ANÁLISE SEMIÓTICA DE UM TEXTO KAINGANG Marcelo Pinho De Valhery Jolkesky (PPGEL - UEL)

Resumo: Este artigo apresenta uma leitura narrativo-discursiva, sob a perspectiva da semiótica greimassiana, de um texto kaingang – Kanhgág ũ kãme. Através da dissecação de sua estrutura nas dimensões actancial, temporal e espacial, da descrição dos seus percursos temático-figurativos e da análise de seus programas narrativos e percursos gerativos de sentido, pôde-se identificar: (i) uma isotopia política, baseada nas oposições /submissão vs autoridade/ e homologada pelos semas /desterro vs território/ e outra cultural, baseada nas oposições /ignorância vs sabedoria/ e homologada pelos semas /comunicação vs isolamento/; (ii) paixões depreendidas da disjunção dos sujeitos-destinatários com seus objetos-valores, como o receio e a ambição, ou da sua conjunção, como a confiança e a soberba; (iii) manipulações por sedução e tentação e (iv) debreagens de 1º e 2º graus e embreagens de 1º grau. Palavras-chave: análise discursiva, língua kaingang, semiótica

1. INTRODUÇÃO Neste trabalho apliquei a teoria greimassiana num texto kaingang – língua jê, de tradição oral, falada em cerca de 30 áreas distribuídas pelos Estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Em §1.1 retomo as origens da semiótica greimassiana e alguns de seus conceitos e propriedades fundamentais. Em §1.2 apresento sua teoria, que explica – sob vieses semântico e sintático – como se estruturam os percursos gerativos de sentido nos textos. Em §2 analiso minuciosamente as estruturas discursivas e semionarrativas de “Kanhgág ũ kãme”, texto extraído da coletânea Kanhgág si kãme (Silveira, 1997) e em §3 exponho minhas considerações finais. 1.1. Semiótica greimassiana: origens e princípios A semiótica greimassiana, também chamada semiótica gerativa, fundamenta-se na lingüística estrutural de Saussure, na semiologia de Barthes e na glossemática de Hjelmslev, assim como a partir das formulações de Propp e Lévi-Strauss sobre a organização da narrativa em textos míticos e folclóricos. Caracteriza-se como uma teoria da significação, não se preocupando com o signo propriamente dito. Partindo de princípios, como o que determina o conteúdo pelas diferenças (Saussure, 1970: 139), o que prevê a linguagem como processo, e não como estado (Chomsky), e o que a divide em dois planos – conteúdo e expressão – (Hjelmslev, 1975: 51), Greimas, em sua obra Sémantique structurale, propõe um modelo para analisar e explicitar as estruturas significativas que compõe o percurso gerativo do sentido nos discursos. Nesta obra, Greimas estabelece os três princípios que embasam a análise semiótica: (i) o da imanência, segundo o qual todo

Monografia apresentada em dezembro de 2006 ao Prof. Dr. Luiz Carlos Migliozzi Ferreira de Mello, docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem do Centro de Letras e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Londrina, como requisito parcial para a aprovação na disciplina Semiótica II.

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elemento condensa em si qualidades intrínsecas – características que existem independentemente de se manifestarem fenomenologicamente; (ii) o da estrutura, segundo o qual o universo – uma “sopa” caótica de informações difusas, divergentes, desconexas – só pode ser concatenado com logicidade através de simulacros figurativizados da realidade, configurados em axiologias elementares (ex.: /vida/ vs /morte/). É a partir destas oposições, que mantêm uma relação de contrariedade e pressuposição recíproca, que se fundamenta o quadrado semiótico (veja Figura 1); e (iii) o da isotopia, segundo o qual os textos reiteram determinadas categorias semânticas (temáticas ou figurativas), que orientam a leitura e reforçam seu conteúdo, evitando ambigüidades. Estas propriedades permitem que a interpretação da estrutura e conteúdo de um texto se sustente dentro de seu próprio plano de expressão (Fiorin, 1995a).

(Figura 1: representação da axiologia /vida/ vs /morte/ no quadrado semiótico: as linhas bidireccionais contínuas representam uma relação de contradição, as bidireccionais tracejadas uma relação de contrariedade e as linhas unidireccionais uma relação de complementaridade.)

Logo, a semiótica greimassiana considera o texto como a manifestação de um “microuniverso semântico” dotado de significação própria, cujo entendimento independe de fatores extratextuais (históricos, autorais, etc). Neste sentido, o conceito de texto para a semiótica é bem mais amplo do que os tradicionalmente determinados – abarca textos escritos, falados, visuais (pinturas), melódicos (sinfonias), gestuais (coreografias), plásticos (esculturas), etc, ou mesmo combinações destes (filmes, canções, etc) (Mello, 2004: 124-125). 1.2. O percurso gerativo Segundo Greimas (apud Fiorin, 1995b), o percurso gerativo do sentido nos textos estaria dividido em três níveis: fundamental, narrativo e discursivo, cada qual com uma sintaxe e semântica próprias. 1.2.1. O nível fundamental No nível fundamental articulam-se as categorias semânticas inscritas nos quadrados semióticos. A combinação das relações de identidade e alteridade ali figuradas constitui o modelo a partir do qual se geram as significações mais complexas da textualização. Ainda neste nível aplica-se a noção de timia (euforia vs disforia) sobre cada uma dessas categorias – uma axiologia que define valores positivos e negativos, desejados e temidos, proibidos e devidos, etc. Por exemplo, a categoria semântica /natureza/ vs /civilização/ apresentará possivelmente valores opostos nos discursos de um ecologista e de um industrial (Fiorin, 1990, p.20).

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1.2.2. O nível narrativo No nível narrativo revelam-se as transformações lineares de estado orientadas pelos “atores” do texto. Aqui surgem os papéis actanciais de sujeito e objeto (com relações conjuntivas ou disjuntivas), assim como os de destinador e destinatário (com relações fiduciárias ou polêmicas). O destinador é o doador de valores da narrativa e o instaurador de seu(s) objetos(s) e sujeito(s). Neste universo, ele articula as condições que modalizam o sujeito para que este realize uma ação transformadora (Ramos, 2004:38-40). 1.2.2.1. As modalizações do sujeito A modalização deste sujeito perpassa três etapas de existência: (i) sujeito virtual – o que quer e/ou deve fazer – e caracteriza aquele que hipoteticamente é candidato para realizar a ação; (ii) sujeito atualizado – o que pode e sabe fazer – e caracteriza aquele que está apto para realizar a ação, que, porém, ainda não se realizou e; (iii) sujeito realizado – o que executou a ação – e caracteriza o responsável pela transformação de estado na narrativa. Existe também uma quarta existência modal – o sujeito potencializado – o que tem uma pré-disposição para executar a ação, visto que todo actante precisa estar motivado a executar a performance (também mencionado na literatura como sujeito ativado) (Mello, 2004: 127-128). 1.2.2.2. O objeto Na narrativa existem dois tipos de objeto: o objeto-modal, aqueles cuja aquisição é necessária para se realizar a performance, e o objeto-valor, aquele conquistado com a realização da performance. Assim, existem dois tipos de programas narrativos: os de base, que sumarizam a realização da performance principal, e os de uso, secundários, que articulam a busca de objetos modais para a aquisição da competência do sujeito (Fiorin, 1999). Por exemplo, numa situação onde uma mulher se submete à uma cirurgia plástica de rejuvenescimento, os temas comportam-se da seguinte forma: o sujeito destinador é uma paixão (a vaidade) que faz o sujeito-destinatário (a mulher) entrar em conjunção com um objetomodal (a cirurgia plástica) que a capacita para entrar em conjunção com seu objeto-valor (a beleza). 1.2.2.3. A estrutura narrativa Toda narrativa inicia-se com um registro enunciado de estado (ser, existir), que evolui para enunciados elementares de fazer. Cada transformação dessas representa um programa narrativo, cujos encadeamentos lógicos (em que um programa pressupõe outro) configuramse em percursos narrativos e em seqüências narrativas. (Fiorin, 1999). Assim, a narrativa passa a ser vista como uma sucessão de estados e de transformações desencadeada por uma sucessão de estabelecimentos e rupturas de contratos entre um destinador e um destinatário.

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A sintaxe narrativa engloba os sujeitos e as quatro etapas que integram o esquema narrativo: a manipulação (fazer-fazer), a competência (saber-fazer), a performance (fazer-ser) e a sanção. A manipulação – o fazer persuasivo ou o fazer crer do destinador – é uma força que instiga a vontade do destinatário, ou circunstancialmente o obriga, forçando-o a engajar-se numa determinada performance (dever-fazer), que impulsiona o programa narrativo. Pode assumir quatro formas principais: a tentação, a intimidação, a provocação e a sedução. Para que a manipulação ocorra, o sujeito destinatário precisa crer nos valores apresentados pelo destinador, i.e., depende de seu fazer interpretativo, que acarreta numa aceitação (relação fiduciária) ou rompimento (relação polêmica) do contrato proposto. Este fazer interpretativo depende das modalidades veridictórias da imanência (ser) e da manifestação (parecer-ser), que se articulam nas vertentes verdade, falsidade, segredo e mentira. Neste contrato, o objeto-valor representa um dos componentes essenciais e aparece como a projeção sintagmática da estrutura contratual (Mello, 2004:132-139). A competência é fundamentada por uma hierarquia de modalidades – um querer-fazer ou dever-fazer – que rege um poder-fazer e um saber-fazer, fatores indispensáveis para a execução da performance (Cardin, 2004: 171-173). A performance ocorre quando o sujeito estiver integralmente modalizado, e representa uma ação transformadora da qual se derivam novos “estados de coisas”, nos quais se conquistaram valores cognitivos e/ou pragmáticos (Cardin, 2004: 173-174). A sanção, figura que descreve um julgamento da performance – quando positiva, revela seu sucesso, quando negativa, aponta para uma falha na sua execução. Toda sanção permite restabelecer o equilíbrio narrativo rompido pela performance. Ela pode ser cognitiva, quando o destinador-julgador expressa sua consideração sobre a operação realizada em relação à ação prevista (p.ex. através de um agradecimento ou xingamento) ou pragmática, quando o destinador-julgador – adotando a função de sujeito-actante – procede com uma premiação ou um castigo (Cardin, 2004: 174-175; Barros, 2001: 39-41). 1.2.2.4. O estudo das paixões Em virtude desse tipo de abordagem – a investigação das relações actanciais entre destinador e destinatário, das modalizações do fazer, dos tipos de manipulação e sanção, das organizações sintáticas e do processamento dos percursos no interior de um esquema narrativo – Greimas e Fontanille passaram, a partir de “Semiótica das paixões”, a aprofundar-se nos estudos de estados complexos derivados de relações intermodais. Segundo estes autores, é a partir desses arranjos intermodais que surgem as paixões ou “estados de alma”. Entretanto, dado que o mesmo arranjo modal pode produzir diferentes efeitos passionais, faz-se necessário um rastreamento de seus percursos gerativos e uma investigação paralela sobre as relações actanciais do discurso, dos programas e dos percursos narrativos para que suas sutilezas e traços distintivos sejam devidamente comprovados (Mello, 2004: 139-140; Mello, 2005: 49-52).

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1.2.3. O nível discursivo No nível discursivo estuda-se a projeção da enunciação no discurso e suas estratégias ilusórias ou persuasivas para promover nele um efeito de realidade ou falsidade. Aqui os sujeitos estão figurativizados, i.e., têm nomes e estão instaurados num determinado tempo e espaço, onde os acontecimentos do nível narrativo acontecem. As idéias abstratas nele veiculadas – hostilidade, ingenuidade, privação, etc. – são revestidas com elementos concretos que representam coisas, atitudes e qualidades no mundo natural, perceptíveis pelos sentidos. O objetivo da análise discursiva é pois identificar no texto as figuras e suas trajetórias sintetizadas em temas e descrever as relações estabelecidas entre eles (diferenças, semelhanças, oposições). Temas encerram conceitos abstratos (filosóficos, ideológicos) que interpretam, categorizam e ordenam a realidade percebida pelos sentidos. As figuras, por outro lado, representam os elementos – coisas, pessoas, lugares, datas e fatos concretizados no discurso. Através da sintaxe analisam-se as figuras, classificadas em três eixos: actancial, temporal e espacial, enquanto que a semântica examina os temas e suas relações com as figuras (Cardin, 2004: 28-31; Fiorin,1995b: 168-170). 1.2.3.1. As marcas da enunciação A enunciação, explica Barros (2003), caracteriza-se como a instância de mediação entre estruturas narrativas e discursivas, e pode ser reconstruída sobretudo a partir das “marcas” deixadas no discurso. Tais “marcas” ou projeções da enunciação fundamentam a análise dos mecanismos utilizados pelo enunciador para provocar os efeitos de sentido desejados. Ele, em contrapartida, como responsável pela produção do enunciado, está sempre implícito e pressuposto. Tais mecanismos teriam, em última análise, a finalidade de criar uma ilusão de verdade. Através das marcas que a enunciação deixa no discurso, aquela pode estabelecer com este uma relação de aproximação ou de afastamento, correspondentes aos efeitos de sentido de subjetividade e de objetividade. Existem duas estratégias para o enunciador criar estes efeitos de verossimilhança e realizar um simulacro: através das debreagem e das embreagens. 1.2.3.1.1. Debreagem A debreagem expulsa da instância de enunciação a pessoa, o espaço e o tempo do enunciado, projetando para fora categorias semânticas que vão instaurar um universo de sentido – um não-eu, um não-aqui e um não-agora – diferentes do eu-aqui-agora inerentes ao enunciador (Fiorin, 1996:43-44). A debreagem enunciativa ocorre quando o enunciador provoca um efeito de aproximação à instância da enunciação, manifestando-se em primeira pessoa e simulando uma atuação num tempo e espaço presentes (Tatit, 2002:203). Em outras palavras, a enunciação instaura-se pelo eu, aqui e agora. Este efeito de proximidade é utilizado quando se pretende “temperar” de subjetividade o texto, imprimindo uma visão pessoal sobre os fatos vividos ou narrados. É o caso das autobiografias e diálogos (Fiorin, 1996:45). A debreagem enunciva ocorre quando o enunciador instaura no discurso figuras do enunciado, i.e., quando refere-se a outrens, alhures e outrora. (Fiorin, 1996:44-45). Este distan-

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ciamento é usado quando se pretende fabricar uma ilusão de objetividade, comum, por exemplo, nos textos jornalísticos. Os efeitos de realidade ou de referente são ilusões discursivas que acarretam uma interpretação dos fatos contados como “verdadeiramente ocorridos”. Eles são conseguidos através de uma série de debreagens internas, quando, por exemplo, no interior do texto, cede-se a palavra aos interlocutores, que se expressam em discurso direto. O efeito de referente ocorre freqüentemente em textos jornalísticos quando se quer reproduzir a fala de algum entrevistado, colocada entre aspas, eximindo qualquer responsabilidade desta por parte do redator. A ancoragem – ligação de elementos textuais a seus referentes externos, como locais, nomes e datas – também é um recurso muito usado na literatura com o intuito de produzir efeitos de ilusão de referente ou de realidade (Barros, 2003). 1.2.3.1.2. Embreagem A embreagem é o efeito de retorno à instância da enunciação, através da neutralização das categorias de pessoa, tempo e/ou espaço. Assim, pela embreagem, obtém-se um efeito de identificação entre sujeito do enunciado e sujeito da enunciação, tempo do enunciado e tempo da enunciação, espaço do enunciado e espaço da enunciação. Portanto, para toda embreagem está pressuposta uma debreagem (Bertrand, 2003:90-92).

2. ANÁLISE O texto escolhido – Kanhgág ũ kãme – centra-se na figura de um kaingang que gostaria muito de falar português. Num primeiro momento, ele tenta recriar na comunidade uma festa tradicional dos não-índios, procurando convencê-los de que detém conhecimentos daquela cultura. Num segundo momento, quando um não-indígena passa a morar nas redondezas, os kaingang ficam receosos de sua presença e pretendem expulsá-lo. É então que aquele kaingang, simulando uma competência, instaura-se como porta-voz da comunidade, atuando da forma esperada por todos. 2.1. Segmentação textual Nesta análise adotei a proposta de Greimas para segmentar a narrativa baseando-se nas figuras actanciais, espaciais e temporais – estratégia que permite desmembrá-la em seus percursos gerativos de sentido e perceber as distintas modalizações do ser/parecer e do fazer de seus sujeitos, assim como as suas relações eufóricas/disfóricas. 2.2. Estrutura discursiva A estrutura discursiva compreende três subcomponentes da discursivização: atores, tempos e espaços. Cada um deles será abordado sob aspectos semânticos e sintáticos.

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2.2.1. Semântica discursiva 2.2.1.1. Actorização Os atores são constituídos a partir da junção de seus papéis temáticos (que definem seu vínculo a um percurso figurativo) com seus papéis actanciais (que definem sua posição dentro dos programas narrativos). Os atores (A) do texto em análise estão figurativizados em: (A1) o kaingang – manifesta-se inicialmente como sujeito-virtual do /não-poder-fazer/ e do /querer-saber-fazer/. Em vista disso, assume papel actancial de destinador-manipulador (fazer-crer-ser) para em fim adquirir status de sujeito-atualizado do fazer (poder-fazer) em virtude de uma sanção cognitiva positiva de A2. (A2) a comunidade indígena – manifesta-se como objeto-modal e sujeito-destinatário do /crer-saber/, o que a “capacita” como sujeito-julgador e destinador de A1 para que este realize a performance de expulsão de A5. (A3) a comunidade não-indígena – comporta-se como sujeito-destinador-manipulador de A1, configurado pelas modalizações do /fazer-querer-fazer/ e do /fazer-fazer-crer-ser/. (A4) a moça não-indígena – comporta-se unicamente como objeto-modal que instaura A1 como sujeito do /saber-fazer/ e do /poder-fazer/. (A5) o homem não-indígena – comporta-se unicamente como objeto-modal que instaura A2 como destinador /fazer-fazer/ e A1 como destinatário /dever-fazer/. 2.2.1.2. Temporalização O tempo (T) no texto segmenta-se em seis partes, articuladas por três momentos (M): a festa não-indígena (M1), a aparição de um homem não-indígena (M2) e o diálogo com o homem não-indígena (M3): (T1) antes de M1 – período introdutório que marca a estabilização do contrato C1 entre A3 (destinador) e A1 (destinatário), pelo qual a linguagem dos não-indígenas assume papel de objeto-valor para A1.. Revela também que as atitudes de A1 estão vinculadas a um pré-contato com A3. (T2) durante M1 – período no qual A1 realiza uma performance manipuladora, a partir da qual se formaliza um novo contrato (C2), agora entre A1 (destinador) e A2 (destinartário), em que a festa não-indígena assume papel de objeto-modal para A1 e de objeto-valor para A2. (T3) depois de M1 e antes de M2 – período em que A1 adquire, aos olhos de A2, status de sujeito atualizado, com relação a C1. (T4) durante M2 – período em que se estabelece um novo contrato C3 entre A5 (destinador) e A2 (destinatário), em que a terra assume papel de objeto-valor em disjunção para A2. (T5) depois de M2 e antes de M3 – período em que se estabelece um novo contrato (C4) entre A2 (agora como destinador) e A1 (destinatário), em que A1 aparece como único sujeito potencializado para a realização da performance que culminará na anulação de C3.

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(T6) durante M3 – período em que A1 simula a performance requerida por C4. (T7) depois de M3 – período em que A1 adota postura vitoriosa, pois virtualmente o contrato C1 está realizado, o que representaria sua conjunção com o objeto-valor nele previsto. Tendo em vista a realização da performance prevista em C4, este período também define-se pela expectativa da anulação de C3. O período (T1) caracteriza-se como introdução da trama. Entre (T2) e (T5) ocorre o desenvolvimento, que culmina no clímax (T6). O desfecho, que representaria o tempo (T7) não se concretiza completamente – o que poderia gerar uma sensação de certo “desconforto” para o enunciatário. Este poderia inquirir verbalmente pelo desfecho, caso a história fosse contada e não escrita (fato em culturas de tradição oral). Em relação ao protagonista (A1), pode-se afirmar que suas performances procedem em etapas bem definidas temporalmente – programação da festa – realização da festa (fogos na fogueira – cantoria) – abordagem da mulher não-indígena – abordagem do homem nãoindígena. A aparição do homem não-indígena marca temporalmente o momento chave para que o programa narrativo de base se realize (confira §2.3.). 2.2.1.3. Espacialização Refere-se à demarcação espacial e a sua utilização com fins de significação. Espacialmente a narrativa é marcada por três universos: (E1) a área indígena – comporta a unidade territorial de soberania da comunidade kaingang (A2). Conjetura-se, a partir das “marcas” textuais, que este espaço corresponda ao habitado por uma comunidade tradicional, e pressupõe contatos muito esporádicos com colonizadores (A3), visto que num dado momento da história “não havia ninguém que conversasse” com eles. (E2) as áreas circum-vizinhas de E1 – comporta um espaço de potencias conflitos interétnicos. (E3) a área povoada pelos não indígenas (A3) – comporta a unidade territorial de soberania dos colonizadores – aqui também configurada como áreas desconhecidas pela comunidade indígena, somente visitada por um kaingang (A1). 2.2.1.4. Percursos figurativos e temáticos Os percursos figurativos (PF) e seus percursos temáticos (PT) podem ser representados por: PF1

=

“festa não-indígena”

PT1

=

F A1 ⇒ [(A2 ⋃ A3) → (A2 ⋂ A3)] ⇒ [(A1 ⋃ t1) → (A1 ⋂ t1)]

“contato intercultural sob a perspectiva de A2”

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PF2

=

“aparição e permanência do não-índio nas redondezas de A3”

PT2

=

F A5 ⇒ [(A2 ⋂ t2) → (A2 ⋃ t2)]

“tensão interétnica pela questão da territorialidade” PF3

=

“expulsão do não-índio”

PT3

=

F A1 ⇒ [(A1 ⋂ t3) → (A1 ⋂ t3)]

"elevação do status de A1 dentro de A2” onde: t = papel temático t1 = sabedoria t2 = soberania t3 = autoridade A festa não-indígena (PF1) comporta-se unicamente como objeto-modal que capacita A1 a /saber-fazer/; a “invasão” do homem não indígena (PF2) como objeto-modal que candidata A1 a /dever-fazer/, ação que representa sua conjunção com o objeto-valor (falar português). 2.2.2. Sintaxe discursiva 2.2.2.1. Actorização O sujeito da enunciação está implícito e pressuposto como um kaingang (o texto está escrito na língua kaingang), que principia seu discurso projetando os actantes através de debreagens enuncivas de 1º grau. Em negrito estão representados os momentos de instauração dos atores no discurso: A1 (2)

Kỹ tá kanhgág ũ tóg nĩ ja nĩgtĩ,...

“E lá morava um índio...”

A2 (5)

Kỹ tóg ti mré ke ag kógfyn mũ,...

“Então ele convidou seus amigos...”

A3 (6)

...fóg ag tỹ festa han ve ja nĩgtĩ,...

“...tinha visto uma festa dos não-índios...”

A4 (11)

...hãra tóg tá ũ fóg fi vég mũ.

“...e lá viu uma moça não-índia.”

A5 (13)

Hãra kejẽn fóg tóg...

“Certo dia um não-índio...”

O plano da ação entremeia-se de situações dialógicas – caracterizadas como debreagens de 2º grau. Estes diálogos são esporádicos e estão exemplificados pelas frases abaixo:

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debreagem enunciativa (4) Hãra kejẽn kanhgág ẽn tóg “sỹ festa han ke vẽ”, he mũ. “Certo dia aquele kaingang falou: ‘vou fazer uma festa’.” debreagem enunciva (24) “Ti kutẽnh ke nẽ ha”, he tóg, kanhgág ag mỹ. “‘Ele já vai sair!’, disse aos kaingang.” Percebe-se no texto uma ocorrência de embreagem actancial enunciativa lexicalizada. (8) Hãra tóg inh hã vãn kaprũg mũ,... “Então ele mesmo fez fogo e queimou taquaras,...” Neste caso, observa-se que a lexicalização deste intensificador – usado em todas instâncias actanciais – evoluiu a partir de uma debreagem enunciativa: tóg

inh hã

3.S.NOM

1.S ENF

“ele mesmo” (lit.: “ele eu! (e não outro)”) 2.2.2.2. Temporalização O enunciador evoca o paralelismo temporal entre passado e presente para compor seu discurso, alternando debreagens temporais de 1º grau enuncivas e enunciativas. Logo na primeira frase estabelece uma concomitância temporal entre o discurso e a realidade através de uma debreagem enunciativa: (1) Kanhgág ag jamã vỹ tóg nĩgtĩ, vãnh kã há tá. “Existe uma aldeia kaingang no meio da mata” As marcas aspecto-temporais nĩ(g) “estado” e tĩ “progressivo” presentificam a situação tematizada, aproximando-a do tempo da enunciação. EM seguida, o enunciador produz uma debreagem enunciva de 1º grau, reposicionando a história no tempo do então.

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(2) Kỹ tá kanhgág ũ tóg nĩ ja nĩgtĩ,... “E lá morava um kaingang...” A posposição ja “estado resultante” determina que algo (nĩ = estar, morar) fora processado antes do presente (nĩgtĩ). O enunciador retorna várias vezes ao presente através de debreagens temporais enunciativas de 1º grau. (3) Kỹ tóg ã tỹ gãr pẽ he kỹ: gãrãnh pẽ he tĩ. “Assim, sempre que quer falar pururuca, diz ‘gãrãnh pẽ’.” (16) Hãra ũ tỹ ti mré vĩnh ke tóg tũ tĩ. “Mas não há ninguém para ir falar com ele.” Nos casos acima, o emprego de tĩ “progressivo” e o apagamento das marcas do tempo do então parecem “afirmar ironicamente” que o kaingang em questão ainda não sabe falar português. Nos diálogos, ocorrem debreagens temporais de 2º grau. (4) Hãra kejẽn kanhgág tóg “sỹ festa han ke vẽ”, he mũ. “Certo dia o kaingang falou: ‘vou fazer uma festa’.” Em (4), a noção de futuro – expressa no diálogo através da marca ke “prospectivo” – se redefine a partir do tempo do enunciado – o passado – marcado no discurso pela posposição mũ “aspecto perfectivo”. Aparecem dois casos de embreagem temporal enunciativa no texto. Em (22) o enunciador projeta no presente uma situação claramente ocorrida no passado. (22) Kỹ fóg tóg ti vég jẽ nĩ, ti tỹ ti vĩ ki kagtĩg nĩn kỹ. “O homem fica olhando para o índio, porque não entende nada do que ele disse.” Esta ruptura da linha temporal no discurso serve possivelmente para aproximar a situação – cenicamente cômica – do enunciatário. Aqui vale uma ressalva: em culturas de tradição oral, histórias costumam ser relatadas com gestos e performances que contribuem para a estesia do enunciatário.

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Em (24) o advérbio ha “agora” presentifica o futuro na fala do kaingang. (24) “Ti kutẽnh ke nẽ ha”, he tóg, kanhgág ag mỹ. “‘Ele já vai sair!’, disse aos kaingang.” 2.2.2.3. Espacialização O espaço está inicialmente marcado no texto, partindo da perspectiva do sujeito enunciador, através de uma debreagem enunciva de 1º grau. (1) Kanhgág ag jamã vỹ tóg nĩgtĩ, vãnh kã há tá. “Existe uma aldeia kaingang bem lá no meio da mata.” (2) Kỹ tá kanhgág ũ tóg nĩ ja nĩgtĩ,... “E lá morava um índio...” O enunciador, a partir de então, transfere a instância de enunciação para dentro da referida aldeia, através de uma debreagem enunciativa de 2º grau. Esta projeção revela-se pelo uso dos dêiticos “este”, para referir-se ao kaingang em questão, e “lá”, que corresponde a lugares fora da aldeia (próximo a um rio; onde o não-indígena se instalara). (2) ...kỹ kanhgág tag tóg fóg vĩ tó há nĩ sór ja nĩgtĩ. “...e este kaingang queria falar português.” (6) Hãra kanhgág tag vỹ tóg... “Pois este kaingang...” (11) ...hãra tóg tá ũ fóg fi vég mũ. “...e lá viu uma moça não-índia.” (20) Kỹ tóg tá jun kỹ ti mré vĩ mũ. “E, chegando lá, falou com ele.” Num dado momento o enunciador passa a referir-se ao kaingang pelo dêitico “aquele”, o que pressupõe um distanciamento proposital do universo narrado a partir da retomada da perspectiva espacial estabelecida no início do texto.

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(17) Kỹ ũ tỹ fóg vĩ tó hã nĩ sór mũ ẽn tóg... “Então aquele kaingang que afirmava poder falar português...” 2.3. Estrutura semionarrativa A narrativa desmembra-se em 10 programas narrativos concatenados logicamente, fundamentados no querer dos dois sujeitos protagonistas, que visam objetos-valor distintos: (S1) kaingang:

busca falar português

(S2) comunidade kaingang:

busca defender sua territorialidade

O primeiro programa narrativo de base caracteriza-se pelo sujeito S1 que busca entrar em conjunção com seu objeto-valor (falar-português) através do reconhecimento da sua comunidade (S2). Tal reconhecimento é conquistado pela simulação desta competência intelectual (poder-fazer), sem entretanto estar capacitado para isso (não-saber-fazer). PNbase1 = F S1 ⇒ [(S1 ⋃ ov1) → (S1 ⋂ ov1)] onde: S1

=

kaingang

ov1

=

falar português

O programa narrativo de base encadeia uma série de outros programas narrativos. Através de programas narrativos de uso, S1 procura fazer S2 crer na sua suposta competência lingüística. Neste universo, a comunidade conforma-se como objeto-modal que o capacitará para realizar a performance e entrar em conjunção com seu objeto-valor (falar a língua dos nãoíndios). Na verdade, ele esperava /poder-saber/ através desse /fazer-crer/. Numa primeira instância, motivado por um possível contato com a comunidade nãoindígena (S3), S1 desenvolve um estado passional – a ambição – caracterizada por um desejo forte de falar português PN1 = F S3 ⇒ [(S1 ⋃ om1) → (S1 ⋂ om1)] onde: S3

=

comunidade não-indígena

omo

=

contato com a cultura não-indígena

om1

=

ambição

Análise semiótica de um texto Kaingang – Marcelo Jolkesky (2006)

13

A partir de então, esta paixão assume papel de objeto modal que virtualiza S1 dentro de um novo programa narrativo (PN2). Seu conhecimento prévio sobre elementos culturais de S3, predestina-o a tornar-se um sujeito atualizado. PN2 = F S1 ⇒ [(S2 ⋃ om2) → (S2 ⋂ om2)] onde: S2

=

comunidade kaingang

om2

=

festa não-indígena

PN2 caracteriza-se por um contrato fiduciário entre S1 – o sujeito-destinador – e sua comunidade (S2) – o sujeito-destinatário –, em que aquele apresenta um universo estrangeiro, figurativizado pelas operações que constituem o “fazer a festa”, “estourar taquara” e “cantar uma música”, com o que procura demonstrar “saber ser branco”. Neste programa, S1 promove conjunção entre S2 e om2, instaurado através da realização da festa não-indígena, e isto modaliza S2 a crer em S1. Aqui destacam-se duas manipulações previstas por Greimas: a sedução é subliminar e caracteriza-se pela fala de S1 com sotaque aportuguesado representada em (3), o que promove uma aproximação dos universos indígena e não-indígena dentro da comunidade kaingang. (3) Kỹ tóg ã tỹ gãr pẽ he kỹ “gãrãnh pẽ” he tĩ. “Assim, sempre que quer falar pururuca, diz ‘gãrãnh pẽ’.” A tentação, inseridas no nível do /poder/, aflora quando ele convida os amigos a participar da festa não-indígena que fará. Observe também, que o kaingang se utiliza de uma palavra portuguesa (festa), mesmo existido um correspondente em sua língua (tỹgtỹnh), como garantia de que será uma festa não-indígena. (4) Hãra kejẽn kanhgág tóg “sỹ fénhta han ke vẽ”, he mũ. “Certo dia o kaingang falou: ‘vou fazer uma festa’.” (5) Kỹ tóg ti mré ke ag kógfyn mũ, kỹ tóg fénhta han mũ. “Então ele convidou seus amigos e fez a festa.” A sedução e a tentação configuram-se respectivamente como um /fazer-querer-fazer/ e um /fazer-poder-fazer/. Nesta fase, o kaingang torna-se um sujeito-atualizado dentro do programa narrativo de base. Este fazer persuasivo de S1 provoca em S2 uma identificação e uma aceitação da cultura de S3. PN3 = F S1 ⇒ [(S2 ⋃ ov2) → (S2 ⋂ ov2)]

Análise semiótica de um texto Kaingang – Marcelo Jolkesky (2006)

14

onde: ov2

=

cultura de S3

Este sentimento de identificação é uma confirmação do crer de S2 em S1 – do crer de S2 em um embuste – visto que a performance da reza ou canto cerimonial ao lado do fogo é tradição kaingang, e não da sociedade brasileira. Observe em (10) que S2 identifica-se justamente com a reza. (10)

S1”.

Kỹ ti kanhkã ag tóg “jãn há tavi ti nĩ” he mũ. “Então seus familiares disseram: ‘Ele sabe rezar muito bem’.”

E isto configura-se como uma isca para gerar em S2 um sentimento de “confiança em

PN4 = F S1 ⇒ [(S2 ⋃ om2) → (S2 ⋂ om2)] onde: om2

S1.

=

confiança em S1

Até este ponto depreendem-se as paixões: (i) ambição de S1 e (ii) a confiança de S2 em

A função da mulher não-indígena que surge neste momento da narrativa (11) e é interpelada por S1 (12) é exatamente de reforçar a confiança de S2 no /poder-fazer/ de S1 – mesmo tendo ele falado com ela em kaingang. (12)

Kỹ tóg fi mỹ “sĩ tãvĩ, sĩ tãvĩ”, he mũ. “Então ele disse para ela: ‘sĩ tãvĩ, sĩ tãvĩ (muito bonita, muito bonita)’.”

PN5 = F S1 ⇒ [(S1 ⋃ (S4 ⋂ ov1)) → (S1 ⋂ (S4 ⋂ ov1))] onde: S4

=

mulher não-indígena do rio

ov1

=

falar português

Isto representaria um /querer-fazer-crer/ de S1. Um conjunto de ações marca sua dinâmica para “confirmar sua competência”. (11)

Kar kỹ tóg kurã ũ kã goj ra tĩ mũ, hãra tóg tá ũ fóg fi vég mũ. “Depois disso, num outro dia, ele foi para o rio e lá viu uma moça não-índia.”

Análise semiótica de um texto Kaingang – Marcelo Jolkesky (2006)

15

Observe que a proximidade entre S1 e S4 e o distanciamento relativo destes com S2 contribui para o sucesso da performance do PN5. Sua interação com a S4 caracteriza-se como “prova visual” de sua competência, i.e., S2 pode ver S1 falar com S4, mas não pode escutá-lo. PN6 = F S1 ⇒ [(S2 ⋃ (S1 ⋂ ov1)) → (S2 ⋂ (S1 ⋂ ov1))] O conteúdo axiológico desta “crença” é confirmado adiante pela aceitação “compulsória” de S2 para que S1 vá conversar com um não-indígena (confira 17-19). Neste ponto, S1 passa a ostentar um status de sujeito-realizado dentro do primeiro programa de base, cuja realização é condição sine qua non para a instauração de um segundo programa de base, pelo qual S1 busca entrar em conjunção com um novo objeto-valor: a autoridade. PNbase2 = F S1 ⇒ [(S1 ⋃ ov3) → (S1 ⋂ ov3)] onde: ov3

=

autoridade

Neste caso, a conjunção de S1 com seu objeto-valor ov1 modaliza-o como sujeito virtual do segundo programa narrativo de base. Neste novo contexto, ov1 comporta-se como objetomodal que possibilitará a conjunção entre S1 e ov3. Um novo percurso narrativo inicia-se pois com o aparecimento de um não-indígena (S5) que se instala nas redondezas. (13)

Hãra kejẽn fóg tóg ag rã hã ẽmãn mũ. “Certo dia um não-índio veio morar bem perto deles.”

Sua presença constitui uma provocação para S2, que desenvolve um estado passional – o receio de perder sua territorialidade. PN7 = F S5 ⇒ [(S2 ⋃ om3) → (S2 ⋂ om3)] PN8 = F S5 ⇒ [(S2 ⋂ ov4 ⋃ om4) → (S2 ⋃ ov4 ⋂ om4)] onde: S5

=

homem não-indígena

om3

=

receio de S5

om4

=

desejo de expulsar S5

ov4

=

terra

Análise semiótica de um texto Kaingang – Marcelo Jolkesky (2006)

16

O receio converte-se quase que instantaneamente noutras paixões – a intolerância e o desejo de restabelecer a soberania ameaçada, exemplificada pela atitude impulsiva de S2 em (14). (14)

Kỹ kanhgág ag vỹ tóg “mũ jé, ti kutẽm jé”, he mũ. “Então os kaingang disseram: ‘Vamos tirar ele daqui!’.”

Durante uma reunião reforçam-se os contratos estabelecidos entre S1 e S2, pois os segundos julgam-se incapazes de realizar tal feito (expulsar S5), como o próprio enunciador, ironicamente, afirma em (16), introduzindo um operador adversativo (em itálico), reaproximando a narração para o presente (em negrito) e utilizando o pronome indefinido ũ – o que imprime a idéia de que nem mesmo S1 será capaz de fazê-lo. (16)

Hãra ũ tỹ ti mré vĩnh ke tóg tũ tĩ. “Mas não há ninguém para ir falar com ele.”

A necessidade vigente de revide modaliza pois S2 como destinador em um novo programa narrativo, no qual S1, em virtude de ser colocado como único capacitado para realizar tal performance, torna-se sujeito de um /dever-fazer/. PN9 = F S1 ⇒ [((S2 ⋂ ov4) ⋂ S5) → ((S2 ⋂ ov4) ⋃ S5)] Está evidente, neste caso, que a candidatura de S1 em (18) se mostra apropriada tanto para ele como para sua comunidade, porquanto esta prevê uma indesejável disjunção com seu objeto-valor – soberania e territorialidade – e aquele sua provável junção com seu objetovalor – a autoridade. (18)

“Kỹ inh hã vỹ ti mré vĩnh mũ”, he tóg. “‘Então eu mesmo vou falar com ele’, afirmou.”

S1, então, avisa sua comunidade que irá até o não-indígena para mandá-lo embora, o que reafirmaria sua conjunção com o objeto-valor previsto por PNbase1 (saber falar a língua dos brancos). Observe que, em seu discurso, S1 extravasa uma paixão – o orgulho – caracterizada pela sua postura vitoriosa. Sua performance é, aqui, inevitavelmente encarada como uma tentativa, pois a frustração, neste contexto, não seria encarada como uma incapacidade de S1 falar português, coisa que aliás definitivamente não poderia ser posta em prova pela comunidade, já que ninguém ali detém a competência para afirmar tal fato, principalmente depois das demonstrações de sabedoria feitas por S1. Em outras palavras, a frustração seria encarada pela não-querença de S5 em acatar suas determinações. A partir daí instaura-se: PN10 = F S2 ⇒ [(S1 ⋃ (S5 ⋂ ov1)) → (S1 ⋂ (S5 ⋂ ov1))]

Análise semiótica de um texto Kaingang – Marcelo Jolkesky (2006)

17

O silêncio de S5 passa a ser considerado como indício de fraqueza. Deste ponto, esperase ainda a realização de outro programa narrativo: PN11 = F S1 ⇒[(S2 ⋂ om3) → (S2 ⋃ om3)] Entretanto, a sanção – indispensável para o desfecho – permanece indeterminada, pois o texto não aponta para qualquer atitude tomada por S5 a partir da interpelação de S1 e consequentemente para o sucesso ou fracasso de sua performance. Nos momentos finais, o discurso de S1 nos revela outra paixão – a soberba. Esta postura imperativa e vitoriosa é caracterizada pelo marcador discursivo evidencial nẽ, que indica haver convicção sobre fato narrado, acompanhado do advérbio ha (agora, neste instante). (24)

“Ti kutẽnh ke nẽ ha!”, he tóg, kanhgág ag mỹ. “‘Ele já vai sair!’, disse aos kaingang.”

2.3.1 Isotopias Esse texto revela duas isotopias: uma política, baseada nas oposições /submissão X autoridade/ e homologada pelos semas /desterro X território/ e outra cultural, baseada nas oposições /ignorância X sabedoria/ e homologada pelos semas /comunicação X isolamento/.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS A semiótica greimassiana tem se desenvolvido numa metalinguagem racional e bastante eficicente para análises dos mais variados textos, inclusive daqueles produzidos por culturas de tradição oral. É evidente que fatos contados oralmente sejam acompanhados de gestualizações, impostações de voz, etc. – traços ausentes na escrita, mas que podem sim enfatizar comportamentos e acrescentar informações relevantes e até conclusivas à história. Este estudo buscou elucidar os fluxos coerentes e veridictórios de sentido contidos no texto Kanhgág ũ kãme. É um texto que apresenta muitas características de oralidade, como a inconstância temporal ou mesmo a ausência de caracterizações minuciosas dos personagens e espaços – elementos que possivelmente se revelariam redundantes dentro da própria natureza da enunciação oral, cujas transtextualidades coexistem e cooperam, reforçando-se mutuamente. É importante salientar que, a língua kaingang só passou a ser escrita na década de 60 com a elaboração de uma ortografia preliminar utilizada em cartilhas pela lingüista e missionária Ursula Wiesemann, sob os auspícios do Instituto Lingüístico de Verão. Assim, sendo a sociedade kaingang de tradição oral mista, onde ainda se nota um uso limitado da escrita (Goody 1979: 254), pode-se considerar suas histórias até agora publicadas como versões escritas de textos transmitidos pela tradição oral, cujas perdas decorrentes da alteração de seu formato de veiculação – do oral (interativo, onde o enunciador é sempre a-

Análise semiótica de um texto Kaingang – Marcelo Jolkesky (2006)

18

cessível) para o escrito (hermético, cujo enunciador não assume valor dialógico), podem dificultar a interpretação de seus enunciados. Por conseguinte, essa análise aponta para a necessidade de reavaliar o estudo da narrativa escrita em sociedades de oralidade mista, já que – neste caso – existem elementos complicadores: a intrusão do oral na escrita, e a conseqüente incompatibilidade de recriar conteúdos idênticos em formatos textuais distintos.

Análise semiótica de um texto Kaingang – Marcelo Jolkesky (2006)

19

ANEXO (i) texto original Kanhgág ũ kãme Kanhgág ag jamã vỹ tóg nĩgtĩ, vãnh kã há tá. Kỹ tá kanhgág ũ tóg nĩ ja nĩgtĩ, kỹ kanhgág tag tóg fóg vĩ tó há nĩ sór ja nĩgtĩ. Kỹ tóg ã tỹ gãr pẽ he kỹ: “Gãrãnh pẽ” he tĩ. Hãra kejẽn kanhgág ẽn tóg: “Sỹ festa han ke vẽ”, he mũ. Kỹ tóg ti mré ke ag kógfyn mũ, kỹ tóg festa han mũ. Hãra kanhgág tag vỹ tóg fóg ag tỹ festa han ve ja nĩgtĩ, kỹ ti mỹ sĩnvi tĩ. Fóg ag tỹ foguete tỹ pẽgpẽg kỹ, kỹ kanhgág ẽn tóg ri ke han sór mũ. Hãra tóg inh hã vãn kaprũg mũ, ti tỹ foguete nágná ri ke han jé. Kỹ vãn nágná kóm tóg jãn mũ, kỹ tóg: “Sẽsĩ krĩ jórá”, he mũ. Kỹ ti kanhkã ag tóg: “Jãn há tavi ti nĩ”, he mũ. Kar kỹ tóg kurã ũ kã goj ra tĩ mũ, hãra tóg tá ũ fóg fi vég mũ. Kỹ tóg fi mỹ: “Si tỹ vĩ, sĩ tỹ vĩ”, he mũ. Hãra kejẽn fóg tóg ag rã hã ẽmãn mũ. Kỹ kanhgág ag vỹ tóg: “Mũ jé, ti kutẽm jé!”, he mũ. Kỹ ag tóg: “He'”, he mũ. Hãra ũ tỹ ti mré vĩnh ke tóg tũ tĩ. Kỹ ũ tỹ fóg vĩ tó hã nĩ sór mũ ẽn tóg: Ũ tỹ mré vĩnh ke tóg tũ tĩ”, he mũ. “Kỹ inh hã vỹ ti mré vĩnh mũ”, he tóg. Kỹ kanhgág ẽn tóg fóg mré vĩnh tĩ mũ. Kỹ tóg tá jun kỹ, ti mré vĩ mũ. Kỹ tóg ge mũ. “Tiótitiótitióti”, he tóg mũ, fóg ti mỹ. Kỹ fóg tóg ti vég jẽ nĩ, ti tỹ ti vĩ ki kagtĩg nĩn kỹ. Kỹ kanhgág tóg ti kanhkã ag ki jun kỹ, ag mỹ: “Vĩn kinh fóg ti mã”, he mũ. “Ti kutẽnh ke nẽ ha!”, he tóg, kanhgág ag mỹ. Kanhgág ũ kãme hã vẽ.

(ii) texto interlinearizado e glosado (1) Kanhgág ag jamã vỹ tóg nĩgtĩ, vãnh kã há tá. Kanhgág-ag

jamã

vỹ

kaingang-P|GEN aldeia TOP

tóg

nĩg

NOM COP

-tĩ

vãnh

-kã



tá.

-PROG

mata

-LOC.dentro bem LOC.lá

“Existe uma aldeia kaingang bem lá no meio da mata.” (2) Kỹ tá kanhgág ũ tóg nĩ ja nĩgtĩ, kỹ kanhgág tag tóg fóg vĩ tó há nĩ sór ja nĩgtĩ. Kỹ



kanhgág ũ

tóg

CONJ.então



kaingang INDEF

NOM sentar -DUR -COP -PROG

kỹ

kanhgág tag tóg

fóg_vĩ

nĩ tó_há_nĩ

-ja

-nĩg

-sór

CONJ.então kaingang este NOM português saber_falar -querer

-tĩ -ja

-nĩg

-tĩ

-DUR -COP -PROG

“E lá morava um índio que queria falar português.”

Análise semiótica de um texto Kaingang – Marcelo Jolkesky (2006)

20

(3) Kỹ tóg ã tỹ gãr pẽ he kỹ: “Gãrãnh pẽ” he tĩ. Kỹ

tóg

ã

CONJ.então 3.S.NOM

-tỹ

gãr_pẽ

he

kỹ:

gãrãnh pẽ

he

-tĩ.

3.S. -ERG pururuca dizerCONJ “gãrãnh pẽ” dizer -PROG

“Assim, sempre que quer falar pururuca, diz ‘gãrãnh pẽ’.” (4) Hãra kejẽn kanhgág ẽn tóg: “Sỹ festa han ke vẽ”, he mũ. Hãra

kejẽn

kanhgág ẽn

CONJ um_dia

tóg

sỹ

festa

han -ke

kaingang aquele NOM 1.S.ERG festa

-vẽ

he

fazer-PROS -COP dizer

-mũ. -PERF

“Certo dia aquele kaingang falou: ‘vou fazer uma festa’.” (5) Kỹ tóg ti mré ke ag kógfyn mũ, kỹ tóg festa han mũ. Kỹ

tóg

ti-

mré_ke

-ag kógfyn

CONJ 3.S.NOM

3.S|GEN amigo

-P

kỹ

tóg

festa

han

-mũ

CONJ 3.S.NOM

festa

fazer

-PERF

-mũ

convidar -PERF

“Então ele convidou seus amigos e fez a festa.” (6) Hãra kanhgág tag vỹ tóg fóg ag tỹ festa han ve ja nĩgtĩ, kỹ ti mỹ sĩnvi tĩ. Hãra

kanhgág tag vỹ

tóg

fóg

-ag -tỹ

CONJ kaingang este TOP NOM não-índio -P -nĩg

-tĩ

kỹ

-COP -PROG

ti

-mỹ

sĩnvi

festa

-ERG festa

han

ve

-ja

fazer

ver -PERM

-tĩ.

CONJ 3.S -BEN bonito -PROG

“Pois este kaingang tinha visto uma festa dos não-índios, que acha muito bonita.” (7) Fóg ag tỹ foguete tỹ pẽgpẽg kỹ, kỹ kanhgág ẽn tóg ri ke han sór mũ. Fóg

-ag -tỹ

não-índio -P kỹ

foguete

-ERG foguete

kanhgág -ẽn

CONJ kaingang -aquele

-tóg

-tỹ

pẽgpẽg

kỹ

-INSTR estourar.P CONJ ri_ke han

-NOM igual fazer

-sór

-mũ

-querer -PERF

“Porque eles estouravam foguetes e aquele kaingang quis fazer igual.”

Análise semiótica de um texto Kaingang – Marcelo Jolkesky (2006)

21

(8) Hãra tóg inh_hã vãn kaprũg mũ, ti tỹ foguete nágná ri ke han jé. Hãra

tóg inh_hã

vãn

kaprũg

CONJ 3.S sozinho taquara ti

-tỹ

foguete

queimar.P PERF

nágná

3.S -ERG foguete

-mũ ri_ke han

estourar.P.PERF igual

-jé

fazer

-FIN

“Então ele mesmo fez fogo e queimou taquaras para estourar como se fossem foguetes.” (9) Kỹ vãn nágná kóm tóg jãn mũ, kỹ tóg: “Sẽsĩ krĩ jórá”, he mũ Kỹ

vãn

nágná

-kóm

tóg

jãn -mũ

CONJ taquara estourar.P LOC.junto 3.S.NOM kỹ

tóg

CONJ 3.S.NOM

rezar-PERF

sẽsĩ

krĩ

jórá

he

passarinho|GEN

cabeça

rajado dizer

-mũ -PERF

“E junto da taquara estourada rezava, dizendo: ‘passarinho de cabeça rajada’.” (10) Kỹ ti kanhkã ag tóg “jãn há tavi ti nĩ” he mũ. Kỹ

ti

kanhkã

CONJ 3.S família

ag

tóg

jãn

P

NOM rezar



tavi

ti



bem muito 3.S|NOM

he



-COP dizer PERF

“Então seus familiares disseram: ‘Ele sabe rezar muito bem’.” (11) Kar kỹ tóg kurã ũ kã goj ra tĩ mũ, hãra tóg tá ũ fóg fi vég mũ. Kar

kỹ

tóg

kurã ũ

terminado CONJ 3.S.NOM hãra



goj -ra



-mũ

dia outro dentro água -DIR ir.S -PERF

tóg



ũ

fóg

-fi

vég

-mũ

CONJ 3.S.NOM



INDEF

não-índio -F|ACU ver.S -PERF

“Depois disso, num outro dia, ele foi para o rio e lá viu uma moça não-índia.” (12) Kỹ tóg fi mỹ: “Sĩ tãvĩ, sĩ tãvĩ”, he mũ. Kỹ

tóg

CONJ 3.S.NOM

fi mỹ



tãvĩ



tãvĩ

he



3.S.F -DIR bonito muito bonito muito dizer PERF

“Então ele disse para ela: ‘muito bonita, muito bonita’.”

Análise semiótica de um texto Kaingang – Marcelo Jolkesky (2006)

22

(13) Hãra kejẽn fóg tóg ag rã hã ẽmãn mũ. Hãra

kejẽn

fóg

-tóg

ag

-rã

-hã

ẽmãn -mũ

CONJ certo_dia não-índio -NOM 3.P -perto -ENF

morar -PERF

“Certo dia um não-índio veio morar bem perto deles.” (14) Kỹ kanhgág ag vỹ tóg: “Mũ jé, ti kutẽm jé!”, he mũ. Kỹ

kanhgág ag

vỹ

CONJ kaingang P

tóg

mũ -jé

TOP NOM ir.P -FIN

ti

kutẽm

-jé

he

3.S|ACU derrubar -FIN



dizer PERF

“Então os kaingang disseram: ‘Vamos tirar ele daqui!’.” (15) Kỹ ag tóg: “He'”, he mũ. Kỹ

ag

-tóg

he

he

-mũ

CONJ 3.P -NOM sim dizer -PERF “E eles disseram: ‘Sim, Vamos!’” (16) Hãra ũ tỹ ti mré vĩnh ke tóg tũ tĩ. Hãra

ũ

-tỹ

ti

-mré



-nh

-ke

tóg



CONJ INDEF -ERG 3.S -COM falar -PRO -FUT 3.S.NOM

-tĩ

NEG -PROG

“Mas não há ninguém para ir falar com ele.” (17) Kỹ ũ tỹ fóg vĩ tó hã nĩ sór mũ ẽn tóg: “Ũ tỹ mré vĩnh ke tóg tũ tĩ”, he mũ. Kỹ

ũ

-tỹ

fóg_vĩ



-hã

-nĩ

-sór

-mũ

-ẽn

-tóg

CONJ INDEF -ERG português|ACU falar -ENF -COP -poder -PERF -aquele -NOM ũ

-tỹ

mré

INDEF -ERG 3.S.COM



-nh

-ke

tóg



-tĩ

he

-mũ

falar -PRO -FUT NOM NEG -PROG dizer -PERF

Então aquele índio que afirmava poder falar português disse: ‘Não tem ninguém pra falar com ele’.”

Análise semiótica de um texto Kaingang – Marcelo Jolkesky (2006)

23

(18) “Kỹ inh hã vỹ ti mré vĩnh mũ”, he tóg. Kỹ

inh hã

vỹ

ti

-mré



CONJ 1.S ENF TOP 3.S -COM

-nh

-mũ

he

tóg

falar -PRO -PERF dizer 3.S.NOM

“‘Então eu mesmo vou falar com ele’, afirmou.” (19) Kỹ kanhgág ẽn tóg fóg mré vĩnh tĩ mũ. Kỹ

kanhgág -ẽn

-tóg

fóg

-mré



-nh



-mũ

CONJ kaingang -aquele -NOM não-índio -COM falar -PRO ir.S -PERF “Então aquele índio foi falar com o não-índio.” (20) Kỹ tóg tá jun, kỹ ti mré vĩ mũ. Kỹ

tóg



jun

kỹ

ti

-mré



-mũ

CONJ 3.S.NOM



chegar.S CONJ 3.S -COM falar -PERF

“E, chegando lá, falou com ele.” (21) Kỹ tóg ge mũ. “Tiótitiótitióti”, he tóg mũ, fóg ti mỹ. Kỹ

tóg

ge

CONJ 3.S.NOM



tiótitiótitióti he

tóg



assim PERF tiótitiótitióti dizer3.S.NOM

fóg

-ti

-mỹ

PERF não_índio-3.S -DIR

“E então disse algo assim para o não-índio: ‘Tióti, tióti, tióti’.” (22) Kỹ fóg tóg ti vég jẽ nĩ, ti tỹ ti vĩ ki kagtĩg nĩn kỹ. Kỹ

fóg

-tóg

ti

vég jẽ



CONJ não_índio -NOM 3.S|ACU ver estar_em_pé COP ti

-tỹ

ti-



-ki

kagtĩg

3.S -ERG 3.S- falar -LOC desconhecer

nĩn

-kỹ.

COP

-CONJ

“O homem fica olhando para o índio, porque não entende nada do que ele disse.”

Análise semiótica de um texto Kaingang – Marcelo Jolkesky (2006)

24

(23) Kỹ kanhgág tóg ti kanhkã ag ki jun kỹ, ag mỹ: “Vĩ kinh fóg ti mã”, he mũ. Kỹ

kanhgág -tóg

ti-

kanhkã -ag -ki

CONJ kaingang -NOM 3.S- família -P vĩ

-ki

-nh

fóg

-ti

falar

-LOC -PRO não-índio -3.S|ABS

jun

-kỹ

ag

-LOC chegar -CONJ mã

he

-mỹ:

3.P -DIR



pegar.S disse PERF

“O kaingang, aproximando-se da sua família, disse: ‘O não-índio vai obedecer’.” lit.: ‘O não-índio pegou na fala’ (24) “Ti kutẽnh ke nẽ ha!”, he tóg, kanhgág ag mỹ. Ti

kutẽ -nh

ke

-nẽ

ha

he

tóg

3.S|ABS cair -PRO -FUT -COP agora dizer 3.S.NOM

kanhgág -ag -mỹ kaingang -P

-DIR

“‘Ele já vai sair!’, disse aos kaingang.” (25) Kanhgág ũ kãme hã vẽ. Kanhgág -ũ-

kãme



kaingang -INDEF história ENF

vẽ EXS

“Eis a história de um kaingang.”

(iii) tradução livre História de um kaingang Havia uma aldeia kaingang no meio da mata E lá morava um índio que queria falar português, e por isso, sempre que queria falar pururuca, dizia “gãrãnh pẽ”. Certo dia aquele kaingang, que tinha visto uma festa dos não índios e achou muito bonita, falou: “vou fazer uma festa”, porque eles estouravam foguetes e ele queria fazer igual. Então ele convidou seus amigos e fez a festa: queimou taquaras para estourar como se fossem foguetes. E junto da taquara estourada rezava, dizendo: “passarinho de cabeça rajada”. Então seus familiares disseram: “Ele sabe rezar muito bem”. Depois disso, num outro dia, ele foi para o rio e lá viu uma moça não-índia. Então ele falou para ela: “Bonitinha, bonitinha”. Certo dia um não-índio veio morar bem perto deles. Então os kaingang disseram: “Vamos tirar ele daqui!”. Todos concordaram: “Vamos!”. Mas não tinha ninguém para conversar com o homem. Então aquele índio que afirmava poder falar português disse: “Já que não tem ninguém pra falar com ele, então eu mesmo vou”. Chegando lá falou: “Tiótitiótitióti”. O ho-

Análise semiótica de um texto Kaingang – Marcelo Jolkesky (2006)

25

mem ficou olhando para o índio, porque não entendeu nada do que ele dissera. Depois, o kaingang, aproximando-se da sua família, disse: “O não-índio vai obedecer”. “Ele já vai sair!”, disse o indígena aos outros índios. Esta é a história de um kaingang.

ABREVIATURAS ⇒ → [] ()

fazer transformador transformação enunciado de fazer enunciado de estado



conjunção



disjunção

| 1 2 3 ABS ACU ADV AGE ASS AUD BEN COND COP DEF

cliticização caso atribuído pela sintaxe 1ª pessoa 2ª pessoa 3ª pessoa absolutivo acusativo adversativo agentivo assertivo evidencial auditivo benefactivo condicional cópula definido

Análise semiótica de um texto Kaingang – Marcelo Jolkesky (2006)

DEM ENF ERG EVID F FIN FUT GEN INDEF LOC M NATT NEG NOM P PERF PROG REF REFL S TOP

demonstrativo enfático ergativo evidencial feminino final futuro genitivo indefinido locativo masculino não-atributivo negativo nominativo plural perfectivo progressivo referencial reflexivo singular tópico

26

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROS, D.L.P. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1990. BARROS, D.L.P. Teoria Semiótica do Texto. São Paulo: Ática, 2003. BERTRAND, D. Caminhos da Semiótica literária, Bauru, EDUSC, 2003. CARDIN, M. O ato da enunciação: semiótica e produção de texto. UNESP Assis. 2004 (Dissertação de mestrado). FIORIN, J. L. Semântica estrutural: o discurso fundador. In: OLIVEIRA, A. C. e LANDOWSKY, E. (eds.), Do inteligível ao sensível: em torno da obra de Algirdas Julien Greimas, São Paulo: EDIC, 1995a. p. 17-42. FIORIN, J. L. A noção de texto na semiótica. In: INDURSKY, F; CASTRO, M . L. D.(orgs) Organon 23: O texto em perspectiva. Porto Alegre: UFRGS, 1995b. p. 163-174. FIORIN, J. L. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, 1996. FIORIN, J. L. Sendas e Veredas da Semiótica Narrativa e Discursiva. DELTA., São Paulo, v. 15, n. 1, 1999. disponível em: ; acessado em: 10/01/2007. GOODY, J. La raison graphique. La domestication de la pensée sauvage, Paris: ed. de Minuit, 1979. GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo: Cultrix, 1979. HJELMSLEV, L. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. São Paulo: Editora Perspectiva, 1975. MELLO, L. C. M. F. de. Da semiótica da ação à semiótica das paixões. In: Moara, n. 22. Belém, 2004, p. 123-142. MELLO, L. C. M. F. de. Sobre a semiótica das paixões. In: Signum, n. 8.2. Londrina: EDUEL, 2005, p. 25-46. RAMOS, K. A. H. P. Análise semiótica da narrativa bíblica "A prova de Abraão". UNESP Assis. 2004. (Tese de doutorado). SAUSSURE, F. de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1970. SILVEIRA, D. M. F. (org.) Kanhgág si kãme. Guarapuava: FUNAI/ CIRG/ UNICENTRO/ NEI-PR, 1997. TATIT, L. Abordagem do Texto. In: FIORIN, J. L. (org.). Introdução à Lingüística I – objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2002. p. 187-209.

Análise semiótica de um texto Kaingang – Marcelo Jolkesky (2006)

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ANÁLISE SEMIÓTICA DE UM TEXTO KAINGANG ...

axiologia que define valores positivos e negativos, desejados e temidos, proibidos e devidos, etc. Por exemplo, a categoria semântica ...... mos tirar ele daqui!”.

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