, no universo do puro "nada". Ora, essa posição, que se alimenta de experiências religio138

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sas ao mesmo tempo em que remete - bastante explicitamente no Livro da divina consolação - a doutrinas de origem estóica, não exclui em nada a afirmação simultânea de um princípio completamente diferente: o do Sim e Não. Deve-se mesmo dizer que, na perspectiva eckhartiana, o "Isso ou Aquilo" (Entweder-Oder) e o "Sim e Não" lJa und Nein) constituem justamente os dois pólos dialéticos de uma única verdade. Foi sem dúvida o que não puderam compreender os inquisidores de Colônia e de Avignon, e os juízes que finalmente tiveram de julgar a ortodoxia de uma série de proposições separadas, segundo as regras habituais do procedimento inquisitorial 9 . As respostas de Eckhart corriam o risco de lhes parecerem simples evasivas, enquanto exprimiam o essencial mesmo de seu pensamento. A esse respeito, uma frase do Sermão 22 - que toca em um dos pontos de acusação mantidos pela bula In agro - é particularmente característica:

Se me perguntares, visto que sou um único Filho que o Pai celeste engendrou eternamente, se por isso fui eternamente Filho em Deus, eu respondo: Sim e Não. Sim [fui eternamenteJ Filho pois o Pai me engendrou eternamente, e Não [não fui eternamenteJ Filho, pois não fui engendrado. 1O Resposta aparentemente simples demais, mas que traduz, para Eckhart, a ambigüidade fundamental da relação entre Deus e o homem deificado. Nesse sentido, Eckhart pertence certamente a uma determinada tradição - ela mesma bastante diversificada - que, desde os últimos diálogos platônicos e sua exegese procliana (na qual tanto se destaca a mistura dos gêneros de ser e de determinações fundamentais de qualquer pensamento: identidade-alteridade, movimento-repouso, etc.), através de toda uma especulação teológica sobre a vida interior de um Deus trinitário, devia sofrer, ela mesma, tantas transformações, até chegar ao "sistema" de Dom Deschamps e à dialética hegeliana, antes do duplo contragolpe que iria conduzir, por um lado, ao mistério marxista da redenção proletária e, por outro, ao paradoxo existencial de um cristianismo simultaneamente necessário e impossível, em Kierkegaard ou em Dostoiévsky. Dentre as fontes da dialética hegeliana, sabe-se toda a importância de certos temas teológicos e teosóficos. Em seu belo livro sobre Le malheur de la conscience dans la philosophie de Hegel (Paris, 1929), Jean Wahl insiste nesses textos de juventude no qual reaparecem tantas fórmulas caras à mística cristã: separação e retorno, desespero e beatitude, presença e ausência - no qual aparece a dupla face do Mediador como Deus humanatus, o duplo papel da morte que é vida, etc. Evocando essas influências, das quais podemos pensar que permaneceram superficiais - e cuja coloGêneses da Modernidade

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ração romântica com que se revestem para o jovem Hegel deforma sensivelmente seu sentido original - , não esqueçamos de forma alguma o risco de confrontações demasiadamente audaciosas que não levam absolutamente em consideração o contexto histórico. É entretanto notável que entre os papéis de Hegel tenham sido encontrados, copiados de seu próprio punho, muitos artigos condenados na bula In agro, tais como o filósofo os teria lido na obra do historiador Mosheim (cf. Theologische Jugendschriften, ed. Nohl, Tübingen, 1907, p.367). Certamente não se pode reduzir a essas experiências juvenis (e, em particular, a essa "hipocondria" de 1800 que Jean Wahl- op. cit., p. 33 - compara ao Erlebnis de um "Não eterno") o processo espiritual vivo da Fenomenologia nem, menos ainda, a dialética excessivamente rígida da Enciclopédia. Entre o modo de pensamento do velho mestre turíngio e o que Hegel quis edificar, resta entretanto um ponto comum: a dialética, para eles, não importa o nome que lhe tenham dado, não é um "sistema de malabarismo", um "raciocínio em vaivém, sem conteúdo real", uma "arte exterior" que "conduz ao ceticismo" e só "produz uma aparência de oposições". Para ambos, pensadores tão especificamente alemães, trata-se de um método que pretende apreender "a natureza própria e verdadeira" do espírito e das coisas, que, aqui pela via do desenvolvimento histórico, lá pela do despojamento espiritual, se esforça em ultrapassar "o caráter unilateral e limitado das determinações próprias ao entendimento" 11 • Dentro do quadro limitado de nosso propósito, não podemos, é claro, investigar tudo o que a "dialética" eckhartiana conserva das tradições teológicas e filosóficas nem determinar em que medida ela prepara a coincidentia oppositorum de tipo cusano. Contentar-nos-emos com algumas indicações a partir de uma série de exemplos particularmente significativos. Esses exemplos concernem primeiramente a Deus no mais íntimo de seu mistério, como pura unidade na qual toda oposição está ao mesmo tempo integrada e ultrapassada. Eles concernem igualmente a Deus em sua relação ambígua com o universo criado e levantam, assim, o difícil problema do tempo e da eternidade. Concernem, enfim, à própria criatura, e mais particularmente à pessoa humana como imago Dei, mas também a toda a obra dos seis dias, na medida em que "extra-feita" a partir do puro nada, ela pode ou permanecer nesse nihil que é seu verdadeiro estofo, ou voltar - por meio de uma imagem (que aparece ao mesmo tempo como imanente e transcendente à alma intelectiva), através do mistério de graça (e de natureza) de uma "abertura" instantânea (e sem dúvida irreversível), - até à pura Deidade na qual se mantêm indivisivelmente todas as coisas, no Silêncio eterno que está além de qualquer "processão" . 140

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Como veremos logo adiante, esses três ou quatro problemas aqui separados apenas por comodidade de exposição, configuram-se, na verdade, como um só, e a única solução que Eckhart pode propor para eles repousa finalmente na justaposição dialética de dois princípios aparentemente opostos: Tudo ou Nada, Sim e Não. Ao tratar do que Eckhart apresentou como "a espinhosa e célebre questão de saber se a distinção dos atributos está em Deus ou somente na apreensão de nosso intelecto,,12, Santo Tomás ensinou que os diversos conceitos que correspondem à potência, à sabedoria, à bondade, etc., ainda que não constituam no entendimento divino senão uma única e perfeita realidade nocional, representam entretanto aspectos positivos, que pertencem efetivamente ao pensamento e ao ser divinos13. Sem ficar expressamente contra o Doutor angélico e mesmo usando termos que, à primeira vista, pareceriam sugerir uma resposta comum, Eckhartconc1ui, todavia, que tais atributos pertencem "totalmente" ao intelecto que os "recebe" e "recolhe" o conhecimento "a partir das criaturas" e por seu "inrermédio"14. A fórmula parece nominalista; mas não é senão, como bem mostrou Lossky15, uma inferência enganosa, baseando-se precisamente em uma consideração insuficientemente dialética do pensamento eckhartiano. Na perspectiva tomista, Deus, "ato perfeito de ser", é ao mesmo tempo potência perfeita, sabedoria perfeita, bondade perfeita. Para Eckhart - que, em um vocabulário semelhante, por vezes equivocado, professa na verdade uma ontologia completamente diferente, Deus, enquanto "unidade pura" (pura unitas), exclui necessariamente qualquer diversidade, pois esta - segundo o princípio neoplatônico que faz da mu/titudo um casus ab uno - implica não apenas imperfeição, mas "falha" e "mácula" (defectus et macula). A Unidade do Criador situa-se, pois, para além de qualquer conceito humano, e é isso que indica a recusa de situar fora do intelecto criado a distinctio attributorum. Porém, em sua relação verdadeira com a criatura, essa unidade divina não está mais "separada" de sua obra do que o Uno neoplatônico está propriamente separado da variedade através da qual ele se manifesta. Eckhart, no entanto, vai ainda mais longe; afirma várias vezes, em alemão e em latim, que todas as perfeições divinas pertencem tão intimamente à criatura purificada, iluminada e perfeita que, segundo os termos surpreendentes do Livro da divina consolação:

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A Bondade é sempre engendrada, e tudo o que ela é no bom ... e isso é igualmente verdadeiro quanto ao justo e à Justiça, quanto ao sábio e à Sabedoria 16 .



Aos inquisidores que achavam a fórmula inquietante, Eckhart respondeu que esta era simpliciter et abso/ute vera 17 • O comentário do EvanGêneses da Modernidade

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gelho segundo São João determina que o "justo" que se identifica assim à "Justiça" é o "justo enquanto tal" (justus ut sic)18. Dele pode-se apenas dizer que a Justiça o engendra como o Pai (in divinis) engendra o Filho. Não pensemos, entretanto, que essas fórmulas sejam válidas apenas para

o mistério da Justificação, entendido stricto sensu; aplicam-se da mesma maneira ao "bom", ao "sábio", etc., e implicam uma,total imanência, no interior da criatura deificada, de cada uma das "perfeições gerais" de Deus. Essas perfeições poderiam parecer simples denominações humanas, extraídas por abstração e generalização de uma observação empírica referente a puras criaturas. Recolocadas no conjunto do ensinamento eckhartiarro, as fórmulas nominalistas só adquirem seu pleno sentido quando

justapostas às fórmulas de um ousado realismo. As perfectiones generales, assim, longe de serem excluídas de Deus tal como ele é em si mesmo, encontram-se tão profundamente enraizadas na Deidade (para além mesmo do Deus nominável e descritível da teologia e da filosofia) que, em nenhuma criatura tornada "perfeita" (homem ou anjo), elas podem possuir outra realidade que não aquela que lhes pertence enquanto perfeições divinas. Conseqüentemente, o Uno é totalmente separado de qualquer diversidade. Mas, ao mesmo tempo, e na medida em que o diverso se une ao Uno, que é sua origem e seu substrato, ele vive no Uno e o Uno nele exatamente como o Pai no Filho e o Espírito, e o Filho e o Espírito no Pai. Esse exemplo único, que esperamos não ter deformado seriamente ao expô-lo aqui de forma esquemática, mostra bem como estaríamos equivocados se separássemos de seu contexto os diversos enunciados eckhartianos. O paradoxo é, entretanto, como já observamos, que cada uma das fórmulas, por mais surpreendente que seja, se defende melhor talvez em seu isolamento; e a audácia do mestre parece antes se dever à aproximação dialética de afirmações opostas do que ao próprio conteúdo dessas afirmações. Resta, é verdade, pelo menos em alguns casos, o recurso tão caro aos historiadores, isto é, a hipótese de uma evolução doutrinaI. É assim que, no que concerne ao valor e à hierarquia dos nomes atribuídos a Deus, a maioria dos eckhartianos supõe que o pensamento do mestre dominicano tenha evoluído sensivelmente. E é notável que, exatamente para evitar atribuir a Eckhart uma espécie de dialética anacronicamente hegelializante, um dos melhores especialistas no assunto, Raymond Klibansky, tenha finalmente admitido, com a maioria dos críticos, que as Questões parisienses acerca do ser e da inteligência em Deus indicam (por volta de 1302-1303) a adesão de nosso teólogo a uma terminologia pouco compatível com aquela que predomina no resto de sua obra 19 . Sem "hegelianizar" Eckhart, Lossky sugere, contudo, que, de acordo com a ocasião, o mestre pôde esclarecer aspectos aparentemente contraditórios, mas realmente complementares, da relação entre os diversos nomes divinos. Se assim for, admitir-se-á que, mais 142

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atento, em certas circunstâncias, a um desses aspectos, Eckhart entretanto jamais o separou dos outros a ponto de negligenciar totalmente um ou outro dos "momentos" constitutivos no mais fundamental de seu pensamento. Como já sabemos, esses momentos são, por um lado, a separação entre o Criador e o criado; por outro, a imanência de Deus em toda criatura deificada. Quando o Mestre define Deus como pura intelligere (referindo-se ao naus amiges, ao intellectus impermixtus que, para Aristóteles, não pode ser ele próprio nada daquilo que ele conhece)20, fica bem claro que seu objetivo é o de opor com todo rigor ao "ente criado" (ens creatum) -aquele que não é senão "ex-existente", extrastans, em outros termos, o indivíduo concreto, a prote ousia das Categorias, o tode ti do Estagirita - esse "ente incriado" (ens increatum), que melhor seria chamar de "Ser intelectivo" (esse intellectivum), porque é uma subsistência eterna no Pensamento divino, fora de qualquer "processão", de qualquer "extrafacção". Nessa perspectiva, o melhor nome de Deus é intelligere e não esse. Esse, contudo, não é rejeitado de maneira absoluta. Mas não se deve falar de Ser divino a não ser que este seja entendido como uma puritas essendi que é exclusão de qualquer "ente", no sentido em que o ens implica queda e privação em relação à eterna perfeição do intellectum como ta1 21 . E temos ainda apenas um dos dois extremos da cadeia. Outros textos - que talvez tenhamos erroneamente considerado contraditórios com as Questões parisienses - atribuem, com efeito, a Deus, a plenitudo essendi, isto é, eSse modo de ser que, no pensamento incriado, pertence simultaneamente ao Criador e a qualquer criatura na perfeição de seu ser-pensamento em Deus22 • Mas é preciso acrescentar - de modo igualmente importante - que, se a perfeição divina só se expressa "puramente" pelo viés de termos negativos, essa pura necedade está longe, todavia, de satisfazer às exigências de um verdadeiro pensamento dialético. Nesse ponto, parece que Mestre Eckhart mantém-se mais "tomista" do que se poderia supor. Para ele, a negação "suprime" tudo o que encontra e, por si mesma, não "coloca nada"23. No contexto em que surge aqui o verbo tollere, parece difícil tentar, quanto a ele, o jogo verbal que sugere por vezes seu equivalente alemão úfheben24 . Toda negação remete entretanto a uma afirmação. Só existe "ausência", com efeito, em relação a uma "posse". Assim, a cada vez que excluímos de Deus um atributo inconveniente, supomos, nele, a existência positiva de "alguma coisa, qualquer que ela possa ser", cuja única presença remove dele o que não é senão negativo, "como a luz exclui as trevas e como o bem exclui o mal"25. Eckhart se refere aqui ao Pseudo-Dionísio, para quem essa "Treva" de que fala a Escritura e "na qual estava Deus" (Ex., XX, 21) é uma "Luz super-excelente" que permite conhecer "o que ultrapassa qualquer cognoscível" 26. Porém, como bem mostrou Lossky no primeiro capítulo de seu livro, Eckhart não pode se contentar, como faz o autor dos Nomes divinos 27 , Gêneses da Modernidade

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em celebrar "sucessivamente" o Deus "anônimo" e o Deus "polinônimo". Se é verdade que existe um Deus aliquid - quodcumque sit illud - , um ser positivo que significa a real exclusão de tudo o que é imperfeito e limitado, seria necessário dizer que Deus possui em "próprio" um "nome maravilhoso" e "inominável"28, aquele que, sem se "nomear", o próprio Deus entretanto revelou quando disse: Ego sum qui sum, isto é, seguramente: Eu sou "isso" ou "aquele" que existe29 , o ser "puro" e "nu" no qual jamais se separam o quid e o an 30 , mas primeiramente-e melhor ainda - o Nome indizível que apenas eu conheç031. Da mesma forma que às crianças curiosas por saberem muito cedo o que não podem ainda compreender, respondemos simplesmente: Isso é isso, aquilo é aquilo, à criatura preocupada em nomeá-lo, Deus pode apenas dizer: Eu sou quem eu sou. Para conhecer esse nome que profere eternamente uma "Fala sem palavra ou, antes, para além de qualquer fala", no "silêncio do Intelecto paterno,,32, é preciso sem dúvida que Mestre Eckhart siga a via agostiniana e "entre em si mesmo", mas menos, contudo, como o bispo de Hipona - para escapar assim de uma vã "querela de palavras" e para remontar "psicologicamente" até a origem de toda verdade 33- , do que para unir ao Uno-Pai essa ponta incriada da alma (esse aliquid tão inominável quanto Deus) que sozinha, ao final de uma ascensão dialético-mística, tornada una com a Fala sem palavra, pode dizer em Deus e com Deus o nome indizível de Deus. Em Mestre Eckhart, assim como em muitos teólogos ocidentais, a fórmula latina da processão do Espírito Santo a partir do Pai e do Filho, a processio ab utroque, permite atribuir ao Espírito Santo o papel de um terceiro "momento" (amor e nexus) que é menos o ponto de chegada de um processo descendente e o ponto de partida de uma ascensão do que a ligação interna imanente a todo o processo trinitário:

o amor do Pai pelo Filho e do Filho pelo Pai... é o vínculo entre os dois, e o Espírito, aspirado por um e pelo outro, procede dos dois a fim de que os dois sejam um 34 •

E, conseqüentemente, é preciso que haja {na alma] algo de mais íntimo e de mais nobre, e de incriado, sem medida e sem modo, onde o Pai celeste possa inteiramente se representar em imagem e se expandir e se manifestar: estes são o Filho e o Espírito Santo 35 . E quando se trata, no sermão alemão Intravit Jesus, dessa mesma "potência" da alma, na qual "Deus floresce e verdeja com toda sua Deidade", pode-se admitir que o Geist do qual "emana" e no qual "se mantém" essa "potência", ainda que designe aqui o espírito criado enquanto ultrapassa sua condição de criatura, remete, ao mesmo tempo que ao Pai, ao Espírito Santo que, nessa Kraft,

engendra o mesmo Filho único e se engendra como o mesmo Filho e é o mesmo Filho nessa Luz e é a Verdade 36 Nesse nível de unidade, um verdadeiro dialético - no sentido que tentamos precisar - não renuncia, por isso, a definir uma "estruturação" do Deus trinitário, que continua fundamental ainda que não se reduza propriamente aos ternários psicológicos ou lógicos transmitidos pela tradição agostiniana (Mens-Notitia-Amor ou Unitas-Aequalitas-Concordia) nem às apropriações mais estritamente teológicas que implicam os nomes pessoais de Pai, de Filho e de Espírito. Desses três nomes, o primeiro desfruta sem dúvida, em Eckhart, um estatuto privilegiado, com a condição, contudo, de que jamais se separem fecundidade e unidade. É ao Pai, com efeito, que convém mais o primeiro transcendental, o "uno" que, mais do que o "verdadeiro" ou do que o "bem", "se relaciona da forma mais-imediata" com esse "ser" no qual a Deidade, admitindo-se que se possa separá-la de suas operações, estaria como que "escondida" e "adormecida d7. Assim, uma dupla característica que só pode ser apreendida "dialeticamente" em sua aparente ambigüidade. É do Pai, como tal, que procede toda expressão ou manifestação (intra ou extradivina), mas é a ele que se une - ou que se "identifica" - a alma deificada, uma vez esvaziada de toda wíse "maneira"e de toda Eigenschaft "propriedade", lá onde o Deus que podemos humanamente nomear e definir

Do mesmo modo, se o engendramento misterioso do Verbo (como "verdadeira Imagem de Deus") na alma inteiramente esvaziada de sua característica criada desempenha um papel essencial na mística eckhartiana, o mestre turíngio não desconsiderou, por isso, - ainda que a mencione menos freqüentemente - a coabitação do Espírito Santo em qualquer alma deificada. Mas o papel de "ligação" atribuído à terceira Pessoa é tão determinante que leva às vezes o predicante a fundir, por assim dizer, a função própria ao Espírito na única Geração da Imagem. É assim, por exemplo, no Livro da consolação:

Diferentemente do Filho e do Espírito, o "Pai" é transcendente a qualquer "imagem" que se situe no nível da igualdade ou da semelhança.

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nunca olha por um só instante nem nunca olhou, visto que ele se comporta segundo os modos e apropriações pessoais ... Se Deus nunca deve olhar para aí, é necessariamente à custa de todos seus nomes divinos e suas apropriações pessoais 38 .

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Usando essas comparações físicas que têm, para ele, sobretudo um sentido simbólico - pois a natureza "criada", por receber todo seu ser emprestado ao Deus que ilumina seu nada, mesmo não podendo pretender ao' estatuto ontológico que lhe confere, em Santo Tomás, uma ontologia aristotélica, está apta, em contrapartida, a expressar simbolicamente um certo caráter teofânico de tipo boa-venturiano - , o autor do Livro da divina consolação observa que o fogo, quando atiça, por "assimilação", o ignescente até à perfeição do ígneo, se comporta como se ele "odiasse" tudo o que, nesse processo progressivo, comporta ainda, em qualquer grau que seja, "diferença e dualidade" (Underscheit und Zweiung):

E é por isso que eu disse que a alma odeia a igualdade e não ama a igualdade em si e por si, mas que ama pela unidade que é latente nela e que é verdadeiramente "Pai", princípio sem princípio de tudo o que está "no céu e sobre a terra,,39. Mas justamente porque o verdadeiro "Pai" é simultaneamente imanente a qualquer semelhança - enquanto produtor de uma imagem na qual se expressa perfeitamente sua própria essência - e transcendente a qualquer imagem - visto que a imagem se distingue ainda do modelo - , não se poderia alcançá-lo apenas pelas vias da apófase e, como já sabemos, por detrás de todas as denominações negativas está dissimulado um "nome próprio", um Etwas positivo que traduz, ou que pretende traduzir, a dialética do Uno-Pai. Ainda aqui não se pode dissociar - sem graves contrasensos - os dois aspectos complementares de uma única "teologia", a que apreende conjuntamente a Unidade originária e o processo interior da Unitrindade - , o qual, por sua vez, é, em Eckhart, inseparável da criação. Apesar das aparências que por vezes enganaram os admiradores ou detratores de um Eckhart falsamente comparado a Boehme (ou a Schelling), o mestre dominicano jamais imaginou nenhuma "teogonia" na qual, de um Ungrund antecedente, teria saído, por meio de desenvolvimento temporal, uma divindade cada vez mais determinada, mas, antes, no interior da mesma Deidade, duas funções complementares correspondendo ao duplo papel da puritas essendi - como unidade "exclusiva" - e da plenitudo essendi - como unidade" inclusiva". Segundo a tradição que pretende esclarecer o mistério da Trindade cristã por meio de fórmulas "cíclicas" como a do Livro dos XXIV Filósofos: Monas

fases: bullitio e ebullitio - , ele situa em Deus uma dupla "ebulição" interior e exterior - que aparece, em certos textos, exatamente como a condição exterior de sua perfeição, até mesmo de sua mais-que-perfeição:

É preciso que alguma coisa borbulhe e termine por derramar-se a fim de ser em si completamente perfeita e, em seu transbordamento, mais-que-perfeita41 .

o

difícil é, evidentemente, determinar o que deve ser entendido aqui por "mais-que-perfeita". Se é verdade que plenitudo essendi é, como Lossky aponta, mais "inclusiva" do que "exclusiva", a exuberantia (ou transbordamento), que é aqui um outro nome para a ebulitio (ou fervura), não pode designar, de modo algum, a criação das coisas enquanto estas são "extrafeitas" , pois seria necessário admitir então que Deus, pela gratuidade de um dom supérfluo, acrescenta o que quer que seja à sua própria substância, o que não é defensável em nenhuma teologia e menos ainda na teologia eckhartiana. Parece que a ebullitio - que corresponde à irradiação da Luz divina - dá lugar aqui a esse "movimento de retorno" que Dionísio apontava expressamente, desde as primeiras linhas da Hierarquia celeste. As coisas criadas só têm valor real quando "retornadas" a Deus, ou em seu movimento de retorno. O transbordamento inclui, pois, toda a "visitação "42, como processão e como anagogia, mas também - e muito mais explicitamente do que no Corpus aeropagiticum - a constante imanência da Unitrindade na "segunda emanação". Assim se explica sem dúvida o fato de Eckhart ter afirmado a "simultaneidade" entre o Engendramento do Verbo no interior da Trindade e a criação do mundo, a qual só adquire seu sentido pleno pela "filiação" das almas deificadas43 . No único instante eterno no qual ela realiza a perfeição de sua própria fecundidade (bu/litio), a Deidade transborda dessa perfeição infinita pelo dom total de uma graça deificante (ebu/litio) que deve ser situada para além de qualquer criação ad extra. É por isso que o "retorno" (ou "abertura") - que, ligado da forma mais íntima ao Engendramento do Verbo na unidade do Espírito, contém em si, por união de graça ao Nunc do Uno-Pai, a inseparável totalidade da ebulição e da fervura - é, para Eckhart, "mais nobre" do que a simples "emanação", isto é, do que esse mundo criado como tal, em sua relação de simples "efeito" exterior a um Deus concebido, ele mesmo, no nível de seus "modos" e de suas apropriações 44 .

monadem gignit vel genuit et in seipsum reflectit amarem seu ardorem, Eckhart evoca por vezes em Deus um movimento de algum modo "reflexivo", que pode fazer pensar na passagem, da primeira à segunda hipóstase, em Platina. Por outras vezes, tomando sem dúvida de Thierry de Vrieberg, que a supõe procliana, a imagem da ebullitio 40 - na qual ele distingue duas 146

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Essas considerações trinitárias conduziram-nos, como era de se esperar, à relação entre a vida interior de Deus e o universo que ele fez surgir do nada. Tanto em Eckhart como no Cusano, o mundo é, de certo modo, comparável à célebre esfera infinita do Pseudo-Hermes 45 , na qual tudo Gêneses da Modernidade

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'I coincide com tudo (cf. Mahnke, Unendliehe Sphiire und Al/mittelpunkt, Halle/Saale, 1937). Ele está "completo em cada criatura, em cada uma como em todas" (In Eecli., n.19-20, LW lI, p.247-248), e entretanto, devido à sua transcendência, "exterior" a todo o criado. Mas deve-se observar que se Eckhart, como destaca Mahnke, amplia um pouco o sentido original da fórmula pseudo-hermetista, não é nunca o mundo, a machina mundi, que ele compara, como o farão o Cusano e, depois dele, Pasca1 46 , a uma esfera infinita cujo centro está em toda parte e a circunferência em lugar nenhum. Sua cosmologia continua medieval e, parece,

de tipo nitidamente arcaico. Faltam, entretanto, a seu universo -

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razões que derivam de sua ontologia, não de sua física - essa subsistência e essa eficácia que a escolástica aristotélica atribuía às causas segundas. E é por isso que o mundo criado não poderia quase aparecer, em Eckhart, como esse "infinito reduzido" (maximum eontraetum) que Nicolau de Cusa situaria, na Douta ignorância, diante do "infinito absoluto" (maximum absolutum), na qualidade de imagem que "se aproxima tanto quanto pode" de seu modelo perfeito, na qualidade também de unidade mediadora pela qual o próprio Deus se torna presente à totalidade das coisas (cf. Doeta ignorantia, lI, 4). Na perspectiva eckhartiana, a relação entre Deus e o mundo não pode de forma alguma se assemelhar àquela concebida pelos matemáticos entre um limite e a progressão assintótica que daí se aproxima sob a forma do indefinido. As imagens geométricas, que serão caras ao cusano (o ângulo infinito que se anularia como ângulo, a porção de circunferência, que, quando o raio fosse infinito, se tornaria linha reta etc.), quase não interessam a Eckhart, que raramente fala a linguagem matemática e prefere ilustrar seu pensamento, em um modo poético ou usual, com imagens físicas tratadas em um estilo qualitativo e antropomórfico (a taça inteiramente vazia que se elevaria para além do mundo sublunar, a pequena centelha que voltaria ao empíreo se o ar úmido não a sufocasse etc.). Mas é claro, sobretudo, que nenhuma formulação desse tipo esclarece efetivamente a verdadeira relação entre o Deus criador e a criatura extraída do nada. O Verbo eterno, que contém eternamente os arquétipos de todas as coisas, na forma de pensamentos divinos, e que só se engendra, nas almas purificadas, tornadas virgens e fecundas, pela via de uma "abertura" instantânea, parece longe e como que estranho em relação a uma "história" cósmica ou humana que só se desdobraria nessa aparência de ser tão freqüentemente qualificada de nada. A esse respeito ele parece muito pouco com o que será - pelo menos em um de seus aspectos, mas que nos parece essencial- o Mediador cusaniano, esse Deus humanatus, conexão necessária entre o infinito reduzido e o infinito absoluto, aparição histórica que liga o tempo humano à presença divina e que, 148

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no diálogo irênico e semi-utópico inspirado ao cardeal pela queda de Constantinopla, o De pace (idei, permitirá apenas a reconciliação terrestre dos irmãos inimigos, o apaziguamento das lutas e o fim das perseguições, esse programa de reformas políticas e eclesiásticas que já prefigura a Concordance catholique, esse desenvolvimento progressivo das artes e das técnicas em que a quarta parte do Idiota afirma o muito ousado programa, na linha do sermão pela Epifania de 1456, inseparavelmente cristológico e humanista (Ubi est, ed. Koch, Sitzungsberiehte der Heidelberger Akademie, 1936, n.U sq., p. 94 sq.). Eckhart jamais negou, bem entendido, a Providência, e até mesmo insistiu nas virtudes de Marta, que sabe contemplar tudo dedicando-se aos cuidados da casa 47 . Mas a "presença" do eterno no temporal aparece na maioria das vezes, em sua pregação, em relação aos "instantes" da união mística - ou do "verdadeiro arrependimento" que dá sentido ao pecado antecedente 48 . Quando ele fala de um enraizamenro que é o produto de uma "busca,,4<;l, só se pode tratar de uma busca "total" que encontra no instante mesmo em que procura, pois, enquanto permanecer no nível do "mais" e do "menos", ela não pode ser "divina"so. A alma que "escolheu a melhor parte" (Lucas, X, 42) só pode progredir continuamente se recebeu de uma só vez (cf. o ezaíphnes do Pseudo-Dionísio, Ep. m, 1069 b) "o todo na parte, o fruto na flor", isto é, precisamente essa forma de imanência intemporal que significam o "tudo em tudo" de Anaxágoras e a "esfera infinita" do Pseudo-Hermes, aquela que simboliza igualmente o maná no deserto 5 ]. Porém, assim como o Uno-Pai é dialeticamente inseparável da "ebulição" unitrinitária, essa graça instantânea, que se apresenta com as características da Glória, não exclui de forma alguma a linguagem pauliniana da coroa reservada ao atleta que lutou bem (lI Tim., lI, 5). Interpretando à sua maneira o Vade in pace de Lucas, VI, 50, Eckhart mostra que "se deve correr rumo à paz, não iniciar na paz,,52. A substituição de um acusativo (questão quo) pelo ablativo latino (questão ubi) não deve, contudo, nos enganar. É ao mesmo tempo "rumo" à paz e "na" paz que se deve "correr". E, se é "bom" e "louvável" ir de paz em paz, esta é ainda uma atitude "insuficiente"53. Eckhart pensa menos na "epectase" de um Gregório de Nissa do que em um movimento bem próximo do repouso, cujo melhor símbolo continua sendo, para ele, a regular phora do primeiro "céu" aristotélico, aquele de todas as mudanças que, pela imaterialidade de seu substrato, é o menos propriamente metaphore:

o homem que está correndo, e em uma corrida contínua e de tal modo que esteja em pazS4 , este é um homem celeste. O céu volta-se sobre si mesmo em uma corrida contínua, e nessa corrida, procura a paz55 . Gêneses da Modernidadt:

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Se essas fórmulas de "coincidência" deviam inspirar Cusano, parece-nos que uma tal imagem está, entretanto, bastante longe daquela que o cardeal utilizará quando evocar esse pião que parece" dormir" porque é movido por uma velocidade que se aproxima do infinito 56 . Em sua carta ao jovem noviço Nicolau Albergati, obra de circunstância na qual Mme. Gerda von Bredow, que em outra ocasião a editou (Cusanus-Texte, Briefwechsel In, Heidelberg, 1955), vê um verdadeiro "testamento espiritual" do cardeal, parece-nos que as expressões do parágrafo 7 (loc. cit, p.38) são diferentes de um "abrandamento" (ou de um "enfraquecimento") das teses eckhartianas acerca da imagem de Deus na alma deificada. Para o Cusano, como mais tarde para Leibniz, existe realmente - ou virtualmente - uma espécie de "república dos espíritos", na qual cada "mônada" pode desempenhar um papel singular em uma verdadeira" história". É nessa perspectiva "progressista" - no duplo nível do indivíduo e da sociedade - que

nossa natureza intelectual, compreendendo-se pela inteligência como uma imagem viva de Deus, possui o poder de se tornar continuamente mais luminosa e mais conforme a Deus, ainda que, visto que é imagem, não se torne nunca modelo ou Criador'í7. Sabemos que o pensamento eckhartiano estaria deformado se se insistisse unilateralmente no tema do Tudo ou Nada, negligenciando-se o valor dos textos nos quais o mestre dominicano (que se situa, quando escreve para a rainha da Hungria, em um plano mais "pedagógico") observa que, "se não se instruírem as pessoas que não são instruídas, ninguém jamais será instruído,,58. Ou, mais meta fisicamente, em termos que M. Quint aproxima de certas fórmulas kierkegaardianas: "Se não houvesse nada de novo, não haveria nada de antigo,,59. Mas é no entanto claro que, para Eckhart, na instantaneidade de um "dia de eternidade" é que a alma pode - "para além do tempo", e cada vez que se repete nela esse ato de abandono que a faz mãe de Deus - se identificar com o único Filho que engendra eternamente o único Pai 6o . Como o "verdadeiro arrependimento", tal como o descreviam os Discursos do discernimento, faz "desaparecer todos os pecados no abismo de Deus" em menos tempo do que necessário para Eckhart "fechar o 0Iho,,61, essa conversão não exige nenhuma prova preparatória, nenhuma ascese prolongada. Assim que a Samaritana ouve Jesus, ela se volta para ele e é nesse mesmo instante que encontra "seu verdadeiro marido";

°

Se o homem é senhor de sua livre vontade, na graça, e de modo que possa uni-la à vontade de Deus de maneira total e 150

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como que sendo um com ela, então não lhe é necessário falar como fez essa mulher: Senhor, mostre-me onde devo orar e o que devo fazer para ser a mais cara de todos na verdade; e Jesus responde que ele se revela verdadeira e plenamente em tudo o que ele é, e preenche o homem tão superabundantemente que ele jorra e flui da mais-do-que-plena6 2 plenitude de Deus, como fez essa mulher em pouco tempo perto da fonte, ela que não estava de forma alguma antecipadamente preparada. E é por isso que digo aquilo que já disse: que nenhum homem nesse mundo é tão grosseiro nem tão desprovido de entendimento nem tão mal disposto a isso, desde que possa, com a graça de Deus, unir sua vontade pura e totalmente à vontade de Deus, e tem apenas necessidade de dizer em seu desejo: Senhor! Mostre-me tua tão cara vontade e fortalece-me para cumpri-la! E Deus o faz tão verdadeiramente que ele vive, e Deus lhe fez um dom perfeito em todos os aspectos em tão rica plenitude como o fez para com essa mulher. Vede, é isso que o mais grosseiro e inferior dentre vós pode receber de Deus antes que hoje mesmo ele saia dessa igreja, o que digo? Antes mesmo que hoje eu tenha terminado esse sermão, em toda a verdade e tão verdadeiramente que Deus vive e que eu sou homem. E é por isso que digo: Não temeis, essa paz não está distante de vós, se vós a procurardes de forma sábia63 • Porém, se é verdade que o mestre fala aqui como guia espiritual ainda que se dirija, como acabamos de ver, não a religiosos já formados mas ao mais grosseiro de seus ouvintes - , o paradoxo de sua posição só se esclarece, cremos, pela referência à sua ontologia. Nele, o problema da santificação e o do arrependimento, que na verdade são apenas um, não se separam realmente da questão mais geral que coloca a relação entre o Deus criador e o universo criado. Finalmente, a presença do Deus trinitário no "pequeno posto" da alma (Pred. 2), no "templo" libertado de seus "mercadores" (Pred. 1), ainda que ela seja um dom de graça que já está descrito como um dom de gloriosa beatitude, mantém-se provavelmente do mesmo tipo que a imanência geral da Luz divina nas trevas do nada. Para definir essa imanência, que se assemelha antes a uma teofania do que a uma doação de ser, Eckhart usa freqüentemente a palavra «analogia" que, apesar das referências aristotélicas e tomistas, é entendida aqui de forma bastante particular. Em seu artigo Mélanges Étienne Gilson, Koch apresenta, a esse respeito, conclusões bem próximas daquelas a que havia chegado, por sua vez, Vladimir Lossky64. Podemos apenas fazer um levantamento de seus elementos mais essenciais. Gêneses da Modernidade

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A analogia eckhartiana não se define absolutamente em termoS de proporcionalidade matemática, e não encontramos nos textos do dominicano alemão fórmulas como as de Santo Tomás declarando que, se "verdade, bondade e outras perfeições do mesmo gênero são ditas analogicamente de Deus e das criaturas", importa que elas estejam presentes, tanto em umas quanto em outras, "segundo seu ser", mas "em graus de maior e menor perfeição"6S. O que Eckhart situa entre a equivocidade e a univocidade é muito menos uma relação a quatro termos como as que descrevia, por exemplo, Aristóteles no V Livro da Ética a Nicômaco (para determinar as diversas espécies de justiça), do que essa forma de raciocínio que concerne ao uso, pelo Estagirita, de "equívocos por referência" (ou eras en)66 tais como os definiam vários textos da Metafísica (particularmente 2,1003 a, e K, 3,1061 a). Se o "ente" se diz "em vários sentidos", existesempre um sentido primeiro que, em relação aos sentidos derivados, desempenha o mesmo papel que a saúde do ser vivo em relação àquilo que a conserva, a produz ou a revela, isto é, a dieta, o médico, a urina. Ora, diferentemente de Aristóteles e de Santo Tomás, em vez de ver nessas espécies de "análogos" modi praedicandi e modi relationis, Eckhart os descreve ousadamente como modi unius eiusdemque rei simpliciter6 7, de forma que se poderia considerá-lo, uma vez mais, bastante próximo de uma teoria da pura univocidade. E isso exatamente no momento em que o leitor desatento ao jogo de sua dialética poderia acusar o dominicano alemão de sucumbir a tentações equivoquistas. É notável, com efeito, que, remetendo aos célebres exemplos aristotélicos, Eckhart negligencie o papel do médico como agente positivo da saúde, se interesse pouco pelo da dieta como causa conservadora e acentue deliberadamente o caráter mais "exterior" da urina, efeito fisiológico mas sobretudo sintoma médico, visto que ele a compara a uma tabuleta de taberneira, nem mesmo imagem de barril, mas simples coroa de palha, ideograma em si perfeitamente estranho à natureza do vinho cuja presença ele anuncia. Na mesma frase, na qual descreve - como vimos - a dieta e a urina como os "modos de uma única e mesma coisa" - a saúde - e como "numericamente unas" com ela, Eckhart usa o "de modo que" (ita quod que lhe é cara) para precisar que nem uma nem outra contêm entretanto essa saúde mais do que a contém a pedra. Ora, é precisamente desse mesmo modo que o ser e toda perfeição, sobretudo geral, como o ser, o verdadeiro, o bom, a luz, a justiça, etc., se dizem? analogicamente de Deus e das criaturas 6S • Mas já encontramos, no início dessa exposição, o caso significativo das "perfeições gerais" (transcendentais, atributos divinos, "energias" no 152

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sentido oriental). Sabe-se, por conseguinte, que não apenas a "estraneidade" da criatura não a impede em nada de manifestar a "honra" e a "glória" de Deus, mas que é precisamente pelo que nela é, de forma real e não ilusória, "bom" e "perfeito", que ela testemunha, simultaneamente, sua miséria de "mendicante" e essa "riqueza" do Deus "misericordioso"69 que não cessa de "alimentá-la" sem nunca "saciá-Ia"7o. A esse respeito a imagem da urina como sintoma da saúde é bastante indelicada, mas a imagem da coroa de palha, como tabuleta de taberneiro, é mais insuficiente ainda visto que não remete senão a um "signo". Ora, enquanto ela é em si "absolutamente nada", a criatura é menos do que um signo; enquanto criatura de Deus, ela o é mais, na medida em que recebe, em toda plenitude - sem a degradação progressiva que descrevia o Pseudo-Dionísio em relação à existência de telas materiais cada vez mais opacas 7! - , uma luz que não se "enraíza" no ar que ela ilumina, que, em um sentido, não é senão "emprestada" e entretanto a torna mais rica do que qualquer doador que não estivesse ele mesmo na plenitudo essendi. Graças a esse empréstimo de luz, a criatura pode assemelhar-se ao ar translúcido e, ao se reconhecer mendicante, tornar-se ela mesma teofania 72. Assim se esclarecem os abundantes paradoxos da obra de Eckhart e que resumem bastante bem as linhas tomadas ao comentário do Êxodo (a propósito de XX, 4):

Nada é ao mesmo temlJO tão dessemelhante e tão semelhante a outra coisa ... do que Deus e a criatura. O que há, com efeito, de tão dessemelhante e semelhante a outra coisa do que isso, cuja dessemelhança é a própria semelhança, cuia indistinção é a própria distinção? .. Sendo distinta por sua indistinção, quanto mais é indistinta, mais é distinta; sendo semelhante por sua semelhança, quanto mais é dess.emelhante, mas é semelhante 73 .

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É o conjunctim que forma aqui o cerne mesmo do raciocínio. É ele também que dá seu verdadeiro sentido às afirmações aparentemente contraditórias, as quais, mais ainda do que os comentários latinos, povoam os tratados e os sermões alemães: a alma contém uma imagem que é ao mesmo tempo interior e exterior, não de dois pontos de vista diferentes, mas porque "o interior é o exterior" e "o exterior, o interior,,7\ ela está "presa no corpo" e, contudo, "o corpo está antes nela do que ela nele"75; "o Anjo mais elevado não pode tocar no fundo nem na natureza da alma"76, e no entanto o Anjo é "uma imagem mais próxima de Deus,,77 e o mais nobre dos espíritos puros participa de tal forma da Potência divina que pode-se dizer que ele criou tud0 78 , mas a verdade é finalmente que "em Deus nenhuma criatura é mais nobre do que uma outra,,79; a alma que Gêneses da Modernidade

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procura Deus no fundo de si mesma é denominada "viril", ela deve ultrapassar o nível inferior no qual a qualificamos de "mulher"so, e no entanto o fundo da alma deve ser, não apenas "virgem", mas "mulher", isto é, capacitado para conceber a imagem de Deus S1 ; a "centelha" da alma é "incriada"S2 e entretanto foi Deus quem a "criou"S3; os amigos de Deus renunciam a qualquer consolo mas, para eles, consolo e não-consolo são igualmente consolo s4 etc. Desses paradoxos, cuja lista seria interminável, mantenhamos apenas, como conclusão, aquele que, do ponto de vista cristão, pode parecer o mais escabroso, pois, com uma "ingenuidade" bem diferente da síntese dialética de tipo hegeliano, dá lugar a uma Aufhebung a qual se poderia temer que chegasse praticamente a "esvaziar" o mysterium crucis. Eckhart acaba de descrever, simbolicamente, uma luta laboriosa entre o fogo e a madeira que aparece como um verdadeiro "momento" negativo, cujo papel é efetivo no apaziguamento final:

Não se apaziguam nem se calam nem se satisfazem jamais nem fogo nem madeira em nenhum grau de calor, de ardor, nem de semelhança, até que o fogo se engendre ele mesmo na madeira e lhe dê sua própria natureza, até mesmo sua própria essência, de modo que tudo se torne um único fogo, em uma igual apropriação, sem diferenças, nem menos nem mais. É por isso que, antes que s,eja assim, há sempre uma fumaça, uma resistência, um estalido, um trabalho e um combate entre fogo e madeira. Porém, assim que toda dessemelhança é rejeitada e suprimida, então se apaga o fogo e a madeira silencia S5 . Mas o primado do conjunctim exige que, se o sofrimento e o trabalho são mais do que epifenômenos, situados por assim dizer em um nível infra-ontológico, eles constituam, finalmente, com a paz e o silêncio uma só e única realidade. Esse é o caso, sem dúvida, da Paixão de Cristo e de qualquer participação humana nesse evento "temporal" que, por ser "divino", deve apresentar os traços de um Nunc intemporal. Seguramente, se os "amigos de Deus" sofrem de bom grado "incomodidade e dano", é porque sabem que Deus enviará, àqueles que sofreram em uma "honesta disposição", um certo "consolo" capaz de "ajudá-Ios"s6. Mas essa não é ainda senão uma maneira exterior de falar e a exegese do texto evangélico Tolle crucem nos introduz em uma perspectiva da qual parece excluÍda qualquer temporalidade. As três prescrições de Mateus, XVI, 24 ("Se alguém quer vir atrás de mim, que renuncie a si mesmo, que se encarregue de sua cruz e me siga") formam na verdade uma só, e esta significa, para Eckhart: "Torne-se Filho como eu sou Filho, Deus engendrado e a mesma

Unidade que eu sou, que recolho, por minha presença interior e minha imanência, no Seio e no Coração do Pai" 87. Estamos, então, para além de uma ascese, de um verdadeiro caminho da Cruz, de uma lenta e dolorosa imita tio Christi; e, se o que se considera em geral como um "preceito" merece antes ser chamado "promessa" e "recompensa", o apelo do Cristo é menos, entretanto, o anúncio de uma alegria a colher, após uma participação real em seus próprios sofrimentos, do que a certeza de que todo sofrimento desde já é abolido e que, na verdadeira via cristã, o trabalho desapareceu em benefício de puros prazeres 8S . Ainda melhor do que um "arroubo" místico, deve-se falar, a rigor, de uma graça beatificante que une a alma, de forma total e imediata, ao próprio Verbo encarnado e substitui à sua "natureza" de ser criado e "extra-feito" uma outra "natureza", "superior" e "celeste"89. É aqui que intervém o duplo sentido do verbo tollere (em alemão ufheben), que significa antes de tudo -literalmente - "elevar", "tomar sobre os ombros", "assumir", mas, para Eckhart, mais ainda: "suprimir", até mesmo "depor", de forma que, quando o dominicano alemão, em vez de compreender o versículo evangélico segundo sua significação mais evidente, joga aqui - de passagem - com um termo que Hegel colocará bem mais tarde no centro de sua dialética, ele não pensa em atribuir ainda o terceiro sentido de uma "síntese" que, "conservando", "ultrapassaria" ou "superaria" o momento da negatividade:

Nosso Senhor diz: "Quem quer vir a mim deve sair de si, renunciar a si e carregar90 sua cruz" - isto é, deve depor e suprimir tudo o que é cruz e sofrimento. Pois é certo que aquele que renunciasse a si mesmo e saísse inteiramente de si, para esse não poderia haver nem cruz nem sofrimento nem pena; tudo seria para ele um prazer, uma alegria, uma adoração 91 .

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Efetivamente,Eckhart, em sua pregação, dá muito menos lugar do que Tauler e sobretudo do que Seuse aos "acontecimentos" (históricos e metahistóricos) da Crucificação e da Ressurreição. O essencial é sempre, para ele, a vida gloriosa no interior da eterna Deidade. Ele não seria contudo um verdadeiro "dialético" se abstraísse completamente a negatividade: erro, reparação, sofrimento e morte. Mas sua tendência é a de querer pensar em sua inseparável- e insondável- unidade apenas sob o rosto da beatitude, os dois "momentos" da processão e do retorno, e - o que é mais grave - os dois "eventos" do erro e do arrependimento. Pode-se duvidar que essa visão eternista da felix culpa seja estritamente compatível com os fundamentos da fé de uma "história" sagrada e de uma "Paixão" redentora. Notaremos igualmente que, na passagem que acabamos de citar - como ,~,

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no texto dos Discursos de discernimento aos quais remetemos anteriormente 92 - Eckhart desliza, ele mesmo, em um uso bastante significativo do condicional. Se jamais fosse possível a um homem chegar efetivamente a um total desprendimento (Abgeschiedenheit), então o paradoxo do "impossível necessário" se tornaria para a criatura uma realidade; de fato, ele é apenas um ideal, um limite inacessível. Só que o Cristo que apareceu para o fariseu perseguidor no caminho de Damasco não é a idéia reguladora de uma "tarefa infinita" nem o brâmane indiferenciado da tradição vedântica. Na medida em que o Verbo se "fez carne", em que "entrou na história", em que realmente carregou sua Cruz nas encostas do monte Calvário, na medida em que realmente agonizou no Jardim das Oliveiras e nos bosques ignominiosos dos supliciados, não se pode negar que a fórmula eckhartiana de um elevar-se que será, ao mesmo tempo, uma "deposição" e uma "abolição", uma gloriosa descida da Cruz identificada a uma ascensão, uma metamorfose imediata da dor reparadora em eterna fruição, corresponda também, no plano antropológico, a uma exigência sobre-humana e, no plano teológico, a uma tentação docetista. O Eros platônico - não o encantador e inútil "pequeno deus" que inspira a Sócrates uma "palinódia expiatória "93, mas o "grande demônio" intermediário entre o divino e o human0 94, aquele que Diotima associa à concepção quase ignominiosa, no jardim de Zeus, por ocasião do banquete que acompanhava a chegada ao mundo da Afrodite popular 95 - nasceu do encontro entre a mendicante Pênia e o hábil Poros, filho de Métis, que é tanto astúcia quanto sabedoria. Maltrapilho, sem casa, ele reúne em si mesmo os traços complementares da indigência, que é uma necessidade estimulante e da engenhosidade produtiva. Quando escapar às vulgarizações do mito, é ele que irá aspirar, com todas as suas forças de necessitado, a essa plenitude ontológica que só move o universo por ser, ela mesma, o objetivo final de seu amor 96 . Em certos textos Eckhart, subestima às vezes o misterioso valor da temporalidade; exalta tanto a criatura glorificada e totalmente iluminada que a unidade primeira parece absorver, em si, para sempre, as fases necessariamente sucessivas da "separação" e da "reconciliação", de modo que quase não sobra lugar, nessa perspectiva, para a humilhação - usque ad mortem Crucis 97 - da vítima inocente imolada pela salvação de todos. Mas, ao mesmo tempo, ele insiste bastante 'no absoluto desenlace de "todas as coisas,,98 para que o ens passivumque recebe de fora o empréstimo mais precário - apareça freqüentemente mais como "nada" do que como "pobreza". O Cusano, ao contrário, enfatizará - segundo uma tradição que vem de Poseidônio, de Cícero, mas também de São Gregório de Nissa 99- o caráter positivamente "industrioso" do homem que foi criado no último 156

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dia para ser o horizonte comum do tempo e da eternidade, essa imagem de Deus que carrega em si toda a aspiração do "infinito reduzido" rumo ao "infinito absoluto". Ele exaltará, na própria história, a "cooperação" na obra divina desse microcosmo criado que tem vocação para ser "canto vivo" e "cítara intelectual,,10o. O "segundo deus" do Pseudo-Hermes 101 será menos, para ele, a "máquina do mundo", por mais infinita que seja, do que a mens foecunda do próprio homem no paciente trabalho de suas sucessivas "aproximações". Ele dará lugar, assim, por mais de uma vez, a essas "utopias militantes" que um revolucionário romântico como Ernst Bloch opõe hoje em dia ao rasteiro racionalismo do marxismo vulgar 102. Resta que Mestre Eckhart, pela dialética do totum intra e do totum deforis, é o arauto de uma outra elevação prometida ao homem. Pois a efusão de luz que se espalha sobre ele por pura graça 103 o revela em sua natureza divina, para além do nível natural no qual o calor se dá ao ar e o fogo à madeira. Basta que a criatura reconheça seu nada para que ela seja imediatamente elevada para onde a própria graça não é mais graça. Diferentemente da dialética cusaniana, a dialética eckhartiana deixa na sombra o doloroso momento da ruptura, assim como o laborioso momento da aproximação. Diferentemente da dialética hegeliana, ela evita deificar a história como se recusa a confiar à luta entre a natureza e a cultura a finalização de um livro morto que seria o fim da história mas igualmente o fim do homem. A diferença da dialética kierkegaardiana, ela não reduz absolutamente a dimensão humana ao trágico confronto entre a pura subjetividade e a transcendência absoluta de uma pura alteridade. É no instante eterno, mas aqui e agora, que ela exige do homem vivo esse vazio interior que o transmuta no mesmo instante em plenitude superabundante, nesse nível em que, deificado sem ser Deus, ele só pode significar sua condição paradoxal por acúmulo dos oxymora: o distinto que é indistinto e o indistinto distinto, o outro que é não-outro, o ente que é não-ente e o não-ente, ente.

NOTAS 1 Prologus generalis in Op. tripart., LW I, n.7, p.152. Citamos as obras publicadas por Kohlhammer em Strugart pelas abreviações LW (Lateinische Wcrke) e DW (Deutsche Werke). 2 Resposta aos artigos incriminados in "Edition critique des pieces relatives au proces", Arehives d'hist.litt. etdoetr. du Moyen Age, I, Paris, 1926 (ed. Théry), p. 186. 3 DWV, p. 60. 4 Prol. in Op. trip., loe cit .. 5 Arehives d'hist. lit. et doet. du Moyen Age, 1928, IV, p.345, n.3.

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"Hoc solum de Deo scio quod ipsum nescio", in Exod., n.184, LW 11, p.15S. In Sap., ed. Koch, n.34, LW 11, p.354. 8 In Sap., éd. Théry, p.240. 9 Cf. Josef Koch, "Kritische Studien zum Leben Meister Eckharts", Archivum fratrum praedicatorum, XXX 1960, p.27 sq. A má vontade do arcebispo Henri de Virnebourg, a prevenção de certos franciscanos, o papel desagradável de dois "falsos irmãos" dominicanos não são duvidosos. O fato é que, no conjunto, os inquisidores trabalharam sem precipitação nem má-fé. Não cremos, todavia, que, como pensa Koch (ibid., p.41), Eckhart tenha ganho muito por insistir em sua defesa na questio facti e no caráter inexato de certas reportationes. Dentre os textos mais autênticos havia um número suficiente para condená-lo, desde que se recusasse a entender o conjunto de seu pensamento, com tudo o que ele comporta precisamente de "dialético". la Ave gratia plena, n. 5, DW I, p. 381-382. 11 Cf. Hegel, Enzyklopadie, ed. Lasson, V, p.l02-103. 12 In Exod., n.58, LW 11, p.63 sq. 13 In Sento I, 2, 1, 3; Suma téoI., 1"\ parte, XIII, 2-4. 14 In Exod, loco cit.. 15 Op. laud., p.89 sq. 16 DW V, p.9 sq. 17 Edição crítica, Archives, I, p.lS. Eckhart invoca em seu favor II Cor., m, 18 ("Revelata facie gloriam dei speculantes in eandem imaginem transformamur") e Ato Ap. XVII, 28 ("Dei genus sumus, in ipso vivimus, movemur et sumus"). 18 In João, n.14, L W m, p.13 sq. 19 Cf. Commentoralium de Eckhardi magisterio, Oeuvres Iatines de Maitre Eckhart (Leipzig, 1934-1936), VIII, p.XIII sq. Essa hipótese permitiria datar o sermão Quasi stelIa matutina segundo critérios análogos àqueles que Grabmann havia utilizado para datar o Deus unus est, apresentando os dois textos, em alemão e em latim, afinidades doutrinais com as Questões parisienses (cf. Lossky, op. cit., p.208 sq.). 20 Utrum intel/igere Angeli sit suum esse, n.2, LW V, p.50. 21 "Deo non competit esse, nisi talem puritatem voces esse" (Utrum in Deo sit idem esse et intelligere, n.9, ibid., p.45). 22 Cf. Liber paraboralorum Genesis, n.53, LW I, p.521. 23 In Ex., n.179, LW 11, p.154: "Negatio siquidem tolIit totum quod invenit, nihil ponens" . 24 Veremos que, no caso do To/le crucem, se aufheben significa levantar e suprimir, o sentido "ablativo" entretanto ainda predomina. 2S In Ex., n. 181, p.155-156: "Et quia privatio necessario consequitur habitum, et negatio funditur in affirmatione, convincitur consequenter aliquid esse in Deo, quodcumque sit illud, excludens ignorantiam, passibilitatem et huisusmodi, sicut lux tenebras et bonum ma/um". 26 Ibid., n.237, p.196 (remetendo à Ep. 1,1065 a). 27 I, 6, 596 a-e. 28 In Gen, (cod. Ampl.l, n. 298-300, LW I, p.95-96. 29 Ibid., n. 298: "hoc quod est sive qui est". 30 In Ex., n. 15 LW 11, p.21. 31 Ibid, n. 19, p.25. Em todo esse comentário, Eckhart segue bem de perto Maimônides. 32 In Gen. (cod. Ampl.), n. 77, p.62: "Verbum sine verbum autpocius supra omne verbum ... in silencio paterni intellectus." 6

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33 Cf. Santo Agostinho, De Doctr. christ., I, 6 (PL XXXIV, cal. 21), e De vem relig., I, 39 (ibid., cal. 154). 34 In Johan., n.162, LW m, p.133. 3S DW V, p.38. 36 Pred. 2; DW I, p. 32. Esse sermão contém três descrições sucessivas da Kraft in der Seele na qual encontramos, como conseqüência da "descriaturização" ligada ao "despojamento", a criação do Verbo na alma deificada. Admite-se, geralmente, que as duas primeiras descrições correspondem aos diferentes papéis do intelecto e da vontade. Nos dois textos Eckhart afirma que a Kraft "brota" do "espírito" e "permanece" nele; mas, no primeiro, Deus "desabrocha e flore~ce"; no segundo, Eckhart utiliza uma linguagem que evoca o fogo do amor e as labaredas do Pentecostes. O texto citado anteriormente é, ou uma terceira redação - mais arrojado e que insiste mais em tudo o que identifica a "potência na alma" ao Deus "supradivino" da teologia negativa - , ou uma referência final a um nível superior de indistinção onde inteligência e amor são uma coisa só. A potência na alma é chamada uma "guarda", uma "luz" do espírito, uma "centelha" ou, melhor ainda, fora de qualquer denominação, um quid que transcende "isso" e "aquilo" como o céu transcende a terra (ibid., p.39). Eckhart fala aqui apenas de "desabrochar" e "florescer", não de "arder" e de "queimar", mas a identificação total ao Deus-Pai inclui, sem dúvida, de forma indissolúvel, Engendramento e Expiração. 37 Quanto a esse ponto, remetemos aos textos do Comentário do evangelho de João, que Lossky cita e comenta (op.laud., p.16 sq. e 66 sq.). 38 Pred. 2, loccit., p.43. 39 DW, p.34. 40 Encontramos essa fórmula também em Bertoldo de Moosburg, mas aplicada ao ser das formas na matéria física (Comentário da Elementatio theologica, cod. Oxf. BaHiol 224 b, foI. 4 vb, e cod. Vat.lat. 2192, foL 3 valo Em Thierry de Vrieberg, ela diz respeito à atividade "imanente" de realidades puramente intelectuais (Cf. os textos do De intellectu et intelligibili, in Krebs, Meister Dietrich, Beitrage, V 5-6, Münster, 1906, p.129-130). Lossky, de quem tomamos a primeira referência (mas ele fornece igualmente a segunda) condui que Mestre Eckhart, estendendo a Deus o que seu predecessor dizia acerca das substâncias separadas, inspirou-se provavelmente mais em Thierry do que em Bertoldo (loc. cit., p.117, n. 73). É possível que a fonte comum dos três autores esteja em alguma paráfrase latina de Prodo. 41 Serm./at., 49,3, LW IV, p.428: "Oportet enim prius se toto bullire quidpiam, ut sit in se toto perfectum, exuberans plus quam perfectum". 42 Cf., no Pseudo-Dionísio (Cel. Hier., I, I, 120 b), o uso do particípio phoitosa (" Qualquer processão que, sob o impulso do Pai, revela sua luz quando nos visita generosamente, em retorno, na qualidade de potência unificadora, suscita nossa tensão rumo ao alto e nos converte a uma unidade e à simplicidade deificante do Pai que assemelha" l. 43 Cf. bula In agro, Prop. 1,2 e 3, e, como texto particularmente significativo, o Pred. 10 (In diebus suis, DW I, p. 171 [na tradução Aubier-Molitor, Paris 1942, p.167, a primeira frase é omitida]: "Disse uma vez que Deus cria o mundo em um momento só e que todas as coisas são igualmente nobres nesse dia ... Deus cria o mundo e todas as coisas em um instante presente ... A alma, que se encontra aí em um instante presente, é então que o Pai engendra nela seu filho único, e, no mesmo engendramento, ela é reengendrada em Deus". A continuação evoca essa "potência na alma", que, por ocasião de sua "primeira saída", não alcança Deus em sua bondade e em sua verdade, mas em seguida "se enraíza" nele e o assimila então em sua "unidade", sua "solidão", seu "deserto", seu "fundo próprio").

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44 Cf. Pred. 32 (Beati pauperes), Pfeiffer, p. 280 (trad. Quint, in Deutsche Predigten und Traktate, Munique, 1955, p. 308, trad. Aubier-Molitor, p. 259): "Um grande mestre diz que sua penetração é mais nobre do que sua emanação. Quando emanei de Deus, então todas as coisas disseram: Há um Deus. Ora, isso não pode me tornar bem-aventurado (selig), pois aí não me conheço senão como criatura, mas n3 penetração, onde quero me encontrar na vontade de Deus, e me encontrar vazio (ledig) da vontade de Deus e de todas as suas obras e do próprio Deus, então estou acima de todas as criaturas e não sou Deus nem criatura, mas sou o que fui e o que devo permanecer agora e sempre. Aí recebo uma pressão que deve me conduzir para além de todos os anjos. Nessa pressão recebo uma riqueza tão grande que nada pode me impedir de ser Deus segundo tudo aquilo pelo qual ele é Deus [entendamos: segundo seus modos e suas apropriações], segundo todas as suas obras divinas, pois recebo nessa abertura isso: que Deus e eu somos um. Então, sou o que fui e não diminuo nem aumento, pois sou então uma causa imóvel que move todas as coisas". É daro que para além do "motor imóvel" da Física e mesmo da Metafísica aristotélica, Eckhart evoca aqui o Uno-Pai de sua teologia trinitária. 45 Liber XXIV Philosophorum, ed. Baumker, Beitrage, XXV, p. 207 sq., prop. 2: "Deus est sphoera infinita, cujus centrum est ubique, circumferentia nusquam.". Cf. Alain de Lille, Regulae theologicae, VII, PL 210, cal. 627. 46 Cf, nossos dois estudos acerca da esfera infinita de Pascal, Revue d'histoire de la philosophie et d'histoire génerale de la civilisation, Lille, janeiro-março 1934, fasc. 33, p. 32 sq.; c "Pascal et Ic silence du monde", in Blaise Pascal, Cahiers de Royaumont, I, Paris, 1956, p.342 sq. 47 Ed. Pfeiffer, Pred.IX, p. 47 (ed. Quint, Deutsche Pred. und Trakt., Pred. 28, p.280). 4S Cf. Rede der underscheidunge, IX, XII, XIII. Se é verdade, contudo, que segundo Il Cor., XII, 9 - a virtude se realiza na fraqueza e, por conseguinte, "procede do combate" (ibid, IX, DW V, p. 213), esse não é absolutamente um traço da perfeição como tal, mas apenas uma seqüência da presença do criado na regia dissimilitudinis. Veremos mais adiante que o fogo, antes de ser assimilado, luta contra a madeira. Mas, assim que o dessemelhante se torna, nem sequer semelhante - o que, como sabemos, é ainda "detestável" - mas idêntico, o passado está, de algum modo, abolido (como o futuro, que só tem sentido por um projeto e que desaparece, conseqüentemente, na total renúncia a qualquer vontade própria). Para quem realmente se arrepende, "o pecado não é pecado" e nem mesmo há mais lugar para qualquer penitência (no sentido de um castigo reparador): "Sim, aquele que estivesse verdadeiramente instalado na vontade de Deus não deveria querer que o pecado ao qual sucumbiu não tivesse se produzido [fórmula condenada em Avignon, bula In agro, prop. XIV] ... Se o homem se recupera completamente de seus pecados e deles se afasta inteiramente, então o Deus fiel faz como se o homem jamais tivesse sucumbido ao pecado, e não exige reparação, nem por um só instante, de todos os seus pecados ... Visto que ele o encontra no instante presente bem disposto não considera absolutamente o que foi previamente. Deus é um Deus do presente -lbid., XII, DW V, p. 233-234. O tema teológico do Deus redentor, do inocente que expia os pecados do mundo, desempenha um papel secundário na pregação do dominicano. Se às vezes dá lugar ao tema da fe/ix culpa, é na perspectiva geral que o faz declarar que o Durchbruch é mais nobre do que o Ausfluss, o que implica menos uma valorizado do próprio tempo - o tempo da história sagrada - do que o reconhecimento, como observamos, de uma superioridade ontológica do processo total (bullitio e ebullitio) sobre a Unidade adormecida considerada fora de sua necessária

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coincidência com sua função paterna. Porém, quando cle admite que, pela dupla via da falta e do arrependimento, o zelo do homem c seu amor por Deus podem "crescer" (ibid., p. 234), Eckhart considera, evidentemente, apenas uma fase preparatória, pois a plena Absgeschiedenheit exclui - como veremos - o "mais" e o "menos". 49 Pred. 10, DW 1, p.171. 50 In Ex., n. 91, LW II, p. 94: "Videns, quaerens et amans plus et minus non est divinus. " 51In Ecdi., n. 20, LW lI, p.248: "In divinis quodlibet est in quolibet et maximum in minimo [fórmula que o Cusano destaca no manuscrito em seu poder, e que lhe inspirará longos desenvolvimentos], et sic fructus in flore [segundo Eccli., 24, 23: Flores mei fructus]. Ratio quia deus, ut ait sapiens, est sphoera intellectua/is ro acréscimo vem de Alain de Lille e de São Boaventura J infinita cuius centrum est ubique cum circumferentia et cuius tot sunt circumferentiae quam puncta ut in eodem fibra [prop. XVIII] seribitur.In cuius figura Exodi 16 dicitur de manna divino: Nec qui minus paraveraI repperit minus, e Lucas 10: Marie optimam partem elegit, quia optímum et totum est in parte, fructus in {lore." 52 Pred. 7 (Populi eius) DW I, p.117. 53 Ibid. 54 Reencontramos aqui o sic quod que assinalamos no início desse estudo, a propósito de um texto em In Sapientía. 55 Ibid., p. 118. 56 Cf. Possest (ed. de Basiléia, p. 253. No sermão Ubi est (ed. Koch, Sitzungs~ berichte, n.5-6, p. 90), no qual o nunc aeternitatis é denominado "essência estável do movimento" pois que "todo móvel se move do ser do repouso ao ser do repouso" (de esse quietis ad esse quietís), a dialética motusquies separa, de início, os dois termos para uni-los apenas no infinito. Ela nos parece bastante diferente daquela que, em Eckhart, para além de qualquer "passagem" (mesmo instantânea) de "ser" a "ser", implica, de saída, uma verdadeira coincidência entre o "decurso" e a "paz". 57" Nostra intellectualis natura, cum se Dei vivam imaginem intelliget, potestatem habet continue darior et Deo conformatiar fieri, /icet, cum sit imago, nunquam fiat exemplar aut ereator". 58 Gotl. troest., DW V, p.60. 59 Ibid., p. 61: "Enwaere niht niuwes, sô enwurde niht altes" (cf. a nota 224 do editor, ibid., p. 105). 60 Pred. 10 DWI, p. 167: Fórmula tida como suspeita pelos inquisidorcs do processo (Théry, "Pieces relatives au proces", Archives, I, 1926-1927,11, art. 57, p. 264; "Quotquot autem sunt filii, quas anima parit in eternitate, tunc tamen non est plus quam unus filius, eo quod accidat supra tempus in die eternitatis".) A resposta de Eckhart atenua sensivelmente a doutrina e parece deixar lugar a um tempo próprio do homo viatorque não seria "imagem" mas apenas "à imagem": O Cristo é "o primogênito nascido dentre vários irmãos. Ele é herdeiro, nós somos co-herdeiros, enquanto seus filhos e seus membros, de tal modo que ele é o único salvador" (ibid., p.165). 61 XII!. DVI V, p. 238. 62 Cf. a fórmula anteriormente observada do Deus se tornando "mais do que perfeito" no movimento da "extra-ebulição". 63 Pred. 27 {Euge, serve bone}, Pfeiffer, p. 187 (trad. Quint, p. 277-278). 64 A única diferença notável é o fato de Lossky insistir na preferência de Santo Tomás - tal como ele a expressava, por exemplo, em seu Comentário da Ética, lect. 7 - por uma analogia de proporcionalidade, que alcança uma "bondade inerente às coisas", ao passo que os modos aristotélicos de pregação ab uno principio e ad unam fi-

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nem - que apenas os escolásticos posteriores denominarão "analógicos" -concernem apenas a uma "bondade separada", cuja denominação se mantém extrínseca (Théologie négative et connaissance de Dieu chez Maitre Eckhart, Paris, 1960, p. 312, n. 276); Koch privilegia, ao contrário, e com razão, o papel da analogia chamada de "atribuição" (Zur Analogielehre Meister Eckharts, p. 336). Mas os dois historiadores concordam em situar Eckhart em uma tradição neoplatonizante que corremos o risco de deformar submetendo-a à alternativa entre a univocidade escotista e a analogia tomista. Lossky, que se recusa a atribuir a Eckhart uma confusão grosseira entre o Ipsum Esse e o ens commune, escreve, a propósito da interpretação proposta por M. Galvano delta Volpe, essas linhas, que cremos esclarecedoras quanto à "dialética" eckhartiana: "Simplificado ao extremo, o pensamento de Mestre Eckhart perde, nessa interpretação, a antinomia do transcendente e do imanente que vimos enunciada nas proposições dialéticas acerca do distinto e do indistinto, do dessemelhante e do semelhante. Ora, a dialética desse teólogo, encantada com o mistério da Vida que jorra de seu próprio fundo, borbulha em si mesma e se expande assim na ação criadora, não tem nenhum outro objetivo senão o de mostrar, através de uma série de antíteses, a relação de analogia das criaturas a Deus, relação dinâmica de dependência na qual o que não é acede ao ser, sem se tornar o Ser que é por Ele-mesmo" (loc. cit., p. 307-308). Lossky remete ao estudo de M. Hans Hof (Scinti/la animae, Eine Studie zu einem Grundbegriff in Meister Eckharts Philosophie, Lund-Bonn, 1952) que rejeita, com razão, as interpretações panteístas de H. Ebeling, mas sem marcar suficientemente determinados aspectos "essencialistas" da ontologia eckhartiana. Ainda que ele não professe uma univocidade de tipo escotista, Eckhart usa, com efeito, para "se elevar" rumo ao Ens não cogn·oscível, um conceito geral de ens, que não se reduz a um ser lógico e desrealizado e que, entretanto, "se deixa determinar pelos gêneros e pelas diferenças" (ibid., p. 311-312). 65 ln Sent., I, 19, 5, 2: "Dico quod veritas et bonitas et huiusmodi dicuntur analogice de Deo et creaturis. Unde oportet quod secundum suum esse omnia haec in Deo sint et in creaturis, secundum rationem majoris perfectionis et minoris." 66 Cf. J. Owen, The Doctrine of Being in the Aristotelician Metaphysics, Toronto, 1951, p. 59 sq. 67 In Eccli., n. 52 sq. LW 11, p. 280 sq. Cf. Koch, loco cito p. 330-332. 68 In Eccli., n. 52, LW 11, p. 280-282 [as palavras sublinhadas foram tiradas literalmente do texto de Santo Tomás - In Sento I, 23, 3, 2 - que o acusado da Inquisição oporá a seus censores]: "Rursus nono advertendum est quod distinguuntur haec tria univocum, aequivocum et analogum. Nam aequivoca dividuntur per diversas res significatas, univoca vero per diversas rei differentias, analoga vero non distinguuntur per rerum differentias, sed per modos unius eiusdemque rei simpliciter. Verbi gratia: sanitas una eademque, quae est in animali, ipsa est, non alia, in djaeta et urina, ita quod sanitatis, ut sanitas, nihil prorsus est in diaeta et urina, non plus quam in lapide, sed hoc solo dicitur urina sana quia signidicat illam sanitatem eandem numero quae est in anima/i, sicut circulus vinum, qui nihil vini in se habet. Ens autem sive esse et omnis perfectio, maxime generalis, puta esse, verum, bonum, lux, iustitia et huiusmodi, dicuntur de deo et creatuns analogice. ". Cf. Sermo lat., XLIV, 3, n.446, LW IV, p.372: "Rursus notandum quod omnia parata [Mat., XXII, 4) sunt servire deo, quia res una est in causa et effectu analogis, differens so/um modo ... Sicut ergo circulus vino servit ipsum indicando et urina sanitati animalis, nihil in se penitus sanitatis habens, sic omnis creatura pari modo servit deo. " 69 In Gen., n. 25 (in Koch, loc.laud., p. 341): "Passivum ... clamat et testatur in omni sui perfeaione et bono suimet egestatem et miseriam [grifo nosso], activi vero sui superioris praedicat divitjas et misericordiam. Docet enim naturaliter se id quod habet habere non

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ex se nec ut inhaerens in se, sed mendicasse et accepisse mutuo et continuo accipere quasi in transitu ... et sic non esse suum sed esse ab altero et in altero, cui est omnis honor et gloria, quia il/ius est.". Os termos empregados (mutuo, in transitu) sugerem um tipo de relação "real" que, apesar da inventiva sugestão de M. Gilson (History of Christian Philosophy, New York, 1955, p.441), é bem mais do que uma "imputação" no sentido luterano (Koch, p.337). O in altero remete, aliás, claramente ao in ipso sunt omnia de Rom., XI, 36. 70 Para Eckhart, a fórmula.do Eclesiates: "Aqueles que me comem ainda têm fome." (XXIV, 29), significa, se bem compreendida, "a verdade da analogia de todas as coisas ao próprio Deus ... Elas comem porque são, têm fome porque recebem seu ser de um outro" (In Eccli., n. 53 LW lI, p.282). 7I Cf. Cel. hier., VIII, 2, 240 c, IX, 3, 260 d, e sobretudo XIII, 3, 301 a-c. 72 Eckhart volta freqüentemente a uma imagem tradicional, mas que esclarece bastante sua exegese do Edunt, non esuriunt. Cf. In. Jo, n. 70, LW m, p. 58; In Eccli., n. 46 LW 11, p. 274; Got. troest., DW V, p.36; Prcd. 46 (Beati qui esuriunt), Pfeif., p. 148, trad. Quint, p. 373, etc. É de Santo Tomás que ele toma a comparação do ar iluminado oposta à do ar aquecido. O Doutor Angélico distingue, com efeito, o calor que é "recebido aqui nesse mundo sob o modo em que está no fogo" da luz que "não se enraíza no ar" e não pode ser recebida, no mundo sublunar, "no modo em que está no Sol" (Suma teol., 1\ 104, 1). O De veritate (XXI, 4, 2) aproxima esse último caso daquele da urina em relação à saúde; em ambos os casos, só pode se tratar, de fato, de uma "denominação por referência a outra coisa". A diferença, portanto, é que a urina é apenas um signo, ao passo que o Sol intervém propriamente como causa, visto que ilumina o ar terrestre; é, pois, apenas no caso da urina que Santo Tomás destaca a ausência de "forma inerente" e, ainda que não o precise diretamente, parece admitir a presença transitória, no ar iluminado, de uma espécie de "forma" que não é a do Sol (cf. Koch, loco cito p. 340, n. 31). É o que Mestre Eckhart parece, ao contrário, recusar, já que o "passivo" para ele não tem nada de inherens in se (11, ln Gên., n. 25). Para melhor marcar essa "não-inerência", para opô-Ia ao "dom" total que faz o Pai ao Filho e ao Espírito, sobretudo nos textos de "consolo", nos quais o vocabulário é freqüentemente estóico, ele fala, como Epicteto, de um "empréstimo" sempre revogável (Consol., p. 36) mas que, como graça, tem mais valor do que um "dom" natural. Deve-se observar que em Santo Agostinho (De Gen. ad !it., VIII, 12), a imagem do ar que não "se torna" realmente luminoso, visto que recai na obscuridade assim que o sol desaparece, não se aplica, como sugere Santo Tomás (Suma teol., Ioc. cit.), ao caso de qualquer criatura em sua relação a Deus, mas apenas ao caso do homem justificado por graça e que continua livre, entretanto, para se desviar dessa graça justificante para voltar às trevas sem nada conservar da luz divina. Eckhart toma de Santo Tomás a extensão "ontológica" da fórmula agostiniana, mas conserva, ao mesmo tempo, o sentido religioso que lhe conferia originariamente a doutrina da "iluminação". 73 In Ex., n.117, LW 11, p.112: "Rursus etiam nihil tam dissimile et simile conjunctim alterL .. quam deus et creatura. Quid enim tam dissimile et simile alteri quam id, cuius dissimilitudo est ipsa similitudo, cuius indistinctio est ipsa distinctio? .. Quia indistinctione distinguitur, dissimilitudine similatur, quanto dissimilius, tanto similius." Cf. In Sap., Théry, Archives, IV, p. 253 a 256: "Nimic tam distictum a numero sive numerabili, creato seilicet, sicut Deus et nichil tamen tam indistinctum ... Omne quod indistinctione distinguitur, quanto est indistictius, tanto est distinctius: distinguitur enim ipsa indistinctione. Et e converso, quanto distinctius, tanto distinctius, ut prius ... " 74 Pred. 16 a (Quasi vas), DW I, p. 259. (Cf. a tradução latina em "Edition critique des pieces", Théry, p. 180: "Unde subditur de hoc imagine quod... illud quod ibi

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exit est illud quod intus manet, et id ipsum quod intus manet est i/lud quod ibi exit"). As três similitudes utilizadas são as da imagem no espelho, do muro no olho e do ramo saindo da árvore. Mas trata-se da ymago como fi/ius patris e como sapientia patris tal como nasce na alma deificada, conjuntamente intus e extra. 75 Pced. 17 (Quid odit), DW I, p. 285. 76 Pred. 17 (Quid adit), DW I, p. 289; Pred. 21 (Unus deus), p. 360. No Pred. 22 (Ave Maria), p. 375, Eckhart afirma que o Anjo da Anunciação sente-se excessivamente "pequeno" para "nomear" a Mãe de Deus, porém, é a um "grande rebanho" que se dirige quando fala a Maria: o rebanho de "todas as almas boas que desejam Deus." 77 Pred. 3 (Nunc seio vere), p. 54. É por isso que o Anjo é enviado à alma para conduzi-la à Imagem original segundo a qual ele mesmo foi formado (cf. Pred. 20 b,

Sobre os omnia, cf. Lossky, op. cit., p. 80 sq. Gregório de Nissa, De opi( hom., VII sq., 140 d sq. Cf. Cícero, De natura deorum, n, 151 e - sobre Poseidônio e a invenção das técnicas - Sêneca, Ad Luci/., 98

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Ep. Xc. Nicolau de Cusa, Ad Nicol. Albergati, ed. citada, & 15, p. 32. De Beryllo, VI. Cf. Asc/ep., l, 8. 102 E. Bloch, Prinzip Hoffnung, l.eipzig, 1954. 103 Cf. In]o .. n. 185, LW m, p.159; Serm.lat. XXV, 2, LW IV, p. 240 etc. !()()

101

Homo quidam, p. 348). iH Pred. 18 (Adolescens, tibi dica), p. 300-301. 79 Pred. 3, p. 55. !lO Pred. 20 a (Homo quidam), p. 337. !lI Pred. 2 (Intravit Jesus), p. 27. R2 Pred. 22, p. 380-381. Cf. bula In agro, art. XXVII. 83 Ibid., p. 380. Pred. 20 b, p. 348. Na Pred 20 a, p. 332, tendo lembrado que o servidor que preparou a refeição da qual fala Lucas (XIV, 16) pode simbolizar o predicante ou o Anjo, Eckhart acrescenta que ele significa também "a centelha criada na alma" e que "é uma luz". S4 Rede der underscheidunge, X, DW V, p. 223-224: "Der mensche sol williclichen beraubet sín aller dinge durch got und in der minne sich verwegen und getroesten alles trôstes von minne ... Du 50ft aber wizzen, das die vriunde gotes niemer áne trôst sin, wan swaz got wil, das ist ir aller hoehster trôst, ez si trôst oder untrôst." S5 Gotl. troest., DW V, p. 33-34. (Cf. Pred. 11, Impletum est, p. 180, na qual o papel do "tempo" é determinado:" Ais das viur das holz in sich ziehen wil und sich wider in das ho/z, sô vindet ez im das holz unglich. Des hoeret dá zit zuo." K6 Consol., p. 15. 87 Ibid., p. 46. S8 Ibid., p. 45. 89 Essa ação da "natureza superior" vai contra todas as leis da natureza inferior. Usando aqui uma imagem puramente simbólica cujo sentido "físico" talvez não devesse ser buscado com tanto afinco, Eckhart a compara à influência da Lua que força a água do rio para montante de seu curso, através de um movimento "contra natureza", porém mais fácil e mais alegre do que sua queda natural rio abaixo (ibid., p. 45). Observaremos que aqui Ausfluss (contrariamente ao que sugere a tradução de Mme AnceletHustache, Maftre Eckhart et la mystique rhénane, Paris, 1956, p. 95) não significa emanação, mas, antes, "ascensão rio acima". 90 "Aufheben". 91 ConsoI., p. 45. 92 Discernement, XII, DW V, p.233. 93 Pedro, 242 e. 94 Banquete, 202 d-e. 9S Ibid., 203 a sq. Cf. Plotino, Enéadas, 11, 3. 96 Ainda que transpostas em uma perspectiva completamente diferente, as célebres fórmulas de Aristóteles (Met. ", 7, 1072 b) só adquirem seu sentido pleno quando ligadas ao tema platônico do Eros. 97

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Philip., 11, 8. Maurice de Gandillac

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VIII. DUPLA FACE DA FILOSOFIA NO "CONVIVIO" DE DANTE*

Sob a pena de Dante - mesmo quando este se utiliza da prosa as noções abstratas raramente permanecem sem forma. Para a isso as tradições antigas e medievais forneceram-lhe um sortimento, por vezes um pouco esgotado, de imagens e de símbolos. Contudo, para além das frias alegorias, herdadas de Alain de Lille ou de João de Meung, e de todo o arsenal mitológico de Virgílio ou de Ovídio, ele dá corpo às figuras que povoam seu inferno, seu purgatório e até mesmo seu paraíso, mais substanciais do que "sombras" e menos vaporosas do que "espíritos", elevadas no entanto a um nível significativo que ultrapassa sua humanidade sofredora ou beatificada. Inversamente, a donna gentile do Convivio identifica-se primeiramente, por ficção literária, com a donna pietosa da Vita Nuova, com essa jovem florentina que, após a morte de Beatriz, sorri um dia do alto de sua janela 1 ao poeta abatido pela dor. Mas, em seu novo papel, à sua tarefa de consoladora, a "nobre dama" acrescenta duas funções cuja unidade, por diversas vezes, se torna problemática. A herança da Sabedoria da Escritura - que justifica um sentido um tanto arcaico da palavra "filosofia"2 - soma-se, de fato, com as sete artes liberais da antiga paideia, todo o corpus aristotélico das ciências teóricas e práticas (até mesmo poéticas). Assim, o Convivia - com apenas um quarto de seu projeto original realizado - suscita interpretações divergentes. Sem pretender dar a última palavra sobre dessa discutida questão, gostaríamos de reler alguns textos, aproximá-los daqueles da Monarchia e da Cammedia, determinar uma dupla orientação e o esboço de uma conciliação que Dante parece ter de algum modo presumido, ainda que sem plena consciência. Ocupamo-nos desse primeiro delineamento juntamente com nosso colega e amigo Paul Wilpert durante o mês de setembro de 1966, três meses antes de sua morte. Esperávamos muito de seus conselhos; e é à sua memória que dedicamos estas notas de trabalho. A Dama Filosofia, tal como se apresenta a Boécio na prisão, é uma ama-de-leite de idade respeitável, que se opõe expressamente às jovens sedutoras. Poeta cortês, Dante a imagina, ao contrário, com os traços de uma donzela tão agradável que, nela, seríamos tentados a ver o símbolo de um .. Artigo publicado em Archiv {ür Geschichte der Philosophie, número consagrado à memória de Paul Wilpert, tomo 50, caderno 112, Walter de Gruyter, Berlim 1968 (p.165-180). Gêneses da Modernidade

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novo amor profano, uma dessas rivais que fará com que Beatriz o censure por tê-las seguido per via non vera 3 . Em uma obra que é, nesse campo, o guia mais confiável, Etienne Gilson, ao afirmar que Beatriz permanece como a inspiradora secreta do Convivio4, parece admitir um "circuito Beatriz filosofia - Beatriz,,5 que a própria cronologia das obras torna difícil situar 6. Mais do que uma dupla evolução, tudo sugere um conflito permanente, porém implícito, que Dante espera ultrapassar descrevendo a filosofia como uma "rainha" (análoga às esposas de Salomão), mas a qual não usurpa 7 absolutamente o papel único da "pomba" cantada pelo Cântico • Qualquer que seja o papel central que desempenha, em sua obra, o terna das competências 8, no momento em que o poeta apresenta sua nova amante corno figlia di Dia, figlia de lo imperadore de lo univers0 9, o faz menos para afastá-la de suas origens sobrenaturais do que, ao contrário, para melhor exaltá-las. De acordo com os contextos, são enfatizados a autonomia da reflexão filosófica ou o seu enraizamento direto em Deus, mas os dois temas estão ligados, no Convivia, de maneira bastante íntima. Se Beatriz sai de cena no meio do segundo Livro, certamente não é porque se tornaria inoportuna ao autor, lembrando-lhe não se sabe qual promessa traída 10, mas antes - como já o indicava a frase da Vita Nova, talvez ajustada demasiado tarde à ficção do Convivia 11 - porque Dante não se sente ainda digno para cantar como ela merece a santa que o aguarda em um outro mundo, di carne a spirto salita. É precisamente oferecendo um modesto banquete aOS profanos que não haviam tido, como ele, a sorte de freqüentar as scuole de li religiosi e as disputazioni de le filosofanti 12 , que ele se prepara para urna tarefa mais elevada. Nada sugere que tal propedêutica tenha algo a ver com a selva oscura 13 . Além disso, mesmo que a donna gentile não figure mais, em pessoa, até os últimos cantos da Commedia, o poeta usará sem nenhuma reticência o saber que ela lhe havia ensinado. A via non vera não é evidentemente a desses silogismos que, mesmo invidiosi, não impedem de modo algum que a luce etterna di Sigieri brilhe, com as de Alberto di Colonia e de Tomás de Aquino, lá onde "o maior ministro da natureza ... com sua luz mede o tempo para nós"(lo ministro maggior de la natura ... cal sua lume il tempo ne misura)14; ela tampouco é o ensinamento moral do "mestre daqueles que sabem" (maestro di calor che sanno), do Estagirita, mentor desses sábios gregos, latinos e árabes que giram em torno dele, em companhia de bravos e de heróis trágicos, em um vestíbulo do inferno que mais se assemelha aos Campos-Elísios I5 . Os descaminhos que afligem Beatriz e justificam a missão confiada a Virgílio - quer dizer, a um poeta pagão!- são mais os da sensualidade 16 do que os do "filosofismo". Muito ao contrário, desde o início, a nobre dama que consola Boécio não tem outra função senão a de arrancar o poeta das ligações demasiadamente carnais, ainda que insidio168

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samente disfarçados em ardentes lembranças da Beatriz terrestre, e a de arrastá-lo rumo a um amor mais digno da idade "viril"17. Ascese ainda insuficiente, sem dúvida - e o fato de o Convivia ter permanecido tão truncado talvez seja um testemunho disso - mas que não deve ser confundida com uma errância culposa visto que se situa em um caminho ascendente e que será o que tornará possível a analogia da Commedia. É verdade que Dante abusa às vezes de termos como "milagre" e "maravilhoso", e pode-se sem dúvida hesitar em interpretar literalmente o poema Vai ch'entendendo no qual os "motores" (moviteri) do "terceiro céu" (terzio cielo) aparecem como os introdutores e os mandantes "da nobilissima e belissima Filosofia" 1oS, a ênfase é, no mínimo, pouco contestável quando, ao anúncio dessa missão, o poeta responde pelos termos evangélicos do Fiat mariaP9. No sistema de correspondências que o Convivio admite entre esferas astrais e artes liberais, o céu de Vênus é aquele da retórica, e é efetivamente, pela doçura de seus discursos, que Boécio e Cícero - através da Consolatio e da De Amicitia - prepararam Dante para acolher a Dama Filosofia. Não é de surpreender, portanto, que ele use, por sua vez, metáforas mais ousadas, mais literárias talvez do que teológicas. Não esqueçamos, contudo, o nível bastante elevado no qual se situa, para ele, "a Dama plena de doçura, vestida de honestidade, de admirável saber, gloriosa de liberdade" (la donna piena di dolcezza, ornata d'onestade, mirabile di savere, gloriosa di libertade2o ). Dentre os problemas que a função atribuída a essa rainha levanta, tomemos sobretudo dois paradoxos que Etienne Gilson particularmente destacou. O primeiro concerne às restrições trazidas ao poder cognitivo do intelecto neste mundo. Seremos tentados a evocar, a esse propósito, aquilo que Duns Escoto afirmará quanto ao estatuto da metafísica quoad nos, e a descrever certos balbucios da donna gentile como os de uma "teologia malograda "21; pelo menos enfatiza-se deliberadamente o corte, quase platônico, entre o sensível e o inteligível 22 . Por outro lado, na perspectiva do Convivia, é o céu dos fixos que controla simultaneamente a física e a metafísica, mas a ética depende do cristalino, isto é, do primeiro móvel; ela é, portanto, elevada ao nível supremo dos saberes naturais 23 . Acerca desses dois pontos, e acerca de alguns outros, seria necessário abusar das piae interpretationes para fazer de Dante um tomista fiel, mas estaríamos equivocados em exigir de um poeta excessivo rigor técnico e, às vezes, o contexto corrige consideravelmente fórmulas que parecem a princípio insólitas. É verdade, por exemplo, que no fim das contas a Revelação se apresenta como-a mais segura referência no que concerne à imortalidade da alma, verdade essencial para o autor, que só pode ocupar-se em paz da filosofia se Beatriz velar sempre por ele; mas a demonstração racional que ele defende - baseada no consenso universal, no princípio de uma natureGêneses da Modernidade

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za que ignora qualquer operação vã24 (e, em uma outra passagem que dá pleno valor às precedentes), no "'supremo desejo de toda coisa, e primeiro dom da natureza" (samma desiderio de ciascuna cosa, e primo de la natura doto), entendamos: «o retorno à sua origem" (lo ritornare a lo suo principia)25é por si mesma de um rigor que Dante considera bastante convincente26 . Quando ele destaca, aliás, que para nós as substâncias separadas, em geral só são cognoscíveis neste mundo por seus efeitos27, conforma-se ao ensinamento tomista 28 . O culto que consagrou à donna gentile e o papel maravilhoso que esta desempenha em sua vida não implicam de forma alguma que a seus olhos a inteligência humana possa chegar, por suas próprias forças, a um saber total. Se evita, contudo, definir a filosofia como ancilla theologiae, é, sem dúvida, devido à sua dignidade real, mas também porque a teologia, tal como a concebe, não tem praticamente necessidade de servidores. Seria difícil encontrar, no Convivio, um lugar explicitamente reservado à doctrina sacra no sentido em que a Suma Teológica a compreendia, ciência subalterna em relação à visão dos bem-aventurados mas especulando, neste mundo, por meios humanos, acerca do fundamento da fé 29 . Pelo menos em Dante esse tipo de saber quase não se distingue dos outros usos do entendimento em seu estatuto terrestre. É no mesmo "céu" do Paradiso que - sem desconsiderar as diferenças de função, mas tampouco sem supervalorizá-las 3o - ele coloca lado a lado Santo Tomás e Siger de Brabante, em companhia de Graciano, de Dionísio, de Isidoro, de Beda e do vitorino Ricardo 3 !, deixando para São Bernardo o privilégio de fazer ascender o viajante, muito mais tarde, ao domínio da pura contemplaçã0 32 • Comparados ao luogo quieto e pacifico, no qual vivem os spiriti beati33 , os debates dos filosofanti - como se fossem professores na Sorbonne - continuam envolvidos em muitas polêmicas para que uma querela de precedência universitária entre "cultores da arte" e «teólogos" possa parecer derrisória. Entretanto, é a "pomba da paz" que, do alto e de longe, orienta todo o trabalho do intelecto, e eis o que justifica o papel eminente reservado à ética. A donna gentile tem por tarefa essencial mostrar aos homens a arte de uma vida honesta. Não certamente o contemptus mundi - a esse respeito Dante é bem menos "platonizante" do que será Petrarca. Sem negligenciar os saberes teóricos - mas na medida em que estes levam a esse fim prático - , a filosofia conduz antes de tudo à "beatitude", e sua função primeira é a de ensinar como se hierarquizam os objetos sucessivos que a criança, o adolescente, o homem maduro e o velho desejam; Dante os compara aos planos superpostos de uma pirâmide, na qual cada um esconde a visão do seguinte, até à última base, realmente divina 34 • Trata-se menos de um corte abrupto entre aparência e verdade do que de um escalonamento de bens, cujo valor os mais humildes, em determinadas época da vida ou em determinada condição social, conservam; mas tudo se or170

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dena para um fim supremo. E nada seria mais simples se esse próprio fim fosse completamente celeste ou deliberadamente terrestre. O paradoxo é que Dante, como veremos, imagina duas beatitudes e postula sua harmonia mais do que a demonstra. Ele menciona elogiosamente os sábios que desprezam os cuidados do corpo e fazem passar ao segundo plano as exigências da cidade humana 35 , mas atribui um valor muito grande à comunidade política - estando ela ampliada, em seu quadro imperial, às dimensões da Terra inteira - para não preferir uma moral de outro tipo. Mas quando quer universalizar essa respublica que o preceptor de Alexandre havia concebido ainda em um quadro limitado, é então de Aristóteles que toma sua definição do homem (e da sociedade). Se todos os membros da "família filosófica" não cessam, nos Limbos, de "admirar" e de "honrar" o "mestre daqueles que sabem"36, se daí para frente, em virtude de uma "opinião quase católica", o Estagirita é efetivamente dignissimo di fede e d'obedienza, na mesma medida em que - em seu próprio terreno, o da moral-, completando as lições daqueles que o precederam e mesmo, antecipadamente, aquelas de seus sucessores 37 , ele definiu claramente o fim ao quall'uomo à ordinato in quanti elle à uomo 38 . Em outros domínios, Ptolomeu, Donato, Graciano (dentre tantos outros) são certamente guias mais seguros e autoridades incontestáveis; aqui o "Filósofo" continua sem rival e, nesse ponto, do Convivia à Commedia, Dante não mudará de opinião; por toda parte, tanto em prosa quanto em verso, ele exporá, com a mesma preocupação de precisão e com a mesma reverência, a teoria do hábito e das virtudes 39 . É possível que, terminado o Convivia, tenha ele mesmo comentado, livro após livro, todas as virtudes definidas na Ética a Nicômaco, e a exegese proposta em uma carta (cuja autenticidade na verdade é discutível) sugere que a Commedia, ainda que vise a uma "felicidade (felicitas) superior", situa-se, também ela, em uma ordem de ação moral (marale negotium)4o. De qualquer modo, o próprio plano do Inferno se afina muito bem com o esquema do Convivio e, apesar da complexidade de seus gironi e de seus bolge, os nove círculos infernais correspondem - aproximadamente aos vinte e dois vícios, "inimigos colaterais" das onze virtudes enumeradas por Aristóteles41 • A luxúria e a gula são certamente os únicos "extremos" aos quais um poeta cristão pode opor a temperança, e a "insensibilidade" quase não tem lugar aqui, mas a liberalidade, a magnificência e a grandeza de alma mantêm seu valor de "meio" entre a avareza e a prodigalidade, punidas no mesmo círcul042 , e a mansidão permanece como uma justa medida entre a cólera e a acedia43 . Quanto aos violentos do sétimo círculo, seu erro comum é uma ofensa à justiça 4 4, assim como uma alteração da natureza 45 . A propósito da usura, Dante remete expressamente à Física, precisando assim o sentido de "Filosofia"46 como sabedoria prátiGêneses da Modernidade

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ca, baseada em uma análise dos fins humanos, ela mesma inseparável de uma definição da physis. Mesmo no Paraíso onde - renunciando à sua primeira imagem do empíreo - o poeta distribui os eleitos através das esferas astronômicas, domicílios e reconciliações obedecem sempre a uma regra funcional. Paralelas, as vocações de São Domingos e de São Francisco continuam distintas, uma orientada sobretudo para a o ensinamento teórico (dottrina)47, a outra centrada na "sua dama mais querida, sua dona Pobreza" (la sua piu cara donna Povertà)48. Apesar de suas divergências com os milenaristas, Boaventura encontra lugar no mesmo céu que o eremita Joaquim, com Tomás e Siger, mas não Hubertino e Mateus, acusados de terem deixado a regra enfraquecer ou de a terem, ao contrário, desejado muito rigorosa 49 . Seria necessário dispor de mais tempo para que se fizesse o inventário dos temas aristotélicos que, definidos quanto ao essencial no Convivia, assumem um aspecto mais tecnicamente escolar na Monarchia so e reaparecem ao longo da Commedia. Ao lado da ação "inclinante" dos astros, Dante destaca, por exemplo, a importância da razão diretriz do livre-arbítrio S1 , mas, para ele, é igualmente fundamental a dupla necessidade de leis justas e de monarcas prudentes s2 . A regra das funções - tendo por corolário a seleção das aptidões s3 - permanece sempre, como sabemos, como primeiro critério. Se o imperador não deve invadir o domínio do saber filosófico s 4, o papa vai além de seus direitos quando intervém ali onde, desde a origem e por delegação divina, apenas o imperador é senhor s5 . No plano propriamente moral- tratando-se do homem "enquanto homem" - parece que o primado do "Filósofo" não é em nenhum momento posto em dúvida. E, sem falar de "averroísmo", surpreende-nos que, em um tempo no qual o que se denominou "o nascimento do espírito leigo"56 já suscite conflitos que serão, na história moderna, fatores decisivos de desunião, Dante, tão atento à disputa das duas Romas, quase não perceba a oposição possível entre a ética aristotélica e o ideal evangélico. Seria suficiente dizer que César governaria melhor se tivesse em relação a Pedro a "reverência" que um filho mais velho deve a seu paiS? e que, assim como a vida contemplativa é excelente, boa é a vida ativa, ambas procedendo da mesma nobreza s8 ? Ou ainda que os Anjos encarregados de reger as esferas celestes congreguem harmoniosamente em si as tarefas da theoria e as da praxis? Mas justamente o mesmo texto enfatiza, no homem, a dualidade entre duas beatitudes, a da vita civile e a da "contemplativa"s9. Já difícil no nível da vida privada, a conciliação não se torna mais difícil ainda para essa respublica unius populi com a qual o poeta sonha na época do efêmero acordo entre Henrique VII e o papa Clementé O, e que deve apenas atualizar plenamente as virtudes do "intelecto possível"?61 O argumento de que a Lua possua sua luz específica (perceptível no momento dos eclip172

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ses), que ao menos ela tenha sido criada diretamente por Deus e que sua rotação proceda de um motor próprio, não seria válido se o próprio autor não acrescentasse honestamente:"Ela só tem uma luz abundante porque a recebe do Sol" (Non habet lu cem abundanter, nisi ut a sole recipit)62, o que justifica em suma o poder indireto, fonte de tantos conflitos. Se, a rigor, é possível distinguir, dentre as atribuições pontificais, o que dependeria do Cristo e aquilo que só teria referência a Pedro63 , até mesmo circunscrever um domínio "paternal", puramente carismático, sem nenhum traço de dominatio, a divisão das competências entre o magistério espiritual e a autoridade filosófica parece ainda mais delicada. Para Dante é efetivamente o filósofo que define o "melhor dos homens" (optimus homo), quer dizer, a "medida" (mensura) à qual "os homens devem ser reduzidos enquanto homens" (habentreduci prout sunt homines)64; e nem mesmo seria necessário um imperador se esses homens estivessem suficientemente afastados da animalidade para alcançar por simples persuasão a "beatitude daqui deste mundo, a qual consÍste na operação de sua própria virtude e tem como figura o paraíso terrestre" (beatitudo huius uite, que in operatione proprie uietutis consistit. et per terrestrem paradisum figuratur). Se lhe é necessário apoiar-se em um poder impositivo, é ele, de qualquer modo, que guia o soberano, como o Espírito Santo auxilia o papa a orientar os fiéis, "segundo a Revelação, para a via eterna" (secundum reuelata, ad uitam eternam). Mas como acreditar numa harmonia preestabelecida entre os meios concretos que devem conduzir o homem, no tempo da história, rumo a dois tipos de paraíso? Através de belas frases equilibradas, que justapõem philosophica e spiritualia documenta, aprendemos que, como o segundo leva à beatitude celeste, o primeiro fornece a chave de uma beatitude terrestre, graças às "conclusões" e aos" meios" da "razão humana"; e Dante afirma que essa própria razão per philosophos tota nobis innotuitf>5. Concluiremos então que, para ele, "a filosofia nos ensina a verdade total acerca do fim natural do homem"66? O texto diz apenas - o que já é muito - que os filósofos nos fizeram conhecer "toda" a razão humana, não expressamente que essa razão contenha "todos" os meios da plena beatitude humana. Como se sabe, é necessário, além disso, a arte prática de um chefe de Estado, pois as mais nobres lições morais seriam vãs sem um regime efetivo de paz e de liberdade. Ora, as disposições concretas que, na república dos homens, asseguram a ordem necessária, estão em consonância com a Providência universal; requerem que o romanus princeps dependa, não apenas do filósofo que o instrui mas, primeiramente, de Deus, que é seu verdadeiro "eleitor" e que não cessa de fazer descer sobre ele as torrentes de sua bondadé 7 . Estamos longe, como se vê, de uma visão racionalista na qual o bem comum, concebido fora de qualquer transcendência, estaria garantido e definido apenas pelas forças do homem. Gêneses da Modernidade

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Apesar de certas fórmulas incisivas, cujo tom deriva do gênero polêmico, Dante não imagina uma ordem da natureza que fosse de algum modo separada da ordem da graça. Certamente nada é mais "natural" do que o movimento que leva os homens a se agregarem; esse processo, entretanto, só é possível e eficaz na medida em que se harmoniza com a "intenção do Primeiro Agente, que é Deus" (intentio primiagentis, qui Deus esiJ8). Quando eles vivem virtuosamente, na tranqüilidade de uma paz que um imperador coroado pelo papa assegura, a obra própria dos cidadãos da respublica é chamada "quase divina"69. Em um ambiente de cristandade, e para um homem como Dante, a autoridade da Ética a Nicômaco não acarreta a dessacralização, nem do ofício monárquico nem da função docente. Antes de tudo foi, efetivamente, nas "escolas de religiosos" que o poeta recolheu as migalhas do banquete que oferece a leitores leigos. Certas proposições condenadas, alguns decênios antes, pelo bispo de Paris sugerem que alguns já tinham podido conceber uma felicidade puramente terrestre que escaparia a qualquer regulação religiosa; em todo caso, não é certamente sem alguma razão que um século mais tarde Gerson acusará de naturalismo o Roman de la Rose. Mesmo para criticá-las, o autor do Convivia parece ignorar tais tentações. Toda a Commedia exclui, aliás, a interpretação literalista de fórmulas que, para melhor combater as usurpações políticas do papa, expõem em termos separatistas a divisão das competências entre os responsáveis pela dupla felicidade humana; aliás, mesmo quando insiste mais na autonomia do temporal, Dante reconhece expressamente que "a felicidade mortal está de alguma maneira subordinada à felicidade imortal" e, apesar da restrição do quodammodo (que indica apenas que a ordem propriamente humana guarda sua autonomia em relação a outros pontos de vista), Dante leva a sério, não duvidemos, a "reverência filial que César deve a Pedro"7o. Se não fosse assim, a aversão do poeta florentino pelos reis capetianos não seria suficiente para explicar sua indignação contra o atentado de Agnanj71 , ainda mais característico visto que Dante denunciou com vigor os erros pessoais de Bonifácio 72 e todas as conseqüências de uma suposta doação constantina que fez do papa um ricco padre73 . Quando um soberano temporal se arroga o poder de atacar não apenas o homem privado, mas o pontífice como tal, então a distinção entre o Cristo e seu vicário se atenua. Um Marsilio de Pádua será menos respeitoso, mas isso porque Dante tem provavelmente uma outra idéia da filosofia. Consideradas fora de seu contexto, as fórmulas que enfatizam a independência da ética falseariam mais gravemente a imagem da donna gentile do que as asserções que, na mesma obra, descrevem a filosofia em termos "teológicos". Mas nenhuma delas deve ser compreendida de maneira isolada. Quer Dante tenha tido ou não consciência disso, elas são para ele mais complementares do que exclusivas. Desde que o problema se co-

loca em termos classicamente tomistas, fica-se condenado, parece, a oscilar entre respostas contraditórias. Pelo menos, ao lado de temas aristotélicos (mas transformando-os de dentro), deve-se reconhecer a presença contÍnua de uma outra visão, de inspiração escrituraI, com ressonâncias neoplatônicas. Nessa perspectiva, uma luz vinda do além é transmitida até o nível terrestre, passando primeiramente de esfera em esfera; dentre as Inteligências separadas, nenhuma preenche uma função que sugira interpretar em um sentido muito menos metafórico do que poderíamos imaginar a princípio o discurso do spiritel d'amor gentile no poema Voi ch'entendendo. Conhecendo de fato como o mostra o Livre des Causes 74, "essa forma humana tal como foi intencionamente organizada no pensamento divino" (Ia forma umana, in quanto ella per intenzione regolata ne la divina mente), os "pensamentos angélicos que produzem tais coisas em colaboração com o céu" (menti angeliche che fabbricana col cielo queste cose di qua guisa), têm como missão engendrá-la neste mundo, tanto quanto o permitam as imperfeições da "matéria" cujo papel, segundo Santo Tomás, é "individualizar" (de la materia la quale individuaiS). Nessa perspectiva, que mescla diversos vocabulários76 ,a própria filosofia assemelha-se à alma, que é simultaneamente "ato" e "causa" do corpo, e lhe transmite uma parte da "bondade que ela recebe de sua própria causa", quer dizer do próprio Deus. Esse dom transcende bastante o "dom de nossa natureza" (lo debito de la natura nostra) para que se possa falar de uma espécie de "graça" que prepara o homem para a ultrapassagem de si mesmo, por intermédio dessa donna da Dia beneficiata et fatta nobile cosa 77 , Testemunho oferecido graciosamente"a todos os que vivem nos dias de hoje"78, a nobre Dama apresenta o maravilhoso espetáculo de uma harmonia entre as virtudes cardeais que apenas o verdadeiro amor permite 79 ; mas esse próprio amor é inseparável do conhecimento e é por isso que Filosofia se chama donna de lo 'ntelett0 80 . Pitágoras, que foi o primeiro a nomeá-la, quis muito justamente que seu próprio nome remetesse simultaneamente ao amor que engendra o desejo de saber, e ao saber nascido em cada um desse desej os1. Sapienza procedendo daquela que, desde a origem, proclama: "eu amo quem me ama"S2, a "primeira e verdadeira filosofia"83, mostra assim por uma via "natural" e contudo supra-humana, a (vera felicitate che per contemplazione de la veritade s'acquista)84. Irradiação de um Sol inteligível que ilumina o mundo inteir0 85 , ela se oferece a Deus como o mais belo produto de sua própria reflexã0 86 ; os homens participam dessa visão apenas de longe e por alguns instantes; a maioria se contenta em "suspirar" ao evocá-lo como amantes indignos que sonham com sua dama" longínqua" 87. O deslizamento da sabedoria propriamente filosófica à contemplação trinitária que tentará descrever os últimos cantos do Paradiso é aqui

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imperceptível. Se o universo da Commedia permanece, sob muitos aspectos, aristotélico, com sua superposição de esferas e de zonas que dependem todas de um primeiro motor mas que conservam seu valor próprio de causas segundas, com sua mistura de determinação e de liberdade, se mesmo o punto do qual depende il dela e tutta la natura 88 corresponde, de uma certa maneira, ao ato puro que move o céu por puro amor, um esboço de síntese entre o Estagirita e Plotino aparecerá nessa curiosa passagem na qual Beatriz desenvolve a imagem dos círculos cada vez menos rápidos que, nascidos do "ponto" divino, se ampliariam em torno dele. Ao poeta surpreso, que não reconhece em tal visão o universo de Aristóteles, ela declara então que os espíritos mais próximos do centro irradiante devem mover justamente as esferas mais volumosas e mais distanciadas da Terra 89. Nessa perspectiva sincretista, a Commedia será, de certo modo, o poema que canta o retorno a Deus, senão de todas as criaturas dispersas 90 , pelo menos daquelas que não se recusam deliberadamente ao apelo de seus anjos protetores. Entre a primeira aparição da donna gentile e a última epifania de Beatriz no décimo céu, quase não é possível ver onde se situaria exatamente o corte entre filosofia e teologia. Assim, longe de se opor, mas também sem se confundir, as duas "beatitudes" se unem harmoniosamente em um movimento comum, e esse "desejo elevado" (alto disio), acerca do qual o poeta nos diz que ele o infiamme e o urge a conhecer tudo aquilo que se oferece à sua visão 91, procede sem nenhuma dúvida da mesma fonte fecunda que, no início do terceiro livro do Convivia, no poema Amor che ne la mente, fazia descer uma virtude divina na graciosa imagem de uma donna gentile 92 . Do mesmo modo, diríamos nós, com um dantólogo tão considerado quanto Renucci, que Dante jamais "dirige uma tradição contra a outra" e que finalmente "tudo é acolhido e conflui em seu poema para uma representação" na qual, não apenas, como o enfatiza nosso colega, "o passado e o futuro" mas, acrescentaríamos, a natureza e a graça, a razão e a fé "são agenciados segundo uma ordem simultaneamente providencial e, quase no último mistério, inteligível"93, que é o signo específico da presença revelada de Deus"94.

1 Vita nova, XXXV, 1-2. 2 Cf., por exemplo, Gregório de Nissa, Vita Moysi, I; 19, 30Sc,- lI, 200, 392c, 11,305, 425a, - Pseudo Dionísio Aeropagita, fcd. Hier., VI, III, 2, 533d, - Ep. VII, 2, 10S0b. -' "Si tosto in su la soglia fui Di mia seconda etade et mutai vita,

Questi si to/se a me, e diessi altrui. Quando di carne a spirto era safita, E bel/eza e virtit cresciuta m'era, Fu'io a [ui men cara e men gradita; E volse i passi suoi per via non vera, Imagini di ben seguendo false, Che nulla promission rendono intera". (Purg., XXX, 124-132). 4 E. Gilson, Dante et la Phi/osophie, Paris, 1939, p.l0l. 5 Ibid., p. 94. 6 Os primeiros cantos do Inferno são contemporâneos ao Convivia (e anteriores à Monarchia). Cf. P. Renucci, Dante disciple et juge du monde gréco-fatin, Paris, 1954, p.64. 7 Conv., 11, XIV, 20 (d. Cant., VI, 9). 8 Mas permanece exatamente assim nos textos posteriores ao famoso "circuito". 9 Conv., 11, XII, 9 e XV, 12. 10 Ninguém admite mais, com Mandonnet (Dante le Théologien, Paris 1934), que Beatriz simbolize a teologia e mesmo a visão beatífica, e que seu reencontro (alegórico) tenha significado para o jovem Dante um noviciato edesi,istico. Cf. E. Gilson, loco cit., p. 3-51. 11 lo vidi code che mi fecere proporre di non dire piu di questa benedetta infino a tanto che io potesse piit degnamente trattare di lei (Vita Nova, XLII, 1). 12 Conv., I, 1,4-7 e 11, XII, 7. 13 Inf., I, 2. 14 Par., X, 28-30,97-99,136-138. 15 Inf., IV, 131-144. Transposição da Atenas celeste evocada em Conv., m, XIV, 15, onde lo Stoici e Peripatetici e Epicurii, per la Iuce de la veritade etterna, in uno volere concordevolemente concorrono. Em um poema teológico, Dante não podia situar no céu senão "batizados", mas aos pagãos e aos muçulmanos ele reserva o destino que foi o dos patriarcas antes da vinda de Cristo. 16 Inf., 11, 61-69 e Purg., XXX, 109 sq. - E. Gilson (op. cit., p. 99, n.l) invoca, contra a interpretação de Miche!e Barbi, os versos 85-90, nos quais Beatriz fala da scuola que o poeta havia seguitata e de uma via mais distante da "divina" do que da terra il cieI che piu alto festina. Trata-se aqui menos da filosofia como tal do que de uma etapa ultrapassada, a do sensível em geral; seria necessário beber a água do Lete (e a do Êmeno) para se elevar ao nível das mais altas contemplações. 17 Conv., I, 1,16-17. I::; Ibid., 11, XII, 9. 19 "Che que//e be//a donna che tu senti Ha transmutata in tanto la tua vita Che n 'hai paura, si sé fatta vile! Mira quant' eU' e pietosa e umile, Saggia e cortese ne Ia sua Rrandezza, E pensa di chiamaria donna, amai! Che se tu non t'inganni, tu vedrai Di si alti miracoli adornezza, Che tu dirai: Amor, segnor verace, Ecco l'ancelIa tua; fa che ti piace." (Rime, LXXXIX, V. 43-53) A justificativa do feminino (e da evidente alusão à Anunciação) é a de que o discurso do spiritei d'amor gentil é dirigido à anima do poeta. 20 Conv., 11, XV, 3.21. E. Gilson, op. cit., p. 123.

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NOTAS

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í: Conv., m, IV, 9-10. 23 Ibid. 11, XIV, 14. Ib;d. VIII, 15. 24 Ibid., 8-10. 25 Ihid. IV, XII, 14. 26 Dante escreve: Noi non potemo perfettamente vedere [la nostra immortalitadeJ mentre che 'I nostro immortale con mortale e mischiato, acrescentando logo em seguida: Ma vedemolo per fede perfettamente (lbid., 11, VIII, 15). Muito já foi discutido acerca da passagem do feminino ao masculino; quer se considere o fato de que o que vemos perfeitamente pela fé seja o immortale ou de que nossa alma seja imortal, trata-se de qualquer modo de "visão", e de uma natureza diferente daquela da apreensão intelectual, enfatizada por Santo Tomás (De pot., V, 4, ad 7); essa última, de fato, baseia-se em uma relação conceitual entre a imortalidade e a imaterialidade. Dante não nega tal relação, mas esta não lhe interessa aqui. Sobre esse ponto, E. Gilson (loc. cit., p. 125, n.l) parece-nos um pouco severo quanto à interpretação proposta pelos dois editores do Convivio, Busnelli e Vandelli. 27 Conv., m, VIII, 15. 28 Sumo theol., I, 89, 2. 29 Ibid., 1,1,1-3. 30 Como os outros companheiros de Santo Tomás, Siger ensinou a "verdade" (sillogiso invidiosi veri, Par., X, 138). 31 Par., X, 94-138. 32 Ibid., XXXI sq. 33 Conv. m, IX, 10. 34 Ibid., IV, XIII, 17. 35 Ib;d., 111, XIV, 8. 36 Inf., IV, 132-133. Esse texto segue bem de perto o apelo de Beatriz transmitido por Virgílio. Dante não percebe então nenhuma oposição entre sua "fé" e sua "obediência" em relação a Aristóteles e, por outro lado, a exigência religiosa que ilustra toda a Commedia. 37 Conv., IV, VI, 9 e 15-16. 3" Ib;d., 7. 39 Especialmente Rime LXXXII, 81-86, - Conv. IV, XVII, 1-8, - Inf., XI, 79 sq. - Purgo XXX, 115 sq. 40 Omissa subti/i inuestigatione, dicendum est breuiter quod finis totius et partis est remouere uiuentes in hac uita de statu miserie et perducere ad statum feiicitatis. Genus uero philosophia sub quo hic in toto et parte proceditur est morale negotium, siue ethica; quia non ad speculandum, sed ad opus inuentum est totum et pars (Ep., XIII, 39-40). 41 Conv., IV, XVII, 7. 42 Inf. VII, 16-66. 43 Ib;d., VII, 115-126. 44 D 'ogni malizia, ch 'odio in cielo acquista, Ingiuria e'l fine, ed ogni fin cotale O con forza o con frode altrui contrista (lnf., XI, 22-24) 45 Sobre o tema da "inversão" e da hábil definição da "sodomia", que poderia justificar principalmente o destino reservado a Bruno Latini, cf. A. Pezard, Dante sous la pluie de feu, Paris, 1950. 46 Inf., XVII, 97-111. 47 Par., XII, 97. 22

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Ibid., XI, 74 e 113. Par., XII, 121-140. 50 Desde a terceira alínea do primeiro Livro, o autor remete a Aristóteles para definir os finis totius humamae ciulitatis; em I, XIV, 3, ele usa notações literais caras ao Estagirita para estabelecer a relação de fim e meio; em sua demonstração (no entanto bastante retórica) do direito sagrado de Roma em dominar o mundo, no segundo Livro, ele recorre tão freqüentemente ao raciocínio pelo absurdo que, em sua tradução francesa, Pézard julga necessário lembrar em nota a definição do contrário e do contraditório (11, IV, 4, etc.). 51 Purg., XVI, 73-78, XXVII, 139-140.- Cf. Mon., I,XII, 6: Hoc uiso manifestum esse potest quod hec libertas siue principium hoc totius libertatis nostre est maximum donum humane nature a Deo collatum, quia per ipsum hic felicitamur ut homines, per ipsum alibi felicitamur ut dii. Mas essa dupla felicidade não parece ser problema, e ambas se fundam aqui na mesma liberdade, sem referência à graça. 52 "Onde convenne legge per fren porre; Convenne rege aver, che discernesse De la vera città almen la torre." (Purg., XVI, 94-96). 53 "Ma voi torcete a la religione Tal che fia nato a cignersi ia spada. E fate re di tal ch'e da sermone." (Par .. , VIII, 145-147). 54 Conv., IV, IX, 1. 55 Cf. as últimas linhas da Monarchia: ... ut fuce paterne gratie illustratus uirtuosis orbem terre irradiet, cui ab iUo solo perfectus est, qui est omnium spiritualium et temporalium gubernator. (Mon., m, XVI, 18). 56 Cf. P. de Lagarde, La Naissance de I'Esprit lai"que, 6 vaI., Saint-Paul-les-TroisChâteaux, 1934-1946. 57 Mon., m, XVI, 17-18. 58 Conv., IV, XVII, 10-11. S9 Conv., 11, IV, lO. 60 Entre 1310 e 1312. Cf. P. Renucci, loc.cit., p.111-114. 61 Dante evoca erroneamente aqui a doutrina de Averróis (Mon., I, m, 9) enquanto, no canto XXV do Purgatorio (versos 62-65) - que deve ser quase contemporâneo -, toma de Estácio uma crítica expressa daquele para quem disgiunto da l'anima ii possibi/e intelletto. t. verdade que a unidade à qual remete o texto da Monarchia não implica nenhuma separação, mas, antes, um quase tornar comum atividades intelectuais próprias à totalidade dos homens reunidos em uma só república. A potência do intellectus possibi/is, que o autor estende aliás aos agibilia e aos factibilia (Mon., I, m, 10), não pode ser "reduzida em ato" por um só homem nem por uma comunidade parcial (lbid., 8); ele a compara deveras bizarramente à materia prima, que permaneceria separata sem a presença contínua de res generabilis, mas é para significar que não se pode tratar de uma espécie de inteligência angélica extra-individual. Sonha evidentemente com o acréscimo dos atos intelectivos, que só se pode realizarem nível da humanidade total. Idéia interessante e, de um certo modo, bastante moderna, mas que parece bastante distante do verdadeiro averroísmo, visto que remete, não à última das hierarquias celestes, mas à propria operatio humane uniuersitastis hominum in tanta multitudine ordinatur (ibid., 4). Perfeitamente convincentes nos parecem a esse respeito as conclusões paralelas de B. Nardi, Saggi di filosofia dantesca, Milão-Roma 1930, p.161-264, e de E. Gilson, loco cit., p. 167 sq. 62 Mon., m, IV, 17-20. Dante acrescenta também que essa abundante luz recebida do Sol permite à Lua uirtuosis operari.

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63 Ibid., m, 111, 7. -Acerca da incompatibilidade entre a fórmula de Dante (Petri successor, cui non quicquid Christo, sed quicquid Petro debemus) e a de Santo Tomás, em De regimine principum, I, 14 (Successor Petri, cui omnes reges populi christiani oportet esse subditos, sicut ipsi Domino nostro Jesu Christo), cf. E. Gilson, op. cit., p. 183. 64 Mon., III, XIl, 7. 65 Ibid., XVI, 7-11. 66 E. Gilson, op. cit., p. 195. 67 Mon., m, XVI, 12-15. " Ibid .• I. VIII, I. 69 Ibid., I, IV, 2-3. 70 Mon., 1Il, XVI, 17-18. 71

Purg., XX, 86-88.

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In(., XIX, 43.

Quivi dov'elle paria, si dichina Vn spirito da ciel, che reca fede Come ['alto valor ch'e/le possiede 'E oltre quel che se conviene anui," (Rime LXXXI, 37-44). 93 Se desconsiderássemos esse "último mistério", distorceríamos seriamente o sentido de todo o "agenciamento". 94 P. Renucci, "Dante ct I'Hisroire", Furope, set-our. 1965, pA5.

n Ibid., 117. 74 Citado sem dúvida segundo Santo Tomás, Contra Cent., rI, 98 (In Libro De Causis dicitur quid intelligentia seit quod est sub se et quod est supra se per modum suae substantiae); mas o Doutor Angélico considera somente, de forma teórica, o modo de intelecção própria dos Anjos, não o papel "inventor" que evoca aqui o autor do Convivia. 75 Conv., m, VI, 4-6. 76 Desde as pertinentes observações de Santo Tomás nas primeiras linhas de seu comentário acerca do Liber de Causis, ninguém poderia mais ignorar que se trata de um texto neoplatônico e não de uma obra de Aristóteles. 77 Conv., 1Il, VI, 11-13. n Ibid., VII, 17. 79 Ibid., VIII, 1 e 12. *lO Ibid., XI, 1. Sl Ibid., XI, 6. ~2 Pro v., VIII, 17. H3 Conv., I1I, XI, 18. " Ibid., XI, 14. RI Ibid., XII, 6-8. Só Ibid., XII, 11. S7 Ibid., XII, 14. 8R Par., XXVIII, 41-42. "9 Ibid., 25-78. 90 A presença de um mal irreversível é uma das constantes de uma visão de mundo que exclui qualquer apocatástase. Cf. sobre a queda dos Anjos. Conv., 111, XII, 9-10. Ao criá-los, Deus sabia bem que os angeli rei sucumbiriam à malizia, ma tanta fu l'affezione a producere la creatura spirituale, che la prescienza d'alquanti che a mala fine doveano venire non dovea né potea Iddio de quella produzione rimovere. E Dante invoca então um estranha comparação com a Natureza che non sarebbe da laudare se, sappiendo prima che li fiori d'un arbore in certa parte perdere si dovessero, non producesse in quella fiori, e par li vani abbandonasse la produzione de le fruttiferi. Estranho, pois as flores que murcham não estão absolutamente condenadas a um suplício eterno! 91 Par., XXX, 70-71. 92 "[n lei diescende la virti! divina Sç come face in angelo che 'I vede; E qual donna gentil questo non crede, Vada con lei e miri li atti sui.

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IX. PLATONISMO E ARISTOTELISMO EM NICOLAU DE CUSA"

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No mundo latino da Idade Média, o conhecimento do grego se tornara raro e, dos diálogos de Platão, só se possuía uma parte do Timeu na versão de Calcídio. Mesmo quando tornaram-se acessíveis, por causa das traduções, alguns outros diálogos, estes não eram lidos com muita freqüência. Nicolau de Cusa maIos conhecia, raramente os cita, e, quando o faz, é de modo bastante aproximativo (notadamente o Mênon, no capítulo 31 do De venatione sapientiae). Capaz, no máximo, de decifrar algumas palavras gregas e vaidoso por possuir uns tantos manuscritos bizantinos, ele só pode utilizá-los nas versões latinas que às vezes se fazem esperar por muito tempo, como é o caso da T eo/agia platônica de Prodo, que só será traduzida por Balbo em 1458. Em contrapartida, parece que possuiu bem cedo o comentário do Parmênides e a Elementatio theologica (nas versões de Moerbecke), e seus exemplares continham anotações marginais que revelam uma leitura atenta, mas as citações explícitas nos tratados do cardeal surgem sobretudo depois de l459; com o Pseudo-Dionísio (que ele lê e relê na nova versão de Traversari, composta, parece, a pedido seu), Prodo é uma de suas fontes essenciais quanto ao conjunto um pouco compósito de doutrinas e de tendências que ele atribui aos platonici (não se deve, todavia, negligenciar o que vem de Santo Agostinho e dos padres gregos). Nos seus últimos anos, utilizará Diógenes Laércio (igualmente traduzido por Traversari). Seu conhecimento de Aristóteles é mais direto, sobretudo após 1450, quando pôde utilizar a versão organizada por Bessarião (o bizantino que se tornou cardeal), mas suas citações são em geral imprecisas, por vezes equivocadas, e ele não teme exegeses conciliatórias. Ainda que seus modos de exposição sejam pouco escolásticos, seu vocabulário depende em grande parte da Escola e se adensa mais com muitos neologismos. Terá Nicolau Krebs (em latim, Krebs de Cusa), em Deventer, sido o aluno (antes de Erasmo) dos Frades da Vida Comum, conhecidos como adeptos fervorosos daquilo que se denomina a devo tio moderna, mas editores também dos mestres nominalistas? Arquitetada a partir de um dáusula de seu testamento, essa hipótese é hoje em dia fortemente contestada. Ao menos * Comunicação apresentada no colóquio do Centre d'Etudes Supérieures de la Renaissance (julho, 1974) acerca de "Platão e Aristóteles no Renascimento". (Publicado posteriormente por Vrin, Paris, 1976) Gêneses da Modernidade

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pode-se pensar que, em 1416, na Universidade de Heidelberg onde estudava Direito, o Cusano esteve em contato com um ambiente ockhamista, no qual se havia rompido de fato com alguns princípios da física aristotélica (primado do qualitativo, corte radical entre a mecânica celeste e a mecânica sublunar, imobilidade perfeita da Terra no centro de um universo finito). E por alguns aspectos de sua cosmologia e de sua mecânica, Nicolau pertence à tradição dos moderni. Se não basta, para ser "nominalista", considerar os universais in mente como entia rationis, é ainda significativo que o domínio em que o cardeal será o menos platônico seja o da recusa de um realismo que situaria no concreto formas inteligíveis preexistentes. Em Pádua, onde continua seus estudos, ele quase não parece marcado pela influência averroÍsta. Ao lado do Direito, interessa-se pela Medicina, e mais ainda pela Matemática. Apesar de algumas referências à astrologia árabe (sobretudo nos sermões antigos), encontra-se bastante distanciado do fatalismo astral. De resto, eliminará rapidamente de sua visão de mundo o sistema das esferas cristalinas e, a partir de 1440, no De docta ignorantia, irá descrever uma machina mundi, cujo centro está por toda parte e a circunferência em lugar nenhum, onde a Terra não é astro vil nem o Sol pura luz. Quando usar círculos concêntricos para simbolizar o duplo envolvimento do sensível pelo racional, e do racional pelo intelectual (por exemplo em seu De coniecturis, escrito e revisado de 1441 a 1445), essas imagens não terão nenhum caráter cosmológico; não obstante, ele as corrige pelo esquema de sua figura P (figura paradigmatica) na qual se vêem todas as criaturas recebendo a dupla influência da luz e da sombra, no feixe cruzado de duas pirâmides que têm como respectivas extremidades a unidade e a alteridade (ou, ainda, Deus e Nihil). Sabe-se, por outro lado, que análises geométricas da transmutatio o auxiliam a sugerir a "coincidência dos opostos", fazendo sobressair a identidade do máximo e do mínimo quando a circunferência se torna, por hipótese, a de um círculo de raio infinito, ou quando o polígono cujo número de lados aumenta tende a se confundir com o círculo circunscrito. Tudo isto é bastante estranho ao aristotelismo e se relaciona, antes, à reflexão eudoxiana acerca dos limites. Contra uma certa visão hierárquica do mundo, o Cusano evoca às vezes os logoi spermatikoi do estoicismo e, ainda que o faça em termos aristotélicos, mas utilizados de uma maneira que coloca paradoxalmente a simultaneidade do ato e da potência (unde aiebant veteres stoici formas omnes in possibilitate actu esse, Doct. ign., li, 8), essa audácia relativa (podendo as razões seminais de Agostinho lhe servirem de garantia) será confirmada pelos textos posteriores que reabilitam Epicuro. Certamente Nicolau de Cusa é aqui enganado pelo texto incorreto da Carta a Heródoto na tradução latina da qual dispõe, pois imagina que uma ordem providen184

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ciaI preside o movimento dos átomos. Pode-se julgar entretanto significativo que, no De venatione sapientiae (caps. 8 e 21), se refira ao atomismo para criticar a teoria segundo a qual as coe/estia teriam função diretriz em relação à haec terrena, como se "tantos inúmeros astros, maiores do que essa Terra" pudessem ter sido criados "para este mundo terrestre". De fato, como veremos, Nicolau de Cusa nem sempre pensou que o aristotelismo fosse incompatível com a idéia de uma potência divina agindo no próprio cerne do cosmos e, em sua própria perspectiva, os átomos de Epicuro teriam apenas podido se integrar, assumindo mais ou menos a aparência de "mônadas" leibnizianas. Na Universidade de Colônia, que ele freqüenta em 1423, o Cusano entra, sem dúvida, em contato com o aristotelismo neoplatonizante dos "albertistas", mas é sobretudo a influência de Eckhart que ele mais sofrerá. Após uma breve fase "humanista", encontramo-lo padre em Coblença, depois advogado no concílio de Basiléia, no qual intervém primeiro para defender a causa de um Manderscheid, cuja designação como bispo era fortemente contestada; impõe, por seu talento, sua personalidade, e logo lhe são confiadas tarefas delicadas, Como a negociação com os hussitas. Sua Concordantia catho/ica (1443) revela que ele vê mais longe do que seus amigos do partido "conciliar". Seria difícil descobrir nesse tratado de canonista e de historiador alguma influência de Platão ou de Aristóteles; apesar de alguns empréstimos ao Defensor pacis de Marsilio de Pádua, o autor quase não pode passar por um representante do averroÍsmo político. Sua teoria do pacto social o mostra mais próximo de Duns Escoto do que de Santo Tomás; se sua atenção significativa a todo orbis terrarum lembra o universalismo de Dante, o imperium, nele, adquire uma forma claramente federativa, sem privilégios para Roma. Patriarca do Ocidente, o papa, a despeito de sua primazia, não possui para ele poder direto no Oriente; deveria dirigir a Igreja latina com um conselho de cardeais eleitos pelas comunidades episcopais. A ênfase é colocada no acordo entre as partes e o todo por imanência global do "espírito", por estabelecimento dos indivíduos e dos grupos em um corpo seguramente hierarquizado, mas no qual a autoridade vinda do alto se exerce segundo o consenso dos fiéis, através de todo um sistema de "representações". Quer se trate da Igreja ou do Império, esse plano de reformas é, em grande parte, "utópico" (característica que será reencontrada, de outras maneiras, no Idiota de staticis experimentis, de 1450, e no De pace fidei, de 1453), mas de forma alguma no sentido de Morus ou de Campanella e sem referência à República platônica. Mais tarde o autor insistirá mais na noção de "bem comum" no sentido de Aristóteles e de Santo Tomás. É essa noção, finalmente, que irá determinar que o Cusano se agregue ao partido pontificaI e defenda, na Alemanha, a causa de EugêGêneses da Modernidade

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nio IV. No Natal de 1448, Nicolau V o nomeará cardeal e, para o jubileu de 1450, fará dele seu legado itinerante através das terras germânicas, dos Países Baixos à Boêmia. Desde 1437, fazendo voltar de Constantinopla os delegados orientais ao concílio de união, o Cusano estabeleceu relações estreitas com muitos deles. Amigo fiel de Bessarião, desejava a conciliação entre os platônicos puros e os sectários de Aristóteles. Além disso, ele tem seu próprio caminho, que deve, segundo diz, a uma inspiração do alto. Da De doeta ignorantia ao tratado do Berilo, ele apresenta esse método como um meio de ultrapassar as oposições doutrinais retendo, de cada filosofia, aquilo que representa, a seus olhos, uma abordagem positiva da única verdade que é, aliás, em 'si, inacessível. Como quase todos os homens de seu tempo, adora entretanto se despojar de seus precursores. Desde seus sermões de juventude, vemo-lo invocar as mais heteróclitas auctoritates. As que mantém em suas obras posteriores são certamente melhor selecionadas, mas seu uso depende freqüentemente da pia interpreta tio. Sem seguir aqui o cardeal em sua vida difícil de bispo (lutando em Brixen com seu clero assim como com o duque de Tirol) , nem em seu trabalho dos últimos anos na Cúria romana, e sem nos deter nos textos de caráter sobretudo científico ou nos de predominância religiosa, reteremos - desde o De docta ignorantia, de 1440, até o De venatione sapientiae, de 1463 - algumas das referências mais significativas ao platonismo e ao aristotelismo. Veremos que, se Platão parece freqüentemente privilegiado, se Aristóteles é às vezes criticado em termos bastante severos, o Cus ano recusa em geral (como o idiota de seus diálogos) qualquer sujeição a qualquer tipo de seita. Diferentemente de Ficino, só raramente se refere a uma antiga tradição de caráter mais ou menos misterioso, vinda do Egito, do Irã e da Caldéia. Se louva Platão por ter imitado Pitágoras, é por aquele ter utilizado - no nível da ratia - um método numérico capaz de ligar o uno e o múltiplo (neque arbitrar quemquam rationabiliorem philosophandi modum asseeutum, quem quia Plato imitatus est, merito magnus habetur, De ludo globi, lI). O tema do progresso (desenvolvido no Sermão Ubi est, de 1456) exclui, aliás, a idéia de uma verdade original, mais ou menos obscurecida na seqüência dos tempos, e que conservaria uma descendência mais ou menos esotérica. Sem dúvida, o desenvolvimento das artes (consolo oferecido ao homem que, como qualquer outro animal, nasce nu e desarmado) não é rigorosamente unilinear, e tampouco se trata de uma sucessão de ciclos, mas antes, parece, de um devir histórico deveras complexo, no qual Maomé, por exemplo, ainda que vindo após Jesus, tem por função positiva adaptar a verdade mosaica para os rudes árabes, preparando-os assim para uma fase de desenvolvimento que permite compreender melhor o sentido universal da Trindade e da Encarnação. Na medida de seu tem-

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po e dos meios de que dispõem, os sábios tentam aproximar de forma conjetural o mistério vivo de um Deus escondido e infinito, unidade pura que entretanto se diz ela mesma e volta a si mesma, a imanência universal de um movimento ternário do uno, do igual e do conexo, o papel do homem que, pela potência da mens, mede e cria - o idiota do De mente, que, fazendo colheres de madeira, dá forma à matéria, está mais próximo da arte divina do que o pintor que simplesmente copia o real-, a relação do infinito absoluto ao infinito "contraído" ou cósmico, que exige a mediação como a de Cristo do homo maximus simultaneamente "microcosmo", aequalitas essendi e Verbo encarnado (Doet. ign., lII, 3-4). Nessa perspectiva, e ainda que as oposições entre Platão e Aristóteles sejam por vezes reduzidas a questões de vocabulário, o platonismo corresponde certamente, tal como o Cusano o considera, a uma melhor aproximação, a uma mais autêntica intuição da verdade. Desde a Douta ignorância, ele qualifica Platão de divino, e a fórmula é retomada na Apologia, mas o contexto revela que se trata aí de algo bem diferente do verdadeiro platonismo dos Diálogos. Tendo Com efeito louvado Avicena por sua teologia negativa, o autor acrescenta: sed acutius ante ipsum diuinus Plato in Parmenide tali modo in Deum conatus est viam pandere, quem adeo divinus Dionysius imitatus est ut saepius Platonis verba seriatim posuisse reperiatur (ed. de Basiléia, 1565, p.66). Essa literalidade é a de Proclo, não de Platão. Acreditando ainda que "Dionísio" é o Aeropagita de São Paulo (e essa atitude surpreende em um homem que foi mais lúcido diante das falsas decretais e que criticou a autenticidade da "doação" atribuída a Constantino), o Cusano acha normal ler nele fórmulas que pertencem ao neoplatonismo tardio e que atribui ao autor do Parmênides, menos preocupado do que será Lefêvre d'Étaples em considerar as afirmações de Dionísio em sua pureza pauliniana para opô-las às elucubrações pagãs de Porfirio e de Prado. Nessa mesma Apologia - na qual ele defende sua própria ortodoxia, mas amalgamando aí judeus, gregos e cristãos, e sem hesitar em incluir entre seus mestres autores suspeitos e mesmo condenados - , ele qualifica de sapientissimus Fílon de Alexandria (a quem atribui o inspirado livro da Sabedoria) e invoca a seu favor uma linhagem que, de João Escoto dito o Erigena, por Hugo de São Vitor e Robert Grasseteste, conduz a Mestre Eckhart (p.?O-?1). "Platão" é aqui menos o autor dos Diálogos do que o suposto inspirador de uma longa tradição. Seu privilégio se mantém, no entanto, relativo; tudo o que ele disse não merece uma confiança cega, e outros filósofos são freqüentemente evocados. Como "pai" de Zênon e "avô" de Sócrates - segundo o esquema transmitido por ProeIo - , é verdade que Parmênides, assim como Pitágoras, é efetivamente o àntepassado do diuinus Piato, mas é sem referência a qualquer parentesco que o Cusano facilmente enaltece Anáxagoras e EmGêneses da Modernidade

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'li pédocles, defende mesmo Epicuro e, por sua doutrina do homem-medida, reabilita Protágoras. Isso no mesmo texto (De beryllo, capo 36) no qual os dois grandes adversários da sofística, Platão e Aristóteles - todos dois, entretanto, "princípes da filosofia", eles que atacam Anaxágoras, - são acusados da mesma deficiência que ele, por não compreenderem (pelo menos com suficiente clareza) que Deus é conjuntamente ato e potência. Não existe, aliás, nenhuma filosofia que 'não permaneça aquém da perfeita precisão, e o primeiro mérito dos "sábios" é justamente o de reconhecer esses limites. Platão por vezes é louvado como o "único" que, ultrapassando "um pouco" os outros, admirou-se com o fato de que se pudesse "encontrar" Deus e, mais do que isso, revelá-lo (Solus Plato aliquid plus aliis philosophis videns dicebat se mirari si Deus inveniri, et plus mirari si inventus posset propalari, Ven. sap., capo 12), mas Aristóteles, que já o Douta ignorância chamava profundissimus (no capítulo 8 da Venatio ele é denominado apenas Peripetaticorum acutissimus), tem o mérito, como veremos, de apresentar como "sempre buscada" a "qüididade de todas as coisas enquanto cognoscível" (Non aliud, capo 18). Certamente, tivesse ele apreend{do como terceiro princípio, ao lado da forma e da materia, não uma suposta privatia, mas o nexus ativo como inchoatio farmarum, teria sem dúvida ido mais longe nessa "busca" (De beryllo, capo 29). Ao menos pressentiu os limites dessa filosofia primeira à qual remotos sucessores darão apenas as qualificações de metafísica ou de ontologia. Da parte de um impositar nominum peritissimus (que Lefevre d'Étaples definirá como "teólogo da fala" , tendo sobretudo o mérito de preparar o caminho para os "teólogos do silêncio"), essa modéstia e esse acanhamento testemunham, como que apesar dele, que o infinito escapa a qualquer apreensão por signos sensíveis e por conceitos (De venatione, capo 33). Ainda que Platão pareça no geral mais facilmente "recuperável", é mais de uma vez no filósofo da linguagem e da razão que o Cus ano encontra intuições que não apenas retomam a dos platônicos, mas, que se forem bem compreendidas, parecem mais perspicazes do que estas. Assim, desde o começo do De docta ignorantia (I, 1), após ter lembrado que Sócrates dizia não saber nada a não ser que nada sabia (necedade bastante próxima daquela do Eclesiastes I, 8), Nicolau de Cusa evoca a frase de Metafísica (993 b) acerca do olhar humano que uma verdade por demais luminosa cega, assim como o brilho do Sol ofusca o pássaro noturno. Mais curiosamente, em I, 11, louva Aristóteles por ter traduzido sua doutrina em figuras matemáticas; o único exemplo citado é o da imagem, pouco significativa, da alma inferior inclusa na superior como o é o triângulo no quadrilátero (De anima B 3, 414 b). Será que esse apoio é suficiente para insinuar que, apesar do gosto pela singularização que o torna injusto para seus predecessores (singularis videri voluit priores confutendo), 188

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o Estagirita teria sido seu "imitador"? Mais adiante, referindo-se a um outro texto do mesmo De anima que concerne à identificação órfica da alma a um sopro (A 5, 411 a), o cardeal estende visivelmente para sua própria filosofia a argumentação segundo a qual, visto que nem as plantas nem mesmo os peixes respiram, a animação não pode ser definida por uma característica que só vale para alguns seres vivos. Logo, quando escrevia: "É pelo reto que conhecemos o próprio reto e também o curvo, pois a regra é juiz tanto de um quanto de outro", Aristóteles não pensava certamente na infinitesimal "transmutação" da curva na reta, e, aliás, o Cusano o censurará expressamente por ter considerado curvum e rectum como verdadeiros contrários (De beryllo, capo 26). E,contudo, após ter reconheci" do como justificada, no nível do "mundo", a divisão de todas as coisas em "substância" e "acidente", é ao Estagirita que o autor da Douta ignorância se refere para apoiar uma reflexão bastante estranha, parece, ao aristotelismo: uma vez restabelecida como uma reta finita, a curvitas minima remete indiretamente à simplicior participatio da reta infinita, de forma que illa diversa participatione non obstante, adhuc, ut ai Aristoteles, "rectum est sui et obliqui mensuraj e do caso da linha infinita (ao qual Aristóteles não fez nenhuma menção) o Cusano conclui então ao próprio Infinito como medida de tudo o que diversamente participa dele (sicuti infinita linea rectae et curvae, ita maximum omnium qualitercumque diversimode participantium, capo 18). A seqüência irá, entretanto, precisar que a adaequatissima mensura, sem dúvida mais substancial do que acidental, transcende uma distinção ainda intramundana, de forma que dois adjetivos dionisianos supersubstantialis et nonsubstantialis, remetem respectivamente ao superlativo e ao ablativo, sendo o segundo o menos inadequado. Da mesma forma, em lI, 8, ao louvar Aristóteles por situar as formas em potência na matéria, o Cusano desconfia que ele subestima o papel verdadeiramente "formal" da causa produtora, mas pensa que, de seu lado, os "platônicos" valorizaram demasiadamente o caráter privativo daquilo que ele nomeia, por sua vez, uma possibilitas absoluta, e que ele coloca - inseparavelmente - enquanto aptitudo e carentia. Se parece aprovar, em lI, 12, o qualificativo de animal aplicado ao mundo no Timeu, ele só julga a fórmula esclarecedora com a condição de que se conceba absque immersione como uma anima mundi mais ou menos identificável ao Infinito divino. Assim, nesse duplo jogo de assimilações e de retificações, o Cusano parece manter uma espécie de equilíbrio entre Platão e Aristóteles. Mas logo, vivamente atacado por um mestre de Heidelberg que invoca contra ele o Estagirita, vemo-lo em 1449, em sua Apologia (tomada ficcionalmente de empréstimo, é verdade, a um "discípulo" indignado), bem mais severo do que nos textos anteriores e futuros, contra essa aristotelica secta que coloca em dogmas religiosos os limites de sua própria abordagem, tornando quase Gêneses da Modernidade

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impossíveis tanto a ultrapassagem da razão quanto o acesso a uma verdadeira "teologia mística": unde cum nunc aristotelica secta proeualeat, quae heresim putat esse oppositorum coincidentiam, in cuius admissione est ascensus in mysticam theologiam, in ea secta enutritis haec via ut penitus insipida, quasi propositi contraria, ab eis procul pellitur, ut sit miraculo simile, sicuti sectae mutatio, reiecto Aristotele, eos altius transilire (ed. citada, p.64-65). Apesar dessas gentilezas, e no momento em que o Cusano situa sua reflexão em uma "altitude" inferior, suas fórmulas são em geral mais conciliantes do que fulminadoras. Pouco posteriores à Apologia, os diálogos do Idiota insistem no princípio socrático segundo o qual qualquer ignorante (ou "profano") pode, por um método justo, fazer crescer as sementes do verdadeiro que ele traz inatas em si, e decifrar o "livro do mundo" melhor do que o pedante nutrido de saberes completamente livrescos, Os diálogos enfatizam seguramente o valor de um pensamento atento primeiramente à gênese dos números e das figuras, à fecundidade da mensura, superior a qualquer vã "retórica" e graças ao qual se concretiza em verdadeiro saber a sapientia bíblica que "grita nas praças públicas", mas ainda aí se poderiam ver todos os filósofos se "conciliarem", desde que se considere de forma mais "precisa" esse Infinito que os pensadores das diversas tradições só puderam pressentir em termos inadequados. A esse respeito, no terceiro diálogo (De mente), entre Platão e Aristóteles, o equilíbrio é quase igual. No capítulo 2, o "idiota" reconhece ao Estagirita que gêneros e espécies são apenas entia mentis, posteriores no espírito à primeira apreensão do sensível (e, vinda de um admirador dos "platônicos", esta não é uma concessão qualquer), mas é para corrigir uma fórmula quase ockhamista, comparando em seguida o trabalho da mens que forja seus conceitos ao do artesão, aquele que não copia formas preexistentes em algum topos noetos e que, contudo, quando entalha a madeira, faz "resplandecer" nesta uma inventiva participação na ars divina. Entre os dois "príncipes da filosofia", o capítulo 13 percebe uma comunidade de intenção sob diferenças verbais; um fala, com efeito, da "alma do mundo"; o outro, de "natureza". E certamente podemos compreender as duas expressões como já remetendo a esse "Espírito universal", operação de Deus fazendo "tudo em tudo" e que ilumina a reflexão cusana acerca da Unitrindade: Puto quod animam mundi vocavit P/ato id quod Aristoteles naturam. Ego autem nec animam illam nec naturam aliud esse coniicio quam Deum omnia im omnibus operantem, quem dicimus spiritum uniuersorum. O fato é que o erro comum às duas escolas rivais é o de ter acreditado ser necessária uma espécie ou outra de "intermediário" entre a arte divina e sua manifestação cósmica, por terem ignorado que, "na onipotência, velle coincide com exequi, visto que ars em Deus é artifex e magisterium magister. A crítica,

como se vê, não se dirige menos às diversas hierarquias platônicas do que à concepção de Aristóteles imaginando um Ato puro, que por simples atração teria movido o primeiro céu (e todas as esferas incorruptíveis), ao passo que no nível sublunar a seqüência das gerações e das corrupções obedeceria apenas à physis (ela mesma limitada pela sorte e pelo acaso), A partir do ternário omnipotentia, sapientia et nexus omnipotentiae cum sapientia, o Cusano quer reencontrar, ao contrário, tanto nas coisas quanto no espírito, a participação ativa de um spiritus universorum. Seria a diferença entre as duas abordagens (positivas e todavia incorretas) desse "espírito" que é "conexão" puramente verbal? Para além do problema de vocabulário (aqui anima mundi e lá natura), o autor do Doete Ignorance destaca dois encaminhamentos de algum modo inversos. Logo de saída Platão procura a "imagem" de Deus na intelectibilitas ubi se mens simplicitati divinae conformat, situando, nesse nível, a substantia mentis capaz de escapar à morte, mas é necessário que, em seguida, descreva a descida (ou degeneratio) da pura "inteligibilidade" em "inteligência" (quando a alma considera in se as coisas distintas e separadas), e mesmo até o estágio inferior da "razão" (aí onde a idéia não é mais do que "forma na matéria variável", capo 14). Aristóteles, ao contrário, parte do "sensível" a fim de submetê-lo ao império "racional" da linguagem, mas o "idiota" do diálogo cusano lhe atribui aqui hipoteticamente (forte) um desígnio que seria o de percorrer no outro sentido a via platônica e, pela "disciplina" que se manifesta "através das palavras", de se elevar até à intelligentia, até mesmo à intellectibilitas. Na perspectiva Cu sana, os dois modi considerationis mantêm seu lugar e seu valor. E observar-se-á que ao fim do diálogo, esboçando uma venatio da imortalidade baseada na função genética do "número", o "idiota" remete à definição aristotélica do tempo como número do movimento; é verdade que ele substitui "medida" por "número" e, aplicando a fórmula a todo motus (não apenas à cicloforia celeste), pensa aí descobrir o sinal de uma fecundidade do espírito, capaz de desenvolver infinitamente seu poder criador. Parece sobretudo que em suas obras posteriores, sem renunciar a qualquer exegese acomodadora, o Cusano enfatiza firmemente a insuficiência comum a seus predecessores (e não apenas aos adeptos da "seita aristotélica "). No mesmo capítulo 25 do De beryllo, no qual recusa a privatio como terceiro princípio unido à forma e à materia (pois apenas pode ser "privado de contrariedade" o nexus ativo que liga os contrários), para além do Estagirita, e juntamente com ele, Nicolau de Cusa parece visar a "todos os filósofos": arbitror ipsum, quamuis super omnes diligentissimus atque acutissimus habeatur discursor, atque omnes in uno maxime deficisse. Pois é de acordo com todos que, omnes philosophos concordando (sem exceção reconhecida aqui em favor dos platônicos), na base do "primeiro

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princípio, o qual nega que os contraditórios sejam simultaneamente verdadeiros", Aristóteles quer demonstrar "semelhantemente, que os contrários não podem ser ao mesmo tempo", desconhecendo, assim, que os opostos coincidem efetivamente in principio connexivo ante dualitatem, "antes que haja dois contraditórios", assim como se compreende ao conceber o ponto-limite no qual se confundem o minimum do frio e do calor, o lento e o rápido, a passagem do arco à corda, e mais simplesmente ainda o angulus rectus, minime acutus et minime obtusus. Certamente, acrescenta o cardeal, os "platônicos" tiveram alguma noção, como diz Santo Agostinho, do Pai e do Filho (que correspondem à unitas e à aequalitas), mas, não tendo conhecido o Espírito, verdadeiro principium connexionis, não puderam apreender em operação, no devir intramundano, o princípio ativo da inchoatio formarum in materia Um dos textos nos quais Nicolau de Cusa acompanha mais de perto o comentário procliano do Parmênides, desenvolvendo em particular a nota marginal que se lê em seu exemplar (num et multitudo non in intellectu sunt, sed est intellectus; hic omnia unum et multitudo, cod. cus. 186, foI. 33, rect.), é o tratado De principio (tomado por Lefevre como um sermão e publicado por ele sob o título de Tu quis es). Nessa exposicão muito metafísica, escrita um ano após o De beryllo, retomando, através de Proclo, o Platão do Parmênides, mas também do Filebo e do Sofista, aquele que destaca a mútua participação das formas, o autor evoca a universal coniunctio da unitas e da multitudo, e essa díade fecunda da qual pode-se dizer que seja "nem unidade nem multiplicidade" (no De coniecturis, de 1440, ele já observaria que a unidade só é alcançada mediante alteritate, e a alteridade mediante unitate, 11, cap.16). Ora, se concorda aqui com o comentarista de Platão para criticar um Primeiro Motor separado, que só se moveria na qualidade de fim, recusa igualmente a imagem de um demiurgo que, contemplando um mundo todo feito de formas inteligíveis, produziria, através de hierarquias descendentes, uma rede de idéias capazes de "finalizar" a matéria indeterminada e "confusa" (De principio, ed. de Basiléia, p.355). É essa mesma deficiência, ainda que com outra formulação, que impedia aos filósofos (mesmo na descendência menos inapta à ultrapassagem da ratio) uma autêntica apreensão da connexio. O que lhes escapou foi que, "tudo considerado, não se encontra senão o infinito". Apesar de sua teoria dos mistos, Platão admite sempre a superioridade do peras sobre o apeiron; assim, não vê que a díade autêntica é aquela de duas infinitates, a finibilis (que é post omne ens), mas também a finiens (isto é, Deus ante omne ens). Tivesse o Cusano podido ler as Enéadas, teria encontrado aí, em termos por vezes confusos, algumas intuições acerca do Ato-Potência (que ele mesmo denominará, em 1460, o Possest), por exemplo, onde Plotino sugere que, situado por assim dizer, "para além da ener192

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geia" (VI, 7, 17), O Uno é, de algum modo, "potência de tudo" (pantôn dynamis, V, 3, 15) e contém mesmo em si, segundo uma fórmula difícil de traduzir, "o ser do infinito e da multiplicidade" (to einai apeiron kai plethos, VI, 5, 9). Em parte, sem dúvida, sob influências judaico-cristãs, essa "reabilitação", pelo menos parcial, do apeiron é discernível em um vasto setor do platonismo tardio; porém, bastante curiosamente, em 1461, quando ele compõe sua Directio speculantis (ou De non aliud), é no próprio Estagirita que o cardeal pensa descobrir uma virtus infinita imanente ao Primeiro Motor e de algum modo compartilhada pelo universo inteiro. Aristóteles, com efeito, dizia com razão que uma série infinita não poderia ser percorrida (recte dicebat Aristoteles in infinitum mon posse pertransiri), mas essa fórmula concerne somente à "quantidade como o espírito a concebe" e, mesmo para seu autor, não podia então "excluir" o verdadeiro infinito "tal como é, antes da quantidade e tudo aquilo que é outro, e tudo em todas as coisas". A prova é que, "vendo" ele mesmo, in omnibus participata, essa "potência" (que Nicolau de Cusa chama, aqui, o non aliud), Aristóteles a ela referiu todas as coisas ut de primo matore, quem virtutis reperit infinitae (cap. 10). Exegese assimilativa e concordante, que surpreende ainda mais quando se a descobre em um "tetrálogo" no qual dois capítulos inteiros irão conter novamente uma crítica severa ao aristotelismo. Lefevre d'Étaples tinha buscado em vão a Directio speculantis, que só foi publicada (por Uebinger) em 1888. Parece que o cardeal não a conservou no conjunto dos manuscritos que, apenas às vésperas de sua morte, destinou à impressão. Trata-se, no entanto, de um texto bastante importante, não apenas pelo papel que atribui à negação, definindo aqui a Trindade como non aliud que é non aliud do non aliud - isto é, por uma afirmação feita de três apófases e que, ao mesmo tempo, coloca três vezes a própria alteridade que ela nega - , mas também porque se vêem aí, conversando com o autor, três de seus amigos: o humanista Pedro Balbo, o médico português Ferdinando Matim (advogado das teses peripatéticas, deferente entretanto e bastante atento às objeções e a explicações cusanas), e o secretário de Nicolau, esse João André de Bussi que, na epístola dedicatória a Paulo II da edição de Apuleio (1469) - aí mesmo onde declarara que seu mestre reverenciava as historiae, não apenas priscae mas mesmo mediae tempestatis - , irá defini-lo como refutador de Aristóteles e mais curioso do que qualquer um acerca da tradição pitagórico-platônica: philosophiae aristotelicae acerrimus disputator fuit; {... I at Platonis nostri et Pythagoreorum dogmatum ita cupidus atque studiosus, ut nemo magis illi scientiae putaretur intendisse (texto citado por Wilpert em sua tradução do Non aliud, Hamburgo 1952, p.191-102). Ora, no início do capítulo 18, Ferdinando insiste para que o cardeal diga, se tiver vontade, aquilo que, em sua opinião, "o muito sutil AristóGêneses da Modernidade

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7 teles, tantae so/licitudinis philosophus, teria querido nos mostrar". Wilpert, que expressa tanta sollicitudo por "um tão vivo apetite de pesquisa", julga severa a resposta do Cusano. Certamente, quando lhe perguntam: "O que ele encontrou?", sua resposta - "Para falar honestamente, não sei" _ poderia parecer impertinente; maS a continuação remete precisamente a esses textos da Metafísica que o De beryllo (cap. 12) evocará novamente e que apresentam a qüididade como "sempre buscada, jamais encontrada" . Ter destacado a extrema dificuldade do problema ontológico já é sinal de uma lucidez que merece estima e, no tratado de 1463, encontrarse-á a referência a Aristóteles entre o elogio do indiano que, interrogado por Sócrates, teria declarado, segundo Eusébio, que o melhor saber acerca de Deus é a consciência de um não-saber; e, por outro lado, as remissões a Prodo concernentes a "aquilo que é de todas as coisas o mais difícil de encontrar", isto é, a imanência do múltiplo no interior da unidade pura. Talvez sem que ele mesmo o soubesse, o Estagirita pertencesse, de uma cert~ maneira, a essa tradição da "douta ignorância", segundo a qual quanto quis melius sciuerit hoc sciri non posse, tanto doctiar. Assim, não é muito surpreendente o fato de que, na Directio speculantis, Ferdinand pareça considerar no bom sentido a resposta negativa do Cusano, e, a propósito dos textos aristotélicos que acabaram de ser citados por ele (Met., B 1, 996 a e Z 1, 1028 b), declare primeiramente: "Verba haec magni philosophi ubique sunt aeesti manda. Chocar-se contra um muro é menOS erro do que paralisia, e Aristóteles, a esse respeito, compartilha o destino comum ("non erravit, sed ibi, sicut alii homines, cessavit). Contudo, se existe erro, esse é o de ter acreditado ser possível constituir uma ciência real deste lado do limite correspondente à exclusão mútua dos opostos, isto é, apenas no terreno da ratio. É preciso convir aqui que as fórmulas da Directio, sem apelarem a uma fé revelada, evocam um oculus mentis acies que pertence mais à linguagem da mística do que à da filosofia (e a impressão se confirma pelo lugar que ocupam, no tetrálogo, o Corpus areopagiticum, comentado e citado ao longo de quatro capítulos). À lógica laboriosa e incompleta do Esragirita, Nicolau de Cusa, que celebra a "facilidade do difícil", opõe a simplicidade de uma "visão" que apreenderia os "contraditórios" (aqui o autor não fala apenas de "contrários"), na raiz mesma de sua futura oposição. Lamentando, sem dúvida, tanto a longa fadiga de seus próprios estudos, quanto o trabalho perdido por Aristóteles, Ferdinando imagina que o Estagirita, tivesse ele mesmo descoberto esse "segredó", teria sabido transmiti-lo facillimis, clarissimis ac paucissimis verbis (cap. 19), o que não é o caso, convenhamos, de Nicolau de Cusa, sempre em busca, até suas últimas obras, de novas formulações, que não são fáceis, daras ou breves e que, de qualquer modo, não poderiam ser substituídas pelo antigo organon na prática dos filósofos e dos sábios. 194

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Abandonemos aqui o problema "científico". A reflexão matemática é certamente um dos pontos de apoio da coincidentia, mas as sugestões do De staticis experimentis dizem respeito sobretudo ao emprego sistemático da medida e da observação. Quanto aos "filósofos", ainda que a fórmula da Directio seja menos afirmativa do que a do De beryllo, eles parecem todos visados pela crítica do aristotelismo: verum idem fortasse de omnibus speculativis dici philosophis posset (e, dessa vez, é Nicolau quem fala, não Ferdinando). Visto que se trata de conduzir à verdade, os speculantes, speculativi nessa frase surpreendem um pouco. Hegel reservará o epíteto (sempre elogioso) de spekulativ àqueles que ultrapassam o plano da Vernunft, e incluirá nesse grupo o próprio Aristóteles, com certeza não por sua lógica, mas por referência a determinadas passagens de sua Metafísica (notadamente o texto de A 12, 1072 b que ele cita em grego como coroação final da Enciclopédia). O Cusano toma a palavra em um sentido mais geral, querendo indicar que se encontraria sem dúvida uma deficiência análoga àquela do Estagirita nos speculantes que não foram senão filósofos e que, conseqüentemente, não merecem a qualificação de divini, porque permanecem no nível da ratio e de suas artes, incapazes de compreender o paradoxo do a/iud que é simultaneamente ele mesmo e non a/iud quam aliud; quer dizer, incapazes de alcançar - como dizia o cardeal em sua qüinquagésima carta ao abade de Tegernsee - a "forma de união absolutamente simples, ubi ablatio coincidit cum positione (in Vansteenberghe, Autour de la Docte ignorance, Münster, 1914). Contra eles, no entanto, o cardeal não se refere a nenh uma experiência mística, mas a uma argumentação de caráter dialético. Se Aristóteles, diz ele, se recusa a se elevar até um principii principium (ou substantiae substantia), é porque sua extensão abusiva do princípio de contradição o impede de colocar a contradictionis contradictia, isto é, de conceber unitariamente os opostos, anterioriter, sicut causam ante effectum. E se é verdade que no florilégio de textos dionisianos dos capítulos 14-17, que figuram alguns excertos das Hierarquias e da Teologia mística, os mais numerosos vêm dos Nomes divinos; sob diversas formulações, eles concernem ao unum supersubstantiale, inominável raiz de todas as coisas e que "antecipadamente" as contém todas, sem ser jamais, entretanto, "outro que não ele mesmo" (o que, transposto para o vocabulário do tetrálogo, se torna, segundo uma anotação marginal na Teol. plat., 11, 3, unum est nihil aliud quam unum, -cod. cus. 185, in Wilpert, loco cit., p. 203·204). Visto, porém, que Dionísio, como sabemos, "repete" Platão, e que mais tarde (segundo a cronologia ainda admitida pelo Cusano), Prado refere-se por sua vez à mesma doutrina, não seria necessário pensar que o autor do Parmênides (comparado, no capítulo 24, ao próprio Moisés) escaparia inteiramente à falha comum aos "filósofos especulativos"?

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É bem isso o que sugeririam as últimas páginas da Directio. Parece que Prodo alcançou essa ascensão até a intellectibilitas (que, segundo o idiota do De mente o próprio Aristóteles tinha "talvez" visualizado); pelo menos, passando do sensível à alma e da alma ao intelecto, ele compreendeu que era necessário remontar até um princípio que foi verdadeiramente "primeiro" (o Cusano, naturalmente, ignora as fontes plotinianas do esquema, cf. En., V, 1, 3 e 6, VI, 7). A luz que irradia desse princípio assemelha-se à "revelacão" de Deus em suas obras, tal como a evoca São Paulo em Rom., 1, 19 (cap.20). E, sem duvidar que a "Teologia de Platão" mereça verdadeiramente esse título, é ao mestre da Academia que Nicolau atribui, revelationis via, a "percepção" in mente do autêntico rerum substantia (cap. 21). Verdade no entanto secreta, que Platão não comunicou jamais a não ser por palavras encobertas, pois ela permanece em si ina~ cessível "a todos os modos de visão", até mesmo (dirá o Cusano no capítulo 22) através da pessoa e do ensinamento de Cristo. O termo "revelação" não remete então aqui ao "depósito de fé" no sentido em que os teólogos o entendem comumente, mas a uma descoberta "supra-intelectual" cujo método de coincidência fornece a chave. Apesar das diferenças bastante evidentes, essas fórmulas já fazem pensar na geoffenbarte Religion de Hegel. Em todo caso, os textos "revelados" de São Paulo demonstram, na Directio, o mesmo tratamento exegético que os de Prodo, e são traduzidos semelhantemente no vocabulário do non aliud. O que significa dizer que, por eles mesmos, permanecem "inadequados"; de forma que os capítulos finais do tetrálogo, em qualquer nível que situem o divinus Piato, não contradizem de forma alguma as reservas já freqüentemente expressas pelo cardeal, e retomadas de maneira explícita no capítulo 10 da Directio. Qualquer que tenha sido sua intuição primeira, Platão, no Timeu, equivocou-se ao situar, entre Deus e as coisas, um mundo de modelos puros. Pode-se mesmo pensar, como sabemos, que ao fazer depender todo o cosmo de um único motor, de "potência infinita", Aristóteles, nesse ponto, se aproximava mais da verdade. Interrogado, no capítulo 17, acerca de David de Dinant - que chamava Deus Hyle, Nous e Physis, e definia o próprio mundo como "Deus visível" - , Nicolau reconhece o valor positivo de todas essas fórmulas, sendo o seu erro apenas o de se prenderem ainda ao plano do quid e do aliud. Assim, pode-se pensar que, se os místicos platônicos pressentiram melhor do que os outros "especulativos" a unidade secreta do principium connexionis, nenhum entretanto, como dizia expressamente o Cusano no capítulo 25 do De beryUo, compreendeu plenamente o papel do spiritus, nem em nível da Unitrindade nem no próprio mundo como vínculo ativo do mesmo e do outro. Perspectiva confirmada pelo De venatione sapientiae, um dos quatro tratados escritos pelo cardeal um ano antes de sua morte, e o último 196

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texto no qual ele retoma (com numerosas referências a outros filósofos) o paralelo entre Platão e Aristóteles. No "prólogo", o autor, que se sente envelhecer, remete significativamente a duas de suas obras antigas, o De quaerendo Deum e o De coniecturis (um redigido e o outro retomado e corrigido em 1445, logo, dezoito anos antes); a simples aproximação dos títulos resume todo o projeto cusano. Contudo, enquanto o Compendium (também de 1463) não contém basicamente nenhuma referência histórica, a De venatione sapientiae é inspirada em uma leitura de Diógenes Laércio, e, em um tom menos vibrante do que no De beryllo (no qual ele apresentava seu "berilo" como um meio seguro de "dirigir o fraco intelecto de cada um" para que ele "se aproxime mais da verdade", capo 1), é aqui de forma "tímida e reservada" que Nicolau associa, diz, suas próprias venationes àquelas dos" diversos filósofos" . Tendo lembrado, como nos primeiros diálogos do Idiota, que a sabedoria é o alimento do intelecto (comparada ao sopro vital dos pitagóricos, ao pneuma do Pórtico, e até mesmo às exalações do Oceano com o qual a mitologia alimentava os astros divinizados), o Cusano enfatiza que o instinto natural dos vivos os orienta rumo à alimentação que lhes convém, o que Platão atribui à preexistência das idéias. Mas seria necessário, para tanto, fazer dessas idéias "exemplares exteriores às coisas individuais"? Sabe-se a esse respeito qual é a posição constante do autor. O que lhe interessa, em sua presente perspectiva, é sobretudo a informação transmitida por Diógenes (Vidas dos filósofos, m, 64), segundo a qual a idea platônica é simultaneamente unum e multa, quies e motus e a exegese dessa doutrina (vinda naturalmente do Sofista), que permitiu que Proclo escrevesse (Teol. Piat., IV, 34) que, em virtude de sua conexão com o mundo das Idéias, as realidades singulares deste mundo encontram-se em ligação direta com o divino. Sem dúvida, "maldosos" intérpretes (pensamos, certamente, em Wenck) vêem em tudo isso grandes perigos para a fé, mas o Cusano afirma que tais fórmulas, se são "bem compreendidas" (si bene intelliguntur), se "aproximam" bastante da verdade (cap. 1). Elas não possuem, contudo, um valor exclusivo e, no momento, não se trata mais de excluir de uma visão cada vez mais abrangente a aristotelica secta. Se o Estagirita apresenta a lógica como "o instrumento mais exato para a busca tanto do verdadeiro quanto do verossímil", esta é uma asserção duplamente justificada, e porque a sabedoria, nós o sabemos, "brilha em variadas razões, as quais participam de forma variada da própria ratio", e, do mesmo modo, porque essa razão deve procurar primeiramente no sensível o "alimento" que em seguida ela poderá oferecer ao intelecto. Assim, portanto, é efetivamente à luz de uma logica (em si inata) que cada um procura, mas com "grandes diferenças", a mesma verdade. E é significativo que, em um tratado que dá tanto lugar à dialética do posse facere, Gêneses da Modernidade

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potentia in actum et omne actu exsistens non caret boni participatione. [... J Omne enim eligibile sub ratione boni est eligibile,etc. Sem dúvida Platão discerniu melhor, não apenas que Deus governa todo o universo e não exclusivamente os coe/estia (cap. 8), mas que esse universo é "engendrado" e que o tempo nasce com ele (cap. 9). Aristóteles, entretanto, possui seus méritos próprios: além de sua justa crítica das idéias separadas, e de sua descrição do intelecto como produtor de conceitos, ao mostrar o caráter mutável dos transcendentais, ele reconheceu de forma implícita o princípio superior que é ao mesmo tempo causa unius e entis et bani (cap. 8). É verdade que Moisés, falando "antes dos filósofos" - e para quem sabe decifrar as figuras enigmáticas do "céu", da "terra" e da "luz" - percebeu melhor do que ninguém a relação inicial entre os três posse: e que, sem ter lido o Gênesis, "platônicos e estóicos" (seguindo Anaxágoras) souberam denominar Iogas, mens e opifex esse "Verbo de Deus que a natureza considera para tudo que seja feito" (Verbum Dei ad quod natura respieit ut fiant omnia), e que é ele mesmo Deus (cap. 9). E, entretanto, é ainda ao actus purissimus do Estagirita que remete esse mesmo texto para designar o posse facere da omnipotentia. Conseqüentemente, não é de surpreender que no capítulo 29 (ou Epilogatio), reunindo uma vez mais "os dizeres dos platônicos e dos peripatéticos", o cardeal repita que só se encontrará a intuição do possest, unidade primordial do ser e do poder, com a única condição de "bem compreendê-los quanto ao princípio e à causa". Mas não é igualmente de surpreender - pois praticamente não cessa a oscilação entre as duas atitudes - , que ele enfatize com um particular cuidado o quadro de caça dos "platônicos", lembrando que para eles (Segundo Prado, Teo/. plat., m, 9) "tudo é feito de finito e de infinito", mas também qual o lugar que deram à imagem do Sol, que é a melhor "semelhança da sabedoria". De modo que em companhia do magnus Dionysu, bem próximo do theologus Gregorius (Gregório de Nazianzo, não Gregório de Nissa como acredita Wilpert) e mesmo do divinus Paulus, nosso magnus Plato reencontra Sua primazia; alcançando com ele seu apex, a filosofia "especulativa" juntase então à sabedoria teológica. Mas, como bem sabemos (e o Campendium, contemporâneo do De uenatione, o repete), mesmo nos textos sagrados e em seus comentadores mais autorizados, os signos permanecem inadequados e intrinsecamente conjecturais. Ao apresentar a "Douta Ignorância", o Cusano falava de seus "ineptiae, isto é, formulações "inaptas" para dizer o indizível. Ele termina agora seu discurso com uma nova confissão de humildade e com um apelo àqueles que, lendo-o, irão mais do que ele (e que seus próprios mestres) em um caminho realmente sem fim: "Penso, assim, ter explicado de minhas caçadas o conceito bruto e não tê-lo plenamente depurado tanto quanto me seria possível, subme-

do posse fieri e do posse factum (ternário de inspiração certamente lulliana), o Cusano remeta antes de tudo à frase do Estagirita dizendo que "nada ocorre que seja impossível" (Fís., H 9, 241 b), e do que se deve inferir que o "poder ser feito", antecedente a tudo o que "é feito", remete ao ato puro, como "causa absoluta", mas contém ele mesmo, enquanto aeuum creatum e, entretanto, perpetuum, em estado de "complicação", a "natureza" de todos os singulares que se "desdobram ',' no tempo segundo a Providência divina (caps. 2 e 3). Certamente essa transposição agostiniana do plotinismo nos afasta bastante de Aristóteles. E, na continuação do tratado, os exem~ pIos geométricos, primordiais no De doeta ignorantia, reencontrarão seu papel (notadamente no capítulo 5). Contudo, no capítulo 4, é a própria criação da "arte silogística" que o cardeal toma como exemplo da fecundidade intelectual, tal como se exprime na ligação de duas proposições no interior de uma terceira, e ele enfatiza que um raciocínio desse tipo contém necessariamente três termos, e os associa apenas segundo três figuras. É essa mesma "triplicidade" que ele pensa encontrar "analogicamente" em uma ars creativa constituindo a harmonia do mundo a partir de três termos inseparáveis: ser, vida, inteligência. No capítulo 8 (Quomodo P/ato et Aristoteles venationem fecerunt), o Cusano coloca em relevo (e no mesmo plano) os dois "príncipes da filosofia". Se o primeiro é chamado "maravilhosamente circunspecto" (miro modo circumspectus), por ter visto que as coisas superiores estão nas inferiores "no modo da participação", estas naquelas "no modo da excelência" (segundo Diógenes, III, 13), o segundo é qualificado de acutissimus porque discerniu em cada processo físico a necessidade de um recurso último à causa primeira, contendo eminenter tudo o que age em seus efeitos (aqui, ainda, a fonte é Diógenes, V, 32). E o projeto conciliador se impõe bastante para que o autor, esquecendo-se do que havia dito em uma outra passagem quanto à recusa aristotélica de um principii principium, atribui pela mesma razão aos dois filósofos o fato de terem aberto o caminho à ultrapassagem simultânea do ser, da vida e da inteligência, por referência, pelo menos implícita, a uma causa causarum que seja conjuntamente "ser entre os seus, vida dos vivos e entelecto dos inteligentes" (ens entium, uita uiuentium e intellectus intelligentium). Trata-se aí, bem entendido, de um Estagirita fortemente "platonizado" e, inversamente, a exposição do platonismo é aqui rica em termos aristotélicos, como facilmente demonstram as seguintes frases: "Platão considerava que todos os entes, inclusive os que não estavam ainda em ato, mas somente em potência, são considerados bons pela participação no único Bem. Só há, com efeito, passagem da potência ao ato, e existência em ato pela participação no Bem". (Plato autem [... ] considerabat omnia entia atque etiam nondum actu entia, sed tantum potentia, participatione unius boni bona dici. Processus enim de 198

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tendo tudo isso a quem irá lançar um melhor olhar sobre essas elevadas realidades." (Per haec arbitror mearum uenationum rudem et non plene depuratum conceptum quantum mihi possibile fuit, explicasse, omnia submittens me/ius haec alta speculanti.)

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"RENASCIMENTO" PLATÔNICO SEGUNDO MARSILIO FICINO*

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Quando em 1439 desembarcaram na Itália os enviados bizantinos que vinham negociar com a Igreja romana uma reunificação que a iminente ameaça turca parecia impor, Marsilio Ficino era então apenas um menino de seis anos de idade, mas ocorreu justamente que seu futuro protetor, Cosme de Médicis, gonfaloneiro da república florentina durante aqueles últimos seis anos, fosse encarregado de recepcionar os represen. tantes da "ortodoxia". E ocorreu, também, que estivesse entre eles, muito paradoxalmente, o chefe da tendência "helenista", esse Gemisto Pletão, cujo encontro com Cosme, segundo Ficino, teria, pela virtude de uma propícia configuração astral, condicionado a fundação da Academia platônica de Careggi. Pelo próprio nome que escolhera, esse singular personagem se apresentava como sucessor de Platão e de Plotino. Com sua morte, um outro grego, João Bessarião, que se tornaria amigo de Nicolau de Cusa e, com ele, cardeal da Cúria, escreveria que, forçada pelos "decretos de Adrasto" a voltar à terra, a alma do grande Platão "teria recuperado corpo e vida" em Pletão 1. Singular asserção da parte de um teólogo, ele mesmo menos paganizante que Gemisto, mas, para além da ênfase retórica e das conveniências familiares (Bessarião se dirigia aos filhos do velho defensor do "helenismo"), a fórmula ressalta um dos aspectos do "Renascimento" tal como o concebiam Ficino e seus amigos, pois a "metensomatose" aqui não é senão uma maneira de figurar o autêntico ressurgimento de um passado exemplar. Nascido em Constantinopla por volta de 1360 e dotado de uma tallon· gevidade que permitiu que perdesse, por apenas dois anos, a possibilidade de ver sua pátria sucumbir aos golpes do exército otomano, Gemisto era iniciado em Cabala e conhecia os Oráculos caldaicos, erroneamente atribuídos a Zoroastro.1uiz imperial em Mistra, na fortaleza erguida perto de Esparta pelos cruzados, é seguramente aos "platônicos" que ele associa sua "restauração" helênica e, nesse sentido, Ficino é, efetivamente, de sua linhagem, mas é necessário precisar que a seus olhos o filósofo das Leis (título que Pletão retém para sua própria "Suma" neopagã) só faz prolongar uma tradição muito antiga, a de um veio de sabedoria mais ou menos secreto, vindo do Oriente, e que teria sido comunicado a uma elite de judeus e de gregos.

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>:- Versão resumida de uma comunicação apresentada no Colóquio Platônico de Beaulieu-sur-Mer, setembro de 1990.

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Acreditando, como os estóicos, na universalidade de "noções comuns" que todo homem sensato deve reconhecer, contanto que tape os ouvidos às "inovações de alguns sofistas modernos" ("sofista", na linguagem codificada da época, significa, em geral, "escolástico", isto é, defensor de uma teologia estrita, fechada ao legado antigo - e é bem significativo que o termo aqui esteja ligado a "moderno", qualificativo então aplicado sobretudo aos aristotélicos nominalistas, tão fortemente hostis ao idealismo platônico), Pletão e seus amigos de Mistra desejavam quase abertamente a ressurreição, ou o despertar, mas de qualquer modo a reabilitação, de uma espécie de politeísmo, sem dúvida depurado das "ficções poéticas" que a República denUfl.ciava em Homero e em Hesíodo, mas raramente dando lugar, apesar das indispensáveis prudências lingüísticas, às "visões proféticas" das religiões reveladas. Em seu opúsculo acerca das Diferenças entre Aristóteles e Platão, escrito para esclarecer os latinos, o autor das novas Leis (do qual lêem-se apenas os fragmentos, tendo a obra sido queimada pelo patriarca Genádio) reconhece a primazia _ se não a plena transcendência - do "Uno", definido à maneira neoplatônica como "sobre-essencial". Mas, antes, insiste no modo intermediário das "Idéias", às quais parece atribuir um estatuto de autênticas "criadoras", no quadro, entretanto, de uma "ordem" cósmica em que tudo tem seu lugar desde sempre, incluindo-se aí os "deuses do Tártaro, filhos ilegítimos de Zeus" , encarregados de administrar os reinos vegetal e animal, onde o conjunto dos seres formaram uma cadeia contínua, o Sol e o Homem desempenhando os papéis de mediadores privilegiados. Retornando à sua pátria após o concílio, Pletão devia - muito simbolicamentevoltar para sempre para a Itália, pois o condottiere Malatesta, tomando dos turcos seus restos mortais, interessa-se em transfer"i-los para Rimini, onde repousam ainda no sarcófago que foi instalado, não sem motivo, no lado de fora da catedral. Há aí, sem dúvida, uma série de "signos" que fazem de Pletão o inspirador e, de um certo modo, o patrono do Renascimento florentino, aquele de Ficino e de Pico. Como o mestre de Mistra, às vezes tão inquietantes quanto ele, os protegidos dos Médicis - em torno de uma "Academia" solenemente instaurada, na qual diante do busto de Platão ardia, diz-se, uma chama eterna - pretendem não apenas restaurar essa "elegância ática" , louvada na inscrição funerária em honra de Ficino, mas, mais essencialmente, "fazer renascer o dogma platônico". Este é, efetivamente, para Cosme, o elemento fundamental dessa palingenesia da antiga Hélade tal como a define Agnolo Poliziano, que elogia Marsilio por seu êxito na tarefa na qual o grande Orfeu falhara: trazer dos Infernos uma "Eurídice", cujo nome significa, etimologicamente, mais do que beleza plástica, "amplo julg~mento".

Quando Ficino, especialmente em uma carta a Paulo de Middleburg (Opera, Basiléia, 1576, II, p.944), descreve seu século como uma verdadeira "idade de ouro", ele não pretende absolutamente glorificar as novas descobertas (é na Alemanha, não em Toscana, que se desenvolve a imprensa, e as viagens além-Atlântico do genovês Cristóvão Colombo pouco interessavam a Marsilio), mas sim saudar a "invenção" - no sentido próprio da palavra quando esta designa o encontro de um tesouro há muito escondido - das artes e disciplinas esquecidas ou desprezadas, gramática e retórica; mas também escultura, pintura, arquitetura e, bem entendido, essa "sabedoria" que ele vê agora, às margens do Arno, ligada à eloqüência (à qual se acrescenta, sem qualquer desmerecimento, a união entre a virtude da prudência e a renovação da arte militar, e, de resto, antes as antigas "máquinas" de guerra do que o uso novo da pólvora). Ressurreição da fênix imortal, despertar da Bela Adormecida, esse tipo de "renascimento" é simultaneamente uma ponte lançada através das épocas e - como bem notou Burdach - a transposição de um tema cristão, o de uma regeneração do indivíduo por uma água batismal que o faz, de algum modo, "renascer". Com certeza o sacramento assume, aqui, aspectos que mais de uma vez - sobretudo quando Ficino redescobre Lucrécioinquietam o bom bispo Antonino, que era prior de São Marcos no tempo em que Fra Angelico cobria de afrescos as paredes do convento dominicano. Porém - melhor do que Pletão - o renovador da Academia, que logo acede, ele mesmo, ao sacerdócio, evita opor à sua bastante sincera fé cristã aquilo que irá em breve designar como "teologia platônica". Posição delicada, que será também, em uma outra ambiência, a de um Erasmo e de um More. Encontrar o sentido mais puro do Evangelho - sem com isso sacrificar a liberdade humana a uma rigorosa predestinação - não é ainda uma maneira de "invenção" paralela à redescoberta de antigas estátuas, à restauração de uma filosofia despojada de seus ouropéis "bárbaros"? O que poderia freqüentemente enganar é o uso de uma retórica impregnada de paganismo e, mais ainda, a importância atribuída pelos nossos florentinos aos horóscopos e às conjunturas astrais. Se, para Ficino, o encontro de Cosme com o velho Pletão parecia quase um milagre, em uma segunda vez, no momento em que ele termina para Cosme sua tradução latina de Platão - a primeira tradução completa e a que foi por muito tempo a autorizada - , "admirará" (no sentido forte do termo) que o "heróico espírito" do jovem conde de la Mirandola, nascido como ele sob o signo de Aquário (sendo então, além disso, Saturno "senhor do céu") se apresente a ele para encorajá-lo a prosseguir em sua obra, ou seja, a de traduzir, agora, as Enéadas plotinianas (Opera 11, p.491). Apesar de seu gosto pela Cabala, cuidadosamente cristianizada porém, o quase onisciente Pico permanecerá, mais nitidamente que seu an-

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~, tecessor Marsilio, atento às continuidades históricas. Sempre preocupado em relacionar o que chama a "dignidade do homem" à defesa do livrearbítrio (o que o conduz a uma crítica da astrologia), ele saberá apreciar o estilo "parisiense" dos escolásticos, e conciliará o aristotelismo ao platonismo, considerando fútil a discussão acerca dos respectivos primados do Ser e do Uno (que com o Verdadeiro e o Bem, transcendental mente entendidos segundo a regra da analogia, não constituem, como as quatro causalidades do Estagirita, a verdadeira chave do "Quaternário" pitagórico?). Ficino é muito mais hostil a tudo o que vem de Aristóteles e não tolera a aspereza lingüística da Idade Média - essa media tempestas que exatamente o antigo secretário do Cusano, João André de Bussi, enaltecendo seu mestre morto há pouco, por ter lido todos os livros, os velhos e os recentes, mas igualmente aqueles da época intermediária, delimita claramente, em 1469, distinguindo-a tanto do mundo dos Antigos (prisci) quanto do dos moderni ("modernidade" que certamente não é mais nesse momento, e será mesmo cada vez menos, a via moderna dos ockmamistas). No momento em que Bussi define assim (e batiza) o período de obscuridade do qual a Itália do século XV, mais nitidamente do que qualquer outra parte da cristandade, tem o sentimento (ou a ilusão) de emergir, Ficino traduz hinos árficos e vários tratados do Corpus hermeticum, mas sobretudo mais de dez Diálogos platônicos. No ano anterior, diante de Lourenço o Magnífico, reconciliando-se com um uso religioso caído em desuso desde a morte de Porfírio, os hóspedes de Careggi celebraram muito solenemente o suposto aniversário de Platão. Marsilio comentou o Banquete e parece que ele desejava cada vez mais se identificar de algum modo ao mestre, que ele descreve, em sua Vita Platonis, com traços que se parecem com os seus. Reafirmemos, contudo, que por mais fiel tradutor que ele deseje ser (e que seja, realmente), lhe é tanto menos penoso conciliar o platonismo com seu cristianismo, pois, para ele, o autor do Fédon não é apenas o herdeiro de Pitágoras e do Trimegisto, mas (sem o saber) o discípulo de Moisés. Quando apresentar ao Magnífico, em 1484 (dez anos após sua ordenação), o conjunto enfim concluído de suas versões comentadas dos Diálogos, enaltecendo Platão por ter sabido levar todas as partes da filosofia, ética, lógica, matemática e física, "à contemplação e ao culto de Deus", ele anunciará que a Academia deve se tornar o lugar no qual, "de forma agradável e fácil", os jovens sejam iniciados à arte de dissertar à luz dos preceitos morais, ao passo que os homens feitos aprenderão a disciplina "tanto dos assuntos privados quanto da coisa pública" e que os idosos "esperarão a vida eterna" (Opera 11, p.1130). Mesmo o De Christiana religione (1474) invocava a verdade platônica, descrita, é verdade, como "reflexo lunar do verdadeiro Sol". Retomando o combate de Petrarca contra os paduanos, Ficino escreve, de uma só vez, em 1481, seu Concor204

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dância entre Moisés e Platão, e uma Confirmação do cristianismo pelo socratismo, tanto mais preocupado em difundir a boa palavra quanto mais inquietante se fazia o ruído das bombardas no momento em que os turcos continuavam a avançar em direção ao norte e ao oeste, enquanto o banqueiro Lourenço defende pelas armas, contra o papa Sixto IV, o privilégio de exploração das minas de alúmen. O que significa, nessa perspectiva, a própria idéia de "Renascimento"? Lutando contra um determinismo astrológico que ele imputa ao aristotelismo árabe, Ficino parece associar, ainda e sempre, às conjunções de estrelas e de planetas, para além dos episódios de sua própria vida, a renovatio veterum que deveria conduzir Florença e o mundo a uma nova idade de ouro. Às críticas de um bispo húngaro contra sua adesão ao platonismo, ele responde que seu propósito é o de encontrar, no interior do "gênero comum da religião", o que ele denomina "a melhor espécie". Com efeito, jamais o brilho do Sol é totalmente ofuscado, mas a sabedoria fundamentai, da qual os textos de Platão são um testemunho incomparável, tem necessidade de ser periodicamente "renovada". Será preciso pensar que essas renovações sejam anunciadas pelos astros? Certos árabes ligaram o judaísmo a Saturno, o cristianismo a Mercúrio e o Islã a Vênus (opinião que evocava Nicolau de Cusa, sem endossá-la, em um de seus primeiros sermões). Ao que Ficino objeta que "as mudanças de religião são bem mais raras do que os encontros entre os astros"; para ele, não mais do que o eclipse que acompanhou a Crucificação, a estrela que guiou os Magos para Belém não pertence ao curso "natural" dos corpos celestes (Opera I, p.818)2. Mas isso significa admitir que a "alma astral" - avatar da anima mundi platônica (a mesma que Abelardo quis identificar ao Espírito Santo) - se exprime, de tempos em tempos, como que por intermédio de fenômenos significativos, cujos únicos intérpretes são os raros hermeneutas que participam, eles mesmos, do caráter "divino" das almas astrais. Através da sucessão dessas espécies de teofanias mediatizadas, poder-se-ia falar de um verdadeiro progresso no qual a roda do tempo não traz, sob a forma de "renascimento" ou de "despertar", senão o simples retorno do mesmo? É preciso observar que, nesse ponto, os textos de ficinianos não são muito claros. Os mais antigos parecem a atribuir a Hermes, a Zoroastro, a Pitágoras o mesmo saber que encontrarão em seguida Platão e Plotino, e que diz respeito às revelações de Moisés. A partir do De christiana religione, Marsilio se afina mais com a abordagem bíblica. Inclinando-se a acreditar que o antigo legislador iraniano foi filho de Cam (outras vezes discípulo de Abrãao), ele chega a sugerir, retomando um tema de Bruni, pouco compatível com sua própria depreciação de Aristóteles, que o Estagirita era judeu, assim corno o "bárbaro" que, segundo o Epinomis, "inventou a filosofia" . Entretanto, ao término de urna discussão em Pico della Gêneses da Modernidade

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Mirandola, entre médicos "hebreus" e um de seus correligionários convertido, Ficino remete finalmente a Platão como ao "mestre não vencido de nossa santa religião". Graças a ele, e graças igualmente a Próculo e a lâmblico, os filhos de Israel devem aprender, como outrora Fílon, a compreender melhor a mensagem de seus profetas. Na linha de certas exegeses de lndividuum und Cosmos in der Philosophie de Ernest Cassirer (concernente a uma suposta "aspiração faustiana para o infinito" , dificilmente discerníve1 em autores como Ficino ou, após ele, Charles de Bovelles), André Chastel destaca as passagens da Theologia platonica, especialmente em XIII, 3, nas quais a vis hominis aparece como "quase semelhante à natureza divina" porque, nascendo mais desarmado do que os outros animais, o homem criou habilmente para si os meios técnicos de subsistir. Tema banal já desenvolvido no mito de Pratágaras e retomado, desde Gregório de Nissa, por vários autores cristãos. Ficino enfatiza preferencialmente os aspectos espirituais da civilização, e enaltece particularmente tudo o que manifesta a vocação específica de uma alma imortal. Se evoca naturalmente as estátuas falantes e andantes dos egípcios e o planetário de Arquimedes (sem fazer nenhuma alusão às descobertas de seu tempo a não ser por uma referência, mas bastante insistente, à construção de relógios e de autômatos), é preciso notar que Zêuxis é exaltado por ter imitado a natureza a ponto de enganar os pássaros, e que a engenhosidade da mens humana consiste, aqui, apenas em submeter a matéria a formas preexistentes no intelecto divino (Theol. plat. X, 20), e absolutamente em não criar algo novo. Em 1463, ao apresentar sua tradução do Poimandres, Marsilio evoca o tempo em que, segundo ele, teriam vivido simultaneamente Moisés, Atlas e Prometeu, suposto antepassado de Hermes. Mais tarde acrescentará Zoroastro à sua lista, mas sem infletir para um dualismo qualquer a "única religião, sempre semelhante a ela mesma" que ele quer discernir por toda parte. Mitra, Ormuzd e Ahriman não são, para Marsilio, senão "os três princípios que Platão denomina Deus, Espírito e Alma" (De amore 11, 4). Assim, bem mais do que no De pace fidei do Cusano, parece aqui excluída a própria noção de sucessivos "renascimentos", em que cada um significaria um autêntico progresso. Se o cristianismo é apresentado aqui ou lá como "fé nova", resta que seus dogmas próprios, julgamento dos mortos, ressurreição, vida eterna, já sejam anunciados pelos antigos profetas, judeus ou gentios, e deve-se convir que a imagem que deles oferece Ficino - na qual a narrativa bíblica da Criação é entendida como uma simples multiplicação da Luz original em potências que movem as órbitas celestes, comunicando sua força unitiva aos quatro elementos - permanece, quanto ao essencial, bastante próxima de uma koine plotinoestóica, cujos temas fundamentais (panpsiquismo e simpatia universal) ca206

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racterizam O conjunto do que nós chamamos "o Renascimento", mas cujos aspectos (para nós arcaicos), que ele imagina constitutivos do único corpo de verdade e, por esse motivo, reviviscentes em cada novo ciclo, Marsilio separa. Ainda que pouco progressista no sentido moderno da palavra, essa filosofia permanece, no conjunto, otimista. Sem dúvida o próprio Ficino se diz de temperamento melancólico (não será essa, segundo o Aristóteles dos Problemas, a característica comum a todos os intelectuais?), mas pensa que, através de um bom regime de vida (aquele que, na qualidade de médico, ele descreve cuidadosamente em De triplici vital, o homem pode lutar contra os efeitos maléficos da conjunção entre Marte e Vênus e, assim, se encontrar em harmonia com o conjunto de mediações hierarquizadas através das "almas" vegetais e animais que constituem um universo quase mágico. Melhores do que outras, entretanto, algumas regiões privilegiadas, em períodos propícios, reatando ligações com uma eterna platonica theologia quase indiscernível da christiana religio, podem chegar ao "esplendor do Bem soberano" - pela graça do Amor que "se oferece a quem quer que o procure", ao passo que as outras divindades (numina) se mostram "apenas e aos poucos àqueles que as procuram por muito tempo" - essa "via agradável e fácil" que Marsilio sonhava abrir, em sua nova Academia, a todos os beneficiários de uma nova idade de ouro.

NOTAS 1 Ver F. Masai, Pléthon et le pléthonisme de Místra, Paris, 1956, p. 306 sq. 2 Ver Nicolau de Cusa, Opera omnia, XVI, 1, éd. Haubsr, Hamburg, 1970, Sermo 2, p. 21 sq.

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XI. VIAGENS ALEGÓRICAS E UTÓPICAS (DANTE, MORUS, RABELAIS, CAMPANELLA, BACON)

Na imaginação de Dante, o Ulisses homérico, tendo escapado dos sortilégios de Circe, ao invés de tomar o caminho para fraca, quer alargar seu horizonte, para além do pequeno Mediterrâneo 1. Para descobrir um mundo mais amplo, ele conduz seus velhos companheiros por esse Okeanós, onde - graças aos mesmos textos de Aristóteles que, quatro ou cinco gerações depois de escrita a Divina Comédia, iriam inspirar Colombo - os leitores do "mestre daqueles que sabem" pressentiam que essas correntes perigosas, algum dia, conduziriam um navegador audaz sobre uma Terra indiscutivelmente esférica até as índias, ao mesmo tempo ocidentais e orientais. É possível que Ulisses, pregando aos marujos enfraquecidos por um descanso muito prolongado, tome por um mondo senza gente (v. 117) esse oceano supostamente sem ilhas nem margens próximas para onde os chama a grande aventura, mas trata-se também dessas terras desconhecidas cuja exploração se oferece a todo ser humano digno de sua vocação. De fato, aos velhos companheiros que a feiticeira outrora transformou em porcos, o herói dessa expedição fictícia e verdadeiramente insensata apela com vigor para que não vivam como animais e sim como devem fazer aqueles que são dotados de virtute e conoscenza (v. 119-120). Os benefícios que o Ulisses de Dante espera obter de sua última expedição são antes morais que econômicos: manifestar sua audácia, sua força de caráter, a vocação do homem novo em vias de conquistar o comando e a posse do mundo, mas também sua hybris, pois Dante, afinal de contas, não escapa dos velhos tabus sobre o Okeanós intransponível. Após cinco meses de navegação para o sudoeste no sentido contrário à luz que vem do Oriente, mas na própria linha do percurso solar (dietro ai Sol), aumentando a imprudência por um desvio progressivo em direção à Antártica, uma vez que o naufrágio vai ocorrer nos antípodas de Jerusalém, em algum lugar no Oceano Índico, Ulisses em vez de encontrar uma ilha povoada por bons selvagens ou por sábios utopia nos acabará por se chocar com a "montanha escura" do Purgatório, cuja base chega ao Inferno, lugar mítico aonde o grande Lúcifer, segundo uma tradição mulçulmana, depois de expulso do Céu, teria se projetado de cabeça baixa. Decerto não é por sua última audácia que o rei de Ítaca será punido no oitavo círculo do Inferno, o dos fraudadores, nem por suas aventuras propriamente odisseanas, mas sim por ter imaginado com Diomedes O ardil infame do cavalo de madeira. E contudo não resta dúvida de que o disGêneses da Modernidade

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curso de Ulisses a seus companheiros, quando eles ultrapassam as Colunas de Hércules, tem também a ver com a "fraude", porque não há bússola nem leme (gouvernail d'êtambot), a embarcação desde a partida está condenada ao naufrágio.

Para sua primeira viagem transatlântica, esta bem real, Colombo

estará evidentemente mais bem-equipado. A partir de 1340, logo depois da época de Dante e de Duns Escoro, portugueses e magrebinos descobriram pouco a pouco as possíveis escalas na entrada do Oceano, Madeira, as Canárias, os Açores. E o genovês dispõe da caravela. Mesmo assim, por seu princípio mesmo - sem ser propriamente utópico, por não visar mundos imaginários, proporcionadores de exempla políticos, mas aqueles países do Extremo Oriente já descritos, não sem alguns embelezamentos pelo veneziano Marco Polo - o projeto passa com toda justiça por quimérico

aos olhos dos prudentes geógrafos de Lisboa. No De coe/o, Aristóteles declarava que, pelo menos comparado ao dos outros astros, o volume da esfera terrestre não era considerável, pois um mínimo deslocamento em direção ao norte ou ao sul é suficiente para que se perceba uma nítida modificação na figura do céu; ora, não é "absurdo" imaginar que um único mar separe a índia do Marrocos, países aliás aparentados uma vez que ali como aqui se encontram elefantes2 • Segundo os Meteorológicos só é possível a vida para o homem numa zona restrita, espécie de cinturão de clima temperado que inclui justamente as Colunas de Hércules e a foz do Ganges. A distância entre os litorais africano e asiático é avaliada pelo Estagirita em cinco terços daquela que separa, diz ele, a extremidade meridional da Etiópia da ponta setentrional da Cítia, limites do que considera regiões inabitáveis 3 • Colombo conhecia bem esses textos mas, raciocinando por analogia a partir de uma documentação mais recente, julgava pelo menos provável a existência de um cordão insular nos postos avançados da Ásia. Previsão certamente razoável; em troca, de todas as estimativas propostas sobre o comprimento da circunferência terrestre, ele escolheu deliberadamente as menores. Por outro lado, interpretando ao modo de T oscanelli o relato de Marco Polo, superestimava bastante a extensão da China e a do mar do Japão. Todos esses erros somados, ele situava "Cipango" a duas mil e quatrocentas milhas marítimas das Canárias, ou seja, mais ou menos no

mar de Sargaços4 Desse conjunto de ilusões, assim denunciadas pelos geógrafos lusitanos, melhores especialistas que os conselheiros de Isabel a Católica, o

ardil da história iria fazer do 12 de outubro de 1492 a mais fabulosa realidade. Excelente navegador, em menos de cinco semanas o genovês liga 210

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não certamente o Marrocos à índia, mas pelo menos as Canárias a Guanahani. Ali onde esperava um encontro com a brilhante civilização asiática descrita por Polo, ele é acolhido, de modo ingenuamente afável, por homens nus que parecem desconhecer até o uso de armas brancas. Gente completamente diferente, com certeza, dos utopianos de Morus. A ligação histórico-mítica entre lenda, história e fábula política é, entretanto, perceptível. Isso por intermédio de Vespúcio, o qual- por causa de uma expedição talvez fictícia e que ele situava em 1497, um ano antes de Colombo aportar em Trinidade -logo iria se tornar o herói epônimo do novo

continenteS. Terá sido por simples acaso que o Raphad Hythlodée de Morus, esse "contador de lorotas", se apresenta como companheiro de Américo? Mas não se trata mais de descobrir uma quarta parte do mundo, nem a terra dos bons selvagens (os arauaques das Bahamas, logo reduzidos à escravidão), nem a dos malvados caraíbas (sem tardar acusados de canibalismo e destinados à exterminação imediata), e sim de imaginar um lugar de Nenhuma Parte para a república platônica. Deve-se abrir aqui um lugar, como convida o próprio texto de Rabelais, à viagem burlesca que se anuncia desde o capítulo XIII do Pantagruel, quando o bom gigante abandona Paris diante da notícia de que

os Dipsodos invadiram o país dos Amalrotas? Episódio rapidamente esquecido ou adiado, mas que remete a Morus pelo nome de Amalrota, que se tornou o de um povo, enquanto na Utopia designava a capital da ilha imaginária. No capítulo XXVIII, o patrônimo do rei Anarca retoma e prolonga os jogos marianos de Nenhuma Parte. No Terceiro Livro as alusões se multiplicam. Ali, Pantagruel transporta para sua terra vassala de Dipsódia uma colônia de utopianos encarregados de propagar entre uma população arredia o espírito de "fidelidade" e de "obediência", mas o que se segue é o longo, o enigmático desenvolvimento sobre as dívidas e os devedores, dificilmente referível ao paradigma de uma cidade sem moeda. Sem dúvida o tema do pantagruelião não deixa de ter relação com o da viagem, aqui mais profética do que "utópica", quando o vemos servir aos povos "árticos" para "vencer o mar Atlântico, passar os dois Trópicos, girar sob a zona tórrida, medir todo o zodíaco, brincar sob o equinócio, ter um e outro pólo diante dos olhos, à flor de seu horizonte", a ponto de atemorizar os deuses olímpicos e de anunciar verdadeiras expedições no cosmos (cap. LI), mas muito mais do que em Morus - a despeito da evidente diferença de tom - se pensa aqui em Nicolau de Cusa que, no Livro II (cap. XI) de sua Douta ignorância, simula uma espécie de viagem espacial para mostrar que um astronauta, em qualquer lugar do mundo onde se encontrasse, acreditaria estar no centro (fictício) de uma circunferência (ilusória). Em Rabelais trata-se apenas de enganar os olimpianos, Gêneses da Modernidade

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1 . da "Casa de Salomão", enquanto o episódio das palavras geladas (cap. LV e LVI) pertencem ainda ao domínio da ficção científica, estranho ao universo mariano, mas importante em Campanella e Bacon; em um Contexto mais propriamente utópico, a passagem em Ganabin (cap. LXVI) implica a abolição de toda sanção penal. Ao que denomina as "Musas Anti-Parnaso", Rabelais opõe, como se sabe, o remédio radical de um grande golpe de bombarda; conclusão direta mas um pouco decepcionante no plano da reflexão política.

único meio para os mortais de uma espécie de deificação. Brincadeira impertinente ou esboço de antecipação científica, trata-se em todo caso de algo muito diferente dos propósitos de Morus. De fato é apenas no Quarto Livro que Pantagruel embarca para o Oceano para consultar o oráculo da divina garrafa Bacbuc. Esquadra fantástica de trirremos, galeras e outras embarcações heterogêneas, tão numerosas quanto as de Ajax no tempo da guerra de Tróia, mas todas equipadas com o maravilhoso pantagruelião. O canto do Salmo CXIV parece atribuir ao empreendimento uma finalidade religiosa, a busca de algum segredo libertador. Na verdade, empurrados por um vento norte-nordeste as embarcações vagam na mesma direção que o barco de Ulisses no Canto XXVI do Inferno. Como para Colombo, o objetivo da viagem é "Catay na índia superior", não pela rota africana dos portugueses (o cabo da BoaEsperança), mas sempre em frente através do Okeanós, entretanto um pouco ao sul, à "esquerda" do "paralelo de Olona". Na verdade Rabelais não nos diz nada sobre a América, mas descreve, realizada em quatro meses, a travessia da Europa para a Ásia com que sonhava o almirante genovês. Estabelecidas essas premissas geográficas, que nos reconduzem ao quadro aristotélico no qual encontramos, sucessivamente, Alighieri, Colombo, Vespúcio e o Hythlodée mariano, o autor parece esquecer seu projeto inicial (e iniciático); sua enumeração bufa de escalas absurdas - a despeito de tantos trabalhos científicos onde se evocava ora o Egito ora o Canadá - parece escapar a qualquer identificação precisa dos lugares. Para o que nos interessa agora, retenhamos apenas que no capítulo II o nome de Medamothi (entendido como "Lugar Nenhum" na Breve declaração) equivale com bastante exatidão ao de Utopia - se é verdade que essa ilha de belo aspecto reúne, como A Cidade do Sol e a Nova Atlântida, prolongamentos, tanto uma como outra, da cidade mariana, os mais raros exemplares de espécies animais, as plantas e as obras de arte de todos os continentes, se ali vemos em "quadros" as Idéias de Platão e os átomos de Epicuro, bem como animais estranhos de pelagem variadas -, mas sobre sua constituição política e seu regime social Rabelais nada diz. Em troca - mas essa utopia não é mais do que a das antecipações técnicas -, é ali que Pantagruel recebe de uma gaivota a mensagem de Gargântua, o qual, à falta de Chappe e Edison, só pode responder por intermédio de um pombo-correio. Inútil nos demorarmos com os carneiros de Panúrgio, cujo simbolismo sócio-político é uma evidência banal de todas as épocas, nem insistir na bizarra confusão de parentescos do capítulo XI, na ilha de Enasin. Jogos lingüísticos de caráter paródico, mais do que fábula filosófica, cotejando a utopia. Por sua vez, na ilha dos Macreons (cap. XXV)6, os monumentos reunidos de todas as civilizações prefiguram o estilo da "Cidade do Sol" e

Depois da viagem rabelesiana falta-nos lembrar as duas imitações da obra de Morus, a de Campanella, que escreve em 1602 sua A Cidade do Sol e a publica em 1623, e a de Bacon, que compõe em 1622 sua Nova Atlântida, que aparecerá em 1627. O périplo descrito pelo dominicano calabrês se situa na Ásia e num clima francamente equatorial. A Cidade do Sol se apresenta como um república encravada entre reinos hostis, em algum lugar no arquipélago da Sonda nas vizinhanças de Sumatra. Marinheiro de Colombo, o narrador conta sua navegação ao redor do mundo, sua chegada ao Ceilão, Sua fuga diante dos indígenas enfurecidos. Mais ainda que o Amalrota de Morus, a cidade solariana é o tipo da cidade utópica feita em sete círculos concêntricos, com quatro portas como as castra romanas. Subtraída das influências ela é cercada por muralhas impenetráveis. O espírito pedagógico da utopia, cada vez mais manifesto, se revela aqui no papel do templo central com seus preciosos mapas do Céu e da Terra e seu livro sagrado, contendo todos os segredos da metafísica campaneliana, mas também seu museu de pedras preciosas, suas coleções de minerais e de vegetais, de pássaros e peixes, os inventários de todos os saberes e de todas as técnicas. Originário ele também de um país de velha civilização, não mais a Pérsia ou o Egito, mas a índia, o povo solariano, fugindo dos mongóis, abrigou-se nas montanhas para adotar um modo de vida "realmente filosófico e comunitário", mais próximo do ideal platônico que do descrito por Morus, porque o princípio de comunidade se estende com algumas modalidades singulares ao domínio sexual, e porque Campanella atribui grande importância à eugenia. Ali também as muralhas com as quais os solarianos se cercam não os impedem absolutamente de enviar através de todos os oceanos pesquisadores encarregados de inventariar tudo o que se faz, aqui e ali, seja de bem seja de mal. Assim as viagens desempenham um papel essencial na vida da cidade, mas só concernem aos simples cidadãos de modo indireto. Em troca, assim como na utopia de Morus, a guerra permanece como um meio positivo de comunicação e propaganda. Corajosos, bem armados, os solarianos conquistam pela força "amigos" que em seguida tratam de "proteger". Embora reconheçam que outros povos

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1 possuem alguma sabedoria, por exemplo os habitantes do Sião, da Cochinchina e da costa de Malabar, eles praticam um proselitismo ativo. É por isso - surpreendente paradoxo para uma cidade encravada, onde o autor não descreve qualquer porto - a marinha tem todas os privilégios e eles chegam mesmo a inventar - outra forma de pantagruelião - navios sem velas nem remos, cuja única força motriz seria feita com contrapesos e cordas entrecruzadas. O ideal de Campanella, evidentemente, mais que uma cidade fechada, descrita a título de puro modelo, é essa unificação do universo com a qual ele sonhará até o fim e para qual as viagens de Colombo são, a seus olhos, um dos sinais precursores. Assim se justifica para ele a audácia dos aventureiros, fossem eles conquistadores "sedentos de riquezas", "em busca de terras novas". Porque estes precisamente (assim talvez como os mercadores que Duns Escoto evocava em termos mais prosaicos) eram destinados pelo próprio Deus, como se não quisessem, a um fim mais nobre. Para Campanella, em menos de um século o mundo mudou mais do que em quatro mil anos. Fica claro que não se trata mais de uma utopia propriamente insular, mas de uma verdadeira embriaguez da descoberta. Não mais um ideal de vida agrária, apenas artesanal, mas de uma sede de técnica; depois da bússola, das armas de fogo, da imprensa, as invenções só podem se multiplicar. Os solarianos já descobriram a aviação, eles esperam muito da arte das lunetas e, no domínio da acústica, não estão longe de captar a harmonia das esferar celestes. Nada disso, evidentemente, deve se limitar a um pequeno povo asiático, num mundo onde, a se crer no autor, o reinado crescente das mulheres torna manifesto o progresso.

para ficar seis semanas na cidade proibida de Bensalem, confinados em princípio num lazareto especial onde são muito bem cuidados (em espe-

Em Bacon, que deixou inacabada a sua Nova Atlântida, é do Peru para a China, e com mais detalhes técnicos do que em Morus ou em Campanella, que se realiza uma travessia do Pacífico em doze meses, interrompida finalmente por falta de vento e de víveres. O narrador e seus companheiros chegam a um porto desconhecido num país rico em belas florestas. Também ali - é a regra para o gênero - um velho passado de sólida civilização serve de base cultural para o exemplum pedagógico. Os habitantes de Nova Atlantis praticam em relação ao estrangeiro uma profilaxia bastante minuciosa, mas é em hebreu, em grego, em latim e em espanhol que eles notificam por escrito aos passageiros aflitos a proibição de desembarcar, anunciando-lhes, entretanto, que podem fazer levar a bordo os víveres que lhes faltam. Como é preciso que o narrador se informe dos usos e costumes da cidade, Bacon imagina que, ao fim de uma longa negociação, tendo provado seus atributos de bons cristãos (os habitantes da Atlântida nova parecem menos tolerantes e menos ecumênicos que seus modelos utopianos e solaria nos), os infortunados navegantes obtêm permissão

cial do escorbuto, com limão e uma dieta apropriada), mas mesmo depois que seus anfitriões os consideram bastante inofensivos para lhes revelar uma parte de seus segredos, em hipótese alguma, devem se afastar da capital mais do que uma milha e meia. A palavra de ordem aqui parece ser a dos sentinelas em seus postos de observação: ver sem ser vistos e conhecer sem ser conhecidos. Convertidos ao cristianismo vinte anos depois da Ascensão (por meio de uma miraculosa arca de cedro contendo um Bíblia acompanhada de uma epístola de Bartolomeu para autenticá-Ia), os indígenas descritos por Bacon conheceram originariamente outras tradições. Parece que misturados aos fenícios e aos asiáticos eles navegaram muito até o momento em que recolheram os últimos sobreviventes da antiga Atlântida. É por imitação dos chineses que, para salvaguardar seus tesouros culturais, eles recusam aos estrangeiros o acesso a seu litoral, mas para acumular essas coleções e essas informações de que se orgulham precisam de navios. O autor estima que para isso seriam suficientes dois navios partindo em expedição a cada doze anos. O caráter limitado e absolutamente unilateral dessa espécie de comunicação, pouco compatível a primeira vista com o tema baconiano do Advancement of Learning, sugere a referência a um tipo de iniciação, ligado sem dúvida a algum esoterismo, tema muito distante do humanista Morus, mas do qual se encontra mais de um testemunho em Campanella. É verdade que esse aspecto da Nova Atlântida se manifesta sobretudo na segunda parte da obra, quando intervem uma Cabala vinda, segundo o autor, do próprio Moisés. Mas a esses temas religiosos se mesclam indissoluvelmente os sonhos técnico-científicos de Bacon, quando o narrador autorizado a penetrar nos porões profundos da "Casa de Salomão", ali descobre singulares receitas de coagulação e refrigeração, uma estranha alquimia herdada de Paracelso e que anuncia Novalis. Bensalem possui também altas torres para observação dos astros, estufas botânicas e parques zoológicos onde se praticam muitas transformações de espécies animais. Fonógrafos, aeronaves, submarinos - vindos do imaginário ancestral - anunciam menos a república platônica que O universo moderno. Quando o visitante descobre os principais tesouros desse mundo futuro com todas as suas invenções proféticas ou quiméricas, pacíficas ou guerreiras, o livro se interrompe. O país encantado do saber universal teria então revelado seus derradeiros recursos? Ou o autor teria, ele mesmo, se assustado com os desdobramentos de tal perspectiva? Por volta da época em que Descartes recebe, nas fronteiras do esoterismo, suas primeiras iluminações, e enquanto Campanella, após tantos anos de prisão e de inútil

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correspondência com papas e reis, espera do futuro Rei Sol a chegada de um regime de paz e prosperidade na ordem e na justiça, os sonhos progressistas começam a assumir novas formas, menos utópicas. Mas desde a aventura mítica do Ulisses de Dante até a moda recente das odisséias romanescas ou cinematográficas através das galáxias, passando (especialmente) pelos "Mundos celestes" de Doni, pela "Cidade dos eudemoniânos" de Stiblin, pela "Cristianópolis" de Valentin André, pelo "Outro Mundo" de Cyrano, pela "Basilíade" dos misteriosos Morelli, as fábulas de tipo guliveriano, as façanhas robinsonianas e a busca dos iearos - sem contar (de Mercier a Wells e a Orwell) as escapadas para um futuro sonhado ou temido - sempre haverá lugar, e não só no universo infantil, para as viagens imaginárias numa busca onírica ou pedagógica de uma outra humanidade.

POST-SCRIPTUM NOTAS 1 Inferno, XXVI, 90-142. No Ulisses de Dante, o que triunfa sobre o amor paternal e filial, assim como sobre a ternura por Penélope, é o "ardor de conhecer o mundo". 2 De coe/o, 11, 14, 298a, 12 3 Meteor., 11, 5, 363b, 22-24. 4 P. Chaunu, L'Expansion européenne du XIlIe siecle, Paris, 1969, p. 172 s. 5 Ver acima "Thomas More ou l'utopie réaliste", p. 557s 6 A despeito de um relativo parentesco fonético, esses "homens de vida longa" (em cuja terra encontram-se obeliscos e pirâmides ao lado de estelas gregas e de inscrições árabes e eslavas) nada têm a ver com os "macarianos" (ou bem-aventurados) de Morus; ou pelo menos Rabelais, mais uma vez, nada diz sobre seus costumes políticos.

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I POST-SCRIPTUM

Nesse ano de 1992 (da graça ou da desgraça?), quando se comemoram os grandes feitos da rainha castelhana que expulsou de Granada os últimos magrebinos, limpou seus reinos de todo o sangue misturado e, ainda por cima, ajudando Cristóvão Colombo, contribuiu sem malignidade expressa para o genocídio ameríndio, a cada dia se confirmam o deslumbramento e, com o mesmo impacto, a apostasia de um império totalmente diferente do hispânico, mas também de expansão, virtualmente universal, e que se dizia vetor da mais sedutora utopia, vinda de Platão através de Morus, mas finalmente alçada à problemática dignidade de verdade científica com pretensões totalizantes. Ao reler hoje as últimas palavras do nosso capítulo final, como não especular sobre o que pode significar o sonho ou o modelo daquilo que designamos enfaticamente como "outra humanidade", no momento em que parece se impor por toda a parte, sob a capa de uma "economia de mercado", triste expediente mais do que uma norma, a luta de morte de grupos financeiros, mais mortífera, afinal de contas, do que as justas dos cavaleiros e os assaltos da infantaria contra fortalezas que, entretanto, não eram mais que moinhos? Experimentada em escala reduzida por pequenas confrarias evangélicas e seitas pentecostais ou milenaristas, a comunidade dos bens e dos pensamentos - muito excepcionalmente, como em Münster, com Jean de Leyde, aquela das mulheres - mereceria permanecer como um "não-lugar" que o autor da Utopia definiu a contragosto? As coisas não poderiam ter sido melhores sem os acasos históricos (ou, se preferirmos, as finalidades providenciais, no caso mais demoníacas do que divinas que induziram, em 1917, dessa maquete totalmente teórica a aplicação, no mínimo prematura, mal adaptada em todo caso, à conjuntura, de modo que o recurso a formas de coação mais sistemáticas (e mais perniciosas) que as previstas por Thomas Morus, como simples necessidades temporárias, comprometeu permanentemente o ideal comunista e tornou derrisórias as belas promessas de uma libertação do indivíduo, de sua harmonização com a natureza, da maravilhosa passagem da pré-história para a história? Sob as formas as mais diversas, algumas das quais - as carnificinas de 1914-1918, Auschwitz, Dresden, Hiroshima - nada têm a ver com o mau uso da utopia e apenas prolongam as barbáries ancestrais, acrescentandolhes os atrozes aperfeiçoamentos da alta técnica, nosso século (na vã comGêneses da Modernidade

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pensação de seus inegáveis progressos médicos) conheceu destruições maciças, iguais ou superiores às piores atrocidades de um passado sombrio. Será isso o mesmo que dizer que foram totalmente abafados os temas de paz e concórdia que se tentou valorizar em Pedro Abelardo, Raimundo Lullo, Nicolau de Cusa, Guilherme de Postela, predecessores do Abade de São Pedro, de Emanuel Kant, do cândido presidente Wilson e de alguns idealistas rapidamente saídos de cena? Qualquer resposta que se dê à pergunta, vê-se que, no que se refere a peregrinações frutíferas através de ilhas bem-aventuradas, deixando de lado as puerilidades da ficção científica com suas fantásticas escapadas para fora de nosso tempo e de nosso espaço, aliás mais belicosas, em geral, do que pacíficas, este século pode de fato se vangloriar de ter lançado humanos no deserto lunar e robôs curiosos até a extremidade de nosso pequeno Sistema Solar, mas numa época em que se anunciam - em simetria talvez com os dilúvios legendários e os míticos engolfamentos de terras civilizadas - possíveis, prováveis ou confirmadas catástrofes: desertificação dos solos e ruptura das camadas protetoras na alta atmosfera. À falta de uma revolução (ou de uma revelação), que o autor de A Cidade de Deus só situava no recônditos da consciência (ou num para-além, onde o joio se separa do trigo), pode-se ainda esperar da ciência e da técnica os novos mirabilia que, entre Campanella e Descartes, o autor de A Nova Atlântida profetizava? É de Ernst Bloch, encontrado em Cerizy em 1959 e acolhido na Sorbonne como doutor honoris causa, que, contra todo desencorajamento, o velho homem que assina estas linhas tomará de empréstimo sua última palavra. Com efeito, completando e corrigindo a docta ignorantia de Cusano, o autor de Prinzip Hoffnung a ela associou, com um teor mais estiml).lante, essa inextirpável esperança, nutrida pelo conhecimento e guarnecida pela coragem, que nomearemos aqui, como ele, na antiga língua sábia de nossa Europa, uma docta spes.

Maio, 1992

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Maurice de Gandillac

SOBRE O AUTOR

Professor de filosofia na Sorbonne de 1944 a 1977, autor de mais de trezentos artigos que constituem um verdadeiro corpus, Maurice de Gandillac publicou livros notáveis sobre Nicolau de Cusa, Plotino e Dante. Medievalista, mas também germanista, desenvolveu uma atividade considerável como tradutor: do Pseudo-Denis a Abelardo e Nicolau de Cusa; de Hegel, Novalis, Nietzsche, Scheler e Brentano a Benjamim e Bloch ... Maurice de Gandillac é presidente da Associação dos Amigos de Pontigny, que organiza os célebres colóquios de Cerisy.

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