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Título Original: Robber Bride Ano: 1999 3º livro da Série “The de Burghs”

Digitalização: Palas Atenéia Revisão: Palas Atenéia

Dama, guerreira, amante! Era essa a ladainha repetida por Simon de Burgh, toda vez que punha os olhos em Bethia Burnel. Dotada de grande habilidade em lutas, capaz de enfrentar qualquer um de seus cavaleiros, Bethia capturou o coração de Simon durante uma batalha! Simon de Burgh era irritante, com seu poder e convicções machistas, mesmo quando Bethia o mantinha com pés e mãos amarrados, em seus domínios, no coração da floresta. Mas ela estava determinada a provar àquele arrogante que era capaz de derrotá-lo de novo… apesar do refrão repetido por seu coração, de que ela finalmente havia encontrado um homem à sua altura! 1

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CAPÍTULO I

Simon de Burgh queria lutar. Embora houvesse negado, caso questionado, Simon escolhera deliberadamente seguir pela estrada que cortava a floresta, como se estivesse desafiando bandidos a atacar seu grupo. Sentia-se entediado e desbaratar um bando de salteadores, se fossem tolos o bastante para tentar um assalto, seria o melhor remédio para aquele mal. Quando aceitara a missão proposta pelo irmão, Dunstan, acreditara haver encontrado uma boa maneira de fugir da paz excessiva que reinava nas propriedades de seu pai. Porém, depois de dias intermináveis na estrada, sem ter se deparado com qualquer incidente, Simon começava a ficar inquieto. Embora seu destino, o castelo Baddersly, não estivesse muito longe, a perspectiva de administrar as terras do irmão não era das mais atraentes. Durante toda a sua vida, Simon sentira-se em constante competição com os seis irmãos. Especialmente, Dunstan, o mais velho, que servira o rei Edward, no país de Gales e, assim, recebera suas próprias terras. Embora a necessidade de provar seu valor houvesse diminuído nos últimos dois anos, à medida que Simon passara a assumir responsabilidades maiores, ele ainda esperava, impaciente, por desafios, como se em sua vida existisse a falta de algum tipo de glória. Tal necessidade não encontraria satisfação em uma simples incursão pela floresta, Simon pensou, enquanto seu corcel adentrava a mata. Os homens que o seguiam ficaram em silêncio. Durante algum tempo, os únicos sons eram produzidos pelo roçar do couro nas armaduras flexíveis, confeccionadas em malha de fio metálico, bem como dos cascos das montarias batendo contra a terra seca da estrada. Simon tinha certeza de que seus irmãos não teriam escolhido aquele caminho. Na verdade, podia ouvir o sensato Geoffrey lembrá-lo de que não estava conduzindo um exército, mas sim um pequeno grupo de guardas montados. Como podia ser tão imprudente com respeito à vida de seus homens? Tal pensamento só fez piorar o humor de Simon, que fincou os calcanhares no cavalo. Porém, era tarde demais para se arrepender da decisão tomada, pois um pouco adiante, à sombra escura que as árvores lançavam sobre a estrada, havia um tronco enorme caído, atravessado. Certo de que não se tratava de um acidente, Simon concluiu que chegara o momento da esperada luta. Em silêncio, ergueu uma das mãos, em um gesto de advertência para aqueles que o seguiam. Então, desembainhou a espada. — Pare e identifique-se — gritou uma voz, de trás do tronco. Naquele momento, Simon desejou poder trocar um de seus cavaleiros por um bom arqueiro. Estreitando os olhos, observou o dono da voz subir no tronco. Muito esperto, de fato, o sujeito vestia túnica e braies, ambas de um marrom escuro, de maneira a ser facilmente confundido com a paisagem. Não empunhava nenhuma arma, mas plantou os pés separados e colocou as mãos na cintura, assumindo uma postura petulante, que fez Simon ranger os dentes. Tinha uma pequena espada na bainha e usava uma espécie de armadura encurtada. A última, provavelmente, roubada de algum cavaleiro cativo, ou morto, Simon pensou, furioso. — Saia do caminho, pois nego-me a responder a bandidos. — Diga seu nome, a quem presta obediência e qual o seu propósito nesta floresta — o assaltante replicou, mostrando-se impassível. Parecia ser muito jovem e tolo, também. A menos que as árvores ocultassem um grande número de homens, melhor equipados do que ele, o rapaz não teria a menor chance de vencer a disputa com um bando de guerreiros experientes. — Sou Simon de Burgh, leal a meu pai, conde de Campion, e a meu irmão, barão de Wessex. Meu propósito não é da sua conta. Não cometa o erro de desafiar-me. Agora, desapareça, ou será morto. 3

— Não! Foi o senhor quem cometeu um erro ao vir aqui, lorde de Burgh… se esse é mesmo o seu nome. Entreguem suas armas, pois estão cercados! Simon soltou uma risada, ao ouvir uma ordem tão pomposa, proferida por um salteador. — Pelo que estamos cercados, além de árvores? — indagou. Ora, mesmo que o jovem tivesse companheiros por perto, eles pouco poderiam fazer contra cavaleiros armados. Com certeza, o garoto atrevido perceberia o absurdo de seu desafio. — Além das árvores, milorde, por arqueiros, também — o rapaz respondeu. Tal afirmação foi seguida por murmúrios dos homens de Simon. Ele ergueu os olhos e constatou que havia vários homens posicionados em galhos altos das árvores, todos apontando suas flechas na direção dos cavaleiros. Ficou perplexo. Como era possível que meros bandidos houvessem se tornado tão bem treinados e organizados? Simon rangeu os dentes, pensando nas advertências de Geoffrey sobre colocar em risco desnecessário a vida de seus homens. — Entreguem suas armas — o rapaz repetiu. Para Simon, não habituado a receber ordens, especialmente do que classificou como "pedaço de gente", aquela foi a gota d’água. Que os arqueiros fossem para o inferno! Não se renderia sem luta. Erguendo a espada, soltou um rugido feroz e incitou o cavalo à frente, determinado a separar a cabeça do fanfarrão do resto de seu corpo. Finalmente, encontrara a batalha que estivera esperando. Juntamente com a fúria, sentiu a familiar excitação, diferente e mais intensa que qualquer outra, provocada pelo som de espadas se chocando. Ouviu os gritos de guerra dos cavaleiros que o seguiam e deixou que a sede de sangue o dominasse. Porém, sua espada cortou o ar, uma vez que o rapaz saltou para fora de seu alcance. Antes que tivesse a chance de atacar de novo, Simon sentiu um golpe nas costas, forte o bastante para derrubá-lo de cima do cavalo, deixando-o caído, sem espada e sem fôlego. Apesar de se sentir atordoado, virou-se e colocou-se de pé, na velocidade de um raio, livrando-se do homem que havia se atirado sobre ele. Flechas voavam em todas as direções, mas ele avistou o jovem, que gritava ordens para os companheiros, protegido pelo tronco caído. Tal demonstração de covardia deixou Simon cego de ódio. Com rapidez e precisão, saltou no ar, agarrando o rapaz e levando-o ao chão, tudo em um só movimento. — Solte-me! — o garoto gritou, a voz subitamente estridente, pelo pânico que o invadira. Por um momento, Simon sentiu-se satisfeito, mas no mesmo instante, sentiu o contato de uma lâmina com seu pescoço. Qualquer outro homem teria se imobilizado, então. Simon, porém, jamais fora capaz de manter a calma e o sangue frio. Com outro rugido selvagem, afastou o punhal, ignorando a dor provocada pelo corte em sua pele. Quando a arma caiu no chão, longe do alcance de seu oponente, Simon agarrou-lhe o pescoço, decido a estrangulá-lo. O jovem debateu-se e esperneou, desesperado, até que seu joelho atingiu Simon bem entre as pernas, arrancando-lhe um gemido de dor. Ainda assim, Simon conseguiu manter cativo o assaltante, ao mesmo tempo que abaixava uma das mãos, a fim de devolver-lhe a dor na mesma proporção. Bastaria um apertão, pensou, para fazer o patife falar ainda mais fino. No entanto, foi Simon quem arregalou os olhos, surpreso, quando sua mão não encontrou nada que pudesse ser apertado. Desconsertado, deu-se conta de que sua mão pousara sobre os contornos macios de uma mulher. — Bastardo! — o oponente sibilou. Ainda chocado, Simon ergueu a cabeça, mas antes que pudesse examinar as feições da criatura estranha, sentiu o forte impacto de uma pedra contra sua cabeça, logo acima da orelha. Piscou os olhos algumas vezes, confuso por ver as feições do garoto se 4

transformarem nas de uma mulher e, então, o mundo mergulhou na escuridão. Simon recobrou a consciência, com um sobressalto, ao sentir algo úmido em sua pele. Quando tentou movimentar-se, descobriu que tinha as mãos amarradas. Debatendose com violência, praguejou, furioso. — Fique quieto, seu tolo! — ordenou a voz feminina, ligeiramente irritada. No mesmo instante, Simon ficou imóvel, tentando reconhecer o rosto à sua frente. As feições eram jovens, a pele clara apresentava nuances douradas, provocadas pelo sol. Os olhos castanho-claros, emoldurados por cílios espessos, eram realçados pelas linhas perfeitas do nariz. Por um momento, ele se limitou a fitar aqueles traços, sentindo-se confuso. De repente, reconheceu na mulher diante de si o garoto com quem lutara antes. — Você! — esbravejou. — Quem esperava que fosse? — ela retrucou, voltando a aplicar a substância úmida ao pescoço de Simon. — Minha intenção não era feri-lo, sr. Cavaleiro — falou em tom zombeteiro —, mas não aprovo a sua maneira de lutar. A fúria de Simon foi tamanha que, por um momento, ele não conseguiu falar. Como aquela… criatura atrevia-se a falar com ele naquele tom? — Se não quer ser confundida com um homem, não se vista como tal — resmungou, afinal, depois de examiná-la da cabeça aos pés, com ar de desprezo. — Desculpe-me, mas eu não sabia que o código de honra dos cavaleiros inclui agarrar as partes íntimas, uns dos outros — ela devolveu, com expressão de repulsa. — Você me atingiu primeiro! — Simon gritou, esquecendo-se de que não estava discutindo com um de seus irmãos, mas sim, com uma mulher. Quando se lembrou disso, ficou ainda mais chocado com o insulto. Nunca antes uma mulher falara sobre aquele tipo de assunto com ele, especialmente com tamanha ousadia. Perguntou-se se ela seria uma prostituta, mas todas as que conhecera usavam saias. Na verdade, Simon jamais ouvira falar de uma mulher que vestisse roupas de homem. Quem era aquela criatura, afinal? — Eu estava apenas me defendendo — ela disse. — Se houvesse entregue suas armas, como pedi, não teria se machucado. Agora, vários de seus homens estão feridos e sou obrigada a cuidar deles. — Com mãos nada gentis, aplicou mais uma porção da mistura mal-cheirosa ao pescoço dele. — Devo admitir que sempre quis assistir a um homem cortar o próprio pescoço, mas nunca havia presenciado uma cena assim, até hoje. Simon sentiu um rubor inesperado tomar conta de suas faces. Embora houvesse lutado com valentia, a moça falava como se ele fosse um idiota incapaz. Mais uma vez, tentou livrar-se das cordas, mas os nós eram firmes e resistentes. Proferiu um palavrão. — Por acaso está querendo morrer? — ela sibilou, impaciente. — Se espera que seus ferimentos cicatrizem, deve ficar quieto. E se continuar a fazer todo esse barulho, serei obrigada a amordaçá-lo. Amordaçá-lo? Simon lançou-lhe o mesmo olhar que já fizera muitos homens se encolherem, mas foi em vão. — Não tenho o menor respeito por você, mercenário — ela continuou, impassível. — Se me der um bom motivo, não hesitarei em matá-lo. Simon reprimiu uma gargalhada. Embora não houvesse servido o rei, como Dunstan servira, já participara de muitas lutas e batalhas, chegando a reaver o castelo do irmão, que fora tomado por um vizinho. — Homem nenhum conseguiu me derrotar. Certamente, não será uma camponesa vestida de garoto que vai conseguir! Não passa de uma grande tola, se pensa assim. Ela sorriu, chamando a atenção de Simon para os lábios generosos. — Caso não tenha percebido, já o derrotei — murmurou. Então, depois de se certificar de que os pés dele também se encontravam 5

firmemente amarrados, virou-se e começou a se afastar. A afirmação arrogante fez o sangue de Simon ferver. E o fato de ela estar dizendo a verdade só serviu para deixá-lo ainda mais furioso. — Volte aqui! — gritou. — Quando você estiver disposto a conversar, sem gritar, talvez eu volte — ela respondeu com simplicidade, por cima do ombro. Sentado no chão, amarrado como um animal, Simon observou-a afastar-se, dandose conta de que não poderia haver dúvida quanto ao sexo dela. Os cabelos loiros, presos em uma trança que chegava ao meio das costas, e os quadris, cobertos apenas por braies e túnica, balançavam com sensualidade, apesar dos passos largos e decididos com que ela caminhava. — Meretriz! — Simon gritou, mas ela continuou andando, sem se abalar. Um chute atingiu-lhe as costas. — Quieto! — uma voz masculina pouco amigável advertiu. Pela primeira vez na vida, Simon sentiu-se indefeso. Quando Dunstan fora preso em sua própria masmorra, Simon lançara-se na luta para resgatar o irmão mais velho. Porém, não lhe ocorrera que o mesmo aconteceria com ele. Ninguém jamais o capturaria. Especialmente, uma mulher! Agora, era fácil imaginar a zombaria dos irmãos, se pudessem vê-lo ali, prisioneiro de uma mulher. Cerrou os dentes ao pensar que, antes de morrerem de rir, eles o ajudariam. Tal pensamento provocou uma onda de fúria que o sacudiu. Não precisava que ninguém o resgatasse. Era perfeitamente capaz de se libertar sozinho. Depois disso, buscaria a sua vingança. Com forte determinação, tratou de controlar os ímpetos e pôs-se a examinar os arredores, na intenção de planejar sua fuga. Encontravam-se em uma clareira, cercada por árvores imensas, que ofereciam um esconderijo natural. Vários homens, vestindo trajes idênticos aos da mulher, ocupavam postos de sentinela, nos limites da floresta. Outros, vigiavam Simon e os feridos. De repente, ocorreu-lhe que talvez, nem todos fossem homens. Depois de um exame cuidadoso de panturrilhas grossas e ombros largos, concluiu serem todos homens. O fato de obedecerem ordens de uma mísera mulher era um grande mistério para Simon. Tudo ali era muito estranho. Notando que todos carregavam aljavas repletas de flechas, presas às costas, perguntou-se, mais uma vez, como simples salteadores podiam ser tão bem treinados e equipados. Além disso, quaisquer bandidos teriam matado a ele e a seus homens, roubado seus cavalos e armas e, então, desaparecido na floresta. Aqueles, porém, eram diferentes. Não haviam matado ninguém. Estariam planejando pedir resgate para libertá-lo? Tal prática era comum, em se tratando de cavaleiros derrotados em batalha, mas não de guardas e soldados comuns. A possibilidade de seu pai ter de dar dinheiro a bandoleiros como aqueles o enfureceu mais ainda. Especialmente porque sabia que tudo acontecera por um erro de julgamento que ele mesmo cometera. A raiva de si mesmo pôs fim ao tênue controle que conseguira manter por alguns instantes e ele voltou a se debater, na tentativa de livrar-se das cordas. Mais uma vez, foi um esforço inútil e Simon teve de lutar para dominar os impulsos. Respirando fundo, tentou se concentrar, como Geoffrey faria. Muitas vezes, ele havia zombado da cautela excessiva com que o irmão traçava seus planos. Agora, porém, via-se obrigado a admitir a necessidade de raciocinar com calma e clareza. Olhou em volta, à procura de algum indício de quem eram aqueles bandidos, e quais seriam os seus propósitos. Não só haviam poupado todos os homens de Simon, mas ainda tratavam dos feridos. Nada disso fazia sentido para um cavaleiro como ele, não habituado a decifrar enigmas, nem a estudar inimigos e suas intenções. Voltou a pousar os olhos sobre a mulher, ajoelhada ao lado de Aldhelm, que fora atingido por uma flecha no ombro. A trança dourada deslizou por sobre um dos ombros 6

dela, e foi imediatamente atirada para trás. As pernas envoltas por braies e botas, eram claramente visíveis e, embora Simon censurasse a maneira de ela se vestir, não pôde evitar que seus olhos se demorassem em cada uma daquelas curvas. Forçou-se a erguer os olhos, o que não resolveu seu problema, uma vez que ela havia se inclinado sobre Aldhelm, a fim de aplicar a mesma mistura mal-cheirosa no ombro dele. Sem saber por quê, Simon foi invadido por um sentimento desagradável ao ver os dedos dela tocarem a pele de seu soldado. Incapaz de reconhecer a sensação, Simon refletiu que, talvez, houvesse se ferido mais do que imaginava. Então, culpou a mulher por tudo o que sentia no momento. Ora, o que ela pretendia, desafiando as leis de Deus e dos homens, vestida como um cavaleiro? Simon já não dava grande valor às mulheres, quando vestidas como deveriam. Sua mãe morrera quando ele ainda era muito pequeno e, embora ele houvesse desenvolvido um afeto infantil pela segunda esposa do pai, ela também morrera, deixando nele a impressão de que as mulheres eram criaturas fracas. Todos sabiam que elas eram menores, menos inteligentes e menos capazes que os homens. Embora seus corpos proporcionassem certo prazer, Simon raramente usufruía deles e, quando o fazia, pagava por tal uso, como pagaria por qualquer outro conforto. Na verdade, por mais que o pai discordasse, Simon sempre considerara as mulheres como seres inferiores. Vestirem-se de homens não as tornaria melhores. Um sorriso curvou-lhe os lábios e ele recuperou a sua arrogância habitual. Afinal, era um de Burgh, um cavaleiro, segundo filho de seu pai, e ninguém seria capaz de mantê-lo cativo por muito tempo. Assim que se libertasse, trataria de punir aquela atrevida por sua insolência. Pensou em amarrá-la e perguntar-lhe o que achava disso. Ou, talvez, torná-la sua escrava! A imagem daquela criatura petulante curvando-se para ele trouxe grande satisfação, mas ele logo se lembrou de que não deveria entregar-se ao prazer da vitória antes do tempo. Assim, desviou os olhos da visão que o distraía e concentrou-se em suas estratégias de fuga e na avaliação das condições de seus homens… e dos dela. Levava na bota uma faca, cuja existência nem mesmo os irmãos conheciam. Tal recurso já fora útil inúmeras vezes. Se conseguisse ficar de pé, encontraria um meio de retirá-la do esconderijo e cortar as cordas que o prendiam. Então, só teria de esperar pelo anoitecer para fugir. Pelo que podia ver de seus homens, nenhum sofrera ferimento grave. Trataria de levar consigo tantos quantos conseguisse libertar, mas sem armas, poderiam encontrar dificuldades. Estreitou os olhos e examinou a clareira, mas não viu sinal de sua espada, ou de sua armadura. Sentia-se nu sem elas, o que era mais um motivo para desprezar a maldita… Voltou a se concentrar no plano de fuga. Sabia que até mesmo homens bem treinados relaxavam a guarda à noite. Era possível que aqueles bandidos bebessem cerveja antes de dormir. Quando isso acontecesse, Simon decidiu, com ou sem seus homens e armas, ele desapareceria pela floresta e encontraria um meio de chegar a Baddersly. Desde que estivessem próximos ao local onde haviam sido emboscados. Praguejando, Simon olhou para o céu e amaldiçoou as nuvens, pois elas o impediam de determinar sua localização através das estrelas. Ora, decidiu, farejaria o caminho até o castelo, se fosse necessário. E, embora Dunstan não mantivesse um grande exército em suas terras, Simon os convocaria para segui-lo até ali, a fim de apanhar aquela mulher e seu bando de seguidores. Voltou a sorrir e, quando ela se encaminhou para ele, Simon foi capaz de assumir uma postura mais austera. Era um bom guerreiro, com boa visão de qual posição era mais vantajosa. Na verdade, Dunstan havia comparado as suas habilidades às do rei! E uma vez definido o seu plano, nenhuma mulherzinha arrogante o deteria. — O que você quer? — inquiriu, quando ela se aproximou. — Isso depende de você, mercenário — ela respondeu, sentando-se sobre a raiz de uma grande árvore, dobrando uma perna e passando os braços em torno do joelho 7

dobrado. Simon perguntou-se se ela sempre exibia as pernas daquela maneira, ou se estava apenas tentando provocá-lo. E por que faria isso? — Quanto ele está lhe pagando? — Quem? — Simon indagou, voltando a fitá-la nos olhos. Ela riu. — Não tente me enganar, de Burgh, se é mesmo quem diz ser. Se não fosse, como esperavam conseguir um resgate por ele? De uma maneira ou de outra, Simon não poderia aceitar aquele insulto. — Ninguém questiona meu bom nome, ou minha honra. Basta levar-me a Campion, ou a Baddersly, e saberá a verdade. As palavras provocaram nela uma reação estranha, que Simon não foi capaz de definir. — O que você faz em Baddersly? — Vim em nome de meu irmão, que é o lorde de Baddersly — Simon respondeu, sem acrescentar que Dunstan não tinha paciência com bandidos e não pensava duas vezes antes de matar aqueles que rondavam suas terras. Porém, a idéia de ver aquela mulher morrer, provocou-lhe um sentimento horrível. — Se nos libertar agora, talvez ele os trate com misericórdia. Ela riu. Apesar de sua oferta não ter sido sincera, Simon teve o ímpeto de atirar-se sobre ela, mesmo amarrado. Foi apenas a presença dos guardas, bem como de seus soldados feridos, que o impediu de agir assim. Irritado pela constatação de que suas faces voltavam a corar, deu-se conta de que haviam invertido papéis. Ele ruborizava como uma donzela, enquanto ela o interrogava como um cavaleiro! — E que missão é essa, de Burgh? — Devo administrar as terras de meu irmão — Simon respondeu entre dentes, inconformado por ser obrigado a responder a ela, estando acostumado a dar ordens o tempo todo. — A missão envolve diversas tarefas, inclusive a de eliminar bandidos que rondem a propriedade. — Então, está aqui para nos destruir? — ela acusou. — Escute, moça. Não faço idéia de quem são vocês, ou o que fazem aqui, mas aconselho-os a irem embora, pois Dunstan não permitirá ataques em suas terras. Ela permaneceu calada, estudando-o. Os olhos de Simon baixaram para os seios fartos, cujos contornos eram delineados pela túnica. Viu-se invadido por uma necessidade súbita de cobri-la, a fim de impedir que outros olhos desfrutassem da mesma visão. — E quanto a Brice Scirvayne? Não foi contratado por ele, mercenário? — Estou ficando cansado das suas perguntas, moça. Não conheço Scirvayne e nunca um de Burgh foi mercenário. Servimos apenas Campion e Edward! — Se não são mercenários, são soldados que vêm a Baddersly, a fim de lutar pela causa dele — ela declarou em tom amargo. — Que causa? Quem é Scirvayne? Onde ele governa? — Simon perguntou, curioso. — Ele não governa! — ela respondeu com olhar faiscante, como ele já vira no rosto dos irmãos. — Ele não passa de um ladrão! Ela se pôs de pé, exibindo tamanha fúria, que Simon sentiu uma excitação muito parecida à que o invadia, diante da perspectiva de uma batalha iminente. — Bethia. Quando ela se virou na direção da voz que a chamara, Simon respirou fundo, chocado pela própria reação. Por um momento, aquela mulher estranha parecera um guerreiro, forte e poderoso, sedento de sangue. Ele franziu o cenho e sacudiu a cabeça, a fim de livrar-se de tal impressão. Afinal, a armadura curta e explosão de raiva não a transformavam em cavaleiro. Longe disso, ela não era nada mais que uma mulher, 8

vestida como seus superiores. Quando voltou a fitá-la, parecia mais calma, embora seus olhos ainda exibissem um brilho perigoso. — Se sua missão é pacífica como diz — Bethia falou —, não será difícil verificar. Tragam a algibeira dele! Indignado, Simon observou-a apanhar sem a menor dificuldade a pesada bolsa de couro que alguém atirou de longe, e examinar a correspondência de Dunstan. Sabia que não havia muita coisa, além de uma carta ao administrador, uma ordem dando a Simon o direito de falar em nome de Dunstan, perante a corte, e coisas assim. Permaneceu quieto, enquanto Bethia examinava cada documento. Surpreendeu-se ao constatar que ela sabia ler. Que tipo de bandido possuía uma habilidade tão rara? E por que ela se preocupava tanto com mercenários? Seria aquele bando tão poderoso, que só temesse serem destruídos por soldados? Ora, não era possível que homens assim respondessem ao comando de uma mulher! Bethia voltou a fitá-lo, exibindo expressão mais amena. Simon perguntou-se como fora confundi-la com um rapaz. Tratava-se de uma linda mulher. — Talvez esteja dizendo a verdade, de Burgh — ela declarou, guardando os documentos. — Ou, então, assim como Brice, prefere esconder seus verdadeiros propósitos atrás de palavras bonitas e cortinas de fumaça. — Brice de novo! Quem é esse desconhecido que teria poderes sobre mim? E quem é você, para tomar um de Burgh como refém? Explique-se! Por pouco, Simon não se levantou, sem esperar pelo anoitecer. Só controlou o impulso por saber que havia arqueiros espalhados por todo canto, prontos a disparar suas flechas, caso ele fizesse o menor movimento suspeito. Percebendo que um dos bandidos puxava Bethia de lado para uma discussão acalorada, estreitou os olhos, perguntando-se se o sujeito baixinho e atarracado estaria tentando impedi-la de dar a Simon as informações que ele exigira. Seria amante dela? Definitivamente, não. Bethia mantinha a postura de um guerreiro, costas eretas, cabeça erguida, sem demonstrar o menor sinal de subserviência. Por outro lado, dirigiu toda a atenção ao homem. Ora, uma mulher com aquela postura não se entregaria a qualquer um. Não? Simon não sabia nada sobre ela e, ao que parecia, continuaria não sabendo, pois os dois se afastaram e desapareceram entre as árvores. O sentimento de frustração de Simon crescia mais e mais. Orgulhava-se de suas habilidades, considerando-se melhor que os irmãos. Embora não houvesse estudado tanto quanto Geoffrey, possuía maior compreensão de questões de guerra. Conhecia Baddersly e os arredores muito bem, uma vez que havia recuperado o castelo para Dunstan, dois anos antes. Mesmo assim, jamais ouvira falar de Brice Scirvayne. Era evidente que Bethia e seu bando haviam aparecido por ali depois de sua última visita, assim como o infame Scirvayne, fosse ele quem fosse. Ora, não estava acostumado a ficar desinformado e despreparado. Preferia morrer a ficar sentado ali, em tamanha humilhação. Voltou a praguejar e recebeu outro chute nas costas. O lembrete dos guardas que não podia ver levou-o a lutar, mais uma vez, para controlar os ímpetos. Respirou fundo e tratou de ser paciente. De nada adiantaria chamar a atenção do inimigo. Deveria ficar quieto, fingindo-se derrotado. O que importava era a vitória final. Haviam sido capturados no meio da tarde. Logo a noite chegaria. Enquanto esperava, Simon imitaria Geoffrey, observando tudo à sua volta… até que chegasse o momento de subjugar aquela mulherzinha vestida de homem!

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CAPÍTULO II

Bethia podia sentir a frustração do cavaleiro, mesmo à distância. Era um homem e tanto, o mais atraente que ela já vira, com seus cabelos escuros e olhos cinzentos e brilhantes. Alto, forte e feroz como um animal encurralado, seria um inimigo poderoso. Tal pensamento provocou-lhe um arrepio na espinha. Tratou de afastar o medo. Não poderia se deixar intimidar por aquele homem, nem hesitar diante das exigências dele, mesmo que ele a fizesse lembrar-se de uma fera acorrentada e enjaulada contra a sua vontade. Contra a própria natureza… Ora, tinha de pôr um fim a tais pensamentos. A última coisa de que precisava eram sentimentos por Simon de Burgh, pois ele certamente se lançaria sobre ela no momento em que fosse libertado. Porém, era difícil não sentir, ao menos, certo respeito pelo prisioneiro. Simon de Burgh não tentara suborná-la, nem envolver a família naquela questão. Embora soubesse pouca coisa sobre Campion, Bethia ouvira falar do poderoso conde e sabia que o cavaleiro em seu poder poderia, perfeitamente, usar seu parentesco para ameaçá-la. O que ele não fizera. Seus instintos lhe diziam que poderia confiar nele e talvez Bethia houvesse confiado, se fosse a única cujo futuro dependia de suas decisões. No entanto, tinha de pensar naqueles que contavam com a sua proteção e liderança. E naquele momento a pressão sobre ela era grande. Firmin, um de seus arqueiros mais violentos, já pedira pelo sangue dos prisioneiros, mas Bethia não podia, simplesmente, permitir que seus homens se tornassem assassinos frios. Principalmente porque aqueles homens poderiam ser inocentes. E, também, não queria desafiar o conde de Campion, que certamente enviaria um vasto exército para exterminá-los. Bethia ouvira os argumentos de Firmin e tinha de admitir que ele tinha certa razão. Se ela não queria matar os prisioneiros, nem poderia libertá-los, sem sofrer represálias, o que faria com eles? Graças a um saque recente, possuíam bastante suprimentos, mas não o suficiente para manter alimentados doze homens, que recuperariam o apetite assim que seus ferimentos se curassem. Embora houvesse ocorrido a Bethia a idéia de levar os prisioneiros para bem longe antes de soltá-los, algo lhe dizia que Simon de Burgh não se esqueceria, nem perdoaria facilmente, sua captura. Sem dúvida, voltaria com reforços para aniquilar o pequeno bando que a seguia. Bethia praguejou baixinho ao pensar em tal represália e seu olhar fixou-se no homem amarrado, sentado do outro lado da clareira. Embora estivesse imóvel, Simon de Burgh exalava força e poder, de uma intensidade que ela jamais vira antes. A expressão sombria em seu semblante era compreensível naquelas circunstâncias, mas Bethia suspeitou que ele raramente sorria, mesmo quanto tinha motivos para isso. À primeira vista, considerara-o frio, mas fora testemunha de uma fúria que não poderia nascer da ausência de paixão. A idéia fez Bethia estremecer e recuar um passo. Bem, havia uma possibilidade que Firmin não mencionara. Talvez fosse possível persuadir Simon de Burgh e seus homens a se unirem ao bando de Bethia. Embora seu coração houvesse endurecido, ela acalentava essa pequena esperança, que não se atreveria a sugerir a Firmin. Ele detestava todos aqueles que ocupavam posições de autoridade e certamente riria da idéia de que aquele cavaleiro poderia ajudá-los. Ainda assim, existia a possibilidade de que, sendo lorde de Baddersly, Simon de Burgh se importasse com as injustiças cometidas contra seu povo. Deveria… Poderia… Bethia abafou uma risada, pois aprendera que a verdade nem sempre prevalecia. E ser inocente nem sempre servia de alguma coisa. Porém, Bethia não via razão para não discutir a situação com Simon de Burgh. Se 10

ele realmente não sabia de nada, como alegara, então, merecia uma explicação. E se Firmin estivesse certo e ele fosse pago por Brice para caçá-los, ao menos ouviria a versão dela. E se possuísse algum resquício de honra, aceitaria juntar-se a eles! Infelizmente, a julgar pela experiência que tivera com ele, Simon de Burgh não era exatamente um cavalheiro. Bethia lembrou-se da maneira como ele a tocara, onde nunca outro homem sequer tentara. Estremeceu, subitamente invadida por uma forte onda de calor. Então, ergueu os olhos para ele e sobressaltou-se ao descobrir que o prisioneiro punha-se de pé. Bethia gritou um aviso aos guardas, desembainhou a espada e adiantouse alguns passos. — Fique onde está — ordenou. Simon levantou-se com expressão arrogante, apesar das cordas. Era uma figura impressionante, ela pensou, mantendo os olhos fixos no que calculou como mais de um metro e oitenta de força e orgulho. A admiração crescente que Bethia sentia por ele quase a fez esquecer-se de seus propósitos, mas não poderia ignorar o perigo que Simon de Burgh representava para todos eles, mesmo amarrado. Também não tinha a menor intenção de revelar o efeito perturbador que o prisioneiro exercia sobre ela. Assim, fez um gesto para que ele voltasse a se sentar. Mas em vez de obedecê-la, Simon encarou-a, impassível. — Tenho necessidades que não podem esperar — declarou em tom rude. Por causa dos pensamentos que lhe ocupavam a mente segundos antes, Bethia corou. Ora, seria possível que ele estivesse sugerindo que ela deveria satisfazer seus… apetites? Ao mesmo tempo que o coração disparava, Simon voltou a falar: — Imagino que vocês não tenham um reservado neste acampamento. Bethia tratou de esconder o alívio. Sabia que não poderia demonstrar a menor fraqueza, pois ele saberia como tirar alguma vantagem. Mantendo a espada em posição de ataque, Bethia replicou com frieza: — Sinto muito, mas terá de satisfazer suas necessidades onde está. Depois de fitá-la por um longo momento com ar de desprezo, ele deu de ombros. — Quer fazer as honras? — perguntou, lançando um olhar rápido para as braies, que não poderia manusear, estando amarrado. Foi o controle frio do prisioneiro que fez Bethia desconfiar que ele planejava alguma coisa. Tendo visto a fúria dele antes, era fácil concluir que, aliviar-se diante de uma audiência seria, em circunstâncias normais, humilhante demais para Simon de Burgh. Agora, ele se mostrava tão displicente, que ela encontrou dificuldade em acreditar que tal comportamento fosse autêntico. Aproximando-se, Bethia apontou a espada para as partes íntimas do prisioneiro, para o caso de ele estar pensando em afrontá-la. — Espero que saiba que o guarda às suas costas tem uma flecha apontada em sua direção — advertiu-o. Um brilho rápido nos olhos quase prateados foi a única indicação da irritação que o perturbava. Mais uma vez, Bethia sentiu profunda admiração por aquele homem. Embora a subjugasse, se pudesse, era totalmente diferente de Brice. Bethia foi invadida por uma sensação estranha, como se finalmente houvesse encontrado um adversário à sua altura. Desde que ele não vencesse, claro. Com um leve sorriso, ergueu a espada, como se fosse rasgar-lhe as roupas. A expressão no rosto dele valeu o esforço. Mesmo assim, sabia que não deveria provocar um homem como aquele por muito tempo. Assim, sem desviar os olhos dos dele, chamou por Firmin. — Ajude este cavaleiro com as braies — ordenou. — Ora, deixe que ele se molhe, como um bebé — o arqueiro retrucou com uma gargalhada, antes de desaparecer entre as árvores. Bethia notou a mudança imediata no semblante de Simon. 11

— Tal insolência jamais deveria ser aceita — ele disse. Por um momento, Bethia sentiu grande afinidade com seu prisioneiro, pois ali estava um homem que compreendia as dificuldades da liderança, de erguer-se da derrota para lutar novamente, de dar tudo por uma causa. No entanto, ela não poderia sequer pensar em utilizar os mesmos métodos de Simon de Burgh. Era fácil imaginar como ele trataria um soldado desobediente, ou desleal, mas os homens que a seguiam estavam ali por sua vontade, mais nada. Embora Bethia se esforçasse para impor a eles um código de comportamento, não poderia ser tão rígida quanto um cavaleiro, ou um lorde. — E então? Vai fazer as honras? — Simon insistiu. Bethia foi obrigada a mudar de posição, a fim de disfarçar a sua confusão. Por um lado, não forçaria Firmin a voltar e obedecer sua ordem. Por outro, não tinha a menor intenção de ajudar Simon de Burgh a satisfazer suas necessidades fisiológicas. Era verdade que havia abandonado a maior parte de seus pudores quando decidira viver na floresta, mas a idéia de pôr as mãos no grande cavaleiro provocava-lhe tremores… que nada tinham a ver com embaraço. Além disso, ela pensou, não seria tola a ponto de colocar o pescoço perto de Simon de Burgh, mesmo que ele estivesse amarrado. E permitir que o arqueiro posicionado atrás dele abandonasse seu posto estava fora de questão. Assim, Bethia chamou o jovem sentinela que se encontrava em cima da árvore mais próxima. — Jeremy, ajude este cavaleiro a se aliviar — ordenou. — Covarde — Simon sussurrou para ela. Notando um brilho diferente nos olhos cinzentos, Bethia perguntou-se se ele estaria zangado, ou simplesmente tentando provocá-la. Como ele não parecia ser o tipo de homem dado a flertes, concluiu que a intenção de de Burgh era distraí-la. — Não, sr. Cavaleiro, apenas prudente — replicou. — Vá em frente, Jeremy. O rapaz ajoelhou-se imediatamente diante de Simon. — Prudente ou pervertida? — ele indagou com ironia. — Vai assistir? Ouvi falar de pessoas que obtêm prazer apenas observando os outros. Chocada com o que acabara de ouvir, Bethia quase lhe deu as costas. Foi somente a certeza absoluta de que aquele homem era perigoso demais, que a manteve imóvel, enquanto Jeremy cumpria com sua obrigação. Imediatamente, um jato atingiu o chão, bem próximo aos pés de Bethia, que recuou prontamente. Apesar de indignada, manteve a espada apontada para o peito de Simon e os olhos fixos nos dele, a fim de provar-lhe que não era tola. Bethia orgulhava-se de sua disciplina, aprendida com o pai, muitos anos antes, e aperfeiçoada recentemente. Porém, quando Simon terminou, os olhos dela baixaram, como que por vontade própria, permitindo-lhe ampla visão das coxas musculosas, bem como da parte da anatomia do cavaleiro que ela jurara não querer ver. — Chega! — ele vociferou, fazendo Bethia estremecer, horrorizada pela idéia de que fora surpreendida a observar o corpo dele. Recuperou-se depressa e, então, deu-se conta de que Simon dirigira-se a Jeremy, que já se apressava em vesti-lo novamente. Assim que terminou, o rapaz curvou-se rapidamente, antes de virar-se e sair correndo. Bethia não poderia culpá-lo por sua ansiedade, uma vez que bastaria um olhar para o cavaleiro irascível para amedrontar até mesmo o mais corajoso dos guerreiros. Quando Simon voltou a sentar-se, Bethia estudou-o. Estaria furioso porque seus planos haviam falhado, ou teria sido a indignidade de ser ajudado por outro homem que o deixara naquele estado? Foi tomada por uma forte compulsão de desculpar-se. — Lamento não estarmos preparados para servi-lo melhor, mas não costumamos ter hóspedes — murmurou. — Ah, mas você está muito bem equipada para servir — Simon retrucou. 12

Então, lançou-lhe um olhar de desprezo, que deixou perfeitamente claro que fora a presença dela o que mais o incomodara. Porém, como grande guerreiro que era, certamente sabia que Bethia não poderia confiar em um prisioneiro. Ao menos, era o que ela esperava, pois sua contribuição para o mal-estar dele já lhe provocava um sentimento de remorso que ela não seria capaz de explicar. — Gostou do que viu? Ou vai pedir ao garoto para me despir novamente, mais tarde? — Simon inquiriu. — Está tão desesperada para ter um homem, que precisa capturar um e forçá-lo a deitar-se com você, sob a ameaça de sua espada? Tais palavras atingiram Bethia com tamanha intensidade, que ela quase se atirou sobre ele. Seria justamente isso o que ele esperava conseguir? Estaria provocando-a de propósito? Bem, se fosse assim, ficaria profundamente decepcionado, pois ela não se colocaria em posição vulnerável, nem daria a ele a satisfação de saber quanto a insultara. Assim, fitou-o com expressão impassível e devolveu-lhe a ofensa: — Se estivesse, não o escolheria, milorde, pois preferiria alguém que tivesse uma… ferramenta melhor desenvolvida. Ele corou e Bethia experimentou uma deliciosa sensação de vitória por tê-lo superado em alguma coisa. Era evidente que Simon de Burgh raramente se encontrava em posição inferior e ela disse a si mesma que um pouco de humildade faria bem à alma do guerreiro. Foi somente ao perceber o brilho ameaçador nos olhos dele, que lhe ocorreu que aquela não seria a melhor maneira de conquistar-lhe a simpatia. Faria alguma diferença? Firmin diria que ela estava perdendo tempo, pois ninguém, fora de Ansquith, importava-se com sua luta, especialmente um poderoso de Burgh. E nem todas as explicações, todo o poder de persuasão de Bethia poderiam convencê-lo a ajudá-los. Com um último olhar para o semblante ameaçador, ela se virou e se afastou. Muito tempo antes, Bethia aprendera a lutar suas próprias batalhas, pois cavaleiro algum, incluindo seu prisioneiro, se lançaria em sua defesa. Simon observou o sol desaparecer atrás das árvores e esperou. Logo teria a sua chance e, então, aquela atrevida pagaria por tudo o que fizera. Voltou a corar, diante da lembrança dos olhos sobre seu corpo exposto. Quando percebera que não seria capaz de adiar a satisfação de suas necessidades por muito mais tempo, tivera a esperança de que ela fosse desamarrá-lo ou, ao menos, proporcionar-lhe alguma privacidade. Assim, Simon teria uma oportunidade de fugir antes do que havia previsto. Quando ficara claro que ela não cederia com tamanha facilidade, ele começara a provocá-la, acreditando que ela reagiria ao desafio e se aproximaria o suficiente para que ele pudesse arrebatar-lhe a espada. Porém, quando ela se recusara a morder a isca, Simon havia pensado que ela simplesmente sairia de perto. Nem sequer lhe passara pela cabeça que a mulher fosse ficar onde estava, calma e tranquila, apontando a espada para seu peito. Como um guerreiro astuto. Ou uma prostituta baixa! Simon praguejou baixinho, incapaz de chegar a uma conclusão satisfatória sobre Bethia, ou sobre o efeito bizarro que exercia sobre ele. Simplesmente, não havia explicação! Simon crescera entre seis irmãos, lutara e partilhara acampamentos, vivera na estrada e não dera a menor atenção ao tipo de mulher que, às vezes, aproximava-se dos campos de batalha. Chegara a banhar-se em público, no riacho mais próximo, sem a menor hesitação. Por isso, quando ela permanecera onde estava, Simon ficara apenas contrariado pelo fato de sua tática não ter dado resultado, mas, gradualmente, começara a sentir-se… estranho. Tal sensação fora crescendo, até que ele se descobrira perturbado com a presença dela, muito mais do que qualquer outra vez em sua vida. Seu corpo havia se rebelado contra sua disciplina rígida, bem como contra seu bom senso. De início, fora a possibilidade de que ela o visse despido que o incomodara. Então, fora a presença dela, a poucos metros de distância, que o fizera reagir de maneira inexplicável e profundamente embaraçosa. 13

A maldita mulher o deixara excitado! O que provocara a ira de Simon. Se antes a detestava, agora desprezava-a pela reação que provocara nele, sem fazer o menor esforço e, também, sem que ele o consentisse. Aflito, Simon ordenara ao garoto que o cobrisse, para que ela não pudesse ver o que estava acontecendo. Não tinha a menor intenção de permitir que ela soubesse que o afetava, especialmente daquela maneira. Teria Bethia visto a prova contundente de sua excitação? Provavelmente, não. Por outro lado, o que ela quisera dizer com aquele comentário sobre uma ferramenta melhor desenvolvida? Seu irmão, Stephen, afirmara que todos os de Burgh eram muito bem equipados, mas Simon nunca se preocupara em comprovar a informação. Talvez aquela bandoleira já estivesse tão usada, que somente um homem muito… Não. De repente, Simon deu-se conta de que aquela linha de raciocínio não o agradava nem um pouco. Olhou em volta e constatou que, obviamente acostumados a se esconder, os bandidos não acendiam fogueiras, nem mesmo para preparar o jantar. Comiam pão, queijo e frutas, que na opinião de Simon, era comida para pássaros. Seu estômago clamava por uma boa fatia de faisão, mas teria sorte se conseguisse qualquer tipo de alimento, naquela noite. Então, avistou Bethia, que se aproximava de um grande carvalho para conversar em voz baixa com os companheiros. Embora houvesse se esforçado para ouvir alguma informação sobre ela e os homens que a seguiam, Simon não ouvira uma só palavra, pois aquele bando era muito silencioso, falando baixo apenas o necessário, movendo-se entre as árvores, produzindo o mínimo de ruídos. Ainda praguejava baixinho, quando perdeu o fôlego diante do que viu. Bethia sentou-se em uma raiz da árvore, como se montasse um cavalo… ou um homem. Simon ficou ainda mais furioso ao sentir o sangue ferver em suas veias, provando mais uma vez que seu controle parecia ter sido pulverizado. Desviou o olhar, mas seus olhos logo voltaram a se fixar nela. Assim como os homens que a rodeavam, ela apanhou um pedaço de pão, mas não o engoliu, como os outros. Com gestos delicados, arrancou um pequeno pedaço e colocou-o na boca com displicente elegância. Simon observou-lhe o pescoço delgado, enquanto ela engolia o alimento, as mãos que tiravam pedacinhos do pão, a destreza com que ela utilizava a adaga sobre o queijo. Quando Bethia levou uma ameixa à boca, ele praguejou e olhou para o outro lado, incapaz de suportar a sensação que o invadiu com intensidade. Talvez o ferimento que recebera na cabeça fosse mais profundo do que havia imaginado. Isso explicaria seu comportamento absurdo. Porém, mesmo sem saber explicar o que ele mesmo fazia, Simon não conseguia desviar os olhos de Bethia. Ela se levantou, não com os gestos afetados da maioria das mulheres, mas com um movimento firme, que indicava capacidade, força e liderança. Em seguida, Bethia apanhou um jarro e aproximou-se dos feridos, despejando o líquido em uma caneca de madeira. Seria água? Ou cerveja? Quem sabe, um sonífero? Simon jurou que não beberia nada oferecido por aquela mulher. Quando ela se encaminhou para ele, afastou a cabeça, mas surpreendeu-se. — Leite? Onde consegue isso? A expressão de Bethia tornou-se dura. — Digamos que eu seja, por direito, proprietária de um rebanho, embora os animais não estejam aqui, agora. Simon emitiu um som de desprezo, sentindo-se frustrado pelos comentários evasivos dela. No entanto, quando ela se inclinou para oferecer-lhe o leite, ele se aproximou. Se ela chegasse um pouco mais perto… Parecendo ter se dado conta da distração, Bethia endireitou-se e Simon cerrou os dentes. Teria, com prazer, acertado uma cabeçada no queixo dela, para tomá-la com refém. Infelizmente, Bethia era muito esperta. 14

— Jeremy, preciso da sua ajuda, de novo — ela falou, dirigindo-se ao jovem que cuidara das roupas de Simon, antes. O garoto obedeceu prontamente, tomando a caneca das mãos de Bethia e aproximando-a dos lábios do prisioneiro. Embora tivesse o impulso de cuspir o líquido, Simon tratou de se conter. Sua chance de fugir aproximava-se rapidamente e ele não pretendia arruiná-la com uma explosão temperamental. Esperaria pelo momento certo e, quando tomasse um refém, não seria um garoto estúpido, mas sim, a líder do grupo. Duas canecas de leite foram o bastante para aplacar a fome de Simon. Além disso, Jeremy alimentou-o com pedaços de pão, também, antes de desaparecer silenciosamente nas copas das árvores. Que tipo de homens eram aqueles, capazes de se movimentarem com a facilidade dos esquilos, entre os galhos? Por um longo momento, Simon limitou-se a observar as folhas acima de sua cabeça, sentindo uma pontada de nostalgia. Era tão tranqüilo, ali, sem o barulho constante de Campion, ou as zombarias de seus irmãos, longe da sempre presente necessidade de provar sua capacidade. Quando finalmente baixou os olhos, descobriu Bethia encostada no tronco de uma árvore próxima, observando-o. Simon ficou perturbado com a própria falta de atenção. Um guerreiro jamais tira os olhos do oponente, pensou. — Está esperando por outra exibição, moça? — inquiriu, franzindo o cenho. — Não tenho qualquer desejo pelo seu corpo, por mais bem desenhado que seja — ela respondeu com frieza, antes de atirar-lhe um cobertor. — Meu conselho é que tente dormir um pouco. Caso esteja pensando em fugir, lembre-se de que a floresta tem olhos e ouvidos… e arcos prontos para o ataque. Simon deitou-se de lado, na cama improvisada, escondendo um sorriso de triunfo. Ora, seria mais fácil do que havia imaginado. Olhos, ouvidos ou arcos não o impediriam de encolher as pernas até que suas mãos alcançassem a faca escondida em sua bota. Teve de reprimir o riso ao pensar na pobre moça, que se imaginava capaz de mantê-lo prisioneiro. Em breve, pensou, a situação seria invertida. Observou-a acomodarse sob uma árvore, enquanto a escuridão tornava-se mais intensa. Aparentemente, Bethia estava acostumada passar suas noites assim. Por mais que o desagradasse, Simon não pôde deixar de admirá-la, pois eram poucas as mulheres que se sujeitavam a tais condições, sem queixas e choramingos. Ao vê-la tirar a espada, sentiu a boca seca, perguntando-se se ela iria livrar-se de mais alguma coisa, como a armadura, por exemplo. Embora houvesse repetido para si mesmo que Bethia não passava de uma leviana, foi obrigado a admitir que ela não se parecia em nada com as mulheres de virtude duvidosa que ele conhecera. Ao contrário, era graciosa, confiante e tinha um inegável ar de pureza. Simon sacudiu a cabeça e voltou a se concentrar no seu plano. Bethia havia se deitado sobre o cobertor, com a espada a seu lado, bem ao alcance da mão. Era uma pena, ele pensou, mas a arma não teria qualquer serventia. Tratou de prestar atenção à própria respiração, mantendo-a regular, apesar do sangue que parecia ferver em suas veias. Disse a si mesmo que tal reação inexplicável certamente devia-se à perspectiva de fuga iminente. Ora, seria absurdo pensar que seu coração batia descompassado por causa da mulher deitada a apenas alguns metros de distância, ou pela lembrança dos olhos dela fixos em seu corpo despido. E, sendo um homem totalmente desprovido de vaidade, ao contrário do irmão, Stephen, Simon jurou que não se deixara afetar pelo fato de ela ter considerado seu corpo "bem desenhado". Simon esperou que o acampamento mergulhasse no mais completo silêncio, para então dobrar as pernas, até que seus dedos alcançassem a adaga. Habilidoso, em poucos minutos, já sentia a lâmina cortar as cordas que o amarravam. Uma vez livre, resistiu ao impulso de espreguiçar-se, apesar de sentir os músculos 15

rijos e doloridos. Apurou os ouvidos, tentando captar algum sinal dos guardas que Bethia afirmara estarem sobre as árvores, vigiando-o. Mesmo que ainda estivessem acordados, não poderiam ver muita coisa, pois a escuridão era total, exceto pelo brilho de algumas estrelas e do luar fraco, uma vez que a lua começara a subir havia pouco. Com lentidão e muito cuidado, rastejou silenciosamente até onde Bethia dormia. Ao alcançá-la, apanhou a espada que jazia ao lado dela e, ao mesmo tempo que pousava a mão firme sobre os lábios sensuais, encostou a ponta da arma no pescoço de Bethia. Em vez de desapontá-lo, ela acordou de pronto, tentando livrar-se dele a princípio, mas imobilizando-se ao sentir a ponta da lâmina contra a pele. Simon sorriu, triunfante. A batalha fora travada e ele era o vencedor. Colando o corpo dela ao seu, Simon pôs-se de pé e embrenhou-se na floresta sem produzir o menor ruído. Embora Bethia não fosse exatamente leve, carregou-a sem dificuldade e, se fosse honesto consigo mesmo, admitiria que o fazia com grande prazer. Justamente quando voltava a pensar que sua fuga fora fácil demais, sentiu os dentes afiados de Bethia cravaram-se na palma de sua mão. Continuou caminhando, ignorando o desconforto como se não passasse de uma picada de mosquito. Porém, o contato da boca de Bethia com sua pele provocou-lhe uma sensação excitante, levando-o a desejar vingar-se de uma maneira inusitada. Gostaria de mordiscar-lhe o pescoço, ou o lóbulo da orelha. Simon praguejou consigo mesmo. Não poderia se permitir pensamentos indisciplinados, quando um dos companheiros de Bethia poderia acordar e dar pela falta dela, alertando os demais. Sentiu uma pontada de remorso por estar deixando seus homens para trás, mas não havia meios de acordá-los, sem despertar todo o acampamento. Segurou Bethia com firmeza ainda maior, tentando ignorar a pressão da parte traseira do corpo dela contra a parte dianteira do seu. Mesmo que não tivesse de sofrer com a distração provocada pelo corpo feminino, a caminhada era lenta. A mata fechada impedia que a luminosidade das estrelas penetrasse na floresta, com a qual Simon não estava familiarizado. Possuía uma vaga noção da direção em que Baddersly se situava e continuou a segui-la, na esperança de encontrar a estrada. Ao sentir o corpo tenso de Bethia relaxar um pouco em seus braços, deu-se conta de que, àquela altura, as chances de terem sido seguidos eram mínimas. Assim, parou para amarrar as mãos dela com a corda que levara. Ao perceber as intenções de Simon, Bethia pôs-se a lutar com todas as forças, mas só conseguiu criar alguma dificuldade para ele, pois não foi capaz de impedi-lo de realizar seu intento. Embora ela voltasse a lutar quando Simon abaixou-se para amarrar seus pés, Bethia surpreendeu-o por não gritar, nem chorar. Também não implorou, como faria qualquer outra mulher. Definitivamente, Bethia era diferente de todas elas e Simon não estava certo de que isso o agradava. — E então, moça? O que acha de estar no papel de prisioneira? — inquiriu com ironia. O sentimento de triunfo, porém, logo se dissipou. Os olhos de Simon pousaram nos seios fartos que acompanhavam a respiração ofegante de Bethia. No mesmo instante, ele voltou a ser atacado por uma sensação incontrolável e, ligeiramente chocado deu-se conta de que se encontrava em uma situação peculiar. Poderia fazer o que bem quisesse com Bethia. Ora, ela havia atacado seu grupo, tomado seus homens como prisioneiro e submetido Simon a uma terrível humilhação. Quem o culparia por vingar-se? Não fora esse o seu juramento? De repente, seu coração disparou diante da constatação de que poderia ter aquela mulher ali mesmo, na floresta. Simon praguejou, furioso contra os próprios pensamentos. Não era aceitável torturar ou desonrar adversários. A prática comum era tomá-los como reféns a fim de exigir resgate. Embora tais regras não se aplicassem a bandidos, ele não poderia abusar de um prisioneiro… mesmo sendo uma mulher. 16

Uma mulher! Era esse o problema, uma vez que Simon jamais se vira diante de um inimigo como aquele. Ainda assim, tal fato não explicava a estranha tentação que se apoderara dele. Nunca antes estivera com uma mulher, exceto com prostitutas pagas. Sempre se orgulhara da disciplina que mantinha sobre a mente e o corpo, muito maior que a dos irmãos. Não perderia o controle só porque aquela criatura com roupas de homem contrariava todos os seus princípios. Provavelmente, fazia parte dos planos dela fazer bom uso de seus atributos femininos. Depois de dirigir-lhe um olhar duro, puxou a corda. — Vamos — ordenou. — Daqui por diante, você pode andar. Não ofereceu ajuda para que ela se levantasse, nem esperou para ser seguido. A corda esticada era o único lembrete da presença de Bethia atrás de si. Assim, continuou caminhando pela floresta, até chegar a uma grande área de pastagem, iluminada pelo luar. Embora não o agradasse a idéia de seguir por campo aberto, também não queria continuar na floresta, território que Bethia conhecia muito melhor do que ele. Então, sempre puxando a prisioneira! pela corda, seguiu pelos limites da floresta, à procura de um lugar para passar o resto da noite. Esperava encontrar uma cabana de pastores, uma vez que a região era rica em rebanhos de ovelhas, mas tudo o que conseguiu foram as ruínas de um velho templo romano. — Para dentro, moça — sussurrou, empurrando-a à sua frente. O teto se fora havia muito tempo e o mato crescia pelas rachaduras do chão. Ainda assim, o lugar oferecia abrigo contra olhares curiosos, caso os homens de Bethia conseguissem chegar até ali. Quando o dia raiasse, Simon teria maior facilidade em se localizar. Do contrário, pediria informações a algum pastor da região. Os bandidos, por sua vez, ficariam limitados às fronteiras de seu mundo sombrio, sem poderem se arriscar a céu aberto, como homens honestos. Porém, para o caso de eles decidirem se aventurar, Simon manteria a líder deles prisioneira. Sorriu ao pensar nisso e, em seguida, deitou-se no chão frio, forçando-a a acomodar-se a seu lado e esperando que Bethia se queixasse. Mais uma vez, ela permaneceu em silêncio. Ao mesmo tempo que tal silêncio o irritava, Simon concluiu que era melhor assim, pois seria mais difícil serem encontrados se continuassem bem quietos. Enquanto isso, ele teria tempo para descansar, a fim de enfrentar o dia seguinte. Fechou os olhos com um sorriso de satisfação. Era bom pensar nos dias que viriam, quando ele teria tempo de sobra para obter as informações que desejava… e para se vingar da mulher que, ingenuamente, tentara manter cativo um de Burgh.

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CAPITULO III

Simon acordou ao amanhecer, os olhos alertas examinando os arredores, ao mesmo tempo que a mão sentia a firmeza da espada a seu lado. Constatando que a arma era apenas um pouco mais leve que a sua, pensou na mulher que a manejava com tamanha destreza. Adormecera na certeza de que ela tentaria tomar a arma dele, durante o sono, e o fato de isso não ter acontecido deixou-o ligeiramente decepcionado. Foi invadido pela excitação que antecedia uma batalha, ao pensar que teria de enfrentá-la novamente. Em nome da disciplina, resistiu ao forte impulso de virar-se para fitá-la. Perguntou-se se Bethia ainda dormia, ou lhe lançava aqueles olhares furiosos? Com um sorriso de antecipação, Simon finalmente se permitiu lançar um olhar na direção dela. Virou a cabeça devagar, mas sentou-se de um pulo, proferindo um palavrão. Pôsse de pé, os olhos fixos na corda que pendia frouxa de sua cintura, mal acreditando no que via. Olhou em volta, na esperança de vê-la a um canto do abrigo, mas descobriu-se sozinho. Bethia se fora. Simon ergueu os punhos no ar e reprimiu um grito de guerra, que teria superado até mesmo o de Dunstan. Foi somente a noção de que poderia ser ouvido pelos inimigos que o impediu de dar vazão à sua fúria. Foi tomado de uma raiva sem limites pela mulher que conseguira escapar… por sua própria negligência. Depois de respirar fundo, tentou deduzir como ela escapara, bem debaixo do seu nariz. Ao examinar a corda, descobriu-a cortada. Como Bethia não usara a espada, a conclusão era evidente: ela carregava uma faca escondida nas roupas, exatamente como Simon fazia. Mais uma vez, ele a subestimara. Amaldiçoou-se por isso e por ter dormido tão profundamente, que nem sequer ouvira os esforços dela. Um guerreiro jamais poderia se dar a esse luxo, uma vez que sua vida dependia de seu estado de alerta. Mesmo sabendo disso, permitira que uma simples mulher cortasse a corda que a prendia e fugisse sem ser notada. Sentindo-se embaraçado, levou a mão ao pescoço, onde o ferimento continuava coberto pela substância que ela aplicara na véspera. Não acreditava que Bethia teria sido capaz de cortar-lhe a garganta antes que ele a dominasse, mas a simples idéia era o bastante para perturbá-lo. Assim como a certeza de que ela o deixara vivo por razões muito particulares. Simon bateu com um punho fechado na palma da mão, recriminando-se por não têla interrogado na noite anterior, quando tivera tal oportunidade. Como descobriria a identidade daquela mulher, que liderava um bando de homens? Por que eles não se comportavam como bandidos comuns? E quem era o tal de Brice, a quem ela o acusara de servir? Simon tinha muitas perguntas, mas não encontraria as respostas, agora. Voltou a praguejar, inconformado com mais aquela falha de julgamento que cometera. Pior do que a ira e a frustração, foi o sentimento de perda que o invadiu, e que ele era incapaz de compreender. Teve o ímpeto de voltar ao acampamento, libertar seus homens e destruir aqueles salteadores. Porém, antes mesmo de dar o primeiro passo, praticamente ouviu Geoffrey a reprovar sua impulsividade. Mesmo que conseguisse libertar seus homens, como eles poderiam lutar, desarmados, contra um bando de arqueiros? Com um resmungo, Simon admitiu que o melhor a fazer seria chegar a Baddersly e providenciar mais homens e informações, antes de voltar à floresta. Com um sorriso amargo, jurou voltar para recuperar o que lhe pertencia, inclusive a mulher. Desejava-a a seu lado com uma intensidade sem igual, mas descartou o 18

sentimento estranho como sendo puro desejo de vingança. Ela era um adversário e tanto, mas não tão boa quanto ele, pensou, com a típica arrogância de um de Burgh. E ela logo tomaria conhecimento disso. Fosse quem fosse, Bethia finalmente encontrara um oponente à sua altura. Empoleirada em um galho alto do grande carvalho, Bethia observou-o afastar-se, com um misto de alívio e pesar. Mesmo considerando-se tola por isso, não foi capaz de livrar-se do desejo ingênuo de que tudo pudesse ser diferente entre eles. Queria que aquele cavaleiro houvesse chegado para salvá-la, para aniquilar seus inimigos e… As idéias que lhe cruzavam a mente eram um tanto vagas. Lentamente, soltou o ar que estivera prendendo nos pulmões, repetindo para si mesma que de nada adiantava lamentar a perda de algo que jamais poderia ser seu. Na verdade, deveria erguer as mãos para os céus e agradecer por ele não ter descoberto seu esconderijo, ali. A simples idéia de enfrentar o irascível de Burgh provocava-lhe arrepios, apesar de seu coração endurecido. A aflição de ter acordado e se descoberto refém de seu prisioneiro fora bem merecida. Fora obrigada a usar toda a sua força, para não gritar inutilmente, pois seus homens jamais o atacariam enquanto ele a tivesse nas mãos. E, uma vez controlada, ela se mantivera em silêncio todo o tempo, pois existiam outros perigos, além de Simon de Burgh, embora, ao olhar para o perfil dele, à luz do luar, fosse difícil lembrar-se disso. Ou de qualquer outra coisa. Bethia estremeceu à lembrança do momento em que Simon a amarra e ela tivera de agarrar-se ao medo, a fim de fugir dos outros sentimentos que se apoderavam dela, bem como da consciência da diferença de sexo entre eles. Nunca antes conhecera um homem como Simon de Burgh, arrogante, poderoso, habilidoso. Por isso, acabara se esquecendo até mesmo de quem era e do que fazia naquela floresta. Quando aquele momento passara, Bethia sentira-se aliviada e grata pela decisão dele de mantê-la atrás de si, puxando-a pela corda. A caminhada forçada, assim como a distância dele, ajudara-a a se recompor. Simon de Burgh exalava força e vibração, em um mundo de homens pálidos e imaturos. Fora apenas a consciência de sua posição precária que a levara a pensar em si mesma, mesmo quando ele a obrigara a deitar-se no chão, tão perto daquele corpo másculo. Porém, fora a consciência daquele mesmo corpo que a mantivera acordada, muito depois de ele ter adormecido, e que lhe proporcionara a chance de cortar a corda que a prendia. Depois de se libertar, Bethia não se sentira triunfante, mas apenas temerosa de ser descoberta. Embora estivesse habituada a se locomover em silêncio pela floresta, receou que o guerreiro experiente pudesse acordar ao menor ruído. Assim, subira na árvore com cuidado, escolhendo um dos galhos mais altos para se acomodar, e ali ficou, até o amanhecer. Mesmo quando ele já atravessava o pasto a passos largos, Bethia ainda estremecia de medo. Tivera muita sorte. O que ele teria feito, se a houvesse descoberto? Bem, a verdade era que Simon de Burgh não a considerava inteligente o bastante, ou corajosa o bastante, para se esconder justamente ali. Tolo! Apesar de toda a sua força, Simon de Burgh era muito ignorante, em certos aspectos. Especialmente no que dizia respeito a Bethia, e ela adoraria a chance de instruí-lo. A maioria dos homens acreditava que as mulheres não passavam de belos ornamentos, nascidas para cuidar de tarefas domésticas e conformar-se com uma posição inferior. Recusavam-se a admitir que as mulheres possuíam cérebro e que eram capazes de raciocinar tão bem quanto eles. Na noite anterior, por um breve momento, Bethia sentira-se tentada a provar àquele cavaleiro arrogante que ele estava redondamente enganado. Teria sido fácil feri-lo com 19

sua adaga, enquanto ele dormia. No entanto, algo a impedira. O estranho desejo de não ferir, fosse o corpo bem desenhado, fosse seu orgulho exagerado, havia se mesclado ao seu bom senso, fazendo com que ela desistisse da idéia. Em uma coisa, Firmin tinha razão: Simon de Burgh representava problemas e Bethia não poderia mantê-lo cativo para sempre. Agora que ele estava livre, talvez os deixasse em paz. Especialmente depois que ela libertasse os homens dele, também. Com certeza, na qualidade de lorde de Baddersly, ele teria coisas mais importantes do que um pequeno bando de salteadores para cuidar. Apesar das dúvidas que a atormentavam, Bethia continuava a acreditar que seria melhor ficar longe de um homem tão perigoso, do que tentar mantê-lo prisioneiro. Além disso, não estava certa de que teria sido capaz de vencer Simon de Burgh nas ruínas escuras do velho templo abandonado. Ao pensar em uma luta contra o guerreiro poderoso, Bethia lembrou-se imediatamente de seu primeiro encontro, quando ele a tocara com tanta intimidade. Se fosse honesta consigo mesma, admitiria não saber qual seria a sua reação se ele fizesse o mesmo de novo. Bem, nada disso importava, uma vez que Simon de Burgh já desaparecia na distância. Portanto, Bethia não tinha de se preocupar com isso. Na verdade, tinha coisas muito mais importantes a considerar, inclusive a possibilidade de que, uma vez livre, Simon de Burgh fizesse coisas muito piores. Simon saltou da carroça, irritado. Embora detestasse tal meio de transporte, chegara a Baddersly mais depressa do que se houvesse seguido a pé. De início, o proprietário do veículo mal-cheiroso mostrara-se relutante em atender ao pedido de um estranho, mas Simon o convencera em um tom de voz que não dava lugar à desobediência. Voltando a pensar na mulher que não só ferira seu orgulho, como também lhe tomara os soldados, os suprimentos e suas montarias, Simon jurou que, se ela não lhe devolvesse seu corcel em perfeitas condições, pagaria em dobro pelo que fizera. Seu humor, já prejudicado, piorou ainda mais quando o guarda dos portões de Baddersly colocou-se em seu caminho. — Alto lá! O que faz aqui? — o homem inquiriu, segurando com firmeza o cabo da espada na bainha. Embora estivesse consciente de que não parecia um cavaleiro, sem a armadura e quase tudo mais, Simon não teve paciência com o guarda. — Guarde a espada, tolo! Sou Simon de Burgh! — respondeu em tom ameaçador. O efeito foi imediato e as maneiras do homem mudaram. — Lorde Simon! Perdoe-me! Estávamos à sua espera, mas… onde estão seus homens? E seus cavalos? — Tive problemas na estrada — Simon resmungou —, e estou com pressa de entrar no castelo. — Sim, claro, milorde — o guarda concordou de pronto, curvando-se para seu senhor. Com ar de dignidade, Simon atravessou os portões e, embora seus olhos registrassem tudo o que havia em seu caminho, ele não falou com ninguém, enquanto atravessava o grande terreiro e entrava no castelo. Quanto menos gente soubesse de sua chegada irregular, melhor. Simon não tinha a menor intenção de contar a todos por ali que ele e seu grupo haviam sido surpreendidos por salteadores… ou que o poderoso de Burgh fora aprisionado por uma mulher. Sua reputação estaria arruinada se tal informação se espalhasse. E como seus irmãos zombariam dele! Simon sentiu o sangue ferver, mais uma vez, ao pensar nisso. Entrou no castelo com passadas largas e pesadas. Uma vez lá dentro, ignorou o luxo que o recebeu, as tapeçarias, a fina porcelana 20

dos pratos, os móveis resistentes. Sentia-se tão confortável na estrada quanto em um bom castelo. Portanto, tais coisas pouco significavam para ele. Por outro lado, Baddersly possuía algo que ele mal podia esperar para desfrutar: uma refeição decente. Com tal intenção em mente, Simon gritou por comida e diversos criados apressaram-se em atendê-lo. Todos os presentes fitaram-no, boquiabertos, exceto os poucos cavaleiros que se encontravam perto da lareira. Ao vê-lo, puseram-se de pé e Simon fez um sinal para que o seguissem, encaminhando-se diretamente para o solar. Destinado ao uso do lorde do castelo e sua família, o aposento encontrava-se deserto. Simon ocupou a poltrona espetacular, à cabeceira da mesa, indicando aos três cavaleiros que se juntassem a ele. Uma vez sentado no lugar reservado à autoridade, sentiu-se mais calmo e pôs-se a examinar os homens ao seu redor. Thorkill, o mais jovem, fora levado de Campion para Baddersly pelo próprio Simon, dois anos antes, quando fora necessário tomar o castelo de volta para seu irmão. O mais velho, Quentin, chegara na mesma ocasião, tendo vindo de Wessex, com Dunstan. Somente O corpulento Leofwin servia em Baddersly havia muitos anos. Embora ele houvesse lutado contra Wessex, no passado, Simon não guardava rancores, uma vez que diversos cavaleiros haviam transferido sua lealdade a Dunstan, após a morte do tirano que fora lorde em Baddersly, antes. Os três eram dignos de plena confiança. Ainda assim, Simon hesitou, sem saber ao certo quanto deveria lhes contar. Não era só a sua relutância em admitir a recente desgraça que se abatera sobre ele, mas também um sentimento difuso, difícil de identificar, que envolvia Bethia e seus homens. Quanto realmente Simon sabia sobre eles? Seriam meros bandidos, ou existiam outros motivos para que vivessem daquela maneira? Simon sabia que Stephen riria de sua ambivalência, uma vez que Simon era conhecido por ser o mais decidido dos homens. Porém, não estava em casa. Dois anos haviam se passado, desde sua última visita a Baddersly. Portanto, não estava familiarizado com a região. E nem fazia idéia do que ocorrera por lá durante sua ausência. Depois de ter lido os relatórios do antigo administrador, Simon mal dera atenção à carta de Dunstan. Por mais que a cautela o desagradasse, talvez fosse a melhor atitude a tomar, Simon pensou, curvando-se aos conselhos do ausente Geoffrey. Além disso, quando voltou a olhar para os homens à mesa, todos muito bem treinados nas artes da guerra, foi tomado por um estranho instinto protetor. De uma coisa tinha certeza: não permitiria que aqueles cavaleiros matassem os bandidos. Ao menos, não enquanto ele não tivesse as respostas que procurava. E quanto à líder… Bem, Simon cuidaria pessoalmente de Bethia. Os cavaleiros esperaram em silêncio, obviamente hesitantes diante do péssimo estado de ânimo de seu senhor. Finalmente, Thorkill rompeu o silêncio: — Algo errado, milorde? Simon fitou-o nos olhos. — Fomos atacados na floresta. Todos os homens foram aprisionados. Talvez estabeleçam um resgate por eles. Os três murmuraram palavras de indignação, mas nenhum deles mostrou-se surpreso pelo fato de somente Simon ter fugido. O que restaurou boa parte do orgulho mortalmente ferido de Simon. — Quem fez isso? — Thorkill indagou, furioso. — Inimigos de seu pai, em Campion? — Ou de seu irmão, o lobo de Wessex? — Quentin sugeriu. — Ou de Baddersly, que há muito é invejada por sua prosperidade — Leofwin declarou. Simon sacudiu a cabeça. Embora Bethia pudesse estar mentindo, ele não 21

acreditava que ela conhecesse a sua identidade, quando atacara seu grupo. Ora, ela chegara a acusá-lo de ser um mercenário! A lembrança tentou-o a perguntar sobre o misterioso Brice, mas, mais uma vez, Simon conteve a curiosidade. — Creio que são salteadores comuns — disse. — Malditos! — Thorkill exclamou. — Ouvimos falar de bandidos na floresta, especialmente próximo a Burnel, mas eu não sabia que esses malfeitores também atacavam viajantes inocentes. As palavras do jovem cavaleiro prenderam a atenção de Simon, pois ficara claro que Bethia buscava mais do que algumas moedas de ouro. Além disso, os homens que trabalhavam nas minas de ferro da região não eram vítimas interessantes, pois pouco tinham para ser roubado. — Quem mais eles atacariam? — Simon inquiriu, atento à troca de olhares entre Thorkill e Leofwin. — Bem, não tenho informações detalhadas, mas ouvi rumores de que ovelhas e suprimentos foram roubados de Ansquith — Leofwin respondeu, parecendo constrangido. — Nunca soubemos que eles fizessem prisioneiros, ou que ferissem alguém. — Ansquith não é a propriedade que se estende à floresta de Burnel? — Simon perguntou. — Sim, milorde — Leofwin confirmou. — Trata-se de uma propriedade muito próspera, com uma mansão fortificada e que inclui parte do que foi, um dia, a floresta do rei. — Cujo lorde responde a Baddersly — Thorkill acrescentou, lançando um olhar significativo para Quentin. Simon observou os três cavaleiros com interesse. Existiria alguma disputa pessoal entre eles, ou estariam lhe escondendo alguma coisa? Reclinou-se na cadeira no momento em que os criados entraram, trazendo cerveja, pão, queijo e uma tigela de tâmaras, passas e figos secos. Quando se retiraram, Simon fitou cada um dos três nos olhos, antes de dizer: — E? Leofwin lançou um olhar de cobiça para a comida e o silêncio reinou, até que Quentin limpou a garganta. — Bem, o asno que governa Ansquith insiste em exigir nossa ajuda, mas ninguém aqui achou que seus choramíngos merecessem atenção. — Não imaginamos que os bandidos incomodariam viajantes! — Leofwin protestou. Simon estreitou os olhos e apanhou um figo. Ao que parecia, os cavaleiros temiam ser recriminados por não terem cumprido com sua obrigação. Afinal, se houvessem investigado os bandidos antes, seus infortúnios poderiam ter sido evitados. Ao mesmo tempo, Simon considerou a idéia nada atraente. Apesar das indignidades de sua aventura, aqueles haviam despertado nele um entusiasmo nunca antes sentido. Por isso, ele não conseguia lamentar o incidente. A batalha fora travada… — Quem é o asno que governa Ansquith? — indagou. — Lembro-me de um velho lorde, cuja propriedade era muito pacífica. — Sir Burnel — Quentin esclareceu e, ao olhar para os cabelos quase totalmente brancos do cavaleiro, Simon refletiu que ele certamente possuía muitas informações. — A propriedade pertence à família Burnel há muito tempo e ele fez um bom trabalho por lá. — Ainda assim, recusaram-se a ajudá-lo? — Simon fitou-os, incrédulo. — Não foi sir Burnel quem nos pediu ajuda — Quentin voltou a se encarregar das explicações —, mas sim o asno que fala em nome dele. Como se chama o sujeito, Thorkill? — Brice Scirvayne — o jovem respondeu. Simon tratou de disfarçar a própria reação, inclinando-se sobre a mesa para apanhar mais comida. Finalmente, a conversa chegava ao misterioso Brice! Sentia-se 22

triunfante. — E quem é, exatamente, Brice? Quentin deu de ombros. — Ninguém sabe. Um parente de Burnel… ou, talvez, um amigo. — Ele diz ter sido noivo da filha de Burnel — Thorkill informou com ar de reprovação. — É verdade — Leofwin confirmou. — Mas, agora que ela está morta, que direitos ele tem à propriedade? — Não me lembro de sir Burnel ter uma filha — Simon comentou, colocando na boca um pedaço de pão e ignorando os olhares famintos de Leofwin, que já estava muito bem alimentado. — Ela passou muito tempo longe daqui. Foi criada por outra pessoa, desde ainda menina, quando mais parecia um moleque — Quentin contou. — Lembro-me dela, correndo atrás do pai e seus guardas, como um menino faria. Burnel permitia, pois não teve filhos homens, mas depois da morte da esposa, creio que se arrependeu da maneira como educava a filha, pois mandou-a embora quase imediatamente. Simon franziu o cenho. Ouvir as reminiscências do velho cavaleiro não o levaria a lugar algum. A filha morta do vizinho não lhe despertava o interesse, exceto por sua ligação com Brice que, ao que parecia, estava exatamente no centro do que quer que estivesse acontecendo ali. — Ah, Bethia era mesmo linda, com seus cabelos claros e… — Leofwin ergueu as sobrancelhas para Simon. — Milorde? A mão de Simon imobilizara-se no ar, a caminho da boca. Ele se apressou em morder o pedaço de pão que segurava entre os dedos, a fim de disfarçar a surpresa. Apesar da expressão impassível que tinha no rosto, seu coração parecia prestes a saltar do peito. — A filha de Burnel, Bethia… — murmurou. — Ela morreu? — Sim, milorde — Thorkill respondeu com tristeza. — Logo depois que ela retornou, para se casar com o tal Brice, há vários meses, soubemos de sua morte. E, pelo que disseram, o período de luto foi bastante curto. Quentin praguejou. — Esse Brice é mesmo um asno! Não merecia a garota, nem as terras do pai dela. — Mas não é pior do que a maioria dos lordes — Leofwin lembrou. — Poucos são justos como os de Burgh. Embora recebesse as palavras de Leofwin com um leve aceno de cabeça, Simon já não pensava em Brice. Enquanto bebia um gole de cerveja, visualizou sua captora. Alta e esbelta, com cabelos loiros e hábitos que poderiam perfeitamente serem descritos como os de um garoto, ela poderia ser a versão adulta da menina que Quentin mencionara. A menos que existissem duas Bethias, a mulher que o aprisionara era a filha de sir Burnel e, definitivamente, não estava morta. Fazia sentido, pois que outra jovem teria uma educação tão completa? Ela não só sabia ler, como também manejava com destreza a espada e a corda. Possuía conhecimentos de ervas utilizadas para cura, bem como compreensão de táticas de batalha. Além de uma certa aura de… liderança. A imagem de Bethia, linda, espada em punho, fez o sangue de Simon ferver. A batalha fora travada… Lutando contra a excitação que o invadiu, Simon concentrou-se em conseguir maiores informações. Porém, por mais que interrogasse os cavaleiros, eles pouco tinham a acrescentar. Até mesmo Quentin só pôde lhe oferecer lembranças distantes e desconexas. Finalmente, Thorkill balançou a cabeça, os cabelos loiros esvoaçando. — Uma vez, eu a vi cavalgando. Era linda como um anjo — murmurou com ar fascinado. Simon fitou-o, incapaz de fazer algum comentário irônico. Em circunstâncias 23

normais, teria sido o primeiro a zombar das palavras românticas do jovem. Porém, sentiu um gosto amargo na boca, ao pensar que Thorkill poderia ter se apaixonado por Bethia. Ora, Thorkill não estava à altura dela! Tal pensamento fez Simon sorrir. Se o jovem se curvasse diante daquele anjo, correria o risco de ter a cabeça cortada. Não, o melhor seria deixá-lo acreditar que ela estava morta, a destruir-lhe a ilusão sobre a docilidade feminina. Bethia não era dócil, mas também não era amarga, apesar de possuir uma língua ferina. Definitivamente, ela era diferente de todas as outras mulheres, e Simon pretendia descobrir exatamente quem era aquela criatura tão singular. Infelizmente, seus cavaleiros não tinham mais nada a acrescentar aos seus conhecimentos. As relações entre Ansquith e Baddersly haviam se tornado tensas, desde que Harold Peasley, tio do verdadeiro herdeiro, tomara Baddersly. Depois de matar Peasley, Dunstan ocupara-se de sua nova propriedade e não fizera mais nenhuma viagem, por insistência da esposa. Simon, por sua vez, fizera poucas visitas, durante sua última estada em Baddersly. Seu trabalho fora reorganizar as forças do castelo e selecionar um administrador de confiança para cuidar da propriedade, na ausência de Dunstan. Não tivera tempo de reforçar alianças com vizinhos e, aparentemente, Burnel permanecera alienada de seu novo lorde. Segundo Quentin, quase não houvera contato entre Ansquith e o castelo, antes da chegada de Brice. Então, haviam começado os rumores sobre mudanças na administração da propriedade, resultando na sobrecarga de trabalho e na exploração do povo de lá. Ainda assim, tais questões não diziam respeito a Baddersly. Desde que Burnel pagasse o tributo anual a Dunstan, o castelo só tinha a obrigação de protegê-lo em caso de ataque. O que não acontecera. Por isso, nem Quentin, nem Florian, administrador de Baddersly, haviam considerado necessário enviar cavaleiros à floresta por causa de pequeno assaltos ocorridos em terras pertencentes a Ansquith. Tal atitude fora correta. Assim, embora os três guerreiros aguardassem com certa ansiedade pela reação de Simon, ele não encontrou motivo para reprimendas. Agora, porém, como se precisassem compensar a omissão anterior, os três clamavam por vingança contra aqueles que haviam ousado atacar seu senhor. E Simon, sempre o primeiro a desejar uma batalha, viu-se na estranha posição de aplacar-lhes o entusiasmo. — Vamos invadir a floresta com um grande exército e aniquilá-los — Quentin sugeriu em tom casual. — Não — Simon resmungou. — Não seria sensato expor cavaleiros montados a arqueiros bem treinados. — Nesse caso, levaremos arqueiros! — Thorkill decidiu. — Temos os melhores, em Baddersly. — E eles estão familiarizados com a floresta? — Simon retrucou. — São capazes de subir em árvores, como esquilos, colocando-se em posição de vantagem, tanto para o ataque, quanto para a defesa? Os três o fitaram com expressões surpresas e confusas. Simon não costumava pedir cautela, mas também não estava preparado para liderar um ataque. Se enviasse arqueiros à floresta, um deles poderia matar Bethia. Imediatamente, levou a mão ao peito, onde uma sensação dolorosa o atacou, como um ferimento não cicatrizado. Irritado, lançou um olhar duro para os três, desafiando-os a questionar suas decisões. — Já lhes ocorreu que esse tal de Brice pode querer justamente que mandemos nossos homens para a floresta, para nos apanhar em uma emboscada? Ou para atacar 24

Baddersly em nossa ausência? Embora não considerasse tal possibilidade, nem em termos muito remotos, Simon foi recompensado por olhares de admiração. — Devo confessar que não havia pensado nisso, milorde — Thorkill admitiu, envergonhado. — Duvido que isso possa acontecer… — Leofwin começou, mas Simon empurrou a bandeja na direção dele e, com um sorriso largo, o corpulento cavaleiro desistiu de falar e pôs-se a comer. — Prefiro levar um pequeno grupo de homens, liderados por mim mesmo — Simon declarou. Assim, teria certeza de que Bethia não sairia ferida. Mesmo que tivesse de baixar um decreto para isso! Nunca antes sentira tamanho interesse por um inimigo, mas também nunca fora tão humilhado em sua vida. Por isso, jurou que a próxima vitória seria sua. Embora desejasse visitar Ansquith primeiro, a fim de obter maiores informações sobre Brice e sua falecida noiva, Simon descobriu-se vítima de uma necessidade urgente de encontrar Bethia de novo, de vê-la, de triunfar sobre ela… E Bethia ainda mantinha seus homens prisioneiros. Simon pretendia recuperá-los, bem como a seus cavalos. A questão era como conseguir realizar o intento sem colocar Bethia em perigo. Reclinando-se na cadeira, Simon considerou suas alternativas e, pela primeira vez em sua vida, não sabia ao certo qual seria a melhor atitude a tomar. Tratava-se de um desafio, como nenhum outro que ele havia enfrentado antes. Mas foi com um sorriso que ele o aceitou. A batalha fora travada.

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CAPITULO IV

Simon foi acordado ao amanhecer por um criado apavorado pela perspectiva de atrapalhar o descanso de seu senhor. — Pedem que compareça ao portão, milorde — o homem sussurrou, antes de sair apressado do quarto. Sem dizer nada, Simon levantou-se e se vestiu, também apressado. Havia retirado armadura e espada da sala de armas do castelo, a fim de substituir as que haviam sido roubadas, mas como não contava com um valete, foi obrigado a se arrumar sozinho, o que não fez bem ao seu humor. Um cavalo, devidamente selado, já estava à sua espera quando ele saiu do castelo. Simon perguntou-se quem poderia estar no portão, àquela hora. Teria o misterioso Brice chegado para uma visita? Ou, talvez, algum inimigo, cuja existência ele desconhecia? Embora não tivesse conhecimento de alguém que pudesse sequer pensar em atacar Baddersly, não se surpreenderia se encontrasse um exército clamando a posse da propriedade, pois seu treinamento de guerra o preparara para tudo. Exceto para o que o esperava no portão. Simon puxou as rédeas, disfarçando o choque provocado pela visão de seus homens, todos com mãos e pés amarrados, dentro de uma velha carroça, que bloqueava a saída para a estrada. Sua primeira reação foi de surpresa, mas a segunda, foi de uma ira quase incontrolável. Como ela se atrevia? Justamente quando ele planejava recuperar homens, cavalos e, claro, seu orgulho e dignidade, ela os devolvia, como se fossem um presente! Simon imaginou-a rindo às suas custas e a raiva fez suas entranhas arderem. Enquanto observava, mudo, a evidência contundente de sua própria incompetência, o guarda do castelo aproximou-se. — Milorde! Encontramos essa carroça, abandonada na estrada, perto daqui. E os homens dentro dela afirmam terem viajado para o sul com o senhor. Simon reconheceu a incredulidade na voz do homem. Afinal, que tipo de soldados eram aqueles, para chegarem amarrados e enjaulados? Por um momento, Simon sentiu-se tentado a negar a identidade dos cavaleiros. Porém, sabia que a captura deles devia-se a uma falha sua. E a Bethia. — Solte-os — ordenou. — Mas ouçam o que vou dizer — acrescentou, dirigindo-se a todos em tom ameaçador. — Qualquer um de vocês que não seja capaz de manter a boca fechada, pode se preparar para perder a língua! A maioria nem precisava da ameaça, pois era fiel aos de Burgh. Além do mais, que homem revelaria, de livre e espontânea vontade, a verdade sobre ter sido derrotado por uma mísera mulher? Observou-os serem libertados, alguns em perfeitas condições, outros com ferimentos leves, que logo estariam curados. Mais uma vez, perguntou-se que jogo era o dela, afinal. Bethia não exigira pagamento de resgate para libertá-los, nem confiscara todos os seus pertences. Que tipo de salteadora era ela? Simplesmente, deixara-os ali, como se quisesse atirá-los nos braços de Simon. Seria possível que Bethia não o considerasse capaz de reaver os soldados? Acreditaria que ele não a perseguiria, agora? Bem, se fosse assim, Bethia não tardaria a descobrir que havia se enganado completamente. A guerra estava apenas começando. — O que faremos com a carroça? — o guarda perguntou, examinando o velho veículo. Simon estava prestes a ordenar-lhe que ateasse fogo à geringonça, quando outro guarda aproximou-se. — Ora, acho que essa carroça pertence ao ferreiro — disse. Naturalmente, Simon pensou, irritado, ela havia roubado a carroça, também. 26

— Onde estão nossos cavalos? — inquiriu entre dentes. — Ela disse… — um dos feridos começou a responder, mas parou de falar ao perceber a expressão no rosto de Simon. — Nós… bem, acho que os encontraremos na loja do ferreiro. — Ela? — um dos guardas repetiu, mas recebeu uma cotovelada do companheiro. Todos os olhos se voltaram para Simon, que exibiu uma máscara ainda mais ameaçadora. Ele não tinha a menor intenção de esclarecer a identidade da ladra responsável pela chegada de seus homens, amarrados, em uma carroça velha. Puxando as rédeas com movimentos bruscos, Simon tomou o rumo do castelo, determinado a reunir alguns cavaleiros e dirigir-se à vila, onde esperava não ter mais nenhuma surpresa desagradável. Com um gesto, Simon ordenou ao seu pequeno grupo que parasse diante dos estábulos. Embora a vila próxima à floresta Burnel fosse próspera, a loja do ferreiro era pequena. Na verdade, o terreno mal comportava os grandes cavalos de raça que se encontravam ali. A visão de seus animais ali deixou Simon ainda mais furioso com a mulher que parecia determinada a provar que era melhor do que ele. Fez um sinal para que Quentin e seus homens esperassem, enquanto ele desmontava e entrava no pequeno edifício, à procura do proprietário. Encontrou-o escovando uma égua, com calma e tranquilidade. Tratava-se de um homem alto e corpulento, que não interrompeu o trabalho ao descobrir que tinha um visitante. Ocorreu a Simon que, talvez, não fosse má idéia atirá-lo no calabouço, para ensiná-lo a não negociar com bandidos. Porém, antes de qualquer coisa, precisava colher informações sobre os salteadores. De preferência, sobre a líder do bando. — Meus cavalos estão em sua propriedade — declarou em tom feroz, segurando com firmeza o cabo da espada. O homem se manteve impassível. — Eu sei — respondeu, ainda escovando a égua. — Pode levá-los. Simon ficou desconsertado, uma condição que se tornava rapidamente familiar a ele. Desde que entrara na floresta, o mundo parecia ter virado de pernas para o alto. Não havia ordem, naquele lugar, o que colocava à prova sua rígida disciplina. — Quanto quer por eles? — inquiriu. — Eu? — O homem fitou-o com ar surpreso. — Nada. O senhor disse que os cavalos são seus. — E são, mas quero saber como vieram parar aqui. — Creio que sabe melhor do que eu, milorde. Simon estudou-o longamente. Musculoso, com cabelos ruivos desgrenhados, era uma figura formidável, mas parecia desprovido de inteligência. — Está dizendo que não sabe de onde vieram os cavalos? — Se diz que são seus, acredito em sua palavra, milorde. Eles já estavam lá fora quando acordei, de manhã. — Não ouviu nada durante a noite? O homem sacudiu a cabeça e Simon refletiu que estava perdendo seu tempo. Embora o sujeito parecesse idiota, ele suspeitou que tal atitude era forjada. Então, deu-se conta de que o ferreiro conhecia Bethia e estava apenas fingindo-se de tolo, a fim de protegê-la. Ao mesmo tempo que queria gritar tal acusação, tratou de conter os impulsos e continuar o interrogatório com a maior frieza possível. — Não ficou surpreso ao encontrar uma porção de cavalos em sua propriedade? O homem deu de ombros. — Tinha certeza de que alguém viria buscá-los. — E está disposto a me entregar todos eles, sem cobrar nada? — São seus, não são? 27

Simon teve de se esforçar para não esmurrar o ferreiro. Se o sujeito não era um completo idiota, fingia muito bem. Depois de estudá-lo mais um pouco, Simon tentou calcular a verdade. Se aquele homem sabia mais do que estava dizendo, seria porque tinha medo de represálias por parte dos bandidos? Ou porque realmente estava protegendo Bethia e seus homens? — Como sabe que os cavalos são meus? — perguntou. — Não poderiam pertencer a alguém da região? De Baddersly, por exemplo. Ou, então, a Brice Scirvayne. — Ah, aquele estúpido! Não faço qualquer tipo de negócio com ele! — Por que não? — É um farsante mentiroso! Todos sabem que ele não é querido por aqui. — Por quê? Àquela altura, porém, o ferreiro deu-se conta do erro que cometera e tratou de sacudir a cabeça, voltando a assumir uma expressão tola. — Não cabe a mim falar de meus superiores, milorde. Vou ajudá-lo com seus cavalos. Certo de que o homem sabia mais do que dizia, Simon teve o ímpeto de ameaçálo. Estaria o ferreiro de acordo com os bandidos? Existiriam outros, ali, dispostos a defender Bethia e seu bando? Simon olhou em volta, examinando comerciantes e trabalhadores que passavam, perguntando-se a quem haviam entregue sua lealdade. Então, virou-se para a floresta. Onde estava Bethia? Estaria escondida entre as árvores, rindo dele? Ora, se ela pensava que aplacaria a ira de Simon, ao lhe devolver homens e cavalos, enganara-se redondamente. Ao mesmo tempo que sentia um forte impulso de procurá-la, Simon sabia que seria loucura embrenhar-se na floresta, sem um plano. Quanto mais soubesse sobre ela, antes de confrontá-la, melhor. E na vila ele descobrira que as lealdades pareciam confusas, o que o fez mais cauteloso. E curioso. Talvez já fosse tempo de visitar o misterioso Brice. Bethia admirou a paisagem ao seu redor. Aquelas terras eram mesmo bonitas e esplendorosas, mas até quando continuariam assim? Ao que parecia, a floresta estava sendo destruída, dia a dia, pelo corte indiscriminado das árvores, para a produção de madeira. Além disso, Brice explorava mais e mais o povo que vivia e trabalhava na região. E quanto a Simon de Burgh? O que ele faria? A lembrança do cavaleiro provocou um arrepio em Bethia. Àquela altura, ele deveria estar na loja do ferreiro, recuperando seus cavalos… e amaldiçoando-a, sem dúvida. Ela sorriu ao pensar na ira que se apossaria dele, pois nunca em sua vida Bethia conhecera alguém mais arrogante. Porém, o divertimento a abandonou, pois ela se perguntou para onde ele dirigiria sua contrariedade. — Ele está com o ferreiro. — O eco de seus pensamentos a fizeram virar-se abruptamente, mas fora Firmin quem se aproximara, aparentemente furioso. — Foi loucura deixar os cavalos lá! O que faremos se ele aprisionar o ferreiro, ou punir todos os moradores da vila? Embora também estivesse preocupada com tal possibilidade, Bethia manteve a voz calma. — Ele não tem nada contra o povo da vila. — Brice também não tem, mas isso não o impediu de ser tirano e cruel. Bethia emitiu um suspiro cansado, pois aquela já era uma discussão antiga com o arqueiro. — Nem todos os homens são como Brice. — Esse homem é pior! Um lorde poderoso, com todo o exército de Baddersly sob seu comando! Deveríamos tê-lo matado! Ignorando a pontada de dor provocada pela visão do corpo inerte de Simon de 28

Burgh, Bethia olhou para as montanhas. — Então, sim, teríamos atraído um exército sobre nós. Não só de Baddersly, mas também de Wessex e Campion. Os de Burgh são muito poderosos, mais do que o próprio Brice imagina. Firmin proferiu um palavrão, mas ela não se abalou, pois já estava acostumada às explosões de raiva do companheiro. Ao contrário do arqueiro, não poderia se dar ao luxo de ser inconseqüente, ou de permitir que a paixão dominasse seus atos. Tal idéia dirigiu seus pensamentos, mais uma vez, a Simon de Burgh. — Deveríamos ter ficado com os cavalos. Ele é tão rico, que não sentiria falta deles. Nós poderíamos ter usado as montarias, ou vendê-las a bom preço — Firmin argumentou. — Ele jamais descansaria enquanto não os tivesse de volta — Bethia replicou. Apesar do breve contato que haviam tido, ela sentia como se o conhecesse a fundo. Suspeitava que Simon de Burgh valorizava seus cavalos mais do que seus homens. Tal roubo seria encarado como uma afronta inaceitável e imperdoável. — Além do mais — acrescentou —, não pretendo assaltar inocentes. — Inocentes? — Firmin repetiu com uma risada amarga. — Simon de Burgh não é inocente. Ainda vai se arrepender do dia em que o libertou. Ao virar-se para voltar à floresta, Bethia teve vontade de rir, pois a advertência de Firmin chegava com atraso. Ela já se arrependia por ter permitido que o prisioneiro se fosse, mas não por razões que seu arqueiro fosse capaz de compreender. Na verdade, Bethia não estava certa de que ela mesma compreendia as próprias razões. Simon mandou metade dos soldados de volta a Baddersly, com os cavalos recuperados, enquanto ele e o restante dos homens cavalgavam para Ansquith. Já vira o lugar de passagem, mas, agora, parado diante do portão, admitiu tratar-se de uma bela propriedade, protegida por muros altos. — Alto lá! O que faz aqui? — um guarda gritou, ao vê-los aproximando-se. — Os portões costumam ficar fechados? — Simon perguntou a Quentin, sem esconder a surpresa. Em tempos de paz, não era comum manter uma propriedade fechada, especialmente quando o proprietário comerciava ovelhas. — Não ficavam, antes — Quentin respondeu. — Talvez tenham mudado as ordens, por causa dos bandidos. Simon resmungou em concordância, mas estreitou os olhos, desconfiado. Se Brice temia um pequeno bando de arqueiros, então, não passava de um covarde. Ao mesmo tempo que seu desprezo pelo homem aumentava, uma certa apreensão também crescia, pois ele sabia muito bem que existiam duas razões pelas quais portões eram mantidos fechados: para evitar que invasores entrassem, ou que os moradores saíssem. — Ei, você! Fiz uma pergunta! — o guarda insistiu. — Sou Simon de Burgh, lorde de Baddersly — Simon respondeu, sentindo o autocontrole prestes a lhe escapar. — Abra os portões imediatamente. Desejo falar com meu vassalo, sir Burnel. O guarda empalideceu ao ouvir a identidade do visitante. — Tenho ordens de não abrir o portão para ninguém, milorde. — Então, vá falar com seu senhor! — Não posso abandonar meu posto, milorde. Quentin soltou uma risada perplexa. — De que adianta ter um guarda no portão, se o homem não pode abri-lo? — indagou. Cada vez mais impaciente, Simon não partilhou o divertimento do cavaleiro. — Nesse caso, chame seu superior — ordenou. — Mas faça isso imediatamente! 29

— Seria inútil, pois ninguém pode entrar — o guarda admitiu. — Se me transmitir sua mensagem, cuidarei para que master Scirvayne a receba. — Scirvayne! E quanto a sir Burnel, dono destas terras? Mais uma vez, o guarda mostrou-se apreensivo. — Sir Burnel está doente e master Scirvayne governa a propriedade em lugar dele. Simon conteve a irritação crescente. Se Brice realmente esperava obter ajuda do senhor da região, barrar-lhe a entrada não era a melhor maneira de persuadi-lo. — Muito bem — falou entre dentes —, mande chamar Brice, que pediu ajuda de Baddersly, contra um bando de salteadores. — Ah, milorde, os bandidos têm criado muitos problemas. Interceptam a chegada de suprimentos, roubam ovelhas, incitam o povo a… — O guarda parou de falar, aparentemente dando-se conta de que cometera um erro. — Tenho certeza de que master Brice ficará muito grato por sua ajuda. — Não ofereci ajuda a ele. Só quero conversar com ele sobre esse assunto… e alguns outros. — Transmitirei sua mensagem a ele, milorde. — Ora, seu tolo! Sabe com quem está falando? — Quentin perdeu a paciência. — Abra, imediatamente! — Não posso — o guarda declarou, aflito, e desapareceu atrás do muro. Simon ficou chocado. O que havia naquela viagem, para que tanta gente o desafiasse? Durante toda a sua vida, Simon fora tratado com o respeito devido à sua posição, tanto como um de Burgh, quanto como cavaleiro. Agora, via-se barrado por um reles soldado! Nunca ouvira falar, em tempos de paz, de uma propriedade que recusasse visitantes. Até mesmo estranhos, viajantes e peregrinos eram recebidos, ao menos para comer e descansar. Mas impedir a entrada do lorde da região poderia ser considerado traição. Simon teria o direito de derrubar os muros e tomar a propriedade, como castigo por tamanha insolência. Com um sorriso nos lábios, Simon contemplou a possibilidade de um ataque. Não se tratava de um castelo, mas sim de uma grande mansão, cercada por fortificações simples. E ele contava com homens de sobra, em Baddersly, para derrubar tudo aquilo. Sentiu nas narinas o cheiro da batalha e seu sangue ferveu diante da perspectiva de uma boa luta. Infelizmente, os pensamentos sobre guerra despertaram-lhe a lembrança de outro oponente. Simon podia vê-la à sua frente e tal imagem o deixou furioso consigo mesmo. Embora não estivesse presente, Bethia continuava a perturbá-lo. Enquanto não tivesse certeza da identidade dela, como deveria agir? Ela poderia ser realmente a filha de sir Burnel. O pai dela poderia estar preso em sua própria casa, impedido de falar por si mesmo. Se estivesse ali, Geoffrey o advertiria para não atacar a propriedade antes de obter maiores informações. — Devemos esperar, milorde? — Quentin inquiriu. — Não. Não ficaremos à disposição de ninguém. Os planos de Simon haviam falhado. Portanto, ele teria de fazer outros. Diante de tal constatação, o impulso que ele reprimira durante todo o dia voltou a atacá-lo com força total. Ora, se não podia falar com Brice, talvez fosse uma boa hora para conversar pessoalmente com Bethia. Sentiu o coração disparar pela expectativa de tal conversa. Olhou para a floresta e imaginou uma mulher loira e alta, vestindo roupas de homem. Onde estaria ela? Assaltando viajantes? Ou simplesmente escondida entre as árvores, de espada em punho? O corpo de Simon ficou tenso diante da promessa de um grande confronto e do triunfo que certamente se seguiria. — Voltaremos a Baddersly? — Quentin perguntou. 30

— Pode ir. E leve os homens com você. Tenho assuntos a resolver… sozinho. Decidira que, se levasse alguém, seria facilmente descoberto. Um cavaleiro viajando sozinho não despertaria suspeitas. E Simon jurou que, desta vez, apanharia Bethia de surpresa. — Mas… milorde! Não pode sair sozinho! — Thorkill protestou. Simon dirigiu-lhe um olhar duro. — Considera-me incapaz de viajar sem companhia? — Não, milorde, mas faço questão de servi-lo. Se deseja privacidade, nós o seguiremos a distância. Privacidade. Por mais que repetisse para si mesmo que não precisava disso, Simon hesitou diante de idéia tão tentadora. Então, voltou a pensar que só queria informações, além de uma chance de recuperar o orgulho perdido, de provar sua superioridade. — Ousa discutir minhas ordens? — inquiriu, fazendo o jovem corar. — Não, milorde, mas depois do que aconteceu… — Vão embora! — Simon interrompeu-o com um rugido. — E não procurem por mim antes de amanhã! Ignorando as expressões chocadas dos cavaleiros, Simon partiu a galope, na direção oposta a Baddersly. Precisaria de tempo para encontrar Bethia e arrancar-lhe alguma informação. E a última coisa que desejava era que seus homens vasculhassem a região à sua procura, caso ele não retornasse ao anoitecer. Era só isso, repetiu para si mesmo. Sua ordem não tinha qualquer relação com a idéia de partilhar um cobertor com Bethia, pois não sentia o menor desejo por uma mulher vestida de homem. Pouco importava que sensações ela havia despertado nele em seu último encontro, pois, desta vez, Simon estava no controle da situação e de seu próprio estado de espírito. Ao alcançar os limites da floresta, deu-se conta de que não poderia embrenhar-se na mata, montado, sem delatar sua presença. Então, dirigiu-se ao vale mais próximo, onde chamou um menino que pastoreava ovelhas e ofereceu-lhe bom pagamento para que cuidasse de seu cavalo. — Mas e se o senhor não voltar, milorde? — o garoto perguntou. — Voltarei — Simon afirmou, mais uma vez perturbado pelo fato de todos naquelas paragens questionarem o seu poder. — Os bandidos vivem na floresta, milorde. Tem certeza de que quer ir até lá, a pé? Depois de proferir uma ladainha de palavrões, Simon estudou o menino. — O que você sabe sobre os bandidos? — inquiriu. O garoto baixou os olhos para o chão. — Nada, milorde. Só recebi ordens para ficar longe da floresta. Simon estreitou os olhos, perguntando-se se todos os habitantes da região seriam leais a Bethia. Começava a suspeitar de que cada homem, mulher e criança a conhecia e, também, a protegia. Ora, não tinha tempo para bobagens e, menos ainda, para um moleque! Deu uma moeda ao garoto, prometendo dar-lhe outra, na volta. — Retornarei amanhã — declarou. — Esteja aqui com meu cavalo, ou você e sua família pagarão muito caro. — Sim, milorde — o menino respondeu em tom solene, mas abaixou a cabeça, como se escondesse um sorriso. Irritado, Simon seguiu para a floresta, à procura da responsável por todos os seus problemas. No meio do caminho, perguntou-se se os bandidos haviam espalhado a notícia de que ele fora capturado, transformando-o em motivo de risos, em toda a região. Mais furioso ainda, jurou fazer Bethia pagar caro pelo mal que lhe causara. Apesar da urgência para resolver a questão de uma vez por todas, a mente o 31

advertia para ser cauteloso. Assim, antes de embrenhar-se na mata, virou-se para onde deixara o cavalo. Se o menino corresse para informar alguém de sua presença… Porém, o pequeno pastor continuava parado no mesmo lugar, sem fazer sinais suspeitos para possíveis companheiros escondidos. Satisfeito, Simon seguiu adiante, dizendo a si mesmo que estava lidando com um simples bando de assaltantes de estrada, e não com um sistema sofisticado de espiões e traidores. Mesmo que alguns habitantes da região não gostassem de Brice, não eram espertos a ponto de enfrentá-lo, Adentrou a floresta, cuidadoso, mas confiante. Demorou a encontrar o local onde fora mantido prisioneiro e circundou a clareira em silêncio, alerta para a possível presença de inimigos, inclusive sobre as árvores. Porém, não havia ninguém lá e ele logo descobriu por quê. Todos os sinais do acampamento haviam sido apagados com tamanha perfeição, que Simon questionou se aquele era mesmo o local. Mas depois de uma rápida inspeção, descobriu sob as folhas secas, marcas de sangue dos feridos, bem como restos de alimento e pegadas. Pôs-se a procurar por marcas que indicassem a direção na qual o bando havia seguido, mas não encontrou nada. Olhou para cima, perguntando-se se Bethia e seus homens haviam pulado de galho em galho, na intenção de não deixar uma trilha em seu rastro. Usando armadura e espada, seria difícil fazer o mesmo, Simon pensou. Além do mais, sua habilidade em subir em árvores não era testada desde a infância. Ora, como poderia encontrá-los? Desejou conhecer melhor a floresta, pois tal falta de conhecimento tornaria sua tarefa ainda mais difícil. Afinal, não estava à procura de um lugar, mas sim de homens, capazes de se confundirem com a vegetação. O sol já começava a baixar no horizonte, tornando sua missão mais urgente, mas Simon não desistiria do primeiro desafio verdadeiro que lhe fora apresentado em anos. Determinado, abandonou a clareira, dizendo a si mesmo que, por mais tempo que demorasse, encontraria os bandidos e capturaria sua líder. Desde que eles não o encontrassem antes disso.

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CAPÍTULO V

Simon movia-se depressa e em silêncio pela floresta, apesar de detestar agir furtivamente. Preferia enfrentar seus adversários em um campo aberto de batalha do que esgueirar-se por entre árvores. Os homens de Bethia poderiam estar em qualquer lugar, até mesmo acima de sua cabeça e, por isso, ele tratou de ser cauteloso, pois ainda se lembrava com clareza da sensação de um dos bandidos aterrissando sobre suas costas. A lembrança alimentou-lhe a ira, pois Simon sempre se considerara invencível. Desde muito jovem, vencia todos os seus irmãos em lutas, assim como qualquer um que o desafiasse. Com exceção de Dunstan, claro. Simon franziu o cenho, considerando a antiga competição com o mais velho dos de Burgh. Dunstan seria sempre o primogênito, muitos anos mais velho que ele. Ainda assim, Simon ainda se esforçava para igualar-se a ele. Ou até mesmo superá-lo. A raiva tornou-se ainda mais intensa, quando Simon pensou nos esforços inúteis que fizera, desde sua chegada ali. A idéia do irmão rindo e zombando dele funcionou como combustível para sua busca. Embora não lutasse pelo rei, como Dunstan lutara, Simon servia sua família com dedicação e lealdade e estava determinado a resolver o que quer que estivesse acontecendo de errado nas terras do irmão. O que incluía acabar com um infame grupo de bandidos. Um leve odor de madeira queimada chamou-lhe a atenção e ele o seguiu, decepcionando-se ao se deparar com um velho forno para fundição de ferro. Árvores haviam sido cortadas para serem usadas como lenha e uma pilha de barras de ferro comprovavam seu uso. Porém, como muitas outras fundições da região, fora abandonada havia tempos. Talvez seu nariz o houvesse enganado, mas Simon decidiu não ignorar o leve cheiro de fumaça. Por isso, ajoelhou-se para examinar o solo. Descobriu que a grama apresentava-se amassada, indicando movimento recente e, então, seguiu uma trilha quase imperceptível, que levava a uma mina abandonada. Simon aproximou-se da entrada devagar e estreitou os olhos, contrariado. Nunca se importara por ficar em lugares fechados. Aposentos abafados, em castelos, e até mesmo cavernas, eram uma coisa. Uma mina, com suas passagens estreitas e paredes úmidas, era outra história. De um momento para outro, a terra que fora escavada poderia, facilmente, desabar sobre um homem, tirando-lhe a vida. Embora a idéia de entrar não o agradasse, Simon não era covarde. Assim, enfiou a cabeça na abertura e apurou os ouvidos. Como não ouvisse som algum, entrou devagar. Mesmo assim, não havia o menor ruído lá dentro. A menos que os bandidos estivessem, no fundo da mina, mantendo silêncio total, não havia ninguém ali. Mas, de uma coisa, ele estava certo: haviam estado lá e, sem dúvida, voltariam. Tudo o que tinha de fazer era encontrar um bom ponto de observação e esperar. Ao sair do túnel, Simon respirou fundo, apreciando o ar fresco. Em seguida, encaminhou-se para as árvores, à procura de um esconderijo. Após uns poucos passos, algo chamou-lhe a atenção e ele ficou imóvel. Seu coração ameaçou parar de bater quando Simon deu-se conta do que estava, finalmente, à sua frente. Bethia estava sentada em um tronco caído, a cabeça abaixada, concentrada na tarefa de amarrar a corda de um arco. A cena simples adquiria um ar quase irreal, uma vez que o sol, filtrado pelas folhas das árvores, cobria-a como um manto dourado. Por um longo momento, Simon limitou-se a observá-la, incapaz de explicar os sentimentos estranhos que se apoderavam dele. Reconheceu a satisfação da descoberta, do desafio e da luta que viria. Ao mesmo tempo, havia algo mais, que ele nunca sentira antes, que insinuava um perigo totalmente desconhecido. Tentou desvencilhar-se de tais sensações, dizendo a si mesmo que sua excitação 33

não passava de um instinto animal, despertado pela visão de sua presa. Porém, continuou hesitante, embriagando-se com a beleza de Bethia. Tudo nela parecia mais luminoso do que a imagem que ele guardara na lembrança, desde a trança dourada, aos traços bem marcados do rosto. E aqueles lábios… Simon imaginou o que Stephen diria sobre eles. E, ainda, havia as pernas. Simon já vira pernas femininas antes, mas não envoltas por vestimentas masculinas, que deixavam pouco por conta da imaginação. O tecido colava à pele de Bethia, fazendo a boca de Simon secar, enquanto seus olhos subiam lentamente até as coxas bem torneadas. Sem perceber, ele devia ter produzido algum ruído, pois Bethia ergueu a cabeça subitamente, e os olhos alertas fixaram-se em Simon. Embora ele houvesse se imaginado bem escondido, ela o viu, pois colocou-se em pé de um pulo. No mesmo instante, Simon estava no encalço de Bethia. Sem dificuldade, conseguiu alcançá-la, segurá-la e tombar no chão, com ela bem presa em seus braços. Já fizera isso antes, mas, desta vez, estava plenamente consciente de que era uma mulher quem lutava para se libertar de suas mãos. Tal conhecimento só tornou sua dificuldade maior, pois ao mesmo tempo que tentava não machucá-la, Simon tinha de manter total domínio sobre ela, pois agora sabia que, assim como ele, Bethia levava uma faca escondida nas roupas. Como não pretendia permitir que ela lhe cortasse a garganta, usou o peso do próprio corpo para imobilizá-la, prendendo as pernas dela com as suas, enquanto segurava-lhe os braços com força. Nada disso era fácil, pois ela lutava desesperadamente, tentando acertar-lhe uma cabeçada no queixo. Finalmente, Simon conseguiu dominá-la, mas não saberia dizer se a imobilidade dela significava rendição fingida, ou se, de alguma maneira, ele a ferira. Deslizou as mãos pelos braços dela, até chegar perto dos punhos. Então, ergueu a cabeça bruscamente para fitá-la. — Você tem músculos — falou, ao sentir as formas rígidas sob os dedos. — Tantos quanto você! — ela replicou com ar de desprezo. Tal afirmação era absurda e Simon teria caído na gargalhada, não fosse pelas sensações que o corpo dela sob o seu lhe provocava. A força de Bethia o excitava e, perplexo, ele sentiu seu corpo manifestar, da maneira mais primitiva, os sinais de tal excitação. Evidentemente, Bethia também sentiu, uma vez que seus corpos encontravamse inteiramente colados, e não pôde impedir que seus olhos se arregalassem de surpresa. — Talvez — Simon respondeu ao último comentário dela, com um sorriso resignado —, mas eu possuo um determinado músculo que você não tem. Preferiu omitir o fato de que estava mais do que disposto a partilhá-lo com ela. O desejo de ter aquela mulher para si era tão intenso, que ele chegou a se sentir atordoado. Porém, Bethia não o queria. Com expressão chocada, empurrou-o e Simon a soltou. Ele ficou desapontado e perturbado com a rejeição dela, além da traição cometida por seu próprio corpo. Afinal, não era um jovem fogoso como Stephen, e orgulhava-se de seu autocontrole. Foi invadido por uma profunda raiva de si mesmo, pois aquela não era uma das prostitutas que ele, às vezes, pagava para satisfazer suas necessidades mais básicas. Bethia era uma mulher diferente de todas as outras que ele jamais conhecera, dona de habilidades que nenhuma outra possuía. Embora duvidasse que ela fosse capaz de vencê-lo novamente, deu-se conta, tardiamente, de sua breve falta de atenção. Bethia levantou-se com rapidez, seguida por Simon, que protestou: — Este não é um bom lugar para ficarmos. Minas podem desabar a qualquer momento. Ignorando as palavras dele, Bethia fitou-o nos olhos, furiosa. — O que está fazendo aqui? Ficou louco? Alguém poderia tê-lo visto e cravado 34

uma flecha em suas costas! Onde estão seus homens? — Vim sozinho. Apesar de também estar furioso, Simon descobriu-se desejoso de sorrir para ela. Bethia ficava magnífica com aquela expressão irada no rosto. — Você está, definitivamente, louco! — ela quase gritou. — Somente um homem fora de seu juízo perfeito atira-se em território de um exército inimigo. Poderia estar morto! — Um exército? — Simon repetiu, irônico. — Seu bando não é tão grande. Além disso, sua preocupação com o meu bem-estar não tem razão de ser, pois são os seus homens que deveriam ter cuidado comigo. Reprimiu um sorriso, ao vê-la ficar vermelha de raiva. — Não me importo nem um pouco com você! — Bethia sibilou. — Na verdade, ficaria satisfeita se o visse com uma flecha no coração, pois isso significaria um problema a menos para mim! Por que está aqui, afinal? O que deseja? — inquiriu, cruzando os braços. Deseja… A palavra ecoou na mente de Simon, enquanto seus olhos pousavam na curva dos seios, acentuada pelo movimento que ela acabara de fazer. Perguntou-se se Bethia os apertava, a fim de disfarçá-los e parecer-se mais com um garoto. Foi invadido por um súbito impulso de descobrir a verdade. Imediatamente, descartou tamanha tolice e amaldiçoou o próprio corpo pela reação instantânea a seus pensamentos descabidos. — Desejo informações — respondeu afinal. A expressão de Bethia tornou-se dura. — Que tipo de informações? — Quero respostas simples, Bethia — Simon falou, enfatizando o nome dela e admirando-a ainda mais pelo controle perfeito que ela demonstrou ter sobre as próprias reações. — Respostas como, por exemplo, por que devolveu meus homens e meus cavalos. — Que diferença faz? Não pode, simplesmente, pegá-los e ir embora? — Você faria isso? Bethia virou-se e, em vez de responder à pergunta, murmurou um palavrão um tanto incomum nos lábios de uma mulher. Assim que ela começou a se afastar, Simon seguiu-a de perto, jurando descobrir o que queria saber, a qualquer preço. Após alguns passos, segurou-a pelo braço. — Diga-me, Bethia, por que nos capturou, para nos libertar em seguida? Por que vive na floresta, liderando um bando de assaltantes, quando poderia viver com todo luxo? Quem é você, afinal, Bethia? Ela o fitou nos olhos, provocando em Simon mais uma pontada de admiração. — Solte-me — Bethia murmurou. Ele obedeceu, dando-se conta de que aquela mulher vestida de homem possuía mais dignidade do que qualquer outra que ele já conhecera. Bethia não chorava, nem desmaiava, ou gritava sua indignação. Nem por uma vez, Simon a ouvira queixar-se, ou pedir clemência. Agora, ela simplesmente se mantinha impassível e sustentava-lhe o olhar, como um homem faria. Sem saber por quê, Simon sentiu um forte aperto no peito. — Muito bem, vou lhe dar as respostas, lorde de Burgh. — Simon — ele disse sem pensar, no desejo de se distinguir dos irmãos e de que Bethia se dirigisse exclusivamente a ele. — Meu nome é Simon. — Está bem… Simon. Só espero que não me culpe se as respostas não forem do seu agrado. Venha. Bethia virou-se e tomou o rumo da clareira. Simon seguiu-a, mantendo-se alerta, pois conhecia o risco de estar sendo conduzido a uma armadilha. Ao mesmo tempo que seus instintos lhe diziam que deveria confiar nela, não era ingênuo a ponto de obedecêlos cegamente. 35

A certa altura, ela parou e voltou a fitá-lo. — Depois, você deve partir, sem que ninguém o veja — insistiu com intensidade. Simon não respondeu, pois não sabia exatamente o que havia por trás daquelas palavras. Seria preocupação pela vida dele? Ora, que tolice! Bethia, sem dúvida, tinha suas razões particulares para querer que ele se fosse, mas Simon jurou que descobriria os motivos dela. Ele voltara, como Bethia sabia que aconteceria. Apavorada, ela escondeu seus sentimentos sob uma capa de irritação. Ele só podia ser louco, para ter voltado! Se Firmin o tivesse visto, certamente, o teria matado. Embora houvesse, ela mesma, sentido impulsos assassinos, nos últimos meses, Bethia não tolerava sequer pensar na morte daquele grande cavaleiro. Tal imagem perturbou-a de maneira muito intensa, e ela tratou de afastá-la depressa e voltar a concentrar-se na loucura que ele fizera. Perguntou-se como Simon de Burgh chegara até a idade atual, sem ser morto. Alguém tinha de cuidar dele, impedir que obedecesse aos ímpetos inconseqüentes! Porém, a idéia de cuidar de Simon de Burgh provocou-lhe um arrepio, além de pensamentos confusos, que ela se apressou em reprimir. Por que aquele homem não a deixava em paz? Contendo o medo pelo perigo que se abrigava dentro de seu próprio peito, caminhou apressada até a mina, onde havia montado acampamento com seus homens. Se ele realmente só queria informações, talvez, depois de ouvir a história dela, finalmente fosse embora. Bethia já não acalentava a esperança de que ele os ajudasse, pois suspeitava de que o preço por tal ajuda seria alto demais para ela. Atravessou a entrada do túnel com passos rápidos, ansiosa para pôr um ponto final àquela questão. Simon, porém, não a seguiu. Ficou parado do lado de fora, o rosto uma máscara de desagrado. — Não vou entrar. Prefiro ficar onde posso respirar. E você deveria fazer o mesmo — resmungou. Surpresa, Bethia observou-o pelo canto do olho. Seria possível que aquele cavaleiro forte e corajoso, tivesse medo de entrar nas minas? Ela não deu qualquer indicação de suas suspeitas. Simplesmente, fez um sinal para que ele a seguisse para dentro da mata, pois teriam de conversar em um lugar onde não fossem vistos. Assim, Bethia não só o protegeria do temperamento irascível de Firmin, como também ficaria mais à vontade para conversar com Simon, sem preocupar-se com as perguntas e suspeitas de seus homens. Disse a si mesma que tal decisão era apenas a atitude normal da líder do bando, mas no fundo, sabia que queria muito ficar a sós com ele, mesmo que fosse só para saber um pouco mais daquele guerreiro. Quanto tempo fazia que não conversava com alguém do seu nível? Ora, isso nunca havia acontecido, Bethia refletiu. Ao menos, não desde a infância, quando seguia os ensinamentos do pai, que a tratava como uma aluna brilhante. Afastando as lembranças, Bethia deu-se conta de que, sendo filho de um conde, Simon de Burgh dificilmente a consideraria uma igual. Na verdade, a idéia de igualdade trouxe um leve sorriso aos lábios de Bethia, pois o grande cavaleiro deixara bem claro que sua opinião sobre as mulheres era das piores. Para ela, porém, depois de ter passado anos na companhia de parentes medíocres e, mais tarde, tornado-se líder de ex-criados, mineiros e aldeões, de Burgh era a única pessoa que ela jamais conhecera, capaz de compreender a vida de um líder guerreiro. Evidentemente, era isso, entre outras coisas, que a atraía para ele, pensou. Ao mesmo tempo, sabia que os interesses comuns, as características semelhantes, representavam uma ameaça, pois a mesma chama que aquecia e confortava, também poderia queimar. Se fosse sensata, trataria de livrar-se rapidamente daquela chama em particular, antes de sofrer mais do que deveria. 36

Uma vez certa de que se encontravam em um local seguro, sentou-se em um tronco caído e fez um sinal para que Simon também se sentasse. Embora sorrisse, como se surpreso pela cortesia dela, Simon permaneceu de pé, os olhos atentos e alertas, para qualquer sinal de perigo. — Estamos bem longe das sentinelas — Bethia assegurou, ao mesmo tempo que admitia para si mesma que, se estivesse no lugar dele, não confiaria nas palavras que acabara de dizer. — Tem certeza absoluta de que seus homens obedecem a todas as suas ordens? — ele perguntou em tom casual. Bastou um olhar para Bethia saber que era a Firmin que Simon se referia. Provavelmente, a pergunta fora feita para provocá-la e, sabendo disso, ela decidiu não cair na armadilha. Dobrando uma das pernas e abraçando o joelho, fitou-o com expressão séria. — Tenho — respondeu. — Vocês seguem algum código de bandidos? — Simon inquiriu com ironia. — Não somo bandidos! Meus homens são trabalhadores honestos, lutando contra a injustiça. — E parte dessa luta envolve capturar viajantes na estrada? Bethia deu-se conta de que ele ainda não havia recuperado o orgulho ferido pela derrota. — Só quando precisamos de dinheiro. Deseja respostas ou uma discussão, milorde? — Simon — ele a corrigiu, irritado. — Desejo respostas. Em primeiro lugar, quero saber por que você roubou a identidade de uma mulher morta. — Roubei? — Bethia repetiu, indignada. — Não roubei nada que já não me pertencesse, incluindo o meu nome. Sou Bethia Burnel, quer você acredite, ou não. Simon sustentou-lhe o olhar frio, dando a ela a impressão de que, na verdade, sabia muito bem quem ela era, e só queria uma confirmação definitiva. Tal possibilidade perturbou-a. Desde o primeiro encontro, dera-se conta de que aquele cavaleiro era forte e muito hábil, mas não imaginara que ele fosse um homem realmente inteligente. Talvez fosse melhor ter mais cuidado naquela conversa. — Quem é seu pai? — Costin Burnel. — O senhor de Ansquith? — Ele era — Bethia respondeu com honestidade, estudando-o com atenção —, mas agora é prisioneiro em sua própria casa. Se é mesmo quem diz ser, então, como lorde de Baddersly, é sua responsabilidade libertá-lo. O último comentário foi feito apenas para alfinetá-lo, pois ela não tinha mais esperanças de receber ajuda daquele homem. — Você tem uma maneira estranha de tratar aqueles a quem precisa pedir ajuda — Simon observou. — Não estou pedindo a sua ajuda. Estou apenas lembrando-o das suas obrigações. E, pela expressão do cavaleiro, ele não gostara nem um pouco de ter sido lembrado. Estaria perturbado por considerá-la impertinente, ou por alguma razão mais grave? Bethia ainda não descartara totalmente a possibilidade de ele ser um aliado de Brice. A presença dele ali poderia ser uma simples tática para conhecer a fundo a localização do acampamento dela, seus planos, seus pontos fortes, suas fraquezas. Bethia estudou-o com atenção, sentindo o coração apertar-se diante da possibilidade de uma traição da parte dele. Seria muito pior do que ter sido traída por Brice. Talvez pior até mesmo que a traição de seu pai, embora Bethia não soubesse explicar por que a simples idéia era tão 37

dolorosa. Disse a si mesma que a dor era resultado do fato de ela admirar aquele cavaleiro. Ele era um guerreiro forte e atraente, além de parecer um homem honrado. Mas… e se não fosse? — O que acha de me explicar como esse tal de Brice mantém seu pai prisioneiro, em sua própria casa? — Simon sugeriu. Bethia hesitou, consciente de que poderia recusar-se a responder. Porém, tal atitude só serviria para prolongar ainda mais a presença dele ali, o que lhe provocou um arrepio. E, afinal, o que poderia haver de errado em contar a ele a verdade? Decidiu satisfazer a curiosidade dele e, ao mesmo tempo, escolher cuidadosamente as palavras. — Sou filha única e meu pai me educou como se eu fosse o filho que ele não teve… até a morte de minha mãe. Então, uma tia veio nos visitar e ficou horrorizada com meu comportamento de menino — falou em tom seco, surpresa pela dor que persistia, tantos anos depois daquela traição. — Por que seu pai não a defendeu, se havia encorajado tal comportamento? — Simon inquiriu, irritado. Bethia fitou-o, espantada pelo fato de um homem aparentemente tão limitado, mostrar-se tão perceptivo. Ao mesmo tempo, a expressão dele manteve-se dura, indicando uma grande impaciência contida. — Ele estava muito abalado pela perda de minha mãe — ela respondeu, dando de ombros. — Achou que essa tia sabia o que era melhor para uma menina. Tal explicação era difícil de formular, uma vez que Bethia também desejara que o pai a houvesse defendido, bem como à falecida esposa, que não só aprovara, mas também ajudara a criar a filha daquela maneira. Gunilda, porém, sabia ser persuasiva e até mesmo razoável, quando lhe era conveniente. E, finalmente, conseguira convencê-lo a separar Bethia de tudo o que ela mais amava. — Por isso — Bethia continuou —, entregou-me aos cuidados dela, na esperança de que eu fosse educada como uma verdadeira dama. Teve de reprimir uma gargalhada, pois, na verdade, fora tratada como pouco mais que uma criada. Vestia roupas femininas, claro, mas de lã grosseira, em vez dos tecidos finos e delicados dos trajes da tia. Sem dúvida, aprendera rapidamente qual era o lugar de uma mulher no mundo, mas não permitira que apagassem de seu espírito a força e a coragem que desenvolvera antes. E nunca deixara de escrever para o pai, na esperança de que ele a libertasse daquela escravidão, da prisão que se opunha à vida livre e saudável que Bethia experimentara na infância. Mesmo assim, não recebera uma resposta sequer. Ninguém fora tirá-la de lá, até tempos bem recentes. — Há alguns meses, fui chamada de volta à minha casa… para me casar — disse, mantendo os olhos fixos no chão, ao lembrar-se de como sua alegria havia se transformado em raiva. Tinha certeza de que Deus perdoaria os sentimentos de ódio que a haviam invadido, quando descobrira que fora levada de volta à sua casa, não por algum sentimento nobre, mas para ser tratada como uma mercadoria. Tendo conhecido a verdade sobre o papel de uma mulher em sua própria casa, enquanto estivera aos cuidados de Gunilda, Bethia não tinha o menor desejo de se submeter ao domínio de homem nenhum, mas voltara ansiosa pela recepção calorosa do pai. Porém, quem a recebera fora Brice Scirvayne. — Quando voltei para casa, descobri que meu pai havia envelhecido — contou com a voz estrangulada pelo nó que se formara em sua garganta. — Não estava somente mais velho, mas também frágil e doente, apesar de ter sido um dos homens mais robustos que já vi. A única conclusão a que pude chegar, foi que a capacidade de julgamento dele ficou prejudicada por sua doença… pois logo descobri que meu 38

pretendente, Brice Scirvayne, é um homem desprezível. — Ele não é jovem e atraente o bastante para agradá-la? — Simon perguntou em tom de acusação. Surpresa, Bethia ergueu os olhos para fitá-lo. Atribuiu a expressão irada no rosto dele ao machismo que o cavaleiro não se preocupava em esconder. Evidentemente, como homem, sentia-se na obrigação de defender seu próprio sexo até a morte. Contrariada, sustentou-lhe o olhar, sem se deixar intimidar. — Ah, sim! Ele é jovem e muito atraente, cheio de sorrisos e palavras bonitas. Ao mesmo tempo, é um mentiroso, um caçador de fortunas… um ladrão! Um brilho estranho passou rapidamente pelos olhos de Simon, mas Bethia preferiu não criar ilusões sobre a possibilidade de ele compreender seus sentimentos. Assim, continuou: — Comecei a investigar e descobri que Brice havia chegado em Ansquith pouco mais de um mês antes. Aparecera nos portões da propriedade, dizendo que seus homens haviam sido atacados por bandidos. — Uma ocorrência comum, por aqui — Simon comentou com ironia. — Pelo que sei, não era comum naquela época — ela o corrigiu, irritada. — Então, você decidiu mudar tudo isso. — Quando, indignada, Bethia fez menção de se levantar, Simon ordenou: — Sente-se e termine a sua história. — Embora ele não parasse de falar das muitas propriedades que possui, ninguém em Ansquith viu qualquer evidência da existência delas. E eu, apesar de ter continuado minha investigação discreta, não encontrei ninguém que o conhecesse, ou sequer tivesse ouvido falar desse homem. Concluí que era tudo mentira, talvez o próprio nome que ele usa. — E o que seu pai fez? — Desde a minha chegada, fui imune à influência de Brice e, à medida que fui descobrindo mais inconsistências nas histórias dele, tentei conversar com meu pai sobre isso. Foi impossível — Bethia contou em tom frustrado. — Brice não nos deixava a sós e, logo, meu pai ficou acamado. Então, os guardas de Brice passaram a vigiar o quarto, impedindo-me de entrar! É evidente que Brice soube conquistar a simpatia de meu pai. Trata-se de um homem velho, que se casou tarde e, depois da morte de minha mãe, passou a viver uma vida muito solitária, especialmente depois da minha partida. Ao menos, foi o que me contaram. Aparentemente, a chegada inesperada de Brice gerou um movimento que a casa não via havia muito tempo. As histórias que ele conta sobre suas viagens e feitos heróicos são uma boa distração e devem ter agradado a um velho que não se divertia havia anos. — Bethia fez uma pausa para fitar Simon nos olhos. — Não se engane. Brice é capaz de sorrir e falar com tamanha simpatia, que só mesmo pessoas vigilantes e desconfiadas prestariam maior atenção a ele. — E você possui as duas características? — Como não desejava me casar, fui mais cuidadosa do que a maioria das mulheres seria, na mesma situação — ela admitiu. — Mas depois de algum tempo, quando ninguém ainda havia posto os olhos na grande riqueza de Brice, ou em seus incontáveis criados, ficou óbvio, até mesmo para os mais ingênuos, que havia algo errado na história dele. Infelizmente, àquela altura, o domínio que ele exercia sobre meu pai, a propriedade e os guardas era firme e inabalável. — Mesmo com relação a você? Ela soltou uma risada amarga. — Especialmente com relação a mim, uma vez que somente alguns dos criados mais velhos lembravam-se bem de mim e nem todos mantiveram-se fiéis. Haviam sido justamente os poucos que haviam permanecidos leais a ela que haviam salvo sua vida e seu destino, mas Bethia não daria tal informação por nada, enquanto não tivesse absoluta certeza de que Simon de Burgh realmente não era aliado 39

de seus inimigos. Ao mesmo tempo que refletia sobre isso, ela se deu conta de que falara livremente, mais do que havia planejado. Perguntou-se como aquele homem taciturno conseguira fazê-la contar tanto sobre si mesma. — E quanto ao casamento? — Simon perguntou em tom rude. — Não aconteceu — Bethia admitiu, arrepiando-se ao lembrar de como chegara perto daquela calamidade. — Quando me recusei a casar com ele, Brice atirou-me no calabouço, mas eu consegui fugir — explicou, omitindo a ajuda que recebera de dois de seus mais fiéis criados. — Então, desapareci na floresta — acrescentou, também sem contar que fora recebida em diversas casas, onde ficara escondida por algum tempo. Mais tarde, haviam lhe contado que Brice, incapaz de acreditar que uma mulher fosse capaz de se cuidar sozinha, fingira-se arrasado quando seus soldados retornaram à propriedade de mãos vazias. Sorriu ao pensar que conseguira enganá-lo, pois essa era a sua única fonte de prazer. — E por que correm boatos de que você morreu? Bethia deu de ombros. — Acho que Brice achou melhor livrar-se de mim, definitivamente, fosse em realidade, ou em ficção, mas a comemoração dele foi um tanto… prematura. — Ele teria mandado matá-la? O tom de Simon era feroz, contendo uma ameaça tão assustadora, que ela teria recuado, caso estivesse de pé. Felizmente, encontrava-se sentada e pôde disfarçar o desconforto que a reação dele lhe causava. — Naturalmente — Bethia respondeu. — Por que acha que ele está contratando mercenários? O dinheiro de meu pai está sendo usado para matar sua única herdeira. — Por que permite que ele faça isso? Por que não voltou para o lugar onde foi criada, ou foi diretamente ao rei, ou mesmo a uma propriedade vizinha, como Baddersly? — Simon argumentou, como se a atitude dela o irritasse profundamente. — Aqueles que me criaram não me ajudariam — Bethia falou com sinceridade, sabendo que eles talvez lhe oferecessem um lar, mas ela preferia a liberdade da floresta à prisão daquela casa. — Tudo o que sempre quiseram de mim foi uma criada que não recebesse pagamento. Quanto ao rei, não me parece preocupado com este fim de mundo. — Assim como mais ninguém, Bethia pensou com amargura. — E como algum vizinho poderia me abrigar, quando estou oficialmente morta? Poucos chegaram a me ver, depois do meu retorno para casa. Alguns nem se lembram de mim, na infância. Como eu provaria a minha identidade? Seria a minha palavra contra a de Brice, e ele conta com uma excelente retaguarda. Depois de anunciar a minha morte, ele assumiu controle total da propriedade. Diz a todos que meu pai está doente, mas o mantém isolado no quarto, de maneira que ninguém da minha confiança pudesse vê-lo. Temo pelo pior, que meu pai esteja morto, ou morrendo. Finalmente, não fui a Baddersly porque não sei nada sobre aquele lugar, exceto que tratamos de nos manter distantes de Harold Peasley. — Peasley está morto — Simon declarou, impaciente. — Baddersly pertence ao meu irmão, agora. — E o que eu sei sobre os de Burgh? Embora soubesse que não deveria provocar aquele homem, Bethia não se conteve. Como poderia confiar nele, quando dependia exclusivamente de seus instintos? — Os de Burgh não se vendem como mercenários, nem se aliam a usurpadores. Na verdade, meu irmão tomou Baddersly de volta por sua esposa, a verdadeira herdeira do castelo. Se houvesse procurado o lorde a quem deve sua lealdade, que é meu irmão, não estaria vivendo como assaltante, na floresta! A acusação feriu-a. — E devo aceitar a sua palavra pela honra dos de Burgh? Desculpe-me, mas acho que não! 40

Como dois animais, fitaram-se ferozes por um longo momento. Ao perceber que Simon cerrava os punhos, Bethia acreditou-o capaz de atacá-la. Que o fizesse, pensou. Trataria de garantir que ele se arrependesse disso. Afinal, derrotara-o mais de uma vez, e poderia vencê-lo de novo. — Nossa honra é conhecida nestas terras, mocinha tola, e não permitirei que a ponha em questão! — Então, prove! Acabe com Brice! Sabendo que acabara de lançar um desafio que um verdadeiro guerreiro não poderia recusar, uma causa que um cavaleiro honrado não poderia ignorar, Bethia prendeu a respiração, sentindo a esperança voltar a crescer. Porém, decepcionou-se mais uma vez, pois Simon limitou-se a proferir um palavrão, em uma negativa clara. — E como poderei fazer isso, se não consigo sequer atravessar os portões da propriedade? É uma guerra o que você quer, Bethia? — ele perguntou com expressão dura. — Se deseja uma batalha, garanto reunir um exército como esta região nunca viu antes. Tal promessa provocou uma onda de entusiasmo que tomou conta de Bethia e ela teve uma visão de si mesma, destruindo o inimigo com a força combinada dos de Burgh. A visão era clara: cavaleiros, arqueiros, soldados a pé, espalhados sobre as montanhas, convergindo para Ansquith. A animação, porém, abandonou-a, afastada pela frustração transmitida pelo homem que a fitava. — E, se Brice não se render, está preparada para permitir que ataquemos a propriedade de seu pai? — ele perguntou. Bethia emitiu um soluço abafado e Simon aproximou-se, erguendo a mão como se fosse tocá-la, apenas para deixá-la cair ao lado do corpo. — Talvez você não tenha noção das conseqüências de uma ação como essa, mas eu tenho. Acha que seria capaz de submeter os habitantes de sua própria casa à fome, de tomar tudo o que encontrar nas redondezas, seja de aldeões ou lavradores, para alimentar o seu exército? Bethia sacudiu a cabeça, envergonhada por não ter considerado a realidade de tal estratégia, quando aquele homem, a quem ela rotulara de inconseqüente e pouco inteligente, pensara em tudo. — E quanto a seu pai? — Simon inquiriu em um sussurro. Ela respirou fundo, afastando de uma vez por todas o sonho de recuperar sua propriedade das mãos do intruso, pois sabia a resposta para tal pergunta. — Brice certamente mataria meu pai e, então, toda a luta teria sido por nada — murmurou. — Exatamente — Simon concordou, sombrio. —Droga! Tem de haver uma maneira… — parou de falar, virando-se de repente e provocando um aperto no coração de Bethia. Agora, era fácil acreditar que ele realmente queria ajudá-la. O temor de permitir que de Burgh se juntasse a ela havia se dissipado. Sem pensar, Bethia segurou-lhe o braço. — Não precisamos de um grande exército para atacá-lo. Temos conseguido atormentá-lo com um pequeno bando, embora nosso contingente venha aumentando a cada dia, pois são muitos os que não suportam mais serem explorados por Brice. Ele aumentou a porcentagem cobrada dos mineiros, passou a cobrar impostos dos aldeões e lavradores, além de expulsar vários deles de suas casas. Simon olhou para a mão delicada em seu braço e Bethia retirou-a depressa. — E o que vocês fazem? Apenas tiram-lhe o sossego, como faria uma mosca insistente! Isso não é lutar! — ele protestou. Dolorosamente consciente de que aquele homem poderia não ser o que ela gostaria que fosse, Bethia escolheu suas palavras: 41

— Roubamos ovelhas, pagamentos e suprimentos. — E esperavam que Brice saísse para atacá-los, mas até aquele momento, o covarde permanecera na segurança confortável de seu novo lar. — Acredito que fazemos uma grande diferença — ela acrescentou. — Deixe que ele traga mercenários, pois eu mesmo os esmagarei! — Simon declarou, furioso. — Mas não tenho estômago para esse banditismo. Embora a voz dele fosse naturalmente rude, o que se tornava mais intenso quando a raiva o assaltava, Bethia sentia-se atraída por aquele tom. Era como o próprio homem que falava daquela maneira: forte, valente e arrogante… e se ela não tivesse cuidado, acabaria permitindo que ele a dominasse. Ora, isso era impensável! Ele poderia estar apenas fingindo, esperando pelo momento certo para revelar os segredos dela e destruir a todos. Mesmo sem um exército, Simon de Burgh era uma grande ameaça. Bethia sentia o perigo que pairava no ar, bem como aquele que vinha de dentro de seu próprio ser. Fechou a mão, ainda sentindo o braço dele sob os dedos. Nunca antes sequer pensara em tocar um homem, mas também não pensara antes de tocá-lo. Então, uma vez que ele se encontrava de costas, deixou que os olhos passeassem pelos ombros largos, o corpo musculoso, as pernas fortes. Qualquer mulher admiraria aquelas formas, a força, o poder, mas ela não era qualquer mulher. Não tinha qualquer desejo por homem algum, especialmente por um que poderia não lutar por seus direitos. — Deve haver um meio de chegar a ele, sem colocar em risco a vida de seu pai — Simon declarou de súbito. — Brice é um covarde, que se esconde atrás dos muros da propriedade. Não me permitiu entrar, mas creio que aceitaria um convite de seu senhor. Bethia tentou impedir que a chama da esperança voltasse a se acender em seu peito, mas um brilho repentino nos olhos de Simon provocou nela uma nova onda de entusiasmo. Quando ele a fitou com um sorriso triunfante nos lábios, ela soube que seria impossível não partilhar de tal triunfo. — Talvez não seja tão difícil atrairmos esse sujeito para uma armadilha.

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CAPITULO VI

Por um momento, Simon pensou que Bethia se atiraria em seus braços, tamanha foi a alegria dela diante de tal sugestão. De maneira estranha, mesmo quando ficou claro que ela não faria nada assim, ele ainda se sentiu… bem. Melhor que bem. Sentiu-se como se fosse o maior cavaleiro que jamais pisara sobre a terra. Maior até mesmo que Dunstan. Sacudindo a cabeça, Simon afastou tal pensamento, pois sabia que convidar Brice para ir a Baddersly não garantiria a cooperação dele, mas certamente, nem mesmo Brice Scirvayne seria capaz de ignorar o lorde da região. Era um começo e tinha de ser mais eficiente do que roubar ovelhas e fazer manobras arriscadas, de pouca importância. Talvez, agora que tinham um plano, Simon conseguisse convencer Bethia a abandonar aquela vida absurda e voltar com ele. — Está com fome? — ela perguntou com um sorriso, despertando-o de seus pensamentos. — Já é tarde. Estou pensando em caçar um coelho, ou qualquer outro animal pequeno. Ao ouvir isso, Simon também sorriu. Perguntou-se se Bethia havia se cansado de sua dieta de frutas e leite roubado de Ansquith. Se era carne o que ela desejava comer, bastaria dizer e ele a atenderia com prazer. Não era necessário fingir que ela mesma caçaria algum animal para o jantar. — Cuidarei disso — declarou. Em vez de se mostrar grata, Bethia cruzou os braços e fitou-o com expressão irritada. — E o que acha que vai conseguir apanhar, se só tem sua espada? — inquiriu. Simon corou e, mais uma vez, amaldiçoou a facilidade com que aquela mulher o fazia sentir-se tolo. E ela estava certa, uma vez que, ao contrário da comitiva habitual, ele fora sozinho até a floresta. Portanto, não contava com cães, nem falcões, ou flechas, pois não havia se preparado para uma caçada. — Empreste-me o seu arco — falou, estendendo a mão para a arma que ela estivera consertando quando haviam se encontrado. — Não — Bethia respondeu com simplicidade, recuando um passo. — Agradeço a oferta, mas caçarei meu próprio jantar, como tenho feito nesses últimos meses, sem ajuda de ninguém, milorde. Simon não saberia dizer o que era mais irritante: a língua afiada de Bethia, ou a maneira como ela usava seu nome somente quando queria. Seria possível que ela acreditasse que Simon ficaria sentado, esperando, enquanto ela fazia o trabalho de um homem? Estreitou os olhos, estudando a postura rebelde que ela assumira. Ora, quem ela pensava que era, para contestá-lo? Alguém teria de colocá-la em seu próprio lugar. Uma idéia lhe ocorreu, provocando-lhe um sorriso. — É ilegal caçar na floresta do rei, a menos que possua licença especial. Ainda nega ser uma ladra? Em vez de empalidecer, ou protestar, como ele havia imaginado, Bethia limitou-se a fitá-lo com ar superior. — Não estamos em terras do rei, mas sim na parte da floresta que pertence aos Burnel. O que significa que os animais daqui pertencem ao meu pai… e a mim. Com isso, ela se afastou e, furioso, Simon sentou-se no tronco que ela acabara de desocupar. Observou-a posicionar o arco nas mãos delicadas e, gradualmente, a raiva dele foi se transformando em divertimento. Embora Bethia parecesse dominar a arma com facilidade, não demonstrava grande competência em seu uso. Recuperando a autoconfiança natural, ele se acomodou para se divertir melhor. — Por favor, providencie o nosso jantar — provocou-a. Ela lhe lançou um olhar de reprovação pela quebra do silêncio, mas não discutiu. 43

Simplesmente, aprumou o arco, menor do que aqueles que Simon costumava usar, mas igualmente bem-feito. Simon não estava preparado para a maneira como o ombro de Bethia moveu-se para trás, os músculos distendendo-se sob a pele clara. Era mesmo uma mulher forte e tal constatação voltou a provocar uma forte onda de calor, que percorreu todo o corpo de Simon. Relutante, ele admitiu para si mesmo o respeito que sentia pela habilidade dela. Porém, ao vê-la embrenhar-se na mata, pôs-se de pé, pois não tinha a menor intenção de permitir que Bethia desaparecesse. Acreditava haver, finalmente, conquistado a confiança dela, mas nada naquela mulher era previsível e, assim, Simon espiou por entre a folhagem, enquanto ela esperava. Talvez Bethia conhecesse os locais onde os animais selvagens faziam seus ninhos, pois concentrou-se totalmente em uma determinada touceira. Ainda assim, não era possível que uma simples mulher fosse capaz de atirar bem de verdade, por mais impressionante que fosse a sua musculatura. Tal pensamento fez Simon virar-se para o outro lado, a fim de observar a paisagem, na tentativa de distrair a atenção do corpo esbelto de Bethia. Aproveitou a oportunidade para verificar se tinham companhia, mas não avistou nada, nem ninguém, exceto pelas criaturas da floresta. Respirou fundo, apreciando o cheiro da terra e das folhas. Com já acontecera antes, a floresta proporcionou-lhe uma agradável sensação de paz. Após alguns instantes, a inquietude voltou a atacá-lo. Paz era algo agradável, somente se viesse em pequenas doses. Simon queria ação. A tarde chegava ao fim e ele lançou um olhar impaciente para a companheira. Bethia continuava concentrada na touceira, tão atenta quanto antes. Embora ele lhe admirasse a paciência, Simon começava a perder a dele. Quando abria a boca para pôr um fim aos esforços inúteis dela, viu-a movimentar o braço e soltar a flecha, em um tiro certeiro. Ficou fascinado pela fluidez dos gestos dela. Bethia era mais graciosa do que uma dançarina que ele vira uma vez. Além disso, sua concentração era tão intensa quanto a de Geoffrey. Então, para completar sua surpresa, Simon descobriu que ela realmente matara um coelho, com uma precisão de pro vocar inveja nos melhores arqueiros. Aparentemente, Bethia jamais deixaria de surpreendê-lo. Embora houvesse ouvido falar sobre mulheres que criavam falcões, jamais soubera de uma que fosse capaz de atirar, lutar e liderar um bando de homens. Diziam que a esposa de Geoffrey manejava armas muito bem, mas só de pensar em Elene Fitzhugh, Simon estremeceu. Quando a vira pela primeira vez, tivera a pior impressão possível. Os cabelos de Elene apresentavam-se desgrenhados, o vestido puído caía frouxo sobre seu corpo, como se fosse um saco de cereais, enquanto ela empunhava sua adaga, ameaçando a todos à sua volta. Embora Geoffrey houvesse conseguido melhorar um pouco as maneiras e a aparência da esposa, Simon continuava a considerá-la uma megera sedenta de sangue. Bethia era tão diferente daquela criatura, quanto o dia era da noite. Apesar de vestir roupas masculinas, apresentava-se sempre muito limpa, os cabelos presos em uma trança impecável. Embora sua língua fosse afiada, ela era capaz de confortar um ferido e, no instante seguinte, gritar ordens, com a mesma eficiência. Era bonita, forte e inteligente, além de habilidosa como nenhuma outra mulher. Sim, a companheira perfeita para um homem… O rumo tomado pelos próprios pensamentos deixou Simon furioso. Afinal, não estava habituado a ver mulheres como qualquer outra coisa, que não seres fracos e incômodos. E Bethia sabia disso. O sorriso petulante que ela exibiu, ao mesmo tempo que empunhava o coelho morto, quase fez Simon arrepender-se da admiração que tinha por ela. O silêncio estendeu-se por um longo momento, até que ele finalmente admitiu, relutante: 44

— Muito bem. — Venha. Vamos comer — ela convidou em tom casual, embora abaixasse a cabeça, como se quisesse esconder um sorriso de triunfo. Como não era tolo, Simon sabia o que Bethia estava sentindo e jamais poderia criticá-la. Ela havia conquistado tal triunfo com sua capacidade e paciência. O respeito que Simon tinha por ela continuava a crescer, assim como um outro sentimento totalmente desconhecido para ele. Tratou de reprimi-lo e seguiu-a, na esperança de que ela não pretendesse partilhar a caça com aquele bando que a seguia. Simon não queria dividir nem o jantar nem a própria Bethia. Ao mesmo tempo que jurou manter o autocontrole na companhia dela, sentiu o sangue ferver pela expectativa de jantar a sós com ela. Então, franziu o cenho, dizendo a si mesmo que estava apenas ansioso pela oportunidade de provar que era superior a ela. Por outro lado, já não sabia se ainda queria provar qualquer coisa. A situação tornara-se confusa, especialmente depois de ter ouvido a versão que ela tinha dos fatos. Se era verdade que Brice mantinha o pai dela prisioneiro em sua própria casa, então, cabia a Simon fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para corrigir aquele erro. Porém, ainda havia a possibilidade de ela estar mentindo. Por mais que as informações que ele colhera até então indicassem no sentido de que ela havia contado a verdade, Simon não era ingênuo a ponto de acredita nela cegamente. Diferentemente de seus irmãos, ele não agia pela fé, mas baseava sua confiança em fatos. A idéia de que Bethia pudesse estar enganando-o era perturbadora. — Para onde estamos indo? — Para um lugar seguro, onde poderemos passar a noite. Sozinhos? Simon não pôde deixar de especular. As palavras de Bethia provocaram sentimentos conflitantes. Ao mesmo tempo que ele foi invadido por uma alegria intensa, também foi tomado de certa desconfiança. Apesar da certeza de que aquela mulher não seria capaz de enganá-lo novamente, algo lhe dizia que ela representava um grande perigo para sua vida. Era como se Bethia despertasse uma parte de seu ser, cuja existência ele ignorava até então. Ora, se um dia ele se deixasse abater por uma mulher, deixaria de ser cavaleiro! Seguiu adiante, convencido de que estava pensando demais. Teria se tornado igual a Geoffrey, que desperdiçava tempo pensando, quando ação era tudo o que precisava? — Poderemos usar estas pedras para fazer uma fogueira — Bethia anunciou, afastando um punhado de folhas secas e revelando um círculo de pedras. Ligeiramente surpreso, Simon deu-se conta de que estava no antigo acampamento, cujos sinais ele reconhecera horas antes. Bethia não confiava nele o bastante para levá-lo ao seu verdadeiro abrigo? Tal possibilidade perturbou-o muito mais do que Simon poderia ter imaginado. Admitiu que não se encontrava em condição de afirmar que acreditava nela, mas logo justificou-se, pensando que a situação era diferente. Bethia tinha obrigação de saber que, sendo um cavaleiro, Simon era um homem de palavra. Naquele momento, deu-se conta de que ela apanhava lenha, como se ele fosse um inútil, ou pior, como se ele não estivesse ali. — O que faremos se você chamar atenção de quem não nos interessa com sua fogueira? — inquiriu. Bethia dirigiu-lhe um olhar maroto, fazendo-o sentir-se ainda mais idiota. — Saberei se alguém entrar na floresta. Simon emitiu um som grosseiro, indicando incredulidade. Seria possível que ela o considerasse tolo a ponto de acreditar que havia homens espalhados por todos os cantos da floresta e que ela seria avisada de todos os movimentos que ocorressem em toda aquela vasta extensão? Teve vontade de rir, mas Bethia limitou-se a dar de ombros, antes de empilhar a lenha e acendê-la, utilizando a pedra que carregava presa à cintura. 45

Quando as chamas se ergueram Simon ficou ali parado, sentindo-se absolutamente supérfluo. — Vou procurar algo mais para comermos — resmungou, antes de dirigir-se até onde avistara alguns cogumelos tenros. Apanhou-os rapidamente e, então, examinou os arredores, até encontrar algumas mudas de alho-poró. Quando retornou e estendeu as iguarias para Bethia, ela ergueu os olhos, surpresa. — Sabe cozinhar? — perguntou, incrédula. Simon estreitou os olhos, sem saber se ela o estava provocando. — O suficiente para não morrer de fome — respondeu, ajoelhando-se ao lado de Bethia e preparando um espeto para assar a comida. — Estou impressionada, milorde, pois nunca imaginei que possuísse dotes culinários. — Está zombando de mim? — ele inquiriu, sentindo a paciência esgotar-se. — Não. Estou apenas admirando as suas habilidades, Simon. A maioria dos homens não seria capaz de preparar uma refeição assim. — Meu pai fez questão de ensinar a todos nós o que era necessário para não dependermos de ninguém. — Sei… Os grandiosos de Burgh não contam com um número razoável de criados para servi-los? — Passei muito tempo na estrada. — Um guerreiro — Bethia concluiu em tom de aprovação. — Sim. — Assim que colocou a comida sobre o fogo, Simon sentou-se no tronco que Bethia ocupava, mantendo uma certa distância entre eles. — Seus homens não ficarão preocupados com o seu paradeiro? — Verão a fumaça e marcarão o ponto onde me encontro — ela replicou, aparentemente tranquila. Simon, porém, não se sentia tão à vontade, pois outras pessoas poderiam ver a fumaça, também. Afinal, os bandidos que ela liderava não eram os únicos assaltantes da região e qualquer idiota perceberia que Bethia era uma mulher. — Tem o hábito de sair sozinha? — perguntou, furioso com o descuido dela. Ela deu de ombros, irritando-o ainda mais. Ora, Bethia não deveria ficar sozinha na floresta! Nunca! Aliás, ela não deveria estar ali, pois seu bando não passava de um punhado de ladrões e vagabundos. Simon já vira com os próprios olhos que alguns não obedeciam as ordens da líder como deveriam. O que aconteceria se um deles metesse na cabeça a idéia absurda de tê-la para si? Quem o impediria? Era verdade que Simon passara a admirar a força de Bethia, bem como sua destreza com as armas, mas contra um homem determinado, até mesmo a mais capacitada das mulheres… — Conte-me sobre os anos que passou na estrada — ela pediu. Arrancado de seus pensamentos sombrios, Simon abriu a boca para dizer a Bethia exatamente o que pensava de seu comportamento inconseqüente, mas, sem saber como, pôs-se a contar sobre sua viagem para o sul, quando haviam encontrado Marion, herdeira de Baddersly, sofrendo de amnésia, depois de ter tido sua comitiva dizimada. Então, passara à história de como ele e os irmãos haviam libertado Dunstan de seu próprio castelo, Wessex, e destruído o exército de Fitzhugh. Fazendo pequenas pausas, apenas para cuidar da comida, Simon começou a falar livremente, como se estivesse conversando com um dos irmãos, pois Bethia não o interrompia constantemente, nem queixava-se de detalhes que não a agradavam. Como a maioria das mulheres faria. As poucas perguntas que ela fazia eram as mesmas que um cavaleiro formularia. "Mas como calculou o tamanho do exército dele? O que é mais importante considerar: soldados montados ou a pé? Que tipos de armas eles usavam?" E Simon respondia com prazer, pois já fazia tempo que não conversava naquele nível. 46

Ao contrário de seu irmão, Robin, muito expansivo, Simon não tinha muitos amigos, pois não os considerava importantes, ou úteis. Geralmente, vivia quase isolado, especialmente na estrada, pois acreditava ser melhor manter certa distância de seus homens. Mesmo antes de Dunstan ter sido traído por um velho amigo, Simon já desconfiava de amizades nascidas em campos de batalha. Bethia, porém, era diferente. Assim como os irmãos de Simon, não devia obediência a ele. E a desconfiança que se interpunha entre eles parecia ter se dissipado na seqüência dos acontecimentos daquela noite. Diversas vezes, Simon inclinara-se para bem perto, enquanto ela ouvia com atenção as explicações que ele dava, com o auxílio de desenhos que fazia com galhos secos na terra. E ela compreendia. Por mais detalhada que fosse a discussão sobre armas e táticas, Bethia acompanhava-lhe o raciocínio até o fim. Era tão inteligente que fez Simon lembrar-se de Geoffrey, e foi somente quando ele parou de falar e olhou para ela, que lembrou-se de que não estava junto de um dos irmãos. Na verdade, nem sequer conversava com um homem. Tal pensamento ocorreu quando a comida já estava pronta e Simon observou-a apanhar um pedaço de coelho assado, os seios pressionando o tecido da túnica. Ela não os disfarçava, Simon concluiu, sentindo a garganta subitamente seca. Perturbado, agarrou um pedaço de carne e, claro, queimou os dedos. Ao murmurar um palavrão, ouviu a risada suave de Bethia. — É isso o que ganha por ser guloso! — ela comentou. Simon perguntou-se se ela fazia idéia de como seu sorriso era sedutor, à luz da fogueira. A primeira vista, não era difícil confundi-la com um homem, mas perto como estavam, seria impossível cometer o mesmo erro. Não só seus traços eram de uma delicadeza ímpar, mas também, ela comia com uma graça e elegância que um homem jamais teria. Prendendo a respiração, observou-lhe os dedos a segurar a comida diante dos lábios carnudos. Quando, ao engolir o bocado, ela os lambeu, Simon foi tomado por uma forte onda de excitação, e teve de lutar com todas as forças para recuperar o controle sobre seu corpo traidor. Disse a si mesmo que não estava habituado a se ver sozinho com uma mulher. Seu corpo estava apenas reagindo a tal situação, incapaz de reconhecer a diferença entre uma companheira paga e uma assaltante da floresta. Sua mente, porém, estava perfeitamente capacitada a estabelecer tal diferença e ele não permitiria que os instintos o dominassem. Por mais tentadora que ela fosse, com sua pele dourada pelo sol, Simon não desrespeitaria as regras que ele mesmo impusera com relação às mulheres. Lançou-lhe um olhar furioso, culpando-a por provocar aquela atração indesejada. Pior ainda era o fato de ele saber que, mesmo que fosse irresponsável a ponto de abandonar seu código pessoal sobre relacionamentos com mulheres, Bethia não aceitaria de bom grado os seus avanços. Ela havia deixado isso bem claro enquanto lutavam no chão, quando Simon descobrira a existência dos músculos dela… Irritado consigo mesmo, Simon teve de se esforçar, mais uma vez, para desviar o rumo de seus pensamentos. E tratou de se concentrar no silêncio que os cercava. Olhou em volta, à procura de sinais de que estavam sendo vigiados. Embora não encontrasse nenhum, continuou a se sentir pouco à vontade. Afinal, aquele era território de Bethia, não dele. Ao mesmo tempo que se sentia confiante de que não tinha o que temer, Simon sabia que poderia acabar cercado por arqueiros novamente. E foi tal conhecimento que o fez tomar uma decisão no que dizia respeito a Bethia. Acima de tudo, Simon detestava ver-se despido de sua dignidade, o que aquela mulher já fizera uma vez. E ele se recusava a receber uma flecha nas costas, enquanto estivesse em posição comprometedora, fosse com ela, ou com qualquer outra. Contrariado, Simon ignorou seus instintos e, para sua própria surpresa, conseguiu relaxar. A carne e os cogumelos estavam muito saborosos e ele apreciou a refeição 47

simples. Enquanto comiam em silêncio, Simon descobriu-se estranhamente satisfeito. Não foi pela primeira vez que notou a paz da floresta, o ar fresco e rico em aromas da natureza. Estava acostumado ao som metálico das espadas, ou ao barulho cotidiano de Campion, sempre muito movimentado. Ali, porém, os únicos ruídos eram o estalar do fogo e os movimentos sorrateiros de pequenas criaturas. Nunca passara muito tempo na floresta próxima à sua casa, mas agora, perguntava-se se todas eram assim, ou se a floresta Burnel era diferente. Especial… como sua companheira. Sem se dar conta do que fazia, Simon virou-se para fitá-la e amaldiçoou tal impulso, pois Bethia lambia os dedos novamente, o que voltou a excitá-lo, enchendo-lhe a mente de imagens dela lambendo os seus dedos e… outras partes de seu corpo. Ah, como Stephen riria do irmão! Todos eles sabiam que Simon desfrutava de seus prazeres de maneira rápida e… básica, desprezando as satisfações mais exóticas das quais o irmão vivia a se vangloriar. Agora, porém, Simon sentia uma incrível atração pelo desconhecido, pelo que nunca experimentara antes. Com um gesto abrupto, atirou longe um osso e levantou-se, encaminhando-se para as árvores e fixando os olhos na escuridão. De repente, a floresta passou a lhe parecer perigosa, um lugar onde residiam atrações sombrias e paixões incontroláveis. — Amanhã, iremos a Baddersly — resmungou. Lá, na familiaridade relativa do castelo de seu irmão, ele se veria livre daquelas tentações que o atormentavam. Lá, forçaria Brice a contar-lhe sua versão e, de uma vez por todas, descobriria se aquela mulher lhe dizia a verdade. E, então, saberia… — Não. O som foi tão suave que Simon quase não ouviu. — O que disse? — perguntou, voltando a encará-la, ao mesmo tempo que se recusava a acreditar nos próprios ouvidos. Bethia havia se acomodado na grama, aparentando desfrutar do mesmo conforto que outra mulher encontraria na mais macia das camas. Os lábios dela curvaram-se em um sorriso. — Sei que não está acostumado a ouvir essa palavra, mas não, não irei com você. Meu lugar é aqui. O lugar dela era ao lado dele! Simon quase gritou tal protesto, embora não fosse sequer capaz de compreendê-lo. — Se a situação é mesmo como você me explicou, imagino que deseje retornar a Ansquith, no papel de herdeira — argumentou. — Sim, mas só depois que Brice estiver longe de lá. Simon abriu a boca para discutir, mas voltou a fechá-la. Sabia que não era tão inteligente quanto Geoffrey, que era sua destreza com a espada, bem como seus conhecimentos de táticas de guerra que o tornavam superior. Ainda assim, surpreendeuse ao perceber quanto era difícil compreender o que Bethia estava dizendo. Quando finalmente entendeu, fitou-a, incrédulo. Bethia não confiava nele! Simon não se lembrava de ninguém que houvesse duvidado dele antes. Era, afinal, um de Burgh, e sua honra jamais poderia ser questionada. Sentiu uma pontada de frustração. Como conquistar a confiança de Bethia? Tudo o que possuía era a sua palavra, que jamais fora colocada em dúvida. E jamais alguém recusara uma intimação sua. Em Campion, a palavra de Simon era lei. Por isso, foi com fúria que reagiu à negativa de Bethia, bem como à sua falta de lealdade. — Irá comigo porque, como seu senhor, ordeno que vá! — vociferou. — Não é o meu senhor. É meu pai quem deve lealdade ao seu irmão. Foi a calma com que ela replicou que deixou Simon cego de raiva. — Se não for por bem, juro atirá-la sobre o ombro e carregá-la até lá! — bradou, 48

mas, então, respirou fundo e tentou argumentar: — A vida que está levando aqui é perigosa. Venha comigo. Estará segura e bem acompanhada. — E devo aceitar sua palavra como única garantia? Sinto muito, milorde. Veio até aqui sem que eu o convidasse e, mesmo assim, como qualquer outro homem, quer ter domínio sobre mim, meu povo e minha floresta — Bethia declarou em voz baixa e controlada. — Pois pode pegar a sua autoridade e desaparecer daqui! Simon fitou-a, chocado. — Do que está falando? Estou me oferecendo para ajudá-la, mulher! — Não preciso da sua ajuda! — Ora, você implorou que eu a ajudasse, há poucas horas! Ou já se esqueceu de ter manifestado o desejo de que eu destruísse o seu noivo? — Ele não é meu noivo! — Bethia retrucou. — E eu jamais imploraria qualquer coisa a você, seu arrogante! Erguendo as mãos para o céu, Simon praguejou baixinho. Teria mesmo acreditado que aquela mulher era diferente? Ora, ela era tão insensata e irritante quanto qualquer outra! Aliás, era muito pior! Deu-lhe as costas, na tentativa de acalmar o próprio ânimo, antes que ela o incitasse à violência. A noite já caíra por completo e, portanto, seria impossível viajar àquela hora. Em vez de continuar a fazer barulho e arriscar chamar a atenção dos homens dela ou de quaisquer outros que se encontrassem nas redondezas, o melhor seria abandonar a discussão… por enquanto. No dia seguinte, teriam tempo de sobra para continuá-la. E caso Simon se deparasse com uma resistência muito grande da parte dela, simplesmente teria de arrastá-la pelos cabelos. Quando estivesse em Baddersly, Bethia aprenderia como se comportar. E, também, aprenderia a confiar nele. — Se não for comigo, como farei contato com você? — perguntou, mudando o rumo da conversa. — Não posso fazer excursões pela floresta, à sua procura, toda vez que precisar lhe dar um recado. Irritou-se ainda mais diante da hesitação dela. Teve vontade de segurá-la pelos ombros e sacudi-la, a fim de colocar um pouco de bom senso naquela linda cabeça. — Deixe seu recado na vila. Receberei em seguida — Bethia finalmente murmurou. Simon estreitou os olhos. Estaria ela insinuando que todos os moradores da vila prestavam-lhe lealdade? Ora, ele era mesmo um tolo por esperar a verdade de uma ladra mentirosa, vestindo roupas de homem! Se Bethia pretendia continuar recitando mentiras, então, não havia o menor sentido em continuar conversando. Assim, sem mais palavras, Simon foi até um canto da clareira e deitou-se. Mantendo uma das mãos sobre o cabo da espada, apoiou a cabeça no braço livre. Como a noite estava quente, não seriam necessárias cobertas, além das roupas que usava. A armadura e a raiva que o queimava por dentro o manteriam aquecido. Ouviu Bethia acomodar-se perto dali, mas estava irritado demais para admirar-lhe a facilidade com que se adaptava a qualquer situação. Jurou que, pela manhã, poria um fim às suas negociações com aquela mulher. Então, faria com que ela se comportasse de maneira apropriada, de um modo ou de outro. Quando fechou os olhos para dormir, Simon deu-se conta de que voltara a exercer controle sobre o próprio corpo. Sentiu-se aliviado por não ser mais perturbado por desejos inoportunos. Na verdade, tudo o que queria fazer com Bethia, naquele momento, era estrangulá-la. Tal idéia trouxe um sorriso aos seus lábios. A batalha fora travada.

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CAPITULO VII

Simon acordou ao amanhecer, sentindo a garoa fina sobre a pele. Abriu os olhos e, ao descobrir que o fogo havia se apagado, sentou-se. Com uma das mãos, secou a umidade do rosto, enquanto a outra pousava no cabo da espada. Porém, a cautela era desnecessária, uma vez que nada se movia entre as árvores. Emitiu um suspiro satisfeito, sentindo a expectativa aquecê-lo. Em breve, poria um pouco de bom senso na cabeça de sua companheira, trataria de levá-la para Baddersly e então… Os pensamentos agradáveis foram interrompidos pela constatação de que não havia qualquer sinal de vida na clareira. Levantando-se de um pulo, seus olhos varreram as imediações, enquanto todo o seu ser tentava negar a realidade óbvia. Bethia não estava lá! Ao mesmo tempo que dizia a si mesmo que ela poderia, simplesmente, ter se afastado para satisfazer suas necessidades fisiológicas, os instintos insistiam em destruir tal esperança. Bethia se fora e Simon teve o ímpeto de gritar sua frustração. Mal podia acreditar que ela conseguira, pela segunda vez, enganá-lo e fugir. Teria criado asas, durante a noite, e saído voando pela floresta? Erguendo os punhos cerrados no ar, Simon praguejou repetidas vezes, amaldiçoando sua aparente incompetência. Deveria ter ignorado os desejos e argumentos de Bethia e amarrado suas mãos e pés. Afinal, ela não passava de uma assaltante de estrada. Era verdade que ela lhe contara uma história convincente sobre uma grande injustiça, mas, ainda assim, Simon não poderia ter permitido que as palavras dela amolecessem seu coração. Definitivamente, deveria tê-la levado à força, como a bandida que era, à corte onde ele governava. Mais uma vez, sentiu-se o maior dos tolos e pensou em como os irmãos ririam dele, ao saberem que fora ludibriado por uma reles mulher. Diferentemente de todos eles, nunca se deixara enganar por um rosto bonito. Aliás, nem sequer compreendia tamanho absurdo. Mesmo assim, permitira que aquela mulher o envolvesse em uma história sobre precisar de sua ajuda, só para desaparecer na madrugada. Provavelmente, Bethia Burnel estava morta e aquela oportunista tomara seu lugar. A outra possibilidade, de que Bethia era exatamente quem dizia ser e que fugira por não confiar nele, era algo que Simon simplesmente se recusava a considerar. Todos confiavam nele. Era um de Burgh e seu nome falava por si mesmo. Além disso, a mulher que o provocara e enganara não seria tão covarde. Não, ela estava brincando com ele, o que o enfurecia. Nunca antes Simon sentirase tão contrariado… pelo desaparecimento dela, por seu aparente talento para levar a melhor sobre ele todas as vezes em que se encontravam e, pior que tudo, pela maneira como ela conseguira virar sua vida de guerreiro de cabeça para baixo, envolvendo-o em um turbilhão de paixões incontroláveis e frustrações. No entanto, apesar de tudo, Simon jamais possuíra consciência tão profunda de si mesmo, nem se sentira tão vivo, mesmo em seus melhores dias, em Campion. Na verdade, era como se estivesse diante de um grande conflito, repleto de desafios que testavam sua habilidade, inteligência e resistência, aos limites, mas do qual ele sairia vencedor. Tal pensamento o fez sorrir. Bethia vencera aquela pequena disputa, mas não venceria a guerra. E o produto da conquista seria todo dele. A medida em que a tensão foi se dissipando, Simon eliminou cuidadosamente todas as evidências de sua presença ali. Bethia fizera o mesmo, pois ele não encontrou sequer um fio de cabelo que servisse como lembrança da noite que haviam passado juntos, no acampamento improvisado. Ignorando a decepção perturbadora, concentrou-se na decisão sobre o que fazer a seguir. 50

Naturalmente, uma opção seria encontrá-la novamente, mas seus instintos o advertiam sobre não perder mais tempo na floresta. Não tinha dúvida de que ela ordenara a seus homens que o vigiassem e, desta vez, Simon não contava com o elemento surpresa a seu favor. Decidiu que, antes de voltar a falar com Bethia, conversaria com Brice e descobriria a verdade sobre o que se passava em Ansquith. E se as respostas que tivesse não confirmassem a história de Bethia, Simon enviaria um exército à floresta e acabaria com aqueles bandidos de uma vez por todas. Sorriu, satisfeito por saber onde encontrá-la, uma vez que ela estava presa ao abrigo das árvores. E, quando chegasse o momento do confronto, Bethia não teria como se esconder, pois Simon a encontraria, mesmo que tivesse de derrubar cada centímetro de floresta. Ao se aproximar da mina abandonada, Bethia mal respondeu aos cumprimentos de seus homens. Parecendo intimidado pelo estado de ânimo da líder, John apressou-se em recuar para dar passagem a ela, mas Firmin colocou-se em seu caminho, fazendo exclamações em voz alta sobre as roupas molhadas de Bethia. Ela se limitou a dispensálo com um aceno de mão, perturbada demais para confrontar o arqueiro rebelde. Embora houvesse deixado Simon de Burgh uma hora antes do amanhecer, sua mente ainda se concentrava no patife arrogante. Como ele se atrevia? Repetira a si mesma a pergunta, diversas vezes, ao longo do caminho de volta à mina, mas não conseguira encontrar uma resposta satisfatória. Como ele se atrevia a invadir a floresta e tentar assumir o controle da vida dela? Ora, aquele era um comportamento típico dos homens! Apesar de conhecê-la havia pouquíssimo tempo, de Burgh julgava-se no direito de dizer a ela o que fazer, onde ir, como se comportar. Que a arrogância dele fosse para o inferno! Bethia e seus seguidores vinham atingindo seus objetivos, sem a interferência de Simon e assim continuaria a acontecer. Mesmo que ele estivesse disposto a ajudá-la a destruir Brice, o preço por tal ajuda seria alto demais. Bethia passara muitos anos sob o comando de um homem, ou de outro, e decidira nunca mais submeter-se a ordens de terceiros. Não tinha a menor intenção de ceder aos desejos de um cavaleiro mal-humorado, incapaz de pronunciar uma frase sequer, sem incluir nela uma ordem. Passando por Firmin, que não escondia sua indignação, Bethia continuou a remoer sua revolta contra o cavaleiro petulante. Quando falava, Simon de Burgh esperava que o mundo todo ouvisse… e obedecesse! Ora, Bethia não seria manipulada com tamanha facilidade. Tinha personalidade. Por acaso, ele havia pensado em perguntar a ela quais eram os seus desejos ou opiniões? Não. Estava ocupado demais consigo mesmo. E ela deveria, simplesmente, curvar-se a atendê-lo? Bethia teria reagido com uma gargalhada, caso a situação não fosse tão séria. Afinal, o conflito de interesses entre eles era apenas uma parte do problema. Admitiu que, mesmo que Simon de Burgh houvesse se ajoelhado a seus pés, ela não o teria acompanhado. Embora a imagem fosse tentadora, ela sacudiu a cabeça. Por mais que ele insistisse na afirmação da própria honestidade, Bethia não acreditaria tão prontamente em um estranho, fosse qual fosse o seu nome. Também admitiu que se sentia tentada a acreditar. A autoridade com que ele falava a impressionava, a despeito de seus esforços em contrário. E ela sempre quisera acreditar na honra e na bondade daqueles que empunhavam uma espada. Porém, seu desejo era uma coisa, enquanto a realidade era outra, completamente diferente. Bethia abandonara aqueles sonhos havia muito tempo, bem como a esperança de que alguém tomaria sua defesa. Aprendera a confiar somente em si mesma. Seu humor já era o pior quando ela alcançou a entrada da mina, onde um arqueiro adiantou-se e disse: 51

— Vimos sua fogueira, mas como não nos enviou qualquer sinal, mantivemos distância. — Obrigada — Bethia agradeceu, ignorando o misto de embaraço e gratidão pela privacidade que tivera durante a noite. Apesar da certeza de que estivera apenas cumprindo o seu dever ao conversar com Simon de Burgh, tinha de admitir que gostara muito da noite que tivera, desde as histórias que ele lhe contara sobre batalhas e glórias, a surpresa que ele havia demonstrado diante das habilidades dela na caça, até o simples fato de estar na companhia dele. — O que está acontecendo? — Firmin inquiriu, postando-se diante dela. — Onde você esteve ontem à noite? Este idiota não me disse nada! Bethia estudou a postura irada e beligerante de Firmin e forçou-se a manter a compostura. Seu primeiro impulso foi de dizer a ele que onde ela passava a noite não era da conta de ninguém. No entanto, os últimos meses passados na liderança de um grupo de homens haviam fortalecido a sua paciência. Assim, ela respirou fundo e respondeu com voz controlada: — Fui me encontrar com alguém que pode nos ajudar. Firmin franziu o cenho. — Já temos aliados de sobra na vila e nos campos — declarou. — Quem é essa pessoa, capaz de tirá-la do acampamento, à noite? Muitos dos que se encontravam por perto conheciam a verdade e, por isso, Bethia não poderia mentir. — Estive com Simon de Burgh — informou de cabeça erguida, recusando-se a se deixar intimidar por outro homem mal-humorado. — Simon de Burgh! John, como permitiu isso? — Firmin vociferou. Bethia sentiu o próprio controle por um fio. — John não é responsável pelos meus atos, nem é meu pai. Também não é o líder deste bando. Por que ele teria algo a dizer sobre o meu paradeiro? — Embora falasse com voz suave, manteve-a firme, de maneira que os outros recuaram. — Ele deveria ter me avisado! Deveria ter garantido a sua segurança! — Firmin insistiu. — Creio que sou capaz de me cuidar sozinha. Venho fazendo isso há muito tempo. Ao mesmo tempo que pareceu concordar com tal afirmação, o arqueiro continuou a fitá-la com olhar de acusação. — Também cuidou de Simon de Burgh? Foi por isso que passou a noite sozinha com ele? Bethia precisou de todo o seu autocontrole para não esbofeteá-lo. Não obedecia as regras que mantinham as outras mulheres em seus lugares e, embora não visse sentido nelas, sabia que era difícil para a maioria dos homens ignorá-las. — Está insinuando algo? — inquiriu, antes de virar-se para os demais, todos com os olhos fixos no chão, aparentemente muito embaraçados. — Durmo com vocês e ninguém diz nada. Por que está transformando este acontecimento em tamanho escândalo? — Porque ele é nosso inimigo! — Firmin declarou. — Isso ainda não foi comprovado. Enquanto esperamos pela verdade, farei o que for preciso para saber mais sobre Simon de Burgh e seus planos. Bethia sustentou-lhe o olhar, desafiando-o a dizer mais alguma coisa. Por um longo momento, Firmin pareceu prestes a continuar a discussão. O que ele pensava, afinal? Que ela era uma prostituta, para se deitar com Simon de Burgh? Mais um pensamento típico dos homens! Eles pareciam acreditar que o mundo girava em torno de suas partes íntimas! Bethia esforçara-se muito, durante um longo tempo, para superar os preconceitos existentes contra sua condição de mulher, para então liderar o bando. Não permitiria que 52

uma questão sobre onde ela havia dormido destruísse o respeito que havia conquistado. Ao mesmo tempo, não podia deixar de acreditar que não era da conta de ninguém se ela havia dormido com Simon. A simples idéia provocou-lhe uma onda de calor, mas ela tratou de ignorar a sensação indesejada. Lorde de Burgh já era arrogante demais e Bethia não pretendia torná-lo ainda mais convencido com sua admiração feminina. Assim como não tinha intenção de revelar seus pensamentos aos homens que a seguiam. Para eles, sua imagem deveria continuar sendo a de uma mulher forte e intocada por desejos mundanos. Por isso, continuou a fitar Firmin nos olhos, esperando que ele dissesse alguma coisa contra a sua reputação. O que ele não fez. Murmurando alguns palavrões, o arqueiro girou nos calcanhares e afastou-se. E Bethia tinha problemas muito mais urgentes do que mais um homem arrogante. Apoiando as mãos na cintura, olhou em volta, para o acampamento que teria de ser mudado mais uma vez. Por causa de Simon de Burgh. Independentemente de seus sentimentos por ele, Bethia continuava determinada a não confiar no súbito interesse de Simon por ela. Ele já os forçara a abandonar um acampamento e, agora, encontrara a mina sem maiores esforços. Ele se movimentava pela floresta como um animal bem treinado, evitando com precisão os homens que Bethia mantinha como sentinelas. Bem, uma coisa ninguém poderia negar: Simon de Burgh era um cavaleiro formidável. Fosse confiável ou não, Bethia não gostava da idéia de tê-lo rondando seu esconderijo. E não pretendia esperar que ele voltasse a encontrá-la. — John, reúna os homens — ordenou. Chegara o momento de tomar uma atitude drástica. Quando retornou a Baddersly, Simon retribuiu cada olhar curioso com uma carranca, que fazia seus observadores afastarem-se rapidamente. Sabia que a notícia sobre sua viagem desacompanhado já percorrera todo o castelo, mas não estava habituado a ser objeto de especulações. Em Campion, Stephen era o alvo das fofocas. Suas escapadas eram lendárias, assim como os feitos divertidos de Robin. Se falavam de Simon, o que era raro, os comentários expressavam admiração por sua habilidade nas batalhas, como deveria ser. Com certeza, ninguém jamais discutira suas idas e vindas e, agora, ele descobria que isso não o agradava. Pela primeira vez em sua vida, perguntou-se se realmente desejava conquistar a notoriedade que Dunstan obtivera com suas realizações. Simon sempre sonhara em ter tudo o que o irmão mais velho conseguira. Não só o sucesso como cavaleiro, mas também uma propriedade só sua. Agora, porém, um castelo do tamanho de Wessex, ou Baddersly, parecia-lhe grande demais, contendo excesso de gente e, principalmente, de línguas maldosas invadindo a sua privacidade. Embora um dia houvesse desdenhado a mansão de Geoífrey, agora começava a perceber as vantagens de possuir uma pequena propriedade, onde um número reduzido de residentes comentaria sua vida. Pensou em decretar uma proibição formal de fofocas. Só não o fez por saber que os irmãos nunca mais lhe dariam paz e zombariam de tal atitude pelo resto de suas vidas. Assim, preferiu ignorar os rumores, pois não era da conta de ninguém onde ele passava seus dias… ou suas noites. De repente, Simon pensou na noite passada na floresta, onde a refeição simples e a conversa amena haviam lhe parecido muito mais agradáveis do que o luxo e as grandes dimensões do castelo. Irritado pelo rumo dos próprios pensamentos, Simon disse a si mesmo que aquele estilo de vida não era nada prático, mas sim uma existência para tolos que congelariam, assim que o inverno chegasse. Então, ficou petrificado diante dessa última idéia. Para onde Bethia iria, quando o frio tomasse conta da região? Mesmo então, ela continuaria a recusar a oferta hospitaleira de Simon? Imaginou-a nos braços de algum arqueiro 53

magricela e rosnou baixinho, contrariado tanto pela imagem, quanto por sua mente que parecia ter adquirido vontade própria e a determinação de não deixá-lo em paz. Antes mesmo de chegar a Baddersly, Simon decidira que, em vez de lutar contra aquelas inclinações inexplicáveis, passaria a encará-las de frente. E concluiu que a melhor maneira de banir Bethia de seus pensamentos seria descobrir a verdade sobre a identidade dela. Com tal idéia em mente, ignorou os sussurros curiosos enquanto atravessava o grande salão, encaminhando-se diretamente para o solar. Lá, mandou chamar o administrador. Simon contratara Florian durante sua última visita a Baddersly, pois o homem fora recomendado por um amigo de Campion e provara ser um administrador leal e capaz. No entanto, Simon considerava a tendência de Florian a falar demais extremamente irritante e, por isso, cuidara de evitar conversar com ele o máximo possível, desde sua chegada. Agora, porém, precisava valer-se do administrador. — Milorde! Já está de volta! — Florian começou, parecendo disposto a discutir indefinidamente a ausência de Simon. O cavaleiro, por sua vez, estava igualmente determinado a não permitir que isso acontecesse. — Quero enviar um convite. Não, uma convocação — anunciou, assim que Florian atravessou o solar. — Redija da melhor maneira, mas deixe claro que o homem está recebendo uma ordem para se apresentar ao seu senhor. — E quem o senhor deseja convocar ao castelo, milorde? — Brice Scirvayne é o nome do homem que está vivendo em Ansquith. Florian hesitou, como se não pudesse decidir sobre a pertinência de um comentário. Como isso fosse tão incomum, Simon irritou-se. — O que foi? — inquiriu. — Não tenho a intenção de desrespeitá-lo, milorde, nem jamais questionaria suas ordens. No entanto, pelo que sei, esse homem não jurou lealdade a Baddersly — disse o administrador. — Sei disso, mas ele diz estar governando Ansquith em nome de seu proprietário, sir Burnel. Apresenta-se como chefe da casa e da propriedade. Portanto, deve assumir as lealdades de Burnel também. Ou estar preparado para enfrentar uma guerra, Simon pensou. Mesmo que o sujeito provasse ser o mais honesto dos homens, havia ofendido profundamente a honra dos de Burgh ao impedir que Simon entrasse em Ansquith. E por isso, ao menos, Brice pagaria caro. — Pensei que ele fosse um mero visitante de Ansquith — Florian comentou. — Se for, então, tomou liberdades que hóspede nenhum teria o direito de tomar. Sendo vassalo de meu irmão, sir Burnel está sob minha proteção. Se estiver sendo ameaçado por Brice, devo tomar providências. — Simon fez uma pausa, tentando decidir até onde poderia confiar em Florian. — Também parece haver um problema envolvendo a filha de sir Burnel. Tenho motivos para acreditar que ela ainda está viva, contra os planos de Brice. Florian não se esforçou para esconder a surpresa. — Ouvi poucas coisas sobre esse tal de Brice e a maior parte delas não é nada positiva, mas ele seria capaz de manter sir Burnel prisioneiro em sua própria casa e, ainda, declarar sua filha como morta? — Falei com ela pessoalmente — Simon declarou, deixando claro o seu desagrado pelas dúvidas levantadas pelo administrador. — É claro que existe a possibilidade de essa mulher estar mentindo. E é justamente o que estou tentando apurar: a verdade. Estreitou os olhos, desafiando Florian a questioná-lo novamente, mas o outro limitou-se a estudá-lo disfarçadamente. Simon teria rido da estratégia, se não começasse 54

a sentir-se um tanto incomodado com tudo aquilo. Ao que parecia, o administrador estava enxergando muito mais do que deveria. Irritado consigo mesmo, virou-se para a janela. — E se a verdade não for do seu agrado, milorde? — Florian perguntou. — Do que está falando? — Bem… — Florian hesitou, escolhendo cuidadosamente as palavras. — E se o pai dela não estiver correndo perigo? Ouvi dizer que ela estava noiva de Brice. Talvez o pai tenha lhe ordenado que se casasse, mas ela o desobedeceu. Não seria a primeira moça a não aprovar a escolha feita pelo pai para seu marido. Por um longo momento, Simon fitou Florian, boquiaberto. Embora houvesse pensado em Bethia quase o tempo todo, desde que a conhecera, não lhe ocorrera a possibilidade de ela ser, simplesmente, uma filha descontente que fugira de casa. — E mandariam matá-la por isso? — Não, milorde! — Florian respondeu, horrorizado. — Mas, também, não seria a primeira a se passar por morta. Se a devolver à família, vai obrigá-la a casar-se, milorde? Bethia, casada? Simon teria soltado uma gargalhada, não fosse pela pontada dolorosa que lhe atravessou o peito. Fosse qual fosse a verdade, ela não se casaria com ninguém. Além de não fazer o tipo, ela parecia ser a mulher menos indicada ao papel de esposa. Bethia era parecida demais com os homens para agradar a um deles. Diferente das criaturas delicadas e queixosas que conhecia, ela era forte e corajosa. Provavelmente, não aceitaria viver em uma instituição como o casamento, que a relegaria às tarefas domésticas. Simon lembrou-se da imagem dela empunhando o arco e imaginou-a fazendo o mesmo diante de qualquer pessoa que tentasse dominá-la. Um sorriso curvoulhe os lábios. Embora descartasse de pronto a simples idéia de tal casamento, Simon dirigiu um olhar duro ao administrador, pois algo no tom de voz usado por Florian o desagradara. — Sabe de algo que não sei? — inquiriu. — Não, milorde. Estava apenas tentando apresentar-lhe todas as possibilidades — Florian defendeu-se com ar inocente. — Bem, de nada vai adiantar continuarmos especulando, enquanto não soubermos mais. E não saberemos mais, enquanto eu não conversar com Brice. O tom impaciente de Simon fez Florian levantar-se imediatamente. — Sim, milorde. Cuidarei de tudo agora mesmo — Bom — Simon murmurou, observando-o afastar-se. Ao que parecia, todos em Baddersly estavam determinados a fechar os olhos para o que quer que se passasse em Ansquith. E embora Simon não percebesse nada de sinistro naquela aparente negligência, concluiu que fora uma boa idéia ter voltado lá para tomar as rédeas da situação. Tal pensamento, porém, não dissipou seu mau humor, pois as insinuações do administrador continuaram pairando no ar. E se Bethia estivesse apegas desafiando o pai? Simon não poderia aprovar atitude assim, mas a idéia de vê-la casada com um homem, sobre quem ele não ouvira nada de bom, era inaceitável. Bethia não se casaria com ninguém, Simon jurou, fosse qual fosse a vontade do. pai dela. Sendo um de Burgh, ele tinha o direito de tomar tal decisão. Mais uma vez, seus lábios se curvaram em um sorriso. Se alguém tentasse casar-se com Bethia, ele teria de intervir. Como lorde, em lugar de Dunstan, sua opinião não poderia ser ignorada e ele se recusava a permitir qualquer casamento. Sentindo-se melhor, Simon decidiu ignorar as perguntas formuladas pela própria razão. Como por exemplo, como faria isso ou por quê. Apesar de saber que um mensageiro fora enviado imediatamente a Ansquith, Simon não conseguia livrar-se da inquietação, ou da impaciência. Não estava habituado a sentar-se e esperar. Era um homem de ação e, à medida que as horas foram passando, 55

foi se tornando impossível continuar impassível. Assim, saiu do castelo e foi até o edifício onde os falcões eram mantidos. Estava determinado a tirar Bethia e seu bando da mente, de um jeito de outro. Assim que seus olhos se acostumaram à semi-escuridão, Simon examinou atentamente cada um dos pássaros. Ficou satisfeito quando o treinador aproximou-se e, com voz suave, cumprimentou-o: — Milorde, é um prazer recebê-lo aqui. Posso ajudá-lo? — Sim. Quero testar seus pássaros. Vamos caçar. Infelizmente, nem mesmo os falcões espetaculares, criados em Baddersly, conseguiram prender a atenção de Simon por muito tempo. Em vez do pássaro elegante, mergulhando para atacar a presa, ele só via a imagem de uma mulher esbelta, empunhando um arco e disparando uma flecha certeira. Irritado com a própria incapacidade de controlar os pensamentos, declarou encerrada a sessão de caça e incitou seu cavalo na direção do castelo. Quando foi informado de que o mensageiro ainda não havia retornado, foi inspecionar a produção de leite e queijo, de cerveja, e vários outros empreendimentos. O que deixou em seu rastro foi um grande número de trabalhadores ansiosos e trêmulos. Tudo parecia estar em ordem. Embora não tivesse a mesma vocação que Geoffrey tinha para os negócios administrativos, Simon verificou superficialmente todas as atividades desenvolvidas em Baddersly e concluiu que a propriedade florescia. Estava a caminho da cozinha, quando o administrador aproximou-se. Simon ainda olhou em volta, à procura de um esconderijo, onde pudesse evitar a companhia do falante Florian, mas foi em vão. Florian já se encontrava a seu lado, curvando-se, sorridente. — Eu não sabia que o senhor pretendia inspecionar nossas operações, hoje — disse. — O que achou da produção de cerveja? Quer que eu lhe conte como conseguimos aumentar a produção no ano passado? Sem esperar pela resposta, o administrador pôs-se a explicar em detalhes o que, na verdade, não despertava o menor interesse em Simon. Sem dúvida, Geoffrey e seu pai adorariam conhecer tudo sobre aquele novo método, mas Simon tratou de encerrar a conversa rapidamente. — Já chega — interrompeu. — Prepare um relatório e darei uma olhada nele antes de enviá-lo a Dunstan. Com isso, afastou-se com passos apressados. Era assim que seu irmão mais velho passava os dias? Inspecionando a cerveja? Verificando a produção de laticínios? Por mais que desejasse negar, Simon viu-se diante da verdade: os dias de batalha haviam terminado para Dunstan. Embora o mais velho dos de Burgh raramente mencionasse suas obrigações, havia pedido a Simon que se certificasse de que os campos estivessem bem cuidados e as colheitas, garantidas. Na ocasião, Simon limitara-se a concordar com um aceno de cabeça, ansioso para pôr os pés na estrada. Agora, porém, tal pedido pesava em seus ombros. Em Campion, era seu pai quem cuidava dessas coisas. Em sua última visita a Baddersly, Simon livrara-se dos cavaleiros corruptos que haviam servido ao senhor errado, organizara um novo exército, contratara um novo administrador, planejara estratégias de defesa e recuperara a propriedade que, por direito, pertencia à cunhada. Agora, não havia nada para fazer ali, exceto supervisionar um castelo muito bem administrado. Não havia batalhas a enfrentar. Nem novos soldados a treinar. Nenhum desafio. Com exceção de um bando de assaltantes… Com um grunhido, Simon recusou-se a seguir aquela linha de raciocínio. Até que o mensageiro retornasse, não gastaria nem mais um minuto do seu tempo com Bethia. Não resistiu à tentação de olhar na direção dos portões, mas a estrada estava deserta e o sol já se encontrava baixo no horizonte. Lembrando-se da noite que passara na floresta, decidiu tomar um banho antes do 56

jantar. Seu pai sempre cultivara hábitos higiénicos e tratara de criar os filhos sob os mesmos moldes. Alguns, mais especificamente Stephen, levava o asseio pessoal a extremos. Ao passar pelo grande salão, Simon gritou aos criados que lhe preparassem um banho e, então, dirigiu-se aos seus aposentos. Seu escudeiro entrou em seguida, a fim de ajudá-lo a tirar a armadura. — Devo levá-la para polir? — o rapaz perguntou. — Não — Simon respondeu e franziu o cenho diante da expressão surpresa do garoto. — Não pretendo ficar sem ela por muito tempo — declarou. Em Campion, Simon jamais jantava envergando a armadura, mas estava em Baddersly. Embora o castelo vivesse em paz havia anos, ele tinha de ficar alerta. Os inimigos sempre esperavam por momentos em que pudessem apanhar os adversários de surpresa. Como Brice. O sujeito teria de ser um idiota para desafiar Baddersly, mas Simon aprendera, por experiência própria, que a maioria das pessoas eram desprovidas de bom senso. Até então, Brice agira com muita inteligência. Por isso, Simon deixou a espada de lado e dispensou o escudeiro. Também dispensou os criados que haviam levado uma banheira de madeira ao quarto, para então, enchê-la de água quente. Todos obedeceram prontamente, exceto uma jovem de aparência delicada e longos cabelos negros. Ao constatar que somente ela ficara no quarto, Simon ergueu as sobrancelhas. — Sou Ida, milorde. Master Florian mandou-me banhar o senhor. Cruzando as mãos diante do corpo, ela baixou os olhos para o chão. Uma mulher para banhá-lo… Simon resmungou, contrariado. Nunca havia experimentado tal ritual antes. Seu pai jamais aprovara a prática, especialmente tendo sete filhos homens dentro de casa, além de um grande desejo de contar com herdeiros legítimos. E Dunstan, muito protetor com relação à esposa, também não permitia tais banhos em Wessex, mesmo que Marion fosse tratada como irmã, por todos os de Burgh. Em suas viagens, Simon recebera ofertas desse serviço diversas vezes, mas sempre recusara, por força do hábito. Conhecia apenas um uso para as mulheres, que não incluía ser lavado por elas. No entanto, deu-se conta de um sentimento de profunda frustração que poderia se dissipar, caso ele recebesse aquele tipo de atenção. Hesitou, pronto a dispensar Ida, como fizera com os demais, mas mudou de idéia. Com um aceno de cabeça para a moça, despiu-se e entrou na banheira. Por um momento, Simon fechou os olhos, entregando-se ao prazer proporcionado pela água quente a envolver-lhe o corpo. Então, lembrou-se da criada e voltou a sentir os músculos tensos. Percebendo que ela havia permanecido imóvel, virou-se para fitá-la e descobriu-a ali, parada, de olhos arregalados. Simon franziu o cenho, nada satisfeito com o resultado de seu plano. Pensara em recuperar seu orgulho ferido, mas via-se diante de uma jovem que parecia não encontrar nada digno de admiração em seu senhor. Nunca dera maior atenção ao corpo, mas agora perguntava-se se havia algo errado com ele. Algo que pudesse ter feito com que Bethia o rejeitasse… — O que foi? — inquiriu. — Desculpe, milorde — a moça balbuciou. — O senhor é tão… grande… com tantas cicatrizes. Deve ter participado de muitas batalhas. Cicatrizes. Bem, havia pouco que ele pudesse fazer para melhorar a aparência de sua pele, que carregava as marcas da vida ativa de um cavaleiro, além das lembranças das travessuras da infância, porém, nunca lhe ocorrera que seu corpo pudesse ser repulsivo. Os de Burgh eram considerados atraentes, embora talvez ele fosse um pouco menos que os irmãos. E nenhuma mulher havia se queixado antes. Na verdade, Simon costumava ignorar as jovens nobres que flertavam com ele, enquanto as mulheres a quem pagava para satisfazer seus desejos mais básicos pareciam mais do que entusiasmadas em atendê-lo. 57

Bem, nenhuma delas o vira completamente nu. — Saia — ordenou. — Mas, milorde, eu… — Saia! — ele berrou. Ida saiu correndo, batendo a porta atrás de si. Em seguida, Simòn afundou-se na água, sentindo-se vulnerável, o que não o agradava. Mas o que o agradava menos ainda era saber que, de alguma maneira, Bethia Burnel era responsável pelo sentimento incomum. Mais uma vez.

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CAPITULO VIII

Depois de um banho rápido, que em nada ajudou-o a melhorar seu estado de ânimo, Simon voltou ao salão para jantar. Ao ser informado de que o mensageiro não retornara, calculou que o homem passaria a noite em Ansquith. Embora esse fosse um sinal encorajador para as relações entre as duas propriedades, era mais um teste de paciência para Simon. O jantar que lhe serviram era digno de um rei, mas apesar dos esforços de Florian que, aparentemente, não fizera economia nas iguarias providenciadas para receber seu senhor, nada parecia tão bom quanto o coelho que Simon comera na véspera. Tal constatação tirou-lhe o apetite. O fato de todos ao seu redor demonstrarem imenso prazer com o banquete não fez com que ele se sentisse melhor. — Milorde — Leofwin falou, sem parar de comer —, os patos que o senhor caçou hoje estão deliciosos Empurrou a travessa para Simon, que assentiu mas não disse nada. Seu silêncio foi um erro, mas ele só o percebeu quando notou os olhares daqueles que o cercavam. — Não gostou da comida, milorde? — Florian perguntou, estudando Simon com curiosidade. — Já comi o bastante — Simon replicou, irritado. Afinal, seus hábitos alimentares não eram da conta de ninguém. Tendo de servir seus seis irmãos, além de seu pai, os criados de Campion estavam sempre ocupados demais para prestar atenção ao que Simon comia ou deixava de comer. Perguntou-se se Dunstan também suportava aquele tipo de intromissão, em Wessex. Simon não gostava nem um pouco de ser o centro das atenções, daquela maneira. Ignorando a carranca de seu senhor, Florian estudou-o com atenção redobrada. — Espero que não tenha apanhado alguma doença, durante sua ausência do castelo. O ar frio da noite não é saudável e quanto às acomodações em outro lugar… O administrador fez um gesto de reprovação. — Alguém está doente? — Leofwin perguntou, lambendo os dedos. — Meu escudeiro foi acometido por uma enfermidade um tanto debilitante, há pouco tempo. — Ele perdeu o apetite? — Florian indagou. — Completamente! — Leofwin respondeu, enquanto se servia de um grande pedaço de pão. — Teve uma diarréia terrível e passou dois dias no banheiro. — Deu uma mordida no pão e, mastigando ruidosamente, virou-se para Simon. — Espero que não tenha o mesmo problema, milorde — acrescentou, embora o olhar de cobiça que lançava para o prato de Simon levaria qualquer um a duvidar de seus verdadeiros sentimentos. Ora, já era tempo de pôr um fim àquela bobagem. — Nunca fico doente! — Simon protestou. Devidamente repreendido, Leofwin voltou a se concentrar na comida, mas Florian continuou a observar seu senhor com interesse. Começando a se cansar das maneiras do administrador, Simon lançou-lhe um olhar ameaçador, fazendo com que ele também o deixasse em paz. — Na minha opinião, algumas pessoas por aqui comem demais — Simon resmungou, fitando Leofwin pelo canto do olho. O cavaleiro corpulento exibiu expressão ligeiramente embaraçada, antes de arrotar em alto e bom som. Com um suspiro exasperado, Simon empurrou o prato para o lado. De repente, o que antes o satisfazia pareceu-lhe desinteressante. Os guerreiros endurecidos invadiam sua privacidade e o salão vasto e luxuoso, com suas mesas apinhadas, era sufocante. Embora fosse menor que o salão de Campion, ainda era grande demais, barulhento 59

demais, com gente demais. Incapaz de compreender a própria inquietação, Simon afastou a cadeira e levantou-se. Sem pronunciar uma palavra sequer, saiu. No terreiro, respirou fundo, reconhecendo cada odor: fumaça, cavalos, comida. Embora fossem familiares, não se comparavam aos aromas da floresta… ou de uma certa mulher. Fechando os olhos, Simon tentou lembrar-se com precisão do perfume que Bethia exalava. Então, deu-se conta do que estava fazendo. Não era um garoto apaixonado! Era um de Burgh, um cavaleiro habilidoso, um guerreiro! E a única razão pela qual aquela mulher ocupava-lhe os pensamentos era o fato de ela representar um problema. Assim que o resolvesse, Simon estaria livre dela para sempre. Tal constatação não o agradou, mas ele disse a si mesmo que, em breve, tudo voltaria ao normal e os sentimentos estranhos que haviam se apoderado dele ultimamente, simplesmente deixariam de existir. Ignorando os olhares curiosos daqueles que serviam seu irmão, Simon atravessou o salão e foi para seu quarto, sentindo-se subitamente cansado da própria companhia e ansioso por um bom descanso. Apesar de ter se deitado cedo, permaneceu acordado até de madrugada e quando o dia amanheceu, tinha olheiras, além de um péssimo humor. Ao chamar o escudeiro aos berros, perguntou-se o que havia de errado. Costumava dormir como uma pedra, em todo tipo de acomodações, inclusive no chão duro, e sob quaisquer condições climáticas, fosse no frio, ou na chuva. Enquanto se vestia, considerou a possibilidade de Florian estar certo. Talvez houvesse apanhado algum tipo de doença. Respirando fundo, apalpou o ventre, à procura de algum sinal de enfermidade. Era evidente que não estava sofrendo do mesmo mal que atacara o escudeiro de Leofwin, mas teria sua noite na floresta provocado algum outro tipo de doença? Esfregando o peito, Simon lamentou não possuir os conhecimentos de Geoffrey. Apesar de ser irritante, às vezes, o irmão talvez pudesse compreender melhor o que se passava com ele, uma vez que sempre fora dado a estudos e leituras sobre todo tipo de assunto. Simon nunca dera maior atenção àquele tipo de coisa, tendo sempre se orgulhado de possuir uma saúde de ferro. Era verdade que vira muitas mortes nos campos de batalha. Algumas provocadas por doenças estranhas. Porém, nunca um de Burgh fora contaminado por qualquer uma delas. Nem seria agora, Simon afirmou para si mesmo, com a arrogância típica da família. Estendeu braços e pernas, certificando-se de que gozava do vigor habitual, e foi para o salão, ansioso… apenas para descobrir que o mensageiro ainda não retornara. — Ainda é cedo, milorde — Florian argumentou, diante da impaciência de Simon. Então, sorriu e apontou para a mesa. — Sente-se e sirva-se de pão e cerveja. Os evidentes esforços do administrador para fazê-lo comer não o agradaram, uma vez que Simon tinha o hábito de esperar pelos demais residentes do castelo para fazer suas refeições. Jamais exigira tratamento especial, principalmente no que dizia respeito à comida. Abriu a boca para deixar isso bem claro, mas antes que pudesse falar, foi interrompido pela exclamação de Leofwin: — Milorde! Conversei com meu escudeiro e ele me disse que o primeiro sinal da doença foram cólicas, seguidas por gases. Simon estreitou os olhos, sentindo o humor tornar-se ainda pior quando Florian aproximou-se. Levando um dedo aos lábios, o administrador estudou-o, pensativo. — Não senti nenhum odor desse tipo, mas o senhor está mesmo um tanto pálido, milorde. Dormiu bem? Furioso, Simon abriu a boca para dizer ao administrador que cuidasse da própria vida, mas desta vez, foi Quentin quem o impediu: — Milorde! Está com dificuldades para dormir? — Sem esperar pela resposta, o cavaleiro dirigiu um olhar significativo aos companheiros. — Ouvi falar de uma doença 60

que está assolando Cobbington. Um comerciante me contou que, de repente, passou a sofrer de uma insônia terrível. E foi só o começo. Após algum tempo, seus cabelos começaram a cair e pêlos nasceram em sua língua. Venha cá. Deixe-me ver — disse, segurando o queixo de Simon, a fim de examiná-lo. Simon ficou tão indignado com a ousadia de Quentin, que nem conseguiu falar. Quando o cavaleiro tentou forçá-lo a abrir a boca, ele o afastou com um gesto rude. — Solte-me, idiota! — vociferou. Sua fúria era tamanha, que todo o seu corpo tremia. Como aqueles homens se atreviam a pôr as mãos nele? E, ainda, insinuar que sua língua tinha pêlos! — Não há nada de errado comigo. Estão ouvindo? Nada! — gritou. Ignorando o olhar desconfiado de Florian, marchou para fora do salão. Na hora do jantar, o mensageiro ainda não havia retornado. Mesmo assim, Simon forçou-se a comer bem. Nunca fora um grande apreciador de bons pratos. Tanto fazia se a comida lhe era servida queimada ou quase crua. Agora, porém, descobria que o pão, a cerveja e o faisão não tinham sabor algum. Movimentou a língua na boca, verificando a possível existência de pêlos ali. Ora, aqueles idiotas de Baddersly estavam fazendo com que ele se comportasse como uma velha! Apesar da falta de apetite, Simon gozava de saúde perfeita. Era apenas a espera que o estava perturbando. Enquanto mastigava ruidosamente, lançando olhares ameaçadores para os companheiros, perguntou-se se deveria ir até a floresta, a fim de saber como estava Bethia. Talvez a ausência do mensageiro significasse problemas para ela. Teria Brice enviado homens à floresta, para apanhá-la? Bateu com o punho na mesa, frustrado e impaciente. Não estava habituado a sentar e esperar. Pensou em cavalgar até a vila mais tarde, e tentar fazer com que alguém a encontrasse. No mesmo instante, rejeitou a idéia. Não se sujeitaria a visitar o ferreiro, como se fosse um garoto de recados! Afastando o prato, jurou que a encontraria por si mesmo para saber se ela estava bem. Para vê-la de novo. Ao mesmo tempo que seu coração disparava de expectativa, Simon franzia o cenho. O que diria a ela? Sentiu um leve rubor subir pelo pescoço diante da idéia de confrontá-la, sem uma boa razão para isso. Bethia o fitaria com aqueles grandes olhos castanhos, que pareciam enxergar o que mais ninguém via, e ele se sentiria o maior dos tolos… mais uma vez. Irritado, afastou tal visão, decidindo que não permitiria que ela risse dele de novo. Além do mais havia jurado que arrancaria a verdade de Brice e pretendia cumprir a promessa feita a si mesmo. Por outro lado, aquela demora estava acabando com seus nervos. Mergulhado em pensamentos, Simon não se deu conta do assunto discutido ao seu redor, até que as vozes baixaram de maneira significativa. Então, os instintos de guerreiro tornaram-no muito atento e, quieto, Simon escutou: — Ele estava pálido pela manhã. Garanto que não conseguiu dormir. Perguntei a ele, mas é claro que negou. Simon cerrou os dentes ao ouvir as palavras de Florian, pois não era difícil adivinhar sobre quem ele falava. — Pálido? Mas, agora, ele me parece corado demais. Talvez esteja com febre — Quentin sugeriu. — Ele come pouco — Leofwin decretou. — Ah, mas talvez esse seja apenas um sintoma do estado dele — Florian replicou. — Afinal, o comerciante relatou algo parecido. — Se querem saber a minha opinião — disse um dos cavaleiros que acompanhara Simon na viagem de Campion a Baddersly —, ele sofre de excesso de mau humor, especialmente desde que chegou aqui! — É possível — Florian concordou, pensativo. — Ouvi dizer que certos tipos de doença provocam um desequilíbrio de temperamento. 61

Incapaz de se conter, Simon ergueu os olhos, a fim de confirmar suas suspeitas. Todos os olhos encontravam-se pousados nele, de uma maneira furtiva, que o fez rugir sua fúria. Levantando-se, lançou um olhar feroz a todos os presentes. — Do que estão falando? — berrou em um tom que teria deixado o irmão mais velho orgulhoso. — Não estou corado demais nem pálido. Ou sem apetite ou com insônia. Nem há pêlos em minha língua. Estou me sentindo perfeitamente bem! E o próximo atrevido que insinuar algo diferente, pagará por isso! Atirando longe o guardanapo que esmagara entre os dedos, virou-se e tomou o rumo da porta, no exato momento em que o mensageiro chegava, parecendo muito agitado. E sozinho. O humor de Simon tornou-se assustador. — Onde está Brice? — inquiriu. — Ele não veio, milorde — o homem respondeu, ajoelhando-se com ar de súplica. — Levante-se! — Simon ordenou, percebendo que Florian e vários cavaleiros haviam deixado a mesa, para se juntarem ao seu redor, curiosos. Embora preferisse receber aquela notícia sem a presença de uma platéia, sua impaciência não lhe permitiria esperar mais. — E então? — Nem queriam permitir que eu entrasse na propriedade — o mensageiro contou, trêmulo. — Obrigaram-me a dormir no chão, do lado de fora do portão, enquanto eu esperava pela resposta de Brice Scirvayne. E hoje de manhã fizeram-me atravessar os portões e esperar no terreiro, sem minha adaga e minha espada, que foram devolvidas quando saí! Respirando fundo, Simon conteve a ira provocada pela recepção insultante que haviam oferecido ao seu mensageiro. — Continue. — Uma vez no terreiro, tive de esperar muito, até que alguns cavaleiros apareceram, liderados por Brice Scirvayne. — Ele também usava armadura? — Não. Vestia roupas luxuosas e coloridas. Simon fez uma careta de desdém. — Continue. O mensageiro baixou os olhos para o chão, como se tivesse medo de continuar. — Entreguei sua mensagem. — E? — Simon já estava prestes a perder a paciência. — E ele apresentou suas… desculpas, milorde — o rapaz completou com ar aterrorizado. — Desculpas? Simon perguntou-se se realmente estaria doente, pois estava certo de que não ouvira bem o que o mensageiro acabara de dizer. — Ele disse — o jovem continuou, ainda mais trêmulo —, que teria de recusar o seu simpático convite. — Simpático convite? — Acho que temos um problema de eco, aqui — Florian comentou, provocando risadas, que se transformaram em tosse, diante do olhar ameaçador que Simon lançou a todos. Voltando a encarar o mensageiro, ele tentou conter a fúria crescente. — O que ele disse, exatamente? — inquiriu entre dentes. — "Por favor, dê minhas recomendações a lorde de Burgh e agradeça-o pelo simpático convite. Entretanto, serei obrigado a recusá-lo no momento. Apresento minhas desculpas, é claro." — O mensageiro fez uma pausa. — Scirvayne disse isso com grande ironia — acrescentou, antes de continuar: — "Infelizmente, sir Burnel encontra-se doente e creio que meu lugar é aqui, com ele, pois tenho certeza de que lorde de Burgh não deseja que algo pior aconteça ao velho durante minha ausência." 62

Simon fitou o rapaz, boquiaberto. Estaria Brice realmente ameaçando sir Burnel? Ouviu os murmúrios dos cavaleiros, que haviam interpretado as palavras de Brice da mesma maneira. — Então — o mensageiro foi adiante —, lembrei master Brice de que lorde de Burgh fora insistente e… — Continue! — Simon bradou, sentindo os dedos coçarem pelo desejo de estrangular Brice Scirvayne com as próprias mãos. — Então, ele… ele me perguntou… "Não é o barão de Wessex o verdadeiro senhor de Baddersly e, portanto, o único com o direito de convocar seus vassalos?" Por um momento, Simon não encontrou a voz. Como um insolente “joão-ninguém" ousava questionar sua posição? Suas ordens? Todos sabiam que a família agia em acordo e ninguém jamais questionava o comando de um de Burgh. Como se percebesse exatamente a intensidade de sua fúria, o mensageiro recuou alguns passos e alguns daqueles que, antes, assistiam com interesse, assumiram expressão de medo e retomaram suas atividades anteriores. Simon, porém, não tinha nada contra aquelas pessoas, assim como não tinha o hábito de castigar inocentes para desabafar sua raiva. Todos ali conheciam o conteúdo da carta de Dunstan, conferindo a ele o controle total do castelo. Florian encarregara-se de garantir que todos soubessem disso. E não havia dúvida de que a notícia alcançara a vila, cobrindo toda a região, inclusive Ansquith. Mesmo aqueles que não conheciam bem os de Burgh, não recusariam um chamado de Simon. Portanto, Brice não poderia valer-se da ignorância como desculpa para sua ofensa. Não, fora um insulto calculado, como um lance em um jogo de xadrez. Infelizmente, Simon nunca gostara de jogos. Geralmente acabava virando o tabuleiro! Florian limpou a garganta, quebrando o silêncio que tomara conta do salão. — Ao que parece, está mesmo acontecendo algo muito estranho em Ansquith. — Sim. Alguma coisa vai mal por lá, e não é somente a saúde de sir Burnel — Simon concordou, já erguendo um punho para esmurrar a própria mão, um gesto comum em seus piores momentos. Porém, naquele instante, uma idéia cruzou-lhe a mente. Bethia. Por mais desprezíveis que fossem as atitudes de Brice, elas confirmavam a história que Bethia contara. O pensamento agradável dissipou boa parte da ira de Simon, pois ele se deu conta de que havia uma possibilidade enorme de que Bethia estivesse dizendo a verdade. A constatação animou-o, pois se a história dela fosse mesmo verdadeira, ele deveria ajudá-la. Bethia… Deixando cair o braço que erguera, Simon sorriu, surpreendendo a todos que o observavam. — Preciso sair — declarou, já tomado por uma urgência incontrolável. — Não está planejando ir a Ansquith sozinho, está? — Quentin protestou. — Nós o acompanharemos, milorde! — Thorkill afirmou. Sacudindo a cabeça, Simon ignorou-os, deixando para trás um grupo de guerreiros inconformados, juntamente com um Florian, curiosamente calado, que levou um dedo aos lábios e estudou seu senhor com ar especulativo. Simon passou por eles com passos apressados, decidido a cavalgar até a vila. Até Bethia. Quando já diminuía a velocidade, ao se aproximar da loja do ferreiro, Simon franziu o cenho, pensativo. Deixara Baddersly apressado, sem dar a menor atenção aos protestos de seus cavaleiros. Agora, dava-se conta da aventura arriscada que empreendera. Afinal, Bethia poderia tê-lo enganado. Irritou-se só em imaginá-la rindo às suas custas, enquanto ele visitava casebres e chalés, em busca de um meio de se comunicar com ela. A idéia não o agradava, mas sua única opção seria procurá-la na floresta e, sem dúvida, os seguidores de Bethia estariam 63

alertas para a sua chegada. E Simon não tinha o menor desejo de ser apanhado em mais uma das armadilhas de Bethia. Estreitou os olhos, desconfiado, ao avistar o ferreiro, que foi recebê-lo. Desmontou e entregou as rédeas ao homem, sentindo-se subitamente constrangido por não fazer a menor idéia do que dizer a ele. Sua tolice tornou-se ainda mais evidente quando Simon se deparou com o olhar cheio de expectativa do ferreiro. — Estou procurando por uma pessoa — resmungou. Em vez de fitá-lo com expressão idiota, como Simon havia esperado, o homem balançou a cabeça devagar. — Deve ir à cervejaria, milorde. Desta vez, foi Simon quem exibiu expressão pouco inteligente. — A cervejaria? — Sim. Será procurado lá. Com isso, o ferreiro levou o cavalo de Simon para o estábulo, deixando-o sozinho lá fora. Sentindo-se como se, de alguma maneira, houvesse trocado de lugar com o outro, que lhe parecera retardado em seu primeiro encontro, Simon olhou para o fim da rua, onde a cervejaria era indicada por uma placa. Geralmente detestava aquele tipo de lugar, mas em sua última visita, constatara que aquele estabelecimento era bem mais limpo que a maioria do ramo. Além disso, Simon não estava muito preocupado com riscos. Se Bethia havia mandado seus arqueiros em uma emboscada, ficaria desapontada, pois sem árvores para se esconderem, eles representavam uma ameaça muito pequena. Confiante em suas próprias habilidades, Simon caminhou com passos firmes até a cervejaria. Provavelmente, ninguém apareceria para procurá-lo e, mais uma vez, Bethia teria motivos para rir com gosto. Carrancudo, Simon entrou no edifício. Pouco maior que uma cabana, era escuro e o ar apresentava-se carregado pelo cheiro forte da cerveja. Havia alguns poucos bancos, onde viajantes cansados poderiam repousar, enquanto matavam a sede. Havia dois homens lá dentro. Simon estudou-os cuidadosamente, antes de sentarse com as costas voltadas para a parede, a fim de ter ampla visão da porta de entrada. A tarde chegava ao fim e os dois pediram pão para acompanhar a cerveja. Simon calculou que o pequeno estabelecimento não teria muito mais a oferecer. Pediu apenas cerveja e bebeu devagar, enquanto esperava. Os homens sentados diante de Simon eram, provavelmente, vendedores ambulantes, pois viravam-se a todo instante, a fim de vigiar as carroças que haviam amarrado do lado de fora. Quando tentaram puxar conversa, Simon reagiu com uma carranca, o que os fez ficar em silêncio. Ele não estava disposto a gastar o tempo com bobagens. Queria Bethia e, a cada minuto que passava sem notícias dela, tornava-se mais impaciente. Perguntou-se se algo de ruim havia acontecido a ela. Apesar de seus esforços para dominar os sentimentos, foi tomado de profunda aflição, e quase se levantou para sair à procura dela. No entanto, sua disciplina ajudou-o a ficar exatamente onde estava. Esperaria até o pôr-do-sol. Então… Alguém apareceu na porta e Simon ficou imediatamente tenso, preparando-se para qualquer coisa. Tratava-se de um homem vestindo roupas imundas, botas cobertas de lama e um chapéu puxado sobre os olhos. A primeira coisa que Simon notou foi a barba rala do sujeito e, no mesmo instante, sentiu uma pontada de decepção. Bem, na verdade, não esperava que Bethia entrasse em uma cervejaria, mas isso não diminuiu a sua impaciência. Disse a si mesmo que aquele não era um lugar adequado para ela. Ao mesmo tempo, perguntou-se qual seria o verdadeiro lugar daquela mulher. Continuou prestando atenção no recém-chegado, na esperança de que o homem tivesse uma mensagem para ele, mas o sujeito manteve a cabeça baixa. Movimentava-se 64

com a dificuldade da idade avançada, e Simon teria esquecido sua presença, não fosse pela voz. Quando o homem pediu uma cerveja, a tonalidade ligeiramente rouca soou-lhe vagamente familiar. Recostando-se na parede, Simon acomodou-se em uma posição falsamente casual, e examinou a figura em detalhes, até que seus olhos pousaram nos quadris do sujeito. Estaria imaginando coisas, ou eles balançavam de maneira estranha, quando o homem andava? O velho virou-se e se aproximou. Os dois viajantes encolheram-se e Simon logo descobriu o motivo, pois também sentiu o odor fétido que o homem exalava. Além disso, a barba mal aparada e embaraçada parecia guardar restos de comida. Com um gemido de nojo, Simon deslizou no banco, quando o velho se sentou ao seu lado. — Boa noite, sir — o homem cumprimentou-o e Simon ficou petrificado. Algo naquela voz rouca atingiu-o como um soco. Tenso, ele ergueu a cabeça devagar e arregalou os olhos ao se deparar com olhos castanho-claros, muito parecidos com os de uma certa mulher. E, como para confirmar suas suspeitas, uma das pálpebras baixou em uma piscadela de cumplicidade! Um ruído estranho formou-se na garganta de Simon, chamando a atenção dos dois viajantes. — O que está fazendo aqui? — ele inquiriu em um sussurro. — Não mandou me, chamar? — ela também sussurrou. — O que está fazendo aqui… vestida desse jeito? — Simon insistiu, entre dentes. Bethia aproximou-se, forçando-o a aspirar o odor horrível e, ainda, teve a audácia de exibir um sorriso irônico, revelando um dente tingido de preto. Estaria se divertindo com tudo aquilo? Talvez a tola gostasse de se colocar em perigo. Simon teve vontade de sacudi-la, até que ela houvesse recuperado o bom senso… se é que, um dia, ela já possuíra algum! — Eu não poderia aparecer como realmente sou, não acha? Ora, quem era ela, afinal? A questão dissipou a raiva de Simon. Ali estava uma mulher inteligente, interessante, surpreendente… metida em um disfarce absurdo, mestra em trapaças! Era apenas a última parte que ele não conseguia digerir. Simon não estava habituado a fraudes e mentiras, a fingir ser outra pessoa. Gostava das coisas diretas e objetivas, inimigos e aliados igualmente fáceis de reconhecer e distinguir. Estreitando os olhos, desviou o olhar do dela. Então, o pequeno edifício pareceu abafado e escuro demais. Respirou fundo, mas descobriu que seus pulgões precisavam de ar fresco. Só assim ele teria uma chance de refletir e decidir qual era a verdade sobre a mulher ao seu lado. — E então? O que você queria? — Bethia perguntou em voz baixa. Querer… Como já acontecera antes, a palavra simples adquiriu um sentido diferente, enquanto Simon voltava a fitá-la. Mesmo vestida como um mendigo, ela tinha o poder de perturbá-lo, pois ele conhecia as formas esbeltas que se escondiam sob as roupas largas e sujas, assim como o perfume sutil, disfarçado pelo odor fétido. Envergando qualquer traje, Bethia era mais excitante do que qualquer mulher que Simon já conhecera. E ele já sentia o rubor subir por seu pescoço, o calor que somente ela conseguia provocar. Um ruído do outro lado da cervejaria chamou-lhe a atenção e Simon percebeu que os dois ambulantes os observavam com grande interesse. Fitou-os, carrancudo, até que ambos desviassem os olhos, mas foi obrigado a admitir que a cena só poderia parecer muito estranha. Afinal, o que fazia um cavaleiro, sentado tão perto do que parecia ser um mendigo velho e fedorento? Embora soubesse estar ao lado de Bethia, não pôde evitar uma sensação de desconforto por se ver junto de uma pessoa vestida de homem. Afastou-se alguns centímetros, duplamente constrangido por causa dos sentimentos que ela lhe despertava… Sentimentos relacionados àquela palavra que, um dia, fora tão simples: querer. 65

Como se percebesse o dilema dele, Bethia aproximou-se e pousou a mão em seu braço, em um gesto bastante íntimo. As sensações provocadas pelo contato aqueceram as entranhas de Simon e, ao mesmo tempo, fizeram gelar o sangue em suas veias. Ele a fitou com duro olhar de advertência, mas ela simplesmente encarou-o, os olhos arregalados indicando que a proximidade exercia algum efeito sobre ela, também. — Muito bem, cavalheiros, vamos pôr um fim a essa história — protestou o proprietário da cervejaria. — Não quero esse tipo de coisa acontecendo aqui dentro. Se estão muito inclinados a continuar, continuem fora daqui! Simon levantou-se de um pulo, dando-se conta de que o sujeito insinuara que ele e seu companheiro mal-cheiroso estavam envolvidos em algo… ilícito. Por um momento, cerrou os punhos, na firme intenção de reagir ao insulto com violência. Porém, ao pensar no risco de expor a identidade de Bethia, controlou-se. Afinal, não poderia chamar ainda mais atenção sobre ela. Enquanto hesitava, sem saber ao certo o que fazer, Bethia já deixava a cervejaria. Engolindo a indignação, Simon seguiu-a, sentindo-se ligeiramente aliviado ao se ver ao ar livre, à luz fraca e agradável do pôr-do-sol. Detestava ver-se confinado em lugares pequenos e abafados, e respirou fundo várias vezes, a fim de limpar os pulmões. O que ajudou-o a acalmar os nervos, mas não aplacou o sentimento de raiva que se recusava a deixá-lo. Quando deu-se conta de que a fonte de sua ira caminhava lentamente à sua frente, fingindo vergar-se ao peso da idade avançada, praguejou baixinho. Com passadas largas, alcançou-a rapidamente, determinado a sacudi-la por ter criado uma impressão errada, na cervejaria, por ter confirmado uma mentira, por torná-lo tão obcecado por ela. Bethia, porém, foi rápida. Esquivando-se ao braço forte que se estendia para ela, abaixou-se e apanhou um galho caído. — Ah, aí está você! — falou com voz disfarçada. — Ajude-me a chegar em casa, bom rapaz. Então, usando o galho como bengala improvisada, seguiu adiante, com passos trêmulos e irregulares, como um verdadeiro velho, deixando um Simon estarrecido para trás. Ele demorou alguns instantes para se recompor e, durante esse tempo, sua companheira fez um progresso considerável em sua caminhada. Assim mesmo, Simon alcançou-a com facilidade, enquanto ainda lutava para controlar os ímpetos irados. Disse a si mesmo que Bethia estava certa ao manter o disfarce e evitar qualquer tipo de confronto, mesmo ali, na rua. Alguns residentes da vila ainda se dirigiam para suas casas e as vozes dos pastores, que confinavam seus rebanhos para a noite, podiam ser ouvidas à distância. Cerrando os dentes, Simon esforçou-se para permanecer calado. Mais uma vez, Bethia o fizera assumir o papel de tolo e, certamente, divertia-se com tal feito. Pior ainda do que a cena na cervejaria, haviam sido os momentos seguintes, quando ela mantivera a cabeça fria e ele, não. Tentando defender-se para si mesmo, perguntou-se que homem teria mantido o sangue frio, depois de ser enganado por uma mulher como aquela. Nenhum, pensou, enquanto a acompanhava, tenso. Recusou-se a fingir que a ajudava a caminhar e ignorou-lhe o andar afetado. Assim, calados, continuaram seu caminho, mesmo quando a rua se transformou em uma estrada deserta, que cortava os campos. Quando se encontrassem longe de olhos e ouvidos curiosos, Simon poderia finalmente confrontá-la. Mas, então, o que faria? Ainda não havia decidido, quando a voz de Bethia interrompeu-lhe os pensamentos: — Muito bem, o que você quer? Simon fitou-a, confuso. Antes de conhecê-la, tudo em sua vida fora simples e claro. Fora educado para ser um guerreiro, como Dunstan, e era assim que vivia. Quando alguém ameaçava suas terras, ou sua família, Simon lutava e aniquilava o inimigo. Se 66

havia injustiça, ele corrigia a situação. Fora sempre assim, tão fácil. Ao contrário de Geoffrey, Simon nunca acreditara no que não podia ver. Sabia ler, assim como todos os de Burgh, mas não tomara gosto pela leitura, pois as palavras escritas no papel não lhe pareciam reais. A menos que pudesse comprovar com os próprios olhos, duvidava de tudo o que o escritor professava. Também não era o tipo de homem que se deixava dominar por sentimentos, como ocorria com alguns de seus irmãos. Simon acreditava não possuir emoções, exceto o respeito que tinha pela família. Baseava sua vida e suas atitudes em fatos concretos, mas como poderia aplicar tais princípios à mulher parada à sua frente, vestindo roupas masculinas imundas, com uma barba grudada ao queixo? Subitamente inseguro, Simon desviou o olhar. — Brice não obedeceu minha convocação — disse. — Portanto, continuo tão longe da verdade quanto estava antes. — Eu sabia! Aquele patife! — Bethia recitou uma fileira de palavrões, capazes de fazer o mais duro dos guerreiros corar. Então, voltou a fitá-lo. — Certamente, não pode acreditar que ele seja um homem decente, depois de ter sido desobedecido dessa maneira — falou, como se só então houvesse se dado conta do significado das palavras de Simon. A verdade era que ele não sabia o que pensar. Embora a atitude de Brice fosse uma indicação de que Bethia era a verdadeira herdeira de Ansquith, não havia nenhuma prova concreta que confirmasse tal teoria. E não era fácil confiar em uma.mulher que não só se vestia de homem para liderar um bando de assaltantes, mas ainda mentia e criava disfarces horrorosos e mal-cheirosos. — Que diabo de cheiro é esse? — inquiriu, franzindo o nariz. Ela sorriu, revelado o dente escurecido, ao mesmo tempo que arrancava a barba falsa. — Esterco de ovelha misturado a uma generosa porção de leite azedo — informou-o, orgulhosa. Só então, Simon constatou que a barba não passava de um tipo de barbante, com pêlos de animal. Quando Bethia tirou-a, exibindo os contornos de seu belo rosto, ele sentiu como se houvesse sido atingido por uma das flechas que ela atirava com tanta precisão. Sem se dar conta do que fazia, esfregou o peito com uma das mãos, enquanto estudava o rosto que o fitava, tão em desacordo com o disfarce absurdo. Não saberia dizer se foi o clima de conspiração que os envolvia, ou o brilho dos grandes olhos castanhos, o que o atingiu, mas de repente, suas dúvidas e confusões terminaram, pois a verdade não era mais desconhecida. Naquele momento, Simon olhou para Bethia e foi invadido pela certeza de que ela realmente era quem dizia ser, apesar da ausência de provas. Apesar de tudo. Acreditava nela com uma fé que lhe sacudiu as entranhas. Uma vez, Geoffrey lhe falara que a religião era mera questão de fé. E embora os sentimentos de Simon tivessem muito mais a ver com questões terrenas do que com aquelas dos céus, ele finalmente compreendeu o sentido das palavras do irmão. Sem ter a necessidade de encontrar uma explicação, Simon aceitou por completo a história, a identidade, tudo sobre Bethia Burnel: filha despojada, ladra, trapaceira, guerreira e mulher. — O que vamos fazer? — ela perguntou, sem ter idéia do que acabara de se passar com Simon. Percebendo isso, ele teve vontade de gritar suas convicções recém-adquiridas. Queria tomá-la nos braços, celebrando sua libertação das dúvidas. Queria arrancar-lhe o disfarce ultrajante e beijar-lhe os lábios, apesar do fedor e da sujeira. Porém, outras incertezas mantiveram-no imóvel. Assim, ele permaneceu impassível, a fitá-la com o cenho franzido. — Pensaremos em outra maneira de apanhá-lo — declarou com voz tensa pelo 67

esforço que fazia para conter os impulsos. — Tem de haver uma maneira — resmungou, virando-se para a floresta. Um ano antes, talvez até mesmo uma semana antes, Simon teria marchado com seu exército pelos portões de Ansquith, sem dar a menor importância à vida de um único homem. Agora, porém, sentia-se hesitante. Pela primeira vez, desde que se tornara guerreiro, dava-se conta de que a força bruta poderia não conquistar a vitória. Especialmente para Bethia. Como ela permanecesse em silêncio, virou-se e viu os ombros dela vergados. E sentiu a derrota que tomara conta de Bethia como se fosse sua. Ergueu as mãos na direção dela, mas voltou a baixá-las. — Não — Bethia falou, afinal. — Pensei que o poder seria a resposta, que se conseguíssemos reunir bastante gente em favor de nossa causa, venceríamos. Mas não estava raciocinando com clareza. Você me mostrou que uma batalha acabaria por nos derrotar. — Sim — Simon concordou, pensativo. — Se atacarmos Ansquith, inocentes serão castigados. Aqueles que já sofrem nas mãos de Brice, serão vítimas de crueldade ainda maior. Ao mesmo tempo que descartava tal plano, Simon já pensava em outros métodos de ataque. Afinal, era um guerreiro e não admitiria a derrota, antes mesmo de ter começado a luta. Enquanto considerava o problema, desejou poder contar com a ajuda dos irmãos, especialmente de Geoffrey, cuja inteligência e habilidade de negociação poderiam resolver a disputa sem derramamento de sangue. Com um sorriso amargo, Simon rejeitou a idéia, pois não poderia esperar mais para derramar o sangue de Brice Scirvayne. O momento das conversas havia ficado para trás, graças a Brice. Em vez de Geoffrey, talvez Dunstan pudesse ajudá-los. Embora, antes, Simon preferisse morrer a pedir ajuda ao irmão mais velho, agora perguntava-se se o grande guerreiro do rei não contribuiria com boas idéias. Afinal, Burnel era vassalo de Dunstan. No entanto, Simon não teria paciência para esperar por Dunstan. Então, pôs-se a enumerar todas as maneiras que conhecia de forçar entrada em uma propriedade fortificada, mas todas elas eram muito demoradas e óbvias para seus defensores. Quando Dunstan fora feito prisioneiro, eles haviam invadido Wessex por uma passagem secreta. — Existem entradas secretas em Ansquith? — perguntou. — Não que eu saiba… Se houvesse, tenho certeza de que eu as conheceria — Bethia respondeu, desanimada. Naquele momento, os olhos de Simon estreitaram-se, fitando a semi-escuridão. Um homem solitário deixava a vila e entrava na floresta. — É só um mineiro — Bethia explicou. Simon relaxou, mas um sorriso brotou em seus lábios. — Um mineiro? — repetiu. — Sim. — Existem muitos mineiros que apóiam a sua causa? — Sim, todos os que trabalham aqui detestam Brice, porque ele… — Bethia parou de falar, arregalando os olhos. — Você está sorrindo — murmurou, fascinada. — Sim, estou sorrindo porque acabo de pensar em uma maneira de invadirmos Ansquith. — Simon foi invadido por profundo prazer ao notar o brilho de esperança nos olhos dela. — Cavaremos um túnel subterrâneo por sob os muros, com saída para o terreiro interno. Tomaremos a propriedade, antes que Brice tenha tempo de fazer qualquer coisa. Trata-se de uma prática comum, quando se quer tomar um castelo, mas nem sempre contamos com trabalhadores tão capacitados quanto os seus mineiros. — Pode dar certo! — Bethia exclamou. Então, antes que Simon sequer suspeitasse 68

de suas intenções, ela se atirou para e]e, passando os braços em torno de seu pescoço, apertando-o contra si. No primeiro instante, o odor fétido foi tudo o que ele sentiu, mas logo a consciência do corpo dela colado ao seu apagou tudo mais. Desajeitado, Simon a abraçou, também, experimentando um momento de profunda comunhão. Quando Bethia finalmente se afastou, como se houvesse se dado conta do que fazia, Simon sentiu-se como se algo precioso houvesse sido roubado dele. — Se conseguir reunir alguns mineiros, poderemos começar as escavações amanhã, nos limites da floresta, no ponto mais próximo de Ansquith — ele disse. — Já sei que Brice nunca sai da fortaleza, mas ele costuma mandar soldados à procura do seu bando? Simon já calculava a melhor localização, levando em conta a distância e a necessidade de manter a operação em segredo. Ao dar-se conta de que Bethia não respondera à sua pergunta, virou-se para ela e descobriu que o sorriso luminoso dera lugar a uma expressão preocupada. — Estou certa de que você tem outros assuntos, muito mais importantes, para cuidar — Bethia falou, desviando o olhar. Bem, era verdade que Simon tinha de cuidar dos negócios em Baddersly, mas nada lhe parecia mais importante do que recuperar Ansquith. E ele jamais preferiria examinar tediosos livros de contabilidade, ou intermediar disputas de aldeões, quando uma batalha erguia-se à sua frente. — Sim, tenho coisas a fazer, mas esta missão vem em primeiro lugar — declarou. — Pensei que não gostasse de minas — ela argumentou, sem esconder uma certa desconfiança. — E não gosto, mas quero que tudo seja feito da maneira correta. Do contrário, você perderá a vantagem que possui — Simon retrucou, irritado. —Onde está acampando, agora? Irei com você ate lá, já. Bethia, geralmente tão controlada, mostrou-se aturdida diante de tal sugestão. Foi então que Simon deu-se conta de que ela ainda não confiava nele. Tal constatação arrasou-o. Afinal, ele ignorara tudo mais para acreditar nela. Esperava o mesmo em retribuição. Consciente da crescente escuridão e das árvores muito próximas, pousou a mão no cabo da espada, para o caso de os homens de Bethia decidirem apanhá-lo de surpresa. — Vou supervisionar pessoalmente o trabalho, Bethia. Se não puder fazê-lo com seus mineiros, então será com homens da minha escolha — anunciou entre dentes, dizendo a si mesmo que recuperaria Ansquith para seu irmão e esqueceria a existência dela. Embora a ameaça a alarmasse, Bethia foi rápida em disfarçar os sentimentos. — Amanhã — falou, recuando na direção da floresta. — Encontre-me na clareira. Irritado pela constante necessidade de subterfúgios e esconderijos, Simon estendeu o braço para segurá-la, mas Bethia foi rápida e desapareceu entre as árvores em um piscar de olhos. Mais do que furioso pelo abandono, Simon sentiu-se profundamente desapontado, pois não teria a chance de partilhar um coelho assado, ou uma noite ao relento, com a mulher mais intrigante que já conhecera. — Tola! — gritou para a escuridão. — Vai acabar se matando! Falou a sério, pois a floresta abrigava inúmeras ameaças a uma mulher sozinha, vestida de homem. Por um momento, pensou em segui-la, mas seu orgulho falou mais alto. Ora, por que deveria importar-se com a segurança dela? Não tinha de se preocupar com o que ela fazia, ou deixava de fazer! Com passos determinados, jurou ignorar a dor que tomara conta de seu peito, dizendo a si mesmo que provavelmente, Florian tinha razão ao reprovar seus maus hábitos alimentares. Definitivamente, nada do que sentia se relacionava com Bethia.

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CAPITULO IX

Frustrado e irritado, Simon voltou a Baddersly, mesmo sabendo que encontraria os portões fechados, àquela hora. Desta vez, os guardas não lhe negaram a entrada, mas os olhares estranhos que lhe lançaram deixavam claro sua opinião sobre a loucura que ele havia cometido, por cavalgar sozinho, à noite. Eles que pensassem o que quisessem, disse a si mesmo, ficando ainda mais contrariado quando Florian correu ao seu encontro, tratando-o como se fosse uma criança. — Milorde! Veja o seu estado! Encharcado até os ossos! Providenciarei um banho quente, agora mesmo. Enquanto Simon voltava para o castelo, uma chuva fina, porém firme, começara a cair. Diversas vezes, ele pensara em voltar à floresta, a fim de garantir-se de que Bethia estava bem, se havia encontrado abrigo contra o mau tempo. Então, refletira que não seria culpa sua, caso ela se afogasse debaixo de um arbusto. Afinal, fora ela quem se recusara a acompanhá-lo e descartara a proteção que ele lhe oferecera. O fato de Bethia haver deixado claro que não confiava nele continuava engasgado em sua garganta. Além de cavaleiro, Simon era um de Burgh e, acima de tudo, um homem honrado. Ter seu bom nome colocado em dúvida era, simplesmente, impensável. Ainda assim, Bethia continuava a desconfiar e manter-se distante. Simon tentou afastar os sentimentos sombrios, ao mesmo tempo que dispensava as atenções de Florian com um impaciente aceno de mão. — Mas, milorde, o senhor não jantou! — o administrador insistiu. — Precisa comer! Como se a simples menção de comida conjurasse sua presença, Leofwin apareceu, seguido por outros cavaleiros que bebiam cerveja junto à lareira. — As cozinheiras de Baddersly são as melhores da região, milorde. Deve experimentar o carneiro. Está delicioso! Vi guardarem alguns pedaços para o senhor. Simon fitou o cavaleiro corpulento, mas, antes que pudesse comentar a oferta, Florian ergueu as mãos no ar, em um gesto de aflição. — Ele não quer comer! Temo que esteja mesmo doente! — Talvez esteja precisando de um purgante, para livrá-lo do que quer que esteja lhe fazendo mal — Quentin sugeriu. Simon dirigiu-lhe um olhar duro. — Nada está me fazendo mal! — Se forem vermes, chá de losna poderá curá-lo — Florian concluiu, ignorando-o. — Não tenho verme algum! — Simon berrou. — Não há nada errado comigo! Florian suspirou com ar benevolente. — Milorde, tenho algum conhecimento de estudos sobre a saúde e posso reconhecer alguns sintomas, entre os mais comuns. O senhor vem apresentando distúrbios de sono e alimentação. Pelo que sei, não está sofrendo com problemas intestinais, mas não se incomoda com o ar que o cerca? Simon inspirou profundamente, mas não para testar a qualidade do ar, e sim na tentativa de controlar a ira. Os odores que penetraram suas narinas foram os de costume: comida, fumaça, cachorros residentes do castelo. Cerrou os punhos, planejando estrangular o administrador falastrão. — Não? — Florian indagou, aparentemente desapercebido do humor perigoso de seu senhor. — Então, talvez seja puro cansaço. Tem passado muito tempo cavalgando, e sozinho, o que é pior. Deveria passar mais tempo sentado, milorde. Correndo até o banco mais próximo, arrastou-o para perto de Simon, indicando-lhe com um gesto que se sentasse. 70

Como Simon continuasse de pé, limitando-se a fitá-lo com olhar ameaçador, Florian levou um dedo aos lábios e murmurou, pensativo: — Existe, ainda, uma outra possibilidade. Deu a volta em torno de Simon, examinando-o com aparente concentração, enquanto os cavaleiros os cercavam, assistindo a tudo com grande interesse. Mesmo não acreditando nos conhecimentos médicos de Florian, Simon descobriuse à espera do diagnóstico final, mas o administrador não disse mais nada. — E então? — Simon finalmente perdeu a paciência. — Qual é a outra possibilidade? — Bem — Florian exibiu um sorriso maroto —, a última possibilidade refere-se às paixões da alma. Por um momento, Simon acreditou reconhecer um brilho de certeza e divertimento no olhar de Florian. Estreitou os olhos, perguntando-se o que o administrador achava divertido. A expressão inocente diante de seu olhar colérico fez com que, em vez de reagir, Simon desse meia-volta e desaparecesse do salão. Paixões? Se algo estava mesmo lhe fazendo mal, só poderia ser um castelo repleto de idiotas intrometidos e fofoqueiros! Encaminhando-se para o quarto, considerou a possibilidade de matar o administrador com suas próprias mãos. Paixões! Simon sentiu o rubor tomar conta de suas faces ao pensar nos irmãos rindo de tal afirmação, pois todos eles sabiam que Simon não tinha paixões, exceto por sua devoção incondicional à guerra. E se Florian acreditava que era esse o mal que afligia o seu senhor, então era ele quem estava precisando de ajuda. Empoleirada em um galho de um grande carvalho, Bethia não sabia se deveria rezar para que Simon de Burgh comparecesse ao encontro marcado para aquela manhã ou não. Parte dela desejava que a sugestão feita por ele não passasse de uma brincadeira ou de uma armadilha, embora fosse sua melhor chance de salvar o pai. Tal desejo era ilógico, mas nascia de um forte senso de autoproteção. Simon de Burgh representava um perigo para ela, mesmo que estivesse dizendo a verdade. A consciência que Bethia tinha dessa ameaça ia muito além dos limites da lógica. Seus instintos haviam feito soar um alarme insistente, desde o momento em que ela o abraçara, na noite anterior. Tendo sido uma reação provocada pela esperança, aquele abraço fora um grande erro, pois, mais do que nunca, ela sentira na pele a intensidade da virilidade, do poder e da sensualidade de Simon. Nunca um homem a tentara, antes, mas agora, Bethia perguntava-se como seria tocá-lo de maneira menos inocente. Respirou fundo ao pensar naquela força contida rompendo as barreiras do controle racional. Como em resposta aos seus pensamentos, Simon apareceu do outro lado da clareira. Bethia soltou o ar em um suspiro silencioso. O guerreiro movia-se sorrateiramente, mas ela sabia que, se ele houvesse levado soldados consigo, seus homens a teriam alertado antes. Simon estava sozinho e Bethia aproveitou a oportunidade para estudá-lo. Um belo homem, sem dúvida! Alto, com ombros largos e músculos rijos, poderia ser considerado o melhor padrão de beleza masculina. Não usava o elmo, de maneira que seus cabelos caíam até os ombros, negros como ébano. O rosto de traços firmes intimidava, embora não apresentasse o menor sinal de crueldade. Ah, se ela pudesse ter certeza dos motivos que o levavam até ali! Bethia ainda se perguntava se tudo não passava de um plano para apanhá-la, bem como a seus homens, dentro do túnel sugerido. As fraudes haviam passado a fazer parte de sua vida e, por isso, era difícil não considerar tais possibilidades. Como seria de se esperar, Firmin havia se colocado contra permitir o acesso de Simon ao local. Queria cavar outro túnel, sem o conhecimento do cavaleiro. Fora apenas o argumento de Bethia 71

de que, se realmente quisesse apanhá-los, Simon já o teria feito, que evitara esforços vãos. Para seus homens, Bethia oferecera Simon como um aliado, mas pretendia manter-se distante dele, o máximo possível. Sacudindo a cabeça, disse a si mesma que teria de ignorar a fascinação que sentia por ele. Simon de Burgh não era para ela. Assim como nenhum outro homem. Tomara essa decisão muito tempo antes, e a situação em que se encontrava agora tornava crucial mantê-la. Em silenciosa determinação, Bethia jurou que aceitaria a força e o poder de Simon, e lutaria ao lado dele, se necessário. Só isso. Embora satisfeita com a decisão, permitiuse mais um momento para observar o único homem que lhe despertara o interesse. Simon examinou a clareira deserta e perguntou-se se Bethia o deixaria plantado ali, a fim de divertir-se às suas custas. Porém, seu instinto de guerreiro, ou talvez o perfume que ela exalava, informou-o de que Bethia estava por perto. Sentiu a tensão diminuir, diante da constatação de que ela havia atravessado a noite, sem sofrer qualquer mal, apesar da ausência dele. Franziu o cenho, sem saber se deveria estar satisfeito ou contrariado. Embora admirasse as habilidades de Bethia, preferia protegê-la ele mesmo. Quem sabe desta vez, pensou, conseguisse convencê-la a acompanhá-lo, quando voltasse para o castelo. Do contrário, Simon ficaria ali mesmo. A operação de escavações era sua e ele não pretendia delegá-la a um bando de rufiões. Além disso, estava farto dos olhares curiosos de Florian e dos demais habitantes de Baddersly. Simon conseguira evitar as perguntas do administrador intrometido naquela manhã, pois partira antes do amanhecer. Mesmo assim, o excesso de atenção focalizada sobre sua pessoa estava deixando seus nervos à flor da pele. A promessa de um castelo só seu passara a se mostrar um fardo, uma prisão, em vez de ser a recompensa que ele merecia. Mas qual seria o seu objetivo, então? Simon franziu o cenho quando a imagem de Bethia se formou em sua mente, juntamente com a visão de Ansquith. Ora, o que faria com uma mulher? E a propriedade em questão, apesar de próspera, estava muito abaixo de suas expectativas para o futuro. Interrompeu os pensamentos, a fim de apreciar o clima agradável que o envolvia, ali. Sim, a floresta era um lugar muito bom, rico em madeira e minério de ferro e… Uma idéia pitoresca, mas Simon estava ali para salvar a propriedade de sir Burnel, não a si mesmo. E, sem dúvida, ele logo se cansaria de um único lugar, mesmo que a intrigante Bethia estivesse lá, para distraí-lo. Sem se dar a chance de refletir melhor, Simon resmungou uma negativa. Não, aquele tipo de vida, pacífica e sossegada, não fora feito para ele. Aceitou tal realidade, mesmo que ela lhe provocasse uma sensação de desconforto. Como já se tornava habitual, Simon esfregou o peito com uma das mãos. Então, olhou em volta, pensando que, embora não pretendesse passar muito tempo na região, não acharia má idéia passar uma ou duas semanas na floresta. Poderia aniquilar Brice Scirvayne depois de ter desfrutado um interlúdio pacífico, sem as provocações dos irmãos, ou as atenções indesejadas do povo de Baddersly. Simon sorriu para si mesmo. Ali, certamente, ninguém questionaria suas idas e vindas. Seus hábitos não despertariam o menor interesse dos arqueiros e mineiros que viviam na floresta. Satisfeito com tal noção, ele se encaminhou para o centro da clareira. Infelizmente, descobriu estar enganado poucos instantes depois. Quando os homens de Bethia dirigiram-lhe olhares hostis, Simon decidiu que preferia aquela hostilidade à intimidade que permitia às pessoas discutirem a sua vida, ou sua saúde. Simplesmente, ignorou-os e acabou de atravessar a clareira, à procura de um bom lugar para o túnel. Depois de trocar opiniões com o menos taciturno dos mineiros, escolheu uma fundição abandonada, cuja localização era bem protegida pela vegetação 72

densa, próximo a Ansquith. Os homens de Brice evitavam ao máximo a floresta, bem como o bando que vivia ali. Além disso, o local escolhido ficava distante da estrada. Seria um trabalho duro cavar um túnel sob a colina que separava a floresta da mansão, mas os homens começaram imediatamente, sem nenhuma queixa. A satisfação que Simon experimentou por aquele bom começo não durou muito, pois Bethia logo se pôs a questioná-lo: — O que pensa que está fazendo? — ela inquiriu, cruzando os braços e assumindo uma postura rebelde. Embora estivesse vestida como homem, o traje limpo era bem mais atraente do que as roupas imundas da véspera. Simon examinou-a com certo prazer. Quando um raio de sol iluminou-lhe a trança dourada, ele encontrou dificuldade em se concentrar nas palavras que ela dizia. O que ele estava fazendo? — Estou supervisionando as escavações — respondeu com os olhos fixos nos cabelos loiros. Bethia interrompeu-lhe a observação agradável, puxando-o pelo braço, até o abrigo de um carvalho. — E o que o faz pensar que pode, simplesmente, chegar aqui e começar a dar ordens? — Porque a idéia foi minha e sou o único por aqui com experiência em táticas de guerra — ele retrucou, ligeiramente irritado. Em vez de se mostrar intimidada, Bethia sustentou-lhe o olhar. — Sim, mas eu estou no comando desses homens e você não pode esperar que eu mantenha minha posição de liderança, se passar por cima da minha autoridade. Autoridade? Simon reprimiu uma gargalhada. — Estou acostumado a estar no comando — disse, esforçando-se para manter a expressão impassível. — Em outros lugares, talvez, mas gostaria de lembrá-lo de que, aqui, você já foi amarrado por ordem minha. Simon amaldiçoou o rubor que tomou conta de suas faces. — Já disse que essa operação é minha, Bethia. Ou prefere que eu traga meus homens para fazerem o trabalho? — Não se atreveria! — ela exclamou, indignada. — Tenho autoridade sobre esse impasse. — E como determinou isso, se é da minha casa que estamos falando? — Trata-se de uma questão a ser resolvida pelo senhor de Baddersly. — Mas é meu pai quem foi feito prisioneiro! — E sou eu quem vai libertá-lo — Simon declarou, inabalável. Não se curvaria a mulher alguma, mesmo a uma cuja capacidade ele admirava e respeitava. Com ou sem a cooperação de Bethia, ele derrotaria Brice e devolveria Ansquith a seu verdadeiro dono. Com um suspiro exasperado, ela abaixou a cabeça e pressionou as mãos contra as pernas, chamando atenção de Simon para aquela parte de seu corpo. Músculos. Ele pensou nos que descobrira e, também, naqueles que ainda não conhecia. A imagem de coxas firmes e de uma pele macia e acetinada, provocou-lhe nova onda de rubor. — Muito bem — Bethia falou. — Permitirei que controle as escavações, mas insisto que não traga seus homens para cá. Simon não se esforçou para esconder a impaciência. — E se Brice ordenar aos homens dele que cavem um outro túnel, que chegue ao nosso, e que nos surpreendam em combate? Seus homens são mineiros, não soldados. Não quero vê-los lutando debaixo da terra. — E por que isso aconteceria? Se você não trouxer seus homens para cá, como Brice vai desconfiar do que estamos fazendo? — Bethia argumentou. — Até agora, tudo o 73

que ele sabe é que você o convocou para uma audiência, em Baddersly. Brice não faz idéia de que ainda estou viva, faz? Fitou-o com olhar desconfiado. — Como posso saber? É você quem conhece o seu ex-noivo. O tom amargo com que Simon pronunciou as palavras surpreendeu a ambos. Por um longo momento, permaneceram imóveis, em silêncio. Então, Simon reconheceu que Bethia estava certa. Uma vez que Ansquith não fora ameaçada, Brice nem imaginaria estar correndo o risco de sofrer um ataque. E somente uma pessoa com profundos conhecimentos daquelas técnicas perceberia que o leve tremor da superfície da água colocada em uma jarra, no chão da mansão, significava que alguém estava cavando o subsolo. Mais tarde, quando estivessem prontos para a invasão, Simon levaria um grupo cuidadosamente escolhido de soldados. Enquanto isso, Bethia tinha razão. Quanto menos gente soubesse da existência do túnel, maiores as chances de a operação continuar em segredo. — Está bem — concordou. — Por enquanto, trabalharemos apenas com os seus homens, mas quando chegar o momento, usarei soldados experientes, não mineiros, para atacar Brice. Mostrando-se profundamente insatisfeita, apesar de ele haver cedido, Bethia empinou o queixo. — E eu usarei meus arqueiros — declarou. A idéia de ver Bethia envolvida em uma batalha não o agradava nem um pouco, mas ele conteve o impulso de discutir, dizendo a si mesmo que teria tempo de sobra para convencê-la do contrário. Então, sorriu. — Antes de mais nada, seus mineiros precisam abrir o túnel para nós — disse. Ela lhe lançou um olhar pelo canto do olho, deixando claro ter percebido que ele não concordara com sinceridade. — Então, estamos de acordo? — perguntou, decidindo fazer o jogo dele. — De acordo — Simon afirmou, apesar de não ter o hábito de mentir ou fingir. Com um breve aceno de cabeça, Bethia afastou-se e Simon sentiu uma pontada de pesar por ver a discussão acalorada terminar tão depressa. — Nesse caso, vai me dar licença, pois tenho assuntos a resolver — ela disse com voz calma e controlada. Por um momento, Simon pensou em gritar com ela, somente para trazer de volta a paixão escondida atrás da máscara de frieza que ela usava. Porém, limitou-se a observá-la partir, perguntando-se se Bethia realmente tinha assuntos a resolver, ou se estaria apenas ansiosa para livrar-se da companhia dele. Descartou tal pensamento, convencido de que ela não tinha qualquer motivo para querer evitá-lo. Nenhum motivo, repetiu para si mesmo, enquanto seus olhos mantinham-se fixos nos quadris que ondulavam com sensualidade, à medida que ela desaparecia entre as árvores. Virou-se e deparou-se com uma figura bem menos atraente. Um homem de cabelos e barba grisalhos encontrava-se parado bem perto dele. Apesar da idade avançada, o sujeito empunhava uma pá, embora não parecesse disposto a escavar. — Gostaria de lhe dirigir apenas uma palavrinha, milorde — o homem disse. Simon teria preferido seguir Bethia, mas concordou e o mineiro enterrou a pá no chão. — Estamos muito gratos por sua ajuda, milorde, mas juntamente com os agradecimentos, eu gostaria de lhe dar um aviso. Os músculos de Simon ficaram imediatamente tensos e ele olhou em volta, à procura da presença de assaltantes. Porém, não havia mais ninguém por ali. — Não quero lutar contra o senhor, milorde — o homem explicou, apressado. — Só quero avisá-lo para ter cuidado com Bethia. O pai dela não está aqui, mas ela tem muitos 74

amigos… e defensores. Simon pensou em perguntar exatamente onde estavam camaradas tão corajosos, enquanto Bethia passeava pela aldeia, usando barba e roupas sujas de homem, mas tratou de guardar para si a própria opinião da inconseqüência dela. — Está me ameaçando? — inquiriu. O homem soltou uma risada. — Não, milorde, mas vi como olha para ela. É melhor cuidar de seus assuntos e deixar Bethia em paz. Indignado, Simon ergueu um punho, mas o homem já se afastava. Em vez de esmurrar o sujeito, bateu contra a própria mão. Ora, e ele imaginara que, ali, estaria livre de intrometidos! Começava a parecer ser o seu destino viver atormentado por eles e Simon começava a se cansar de tantas invasões em sua privacidade. — Pode ir, velho — resmungou —, mas Bethia é assunto meu! Simon ainda não mudara de idéia quando, à noite, alguns dos trabalhadores se reuniram para uma refeição simples. Passara a maior parte do dia escavando e, fosse pelo esforço físico, ou pelo fato de Bethia encontrar-se presente e observá-lo com seu ar desconfiado, seu apetite voltara a ser igual ao de um leão. Uma mulher mais velha, inclinada sobre um caldeirão, cortava filões de pão ao meio e recheava-os com um tipo de ensopado. Ao contrário da comida servida no salão de Baddersly, aquela fumegava, e Simon deliciou-se com o aroma apetitoso da carne de carneiro. Comeu três porções, seguidas de pêras cozidas, enquanto Bethia, sentada no ponto mais distante que conseguira encontrar, mordiscava a comida sem o menor entusiasmo. — Você deveria comer mais. Sua cozinheira é ótima — Simon falou, provocandolhe um sobressalto. — Não estou com fome — ela replicou, estendendo os restos de seu jantar para um arqueiro sentado a seu lado. A princípio, a falta de apetite de Bethia provocou uma reação de divertimento em Simon. Mas ele logo considerou que ela poderia estar sofrendo do mesmo mal que o atacara, como Florian sugerira. Vendo que ela se levantava e se afastava, Simon seguiua, consciente dos olhares contrariados dos homens que os observavam. — Eu não esperava que você jantasse conosco — ela disse, assim que se viram sozinhos. — Já é tarde. Quer que um guia o leve de volta à estrada? — Conheço muito bem o caminho — Simon retrucou —, mas não irei embora esta noite. Os olhos dela se arregalaram e ele sentiu uma pontada de irritação. Por que Bethia não conseguia confiar nele? Teve vontade de segurá-la pelos ombros, sacudi-la e… — Não acha que, se não retornar a Baddersly, sua ausência poderá levantar suspeitas? — Que tipo de suspeitas? Ora, onde ele poderia encontrar suspeitas maiores do que aquelas que via nos olhos de Bethia? Pouco se importava com o que os residentes do castelo pensassem, pois não devia satisfações a ninguém. Além do mais, não planejava retornar a Baddersly todos os dias, passando assim a maior parte do tempo na estrada. Estreitou os olhos, estudando-a com pesar, pois ao que parecia, era justamente esse o desejo dela. Praguejou baixinho e segurou-a pelos ombros. Tinha muito a dizer para aquela mulher, mas as palavras pareciam presas em sua garganta. Fitou-a nos olhos, ao mesmo tempo que sentiu as mãos queimarem pelo contato com ela. — Precisa confiar em mim — falou, por fim. — É difícil — Bethia sussurrou em resposta. Um silêncio intenso formou-se entre eles, enquanto limitavam-se a fitar os olhos um do outro, em um reconhecimento mútuo de que algo crescia entre eles. — Bethia! 75

O momento foi interrompido por alguém chamando por ela. Simon voltou a praguejar, enquanto ela se virava para quem falara. Era Firmin, o arqueiro que não gostava de obedecer ordens. Simon levou a mão ao cabo da espada, assim que se deparou com a hostilidade nos olhos do outro. — Estamos montando acampamento para esta noite — Firmin dirigiu-se a Bethia, ignorando a presença de Simon. — Já preparei um lugar para você, no abrigo da mina. — Obrigada — ela agradeceu com voz ligeiramente ofegante. — Por favor, providencie acomodações para Simon. — Não temos cobertores extras — Firmin declarou, fitando o cavaleiro com verdadeiro ódio. Simon sustentou-lhe o olhar com firmeza, até que o arqueiro virou-se. — Não preciso de nada — disse, então. Porém, quando virou-se e observou Bethia afastar-se, perguntou-se se suas palavras eram mesmo verdadeiras. Enquanto os mineiros trabalhavam, ao longo das semanas que se seguiram, Simon juntava-se a Bethia na vigilância da floresta e, às vezes, em assaltos aos homens de Brice, tornando-lhes o que o patife usurpara. Embora visitasse Baddersly com freqüência, Simon recusava-se a se demorar por lá, pois não suportava a idéia de ficar longe de Bethia. Ela era diferente de todas as mulheres que Simon conhecera, dona de um espírito forte, bem como de um corpo resistente. Evidentemente, sua força não chegava aos pés da de Simon, mas ela não teria a menor dificuldade, se confrontada pelos homens de seu bando. Não se comportava como a maioria das mulheres, que tremiam e choravam diante de situações difíceis. Possuindo a inteligência de um homem, planejava suas estratégias a fim de atingir objetivos bem definidos, embora às vezes, sua ousadia deixasse Simon furioso. Não fazia uso de seus atributos femininos, mas mantinha uma distância que fazia Simon sentir-se tranquilo com relação à segurança dela e, ao mesmo tempo, o desencorajava de qualquer tentativa de aproximação. As ordens dadas por Bethia eram claras e objetivas, sem sofrerem a interferência da tagarelice comum às outras mulheres. Na verdade, Bethia falava pouco e, nisso, assim como em muitos outros aspectos, era como se fosse um homem dentro de um corpo feminino. E Simon tornava-se mais consciente daquele corpo a cada dia, pois seus olhos a seguiam sem trégua, por mais que ele tentasse desviá-los. O controle que ele sempre exercera sobre o próprio corpo, e do qual sempre se orgulhara tanto, abandonava-o nos momentos mais inesperados. A lembrança dos músculos de Bethia fazia a garganta de Simon secar, além de provocar reações ainda piores em outras partes de seu corpo. Em outras circunstâncias, Simon teria procurado por uma prostituta para aplacar as chamas que lhe consumiam as entranhas. No entanto, tal solução já não lhe parecia agradável. Na verdade, a simples idéia era uma afronta a Bethia, como se tal comportamento fosse ofender-lhe a presença altiva. Até mesmo a lembrança de relacionamentos passados, embora não houvessem representado nada além de transações comerciais, passara a ser encarada por Simon com reservas, provocando-lhe um sentimento parecido a arrependimento. Era Bethia quem ele desejava e mulher nenhuma poderia substituí-la. Ainda assim, Simon tinha de negar a si mesmo a satisfação de tal desejo. Apesar de viver fora dos domínios da lei, ela não era do tipo que aceitava dinheiro em troca de favores. Tudo levava a crer que Bethia era uma mulher decente, cujo destino colocara sob a proteção de Baddersly e seus senhores. Além disso, era a única mulher que Simon admirara e, portanto, não deveria se tornar objeto de seus desejos. Por isso, ele se dirigia com freqüência ao riacho que cortava a floresta e banhava-se em suas águas geladas. Afinal, o que mais poderia fazer para apagar o fogo que o consumia? 76

Infelizmente, apesar de todos os esforços em contrário, o interesse de Simon por Bethia atingiu um pico quando os dois assaltaram um carregamento de suprimentos, a caminho de Ansquith. Em uma operação rápida, haviam roubado especiarias e tecidos vindos de Londres, deixando os homens de Brice furiosos e impotentes. Fora uma manobra arriscada, pois eram apenas eles dois. Por isso mesmo, a sensação de vitória era embriagante. Para Simon, porém, mais excitante ainda era a visão de Bethia, sorridente e entusiasmada, corada pelo esforço de arrastar o produto do roubo pela floresta. Quando finalmente pararam para descansar, protegidos pela mata densa, Bethia estava tão perto de Simon que sua trança dourada roçou-lhe o peito. Imediatamente, Simon foi tomado por uma necessidade incontrolável de tocar-lhe os cabelos, sentir-lhes a maciez, de ter aquela mulher de uma maneira que jamais possuíra mulher alguma antes. Incapaz de controlar-se, estendeu a mão e satisfez o primeiro de seus desejos, emitindo um longo suspiro. Quando ergueu os olhos para fitá-la, deparou-se com a expressão surpresa, as faces coradas, e puxou-a para si. Bethia possuía a força física necessária para impedi-lo e Simon teria se curvado à resistência dela. Mas ela não protestou. Embora os lábios carnudos tivessem a chance de dizer não, eles apenas se entreabriram em um convite irresistível. Então, Simon beijou-a. Nunca fora dado a beijos, pois seus encontros com mulheres limitavam-se aos detalhes mais básicos de tal relacionamento, mas Bethia era diferente. Sentiu o sangue ferver nas veias, sacudindo todo o seu corpo com violência, e perdeu a consciência de tudo o que não fosse a mulher em seus braços, quando ela colou o corpo ao dele. Com um gemido satisfeito, beijou-a com intensidade renovada, sendo recompensado pela retribuição sem reservas de Bethia. Beijou-a até que ambos ficassem ofegantes, até sentir o coração prestes a explodir… até seu corpo clamar pela satisfação do desejo que ameaçava aniquilá-lo. A excitação que o invadiu parecia-se com aquela que precedia uma batalha, mas era ainda melhor, pois essa batalha envolvia apenas os dois. E, quando suas mãos deslizaram pelo corpo de Bethia, na intenção de apertá-la ainda mais, ela se desvencilhou do abraço, afastando-se rapidamente. Atordoado pela paixão intensa que jamais se apoderara dele antes, Simon demorou a compreender o que se passava. Bethia fitava-o com olhar ardente, os lábios inchados e molhados, o peito arfante. Ora, se ela também o desejava com tamanha intensidade, por que haviam se separado? Simon tentou puxá-la para si, mas Bethia pousou as mãos firmes em seu peito, impondo distância. — Não — sussurrou com certo esforço, apesar da forte determinação. — Isso nunca poderá acontecer entre nós. Antes que Simon tivesse a chance de protestar, Bethia virou-se e desapareceu entre as árvores, deixando-o entregue à maior frustração que já sentira.

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CAPITULO X

Embora detestasse admitir, Bethia continuava abalada, um dia inteiro depois do beijo que Simon lhe dera. Apesar de esforçar-se para tirar o incidente da memória, era invadida por uma intensa onda de calor, quando menos esperava. Mesmo agora, enquanto separava a palha seca da fresca, Bethia sentia as mãos trêmulas. Com um gemido zangado, olhou fixamente para os próprios dedos, irritada consigo mesma. Não poderia permitir que ele a afetasse daquela maneira. Se cedesse à tentação, tudo estaria perdido. Sua luta até então fora árdua e longa demais para ela abrir mão de tudo pelos duvidosos prazeres da carne. Disse a si mesma que era mais forte do que os instintos que a perturbavam e que só teria de resistir até que o túnel estivesse terminado. Então, derrotaria Brice, recuperando Ansquith e libertando o pai. Depois disso, desfrutaria da liberdade que conquistara com tanto sacrifício, sem as restrições impostas por homem nenhum, inclusive Simon de Burgh. Respirando fundo, fechou os olhos, a fim de recuperar o controle. Após um longo momento, voltou a abri-los e, constatando que suas mãos haviam recuperado a firmeza habitual, retomou sua tarefa com vigor renovado, convencida de que o trabalho ajudaria a manter a decisão tomada. Depois do que acontecera na véspera, Bethia concluíra que trabalhar, comer e dormir com Simon de Burgh, mesmo que passassem a maior parte do tempo cercados por seus homens, não era uma boa idéia. Por isso, assumira a tarefa de reformar uma cabana de mineiros abandonada, na esperança de que, uma vez contando com um lugar só para si, conseguiria livrar-se da tentação apresentada pelo corpo forte de Simon e, assim, retomar seus propósitos. A privacidade seria bem-vinda, uma vez que os últimos dias, passados na companhia de seus seguidores, haviam sido tensos. Embora alguns aceitassem a presença de Simon, muitos ainda resistiam a ele. E ainda havia outros, como Firmin, que nem sequer se esforçavam para disfarçar o desagrado. Passavam o tempo todo a cercála, como se a estivessem protegendo contra um inimigo, o que a sufocava, erguendo barreiras que Bethia acreditara ter superado havia muito tempo. Graças a Simon, o fato de ela ser mulher voltara a ser uma questão importante, pondo em risco o respeito que a mantivera no comando até então. Deve confiar em mim, ele dissera. Ora, Bethia já tivera provas de que Simon se comportaria como qualquer outro homem, na tentativa de seduzi-la. Os outros não se atreveriam, pois temiam a força e a habilidade de luta que ela possuía. Mas Simon, não. Ele não tinha medo de nada, muito menos de Bethia, pois provara ser capaz de vencê-la. Tal pensamento provocou-lhe um súbito tremor, não só de indignação, mas também de excitação. Chocada consigo mesma, ela se sentou no colchão de palha, sacudindo a cabeça. Tinha de encontrar um meio de forçar sua mente a parar de produzir tais idéias. Não tinha qualquer ilusão com respeito ao que lordes como Simon de Burgh queriam das mulheres, e não tinha a menor intenção de acabar como concubina de alguém, um objeto de desprezo, sem nome, nem poder. A independência, bem como a riqueza necessária para garanti-la, era tudo o que importava. Não poria tudo a perder por alguns momentos de paixão. O som de passos do lado de fora da cabana arrancou-a de seus pensamentos e Bethia pôs-se de pé rapidamente. Já estendia a mão para o arco, quando ouviu seu nome sendo chamado em tom de urgência. Com passos cuidadosos, foi até a porta aberta e parou, horrorizada, ao deparar-se com Simon de Burgh, inconsciente, sendo carregado por dois de seus homens. Emitindo um som de aflição, Bethia ficou ali parada, olhando fixamente para o corpo inerte do poderoso cavaleiro, incapaz de acreditar no que via. A raiva que sentira 78

dele poucos momentos antes deu lugar a uma torrente de emoções impossíveis de definir. Estaria morto? Ou prestes a morrer? Tal possibilidade despertou-a do torpor, colocando-a em ação. — O que aconteceu? Onde ele está ferido? — Bethia perguntou com voz aflita. — Ah, não há nada além de um galo na cabeça, eu acho — disse Will, um aldeão corpulento que ajudava os mineiros. — Ele foi atingido por uma pá. — Uma pá? — ela repetiu, incrédula. — Ele não deveria ficar tão perto de Firmin — o outro homem comentou, dando de ombros. Uma onda de fúria varreu o corpo de Bethia e ela lançou um olhar ameaçador para os dois. Suspeitou que o ferimento de Simon não acontecera por acidente e, se fosse assim, a retribuição seria imediata. Na verdade, a atitude impensada e desprezível de um único homem poderia colocar em risco todo o bando. Diante da expressão de Bethia, os dois desviaram os olhares. Então, ela fez um sinal para que entrassem na cabana. As muitas perguntas que ela tinha a fazer teriam de esperar. — Acomodem-no no colchão e ajudem-me a livrá-lo da armadura e da espada — ordenou com frieza. — Mas pensamos que esta cabana era só sua — Will protestou. — E é — ela se limitou a afirmar em um tom que não deixava lugar para discussão. — Ele vai ficar bem — o outro mineiro garantiu, ao colocar Simon no colchão de palha. — É melhor começarmos a rezar para que isso aconteça — Bethia falou, esforçando-se para manter o controle. — Pois, se o senhor de Baddersly, irmão do Lobo de Wessex e filho do conde de Campion, morrer aqui, Brice Scirvayne será a nossa menor preocupação. Empalidecendo, Will assentiu em concordância, enquanto o companheiro se retirava às pressas, provavelmente a fim de comunicar a Firmin o possível preço de sua insensatez. Não pela primeira vez, Bethia lamentou o fato de ser ela a única capaz de enxergar além das conseqüências imediatas de seus atos. Sacudindo a cabeça, concentrou a atenção em Simon e voltou a ficar chocada pela visão do cavaleiro invencível prostrado à sua frente. Mesmo quando fora amarrado por ordem dela, o espírito indomável se mantivera evidente. Na ocasião, ele a fizera lembrarse de um animal acorrentado, arisco e pronto para o ataque, caso tivesse a mínima chance. Agora, porém, era diferente. Agora, o corpo forte apresentava-se inerte, os olhos fechados, os cabelos despenteados. Com gestos cuidadosos, Bethia pousou a mão sobre o peito dele e respirou aliviada ao sentir-lhe as batidas regulares do coração. Então, hesitou, sentindo as mãos trêmulas, mas tratou de afastar os receios, pois só havia um meio de determinar a extensão dos ferimentos que ele havia sofrido. Teria de tocá-lo. Levou as mãos à cabeça de Simon, estremecendo ao constatar que os cabelos escuros eram mais macios que a mais fina das sedas. Respirou fundo e inclinou-se, apalpando delicadamente o couro cabeludo, até encontrar o ponto onde ele fora atingido. Naquele momento, Simon gemeu e Bethia voltou a se afastar, a fim de encará-lo. — Simon, está me ouvindo? Está ferido em algum outro lugar? Em vez de responder, ele se limitou a gemer novamente, o que abalou a calma e o controle de Bethia. Preocupada, deslizou as mãos pelos ombros e braços de Simon e, então, suspendeu-lhe a túnica. O peito largo era coberto por pêlos negros e encaracolados. Bethia examinou cada centímetro de pele, mas não encontrou qualquer marca recente, apenas cicatrizes antigas. Cedendo aos temores que a perturbavam, colou o rosto ao peito de Simon, a fim de se certificar de que o coração dele continuava batendo. Sobressaltou-se ao descobrir que as batidas haviam aumentado o ritmo, assim como a intensidade. Além disso, a pele 79

dele parecia estar se tornando mais quente a cada instante. Estaria com febre? Erguendo a cabeça, Bethia tentou reprimir o pânico, mas foi em vão. Enquanto isso, suas mãos frenéticas percorriam as pernas de Simon, à procura de outros ferimentos. Quando ele voltou a gemer, ela ficou imóvel. Apenas seus olhos se moviam, em uma busca desesperada pela fonte da dor que o atormentava. — Onde dói? — perguntou, embora não esperasse ouvir uma resposta. Seus olhos continuaram a examinar o corpo musculoso, até pousarem em um ponto, junto às virilhas, onde algo parecera ter crescido subitamente. As suspeitas que Bethia tinha de que seu paciente não sofrera nenhuma fratura, ou hemorragia, cresceram juntamente com o volume sob a roupa dele. Franzindo o cenho em uma expressão zangada, olhou para o rosto de Simon e descobriu que ele a observava com interesse ávido. — Felizmente, sua cabeça dura foi a única parte a sofrer um ferimento — declarou, furiosa. — Mas sinto dores em outro lugar — Simon murmurou com voz rouca. — Sim, pobre Simon. Já vi onde está o seu maior problema. Ele soltou uma risada, deixando-a ainda mais enfurecida. — Sei como você pode aliviar o meu sofrimento — declarou. — Como? — Bethia inquiriu, embora soubesse exatamente o que ouviria. — Beije-me, Bethia. Garanto que minha dor vai passar. Emitindo um som que era um misto de ultraje e divertimento, provocados pela audácia do cavaleiro, geralmente taciturno, Bethia tentou ignorar a imagem que se formou em sua mente. Viu-se despindo-o e tocando-o de maneiras que jamais sequer haviam lhe passado pela cabeça. Aquele corpo esplêndido a tentara desde a primeira vez em que ela o vira, mas, agora, o homem que o possuía a atraía ainda mais que os músculos vigorosos. Ao longo das últimas semanas, Bethia passara a conhecer e respeitar Simon de Burgh. Apesar da arrogância e da teimosia irritante, a franqueza dele era admirável. Guerreiro habilidoso, ele possuía inteligência rara, que o tornava ainda mais formidável. E, ainda, Simon era um verdadeiro cavaleiro, que lutava pela justiça, sem levar em conta os próprios interesses. Ele não só se juntara a Bethia na luta contra o inimigo dela, mas também escolhera cuidadosamente a melhor estratégia de ataque, esperando pelo momento certo, mesmo que isso fosse contra a sua natureza. Você deve confiar em mim. Sobressaltada pela descoberta, Bethia deu-se conta de que confiava nele. Em algum ponto daqueles longos dias e noites, passara a acreditar em Simon de Burgh. A constatação chegava a ser assustadora e ela se pôs de pé, apressada, como se quisesse fugir daquela verdade. Voltando a fitá-lo, Bethia também descobriu que seus sentimentos com relação a ele tornavam-se maiores, mais intensos… alarmantes. Mesmo que Simon não dissesse, nem fizesse, nada para encorajá-la. Ele continuava deitado, com a túnica erguida, o peito exposto, observando-a com olhos semicerrados. E Bethia foi invadida por um desejo intenso de deitar-se com ele. Emitiu um gemido desesperado, pois suspeitava que por trás da aparência dura escondia-se um homem de grande poder, bondade e paixão. Infelizmente, Bethia não era o tipo de mulher que se entregaria a qualquer homem. Não arriscaria a própria independência, ou uma possível gravidez, por um momento de prazer, por maior que fosse a tentação. Embora fosse obrigada a usar de toda a força de vontade que possuía, deu as costas a Simon, assim como a tudo o que ele lhe oferecia. — Não sou uma criada ansiosa para fazer qualquer coisa a fim de agradar o seu senhor — declarou, saindo da cabana, sem olhar para trás.

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Simon voltou a deitar-se, com um gemido. Queria se levantar e sair em busca de Bethia, mas ainda se sentia fraco e atordoado. E, também, não sabia o que dizer a ela. Não fazia idéia do que o levara a provocá-la com tamanha ousadia. E a reação de Bethia, certamente, não fora o que ele havia esperado. Mas… o que esperava, afinal? Simon estava confuso demais para perseguir a resposta. Ocorreu-lhe que, talvez, fosse o ferimento na cabeça que o houvesse levado a dizer coisas que jamais pensara em dizer a uma mulher, a querer coisas que jamais quisera com mulher alguma. Frustrado, ergueu-se sobre um cotovelo e voltou a gemer, pois sua cabeça começou a latejar. Por alguns momentos, a dor do desejo o distraíra, mas agora, não haveria como ignorar o ferimento. Ergueu uma das mãos e apalpou o couro cabeludo, até encontrar um grande calombo, bem como um pouco de sangue. Como já sofrera por ferimentos mais graves, cerrou os dentes e forçou-se a se pôr de pé. A cabana girou, mas ele apoiou uma das mãos na parede e esperou a sensação de tontura passar. Sentiu-se muito mal, mas não eram os sintomas comuns a uma grande perda de sangue, ou um golpe perigoso. Tratava-se de algo diferente, desconhecido, que se instalara dentro dele. Esfregou o peito com a mão, como se procurasse por um outro ferimento. Como não encontrasse, abaixou a túnica e encaminhou-se para a porta. Não encontrou o menor sinal de Bethia e sentiu o rubor já familiar subir pelo pescoço, ao darse conta de que ela o deixara. Fora rejeitado. O que era uma experiência totalmente nova, pois Simon nunca se oferecera a ninguém antes. Ao contrário da maioria de seus irmãos, ele jamais flertava, ou cortejava uma mulher e, por isso, o sentimento de perda que o invadiu era inexplicável. Simplesmente, não sabia o que fazer com aqueles sentimentos que o vinham perturbando, ultimamente. Talvez o golpe na cabeça estivesse provocando aquele comportamento bizarro. Ou, então, talvez Florian tivesse razão ao afirmar que Simon contraíra alguma doença. O ferimento recente poderia ter apenas exacerbado os sintomas. A idéia deixou-o alarmado e ele se afastou da cabana, embrenhando-se na mata. Se estava mesmo doente, deveria procurar alguém que pudesse curá-lo. Até mesmo os conselhos do administrador intrometido e tagarela pareciam interessantes agora, uma vez que Simon não compreendia a dor que tomara conta de todo o seu ser, e que nada tinha a ver com o ferimento na cabeça. De repente, pensou em Baddersly como um lar, onde ele poderia recuperar a força, antes de retornar e supervisionar os progressos das escavações. Ignorando a imagem que se formou de súbito em sua mente, de um cachorro voltando para casa, com o rabo entre as pernas, seguiu para vila, a fim de apanhar seu cavalo. De lá, cavalgaria até Baddersly, decidiu, sem sequer suspeitar da inquietação provocada por sua ausência prolongada do castelo. — Já faz mais de uma semana! — Florian protestou, encarando um por um, dos três cavaleiros que haviam se reunido com ele no solar. — Não faz tanto tempo que lorde de Burgh deixou o castelo — Quentin contemporizou. — Das outras vezes, foram alguns dias, mas desta, já faz mais de uma semana — o administrador insistiu. — Não posso deixar de me preocupar, especialmente considerando o estado de saúde delicado que ele vinha apresentando. — Para não mencionar os salteadores — disse Thorkill que, em pleno vigor da juventude, era o mais ansioso para lutar pelo lorde desaparecido. — Mesmo assim, não creio que seja sensato sairmos à procura dele — Leofwin argumentou, antes de morder o queijo que levara consigo à reunião. O cavaleiro corpulento deixava sempre um rastro de farelos atrás de si e, por isso, dois cães haviam passado a segui-lo onde quer que ele fosse. Para aquela reunião, 81

Florian vira-se forçado a fechar a porta, a fim de deixar os cães do lado de fora. O administrador atirou as mãos para cima, em um gesto de reprovação, dirigido tanto aos hábitos alimentares de Leofwin, quanto à declaração que ele acabara de fazer. — Não podemos ignorar o desaparecimento dele. O que o Lobo dirá? Não quero nem pensar na reação dele se perdermos seu irmão! Embora não conhecesse Dunstan de Burgh pessoalmente, Florian sabia que os três cavaleiros já o haviam encontrado e tinha a esperança de que a ameaça representada pelo Lobo os forçaria a agir. Porém, os três limitaram-se a trocar olhares estranhos, comportando-se de maneira muito diferente do que Florian esperava. — Talvez devêssemos enviar uma mensagem ao Lobo e aguardar as ordens dele — Leofwin resmungou. Quentin limpou a garganta, produzindo um som de evidente discordância, justamente quando se aproximavam de um acordo. Florian suspirou, impaciente, dizendo a si mesmo que o mais velho daria tudo para ficar no castelo, sossegado. — A verdade é que ouvi rumores sobre as andanças de lorde Simon — Quentin explicou, com um sorriso constrangido. — E por que não disse nada? — o administrador inquiriu, indignado. — Achei que não cabia a mim comentar — o cavaleiro respondeu sem jeito. — Ele foi visto na cervejaria, em atitude… um tanto suspeita, na companhia de um velho. Florian arregalou os olhos ao ouvir tal insinuação. — Posso garantir que Simon de Burgh não gosta dessas coisas! — protestou. Thorkill franziu o cenho. — Quem era esse velho? — perguntou. — E por que foram se encontrar na cervejaria? — Ninguém sabe, ou então, não quiseram me contar — Quentin respondeu. — Muito misterioso — Leofwin murmurou. — Pare de cuspir queijo quando fala! — Florian repreendeu-o, embora sua irritação houvesse sido provocada muito mais pela atitude de Thorkill. — Talvez ele tenha sentido a saúde piorar e foi à procura de uma curandeira — sugeriu o mais jovem. — Na cervejaria? — Florian indagou com voz estridente, arrancando uma risada de Quentin. Thorkill corou. — Ele poderia estar pedindo informações sobre alguma curandeira da vila — arriscou. — Ou, então, estava apenas bebendo uma cerveja! — Leofwin decretou. — Não — o administrador murmurou, certo de que Simon de Burgh não freqüentaria aquele tipo de lugar, sem um bom motivo. — Gostaria de descobrir exatamente o que aconteceu quando ele foi tomado prisioneiro, na floresta. Algo me diz que essas ausências misteriosas estão ligadas ao que aconteceu então. — Os homens dele se recusam a tocar no assunto — Quentin lembrou, sacudindo a cabeça. Florian franziu o cenho, pois ele também falhara na tarefa de obter maiores informações sobre o incidente. Ao menos, sabia que Quentin estava enganado com relação às preferências de Simon, pois tinha certeza de que o lorde interessava-se por mulheres. Na verdade, seria capaz de apostar que uma certa mulher morta, que poderia não estar morta, era a causa de todo o mistério. Mas onde entrava Brice Scirvayne, exnoivo, naquela história? Como peças de xadrez sobre um tabuleiro, Florian enxergava tudo, mas não conseguia estabelecer seus lugares corretos, ou sua relação com o lorde de Baddersly. Parecia faltar uma peça do quebra-cabeças. — Bem, vejo que teremos de arrancar essa história de alguém — falou, pensativo. — Se ao menos, conseguíssemos conversar com um dos salteadores… 82

Quentin emitiu um som deselegante, descartando a idéia, deixando Florian vermelho de raiva. Ora, como aqueles homens se autodenominavam cavaleiros? Deveriam estar protegendo o seu senhor, em vez de resmungar, como um bando de velhas! — Bem, então, por que não tentam a vila? Alguém deve saber de alguma coisa! — Muito bem — Quentin finalmente concordou. — Mas não envie mensagem nenhuma ao Lobo, por enquanto. Dunstan de Burgh pode nao gostar de ser incomodado por uma busca fútil. Seria tolice sair à procura de Simon? Florian não saberia dizer. Não o agradava a idéia do irmão do senhor do castelo desaparecer sem dizer nada. Preocupava-se com o que poderia acontecer, pois parte de seu trabalho era garantir que tudo corresse bem por ali. E havia algo errado com Simon de Burgh. Era evidente que o lorde não estava feliz, embora merecesse estar. Um sorriso curvou os lábios de Florian. Se houvesse algo que ele pudesse fazer, o grande cavaleiro se tornaria um homem contente e satisfeito. E o administrador fazia uma boa idéia de quem poderia providenciar isso. Bethia passou o dia inteiro sozinha, longe do acampamento. Evitou os homens que vigiavam a floresta e caçou pequenos animais, esforçando-se para manter afastadas da mente as lembranças do corpo de Simon de Burgh, bem como de seus comentários ousados. O que não era fácil. As palavras dele certamente teriam ofendido qualquer outra mulher, mas haviam acendido dentro dela uma chama impossível de apagar. Desde que deixara a casa do pai para viver com a tia, Bethia levara uma vida praticamente assexuada, no papel de pouco mais que uma criada. Embora alguns visitantes manifestassem o desejo de serem servidos por Bethia de maneiras diferentes, Gunilda tratara de mantê-la bem longe dos homens, temendo perder os serviços da sobrinha. Ao voltar para casa, Bethia fora atirada para Brice, cuja aparência atraente fora logo manchada pelo caráter desprezível. Porém, mesmo antes de descobrir quem ele realmente era, Bethia não sentira nada. E nenhum dos homens que se juntara a seu bando jamais lhe despertara o menor interesse. Fora somente ao conhecer Simon de Burgh que as chamas havia muito apagadas haviam tomado vida. Por quê? Por que uma única pessoa possuía o dom de alterar a percepção de Bethia, bem como seus desejos e seus princípios? E por que aquele homem tinha de ser alguém de quem ela precisava para atingir seus objetivos, alguém que ela tinha de ver todos os dias, trabalhando nas mesmas tarefas, e agradecer pela ajuda? Alguém que fora atingido com uma pá na cabeça, por ser quem era. Com um suspiro exasperado, Bethia finalmente cedeu à preocupação que tentara reprimir ao longo do dia. Já estava quase na hora do jantar e ela tratou de chegar mais cedo, a fim de poder conversar em particular com Merieí, a viúva que cozinhava para o bando. Pela manhã, pedira à mais velha que fosse cuidar de Simon, referindo-se ao ferimento na cabeça, e não às outras dores que ele alegara sentir. Embora detestasse admitir, Bethia estava ansiosa para saber como ele passava. — Hum, a comida está cheirando muito bem! — elogiou, aproximando-se do caldeirão que Meriel mexia. Mulher de poucas palavras, Meriel limitou-se a assentir, e Bethia foi tomada de uma súbita impaciência por notícias do cavaleiro. — E então? Ele está bem? — perguntou, tentando soar casual, mas sem o menor sucesso. Meriel manteve os olhos fixos no caldeirão. — Não havia ninguém lá, senhorita. — Ninguém? — Bethia inquiriu, já em pânico. — Para onde ele foi? 83

— Não sei, senhorita. Sem dizer mais nada, Bethia dirigiu-se à cabana, certa de que Meriel havia se enganado. Talvez a viúva houvesse ido ao lugar errado ou Simon estivesse na mata, aliviando-se, quando ela chegara. Conhecendo o cavaleiro, Bethia sabia que ele evitaria atenções, mesmo que fossem para seu próprio bem. Porém, ao entrar na cabana onde o deixara, Bethia descobriu que estava deserta. Não havia sinais da passagem de Simon por ali, exceto pela marca deixada pelo peso do corpo dele no colchão de palha e uma pequena mancha de sangue onde sua cabeça repousara. Bethia voltou para fora, tomada de preocupação e culpa. Deveria ter ficado lá, cuidando dele, em vez de fugir. Simon agira de maneira muito estranha. Teria perdido o juízo? Poderia estar vagando pela floresta, sem destino, ou ter sido apanhado pelos homens de Brice, que não se dariam ao trabalho de verificar a identidade dele. Ou, pior, poderia ter decidido investigar ele mesmo sobre o acidente. Bethia respirou fundo ao pensar nessa possibilidade, mas descartou-a em seguida. Se houvesse ocorrido uma luta, ela teria sido informada. Além disso, o silêncio reinava na floresta. Bethia examinou a área ao redor da cabana e verificou que os arbustos não exibiam os sinais da passagem de alguém pelo meio da mata. Se Simon se afastara, seguira pela trilha. Talvez ele houvesse se recuperado e decidido partir sozinho. Mal pensou nisso, Bethia foi invadida por uma raiva nada razoável, por ele ter ido embora sem avisá-la. Ao mesmo tempo, perguntou-se o que significava para ele. Simon não fazia parte do bando e era livre para ir e vir, sem dar satisfações a ninguém. Ainda assim, ela continuou se sentindo contrariada. Voltou ao acampamento, alerta para o reaparecimento de Simon. Firmin e alguns outros mostraram-se mais quietos que o habitual, durante o jantar e, ao final da refeição, Bethia perguntou ao arqueiro o que exatamente acontecera. Corando até a raiz dos cabelos, ele resmungou algo sobre tolos que se aproximam demais de trabalhadores, mas as palavras morreram nos lábios dele, vítimas do olhar ameaçador de Bethia. — E onde está ele, agora? — inquiriu. — Pensei que estivesse na sua cabana! — Firmin respondeu com evidente surpresa. — Pois não está — ela informou em tom calmo. — Embora eu acredito que tenha retornado a Baddersly, quero me certificar de seu paradeiro. Jeremy, vá até a vila e veja o que consegue descobrir por lá. Will, siga na direção de Ansquith e interrogue os pastores que simpatizam com nossa causa. Firmin, já que foi o responsável pelo acidente, pode dobrar o turno da noite, em um dos postos de sentinela. Enquanto Firmin balbuciava protestos inúteis, Bethia já se punha de pé, a fim de chamar a atenção de todos. — Preciso lembrá-los de que foi Simon de Burgh quem planejou o ataque a Brice e a conseqüente libertação de Ansquith? — perguntou em voz alta. — Estávamos indo muito bem sem ele — Firmin resmungou. — Indo para onde? — ela retrucou. — Estávamos roubando os suprimentos de Brice, causando prejuízos, mas já havíamos nos dado conta de que ele jamais sairia detrás daqueles muros para uma luta direta. O que vai acontecer quando o inverno chegar? Por quanto tempo sobreviveremos, nesta floresta, correndo de um esconderijo para outro? Embora Firmin continuasse carrancudo, a maioria dos homens assentiu em concordância. Eram pessoas que precisavam retomar o trabalho nas minas e nos campos, e somente o desaparecimento de Brice lhes permitiria recomeçar suas vidas e, em alguns casos, voltar ao seio da família. E nenhum deles gostava tanto da vida na floresta, a ponto de querer continuar como bandido indefinidamente. — Provavelmente, ele vai voltar com um exército para nos atacar… tudo porque foi desajeitado o bastante para ficar no caminho da minha pá. 84

Bethia sabia muito bem que Simon era ágil demais para cometer um erro tão estúpido, mas decidiu não perder mais tempo com discussões. — Se Simon de Burgh tivesse a intenção de trazer um exército à floresta, teria feito isso há muito tempo — declarou com um olhar frio para o arqueiro. Além disso, Simon não era o tipo de homem capaz de punir a todos pela transgressão de um único homem. Estaria furioso com todos eles? Ou com ela, por ter se recusado a deitar com ele na cabana? Bethia descartou tal idéia de pronto, pois um cavaleiro como Simon de Burgh certamente podia escolher à vontade entre as muitas mulheres dispostas a aquecer-lhe a cama. — Mesmo assim, creio que não faria mal algum mudarmos nosso acampamento novamente, Bethia — John argumentou. Embora seu coração lhe dissesse que nada daquilo seria necessário, Bethia sabia que deveria considerar os outros, que não tinham tanta fé em Simon. — Muito bem — concordou. — Vamos nos dispersar, agora. Suspenderemos as escavações do túnel por um ou dois dias, mas quero esta área muito bem vigiada. Tal decisão atrasaria o trabalho e Bethia sentiu uma forte pontada de impaciência, pois não via a hora de terminar o túnel e entrar em Ansquith. Tratou de reprimir tal sentimento, uma vez que a espera lhe pareceu fundamental para que seus homens voltassem a se sentir tranqüilos. Com um breve aceno de cabeça para John, virou-se, dizendo a si mesma que deveria se contentar com o que tinha em mãos. No entanto, um outro sentimento parecia alfinetá-la, e era algo mais que a impaciência pela espera forçada. A preocupação por um certo cavaleiro tomou conta dela, juntamente com a noção desconcertante de que, ao se curvar à desconfiança dos outros, Bethia acabara de traí-lo. Baddersly não era o seu lar. Poucas horas após sua chegada, Simon já não suportava as atenções excessivas de Florian, os olhares estranhos que todos lhe lançavam e as fofocas que ele tinha certeza de estarem correndo soltas pelo castelo. Sentia-se bem melhor na floresta, embora a simples lembrança de Bethia provocasse um nó em sua garganta, fazendo-o sentir-se profundamente embaraçado. Chegou à conclusão de que não passava de um grande tolo. Desde muito jovem, sempre possuíra autoconfiança. Afinal, era um de Burgh e, juntamente com o nome, vinham alguns privilégios, bem como respeito. Simon, porém, jamais se contentara com isso. Sempre competindo com Dunstan, conseguira suplantar com facilidade os irmãos, tanto em força quanto na habilidade no campo de batalha. Agora, sentia-se perdido, longe de seus domínios, um verdadeiro tolo. E seu mauhumor era exacerbado pelas pessoas que o cercavam em Baddersly, aparentemente determinados a tornar sua vida miserável. Todos questionaram a sua saúde, até ele rugir, furioso. No entanto, a verdade era que sua falta de sono e apetite haviam voltado com força total. Mesmo percebendo que todos comiam com evidente prazer, Simon não conseguia encontrar sabor na comida. E a cama, apesar de elegante e macia, não lhe proporcionava o menor conforto. Durante o dia, sentia um acúmulo de energia que nem todas as cavalgadas, ou exercícios junto aos demais cavaleiros, podiam dissipar. Sentia-se como em véspera de batalha, mas não havia oponente para combater. Quanto mais o tempo passava, mais irritado ele ficava. Embora Florian insistisse na possibilidade de uma enfermidade grave, Simon recusou-se a procurar o médico, pois sabia que sua saúde não poderia estar melhor. Já não tinha tanta certeza com relação à mente, que passara a funcionar de maneira pouco característica. De repente, decidia voltar à floresta, a fim de supervisionar a escavação do túnel, e preparava-se para partir com ansiedade quase infantil. Então, no 85

momento seguinte, era tomado por uma relutância inexplicável, que o deixava desolado. Após alguns dias dessa indecisão improdutiva, Simon estava prestes a explodir. Não poderia suportar nem mais um minuto entre as paredes de Baddersly, mas também não se sentia pronto para voltar à floresta. Montou seu cavalo e rumou para a vila, em busca de uma paz de espírito que, a cada dia, parecia-lhe mais impossível. Mas a vila também não ofereceu remédio para o seu mal. O sol do início da tarde ofuscava os poucos viajantes que passavam pela estrada, bem como os aldeões que cuidavam de seus afazeres. Crianças brincavam, enquanto suas mães trabalhavam. A porta da cervejaria encontrava-se aberta. Ocorreu a Simon que, talvez, houvesse mesmo algo errado com sua saúde, pois ele tinha a sensação de que a comida havia parado a meio caminho do estômago. Esfregou o peito com a mão, quando desmontou e deixou o cavalo na loja do ferreiro. Então, seguiu pela rua, na direção dos limites da vila. Lá, uma jovem que alimentava galinhas chamou sua atenção. A luz do sol iluminou a trança dourada que caía até o meio das costas dela e Simon sentiu uma pontada no peito. Era a dor da perda. O que Bethia estaria fazendo naquele momento? Estaria bem? Estaria encontrando abrigo e alimento? Simon emitiu um som contrariado, pois sabia que ela era capaz de caçar muito melhor do que ele. Como se tivessem vontade própria, os olhos de Simon seguiram a moça, acompanhando cada movimento gracioso dos braços, a maneira como o vestido simples agitava-se em torno dos quadris. Diante do vislumbre de um tornozelo delicado, uma onda de calor percorreu o corpo dele. Como se percebesse que estava sendo observada, ela se virou devagar, enfiando a mão no bolso do vestido, em um gesto que indicava uma cautela muito maior do que seria de se esperar em uma aldeã. E, quando ela o fitou, Simon descobriu o porquê, pois foi o rosto de Bethia Burnel que o encarou em desafio. Bethia… Simon tentou falar, mas não encontrou a voz, pois estava simplesmente fascinado pela primeira visão que tinha dela, vestindo roupas femininas. A guerreira se fora, deixando em seu lugar uma mulher linda, ainda forte, mas dona de curvas espetaculares, que haviam ficado escondidas sob a túnica masculina. Simon sentiu a garganta secar e, enquanto mantinha os olhos fixos nos dela, sentiu o ar ao seu redor tornar-se quente e denso, pesado de desejo. — Bom dia, cavaleiro — ela finalmente falou, empinando o queixo, como se quisesse deixar claro que continuava a ser uma guerreira destemida. — O que está fazendo aqui? — Simon perguntou. — Ah, tenho muitos esconderijos e nem mesmo você conhece todos eles. As palavras foram pronunciadas em um sussurro macio, que aguçou os sentidos de Simon, ao mesmo tempo que o irritou, pois ele queria saber tudo sobre ela. Foi tomado pelo ímpeto de agarrá-la e sacudi-la, forçando-a a contar-lhe tudo, a dar-lhe tudo… Apontou para a pequena casa atrás dela. — Não está sozinha. Foi mais uma afirmação do que uma pergunta. Embora confiasse nas habilidades de Bethia no uso das armas, não o agradava a idéia de ela viver sozinha, tão perto da floresta, sem proteção. Onde estariam seus seguidores? — Não — ela respondeu, ao mesmo tempo que uma mulher mais velha aparecia na porta. Simon reconheceu-a como sendo a cozinheira do bando e que seria de pouca ajuda em caso de ataque. — Estou aqui com Meriel. Esta é a casa dela. Simon praguejou baixinho, sentindo o sangue ferver nas veias, só de pensar em Bethia sozinha, com uma velha viúva. — Não foi o que perguntei e você sabe disso — rosnou. — Sei me defender e você sabe disso — ela retrucou. — Se veio até aqui para discutir, pode voltar para o seu castelo. Enquanto Simon pensava em uma resposta, Bethia cruzou os braços em um gesto 86

familiar, mas foi a primeira vez que ele pôde ver a pele clara acima do decote do vestido. Teve de respirar fundo para não perder o controle e correr para ela. Então, ocorreu-lhe que o vestido era indecente e ele tentou exibir uma carranca. Infelizmente, sua boca estava tão seca, que tudo o que foi capaz de fazer foi balbuciar palavras incompreensíveis. Ao mesmo tempo que reprovava o decote exagerado, desejava ardentemente cobri-lo com as mãos, ou com os lábios. Queria atirá-la no chão e amá-la ali mesmo, sem importar-se com as galinhas e, menos ainda, com a viúva que os observava da porta. O desejo que o atacou foi tão intenso, que Simon sentiu-se atordoado. A casa, Meriel e a estrada deixaram de existir, restando apenas Bethia e sua necessidade de tê-la para si. Ela pareceu perceber, pois emitiu um som que Simon não soube definir se era de agonia ou de rejeição. — Tenho muito trabalho a fazer — Bethia declarou com voz rouca. Em seguida, virou-se e afastou-se, deixando Simon ali parado, tomado pela vontade de agarrá-la. A visão da trança dourada a balançar de um lado para outro, da cintura delgada, sempre escondida pelas túnicas largas, tornou seu desejo intenso e doloroso. Simon começou a transpirar. Pensou em atirá-la sobre o ombro e… Ora, ela já entrara na casa e Meriel o fitava com ar desconfiado. Simon teve o ímpeto de gritar sua frustração aos céus. Adiante, a estrada se estendia, com uma longa caminhada de volta até onde ele havia deixado o cavalo. E Simon sabia que não conseguiria caminhar até lá. Assim como não poderia esperar ali, incapaz de suportar outro momento perto de Bethia, especialmente estando ela vestida como mulher. Estava tão excitado que mal conseguia andar. Por isso, atravessou a estrada e embrenhou-se na mata. Uma vez protegido pelas árvores, Simon reclinou-se no tronco de uma árvore. Sentiu os pulmões arderem e a cabeça girar. Com certeza, contraíra algum tipo de doença, pensou, utilizando a pequena parte de sua mente que ainda funcionava. Então, respirou fundo várias vezes, na esperança de que o ar puro da floresta levasse embora qualquer que fosse o mal que o acometera. Porém, a visão de Bethia dançava à sua frente, especialmente o que o decote do vestido revelara. Ela era uma mulher e ele a desejava. Bethia… Não uma das prostitutas que ele tivera no passado. Não qualquer cortesã, ou aldeã. Bethia… E ela lhe dera as costas, abandonando-o sem sequer olhar para trás. Curvando-se na tentativa de diminuir o sofrimento, Simon pousou a mão sobre seu próprio sexo e, finalmente cedendo à dor provocada pelo desejo insano, livrou-se de parte das roupas. Enquanto aplacava ele mesmo a dor que o consumia, pensava em Bethia. Imaginava que eram as mãos dela sobre seu corpo, os lábios, as coxas roçando nas suas. Então, fechando os olhos, gemeu alto, ao mesmo tempo que seu corpo era sacudido pela força do êxtase. Com dedos ainda trêmulos, ajeitou a roupa e apoiou-se na árvore. Enquanto tentava recuperar o fôlego, já corava de vergonha pelo que acabara de fazer. Fizera aquilo muitas vezes antes, mas agora, já não conseguia satisfazer os impulsos. Não era apenas uma satisfação física de que precisava, mas Simon não sabia exatamente o que aplacaria aquela ânsia e, menos ainda, fazia idéia de como conseguir o que queria.

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CAPITULO XI

Bethia encolheu-se atrás dos arbustos que a haviam mantido escondida de Simon, estremecendo violentamente em reação ao que acabara de ver. Teve de se apoiar em um tronco de árvore, a fim de recuperar o equilíbrio, mas movimentou-se sem produzir o menor ruído, prendendo a respiração, por medo de ser descoberta. Se Simon a encontrasse naquele momento, passaria a desprezá-la, não só porque ela havia invadido sua privacidade, mas também por outra razão, muito mais grave. Bethia tinha a mais absoluta certeza de que o orgulhoso cavaleiro a odiaria por ela haver testemunhado o que ele certamente chamaria de fraqueza. Alguns homens costumavam rir e brincar sobre as necessidades de seus corpos, bem como sobre uma certa maneira de satisfazê-las. Bethia já ouvira partes dessas conversas, antes. No entanto, Simon de Burgh não era como os outros homens. Possuía tamanho orgulho que não se curvava a nada, nem mesmo aos comandos de seu próprio corpo. Suspirando aliviada por ouvir o som dos passos dele se afastando, Bethia sentouse no chão, pois as pernas já não lhe sustentavam o peso do corpo. A verdade era que não tivera a intenção de bisbilhotar. Seguira-o, simplesmente, porque Simon agira de maneira muito estranha, diante da casa de Meriel. Quando a vira, ele empalidecera e exibira uma expressão de culpa, ou algo assim, e a conversa que se seguira fora ainda mais estranha, pontuada por silêncios longos e constrangedores. As desconfianças de Bethia haviam se tornado intensas e o brusco desaparecimento de Simon na floresta a deixara ainda mais ansiosa. Não lhe ocorrera que ele fosse traí-los, pois confiava nele e já não acreditava nessa possibilidade. Porém, Simon de Burgh era perfeitamente capaz de se envolver em algum tipo de aventura que Bethia certamente não aprovaria. Jamais lhe ocorreria que fosse o desejo que o estivesse levando para o abrigo das árvores. Especialmente, desejo por ela. Até pouco tempo antes, Bethia conhecera poucos homens e, embora houvesse recebido olhares de admiração, mesmo quando vestida como homem, nem imaginara o que acabara de ver: um cavaleiro poderoso, sacudido pelas ondas intensas da paixão. Voltando a estremecer pela lembrança, Bethia foi tomada pelo mesmo desejo ardente que a invadira no momento em que vira Simon tocar o próprio corpo. Provavelmente, deveria sentir-se envergonhada, mas a verdade era que Bethia não sentira o menor sinal de embaraço. Simplesmente, reagira de maneira instintiva, sentindo o coração disparar, os mamilos tornarem-se rijos, o ventre aquecer-se. Fora preciso lançar mão de todo o seu autocontrole para não ir até lá e cuidar ela mesma da satisfação de Simon. Beije-me, Bethia. O pedido voltara a ecoar em sua mente e ela fora tomada pelo ímpeto de ajoelharse diante dele e atendê-lo. Queria saber tudo sobre o corpo espetacular, receber tudo o que ele tivesse para lhe dar. Mesmo agora, depois de tudo acabado, sentia o corpo latejar pelo desejo não aplacado. Pela primeira vez em muitos anos, teve vontade de chorar por tudo aquilo que havia negado a si mesma. Por ele. Com o coração apertado, Bethia lamentou o dia em que conhecera Simon de Burgh, pois teria sido melhor nunca ter conhecido aqueles sentimentos, a ter de lutar contra eles, além de tudo mais contra o que precisava lutar. De todas as suas batalhas, aquela era, sem dúvida, a mais difícil. Bethia respirava fundo, na tentativa de reunir suas forças. Seu único consolo era o fato de Simon não ter gritado nem um minuto antes, pois se houvesse sido assim, ela provavelmente não teria sido capaz de se controlar, ao ouvir o som que acompanharia a satisfação dele. Afinal, não seria um simples gemido de 88

prazer, mas sim o nome dela que ecoaria pela floresta. Tudo voltara ao normal. Ao menos, foi o que Bethia disse a si mesma, quando Simon retornou ao acampamento. Como ele havia declarado não se lembrar do acidente, o medo da retaliação havia se dissipado. Uma vez recuperada a tranquilidade, os homens de Bethia retomaram seus postos de sentinela, os mineiros voltaram às escavações, e Bethia dedicou-se à sua cabana abandonada. Tudo era como deveria ser, exceto pela onda de calor que invadia seu corpo, toda vez que Simon se aproximava. Ele não tentou beijá-la de novo, e ela não presenciou outros sinais de paixão. Ainda assim, Bethia sentia os olhos de Simon sobre ela, como se fosse o sol a queimarlhe a pele. Embora não houvesse feito nada para encorajá-lo, Bethia sentia-se culpada, como se devesse retribuir aquela paixão com igual ardor. O que não seria difícil. Apesar das roupas masculinas, pela primeira vem em sua vida, Bethia sentia-se como uma verdadeira mulher. Uma mulher com desejos. O que a assustava, uma vez que tais sentimentos a tornavam vulnerável, uma condição que ela jamais conhecera antes. Nunca lhe faltara autoconfiança, mesmo quando ainda era uma menina, adorada pela mãe e mimada pelo pai orgulhoso. Tudo o que ele havia lhe ensinado, além da posição que ela ocupava na vida próspera da família, haviam criado um senso de segurança, que a acompanhara sempre, mesmo depois de ter sido arrancada de sua feliz existência, para viver uma vida sem brilho, de obediência muda a parentes indiferentes. Ao longo daqueles anos repletos de frustração, ninguém jamais conseguira apagar a força de seu espírito, nem mesmo o maldito Brice, pois Bethia mantinha-se fiel ao seu propósito de, um dia, recuperar a liberdade que conhecera na infância. Os sentimentos indesejados por Simon de Burgh representavam uma ameaça a esse sonho de independência e, por isso, ela tratou de ficar alerta, tanto para com o cavaleiro, quanto para com as reações que ele lhe despertava. Seria muito fácil ceder ao desejo, entregar-se a Simon e descobrir os mistérios de sua feminilidade. E acabar com uma criança no ventre, Bethia pensou, sombria. Se isso acontecesse, como poderia derrotar Brice, libertar o pai e liderar o bando de homens que haviam se tornado dependentes dela? Desolada, disse a si mesma que a única saída seria ignorar aquela atração. Assim, tentou concentrar-se nos defeitos de Simon. Era um homem taciturno e carrancudo, até mesmo rude, às vezes, mas Bethia admirava-lhe a franqueza. Com um suspiro, rejeitou tal idéia e tentou pensar em algo pior. Seus lábios se curvaram em um sorriso, quando lhe ocorreu que o temperamento terrível era mesmo um traço de personalidade deplorável. E Simon era tão rígido em seus princípios, que simplesmente não aceitara a competência de Bethia, até ela derrotá-lo e amarrá-lo. Como se houvesse sido chamado pela força dos pensamentos dela, Simon apareceu no acampamento. Bethia prendeu a respiração diante da visão do cavaleiro formidável, brilhando ao sol da manhã, uma vez que tinha a pele molhada. Pensou que jamais vira algo parecido e que Simon de Burgh era, sem dúvida, o homem mais asseado que ela já conhecera. Seria impossível contar as vezes que ele se banhava no riacho, cujas águas eram sempre geladas, mesmo no verão. E a aparência que ele exibia depois, os cabelos molhados atirados para trás, a túnica colada ao corpo, tornava ainda mais difícil a luta de Bethia contra a atração que sentia. Embora não fosse covarde, Bethia disse a si mesma que uma mulher sensata deveria evitar a tentação sempre que possível. E Simon de Burgh, com seu corpo forte e musculoso, a expressão dura que escondia sua natureza apaixonada, seria um duro teste, até mesmo para uma santa. Ignorando os olhares curiosos de seus homens, Bethia levantou-se e foi para a cabana. Simon observou Bethia afastar-se, sentindo a frustração invadi-lo. Desde o seu 89

retorno à floresta, ela o evitava de maneira tão ostensiva, que até mesmo os arqueiros e mineiros já começavam a perceber. Lançavam-lhe olhares ameaçadores, que ele não fizera nada para merecer. Pensando nisso, Simon estreitou os olhos. O que havia de errado em provocá-la, como fizera na cabana, no dia em que fora ferido na cabeça? Algumas palavras impensadas não eram nada, se comparadas ao que Bethia fizera a ele, no breve período desde seu primeiro encontro. Depois de capturar seus homens e de mantê-lo amarrado, ela ainda o torturara com seus sorrisos! A lista de iniqüidades de Bethia preencheria um dos preciosos livros de Geoffrey. Ainda assim, Simon a tratara com cortesia e deixara tudo de lado, a fim de ajudá-la. E o que recebia em troca? Nada! Bethia mantinha-se distante, como se mal pudesse suportar a presença dele. E, quanto ao resto do bando… Simon estudou os companheiros, que comiam com apetite. Nenhum deles se mostrara grato por sua ajuda. Na verdade, Simon perguntava-se quantos ali não se colocavam contra seus esforços. Embora ele não se lembrasse do acidente que acontecera dias antes, suspeitava que um certo arqueiro o provocara deliberadamente. Simon apanhou sua comida e sentou-se em um tronco caído, mantendo-se alerta. Sendo um de Burgh, estava habituado a receber lealdade de todos. Agora, via-se cercado de homens cuja confiança era duvidosa. Alguns, como Firmin, nem escondiam sua animosidade. Embora não tivesse certeza sobre a origem da hostilidade do arqueiro, Simon notara a maneira como Firmin observava Bethia e não gostara nem um pouco do que vira. Não fosse pela promessa que fizera a ela, Simon traria alguns de seus homens para a floresta, e não somente para protegê-lo. Era perfeitamente capaz de defender-se de meia dúzia de bandidos, especialmente agora, que se mantinha em guarda. Mas, como seria, caso se voltassem contra Bethia, também? Qualquer daqueles homens poderia estar aliado a Brice, informando-o sobre seus planos de ataque. E se o túnel fosse descoberto, como poderiam recuperar Ansquith, sem pôr em risco a vida do pai de Bethia? Simon nunca tivera o hábito de perder tempo com preocupações. Quando tomava uma decisão, agia com presteza, a fim de levá-la adiante. No entanto, a situação era diferente, agora. Ele deveria pensar, não só nas escavações, mas em Bethia também. Apesar da insistência dela em afirmar que liderava o bando, Simon permanecia cético. No fundo, não acreditava que uma mulher fosse capaz de comandar um bando de homens. Por experiência própria, sabia como Bethia era tentadora e excitante, assim como sabia que as paixões acabavam, com freqüência, em violência. Ora, Simon tinha de lutar para se controlar! O que aconteceria se um daqueles sujeitos decidisse possuí-la? Bethia dominava as armas, mas não teria força para lutar contra um deles… ou dois. A imagem que se formou em sua mente foi desconcertante, e Simon sacudiu a cabeça, tentando livrar-se dela. Se Bethia não fosse tão teimosa, ele estaria junto dela, agora, protegendo-a. Porém, ela o evitava, como se ele, cavaleiro, honrado de Burgh, representasse uma ameaça maior do que um de seus seguidores. Isso nunca poderá acontecer entre nós. A lembrança das palavras dela trouxeram uma expressão ainda mais sombria ao semblante de Simon, pois ele não estava acostumado a ouvir negativas. Nem sequer se lembrava da última vez em que alguém lhe dissera não, exceto por Bethia. Ela ousara contradizê-lo desde o primeiro encontro, quando Simon ordenara-lhe que largasse as armas e ela se recusara a obedecê-lo. E continuara a fazer o mesmo, até Simon sentir-se prestes a explodir. Queria descobrir um meio de fazê-la dizer sim a tudo, especialmente ao que crescia entre eles, provocando as ondas de calor que o afogueavam, cada vez que a via. Mas Bethia continuava a evitá-lo. Seria possível que ela não fosse perturbada pelos sentimentos que faziam o sangue de Simon ferver? Ele não conseguia compreender a rejeição dela. Só seu nome já era suficiente para despertar um grande interesse nas mulheres, mas Bethia parecia não dar a menor importância a isso. 90

Irritado pela idéia, Simon franziu o cenho, mas o movimento dos músculos de seu rosto o fez parar. Talvez fosse sua postura taciturna que a afastasse. Tentou sorrir, mas sentiu-se tolo ao fazê-lo. Embora não fosse considerado atraente entre os irmãos, Simon não se considerava feio. E de uma coisa ele tinha certeza: não estava competindo com nenhum outro homem. Mas, então, por que Bethia mantinha-se firme na recusa? Um comentário feito por Stephen ecoou na memória de Simon, provocando-lhe uma súbita tensão. Segundo o irmão experiente, assim como existiam homens que preferiam relacionar-se com pessoas do mesmo sexo, algumas mulheres gostavam de… mulheres! O sobressalto provocado pelo pensamento chamou a atenção dos homens que ainda comiam ao seu redor, mas Simon ignorou-lhes os olhares curiosos e se pôs de pé. Atirou o resto da comida na fogueira, sentindo uma angústia alarmante. Uma vez enraizada tal idéia, Simon simplesmente não era capaz de afastá-la. Não havia considerado tal possibilidade, mas agora, sentia-se prestes a enlouquecer. Como um homem poderia lutar contra tal situação? De repente, descobriu-se incapaz de respirar. Foi somente com muito esforço que conseguiu respirar fundo e recuperar o controle. Então, foi tomado pela fúria. Somente um tolo se acovardaria, fugindo de sombras! Ele nunca tivera medo da verdade. A melhor estratégia seria enfrentar o inimigo… ou suas respostas. Determinado, seguiu para a cabana de Bethia. Sabia que ela não o receberia bem, mas não se importou. Tinha de saber a verdade. Imediatamente. Enquanto caminhava por entre as árvores, Simon lembrou-se do beijo que haviam partilhado. Ora, não era possível que ele houvesse imaginado a reação dela! Nem se tratara de um acidente, ou de uma aberração. Um homem perceberia isso. Ou não? Sentiu o sangue gelar nas veias, enquanto um medo desconhecido o invadia. Bethia, a única mulher que o afetara, tinha de estar ao seu alcance. A alternativa era, simplesmente, inaceitável. Quando Simon finalmente alcançou a cabana, seu corpo estava tenso, como se preparado para uma batalha. Pousando uma das mãos no cabo da espada, usou a outra para bater na porta. Embora estivesse pronto a derrubá-la, se fosse preciso, a porta abriuse imediatamente. — O que foi? Bethia parou diante dele, usando roupas masculinas, como sempre. Desta vez, porém, foi como se Simon houvesse recebido um forte golpe no peito. Não importava o que ela vestia, fosse uma túnica pesada, ou um fino vestido de festa, Bethia seria sempre a mulher mais linda que ele já vira. Enquanto ela o fitava com expressão cuidadosamente neutra, Simon procurava desesperado pelas palavras que pareciam ter fugido de sua mente. Sua boca tornou-se subitamente seca, enquanto seus pulmões enchiam-se do perfume dela. Bethia aguçava-lhe todos os sentidos, muito mais que qualquer batalha. Era como se ela houvesse penetrado por seus poros, tomando conta de todo o seu ser. E Simon queria o mesmo, queria estar dentro dela, por completo. Mais do que o desejo de possuí-la, o que o impelia era a necessidade de fazê-la sentir o mesmo que ele sentia, partilhar as sensações desconhecidas com a mulher que as despertara. Estendeu os braços para ela e, pela primeira vez, Bethia não se esquivou. Puxando-a para si, bateu a porta atrás de si e beijou-a com uma violência que nunca antes ousara liberar com as prostitutas que pagava. Em vez de rejeitá-lo, Bethia retribuiu o beijo com ardor igual. Seus lábios se abriram para receber os dele, seus braços circundaram-lhe a cintura e seu corpo colou-se ao dele. Os receios que haviam levado Simon até lá se dissiparam imediatamente, diante da força da paixão de Bethia, pois mulher nenhuma seria capaz de fingir tanto desejo. Com uma das mãos, segurou-lhe a nuca, enquanto usava a outra para pressionar os quadris arredondados contra o próprio corpo. Quando apertou-a contra si, sentiu os dedos 91

delicados cravarem-se em suas nádegas, como se pedindo que ele continuasse. Descolando os lábios dos dela, Simon respirou fundo e estudou-lhe o semblante. Os olhos castanho-claros encontravam-se abertos, flamejando de desejo. Sentindo o corpo em chamas, Simon imaginou-se a rasgar as roupas de Bethia e possuí-la por inteiro. Porém, mesmo atordoado pela sensação latejante que tomara conta de seu corpo, ele sabia que, o que quer que o houvesse impelido para ela, aquele desejo não seria aplacado por alguns momentos na cama, como ele sempre fizera com as outras mulheres. Beijou-lhe o pescoço, deslizando a mão pelas curvas suaves, escondidas sob o traje masculino. Ao tocar-lhe um dos seios, não conteve um gemido de prazer. Impaciente, abaixou a túnica de Bethia, a fim de beijar a pele acetinada que cobria a curva exposta pelo decote do vestido que ele vira uma única vez. Sentiu os dedos tremerem sobre o mamilo rijo. Em seguida, todo o seu corpo foi sacudido por uma onda intensa de desejo. Quando Bethia pressionou a coxa contra sua virilha, voltou a gemer alto, incapaz de se conter. Nunca antes sentira nada parecido àquela agonia deliciosa, como se um fogo violento o queimasse por dentro. Inclinou-se para beijar-lhe um seio, vagamente consciente dos dedos ainda cravados em suas nádegas. Então, Bethia mordeu-lhe o ombro, provocando-lhe um sobressalto. Simon ergueu-se para fitá-la e, ao descobrir que Bethia tremia tanto quanto ele e que sua respiração tornara-se igualmente ofegante, descobriu-se transportado para um mundo desconhecido, onde não havia mais nada, além deles dois e o prazer que proporcionavam um ao outro. A mordida em seu ombro, em outras circunstâncias algo de que ele provavelmente não gostaria, representava uma prova contundente de que Bethia o desejava. A satisfação provocada por essa constatação encheu seu peito de uma sensação que ele desconfiou ser felicidade. — Bethia… — murmurou, dando-se conta de que sua mente recusava-se a funcionar de maneira normal. Simon só conseguia pensar em deitá-la no colchão de palha e possuí-la. — Bethia. Atordoado, pensou ter repetido o nome dela em voz alta, mas em seguida, ouviu uma voz que não era a sua, chamá-la novamente. O chamado vinha de fora da cabana e, ao mesmo tempo que Simon apurava os ouvidos, Bethia tornava-se tensa em seus braços. Sem hesitar, ela se afastou e ajeitou a túnica. A expressão fria e sensata substituiu imediatamente a paixão que iluminava seus olhos, segundos antes. Simon descobriu-se incapaz de falar, ou de se mover. Seu corpo estremeceu, em uma reação retardada ao abandono de Bethia, quando ela já se aproximava da porta. E o desejo frustrado transformou-se em fúria, quando Simon ouviu a voz de Firmin, seguida pela resposta suave de Bethia. Firmin parecia insistente e Simon virou-se e abriu a porta ruidosamente, ansioso para compensar a frustração, atacando o arqueiro. Bethia fitou-o por cima do ombro, franzindo o cenho, como se não gostasse da intromissão. Simon hesitou, embora se sentisse tentado a se intrometer de maneira bem mais acintosa. Cerrando os dentes esperou, tendo de lutar para controlar o ímpeto de rugir sua ira. Gostaria de atirar Bethia sobre o ombro, proclamar a todos os interessados que ela lhe pertencia. Porém, algo lhe dizia que ela não ficaria satisfeita com tal manifestação. — Estarei lá em um minuto — Bethia dirigiu-se a Firmin. Ao ouvir isso, Simon ficou perplexo, incapaz de acreditar que ela o deixaria ali, no estado em que se encontrava, para se reunir a seus homens. Fitou o arqueiro com olhar ameaçador, até que ele, com certa relutância, desaparecesse entre as árvores. Então, Bethia virou-se e voltou à cabana, mas parou na soleira da porta, como se quisesse garantir a distância que a separava de Simon. O rosto que, minutos antes, ardia 92

de paixão, exibia agora expressão dura e implacável, deixando-o ainda mais furioso. — Já lhe disse que isso nunca poderá acontecer entre nós — Bethia declarou com voz calma. — Por favor, não se aproxime de mim novamente. Aquela era a mesma mulher que havia mordido seu ombro? Simon deu um passo à frente, mas Bethia recuou de pronto. Sentindo-se impotente, ele esmurrou o batente da porta. — Você sente o mesmo que eu! — vociferou. — Não tente negar! — É claro que sinto! — ela replicou, igualmente furiosa. Depois de passar tanto tempo acreditando-se não correspondido em seu ardor, tal admissão apanhou-o de surpresa. Por que ela havia escondido o desejo que sentia? Por que o rejeitara? Sentiu-se traído, como se a houvesse surpreendido em uma mentira, ou uma farsa contra ele, pois enquanto se sentia rejeitado, não era essa a realidade dos fatos. Não? A alegria de Simon por saber que Bethia o queria durou pouco. — Por quê? — inquiriu. — Quer saber por que não vou pôr tudo a perder por alguns momentos de prazer? Ora, isso fora o que ele desejara antes. Agora, era diferente. Mas como poderia explicar a ela tal diferença, quando ele mesmo não conseguia encontrar uma explicação? Simon só sabia que precisava de mais, algo que somente ela poderia lhe dar. Porém, antes que pudesse formular a frase, Bethia continuou a falar, no mesmo tom frio que o enfurecia: — Mesmo tendo a certeza de que seria muito bom, não pretendo permitir que você plante a semente de um filho bastardo em meu ventre, quando não tenho a menor condição de cuidar de uma criança. Ou você não havia considerado essa possibilidade? Simon ficou imóvel, sentindo-se como se ela o tivesse esbofeteado. A verdade era que isso não lhe ocorrera. Nunca havia se preocupado com isso, pois sempre acreditara que o tipo de mulher com quem se deitava, sabia muito bem como evitar problemas. 0 rubor detestável começou a subir por seu pescoço, mas seu orgulho começava a se acostumar aos ataques de Bethia e seu desespero tornava-se cada vez maior. Se a relutância dela nascia da cautela, então, ele teria de respeitá-la. Ao mesmo tempo, seu corpo latejava pela paixão contida. Diversas vezes, ouvira Stephen vangloriar-se de suas habilidades com as mulheres, descrevendo técnicas que envolviam mãos e boca, mas Simon as descartara, considerando-as uma grande perda de tempo. Estava habituado a buscar a satisfação da maneira mais simples e rápida, mas agora, com Bethia, desejava experimentar todas as maneiras possíveis. — Existem meios de evitar esse tipo de problema, outras maneiras de encontrar o prazer — murmurou. Bethia lançou-lhe um olhar perplexo, como se não acreditasse no que acabara de ouvir. E Simon não poderia culpá-la. Afinal, na sociedade civilizada, homens e mulheres não discutiam tais assuntos abertamente. O problema era que Simon já não se sentia civilizado. Era como se houvesse se transformado em um bárbaro, ansioso para possuir a líder de um bando de salteadores, a qualquer preço. Por um longo momento, ela se limitou a fitá-lo. Simon sentiu o sangue ferver novamente, mas o brilho de desejo que iluminou os olhos castanho-claros dissipou-se rapidamente e Bethia deu-lhe as costas. Embora ela endireitasse os ombros e mantivesse a cabeça erguida, o tom resignado de sua voz atirou Simon no mais profundo desespero. — Como posso confiar que você vai controlar a sua paixão, quando não posso confiar em mim mesma? Poucos metros os separavam, mas foi como se fossem quilômetros, pois a distância que as palavras de Bethia criaram era intransponível. Embora chegasse a pensar em arrastá-la de volta à cabana e forçá-la a aceitá-lo, Simon sabia que não poderia agir assim. Algo lhe dizia que, se a subjugasse, estaria 93

destruindo o que quer que existisse entre eles. Além disso, queria que ela o aceitasse por livre e espontânea vontade. Frustrado mais uma vez, Simon deixou que Bethia se afastasse. Ainda lhe restava um pouco de orgulho e dignidade e mulher alguma lhe roubaria isso. Cerrando os punhos, jurou ignorá-la, até que ela visse por si mesma o erro que havia cometido, até que ela o procurasse. Então, talvez, ele voltasse a tocá-la. Ora, ela teria de implorar! Nos dias que se seguiram, Simon manteve-se fiel à sua decisão. Infelizmente, o simples fato de saber que Bethia também reconhecia a atração que os impelia um para o outro ameaçava sua determinação. Pior ainda, eram as lembranças ardentes dos dedos dela cravados em sua pele, dos lábios quentes sob os seus e a pequena marca avermelhada em seu ombro. Bethia o marcara, de diversas maneiras. Simon sentia como se seu mundo houvesse sido virado de cabeça para baixo, e ele caminhasse sobre o azul do céu, sem compreender a própria existência. Em sua experiência, sempre acreditara que as mulheres eram o sexo frágil, a serem protegidas e guardadas. No entanto, Bethia movimentava-se à vontade pela floresta, vestindo roupas de homem, dando ordens e lutando tão bem quanto aqueles que a seguiam. Durante toda a sua vida, Simon acreditara que as mulheres eram seres inúteis, mas agora, sentia-se ocioso e ineficiente, no papel de supervisor das escavações do túnel. Bethia ignorava-o, como se ele não passasse de algum tipo de ornamento, e era somente a determinação inabalável de Simon que o impedia de voltar a Baddersly. Eram as mulheres que deveriam chorar a distância de seus cavaleiros e passar horas a contemplar poemas românticos e músicas tristonhas. Simon, porém, passava boa parte de seu tempo a observar o objeto de seu desejo, suspirando por ela. Pior que isso era o fato de estar constantemente aflito por uma excitação mais típica de garotos do que de um cavaleiro de sua posição. Começava a preocupar-se com isso. Mais de uma vez, disse a si mesmo que, talvez, Florian estivesse certo e ele estivesse sofrendo de alguma doença. Embora jamais houvesse ouvido falar de um homem que tivesse morrido de desejo contido, considerou a idéia de procurar um curandeiro. Ao mesmo tempo, hesitava ao pensar em como explicar seus sintomas, além de ter certo receio com relação ao remédio que o médico, ou um curandeiro, recomendaria. Até então, um bom mergulho no riacho gelado era sua única fonte de alívio, mas embora a água esfriasse seu corpo, pouco fazia por sua mente, ou pelo fogo que ardia ininterruptamente em seu peito. Perguntou-se se a pá de Firmin o atingira naquele ponto, também, pois tinha a impressão de que uma grande infecção se alastrava e o corroía por dentro. Atirando a túnica na margem do riacho, Simon passou a mão em círculos, sobre o coração. Estava ficando velho demais para esse tipo de coisa, pensou. Então, imobilizou-se, considerando o que acabara de pensar. A idade nunca fora uma questão à qual ele desse atenção. Dunstan era o mais velho e sempre seria, por causa da ordem de nascimento dos irmãos. Porém, os anos estavam passando depressa. Com um ligeiro sobressalto, Simon deu-se conta de que Dunstan já havia se casado, quando chegara à idade que Simon tinha agora. Tal descoberta levou-o a perguntar-se se a frustração sexual que o atormentava poderia ser um sintoma de maturidade. Era possível que existisse alguma coisa dentro de cada homem que o levava a se casar em um certo estágio da vida, a procriar e garantir a linhagem de seu sangue para a próxima geração. Embora muito simples, tal noção continha as respostas para muitas das perguntas de Simon. Nunca pensara em se casar, pois não encontrava utilidade para as mulheres e pouco se importava com a reprodução. Tendo seis irmãos, imaginara que um deles, ao menos, se encarregaria da tarefa de garantir a continuidade dos de Burgh. Na verdade, Dunstan e Geoffrey já tinham filhos e, 94

portanto, haviam liberado Simon de tal obrigação. Assim, ele não tinha a menor necessidade de produzir herdeiros, nem o desejo de se ver amarrado a uma mulher pelo resto da vida. Até conhecer Bethia, a única mulher por quem ele sentia admiração, que partilhava dos mesmos interesses, que se igualava a ele em matéria de força de caráter e determinação, que despertava seus sentidos, fazendo com que ele passasse a maior parte do tempo excitado como um garoto. E o casamento seria a solução perfeita. Simon respirou fundo, à medida que as possibilidades desfilavam em sua mente. Bethia sem medo da gravidez. Bethia em sua cama. Na floresta. No riacho. Sob ele. Por cima dele. De todas as maneiras possíveis. Sentiu o coração disparar, enquanto o corpo ficava ainda mais tenso de desejo. Bethia, sua, para sempre. Definitivamente, valia a pena analisar tal idéia. Por outro lado, por que perder mais tempo? Apanhou a túnica e vestiu-a, os lábios curvando-se em um sorriso. Assim como a batalha decisiva que vencia uma guerra, aquela era a resposta que ele estivera procurando e, quanto antes resolvesse a situação, melhor.

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CAPITULO XII

Anoitecia, quando Bethia ouviu passos aproximando-se de sua cabana. Quem quer que estivesse chegando, não fazia a menor questão de manter silêncio. Aliás, os passos soavam tão pesados, que ela imaginou um gigante encaminhando-se para a cabana minúscula, a fim de esmagá-la. Tendo acabado de se deitar, Bethia rolou com agilidade, apanhando a espada antes mesmo de se pôr de pé. Mesmo assim, ela mal se posicionara, quando a porta se abriu com um estrondo, sem qualquer batida ou aviso anterior. Bethia não teve tempo de interrogar o visitante, pois uma figura enorme e ameaçadora já atravessava a soleira. Com a habilidade resultante de longa prática, ela não hesitou antes de atacar a forma escura com sua espada, antes que a criatura tivesse a chance de atacá-la primeiro. Porém, em vez de reagir e lutar, seu oponente praguejou em alto e bom som, em uma voz familiar, que fez a espada cair de seus dedos trêmulos. — Ah, não! Simon! — Bethia gritou, em pânico, ao mesmo tempo que estendia os braços e pousava as mãos frenéticas no corpo musculoso. — Está tentando me matar? — ele resmungou, quando os dedos dela encontraram o rasgo em sua túnica. A acusação transformou o medo de Bethia em indignação. — Por que não está usando a armadura? — ela inquiriu com voz dura. — Porque não esperava ser atacado! — Deveria estar sempre preparado para um ataque! — Bethia argumentou, um segundo antes de seus dedos sentirem a umidade do sangue de Simon. — Ah, meu Deus! Cortei você! O pânico voltou a sacudi-la e, forçando-o a dar meia-volta, ela soltou-lhe o cinturão e deixou-o cair no chão. Como a túnica atrapalhasse o exame do ferimento, Bethia ergueu-a, até que Simon levantou os braços, deixando que ela o despisse parcialmente. — Está escuro demais, aqui. Vamos até a porta — ela sussurrou, aflita, arrastandoo para a entrada da cabana. Infelizmente, o dia se fora e a iluminação não era suficiente. Por isso, ela se ajoelhou para acender a lareira. Simon permaneceu imóvel e silencioso, atrás dela, e Bethia perguntou-se por que ele estaria se comportando de maneira tão estranha, uma vez que não era do feitio do cavaleiro irascível ser tão dócil e submisso. Bem, talvez, fosse a dor do corte. Por que mais ele a deixaria apalpá-lo, virá-lo e cutucá-lo, na semiescuridão? Foi somente quando as chamas se ergueram e Bethia virou-se, que uma outra possibilidade lhe ocorreu. Abaixada diante do fogo fraco, ergueu os olhos e… perdeu o fôlego. Simon continuava de pé, parecendo enorme e formidável, sem dar sinais de possuir um ferimento. Estava despido da cintura para cima, o peito largo, coberto de pêlos negros, reíletindo o brilho avermelhado do fogo. Por um momento, Bethia foi incapaz de mover-se, ou de falar, pois descobriu-se hipnotizada pela beleza máscula à sua frente. Fixou os olhos no ventre liso, sentindo o olhar dele a queimar-lhe a pele, sentindo o sangue latejar em suas veias. Respirando fundo, forçou-se a concentrar a atenção no local do ferimento, onde Simon voltara a sangrar. Depois de um exame cuidadoso, concluiu que o corte era superficial e, então, suspirou aliviada. — Foi só um arranhão — Simon murmurou, como se houvesse lido os pensamentos dela. — Sua intenção era marcar-me com sua espada, da mesma maneira que me marcou com seus dentes? As palavras sussurradas em voz rouca fizeram Bethia estremecer diante da 96

lembrança de sua recente perda de controle. Fechando os olhos, ela tentou afastar imagens de Simon e ela, na cabana, os lábios colados, os corpos pressionados um contra o outro… Permaneceu na mesma posição, pois teve medo de se levantar, de olhar para ele. O que Simon faria? Se ele a tocasse, teria forças para rejeitá-lo? — Se foi — ele continuou com voz ainda mais suave —, saiba que prefiro sentir a sua boca, ao metal de sua espada. A arrogância de Simon salvou-a, pois Bethia irritou-se com tamanha presunção. Por que ele não podia, simplesmente, deixá-la em paz? Quantas vezes ela teria de lhe dizer não? Até quando ele pretendia testá-la? Endireitando-se, empinou o queixo e encarou o homem que brincava com seus sentimentos, de maneira tão injusta. — Teve sorte por não ter sido atravessado pela lâmina de minha espada, idiota! — sibilou, cruzando os braços. — Como se atreve a entrar aqui, sem bater? Não tem o direito de… As palavras morreram nos lábios de Bethia, diante do olhar de advertência que Simon lhe lançou. — Você já me enlouqueceu por tempo demais — ele murmurou com um brilho selvagem no olhar, que assustou Bethia. Assim como as mãos firmes que pousaram nos ombros dela. Sabendo que seria um grande erro permitir que ele a tocasse, Bethia tratou de esquivar-se rapidamente. Então, apanhou a túnica de Simon, que havia atirado no chão, em sua ânsia de examinarlhe o ferimento, e estendeu-a para ele. Simon, porém, não a pegou. Por um longo momento, permaneceram em silêncio. Os únicos sons na cabana eram da respiração alterada de ambos e do crepitar do fogo. Embora não olhasse para ele, Bethia sentiu os olhos de Simon fixos em seu rosto, com uma intensidade que parecia capaz de queimá-la. Desesperada, falou em tom brusco: — Vista isso e deixe-me em paz, Simon! Eu já disse que não vou me deitar com você! Bateu no peito largo à sua frente, mas Simon não fez menção de obedecê-la, provocando nela uma pontada de pânico. Ali estava um inimigo que ela não sabia como combater, pois ele não se detinha diante da frieza ou de palavras rudes e, nem mesmo, da ameaça de sua espada. Bethia não seria capaz de ignorá-lo, ou de enganá-lo, nem de vencê-lo em luta. E a determinação de Simon era tão firme quanto a dela. O que aconteceria se ele voltasse a tocá-la? Bethia sentia o tênue controle se dissipar. Estavam muito próximos. Suas mãos, ocupadas em segurar a túnica, poderiam abandonar o tecido e, com facilidade, acariciarem os músculos firmes do abdômem de Simon. O fogo aquecia-lhe as costas, mas não era nada se comparado ao calor que Simon emanava. Bethia respirou fundo, mas o que aspirou foi o odor másculo e tão característico de Simon. Sentiu-se atordoada de desejo. — Então, case comigo — ele falou de repente. Bethia ficou imóvel, chocada e incrédula. Com certeza, não ouvira bem o que ele dissera. — O quê? — inquiriu, finalmente erguendo os olhos para fitá-lo. Divisou nas sombras as feições que haviam se tornado tão preciosas para ela, que Bethia sentia-se tentada a arriscar tudo pelo prazer que sabia que encontraria nos braços dele. No entanto, não encontrou a retribuição de tamanha afeição naquele olhar. — Case comigo — ele repetiu. Naquele momento, Bethia sentiu o coração, que até então fora guardado com tanto cuidado, despedaçar-se. Aquela não era uma oferta de união apaixonada, mas sim mais uma ordem que Simon dava entre dentes. — Então, você não precisará temer o risco de gravidez. Se uma criança nascer, ela terá o meu nome — Simon acrescentou, sem se mostrar entusiasmado pela perspectiva. Embora Bethia jamais houvesse sonhado em constituir uma família, ela se sentiu 97

ultrajada pela atitude que ele demonstrava com relação a um bebê inocente. Porém, não teve chance de questioná-lo, pois Simon prosseguiu com seu discurso: — Expulsarei Brice e retomarei Ansquith, eu prometo. Se for necessário, derrubarei aqueles muros, com a força dos exércitos dos de Burgh. Bethia fitou-o, incrédula. Não era a ausência de amor na proposta de Simon que a magoava, uma vez que ela nunca confiara em sentimentos tão etéreos. Também não a feriu a menção de batalhas, em lugar de palavras românticas. Foi a maneira como ele a fitava, como se ela não fosse nada além de uma fraqueza de seu corpo, que ele desprezava. E, também, a maneira como ele falava, sem a menor consideração com os pensamentos dela, ou os sentimentos e desejos. Mais alarmante ainda eram os planos de Simon com relação a Ansquith, que ele pretendia "retomar" por si mesmo, sem sequer mencionar a presença dela. — E você e seus irmãos salvarão meu pai e minha propriedade, enquanto eu estiver descansando e me divertindo em Baddersly? — Bethia perguntou com voz enganosamente suave. Apesar de demonstrar certa surpresa pela pergunta, Simon assentiu. — Seria mais seguro — disse. Recuando um passo, Bethia plantou as duas mãos no peito de Simon e empurrouo com toda força. O ataque inesperado tirou-lhe o equilíbrio e ele cambaleou para trás. Aproveitando a oportunidade, ela o pôs para fora da cabana. — Saia! — Bethia gritou, incapaz de controlar o tom de voz. — Saia daqui! Ignorando a expressão chocada do rosto de Simon, ela bateu a porta com violência. Então, apoiando-se contra a madeira, jurou nunca dar a um homem qualquer poder sobre ela, ou sobre suas terras. Nunca mais voltaria a viver sob o domínio de outra pessoa, sem poder desfrutar de sua liberdade. Alguns momentos de prazer não valiam uma vida de servidão e, embora ela sentisse admiração e afeição, além do desejo intenso que tinha por Simon de Burgh, não se deixaria influenciar por ele. Sabia que tal atitude certamente dificultaria a batalha que teria pela frente, mas mesmo que Simon decidisse não ajudá-la, Bethia não se curvaria às vontades dele, ou de homem algum. Ao ouvir resmungos e passos se afastando, deu-se conta de que Simon decidira deixá-la em paz. Então, deitou na cama de palha, determinada a curar o coração que ele ferira com tamanha crueldade. Durante a longa noite, Bethia construiu uma barreira eficiente ao seu redor. Ao longo de muitos anos, vivera isolada de contato humano e, por isso, tinha o hábito de ficar sozinha. Também tinha lembranças dos anos perdidos, da opressão, para lembrá-la do alto preço que pagaria se abrisse mão de sua independência. Embora não acreditasse que Simon jamais a obrigasse a trabalhar como escrava, como Gunilda fizera, Bethia decidiu concentrar-se naquela perda de liberdade. Imaginou a vida atrás dos muros de um castelo, onde o contato era limitado a criados, onde Simon a deixaria, para ir aonde ele bem entendesse, para fazer o que ele quisesse, enquanto ela esperava, relegada às tarefas que ele lhe designasse. E quando sua mente desviava-se para os aspectos mais agradáveis de uma união com o cavaleiro, Bethia forçava-se a pensar no que perderia, em vez de imaginar o que ganharia. Afinal, havia pouco a ganhar na proposta fria que Simon fizera. Bem, viriam as noites frias, passadas na cama quente e macia, em que ela exploraria os mistérios daquele corpo espetacular, ao mesmo tempo que se entregaria aos prazeres de seu próprio corpo. Mas, embora algum tempo antes, Bethia houvesse desfrutado de conversas amigáveis, ultimamente os interesses comuns haviam dado lugar a palavras duras e competição pelo poder. E, no final, Simon provara não ter o menor respeito pelas habilidades dela, vendo-a apenas como um corpo a ser usado e deixado de lado. 98

Se Simon queria um ornamento inútil, por que não se casava com uma das tantas encontradas na corte? Por que a atormentava tanto, levando-a a pensar que eram parecidos, quando, na verdade, ele não era diferente de qualquer outro homem? Bethia culpou-se pela atração que sentira pelo primeiro verdadeiro cavaleiro que conhecera em muitos anos. E, mesmo quando jurava não abrir mão de sua liberdade, perguntava-se o que a luz do dia traria. Os homens eram temperamentais, seres orgulhosos. Se Simon fosse assim, como reagiria à recusa de Bethia? Usaria a traição como vingança? Sem saber ao certo o que esperar, Bethia sentiu-se aliviada ao vê-lo aparecer na mina, no final da tarde. Apesar de tudo o que repetira para si mesma ao longo da noite, sentiu uma pontada de dor quando ele a fitou com a expressão fria de um inimigo. Então, perguntou-se se, algum dia, haviam sido amigos. Respirando fundo, lembrou-se da noite em que haviam conversado, enquanto comiam coelho assado, mas logo tratou de afastar as lembranças, bem como das vezes em que haviam discutido estratégias, comando, armas e as exigências cotidianas da vida na floresta. Forçou-se a lembrar-se da expressão hostil no rosto de Simon, na primeira vez em que ela o derrotara, e de todos os confrontos que haviam tido desde então. Não era amizade, mas sim a luta pela supremacia que permeava seu relacionamento e, agora, a batalha final fora delineada. — Está quase completo — Simon declarou, inclinando-se na direção da entrada. — Bom — Bethia murmurou. No silêncio constrangido que se seguiu, ela tentou reunir a força necessária para tocar no assunto que continuava pendente entre eles. Embora uma parte dela lhe dissesse, covardemente, para ignorar a questão, Bethia recusava-se a ceder, pois precisava certificar-se da posição de Simon. — Não teríamos conseguido fazer isso sem você e, por isso, sou muito grata — começou, erguendo os olhos para fitá-lo. Seria sofrimento a sombra que obscurecia aqueles olhos cinzentos? Não, pois a boca de Simon formou uma linha dura. — Creio que podemos prosseguir sozinhos, daqui por diante. Ele soltou uma gargalhada sonora. — Um bando de arqueiros contra cavaleiros? Impossível — declarou com a arrogância costumeira. Bethia ignorou o insulto. — Mesmo assim, não tenho a intenção de cobrar a promessa que você fez. No mesmo instante, ela se deu conta de que escolhera as palavras erradas, pois a tensão que tomou conta de Simon era visível. — Sou um de Burgh — ele disse. — Sempre honro meus compromissos. A palavra "compromisso" fez Bethia pensar na proposta de Simon. Perguntou-se se ele também honraria o compromisso do casamento. Ora, ela nunca saberia. Bethia assentiu e virou-se, tomada por uma sensação estranha, como se o tivesse traído, quando na verdade, tudo o que fizera fora se proteger. Como havia aprendido muito tempo antes, se não protegesse a si mesma, ninguém mais o faria. Ignorando a partida de Bethia, Simon voltou à mina e pôs-se a trabalhar com força desnecessariamente excessiva. Ela continuava tentando livrar-se dele! Não bastava tê-lo rejeitado e recusado até mesmo sua honrada proposta de casamento, agora ela queria vê-lo longe, definitivamente! Mas ele não lhe daria essa satisfação. Por mais que ela o insultasse, Simon iria até o fim, no cumprimento de suas responsabilidades para com Ansquith. Não tinha a menor intenção de esconder-se, só porque Bethia não suportava a sua presença. Na verdade, fizera essa tentativa na noite anterior. Voltara para Baddersly, onde até mesmo as atenções exageradas de Florian haviam sido bem-vindas. Depois de ter sido rejeitado por Bethia, Simon sentira-se desolado e infeliz, carente de companhia 99

familiar, mas o castelo não lhe oferecera conforto. Ora, ficara tão deprimido, que chegara a sentir saudade dos irmãos, pela primeira vez em sua vida adulta. Pior que isso foi a insegurança que o invadiu, com relação ao túnel e à batalha que se aproximava, e que o levou a questionar a própria capacidade. A recusa de Bethia à sua proposta de casamento havia virado sua vida de cabeça para baixo, fazendo com que ele passasse a duvidar de tudo, inclusive de si mesmo. Se algo desse errado, quem a ajudaria? Apesar de ela o evitar mais do que antes, a segurança de Bethia pesava sobre seus ombros e tal preocupação o mantivera acordado até tarde da noite. Acabara decidindo enviar um mensageiro a Campion, para explicar a situação a seu pai, caso Dunstan se encontrasse ocupado demais com os negócios de Wessex, para se importar com um problema tão sem importância, nas vizinhanças da propriedade de sua esposa. Depois de uma noite maldormida, despachara o mensageiro ao amanhecer e, então, cavalgara sozinho pelos campos, a fim de se certificar de que conhecia bem o terreno onde lutaria, caso a necessidade surgisse. Até então, ninguém vira sinais dos temidos mercenários e Ansquith parecia pacífica, mas Simon queria estar preparado para qualquer eventualidade. Aquela pequena batalha havia se transformado na mais importante de sua vida, desde que se tornara um guerreiro, e ele estava determinado a vencê-la. E uma vez resolvida aquela questão, Simon estaria livre de qualquer obrigação. Jurou para si mesmo que, quando Bethia estivesse instalada em Ansquith, junto do pai, ele deixaria Baddersly para sempre. Embora estivesse determinado a cumprir sua determinação, não informara ninguém sobre suas intenções, nem mesmo o pai, na mensagem que enviara. Simon sempre sonhara em lutar nos exércitos de Edward, como Dunstan fizera, mas Campion não aprovara, recusando-se a permitir que todos os filhos servissem o rei. Agora, porém, Simon estava decidido a seguir seu próprio caminho, mesmo que para isso tivesse de desafiar a vontade do pai. O que significava pouco para ele, assim como tudo mais que um dia fora importante em sua vida. Nem mesmo a perspectiva de finalmente engrossar as fileiras de Edward o entusiasmava. Batalhas, vitórias e as devidas recompensas haviam perdido o brilho. A verdade era que Simon decidira realizar seu sonho, mas descobrira tratar-se de um sonho vazio. Mesmo assim, não voltaria para casa, para o conforto duvidoso de sua família. Não era do seu feitio desabafar as insatisfações para os irmãos e, se o fizesse, eles ririam e zombariam de suas queixas atuais. E, claro, não poderia ficar ali, onde todos os lugares guardavam lembranças de Bethia, onde provavelmente a veria cavalgando, de vez em quando e, talvez, fosse obrigado a assistir ao casamento dela com outro homem, um dia. Tal pensamento provocou-lhe uma intensa pontada de dor. Nos momentos de maior lucidez, Simon mal acreditava na própria reação à rejeição de Bethia. Não só o seu orgulho fora ferido mais uma vez por aquela mulher, mas havia um vazio em seu peito, como se ela houvesse ordenado a um cirurgião que removesse alguma parte vital de suas entranhas. Ao menos, o desejo ardente se fora. Provavelmente, para sempre, pois Simon não conseguia sequer imaginar-se desejando outra mulher. Na verdade, não conseguia imaginar-se querendo qualquer coisa. Era somente a determinação de compensar todas as suas frustrações com a destruição de Brice Scirvayne que o mantinha em ação. E, para isso, Simon fora até a floresta, a fim de verificar como iam as escavações. Estava tão impaciente pela conclusão do túnel, que pensou em ajudar os mineiros, mas a simples idéia de aprofundar-se na escuridão já o deixava sem fôlego e, por isso, decidiu limitar-se à entrada da passagem, ajudando os arqueiros a remover a terra retirada de lá. E continuou a trabalhar duro, mesmo depois de Bethia ter partido, sentindose grato pela possibilidade de uma atividade física onde gastar a energia represada. E depois do jantar, voltou à mina, como se a força de sua vontade pudesse completar a 100

escavação. — Milorde! — alguém chamou de dentro da mina, e Simon foi espiar. — Milorde, tivemos um problema. Poderia descer e dar uma olhada? Simon praguejou baixinho. Teria o inimigo descoberto o túnel? Ou teriam os mineiros, simplesmente, se deparado com uma grande rocha? Embora soubesse que diversos problemas poderiam ocorrer lá embaixo, não o agradava a idéia de descer e ver por si mesmo o que acontecia. Aquela não era uma tarefa para cavaleiros, mas sim para mineiros, para… quem quer que estivesse no comando. No mesmo instante, uma imagem de Bethia descendo pelo túnel formou-se em sua mente. Depois de praguejar novamente, Simon cerrou os dentes e forçou-se a descer pela escada estreita. A medida que a escuridão o envolvia, Simon lutou contra a claustrofobia que ameaçava sufocá-lo. Tentou não pensar nas paredes de terra úmida, nos frágeis pedaços de madeira que sustentavam precariamente todo o peso do mundo lá em cima. Respirando fundo, concentrou-se em Bethia e seguiu adiante. Quase imediatamente, avistou uma luz, que logo reconheceu como sendo um lampião nas mãos de um dos homens de Bethia. — Vou chamar Will. Poderia ficar no meu lugar, enquanto isso? — o homem falou, estendendo-lhe o lampião com gestos apressados. Antes mesmo que Simon tivesse tempo de responder, o homem se fora, desaparecendo na escuridão. Parado no túnel silencioso e abafado, Simon admitiu para si mesmo que preferiria sair ele mesmo à procura de Will, em vez de ficar ali e ajudar quem quer que se encontrasse mais adiante. Ao mesmo tempo, sabia que seria uma grande covardia sair correndo atrás do homem que se afastava. Resmungando um palavrão, reuniu toda a sua determinação e, abaixando-se, encaminhou-se na direção do suposto problema. Notou, com satisfação, que o túnel inclinava-se gradualmente para cima, de acordo com suas instruções. O risco de Brice mandar seus homens inundarem a passagem era mínimo, mas Simon acreditava com firmeza na necessidade de estarem preparados para qualquer eventualidade. Infelizmente, nada poderia prepará-lo para aquela excursão lenta através do túnel escuro, úmido e sufocante. O cheiro da terra molhada penetrou-lhe as narinas, provocando-lhe a sensação de estar preso em uma armadilha. Recusando-se a sucumbir à força do pânico, Simon forçou-se a pensar em Bethia. Quanto antes o túnel estivesse pronto, mais cedo ela teria o que desejava, e mesmo que os desejos dela não o incluíssem, Simon lutaria até a morte para satisfazê-los. Era um de Burgh e honraria sua palavra. Franzindo o cenho, deu-se conta de que deveria chegar logo ao final da passagem, mesmo detestando a idéia de ver-se diante de uma parede negra, que marcava o ponto onde haviam parado as escavações. Teria atacado Ansquith, de espada em punho, sem pensar duas vezes, mas aquela lenta caminhada pelas profundezas da terra provocavalhe suores frios. Disse a si mesmo que era o calor, e não sua própria fraqueza, que o fazia sentir assim. Ao que parecia, atingira o fim do túnel, mas onde estava o homem que, supostamente, precisava de ajuda? Mal formulara a pergunta para si mesmo, Simon ouviu um ruído atrás de si. Virou-se a tempo de ver um carrinho de mão disparado na sua direção. Encolheu-se o mais que pôde, contra a parede de terra, mas sendo a passagem muito estreita, a roda atingiu-lhe uma das pernas, tirando-lhe o equilíbrio. No mesmo instante, seu mundo mergulhou na mais absoluta escuridão, pois ele perdeu o lampião e foi coberto pela terra que caiu do carrinho. Por um momento, deixou-se dominar pelo pânico, agitando os braços na tentativa de livrar-se da terra que o cobria. Então, conseguiu sentar-se e respirou fundo, com desespero, a fim de evitar o sufocamento que o ameaçava. Na escuridão total, Simon sentiu-se tonto e desorientado. Para onde havia se virado? Respirando fundo mais uma 101

vez, forçou-se a se concentrar e colocou-se de pé. Infelizmente, era tarde demais. Mal acabara de se levantar, com a mão firme no cabo da espada e preparado para enfrentar o inimigo desconhecido, sem a visão para guiá-lo, Simon ouviu o estalar da madeira cedendo e, então, se partindo, seguido pelo som abafado da terra caindo. Atirando-se na direção do barulho, rolou no chão, ao mesmo tempo que o teto do túnel desabava. Cobriu a cabeça com as mãos, mas grandes bocados de terra caíram sobre suas costas com força impressionante. Segundos depois, sentiu a boca cheia de terra. Nada mais existia, além da escuridão e do peso que o mantinha imóvel. Foi somente depois que o rugido do desabamento cessou de ecoar pelo que restava do túnel que Simon ouviu a voz. Gemeu em resposta, mas a única reação que provocou foi uma gargalhada. Firmin. Simon praguejou consigo mesmo, ao reconhecer a voz do arqueiro. Teria o sujeito destruído o túnel deliberadamente? Com que propósito? — E agora, cavaleiro? — Firmin inquiriu em tom de zombaria. — Foi avisado para ficar longe dela, mas não foi capaz de impedir que suas mãos imundas a tocassem, não é? E, por causa do seu bom nome e da sua riqueza, além de seu grande exército, ela permitiu que tocasse, não foi? Embora Simon não pudesse responder, Firmin praguejou aos berros, como um homem enlouquecido. — Eu o vi, ontem, na cabana, seminu, com a porta aberta, como se quisesse exibir o uso que faz dela. E eu sabia que era só por causa deste túnel idiota. Pois, agora, está acabado! Depois do que acaba de acontecer aqui, ninguém mais vai se dispor a escavar esta área. E Bethia será minha! Está me ouvindo, bastardo? Espero que esteja, pois vou lhe dizer, exatamente, o que vou fazer com ela, como vou possuí-la, muitas e muitas vezes. Enquanto você estiver aqui, respirando pela última vez, eu a terei no chão da floresta, como uma cadela, toda para mim! Sentindo o sangue latejar nas têmporas, Simon lutou com violência, até conseguir afastar a terra para poder respirar. Se Firmin continuava recitando obscenidades sobre Bethia, Simon já não o ouvia. Bethia… Seu peito voltou a doer, quando ele pensou nela. Mate-o, Bethia, Simon pensou, cerrando os olhos, na esperança de que a força de seu pensamento enviasse a mensagem ao seu destino, antes de perder a consciência. Embora não fosse covarde, Bethia fizera o possível para evitar Simon depois daquele breve encontro. Então, preferira a solidão da cabana, ao risco de encontrá-lo durante o jantar. Sentia-se esgotada e acreditara que seria melhor manter-se longe dos olhares curiosos de seus homens. Porém, a luz fraca do anoitecer trouxera consigo lembranças da noite anterior, quando Simon invadira a cabana, com uma proposta de casamento. Na verdade, podia ouvir os passos pesados e ruidosos lá fora. Pânico, raiva e um estranho prazer misturaram-se, enquanto ela se punha de pé e abria a porta. — Eu lhe disse para me deixar em paz! — gritou, mas recuou em seguida, surpresa. Não era Simon quem se encontrava parado diante da cabana, mas sim, Firmin. — O que foi? Algum problema? — perguntou, tentando desviar os pensamentos de Simon de Burgh para a possibilidade de alguma dificuldade que houvesse surgido entre seus homens. — Não há problema algum — Firmin respondeu, entrando e fechando a porta atrás de si. Sem dúvida, o arqueiro voltara a imaginar traições que exigiam o mais absoluto segredo. Infelizmente, Bethia não sentia a menor disposição em acalmá-lo. Cruzando os braços, perguntou em tom impaciente: — O que foi, então? — Estou com você desde o início — ele começou a falar, adiantando-se para ela. 102

— Não fosse por mim, você estaria apodrecendo naquele calabouço, ou já teria se casado com Brice. Nunca exigi pagamento. Simplesmente a segui, aceitando suas ordens, como o restante dos homens, quando nós dois sabíamos que eu era diferente. E já esperei tempo demais. Confusa e apreensiva, Bethia recuou um passo, perguntando-se se ele havia bebido. As faces de Firmin apresentavam-se afogueadas e ele parecia mais agitado que o normal, como se houvesse feito algo errado. Antes que ela conseguisse chegar a uma conclusão sobre o que estava acontecendo, Firmin atirou-se sobre ela, prensando-a contra a parede da cabana. O volume pressionado contra seu ventre não deixava dúvidas quanto ao seu significado. E quando Bethia abriu a boca para protestar, ele colou os lábios aos dela com violência. Aflita, Bethia tentou mordê-lo, mas Firmin apenas soltou um gemido e deslizou uma das mãos entre as pernas dela. Na posição em que se encontrava, ela não conseguia se mover, pois Firmin prendera seus braços entre os corpos de ambos, agarrando-lhe os punhos com firmeza. Seria impossível alcançar a espada e o peso do corpo dele a impedia de chutá-lo. Por um momento, Bethia pensou que o arqueiro estivesse bêbado e que não representava uma verdadeira ameaça. No entanto, quando ele deslizou a mão por dentro de suas roupas, ela se deu conta de que o perigo era mais sério do que havia imaginado. — Agora, vou possuí-la, como sempre desejei, e você vai se esquecer daquele maldito de Burgh — Firmin declarou e, para o horror de Bethia, começou a livrar-se das próprias roupas. — Já cuidei dele em caráter definitivo. As palavras do arqueiro, muito mais do que seus atos, colocaram Bethia em ação. Com a força nascida do desespero, ela ergueu uma das pernas e, então, pisou com toda força no pé de Firmin. Quando ele se encolheu, ela acertou-lhe uma cotovelada no rosto, ao mesmo tempo que puxava a espada da bainha. Agora, era Firmin quem se via encurralado contra a parede, a ponta da lâmina encostada no ventre. — O que fez a ele? — Bethia inquiriu. — Pouco importa de Burgh e seu túnel estúpido! Está tudo acabado, inclusive ele! Agora, você me pertence! Atirou-se para ela com um rugido animalesco e Bethia reagiu instintivamente, protegendo-se contra o ataque com a arma que havia muito tempo aprendera a dominar. A expressão de Firmin teria sido cômica, não fosse a seriedade da situação. Mesmo enquanto olhava para a espada que Bethia cravara em seu ventre, mostrava-se incrédulo. — O que… — ele tentou falar, mas o sangue já jorrava do ferimento. Embora, por Simon, Bethia não devesse sentir piedade por aquele bandido, ela seria incapaz de permitir que até mesmo um cachorro sangrasse até a morte. Então, com outro golpe certeiro, certificou-se de que Firmin estava morto. Em seguida, chamou seus homens.

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CAPÍTULO XIII

Quando Bethia alcançou a clareira, os homens que terminavam o jantar levantaram-se com gritos de horror. Só então ela se deu conta de que sua túnica encontrava-se coberta de sangue, oferecendo a evidência irrefutável da vida que ela acabara de tirar. — Firmin está morto — anunciou. — Ele me atacou e tive de matá-lo. Uma onda de murmúrios tomou conta do ar e Meriel adiantou-se, como se pretendesse ajudá-la, mas Bethia afastou-a com um gesto. Não tinha tempo a perder consigo mesma ou com o arqueiro morto. — Ele disse que destruiu o túnel e acho que… — Pela primeira vez, a voz de Bethia falhou e ela teve de fazer uma pausa e limpar a garganta, antes de continuar: — Acho que Simon está lá embaixo. No mesmo instante, John pôs-se a organizar os homens de uma maneira que Bethia não conseguiria em seu atual estado de agitação. Com ordens rápidas e objetivas, o arqueiro enviou a maior parte deles para o túnel, enquanto outros eram despachados para encontrar os mineiros e montar guarda ao redor do acampamento. Quando só restaram os dois na clareira, John aproximou-se de Bethia e perguntou: — Está ferida? — Não — ela respondeu, dizendo a mais pura verdade. Nada de mau acontecera a seu corpo, mas a dor que tomara conta dela era pior do que qualquer ferimento. Era como se seu coração sangrasse pelo cavaleiro que poderia já estar morto. — Não se preocupe comigo. É em Simon que devemos pensar agora — acrescentou. John estudou-a por um momento, como se quisesse se certificar de que ela estava bem e, então, assentiu. — Vamos ver como está o seu cavaleiro — disse, virando-se na direção do túnel. Sem sequer tentar contradizer a afirmação de que Simon lhe pertencia, Bethia seguiu-o, apressada. Quando chegaram lá, vários homens já se encontravam debaixo da terra. — Ao que parece, as toras de sustentação foram cerradas! — alguém gritou. Bethia teve de lutar contra o impulso de empurrar a todos e entrar ali, para ver com os próprios olhos o que acontecera. Afinal, não entendia absolutamente nada de escavações e túneis. Sabia que tinha de se manter fora do caminho, mas era difícil abrir mão até mesmo daquela pequena parte do controle da situação. Assim como fora difícil para Simon. Seriam mesmo tão diferentes? Ele fazia o que acreditava ser o certo, convencido de que era o único a saber o melhor rumo a seguir. Para todos. Reprimindo um soluço, Bethia cruzou os braços, como se assim pudesse impedir que a má notícia que, certamente, estava a caminho, a atingisse. Muitos homens haviam morrido na mineração do ferro. Algumas vezes, a terra desabava sobre eles, enterrandoos e, se não morriam pelos ferimentos fatais que sofriam, logo deslizavam para a inconsciência e, finalmente, para a morte, por falta de ar. Um som desesperado escapou dos lábios de Bethia, quando ela imaginou Simon morrendo daquela lenta tortura. Então, reagiu da única maneira que conhecia, sentindo raiva do grande cavaleiro. Ele não deveria ter entrado no túnel! O que ele fora fazer lá embaixo, afinal? Bethia conhecia a resistência dele em entrar em lugares abafados, especialmente, debaixo da terra. Ainda assim, o túnel fora idéia dele. Sem considerar as dificuldades pessoais, Simon utilizara seus conhecimentos para traçar um plano eficaz e garantir que tudo fosse 104

feito da maneira correta. Tudo por ela. Tal constatação encheu os olhos de Bethia de lágrimas e provocou um nó em sua garganta. Respirando fundo, disse a si mesma que Simon fizera apenas o que tinha de fazer, o que qualquer outro cavaleiro teria feito, mas tal explicação não lhe proporcionou o menor conforto. Assim como não evitou a torrente de sentimentos que ameaçava sufocála. Afinal, quando ela lutava pela própria vida, assumindo o papel de um bandido lutando contra as autoridades, ninguém mais estendera a mão para ajudá-la e fazer o que era certo. Era verdade que outros a haviam ajudado a fugir do calabouço e, também, a roubar suprimentos de Brice, mas somente Simon se colocara a seu lado, sem ter qualquer outro motivo, além de seu grande senso de justiça. Ele entrara em sua vida como se fosse uma força da natureza, incontrolável, determinado a fazer só o bem. Por ela. Uma lágrima solitária caiu pela face de Bethia, quando ela se deu conta de que, apesar da arrogância e teimosia de Simon, ele significava muito mais do que ela ousara admitir. Mesmo que ele houvesse tentado governar sua vida, contra o desejo dela, Bethia necessitava da presença dele, de seu corpo, da voz rude. Nada disso tinha lógica, mas Bethia suspeitava que a lógica não se aplicava às questões do amor. Amor. Bethia imaginara-se forte e imune a sentimentos que passara a desprezar, anos antes. Porém, enquanto esperava na escuridão crescente, acendendo lampiões e apanhando ferramentas, admitiu o que se recusara a enxergar nas últimas semanas. Todos os seus esforços para proteger seu coração haviam sido em vão, pois ele já não lhe pertencia. Simon de Burgh o roubara. — Firmin deve ter cerrado as toras de sustentação, mas não compreendo o que Simon estava fazendo lá embaixo — John murmurou junto de Bethia. — O túnel foi idéia dele — ela explicou. O olhar de John indicou que o arqueiro também percebera o horror que Simon tinha de se ver sob a terra, mas ele não comentou. Sacudiu a cabeça e disse: — Mas por que agora? E como Firmin conseguiu apanhá-lo de surpresa? Aquele cavaleiro jamais seria vencido por qualquer um de nós. — Talvez ele estivesse… distraído — Bethia murmurou, pensando na discussão recente e amaldiçoando-se por isso. Lembrou-se da frieza nos olhos dele e da sombra de dor que imaginara ter visto. Ora, se ela não era tão forte quanto imaginara, talvez Simon também não fosse. Talvez o que ele sentia por ela fosse algo mais que simples desejo e, assim, houvesse ficado perturbado pelo clima tenso que os envolvera. O que teria afetado seus instintos de guerreiro. O sentimento de culpa ameaçou sufocá-la, mas Bethia logo o transformou em raiva. Simon sempre fora descuidado e inconseqüente! Ela não o advertira sobre usar a armadura o tempo todo? Não lhe disse que deveria estar sempre preparado para o caso de um ataque? Naquele momento, um grito ecoou da entrada do túnel. — Encontraram um pé! A notícia foi dada com entusiasmo por um dos arqueiros, mas Bethia foi tomada de náuseas ao ouvi-la. Embora nunca houvesse desmaiado na vida, sentiu os joelhos vergarem e teve de se apoiar em uma árvore para não cair. Um pé! A palavra conjurou imagens medonhas demais para serem contempladas. Teria o corpo magnífico de Simon sido mutilado? Respirou fundo, tentando recuperar o controle. Sofrera a perda de seu lar, de sua liberdade, de sua herança e do amor de seu pai. Mesmo assim, olhar para o corpo inerte de Simon de Burgh parecia estar muito além de suas forças. — Conseguimos tirá-lo, Bethia! 105

O grito provocou-lhe o ímpeto covarde de virar-se e esconder o rosto, mas ela se forçou a olhar para a entrada do túnel. Não importava em que condições Simon fora encontrado. Bethia cuidaria dele. Afinal, era o mínimo que poderia fazer. — Ele está vivo! Bethia demorou alguns instantes para reconhecer o som estrangulado que atingiu seus ouvidos, como sendo sua própria voz. Seu corpo tremia. Uma onda de alívio a invadiu, mas foi logo substituída por sua desconfiança nata. Contra todas as probabilidades, Simon sobrevivera, mas por quanto tempo? Que tipo de ferimentos sofrera? Com esforço, permaneceu onde estava, esperando que o trouxessem para a superfície. Porém, ao vê-lo imóvel, carregado por dois homens, não pôde mais se conter e correu até lá. Sem pensar, colou a mão ao peito dele, certificando-se de que o coração ainda batia. Mesmo assim, ele continuava em silêncio, os olhos fechados, a respiração irregular. Seu corpo, sempre tão limpo pelos muitos banhos que tomava no riacho, apresentava-se coberto de terra. Aquele pequeno detalhe fez os olhos de Bethia encherem-se de lágrimas. — Ele vai ficar bem? — perguntou, mal reconhecendo a própria voz. Como ninguém respondesse, ela sentiu o coração disparar, mas ergueu os olhos para o mar de rostos que a cercavam. Todos exibiam preocupação à luz dos lampiões, mas todos se mantinham em silêncio, até que um dos mineiros falou: — Ele não permaneceu lá embaixo por muito tempo, senhorita, e o subsolo é um lugar estranho. As vezes, uma corrente de vento apanha um homem de surpresa e acaba com sua saúde e, outras vezes, uma bolsa de ar pode salvar uma vida. Ao que parece, foi o que aconteceu. É um homem de sorte. Acho que o encontramos bem a tempo. Se houvesse passado a noite inteira lá… O homem baixou os olhos e sacudiu a cabeça. — Era o que Firmin queria que acontecesse — Bethia sussurrou. O arqueiro sombrio planejara passar a noite na cama com ela, enquanto Simon tinha uma morte lenta, debaixo da terra. Então, ocorreu a Bethia que ela deveria sentir gratidão pelo fato de o Judas ter corrido à sua cabana, a fim de vangloriar-se de seus feitos. Não fosse assim, Simon teria morrido. A idéia provocou-lhe um arrepio. — Levem-no para… — Minha casa. Bethia ergueu os olhos e surpreendeu-se ao deparar-se com Meriel. — Ficarei com minha irmã e os filhos dela, enquanto você cuida dele — a viúva falou com sua voz macia. Tratava-se de uma oferta generosa, mas Bethia hesitou. A casa de Meriel ficava distante do acampamento, do outro lado da estrada. Embora a noite já houvesse caído por completo, existia a possibilidade de serem surpreendidos, transportando o corpo inerte do senhor de Baddersly. Caso isso acontecesse, seria muito difícil explicar a situação, especialmente sendo eles conhecidos como um bando de assaltantes de estrada. Bethia considerou os riscos, fazendo uma lista mental das outras alternativas. Uma mina abandonada? Uma caverna? Uma cabana minúscula? Apesar de pequena e simples, a casa de Meriel seria muito mais confortável do que qualquer acampamento improvisado. E, ainda, contava com um poço de água limpa e uma grande lareira. — Muito bem — Bethia concordou, lançando um olhar de gratidão para a viúva. Os homens permaneciam calados, esperando pacientemente pela decisão de sua líder. Bethia deu-se conta de quantos problemas Firmin havia criado entre seus seguidores. Agora, ela teria paz, mas a que preço? — Coloquem-no na carroça. Eu mesma o levarei — acrescentou, disposta a não envolver mais ninguém na operação arriscada. 106

— Vou ajudá-la — John voluntariou-se. A expressão sombria não dava lugar a qualquer resistência e Bethia decidiu não discutir. Assim que a carroça foi trazida do esconderijo e um cavalo tomado emprestado do ferreiro, os dois partiram, sob o disfarce de fazendeiros que chegavam mais tarde dos campos. Sentada ao lado de John, Bethia forçou-se a manter os olhos fixos na estrada, embora seus nervos implorassem para que ela virasse para trás, onde Simon repousava. Enquanto prosseguiam na lenta viagem, ela amaldiçoava a demora, pois, cada vez que a carroça sacudia, ela era tomada pelo pânico de que o seu cavaleiro morreria. Embora as batidas do coração de Simon houvessem lhe parecido regulares, em seu último exame, Bethia não tivera tempo de procurar por ferimentos e, até agora, ele não dera qualquer sinal de recuperar a consciência. Lutando contra o pânico, manteve-se quieta e imóvel, enquanto atravessavam a floresta e se dirigiam à casa de Meriel. John conseguiu carregar Simon da carroça até a cama de Meriel, apesar do tamanho e do peso do cavaleiro. Depois de acomodar Simon, John virou-se para Bethia e perguntou, ofegante: — Devo ficar? — Não. É melhor você voltar e esconder a carroça. Alguém pode notá-la e estranhar uma carroça parada diante da casa de uma viúva. John fitou-a por um longo momento, como se estivesse determinado a ajudá-la. Porém, o que o pobre homem poderia fazer? Não era médico nem curandeiro. Assim como não havia ninguém que possuísse aquele tipo de conhecimento na vila. Após alguns instantes, ele assentiu. — Tem certeza de que estará bem, sozinha? De pronto, Bethia não soube a que ele se referia, mas então, baixou os olhos para a túnica manchada. Foi tomada por uma absurda vontade de rir, pois no desespero provocado pelo acidente com Simon, ela havia se esquecido completamente do ataque de Firmin. — Sim, estou bem. Todo esse sangue era dele — explicou. — Enterre-o. O olhar de John tornou-se frio. — Um enterro é muito mais do que Firmin merecia. — Sim — Bethia concordou, sabendo que John cuidaria do corpo do arqueiro, sem dar importância aos próprios sentimentos. Sentindo-se grata pela ajuda, acompanhou-o até a porta e esperou ali, até que ele desaparecesse na estrada, para então fechar-se com Simon. Em seguida, acendeu a lareira. Quando o fogo iluminou a casa, ajoelhou-se ao lado de Simon. Pousou a mão trêmula no peito dele e suspirou aliviada ao sentir-lhe as batidas firmes e regulares do coração. Olhou para a terra que aderira ao tecido da túnica e levantou-se. Em primeiro lugar, precisava banhá-lo. Então, seria mais fácil examiná-lo e determinar os ferimentos que ele havia sofrido. Com cuidado e delicadeza, despiu-o. Aqueceu um balde de água na lareira e, usando um pano tímido e morno, começou a limpá-lo. Começou pelo rosto sentindo o coração se apertar, enquanto limpava com carinho os traços que significavam tanto para ela. Aquela era uma grande oportunidade de tocá-lo e Bethia decidiu aproveitá-la, hesitando apenas um momento, quando chegou à boca, antes de passar um dedo pelos lábios quentes. Invadida por uma torrente de sentimentos, lembrou-se do prazer que o beijo dele havia lhe proporcionado e, em vez de negar a própria reação, admitiu que desejava beijálo de novo. Queria soprar um pouco de vida para dentro daquele corpo inerte, ver novamente aqueles olhos faiscarem de paixão, sentir as mãos firmes em seu corpo. Respirando fundo, tentou afastar as imagens da mente. Simon poderia não se 107

recuperar, numa mais poder… Reprimiu um soluço e continuou a banhá-lo, movendo o pano úmido pelo pescoço e peito de Simon. Embora nunca houvesse se demorado no próprio banho, nem sido chamada a banhar um hóspede, em Ansquith, Bethia não teve pressa, desempenhando sua tarefa com amor. Não negligenciou nenhuma parte do corpo de Simon, mas ele não reagiu. — Acorde, Simon — murmurou. — Então, permitirei que faça comigo tudo o que quiser. E farei tudo o que você desejar — prometeu com voz trêmula. Ainda assim, não obteve resposta. Deixando o balde de lado, tratou dos ferimentos o melhor que pôde, limpando os mais profundos com vinho. Embora não encontrasse sinais de fraturas, sabia que ele poderia ter sofrido ferimentos internos, ou ter sido atingido na cabeça. Ouvira casos de pessoas que haviam se ferido assim e nunca mais recobrado a consciência, vivendo como vegetais, definhando lentamente até a morte. Mas isso não aconteceria com Simon, pois ela não permitiria! — Vai se recuperar, Simon de Burgh, ou porei fim à minha própria vida — ameaçou em um fio de voz. Quando nem mesmo a dura advertência provocou reação, Bethia virou-se, tirou a roupa ensangüentada e banhou-se com o que restara da água. Então, envergando um dos vestidos que costumava deixar na casa de Meriel, cobriu seu paciente com um fino cobertor. Apesar de exausta, voltou a se ajoelhar ao lado de Simon, examinando-lhe as batidas do coração mais uma vez. Ficou ali durante muito tempo, temendo que o estado dele se agravasse, mas isso não aconteceu e, finalmente, Bethia adormeceu, com a cabeça apoiada em um dos braços. Bethia ergueu a cabeça e gemeu ao sentir o pescoço rijo e dolorido. Estava sentada no chão da casa de Meriel, com os braços apoiados sobre a cama onde Simon… Teve um sobressalto ao dar-se conta de que ele não estava ali. Levantou-se de um pulo e correu para a porta, parando abruptamente ao se deparar com a figura do cavaleiro imponente. Simon estava parado na porta e, à luz do dia, seu corpo exibia as marcas do acidente da véspera, bem como a incrível beleza de sua nudez. Por um momento, Bethia descobriu-se incapaz de respirar, pois a sensação de alívio foi rapidamente substituída por uma torrente de emoções, inclusive o desejo ardente por aquele corpo glorioso. Quando finalmente reagiu, foi da única maneira que conhecia: com fúria. — O que está fazendo aí fora? — inquiriu. Simon voltou para dentro da casa sem demonstrar surpresa ou vergonha. Bethia forçou-se a fixar os olhos no rosto do cavaleiro, cuja expressão era dura, apesar da palidez. Preocupada, ela se adiantou para ele. — Deveria estar deitado, maluco! Quando ele se esquivou à mão estendida de Bethia, foi como se todos os sentimentos que ela vinha reprimindo havia horas, dias e, até mesmo semanas, explodissem de uma só vez. — Seu idiota! Tem sorte por estar vivo! Por que entrou no túnel? Por quê? — gritou, descontrolada, esmurrando-lhe o peito. Simon segurou-lhe os punhos com firmeza, fitando-a nos olhos. De repente, Bethia deu-se conta da proximidade do corpo musculoso, totalmente despido. Como se possuíssem vontade própria, seus olhos baixaram para a prova contundente da virilidade dele. No mesmo instante, ficou ofegante, sentindo o coração acelerar suas batidas. Lentamente, voltou a erguer os olhos, para descobrir o próprio desejo espelhado nos dele. — Não vou implorar — Simon murmurou com expressão tensa. A lembrança de todas as vezes em que o rejeitara não a intimidaram, pois Bethia não se deixaria perturbar por questões tão triviais. Vivera como homem por tempo demais 108

e, agora, queria ser mulher, não importava a que preço. — Mas eu vou — replicou, oferecendo os lábios para um beijo. Perguntou-se se Simon a rejeitaria, apesar dos clamores do próprio corpo, pois ele permaneceu imóvel, segurando-lhe os punhos com firmeza. Então, disse a si mesma que não o deixaria afastar-se, mesmo que tivesse de lutar por isso. Os sentimentos que haviam tomado vida dentro dela jamais voltariam a ser ignorados ou reprimidos. Quando os lábios de Simon finalmente tocaram os dela, as mãos dele relaxaram o aperto em torno dos punhos de Bethia e, lentamente, deslizaram por seus braços. Deliciada, ela colou o corpo ao dele, mas descobriu que tal contato era pouco. Queria sentir cada músculo, cada centímetro de pele daquele homem magnífico. Impaciente, passou as mãos pelos ombros dele, pelo peito, descendo para a cintura e indo pousá-las nas nádegas. Descolou os lábios dos dele e beijou-lhe o queixo e o pescoço. Ao mordiscar-lhe o peito, ouviu-o inspirar profundamente. E foi descendo, depositando beijos ardentes no ventre firme e musculoso, deliciando-se a cada demonstração que Simon exibia de sua reação às carícias dela, pois eram um sinal de que ele estava vivo e muito forte. Bethia foi se abaixando, preparando-se para se ajoelhar diante de Simon, mas ele a segurou, murmurando: — Bethia, Bethia… A voz rouca e suave deixou-a ainda mais inflamada, como se os raios de sol que entravam pela porta fossem quentes demais, sua roupa, pesada demais. Bethia foi invadida pela necessidade súbita e urgente de ver-se tão livre quanto Simon e, assim, não ofereceu resistência quando ele começou a despi-la. — Bethia — Simon voltou a murmurar, ao mesmo tempo que a puxava para si, com um gemido de prazer. Então, suspendeu-a no ar, de maneira que seus corpos se unissem com grande intimidade. Agarrando-se a ele, Bethia mordiscou-lhe a orelha e os ombros. Sentindo o controle abandoná-lo rapidamente, Simon carregou-a até a cama e deitou-a, afastandolhe as pernas e posicionando-se sobre ela. Então, fitou-a nos olhos, ofegante, por um longo momento, antes de dizer: — Não vou parar. Embora fosse uma afirmação, a intenção da declaração era saber se ela recuaria. Bethia, porém, tomada pelo mais total abandono, não pretendia voltar atrás em sua decisão. Nos braços de Simon, ela acabara de descobrir o verdadeiro sentido da vida, bem como do amor. Nada a faria recuar agora. — Não pare — replicou com firmeza, sustentando-lhe o olhar. Simon reagiu com um gemido animalesco e, sem esperar mais, penetrou-a. Bethia escondeu o rosto na curva do pescoço dele, mordendo-o, a fim de conter um grito de dor, quando sua virgindade foi rompida. No entanto, a dor se foi com a mesma rapidez com que surgiu, e ela passou as pernas em torno da cintura de Simon, incitando-o a penetrá-la mais profundamente. Cravando as unhas nos músculos fortes, entregou-se de corpo e alma à união de seus corpos. Simon movia-se cada vez mais depressa, mas Bethia descobriu que queria mais… e mais. Serpenteou o corpo com impaciência, buscando a satisfação daquele desejo sufocante, até que Simon segurou-lhe os quadris com força, puxando-a para si. — Bethia… Ao ouvir seu nome naquele tom de voz desesperado, Bethia mergulhou em um mundo até então desconhecido, e ouviu a própria voz, como se viesse de algum lugar distante, em um gemido incontrolável. Seu coração batia no mesmo ritmo dos movimentos do corpo de Simon e, cada vez que ele mergulhava nas profundezas de seu corpo, ela era tomada por sensações enlouquecedoras. Então, uma onda de prazer varreu todo o seu ser e Bethia não pôde conter um grito 109

de pura felicidade, que foi seguido pelo rugido de Simon, que se imobilizou, os músculos tensos, sacudidos pelo êxtase. Quando ele finalmente desabou sobre ela, ofegante e saciado, Bethia acolheu-o em seus braços, acariciando-lhe a pele suada com profunda ternura. No auge do clímax, Simon murmurara seu nome mais uma vez, despertando nela a consciência da intensidade da paixão que os unia. Embora não tivesse qualquer experiência naquele tipo de assunto, Bethia soube com absoluta certeza de que algo muito forte nascera entre eles naquele momento, um laço que não seria desfeito com facilidade. Recusou-se a considerar se isso era bom ou ruim, especialmente por causa da sensação proporcionada pelo fato de Simon estar vivo e saudável, abraçando-a. Assim, ainda trêmula, pousou a cabeça sobre o peito forte e ignorou tudo mais. Simon parecia flutuar em um sono leve, que o mantinha suspenso entre a consciência e os sonhos. Seu corpo, especialmente o peito, doía com uma intensidade que ameaçava acordá-lo, ao mesmo tempo que uma profunda sensação de saciedade o empurrava para a escuridão. Sentia uma satisfação muito maior do que aquela que sempre o invadira, em sua luta para superar os feitos de Dunstan, um senso de vitória muito mais embriagante do que o triunfo em campos de batalha, uma paz que ele só descobrira existir depois de conhecer a vida na floresta. Ao mesmo tempo, a perspectiva de prazeres que ainda viriam coloria essa nova etapa de sua vida. Bethia… Simon despertou no mesmo instante. Ao respirar fundo, sentiu o perfume inconfundível de Bethia. Seu corpo reagiu imediatamente e ele se deu conta de que continuava dentro dela. Teria apenas um momento se passado, desde que ele despejara sua semente no ventre de Bethia? Simon não saberia responder, mas sabia que não queria se afastar dela. Todos os relacionamentos que tivera até então haviam sido rapidamente encerrados e facilmente esquecidos. Agora, porém, Simon queria ficar onde estava, dentro de Bethia, tocando-a, sentindo seu perfume… para sempre. Voltou a inspirar profundamente, deleitando-se com o prazer tão simples. Então, beijou o pescoço de Bethia, ao mesmo tempo que firmava as mãos nos quadris dela, a fim de puxá-la para si. A pele dela era mais macia do que a mais fina das sedas, cobrindo uma mistura de curvas e músculos que o faziam estremecer de desejo. Quando a deitara na cama, estivera tão atordoado pelo desejo de possuí-la, que não notara mais nada além da união de seus corpos. Agora, ao deslizar os lábios pela pele acetinada, prestou atenção às reações inconfundíveis do corpo dela e, lembrando-se do prazer que os dentes de Bethia haviam lhe proporcionado, mordiscou-lhe o pescoço. O som enrouquecido que escapou da garganta dela provocou em Simon o profundo desejo de agradá-la e, assim, ele começou a explorar as curvas suaves do corpo quente em seus braços, com mãos trêmulas, mas atentas. Descobriu que, se apurasse os ouvidos, descobriria os pontos onde Bethia possuía maior sensibilidade. Tal constatação deixou-o excitado e Simon deslizou os dedos pelas costas dela, até alcançar-lhe os seios. Só então deu-se conta da forma deles, firmes, mas não pesados. E, também, percebeu que Bethia gostava de tais carícias, especialmente quando ele brincava com os mamilos rijos. Empolgado pela descoberta, continuou a acariciá-los, enquanto depositava beijos no pescoço dela e mordiscava-lhe o ombro, determinado a fazê-la provar do próprio veneno, um veneno que o embriagara de prazer. Ao ouvi-la gemer baixinho, foi tomado de uma reação inesperada, sentindo o próprio corpo enrijecer, totalmente fora do seu controle. Bethia também sentiu tal reação, pois seus olhos buscaram os dele imediatamente, mais iluminados que o próprio sol. — Simon… — ela murmurou em tom de súplica. Antes, Simon fazia tudo para se ver livre das mulheres que levava para a cama, 110

assim que satisfazia suas necessidades mais urgentes. Agora, porém, queria possuir Bethia mais uma vez, e mais uma, e mais uma… Estudou-lhe o semblante, geralmente calmo e controlado, afogueado pela paixão. — De novo? — perguntou em voz alta, interrompendo deliberadamente suas carícias. — De novo — ela confirmou em tom exigente, oferecendo-lhe os lábios entreabertos, ao mesmo tempo que o enlaçava com os braços e com as pernas. Simon beijou-a longamente, antes de murmurar: — Bethia… Então, saiu de dentro dela, apenas para voltar a penetrá-la devagar, como se quisesse saborear cada milímetro daquele caminho de puro prazer. Quando voltou a fitála e viu os cabelos dourados refletirem a luz do sol, foi invadido pela vontade de passar o resto de sua vida ali, dentro dela, prolongando o prazer que sempre se esforçara para encerrar rapidamente. Por um momento, sentiu o coração apertar-se, com medo de tudo não passar de um sonho. Temeu ainda estar soterrado no túnel, depois de ter sido rejeitado por Bethia. Não suportaria tal destino, pensou, penetrando-a mais profundamente, pois precisava possuir-lhe não só o corpo, mas também a alma, tanto quanto precisava do ar que o mantinha vivo. Então, voltou a beijá-la com violência, deixando claro que Bethia lhe pertencia. Agora e para sempre. Os dias que se seguiram ao acidente de Simon passaram depressa demais para Bethia, pois foi um período idílico, passado, na maior parte do tempo, na cama, partilhando prazeres nunca antes imaginados por ela. Simon enviara uma mensagem a Baddersly, informando Florian de que estava convalecendo, aos cuidados de Bethia. A verdade, porém, era que, além de alguns arranhões e hematomas superficiais, ele apresentava excelentes condições. Os mineiros haviam retomado as escavações e John aparecia na casa de Meriel todos os dias, a fim de deixá-los a par dos progressos do trabalho. Felizmente, Firmin destruíra apenas a parte final do túnel, o que fora corrigido sem demora. De fato, se o tempo continuasse seco, o trabalho logo estaria terminado, embora a notícia não proporcionasse a Bethia o prazer que ela teria sentido dias antes. Sem a necessidade de palavras para selar o acordo, ela e Simon haviam usado a recuperação dele como desculpa para continuar na casa de Meriel, assim como na companhia um do outro. Amavam-se de todas as maneiras e em todos os lugares, encontrando satisfação todas as vezes. Bethia estava sempre disposta a recebê-lo nos braços e dentro de seu corpo, pois sabia que aquele interlúdio seria temporário. Os dias passavam dentro de uma condição irreal, como se ela e Simon existissem em um mundo só deles, mas Bethia estava consciente de que aquilo não poderia continuar indefinidamente. Conversavam sobre tudo: o passado de ambos, as lutas, as preferências. Por outro lado, como se houvessem combinado, nenhum dos dois mencionava o futuro. Para Bethia, o futuro representava um grande buraco, negro como o túnel, mas sem perspectiva de saída. Perguntava-se se Simon continuava disposto a casar-se com ela, ou se, agora, sentia-se satisfeito com a atual situação. Por mais que pensasse sobre isso, Bethia não encontrava resposta. Pior ainda, era o fato de ela não ser capaz de definir os próprios sentimentos. Apesar de amá-lo, não conseguia livrar-se das reservas que alimentara durante tantos anos. Erguendo os olhos para o céu cinzento, estudou as nuvens carregadas. Perguntouse se John chegaria antes da chuva. Por mais que desejasse salvar seu pai das garras de Brice, Bethia descobriu-se rezando para que um temporal adiasse a conclusão do túnel, para que ela pudesse continuar ali, suspensa entre a obrigação e o prazer. 111

Naquele momento, Simon saiu da casa, e Bethia estremeceu, como acontecia todas as vezes em que olhava para ele. Simon vestia uma túnica simples, mas a roupa de camponês não escondia a arrogância e o poder que ele emanava. Bethia sentiu o coração apertado pelo medo do futuro, mas tratou de esconder os receios, dizendo: — John está atrasado. — Talvez ele tenha decidido evitar a tempestade que vai cair a qualquer momento — Simon replicou, juntando-se a ela. Vinha evitando afastar-se da casa, pois não queria ser reconhecido, mas naquela tarde, a estrada apresentava-se deserta, pois as nuvens escuras certamente haviam espantado os viajantes. — Ontem, ele calculou que encerrariam a escavação hoje — acrescentou. Então, que chova, Bethia pensou, em um arroubo de rebeldia. Depois de tantos meses de frustrações, de lutas vãs contra Brice, de preparação interminável, ela queria adiar o momento final. — Tem certeza de que está em condições de liderar o ataque? — perguntou. Simon virou-se para ela de cenho franzido. — Acha que não tenho forças para enfrentar uma batalha? Bethia não conteve um sorriso, pois ocorreu-lhe que estava prestes a testemunhar uma demonstração das boas condições de Simon. E, de fato, ele a tomou nos braços e empurrou-a até a parede da casa, onde pressionou o corpo contra o dela. Porém, ao mesmo tempo que sentia a chama da paixão acender-se nas próprias entranhas, Bethia sentia também a preocupação de antes continuar a atormentá-la. Quando chegasse o momento, Simon, assim como todos os outros, arriscariam suas vidas no ataque a Ansquith. Simon planejava convocar alguns cavaleiros e soldados selecionados para lutarem ao lado dele, mas isso não lhes garantiria a vitória. Agora, quando tal momento se aproximava, a propriedade e tudo o que fora tão importante para Bethia, deixara de ser essencial. De alguma maneira, naqueles últimos dias, Simon passara a ter precedência sobre tudo mais na vida dela. Ela sabia que, independentemente do que acontecesse, aqueles dias não se repetiriam. Mesmo que conseguissem reconquistar Ansquith, não poderiam mais dormir juntos todas as noites, fazendo amor até que a exaustão os arrastasse para um sono profundo, nos braços um do outro. Tudo mudaria e Bethia, sempre realista, olhava para o futuro com temor. Esqueça o túnel! Não faça isso! As palavras ecoavam na mente de Bethia, mesmo enquanto Simon a beijava com paixão. Se pudessem continuar a viver assim…. Não. Bethia não poderia esquecer-se do pai. Embora ele a houvesse abandonado, ela não seria capaz de fazer o mesmo, especialmente sabendo que ele estava doente e fraco. E se Bethia não fosse para Ansquith, para onde mais poderia ir? O que poderia fazer? Era lá que residia a sua única esperança de independência… Quando Simon a enlaçou, abraçando com força, Bethia sentiu um pingo de chuva cair sobre seus cabelos. Satisfeita por saber que a chuva havia chegado, passou os braços em torno do pescoço dele. — Estou ficando molhada — sussurrou-lhe ao ouvido, quando ele descolou os lábios dos dela, a fim de beijar-lhe as faces e o pescoço. Simon fitou-a com olhar ardente durante um longo momento, antes de dizer: — Bom. E Bethia soube no mesmo instantes que não era à chuva que ele se referia. Amaram-se ali mesmo, a céu aberto, enquanto a chuva caía sobre suas cabeças. Foi rápido e ardente, uma das tantas maneiras que haviam descoberto de satisfazerem a paixão que os consumia. Atingiram o clímax juntos, gritando e gemendo, estremecendo ao sentir a chuva fria atingir-lhes a pele em brasa. Mal haviam se separado e ainda ajeitavam as roupas, quando ouviram um grito na 112

estrada. Bethia amaldiçoou a própria distração, pois não contavam com nenhuma arma à mão. Felizmente era apenas John, que se aproximava correndo, com um largo sorriso. — Terminaram! — ele anunciou, assim que os alcançou. — Resta uma fina camada de terra, para encobrir nosso ataque. Se a chuva não estragar nossos planos, poderemos atacar amanhã. Simon, ansioso por uma batalha, juntou-se a John em seu entusiasmo. Embora soubesse que deveria estar sentindo o mesmo, Bethia viu-se obrigada a forçar um sorriso. O objetivo pelo qual ela havia lutado tanto, agora lhe parecia um triunfo vazio. A independência que tanto almejara chegava como um substituto frio para o cavaleiro ao seu lado. Em vez de um novo começo, Bethia viu o fim à sua frente. Seu idílio havia terminado.

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CAPITULO XIV

Vamos ser atacados! O grito ecoou pelo salão, até que Florian ergueu os olhos, na tentativa de compreender o que se passava. — Atacados? Do que está falando? — inquiriu, dirigindo-se ao jovem que espalhava a notícia. Como o garoto o ignorasse, Florian agarrou-o pela túnica, forçando-o a parar. — Ai! Solte-me, master Florian, por favor! — o menino protestou. — Só depois que tiver explicado por que está assustando as mulheres e as crianças com essa bobagem. — Nós estamos sendo atacados — o rapaz insistiu. — Meu irmão viu! Um exército de soldados armados, a cavalo, está se aproximando, vindo do norte! Florian franziu o cenho. — Seu nome é Tedric, não? — O menino assentiu. — O fato de um grupo de soldados estar se aproximando de Baddersly não significa que estamos sendo atacados. Deve se certificar do que está dizendo, antes de sair por aí, gritando como louco. Agora, vá até os portões e descubra o que realmente está acontecendo. Então, volte aqui, para me informar. Feliz por ter sido encarregado de uma missão tão importante, Tedric obedeceu, apressado. Florian sacudiu a cabeça, perguntando-se o que, exatamente, o irmão do menino vira. Não estava preparado para receber visitantes. Já ia chamar um criado, quando Quentin entrou no salão com passos firmes. — Ah, aí está, administrador! — ele gritou. — Quem está se aproximando do castelo? — Florian perguntou. — Não recebi nenhuma mensagem de visitantes, mas quem pensaria em nos atacar? Não me diga que é aquele maluco do Brice! Não correm boatos de que ele estava contratando mercenários para aniquilar os bandidos da floresta? Com certeza, o louco não se atreveria a mandálos para cá! Antes que Quentin tivesse tempo de responder, Leofwin aproximou-se. — Não são mercenários ou invasores — disse. — É o barão de Wessex quem está chegando, com uma comitiva enorme. Espero que você disponha de suprimentos suficientes, Florian, pois vai custar uma fortuna alimentar todos aqueles homens. — O Lobo… — Florian sussurrou de olhos arregalados. — O que ele está fazendo aqui? — Eu avisei que os desaparecimentos do irmão dele iam trazer problemas — Quentin comentou. — Se não me engano, fui eu quem disse isso! — o administrador corrigiu, furioso. — Além do mais, lorde de Burgh não está desaparecido, mas sim, ausente. — Há quanto tempo, desta vez? — Quentin indagou. — Apenas alguns dias — Florian mentiu, torcendo as mãos. — Ah, meu Deus! O que vamos dizer ao Lobo? Olhou para a porta, aflito, mas logo descobriu que ninguém dizia coisa alguma a Dunstan de Burgh, o Lobo de Wessex. O lobo entrou no salão acompanhado por seus homens, com passos pesados, armaduras ruidosas e vozes exaltadas. Liderando o séquito, o barão de Wessex atravessou a pequena multidão formada por seus servidores, exigindo que o irmão se apresentasse a ele. Infelizmente, ninguém conhecia o paradeiro de Simon. Florian engoliu em seco e deu um passo à frente. — Seja bem-vindo, milorde. Não fomos avisados da sua chegada, portanto, não 114

estamos preparados para recebê-lo, mas providenciarei para que seus quartos sejam arrumados imediatamente, e o jantar será servido em breve. — Você é o administrador, chamado Florian? — o Lobo inquiriu, impaciente. Era ainda maior que Simon, além de mais imponente e, ao que parecia, infinitamente mais perigoso. — Sim, milorde — Florian respondeu, desejando jamais ter sido contratado para administrar Baddersly. — Onde está meu irmão? — Bem, milorde, esta é uma pergunta difícil de responder — o outro respondeu, exibindo um sorriso apaziguador. Infelizmente, o Lobo não parecia ser o tipo de homem que se deixava apaziguar com facilidade. Examinando o salão com seus olhos verdes, tão diferentes dos de Simon, praticamente rugiu seu desagrado. — O que está acontecendo aqui, afinal? — Seu irmão encontra-se ausente do castelo, milorde — Thorkill informou-o com honestidade. Florian viu-se forçado a admirar-lhe a coragem, senão a inteligência, mas o cavaleiro viera de Campion e, portanto, devia estar habituado aos assustadores de Burgh. — Sim, ele vem e vai — Leofwin acrescentou. — Mais vai do que vem — Quentin esclareceu. — Já vi que ele não está aqui — o Lobo vociferou. — Onde ele está? Leofwin coçou a cabeça. — Bem, creio que as informações a respeito do paradeiro de seu irmão sejam um tanto desencontradas — falou. — Não sabemos exatamente, milorde — Florian respondeu. — Acreditamos que está na floresta. O senhor poderá procurar por ele, amanhã. — Ou deixar um recado na vila — Quentin lembrou. — Ele foi sozinho? — perguntou um outro homem, cujo semblante indicava sem deixar dúvidas, tratar-se de mais um de Burgh. — Não levou sequer o escudeiro? — Isso mesmo — Florian admitiu —, mas isso não parece ser problema, pois ele se mostrou acostumado a sair sozinho. — Acostumado? — o homem de olhar inteligente repetiu, virando-se para o Lobo com expressão surpresa. — Sim, lorde Geoffrey — Thorkill confirmou. — Ele deixou o castelo sozinho, diversas vezes, desde que chegou aqui. — É verdade — Florian prosseguiu. — Ele passa um dia no castelo, uma semana fora daqui. O Lobo exibiu expressão cada vez mais ameaçadora. — O que está acontecendo aqui? — insistiu, lançando um olhar de interrogação para Geoffrey, que sacudiu a cabeça e deu de ombros, antes de dizer: — Esta atitude não é do feitio de Simon. — Acreditamos que ele estivesse doente, pois comportou-se de maneira muito estranha, desde sua chegada — Leofwin contou. — Não comia bem. — Exatamente — Quentin confirmou, provocando em Florian o desejo de estrangular os dois cavaleiros por terem trazido à tona aquele assunto. — Para ser sincero, acho que sei qual é a origem das aflições que seu irmão está sofrendo, milorde — disse o administrador, com grande hesitação. — Ele… está apaixonado. Seis cabeças viraram-se para ele, de olhos arregalados, estudando-o em silêncio. Então, cada um daqueles infernais de Burgh caiu na gargalhada. Florian franziu o cenho. Nunca pusera os olhos no Lobo de Wessex antes, mas até aquele momento, sua impressão não fora das melhores. O mesmo ele poderia dizer dos demais irmãos que, 115

agora, dobravam-se às gargalhadas, como se houvessem acabado de ouvir a mais engraçada das piadas. Florian ergueu a voz, a fim de ser ouvido. — Creio que seu irmão precisa mais do seu apoio do que de seu divertimento — declarou, com ar de reprovação. — Ele tem se mostrado desolado, o que me leva a pensar que nem tudo vai bem em seu… caso de amor. — Então, baixando o tom para um de conspiração, acrescentou: — Pareceu-me que está preocupado com suas chances de sucesso. Um dos irmãos, o mais atraente deles, zombou: — Simon? Ele nunca teve um instante de dúvida, em toda a sua vida. Meu irmão nasceu convencido de que era invencível e passou a vida inteira a provar isso. — É verdade — concordou um outro. — Ele nunca foi como você, Stephen. Nunca se importou com mulheres ou com a própria aparência. Florian empertigou-se, contrariado. Sendo irmãos de Simon, aqueles seis deveriam demonstrar simpatia, não escárnio. Não era de admirar que Simon fosse tão rígido e fechado, se aquele era um exemplo da devoção existente em sua família. — Ainda estou certo de que seu irmão apaixonou-se por Bethia Burnel, herdeira de Ansquith que, no momento, vive na floresta. Ao ouvir essas palavras, o Lobo lançou um olhar para Geoffrey e os dois pararam de rir. — Foi a ela que Simon se referiu, na mensagem que nos enviou — Geoffrey lembrou. — Pobre Simon — Dunstan resmungou. — Não imagino como nosso poderoso irmão se deixou enfeitiçar — Geoffrey comentou. — Ora, não acredito nisso! — Stephen protestou. — Ei você, bela criada, traga-me vinho — ordenou com um sorriso sedutor. Florian ergueu uma sobrancelha, dizendo a si mesmo que deveria ter cuidado com aquele de Burgh, em particular. Então, respirou fundo e curvou-se em uma reverência. — Por favor, sentem-se, milordes. O jantar já foi retirado, mas os senhores serão bem servidos. — Bateu palmas e, no mesmo instante, os criados dispersaram. — Amanhã, poderão procurar por seu irmão, na floresta. Cinco dos irmãos foram se sentar, liderados por Stephen, mas Dunstan pôs-se a caminhar de um lado para o outro, estudando os cavaleiros que haviam se reunido para recebê-lo. Parou diante de Leofwin, que prendeu a respiração até suas faces tornarem-se púrpuras. Então, virou-se para Florian e perguntou: — Onde está Arthur? E Hal? — Diante da expressão confusa no semblante do administrador, voltou a encarar Leofwin. — Onde estão os cavaleiros que vieram com lorde Simon? O cavaleiro corpulento sacudiu a cabeça e um grito ordenou a presença daqueles que ainda não se encontravam ali. Florian correu para a cozinha, mas não precisaria ver a expressão de Dunstan para saber que o Lobo não estava nada satisfeito. Lançando um olhar para o céu já escuro que anunciava o final do dia, o grande cavaleiro praguejou em alto e bom som. — Algo está errado — Geoffrey concluiu. — Sim — o Lobo concordou —, e, amanhã, pretendo descobrir o que está errado. A chuva cessou com a mesma rapidez de seu início, mal molhando a terra e negando a Bethia o tão desejado adiamento do ataque. Ela acordou ao amanhecer e viuse forçada a levar adiante os planos já estabelecidos. Não pôde sequer pedir uma última hora de amor, uma vez que a casa de Meriel encontrava-se repleta de soldados, chamados por Simon. Apesar das dúvidas de Bethia, ele os chamara logo após a 116

conversa com John e os homens haviam chegado antes do anoitecer, para estarem prontos pela manhã. Escondendo-se atrás de um cobertor, Bethia vestira suas roupas masculinas, prendendo a espada à bainha. Embora houvesse se preparado para os protestos de Simon, ele a surpreendera, não tentando impedi-la de acompanhá-los. Depois de fitá-la nos olhos por um longo momento, ele se limitara a dizer: — Fique na retaguarda, longe de problemas. Como não estivesse disposta a discutir, Bethia permanecera em silêncio. Não importava o que Simon queria, pois ela simplesmente se recusava a ficar na retaguarda, como uma ovelha desgarrada do rebanho. Os cavalos haviam sido deixados com o ferreiro e, assim, todos caminharam para a floresta. Eram os doze homens que, um dia, Bethia ordenara que fossem amarrados e abandonados nos portões de Baddersly, dentro de uma carroça velha. Embora eles não demonstrassem qualquer hostilidade com relação a ela diante de Simon, Bethia pretendia manter-se alerta nas horas que viriam. Sua desconfiança natural fora ainda mais exacerbada pela traição de Firmin e seu plano era cuidar muito bem da própria segurança, bem como da de Simon. Quando chegaram ao túnel, os mineiros já haviam retirado quase toda a terra e Simon ordenou que todos o seguissem, dois a dois. Quando ele relegou Bethia ao final da fila, ela reprimiu um protesto, mas quando Simon ordenou a um de seus homens que a protegesse, ela praguejou baixinho. Foi somente a importância da batalha que viria que a impediu de confrontar o cavaleiro obstinado que liderava todo o bando. Ignorando a contrariedade de Bethia, Simon desceu a escada. Se tinha alguma reserva quanto a voltar à mina que quase o matara, dias antes, Simon não a demonstrou, e Bethia viu-se forçada a admirá-lo por isso. Os olhos dele apresentavam o brilho da excitação provocada pela perspectiva da batalha, seus traços indicavam profunda concentração, o poder pessoal que ele emanava era quase palpável. Fascinada, Bethia deu-se conta de que todos aqueles homens, assim como ela mesma, seguiria aquele líder até as profundezas do inferno, se ele assim ordenasse. Desviando o olhar daquele cavaleiro formidável, ela virou para seu pequeno grupo de arqueiros e selecionou alguns deles. Porém, quando tomou o rumo do túnel, deu de encontro com o soldado que Simon designara para protegê-la. — Fique fora do meu caminho — ela o advertiu com firmeza, antes de empurrá-lo para o lado e descer a escada. Na escuridão, até mesmo Bethia sentiu um calafrio, enquanto à sua frente, a última barreira que os separava de Ansquith era removida. No mesmo instante, lembrou-se de Simon enterrado ali e teve de fazer uso de toda a sua força de vontade para não gritar a todos que recuassem e saíssem do túnel. Então, finalmente, a fila adiantou-se e ela viu os homens à sua frente lançarem-se para fora da terra, de armas em punho. Bethia seguiu-os, também empunhando a espada, mas não encontrou inimigo algum contra quem lutar. Simon e seus homens já estava espalhados pelo terreiro protegido pelos muros, enquanto um pequeno grupo de criados tremia diante dos cavaleiros ameaçadores. Na verdade, pareciam tão aterrorizados que Simon, furioso, mandou que chamassem Brice imediatamente. Bethia sentiu os músculos tensos, pois temeu que o patife usasse a oportunidade para tentar vencê-los. Embora ele mesmo não tivesse coragem de lutar, tinha os homens que haviam chegado a Ansquith com ele, além daqueles que conseguira arregimentar depois. Encostada a um dos muros, Bethia esperou, alerta para qualquer ataque inesperado. Na verdade, acreditava que ele talvez nem aparecesse e pôs-se a olhar em volta, à procura de alguma rota de fuga que ele poderia tentar utilizar. Para sua surpresa, Brice logo apareceu, vestindo roupas da melhor qualidade, sem dúvida compradas com o dinheiro dos Burnel. Longe de parecer preocupado com aquele 117

ataque, movimentava-se com a tranquilidade de um nobre, cuja toalete matinal fora interrompida. Bethia, porém, não se deixou enganar. Atrás dele, vinham quatro de seus mercenários e, provavelmente, outros espreitavam nas sombras. Em um sussurro, Bethia ordenou a seus arqueiros que se esgueirassem por trás das pequenas construções que circundavam o terreiro. — O que é isso? — Brice inquiriu, agitando um lenço perfumado diante do nariz, como se aqueles que haviam emergido do túnel cheirassem mal. Tal atitude fez Bethia desejar lançar-se à frente e cortar-lhe a garganta, mas ela controlou os impulsos, em deferência a Simon. — Abaixe suas armas para o irmão e emissário de seu senhor, Simon de Burgh — um dos cavaleiros proclamou, enquanto todos os olhos se fixavam em Brice, à espera de sua reação. — Milorde! — ele exclamou, adiantando-se com um sorriso largo. Bethia teve vontade de gritar a duplicidade daquele homem, expulsá-lo sem preâmbulos, a fim de evitar que ele tivesse a chance de conquistar a todos com suas mentiras. Foi somente a disciplina desenvolvida ao longo de todos aqueles anos que a manteve imóvel. Mesmo assim, ela continuou alerta para possíveis rotas de fuga, caso o covarde desse meia-volta e tentasse escapar. — Milorde, é um prazer imenso conhecê-lo — Brice declarou, curvando-se para Simon. — Venho tentando enviar-lhe mensagens há semanas, mas os malditos salteadores interceptaram os meus mensageiros. Eu queria informá-lo de que Edward está despachando um exército para eliminar os bandidos da floresta — acrescentou, olhando diretamente para John e os demais arqueiros. — Edward? — um dos cavaleiros de Simon repetiu. — Sim, fui professor dos filhos dele, quando servi na corte. Viajei com eles durante anos — Brice alegou com modéstia tão falsa, que provocou náuseas em Bethia. — Isso foi antes ou depois de você se tornar conselheiro do arcebispo? — John inquiriu com desprezo. — Provavelmente, ele acredita que fez o parto do próprio papa — um dos arqueiros resmungou, antes de cuspir ruidosamente. A expressão de Brice endureceu. — É claro que não espero que compreendam a riqueza da experiência, além de suas existências limitadas — disse, antes de inclinar-se para Simon. — Mas lorde de Burgh certamente conhece os planos de Edward. Afinal, milorde é um homem da confiança do rei, não é? Bethia reconheceu a estratégia de pronto, mas permaneceu calada, pois sabia que Simon não seria tão facilmente enganado. Um homem de menor brio talvez mentisse, a fim de manter as aparências, mas Simon não era do tipo que se deixava influenciar por galanteios. Pelo brilho ameaçador nos olhos dele, Bethia concluiu que Simon não acreditara em uma só palavra pronunciada por Brice até então. — O rei não está mandando exército nenhum para cá — Simon replicou. — Mas será com prazer que enviarei a ele ura mensageiro, para informá-lo sobre seus feitos desprezíveis. Brice descartou a ameaça com um sorriso. — Francamente, milorde, receio que o senhor tenha sido vítima de fofocas maliciosas. Não fiz nada além de visitar um velho e querido amigo. — Cuja filha você tentou matar? — Simon inquiriu. Um murmúrio ergueu-se da pequena multidão que os cercava, e todos os olhos se voltaram para Brice, que voltou a sorrir. — Rumores espalhados por meus inimigos. A pobre moça morreu da mesma doença que ameaça a saúde do pai dela, agora. — Com um gesto teatral, sacudiu a cabeça com pesar. — E ainda choro por ela. 118

Bethia continuou a controlar o próprio ultraje, enquanto ouvia Simon emitir sons de desagrado. Era evidente que ele mesmo estava fazendo um grande esforço para controlar os ímpetos. — Nesse caso, creio que vai ficar feliz por saber que ela ressuscitou, como Lázaro — ele disse entre dentes. Aproveitando a oportunidade, Bethia adiantou-se, retirando o capuz que escondia seus cabelos dourados. O que arrancou outra onda de murmúrios da assistência. Os olhos de Brice arregalaram-se, então, e ele pôs-se a olhar em volta, como um rato à procura de um buraco por onde fugir. O sorriso morreu em seus lábios e ele abandonou a postura conciliatória, dando um salto para trás. — Ataquem! — Brice gritou. Imediatamente, os homens que o haviam seguido adiantaram-se, além de muitos outros que surgiram das sombras. Correram na direção de Simon, e Bethia teve o impulso de lutar ao lado dele. Porém, decidiu em contrário, não só porque os homens de Simon encontravam-se junto dele, mas também porque ela não tinha a menor intenção de permitir que Brice escapasse impune. Correu por trás de um casebre, emergindo do outro lado, em tempo de ter um vislumbre da túnica de Brice, desaparecendo pela porta do grande salão. Sem perder tempo, seguiu-o até lá. Assim que seus olhos se acostumaram ao aposento mal iluminado, ela o viu seguindo na direção da escada. Não sabia se ele pretendia usar seu pai como refém, destruir as evidências de seus crimes, ou fugir, mas tinha certeza de uma coisa: precisava impedi-lo. — Pare, covarde! — gritou. Brice virou-se, fitando-a com olhar zombeteiro. — Ah, Bethia! É difícil saber se é mesmo você, metida nesses trapos! Por mais divertidas que sejam as suas roupas, não tenho tempo para você, agora. — Não precisarei de muito tempo para matá-lo — ela retrucou, provocando uma gargalhada de Brice. — Bethia, Bethia. Acha mesmo que conseguiria me matar? — ele indagou, desembainhando a espada. — Você gosta de se fingir de homem, mas não é capaz de vencer um de nós. Ignorando-lhe as palavras, Bethia concentrou-se nos movimentos dele, certa de que ele tentaria atacá-la, antes que os outros chegassem. Quando Brice o fez, atirando-se para ela, na intenção de tirar-lhe a espada, ela o evitou com facilidade, surpreendendo-o. — Ora, vejo que os seus amigos criminosos a ensinaram como manejar uma espada. Tenho certeza de que não foi só isso o que você aprendeu na floresta. Valeu a pena, Bethia? Poderia ter se deitado em minha cama, mas preferiu rolar na terra com um bando de assaltantes sujos. Nunca pensei que você fosse capaz de fazer uma coisa tão feia! — Pensando tê-la distraído, Brice voltou a investir contra Bethia, mas mais uma vez, ela evitou o golpe. — Garotinha travessa! Acredita mesmo que pode vencer um espadachim? Em vez de responder, Bethia concentrou-se na luta. Contra Simon, não seria capaz de vencer, mas Brice não era um cavaleiro. As habilidades dele eram limitadas e, embora ele logo abandonasse a tentativa de parecer técnico, a fim de usar a força bruta para derrotá-la, Brice também não era um homem forte. Bethia era mais rápida e seus golpes, mais fatais. E ela não mostrou a menor piedade. Poucos minutos depois, Brice ofegava, enquanto um brilho desesperado em seus olhos indicava que a energia começava a abandoná-lo. — Muito bem. Você é mesmo boa. Sou obrigado a reconhecer a sua habilidade, Bethia, mas agora, chega. Não tenho nada pessoal contra você. Vamos nos despedir como amigos. Abaixe sua arma e eu lhe darei parte da minha riqueza. Bethia emitiu um som parecido aos grunhidos irritados de Simon e, sem hesitar, golpeou-o com a espada, abrindo-lhe um grande corte no braço. 119

Gritando como um bebê, Brice recuou, tentando fechar o ferimento com a outra mão. — Misericórdia! — choramingou. — Tenha misericórdia, Bethia, pois precisa de mim! Largue a espada e eu lhe darei a vida de seu pai! Pela primeira vez, Bethia hesitou. Aproveitando aquele momento de fraqueza dela, Brice prosseguiu: — Deixe-me viver e eu lhe darei o antídoto para o veneno que venho colocando na comida de seu pai. A idéia de que Brice provocara a doença de seu pai, como ela já havia desconfiado, tornou Bethia ainda mais hesitante, pois ela não tinha conhecimentos de cura e era possível que Brice realmente possuísse o segredo para a recuperação de seu pai. — Isso mesmo — ele murmurou. — Não posso ficar aqui, sangrando. Ah, eu… Ele oscilou, como se tomado por tonturas. Em um movimento automático, Bethia adiantou-se, apenas para recuar de um pulo, quando Brice investiu contra ela mais uma vez. A ponta da espada tocou o ventre de Bethia, mas não a feriu. Brice acabara de perder sua oportunidade. Sem pensar duas vezes, Bethia atacou, enterrando-lhe a espada no coração. Brice caiu, inerte. Depois de se certificar de que ele nunca mais voltaria a se levantar, ou a fazer mal a alguém, Bethia apoiou as mãos nos joelhos e respirou fundo. Sentia-se não só esgotada emocionalmente, mas seu corpo inteiro tremia pelo esforço da batalha, que a levara aos limites de sua resistência. Quando recuperava o fôlego, um grito animalesco ecoou no salão. — Bethia! Simon. Ele estava são e salvo e ela se sentiu grata por isso. Porém, quando ergueu os olhos para fitá-lo, Bethia descobriu que as feições de Simon apresentavam-se contorcidas pela fúria. Com passadas largas, ele se adiantou para ela, parando de súbito, ao deparar-se com o corpo sem vida de Brice. Então, com ferocidade que ela nunca vira antes, vociferou: — Maldita seja, mulher teimosa! O que pensou que estava fazendo? Eu lhe disse para ficar na retaguarda! Ordenei a um de meus homens que a protegesse e você, deliberadamente, esquivou-se a ele! A explosão acendeu a ira de Bethia. — Você não manda em mim, Simon de Burgh. Nem tem o direito de me dizer o que fazer. Ele a segurou pelos braços, com firmeza. — Não? Você é minha, está me ouvindo? Minha! E não vou permitir que ponha a própria vida em risco por causa de um patife qualquer! Simon gritava como louco, seus dedos cravados nos braços de Bethia, como se ele estivesse prestes a sacudi-la. Fitando-o horrorizada, ela sentiu os olhos arderem. Pensara que Simon fosse diferente, mas ele era igual a todos os homens. Não era capaz de admitir que uma mulher pudesse ser guerreira. Mulheres deveriam ficar para trás, sempre obedecendo suas ordens. Bem, não importava o que havia acontecido entre eles, Bethia jamais se submeteria àquele tipo de domínio. — Solte-me, seu bruto! — gritou, ao mesmo tempo que se libertava das mãos fortes e retirava a adaga de dentro da roupa. — Nunca mais ponha as mãos em mim, patife! Por um momento, fitaram-se em silêncio furioso, como haviam feito tantas vezes antes. Mágoa, humilhação e raiva pela traição que Simon cometera, endureceram as feições de Bethia, que ficou ali, parada, ofegante, pronta para enfrentar outro inimigo. Não teria sido capaz de atacá-lo, mas pretendia enfrentá-lo, até que um grito atravessou o salão, distraindo-lhe a atenção. 120

— Bethia, venha depressa! Na colina! Ela correu até a porta, com Simon bem atrás de si, e soltou uma exclamação de horror diante do que viu. Sobre a colina próxima a Ansquith, um grande exército marchava na direção deles. — Os mercenários! — ela gritou, antes de virar-se para Simon, com expressão de desespero. Mas ele não demonstrou surpresa, ou preocupação pela notícia. Imóvel, limitou-se a observar o contingente que se aproximava, com um leve sorriso nos lábios. — Não deixe que eles saibam que os chamou de mercenários — declarou em tom seco. — Por quê? Ah, meu Deus! O que vamos fazer? — Abram os portões! — Simon ordenou aos berros. — O quê? — Bethia indagou, perguntando-se se ele havia enlouquecido. — Por quê? — Porque aqueles homens não são mercenários — Simon respondeu, enquanto seu sorriso se alargava. — Aqueles são meus irmãos.

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CAPÍTULO XV

Ao ver os irmãos, Simon sentiu a raiva se dissipar. Embora todos eles conhecessem seu temperamento, provavelmente teriam ficado chocados diante da demonstração de ira que ele acabara de fazer. Infelizmente, Simon perdera totalmente o controle, quando vira Bethia sair correndo, sozinha, atrás de Brice. A frustração que o invadira fora sufocante, pois Simon não podia gritar para que ela voltasse, nem podia segui-la, uma vez que os homens de Brice o cercavam. Aniquilara os dois primeiros de pronto, mas outros haviam se lançado sobre ele. Pela primeira vez em sua vida, Simon amaldiçoara cada momento da batalha, ansioso para vê-la encerrada. Se algo acontecesse a Bethia… Simon sentira uma dor tão lancinante no peito, que chegara a baixar os olhos, acreditando-se atingido pela lâmina de uma espada. No entanto, não encontrara ferimento algum, apenas a agonia de saber que Bethia partira no encalço do inimigo. E poderia se ferir. Ou morrer. Possuído por um medo que jamais sentira antes, Simon lutara com fúria, pondo um rápido fim à batalha. Ninguém além dos homens de Brice tivera a coragem de erguer as armas contra o senhor de seu amo, nem contra a filha dele. Assim, todos haviam se rendido, uma vez mortos os mercenários. Em vez de comemorar a vitória, Simon correra ao encontro de Bethia, sua imaginação normalmente pobre, produzindo as imagens mais horrendas. Quando ouvira o que acontecera com Firmin, Simon tivera o ímpeto de trancá-la na torre mais alta de Campion e, agora, jurou que o faria… se não fosse tarde demais. Ao vê-la de pé, o alívio que sentiu não aplacou o sangue que fervia em suas veias. Seria possível que ela não fizesse idéia do que estava causando a ele? Não teria um pingo de bom senso, para enfrentar o patife sozinha? Brice estava desesperado e homens nessas condições tornavam-se duas vezes mais perigosos. Nem mesmo a visão do corpo inerte de Brice o acalmara, pois os sentimentos descontrolados haviam lhe toldado a razão. E eles explodiram em um grito animalesco. Queria sacudi-la, ordenar-lhe que nunca mais fizesse aquilo a ele, que nunca mais se arriscasse por nada. Bethia significava tanto para ele que tal sentimento chegava a assustá-lo, tanto quanto a idéia de perdê-la. E Simon não estava acostumado a sentir medo. Infelizmente, tomado pela força de suas paixões, fora incapaz de expressar seus sentimentos para ela. Escolhera as palavras erradas, e Bethia sentira-se ultrajada. Fitou-a pelo canto do olho, enquanto aguardava a chegada de sua família. Então, suspirou. Não tivera a intenção de discutir com Bethia. Só queria que ela compreendesse que já não podia mais ser tão descuidada. Ele não permitiria, jurou, embora começasse a se sentir constrangido pelas próprias atitudes. Bethia afirmara que ele não tinha qualquer domínio sobre ela, mas estava errada. E Simon estava disposto a lhe provar isso, mas não agora, pensou, examinando-lhe a expressão fria. Agora que sua raiva havia se dissipado, ele se via obrigado a admitir que poderia ter agido de maneira bem diferente. — Bethia — começou, sem jeito, mas quando virou-se para fitá-la, descobriu que ela subia a escada correndo. Provavelmente, ia ao encontro do pai. Por um momento, Simon hesitou, sem saber se deveria segui-la, ou não. A verdade era que sabia que Bethia desejaria privacidade em seu encontro com o pai, enquanto ele se reunia aos irmãos. Emitindo um som de impaciência, Simon saiu. Parou diante da porta, quando seus irmãos atravessavam os portões. Ao erguer a mão para cumprimentá-los, Simon deu-se conta de que, pela primeira vez em sua vida, sentia-se feliz por vê-los. Depois do confronto com Bethia, a afeição rude dos irmãos seria bem-vinda. 122

Quando Dunstan o abraçou, Simon não sentiu o menor sinal de competição entre eles. Ao contrário, demorou-se no abraço, dando tapinhas nas costas do mais velho, levando-o a fitá-lo com olhar estranho. — Talvez aquele administrador idiota tenha razão — o Lobo comentou. Antes que Simon tivesse tempo de pedir a Dunstan que se explicasse, Geoffrey já o abraçava e, então, ele se viu em meio à algazarra comum aos encontros familiares. Estavam todos ali, exceto seu pai, e Simon soltou uma exclamação de surpresa ao constatar quanto o mais jovem, Nicholas, havia crescido. — O que estão fazendo aqui? — perguntou, afinal. — Fiquei preocupado com a sua última mensagem e achei que deveria ver de perto os problemas que assolam a propriedade que Marion trouxe à família — Dunstan respondeu. — Geoff estava em Wessex, com Elene, exibindo a filha, e insistiu em vir comigo. — Deixou Elene com Marion? — Simon perguntou, ganhando por isso uma carranca de Dunstan e um rugido ameaçador de Geoffrey, que era muito sensível aos comentários sobre sua bizarra esposa. Virando-se, Simon olhou para os outros. — E vocês, Stephen, Reynold, Robin, Nicholas? Stephen exibiu uma expressão infeliz, que indicava que ele fora coagido a tal viagem, mas os outros três demonstraram entusiasmo maior. — Papai disse que, talvez, você estivesse precisando de nós! — Robin explicou. Em vez de exibir seu costumeiro ultraje diante de tal insinuação, Simon sentiu-se tocado pela preocupação do pai. — Mas onde está a batalha? — Nicholas perguntou. Envergando uma armadura nova em folha. Era evidente que o rapaz estava ansioso para lutar. Simon sentiu um nó na garganta, agradecendo a Deus pela batalha ter sido rápida e fácil. De repente, Nicholas pareceu-lhe jovem demais para iniciar sua vida de guerreiro. Enquanto ele mesmo começava a ficar velho demais para isso. — Ao que parece, a batalha já terminou — Geoffrey declarou, olhando em volta. — Não vamos lutar? Isso não é justo! — Nicholas protestou. — E você não parece doente — acrescentou, aproximando-se para estudar Simon de perto. Doente? Ora, Florian seria estrangulado assim que Simon pusesse os pés em Baddersly! — Não estou doente! — resmungou. — Bem, não tenho tanta certeza — Stephen replicou, acomodando-se confortavelmente em uma cadeira e ordenando que lhe servissem vinho, como se estivesse em sua própria casa. — Simon me parece um pouco pálido. Mas, diga, irmãozinho, onde está a mulher que deixou você assim? Simon cerrou os punhos, tomado pelo velho ímpeto de esmurrar o irmão, na tentativa de enfiar um pouco de bom senso em sua cabeça. Porém, não tinha tempo para isso, no momento. Outros problemas, mais importantes, exigiam sua atenção. Brice e seus homens precisavam ser enterrados e aqueles que haviam prestado sua lealdade a ele teriam de ser expulsos da propriedade. Simon perguntou-se se sir Burnel estaria vivo e, se estivesse, qual seria a sua condição. Quanto a Bethia… Deu as costas para Stephen e chamou seus homens. Assim, não viu os olhares surpresos trocados pelos irmãos. — Talvez ele esteja mesmo doente — Nicholas sussurrou, chocado. Stephen observou o irmão com ar indolente. Sempre fora divertido provocar Simon, pois até mesmo o comentário mais inocente o fazia atirar-se sobre os irmãos. Desde muito jovem, apresentara a natureza de guerreiro, mesmo dentro de sua casa e, por isso, ao vê-lo afastar-se em vez de brigar, Stephen concluiu que algo havia mudado. Ou Simon havia desenvolvido uma maturidade que jamais possuíra antes, ou Florian tinha razão. 123

O guerreiro frio estava apaixonado. Depois de apanhar o copo que um criado lhe estendeu, Stephen bebeu um longo gole de vinho. Havia relutado em acompanhar os irmãos naquela viagem, mas agora, a visita começava a lhe parecer bastante interessante. Apoiando os pés cruzados em um banco, ele se reclinou e sorriu, à espera de maior diversão. Bethia o estava evitando. Embora houvesse passado o dia todo ocupado, Simon podia sentir isso. Havia tomado todas as providências necessárias para apagar da propriedade os vestígios da batalha, enviara uma mensagem aos mineiros, para que fechassem o túnel e explicara a situação, em detalhes, a Dunstan. Imediatamente, o Lobo perdoou os arqueiros, que comemoraram e, finalmente, retornaram a seus lares. Simon tivera uma conversa breve e tensa com John, e ficara com a impressão de que o homem o acusava de haver cometido algum tipo de traição a Bethia, apesar de ter-lhe devolvido Ansquith. Através de uma criada, Simon soubera que Bethia continuava cuidando do pai, que fora transferido ao seu velho quarto e estava sendo alimentado com sopa e vinho. Os rumores que se espalhavam diziam que Brice estivera envenenando a comida de sir Burnel, desde que chegara ali, o que explicaria não só a doença do velho, como também sua pobre capacidade de julgamento. Provavelmente, Brice o mantivera vivo a fim de poder se esconder atrás da farsa de que ainda era Burnel quem governava a propriedade. Embora Simon soubesse que algumas ervas exerciam efeitos sobre a mente dos homens, ainda encontrava dificuldade em perdoar o pai de Bethia por ter recebido Brice em sua casa e, pior, por ter tentado forçar a filha a se casar com o patife. Foi somente depois do jantar, quando os criados começaram a providenciar acomodações para seus irmãos, que Simon deu-se conta de que não sabia onde dormiria. Durante toda a noite, os irmãos haviam lhe lançado olhares estranhos, indicando-lhe que ele deveria exigir que Bethia aparecesse. Simon, porém, sabia que não seria boa idéia exigir que Bethia fizesse coisa alguma. Além disso, ele ainda carregava um vago sentimento de culpa pela explosão que tivera pela manhã, o que o tornava relutante em procurá-la. Finalmente, quando os irmãos se dirigiram aos quartos que lhes foram designados, Simon descobriu-se incapaz de esperar mais e, ignorando o olhar divertido de Stephen, respirou fundo e dirigiu-se ao quarto do pai de Bethia, onde fora informado de que ela ainda se encontrava. Seus passos foram hesitantes, como não acontecia desde que ele era um garotinho e, por causa de alguma pequena infração que cometera, era chamado à presença do pai. Contrariado, aproximou-se da porta do quarto e deparou-se com um guarda armado. Embora soubesse que, provavelmente, fora a própria Bethia quem colocara o homem ali, foi invadido por onda de irritação. Agora que ele havia reconquistado Ansquith, não deveria haver necessidade de soldados pelos corredores da casa, especialmente em se tratando de homens que não se encontravam sob o seu comando. — Quero falar com a srta. Burnel — Simon anunciou entre dentes, mal acreditando que estava pedindo um favor a um reles soldado. O guarda pareceu prestes a sair correndo de medo, o que deixou Simon ainda mais irritado. — E então? Deixe-me passar, idiota! — ordenou. O homem sacudiu a cabeça. — Recebi ordens de não deixar o senhor entrar, milorde — explicou, trêmulo. — Ela… Ela disse que não deseja vê-lo. — O quê? — Simon vociferou, determinado a não acreditar nas palavras do sujeito. E, também, não pretendia permitir que um soldado do campo o mantivesse afastado de Bethia. Empurrando o guarda com um gesto rude, Simon abriu a porta. Em 124

sua primeira atitude inteligente, o homem nem sequer tentou impedi-lo. Praguejando, Simon invadiu o quarto, mas parou abruptamente ao deparar-se com Bethia, sentada na beirada da cama, onde um homem de cabelos brancos jazia, reclinado sobre travesseiros. O ambiente estava iluminado por velas, que acentuavam o brilho dourado dos cabelos de Bethia. Ela vestia uma espécie de robe macio, que revelava a curva dos seios e, subitamente, a boca de Simon ressecou. — Saia! — ela disse, sem virar-se para fitá-lo. — Não vê que meu pai precisa descansar? — Quem está aí, Bethia? — o velho perguntou com voz fraca. — Simon de Burgh, papai, o cavaleiro cujo irmão é o senhor de Baddersly — ela respondeu. — Ele me ajudou a recuperar meu lugar aqui. A última frase foi pronunciada com um olhar frio para Simon, que sentiu como se ela o houvesse golpeado no peito. Embora soubesse que ela ficara contrariada com o comportamento que ele havia exibido pela manhã, não esperava ser tratado daquela maneira. Lutou consigo mesmo, a fim de controlar os ímpetos de reagir. — Sim, sou Simon de Burgh — declarou, decidindo que chegara o momento de definir sua situação. — Também sou o homem que vai se casar com sua filha. Sir Burnel não fez qualquer comentário, mas Bethia emitiu um som incrédulo. Levantou-se de um pulo e o traje leve não disfarçou a postura de guerreira. Simon foi invadido pela sensação de que uma batalha fora travada sem o seu conhecimento. E era ele o derrotado! — Receio que esteja enganado — Bethia falou com voz fria. — Ele realmente me propôs casamento, papai, mas eu recusei a oferta. Simon perdeu a voz diante da nova rejeição. Cerrou os punhos e esforçou-se para conter o impulso de agarrá-la pelos ombros e mostrar-lhe, mesmo que à força, o que tal rejeição significava para ele. Porém, ao pousar os olhos no semblante composto, sentiu a raiva abandoná-lo. As lembranças de outras vezes em que fora rejeitado por ela invadiram-lhe a mente, trazendo consigo a dor que somente ela era capaz de lhe infligir. Simon havia jurado nunca mais implorar diante de Bethia. E, sendo um de Burgh, tinha de manter sua palavra. Talvez houvesse chegado o momento de bater em retirada, de render-se à guerra que estava rasgando seu peito. Endireitando os ombros, reuniu o que restava de seu orgulho. Então, sem olhar para trás, virou-se e deixou o quarto. Encontrou Stephen sentado no salão e, embora nunca houvessem sido íntimos, Simon aceitou o vinho que o irmão lhe ofereceu. Bem, aceitaria qualquer coisa que pudesse aplacar a dor que se alojara em seu peito, ou apagar a lembrança das feições de Bethia, desprovidas de expressão, enquanto ela o escorraçava mais uma vez. Deveria estar acostumado àquele tipo de tratamento, depois de tantas rejeições e humilhações, mas depois da semana que haviam passado juntos, ele não esperava que nada daquilo voltasse a acontecer. Perguntou-se se Bethia o usara apenas para recuperar sua propriedade. Ora, recusava-se a acreditar que a guerreira destemida que admirava fosse capaz de algo assim. Esvaziou o copo de um só gole e deixou que Stephen lhe servisse mais vinho. Bem, o que realmente sabia sobre Bethia? Embora houvesse se sentido atraído por ela desde o início, Simon admitiu que jamais a compreendera, especialmente no que dizia respeito à maneira como ela se comportava com relação a ele. O relacionamento dos dois fora da violência à indiferença, da paixão à frieza. Só sabia de uma coisa: Bethia o acertara com precisão, senão com a espada, com algo que ele seria incapaz de definir, pois a dor que sentia era muito maior do que qualquer ferimento poderia causar. — Nunca imaginei que o veria assim — Stephen balbuciou. Simon ignorou o irmão, exceto para aceitar mais do vinho que anestesiaria os seus sentidos, até que ele ficasse igual a Stephen, somente a sombra de um homem que não honrava o próprio nome. Pela primeira vez, a verdade sobre o irmão não provocava a 125

costumeira onda de desprezo. Os lábios de Simon curvaram-se em um sorriso amargo. Talvez ele devesse abandonar a vida de cavaleiro e tornar-se um bêbado inútil, também. — Eu avisei, Simon, que você deveria ter muitas mulheres, mas você não me ouviu. Nem você, nem Dunstan, nem Geoffrey. Agora, veja no que se transformaram! — Stephen estremeceu. Em vez de responder, Simon estendeu o copo para que o irmão voltasse a enchêlo. — Quando o administrador contou que você estava apaixonado, todos nós rimos, mas quando ele explicou que… Simon interrompeu-o, furioso: — O quê? Stephen reclinou-se na cadeira com ar surpreso. — O administrador de Baddersly, chamado… — Florian — Simon resmungou, enquanto imaginava mil maneiras de matar o administrador bisbilhoteiro. Decidiu fazê-lo com as próprias mãos. Seria seu ato final, na breve condição de senhor de Baddersly e, sem dúvida, a mais agradável de todas as missões de que se encarregara naquele fim de mundo. Exceto pelo dia em que fizera amor com Bethia, encostado à parede da casa de Meriel, na chuva. Simon gemeu baixinho e fechou os olhos. Ou da primeira vez, quando ela implorara que ele a possuísse. Ou, ainda, a segunda, lenta e langorosa. Ou na manhã em que ele acordara com o rosto enterrado nos cabelos loiros… Um gemido de agonia escapou dos lábios de Simon, enquanto ele recordava o prazer que o corpo de Bethia lhe proporcionara, a paz que encontrara na companhia dela, o som suave da voz dela, da mulher incrível que era Bethia, dama e guerreira, amante e amiga. — Bem, é evidente que, agora, é tarde demais. Só me resta oferecer o meu apoio moral — Stephen continuou. — Eu jamais desejaria que alguém se apaixonasse, nem mesmo você, Simon. Simon sobressaltou-se. Seria verdade? Estaria apaixonado por Bethia? Sua reação imediata foi a de negar a realidade, mas ao mesmo tempo, ele sentiu a confusão que se tornara uma constante em sua vida, desde o primeiro momento em que pusera os olhos em Bethia, pouco antes de ser feito prisioneiro por ela, e de ter sua vida virada de cabeça para baixo, se dissipar. Ora, de que outra maneira poderia explicar o que ela fizera? E Stephen tinha razão. Simon vira com os próprios olhos Dunstan deprimido pela mesma razão. E, também, assistira às crises de choro de Geoffrey, quando a megera com quem ele havia se casado desaparecera. Horrorizado, Simon jurou nunca chorar por Bethia, embora seu peito doesse cada vez que ele respirava. Era mais forte que os irmãos, mesmo o Lobo. Enfrentara diversas batalhas e vencera, e não permitiria que uma simples mulher o derrotasse. Assim que terminassem o que tinham de fazer em Ansquith e Baddersly, ele seguiria seu plano de se juntar ao exército de Edward. E nunca olharia para trás. Mas, enquanto isso, beberia mais um pouco de vinho. Simon foi despertado por uma dor de cabeça latejante e um ruído alto, que lhe pareceu ser a voz de Dunstan. Piscou repetidas vezes, antes de se dar conta de que tinha a cabeça apoiada sobre a mesa do salão de Ansquith e de que Dunstan esbravejava ao seu lado. — O que significa isso? — o Lobo rugiu. — Bem, creio que a resposta é óbvia. O tom de voz aveludado de Stephen provocou um sobressalto em Simon que, ao tentar se levantar, bateu com o joelho em um banco. Soltou um gemido alto e levou a mão à cabeça latejante, que doía mais que a perna. — Nosso querido irmão não tem resistência para vinho — Stephen explicou em 126

tom de conspiração. — O que você fez com ele? Ao ouvir a pergunta furiosa de Dunstan, Simon virou-se e descobriu que todos os irmãos encontravam-se reunidos às suas costas. Dunstan encarava Stephen com expressão ameaçadora, enquanto o mais novo parecia estar em sua melhor forma, mesmo depois de ter bebido até de madrugada. Simon voltou a gemer. — Triste, não? — Stephen comentou. — Infelizmente, nem todos possuem os mesmos talentos. — Você permitiu que ele passasse a noite aqui? — Dunstan inquiriu, parecendo prestes a perder o controle. Stephen deu de ombros. — Encontrei acomodações melhores para mim e ele parecia confortavelmente instalado, deitado sobre a mesa, com o rosto em uma poça de vinho, parecendo um… Furioso, Simon levantou-se, determinado a esmurrar o belo rosto de Stephen, pois conhecia muito bem as táticas do irmão. Stephen estava adorando fazer com que Simon parecesse mau, pois eram raras suas chances de se mostrar mais virtuoso do que qualquer um de seus irmãos. Foi somente quando cambaleou, que Simon começou a se lembrar da noite anterior, inclusive do juramento de tornar-se um bêbado inútil como Stephen. Olhou para o mais atraente de seus irmãos, que não parecia tão inútil à luz do dia. — Vá tomar um banho — Dunstan recomendou. — Você está cheirando mal! É melhor não deixar que sua noiva o veja assim. Por um momento, Simon não conseguiu falar, mas então, com grande esforço, endireitou os ombros e encarou os irmãos. — Não tenho noiva — declarou em tom quase feroz. — Ei, o que é isso, agora? — Robin indagou, confuso. — Ah, não — Geoffrey murmurou. Dunstan praguejou baixinho. — Então, foi por isso que começou a beber? — O administrador disse… — Nicholas começou, mas calou-se diante da expressão de fúria no rosto de Simon. Embora percebesse os olhares que todos trocavam, Simon não estava disposto a discutir mais. — Vou tomar um banho para não ofender a sua sensibilidade, Dunstan, mas depois, pretendo ir embora daqui. Portanto, não partam sem mim. — Partir? Ora, não estamos sequer pensando nisso — Geoffrey retrucou em um tom estranho, que encheu Simon de suspeitas. — Não é mesmo, Dunstan? — Geoff indagou, erguendo as sobrancelhas para o Lobo. — O quê? Ah, sim — Dunstan gaguejou. — Não podemos partir enquanto sir Burnel não estiver recuperado. Ficaremos, no mínimo, uma semana. Simon estreitou os olhos, sentindo-se enganado, mas a expressão de Dunstan não dava lugar a discussões e, naquele momento, Simon não se sentia em condições de enfrentar o mais velho. Como Stephen conseguia beber tanto e nunca parecer afetado por isso? Franzindo o cenho, subiu a escada sem dizer mais nada. Uma semana? Não tinha a menor intenção de ficar ali por tanto tempo. Gritou por água quente, mas só então deu-se conta de que nem sequer tinha um quarto. Felizmente, a uma ordem de Dunstan, um criado adiantou-se para conduzi-lo. Ao que parecia, Simon fora reduzido a partilhar um quarto com o irmão, quando fora ele quem lutara para reconquistar aquele maldito lugar! Resmungando consigo mesmo, ele não ouviu a conversa que se seguiu no salão. — Por que vamos ficar nesta casa razoavelmente confortável, mas pequena, quando você é dono de um excelente castelo, tão perto daqui? — Stephen perguntou a 127

Dunstan. — Sim, por quê? — Robin reforçou a pergunta. — Não olhem para mim! A idéia foi de Geoff — Dunstan protestou. — Será que não perceberam? Ele está muito infeliz — Geoff explicou. — Temos a obrigação de ajudá-lo. — Ajudar Simon? — Stephen zombou. — Não acha que há uma contradição de termos, aí? — Talvez, mas por que você deu tanto vinho a ele, ontem à noite? — Geoff retrucou. — Não foi uma tentativa de aproximá-lo de mulher nenhuma. — É isso o que você quer que façamos? Que banquemos os alcoviteiros para nosso próprio irmão? — Robin inquiriu, incrédulo. — Ora, isso beira a traição! — Não pensaria assim se estivesse apaixonado — Geoffrey disse. — Quanta bobagem! — Reynold resmungou. — Pobre Simon. Sinto pena dele — Robin lamentou, sacudindo a cabeça. — Eu também — Nicholas concordou, aparentemente sem compreender nada do que se passava. — Ora, por que não enterram uma faca nas costas dele? — Stephen zombou em seu tom aveludado. — Devo admitir que tenho me sentido entediado, ultimamente. Acho que isso vai ser divertido. A propósito, onde está a garota? Eu gostaria muito de conhecer a mulher que conseguiu dobrar nosso irmão guerreiro. Todos se entreolharam e deram de ombros. Stephen soltou uma risada. — Dunstan, sendo o poderoso senhor de Baddersly, você é o mais indicado para exigir a presença dela — sugeriu. — Mas, por favor, nunca faça um favor parecido para mim. Simon ergueu a cabeça, aliviado por não sentir dor. Então, olhou para a janela estreita. Depois do banho, adormecera e, pela altura do sol, havia perdido a hora do almoço. O que era bom, uma vez que ele não estava disposto a encarar nem os irmãos, nem qualquer outro residente de Ansquith. Tal pensamento trouxe de volta a dor em seu peito, como se ele houvesse acabado de receber uma punhalada. Praguejando, respirou fundo e forçou-se a ignorá-la, como fazia com qualquer outro tipo de dor, embora essa fosse mais profunda e, provavelmente, permanente. Levantou-se e sentiu-se grato pelo chão não ter dançado sob seus pés, embora algo lhe dissesse que o mundo nunca mais voltaria a ser o que fora antes. Uma batida na porta sobressaltou-o e ele amaldiçoou a expectativa que o invadiu. Disse a si mesmo que não era Bethia. De fato, ao abrir a porta, deparou-se com um criado. — Sir Burnel oferece sua gratidão e pede que o senhor vá aos aposentos dele, uma vez que está doente demais para vir visitá-lo — o homem informou-o. Simon franziu o cenho. Não tinha a menor vontade de enfrentar a conversa que, provavelmente, incluiria Bethia. Porém, não era um covarde e, assim, encaminhou-se diretamente para o quarto de Burnel. Exibindo uma carranca para o guarda que continuava ao lado da porta, Simon hesitou, concluindo que preferiria entrar em um túnel a seguir adiante. Precisou de toda a coragem que possuía para abrir a porta. O que foi grande perda de tempo, uma vez que o quarto estava deserto, exceto pelo velho doente deitado na cama. Simon adiantou-se, emitindo um suspiro de alívio. Ou seria de decepção? — Lorde de Burgh! Muito obrigado por atender o meu pedido. Por favor, aproximese, pois minha voz está muito fraca. Ao ouvir a voz rouca de sir Burnel, Simon obedeceu, embora detestasse visitar doentes e não tivesse o menor desejo de conhecer melhor o pai de Bethia. — Devo-lhe minha vida — o velho declarou, assim que Simon sentou-se ao lado da 128

cama. — E, mais importante, minha gratidão por ter colaborado para o retorno triunfante de minha filha. — Não precisa me agradecer, pois eu tinha o dever de honra de fazer o que estivesse ao meu alcance, a fim de ajudar um vassalo de meu irmão. Burnel fitou-o nos olhos. — Ah, sim, a honra. Os de Burgh a têm de sobra, se estou bem lembrado. Mesmo assim, o senhor fez mais do que a maioria teria feito e, por isso, eu o agradeço. Agora, fale-me do noivado. Quando vai se casar com minha filha? Simon reprimiu um palavrão e se pôs de pé. — Foi um engano. O senhor a ouviu. Ela recusou minha oferta. Mais de uma vez, Simon pensou. — Tenho certeza de que um de Burgh não desiste com tamanha facilidade. Especialmente diante de um prêmio tão raro. Simon cerrou os punhos, na tentativa de conter a raiva que ameaçava explodir. — São palavras estranhas, pronunciadas por um homem que abandonou a filha e, depois, tentou forçá-la a casar-se com um homem como Brice Scirvayne — disse entre dentes. — Tem razão — sir Burnel concordou com expressão amarga. — Mas tendo cometido erros, um homem pode ter a esperança de repará-los, não? Cerrando os dentes, Simon sacudiu a cabeça. — Não desta vez.

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CAPÍTULO XVI

Foi com relutância que Bethia desceu para jantar. Mantivera-se ocupada o dia todo, cuidando do pai e inspecionando a administração doméstica, determinada a corrigir os erros cometidos por Brice. Ao anoitecer, porém, foi invadida por um sentimento desagradável, como se todo o seu trabalho não fosse fruto de sua devoção ao dever, mas sim da fraqueza. E quando o pai insistiu para que ela jantasse com os hóspedes, em vez de fazer a refeição com ele, no quarto, Bethia fora obrigada a concordar. Admitiu que estava agindo como uma covarde. Não queria ver Simon, pois seus sentimentos ainda se encontravam tumultuados pelo confronto da véspera. Embora soubesse que seu idílio com o grande cavaleiro logo chegaria ao fim, não havia se preparado para uma conclusão tão terrível. Ao longo dos dias que haviam passado na casa de Meriel, ele a tratara como igual, levando-a a pensar que era essa a opinião que Simon tinha sobre ela. No entanto, após a batalha para reconquistar Ansquith, ele finalmente revelara suas verdadeiras idéias, gritando como louco, tratando-a como se não fosse nada além de uma concubina, uma criatura incapaz, destinada a cumprir as ordens dele. E depois de ter vivido meses em liberdade, Bethia não se submeteria à escravidão novamente. Sentada em um banco, em seu quarto, secou as lágrimas com gestos irritados. Entregara a Simon, de bom grado, seu coração e seu corpo, mas o espírito ela jamais renderia. Uma vez tomada a decisão, Bethia sabia que aprenderia a viver com ela, mas ver Simon de novo seria doloroso demais. Por que ele não podia deixá-la em paz? Se ele fosse embora, seria muito mais fácil esquecê-lo. No entanto, todos os de Burgh pareciam determinados a ficar ali, comendo tudo o que havia na despensa. E Bethia sabia que já havia se escondido atrás da doença do pai por tempo demais. Chegara o momento de fazer as honras da casa. Respirando fundo, ela endireitou os ombros, ergueu a cabeça e dirigiu-se ao salão. Já alcançava os últimos degraus, quando parou, surpresa com o que viu. Embora os tivesse visto à distância, eles agora encontravam-se sentados à mesa, fazendo com que o salão parecesse minúsculo. Eram sete homens tão parecidos entre si, que a visão não parecia real. Bethia nunca vira cavaleiros tão imponentes juntos. Embora as diferenças fossem visíveis, todos tinham os mesmos cabelos escuros, além de serem muito atraentes. Na verdade, Simon era quem possuía menos atrativos. Ainda assim, foi a figura dele que lhe chamou a atenção e que trouxe lágrimas a seus olhos. Observando-o entre os irmãos, Bethia deu-se conta de que Simon já havia nascido arrogante. Como alguém, criado entre homens tão poderosos, poderia temer que algo ou alguém o atingisse? Até mesmo Bethia viu-se obrigada a admitir que eles pareciam invencíveis. Não conseguiu desviar os olhos, embora sua presença logo fosse notada. Enquanto ela os fitava, boquiaberta, todos se levantaram com movimentos ágeis, apesar do tamanho de seus corpos. — Srta. Burnel! Venha tomar o seu lugar, à cabeceira — disse o maior e mais formidável deles. Bethia reconheceu o Lobo que governava Baddersly, pois ele fizera uma breve visita a seu pai. Embora ele se mostrasse cortês e amigável, Bethia hesitou. Já comandara e capturara homens e cavaleiros, mas aqueles sete poriam medo até mesmo no mais corajoso dos guerreiros. E ela não se sentia especialmente corajosa naquela noite. Por outro lado, não era covarde e, por isso, encheu os pulmões de ar e adiantouse. Foi somente quando se aproximou da mesa que ela se deu conta de que Simon continuava sentado. Só então ele afastou o prato e se levantou. Depois de lançar um 130

olhar duro para ela, virou-se e saiu, fazendo com que seis pares de olhos o seguissem. Pior ainda, assim que ele desapareceu, os mesmos seis pares de olhos voltaram-se para Bethia. Por um momento, ela desejou que um buraco se abrisse a seus pés e a engolisse. Infelizmente, seu desejo não se realizou e ela não teria para onde fugir. Embora fosse necessária toda a sua coragem para não virar-se e correr do desprezo de Simon, bem como da curiosidade dos irmãos dele, Bethia tomou seu lugar à mesa, em silêncio. Então, todos se puseram a falar ao mesmo tempo. Não fosse pela dor aguda que se instalara em seu peito, Bethia teria caído na risada, pois todos começaram a conversar com ela, quando ela nem sequer sabia seus nomes. Finalmente, o Lobo ordenou que se calassem, e apresentou cada um deles: Geoffrey, Stephen, Robin, Reynold e Nicholas. Bethia cumprimentou-os com cautela, mas nenhum deles demonstrou censura ou hostilidade. Ela não sabia o que deveria esperar, mas com certeza não imaginara receber tal tratamento. Bem, de que outra maneira um de Burgh se comportaria? Todos eles usavam a honra como uma armadura, forte, resistente e pura. Ocorreu a Bethia que não seria tão bem tratada, se eles soubessem que ela, um dia, zombara de Simon e de seu bom nome. Agora, claro, isso era evidente. Qualquer um que os visse, saberia tratar-se de homens bons, que usavam sua força e poder para o bem. Tal constatação era desconcertante e, embora eles continuassem comendo e bebendo com entusiasmo, Bethia limitou-se a brincar com a comida em seu prato. Além de não ter fome, a presença da família de Simon exacerbava seu sentimento de perda, pois ali estava o que ela recusara. E o fato de saber que sua liberdade era mais importante do que a amizade daqueles homens, tal consciência era dolorosa. Quando Bethia finalmente afastou o prato, o de Burgh sentado à sua direita, mais quieto que os outros, aproveitou a oportunidade e inclinou-se para ela. — Há alguma coisa que eu possa fazer pela senhorita? — indagou com genuína preocupação. — Sei que Simon é um homem duro, de temperamento implacável, mas ele também é firme na devoção para com aqueles a quem ama. Bethia teve de lutar contra a tentação de fazer confidências àquele homem gentil. — Receio não saber do que está falando, Geoffrey — declarou no tom mais casual que conseguiu forjar. Geoffrey lançou-lhe um olhar que deixava claro que ele não se deixara enganar, mas decidiu não discutir. — Os assuntos do coração nunca são fáceis. Talvez vocês só precisem de tempo. Ficaremos aqui por quanto tempo a senhorita quiser. Seria esse o motivo da permanência deles? Para prolongar o sofrimento de Bethia? Ultrajada, ela respirou fundo a fim de não perder a compostura, ao mesmo tempo que se punha de pé. Então, falou com simplicidade: — Nesse caso, podem partir, pois não há motivo para ficarem aqui. Bethia postou-se atrás da cortina, a fim de não ser vista, para observar os de Burgh montarem seus cavalos. Estivera com Dunstan por alguns minutos, após o desjejum, fazendo as despedidas formais em nome do povo de Ansquith. Não vira sinal de Simon e, embora dissesse a si mesma que era melhor assim, estreitou os olhos na tentativa de avistá-lo entre os irmãos. — Estão todos partindo? A voz fraca do pai a fez atravessar o quarto e sentar-se na beirada da cama, pois ele ainda não recuperara as forças para conversar normalmente. — Sim. Logo estarão longe daqui — ela respondeu. — Sinto muito, filha. Bethia cruzou as mãos e as pousou do belo vestido amarelo que lhe parecia muito 131

estranho. — Já se desculpou, papai, e foi perdoado. Foram as ervas que o levaram a atitudes erradas, como Brice pretendia. — Sim, mas o seu cavaleiro passou-me uma descompostura por ter permitido que a levassem daqui. — Simon? O senhor conversou com Simon? — Bethia indagou, surpresa. — Sim… e ele tem razão. Eu jamais deveria ter concordado em deixá-la partir com Gunilda. Estava tão abalado pela morte de sua mãe, que não raciocinei direito. Quando Gunilda disse que eu estava criando você da maneira errada, achei que poderia corrigir a situação. Logo me arrependi, pois senti demais a sua falta. Bethia fitou-o nos olhos. — Sentiu minha falta? Então, por que não mandou me buscar, nem respondeu às minhas cartas? Uma sombra cobriu os olhos de Burnel. — Não recebi nenhuma carta sua e imaginei que estivesse mais feliz, com sua nova vida. Gunilda. Bethia estava cansada demais, além de muito infeliz, para sentir a raiva que a tia merecia, mas sabia exatamente o que acontecera. — Ela não mandou minhas cartas. — Nem lhe entregou as minhas — o pai concluiu. — Quanta crueldade você sofreu, minha filha, só porque fui tolo demais para enxergar a verdade. — Não, papai. Eu também deveria ter me dado conta de que algo estava errado. Portanto, também errei. E eu estava bem alimentada e bem vestida, papai. Bethia não queria entrar nos detalhes do que fora sua vida lá. Afinal, não sofrera qualquer abuso ou violência e sabia que tudo poderia ter sido muito pior. — Bem, apesar de todo o mal causado por Brice, a presença dele aqui resultou em algo positivo: você está de volta — o pai falou, tomando-lhe a mão. Naquele momento, Bethia deu-se conta de que Simon deixara uma pequena parte de seu coração, pois ela o sentiu acelerar com ternura. — Agora que não estou sob efeito das ervas, eu jamais permitiria que você se casasse com ele — o pai continuou. Bethia suspirou, aliviada, pois era aquilo o que sempre desejara ouvir, que sempre teria a sua liberdade. — Mas, e quanto ao seu cavaleiro? Gostaria que você reconsiderasse a proposta de casamento que ele fez. Ele parece ser um homem temperamental, mas muito bom, inteligente, corajoso e honrado, além de estar apaixonado por você. Bethia respirou fundo, lutando contra as lágrimas. — Não. Sinto-me grata a Simon, pela ajuda que nos deu, mas não posso me casar com ele. Ou com qualquer outro homem. Bethia havia chegado à triste conclusão de que era uma aberração da natureza, uma mulher cuja personalidade não se adequava ao seu sexo, uma anomalia sem lugar no mundo, exceto aquele em que se encontrava agora. Como poderia explicar isso ao pai, o responsável pelas habilidades que ela desenvolvera e que, sem dúvida, se culparia ainda mais? — Ele não me permitirá ser quem eu sou. Embora finja admiração por mim, Simon simplesmente não suportaria uma mulher como eu no papel de sua esposa. E eu não posso mudar. Burnel emitiu um som de discordância. — Simon parece querer você exatamente como é. — Não. Ele foi muito claro, depois que matei Brice. — Minha querida, não lhe ocorreu que a explosão dele não tenha sido causada por reprovação dos seus atos, mas sim por medo de perdê-la? Todo homem possui uma dose 132

de orgulho e não há nada pior do que se ver impotente diante de situações sobre as quais não se tem o menor controle, especialmente quando alguém que amamos corre perigo. Como Bethia se limitasse a fitá-lo, seu pai fechou os olhos, dando sinais de cansaço. Então, ela se levantou, considerando o que acabara de ouvir. Havia interpretado a explosão de Simon pela aparência, mas talvez seu pai estivesse certo. Com o coração aos saltos, Bethia correu para o seu quarto, perguntando-se se seria essa a verdade dos fatos. Lembrou-se do próprio desespero diante do descuido de Simon consigo mesmo, dos sentimentos confusos que tivera ao descobrir que ele havia saído da cama, depois de ter estado tão perto da morte, soterrado no túnel. Ficara furiosa, mas continuara a amá-lo tanto, que se entregara para ele. Ela e Simon eram parecidos em muitas coisas. Seria característica de ambos reagir com raiva, quando preocupados com o bem-estar um do outro? Quando chegou ao quarto, Bethia já fora tomada por uma necessidade desesperada de saber se seu pai estava certo. Horrorizada, deu-se conta de que ela e Simon, sempre reticentes, nunca haviam conversado sobre seus sentimentos ou sobre o futuro. Bethia havia descartado as possibilidades de pronto, mas talvez existisse um meio de chegarem a um acordo. Conduzida pela excitação crescente, além da esperança que ela julgava perdida, correu até a janela, mas descobriu que era tarde demais. Os de Burgh já haviam desaparecido. Simon procurou pela paz que conhecera na floresta, mas não encontrou. Seus pensamentos continuavam em Ansquith, que ele deixara, depois de duas noites de tormento. Constrangido pelas tentativas desajeitadas dos irmãos em aproximá-lo de Bethia, conversara com Dunstan em particular e lhe contara a verdade: que ela havia recusado o seu pedido de casamento e que ele queria partir com o que restava de seu orgulho. De cabeça baixa, como em solidariedade aos sentimentos do irmão, Dunstan concordara. Bethia nem sequer se despedira dele e, ao mesmo tempo que Simon dizia a si mesmo que fora melhor assim, uma parte rebelde de seu ser ansiava pela visão da mulher que mudara sua vida. Agora, porém, era tarde demais, pois ele se afastava de Ansquith a cada passo de seu cavalo. Ainda assim, nem a distância podia banir Bethia de sua mente e ele amaldiçoou a floresta, que parecia assombrada pela presença dela. Dunstan insistira para que seguissem pela estrada que atravessava a floresta, embora Simon houvesse preferido outro caminho. Curvando-se aos desejos do Lobo, ele deixou que os demais seguissem na frente, a fim de garantir que ninguém testemunhasse o sofrimento que as lembranças provocavam. Via Bethia em todos os lugares e, mesmo sabendo que os salteadores já não habitavam a floresta, não pôde tirar a imagem dela da cabeça. Lá estava ela, entre as árvores, rindo para ele, lutando ao seu lado, sendo simplesmente Bethia, uma mulher como nenhuma outra. Embora houvesse usado aquele caminho diversas vezes, Simon parou diante de um arbusto que fora atirado no meio da estrada. Perguntou-se por que Dunstan e os outros não o haviam removido. Ou teria caído ali, depois da passagem de seus irmãos? Quando um ruído chamou-lhe a atenção, Simon ergueu os olhos e mal acreditou no que viu: uma figura vestindo roupas marrons, empoleirada em um galho. — Pare e identifique-se — gritou uma voz familiar. Simon ergueu a mão para esfregar o peito. Reconheceu as pernas firmes sob a roupa masculina e a força dos braços que seguravam o arco, apontado para ele. — Desmonte, devagar, e entregue suas armas — ela ordenou. Ele não sabia se deveria rir ou urrar de fúria, mas não pôde evitar um arrepio de excitação, além de uma pontada de esperança. Bethia sempre o afetara com a 133

intensidade de uma batalha, mas… Desmontando, Simon depositou a espada sobre uma pedra. — A adaga também — ela falou. Simon obedeceu e, quando voltou a virar-se, ela havia desaparecido. E conseguiu assustá-lo, quando aterrissou bem atrás dele, passando uma corda em torno de seus punhos. Embora pudesse ter escapado com facilidade, Simon não ofereceu resistência, pois estava muito curioso para saber quais eram as intenções dela. — O que está fazendo? — inquiriu. — Sente-se — ela ordenou, apontando para um tronco caído. — Vamos conversar, Simon de Burgh, e não o soltarei enquanto não tiver as respostas que desejo. Simon sentou-se, com uma sensação estranha. Estaria tudo aquilo acontecendo, ou estaria ele ainda montado em seu cavalo, sonhando? — Você diz que quer se casar comigo, mas preciso saber se quer uma esposa dócil e obediente, pois não sou assim. Sou uma guerreira, como você, e recuso-me a mudar. Simon resmungou, irritado. Era evidente que não queria uma mulher tola e inútil, pois já vira muitas delas. Somente uma mulher havia conquistado seu interesse e admiração, e ela estava bem à sua frente, empunhando uma espada. Embora a visão fosse familiar, era também excitante, e Simon sentiu o corpo reagir imediatamente. — Mulher tola! Quero você e mais ninguém! — Não quer que eu mude? — Não! — Vai permitir que eu faça exercícios de luta com seus homens? Simon franziu o cenho. Não esperava um pedido como aquele, mas desde que ela não corresse o risco de se ferir, não haveria problema algum. Na verdade, a atividade física ajudaria a manter aqueles músculos em forma, ele pensou, examinando-a da cabeça aos pés, enquanto o desejo se tornava quase doloroso. — Muito bem — respondeu com impaciência. — Devo avisá-lo, Simon, que não vou me submeter às suas ordens! Ele assentiu. — Não ficarei trancada em meu quarto, enquanto você for aonde quiser! Simon sacudiu a cabeça. Bethia sorriu e Simon pensou que fosse derreter. — Muito bem. Se é assim, aceito me casar com você… Se ainda me quiser. — Ainda quero você — Simon confirmou entre dentes. — Agora, tire esta maldita corda dos meus punhos! Cruzando os braços, Bethia fitou-o com expressão maliciosa. — Não sei se devo. A idéia de ter você à minha mercê é muito tentadora. E antes que Simon pudesse reagir, ela o empurrou, forçando-o a deitar-se no chão, e posicionou-se sobre ele. — Eu já não lhe disse que deveria usar a armadura o tempo todo? — falou, enquanto suspendia a túnica de Simon e deslizava as mãos sobre o peito largo. Simon estremeceu, ao mesmo tempo que se sentia mais ansioso para ver-se livre. — Enquanto está amarrado, devo fazer uma confissão — Bethia anunciou. — Um dia, na floresta, vi você… Masturbar-se. Simon começou a se debater, como um animal acorrentado. Vergonha, ressentimento e raiva se misturaram. — Fiquei excitada — ela acrescentou. No mesmo instante, a ira de Simon dissipou-se e ele tentou beijá-la. Bethia, porém, esquivou-se com uma risada e começou a mordiscar-lhe o peito. — Desamarre-me, Bethia — ele ordenou, mas ela simplesmente ignorou o comando. — Bethia… 134

— Pobre Simon! Veja como está excitado — ela disse, tirando-lhe parte das roupas. — E acho que sei exatamente como resolver isso. Depois de despi-lo e acariciá-lo por momentos que, para Simon, pareceram uma eternidade, Bethia livrou-se das próprias roupas e voltou a posicionar-se sobre ele. Mais uma vez, atingiram juntos o clímax e, por vários minutos, depois, ficaram ali, no silêncio da floresta, apenas lutando para respirar. Quando recuperou o fôlego, Simon insistiu: — Desamarre-me, Bethia. Ela ergueu os olhos para fitá-lo, com um sorriso lânguido. — Não sei se devo, Simon. Você fica bem melhor assim, menos autoritário e muito mais fácil de dominar. Casaram-se em Ansquith, no final do verão, não muito tempo depois da retomada da propriedade, o que facilitou a tarefa de convencer os irmãos de Simon a ficarem para assistir à cerimonia. Embora Bethia envergasse um vestido elegante, que Simon não poderia deixar de admirar, ele estava certo de que ela mal podia esperar para voltar às roupas masculinas que usara com freqüência, durante as duas semanas de noivado. Pessoalmente, ele preferia que ela não usasse roupa alguma, como planejara para aquela noite. Simon perguntou-se quando poderiam fugir dos convidados que enchiam o salão, pois sentia-se impaciente pela sua primeira noite juntos, em uma cama de verdade, legalmente casados. Descobriu que teria de esperar mais, quando viu Dunstan aproximar-se. Então, submeteu-se aos cumprimentos de todos os irmãos, com certo constrangimento. Estava mais acostumado a ser provocado por eles, do que parabenizado. Ainda assim, os desejos de felicidades lhe pareceram muito sinceros. Dunstan, na verdade, exibia um sorriso largo, evidentemente satisfeito com a união. Stephen, que observava o irmão mais velho com atenção, apesar de todo o vinho que já bebera, perguntou em tom maroto: — Por que está com esse ar de triunfo? — Nunca pensei em prender Simon a Baddersly — Dunstan respondeu, virando-se para Simon —, mas agora que ele não vai voltar para Campion, poderá cuidar de minha propriedade. Simon franziu o cenho e sacudiu a cabeça. — Não. Meu lugar é aqui, em Ansquith. — Mas… — Não. Baddersly é grande demais e abriga muita gente. Além disso, Florian me deixaria louco em menos de um mês. — Mas… A expressão de surpresa no rosto de Dunstan chegava a ser cômica, pois ele não estava habituado a ter suas ordens questionadas. Ainda assim, Simon manteve-se firme, pois não tinha mais a necessidade de competir com o irmão. Agora, possuía seus próprios sonhos e desejos, e ambos encontravam plena satisfação em Ansquith e Bethia. — Quem cuidará de Baddersly? — Dunstan inquiriu, virando-se para encarar um por um de seus irmãos. Como seria de se esperar, Stephen fixou os olhos no copo que tinha nas mãos, enquanto Reynold se afastava, massageando a perna ferida em batalha. Simon estreitou os olhos, perturbado. Lembrou-se dos tempos em que Dunstan não pedia ajuda a ninguém e perguntou-se se os irmãos retribuiriam o respeito dele com uma recusa. — Eu cuidarei, Dunstan, se me considerar capaz — Robin ofereceu, surpreendendo a todos, uma vez que parecia sempre mais inclinado a contar piadas, do que a levar suas obrigações a sério. 135

Dunstan, porém, não demonstrou nenhuma reserva. — Obrigado, Robin. Sinto-me grato por sua oferta. É claro que o considero perfeitamente capaz e, caso precise de conselhos, Simon estará bem perto. — Então, virou-se para Simon com um sorriso maroto. — Não será reconfortante ter um membro da família na vizinhança? — Ora, não preciso estar perto de nenhum de vocês, para sofrer com sua presença! Vocês me perseguem, como os sintomas provocados por uma refeição estragada — Simon replicou, dando-se conta de que dizia a verdade. De alguma maneira, apesar de todos os seus esforços em contrário, sua família estava tão arraigada dentro dele, que Simon a carregava consigo o tempo todo. Quisesse ou não, estava sempre às voltas com a preocupação do pai, as advertências de Geoffrey, os conselhos de Dunstan e, de Stephen… Simon corou ao pensar que utilizara as sugestões do último mais de uma vez. A verdade era que todos faziam parte dele e, com tal reconhecimento, veio a aceitação e o afeto que Simon jamais se permitira sentir. — Ora, ouço Geoffrey advertir-me para ser cauteloso nos piores momentos — admitiu. Seis pares de olhos fitaram-no, arregalados. — Você nunca me deu ouvidos quando discutíamos! — Geoffrey protestou. Todos riram e Simon explicou: — Quando não sou obrigado a olhar para você, sou todo ouvidos. — E quando voltaremos a presenciar um de seus acessos de ira? — Stephen perguntou, fazendo Simon considerar a resposta. — Terá de ir para casa e apresentar sua esposa a papai — Dunstan lembrou-o. — Você sabe que ele nos quer reunidos no Natal, embora não admita isso. — E ele vai querer mais um neto. Portanto, comece a se esforçar para isso — Stephen sugeriu. — Provavelmente, vai querer mais um casamento na família — Geoffrey corrigiu com um sorriso. Os quatro de Burgh solteiros recuaram, como se o irmão os houvesse ameaçado com a espada. A verdade era que aquela era a fraqueza da família e aqueles que ainda temiam o casamento não se esforçavam para esconder o receio. — Tem razão — Dunstan concordou, divertindo-se com o pânico dos mais jovens. — Quem será o próximo? ”””

DEBORAH SIMMONS. Leitora e escritora voraz, Deborah Simmons iniciou sua carreira profissional como repórter em um jornal. Passou à ficção depois do nascimento de seu primeiro filho, quando uma antiga paixão por romances históricos levou-a a escrever seu primeiro livro, publicado em 1989. Vive com o marido, dois filhos e dois gatos, em sete acres da região rural de Ohio, onde divide seu tempo entre a família, a leitura, a pesquisa e seus livros. Digitalizado por Projeto_romances [email protected]

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