Universidade Federal do Rio Grande do Norte

ANAIS VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE CIÊNCIAS SOCIAIS V CICLO DE ESTUDOS EM CIÊNCIAS SOCIAIS (CESO)

Organizadores: Allan Phablo de Queiroz Berenice Bento Gilmar Santana Gustavo Vilella Whately Kenia Almeida Pedro Augusto de Queiroz Ferreira

Natal–RN 2012 1

© 2012 Allan Phablo de Queiroz Berenice Bento Gilmar Santana Gustavo Vilella Whately Kenia Almeida Pedro Augusto de Queiroz Ferreira (Organizadores). Todos os direitos reservados em território nacional.

Divisão de Serviços Técnicos Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede Colóquio Internacional de Ciências Sociais. (6. : 2012 : Natal, RN) Anais do VI Colóquio Internacional de Ciências Sociais e V Ciclo de Estudos em Ciências Sociais, de 8 a 10 de outubro de 2012, Natal, Brasil: o mundo contemporâneo: crises, rupturas e emergências. / Organizado por Allan Phablo de Queiroz et al. – Natal, RN, 2012. 1748 p. : il.

1. Ciências Sociais. 2. Ciclo de estudos. 3. CESO. I. Queiroz, Allan Phablo de. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. RN/UF/BCZM

CDU 3

ISSN: 1982-7210

℗ 2012 / Universidade Federal do Rio Grande do Norte 2

PROMOÇÃO: UFRN - Campus Universitário Lagoa Nova Caixa Postal 1524 CEP 59078-970 Natal/RN - Brasil Contato: +55 (84) 3215-3883 Departamento de Ciências Sociais – DCS

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

APOIO: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES Setor Bancário Norte, Quadra 2, Bloco L, Lote 06 CEP 70040-020 Brasília/DF - Brasil CNPJ 00.889.834/0001-08

Sindicado e Associação dos Docentes da UFRN – ADURN Setor de Aulas Teóricas II Campus Universitário da UFRN – Natal - RN Caixa Posta 1501, CEP 59072-970

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COMISSÃO ORGANIZADORA COORDENAÇÃO GERAL Prof. Dr. Gilmar Santana Profa. Dra. Berenice Bento Aluna Ana Maria Morais Costa Aluna Renata Mayara Moreira de Lima COMISSÃO DE DIVULGAÇÃO Aluno Gustavo Vilella Whately Anderson C. Santos Aluna Janaina Alexandra Capistrano da Costa Aluno Francisco Augusto Cruz COMISSÃO CIENTÍFICA Prof. Dr. Gilmar Santana Aluno Gustavo Vilella Whately Aluna Janaina Alexandra Capistrano da Costa Aluna Ana Maria Morais Costa COMISSÃO DE ORGANIZAÇÃO E ESTRUTURA Aluna Emanuella Gracy Nunes Sousa Cadó Aluno Fernando Cruz Aluna Renata Mayara Moreira de Lima COMISSÃO DE EDITORAÇÃO DOS ANAIS Prof. Dr. Gilmar Santana Aluna Ana Maria Morais Costa Aluna Janaina Alexandra Capistrano da Costa Allan Phablo de Queiroz Pedro Augusto de Queiroz Ferreira DIAGRAMAÇÃO Anderson C. Santos Pedro Augusto de Queiroz Ferreira Allan Phablo de Queiroz

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SUMÁRIO Apresentação ● 21 1. OCTÁVIO IANNI: UM MESTRE POR EXCELÊNCIA ● 22 Dalcy da Silva Cruz

2. A FORMAÇÃO DO SUJEITO EM ZIGMUNT BAUMAN E EDGAR MORIN ● 37 Helder Cavalcante Câmara Ailton Siqueira de Sousa Fonseca

3. TOBIAS BARRETO: EDUCAÇÃO ● 50

MESTIÇAGEM,

SOCIOLOGIA

E

Ivan Fontes Barbosa

4. NA TRILHA INTERIOR, DUAS FLORES AZUIS EM BUSCA DO QUE É SUFICIENTE ● 72 Lívia Maria de Oliveira Karlla Christine de Araújo Souza

5. MEDIANERAS: UMA ANÁLISE ESPACIAL DO(S) EU(S) ● 83 Érica Verícia Canuto de Oliveira Veras Fagner Torres de França

6. FORMAÇÃO HUMANA E ENEAGRAMA ● 100 Adeilton Dias Alves Profa. Geovânia da Silva Toscano

7. CONVERSAÇÕES SOBRE A FELICIDADE NO UNIVERSO SIMBÓLICO DO CONSUMO ● 119 Jéssica Ferrer Eduardo de Amorim

8. “BIUTIFUL”: REVISITANDO A TEORIA CRÍTICA A PARTIR DE UM CASO FICCIONAL ● 135 Fábio Gomes de França

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9. A BLOGOSFERA COMO ESPAÇO DE DESMISTIFICAÇÃO DO BDSM E CONFIGURAÇÃO DE IDENTIDADES VIRTUAIS ● 155 Marcelle Jacinto da Silva Lyanne Matias Teixeira

10. “MEU BRASIL BRASILEIRO”: RESGATANDO NOSSAS ORIGENS ● 171 Amanda Kelly Alves Sarmento Abrantes Gilmara Juvina Diniz Silva Jéfesson Medeiros de Melo Lidiane Alves da Cunha

11. O DIREITO A SAÚDE: UMA ALTERNATIVA DE COMBATE AO RACISMO ● 182 Hayane Mateus Silva Gomes Otília Aparecida Silva Souza

12. PROCESSOS EDUCATIVOS NAS ATUAIS POLÍTICAS PÚBLICAS VOLTADAS PARA A JUVENTUDE ● 194 Rosicleide Araújo de Melo

13. JOVENS ENTRE 15 E 17 ANOS NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: REFLEXÕES SOBRE RECONHECIMENTO E DESIGUALDADES NO CAMPO ESCOLAR ● 207 Maria do Carmo Walbruni Lima Rosemary de Oliveira Almeida

14. MEMÓRIAS JUVENIS E ESPAÇOS SOCIAIS: PERCEPÇÕES E APROPRIAÇÕES ● 222 Ricardo Cruz Macedo Domingos Sávio de Almeida Cordeiro

15. MÚSICA E LAZER: PRÁTICAS JUVENIS ACERCA DO GÊNERO MUSICAL DO FORRÓ ELETRÔNICO NA CIDADE DE BARBALHA/CE. ● 234 Cícera Tayane Soares da Silva Ana Ruth de Melo Roberto Marques

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16. ESPAÇO ALTERNATIVO: UM ESTUDO SOBRE A JUVENTUDE QUE FREQUENTA O ESPAÇO DA REFESA NA CIDADE DO CRATO-CE ● 249 Jakeline Pereira Alves Maria Paula Jacinto Cordeiro

17. TUDO BEM, TÁ TUDO AZUL ● 262 Cláudio Gomes da Silva Júnior Crísthenes Fabiane de Araújo Silva

18. SURFISTAS DO TITANZINHO: ALGUMAS APROXIMAÇÕES ● 273 Hélida Lopes da Silva

19. ENTRE PALAVRAS, IMAGENS E SENSAÇÕES: REPRESENTAÇÕES MIDIÁTICAS DA VIOLÊNCIA URBANA EM NATAL-RN ● 285 Francisco Augusto Cruz de Araújo

20. “A VIOLÊNCIA NAS IMAGENS”: O IMPACTO DAS IMAGENS E TEXTOS DE VIOLÊNCIA PUBLICADA EM JORNAIS DA CIDADE DE BELÉM ● 304 Jorge Oscar Santos Miranda

21. CIDADE E JARDINAGEM SOCIAL: MEDO, ESTIGMA E SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL NA CIDADE DO BELO JARDIM, NO AGRESTE PERNAMBUCANO ● 322 José Adilson Filho

23. O BRASIL SERTANEJO DE CAPISTRANO DE ABREU E O DEBATE COM A HISTORIOGRAFIA CEARENSE DO FINAL DO SÉCULO XIX EM SUAS CORRESPONDÊNCIAS ● 336 Vinicius Limaverde Forte

24. UFPB: TRAJETÓRIA HISTÓRICA E DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO NO PERÍODO DE 1990-2010 ● 353 Profª. Drª. Edineide Jezine Camilla Regina Pinto Barbosa da Trindade Janaína Gomes Fernandes

25. URBANIDADE E MEMÓRIA DOS MORADORES DO BAIRRO DE PONTA GROSSA, MACEIÓ – ALAGOAS ● 367 José de Oliveira Junior 7

26. ANDAR DE ÔNIBUS EM FORTALEZA: SOCIABILIDADES EM TRÂNSITO ● 384 Ryanne F. M. Bahia Dra. Linda Gondim

27. ENSAIO SOBRE A CASA ● 404 Ozaias Antonio Batista

28. AVENIDA BERNARDO VIEIRA: SOCIOESPACIAL DOS SERVIÇOS TRANSFORMADA DA CIDADE ● 419

A ORGANIZAÇÃO EM UMA ÁREA

Gerson Gomes do Nascimento

29. CIDADES MÉDIAS E TRANFORMAÇÕES INTRA-URBANAS NA REGIÃO DO CARIRI CEARENSE: O CASO DOS MUNICÍPIOS DE CRATO, JUAZEIRO DO NORTE E BARBALHA ● 432 Aline Alves de Oliveira Maria Nivânia Feitosa Barbosa Rosana Marques Feitosa Francisco do O’ de Lima Júnior

30. AS “CIDADES MÉDIAS” NO CONTEXTO ATUAL: REFLEXÕES TEÓRICO-CONCEITUAIS ● 453 Joseney Rodrigues de Queiroz Dantas Maria do Livramento Miranda Clementino Rosana Silva de França

31. ASPECTOS RELACIONADOS AO DESENVOLVIMENTO URBANO E AS ENCHENTES NA CIDADE DO CRATO-CE ● 467 Rebecca Isabelle Herculano Silva Suely Salgueiro Chacon Karla Roxana Lobo Jaqueline dos Santos Gonçalves

32. RENOVAÇÃO URBANA E CRIATIVIDADE NA CIDADE TRADICIONAL: O CASO DE VILA NOVA DE GAIA (PORTUGAL) ● 483 Fernando Manuel Rocha da Cruz

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33. IMPACTOS E LEGADOS DA COPA DO MUNDO DE 2014 EM NATAL/RN: O PROCESSO DAS DESAPROPRIAÇÕES NO BAIRRO DAS QUINTAS ● 501 Fábio Fonseca Figueiredo Marcelo Augusto Pontes de Araújo Richardson Camara

34. DENÚNCIAS AMBIENTAIS REGISTRADAS NA CIDADE DE MOSSORÓ/RN NO PERÍODO DE 2011 A 2012 ● 518 Francisca Mariana Rufino de Oliveira Ligia Valleria de Oliveira Silva Bergson Henrique Nunes Bezerra Geovânia da Silva Toscano

35. A NORMATIZAÇÃO DO ESPAÇO/TERRITÓRIO COMO FERRAMENTA DE CONTROLE AMBIENTAL – UM ESTUDO DE CASO DOS BUFFETS DE MOSSORÓ/RN ● 536 Ligia Valleria de Oliveira Silva Geovânia da Silva Toscano

36. A AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS COMO INSTRUMENTO DE PRESSÃO SOCIAL: O CASO DO PROGRAMA NACIONAL TRABALHO E EMPREENDEDORISMO DA MULHER EM PERNAMBUCO ● 549 Géssika Cecília Carvalho

37. POLÍTICAS PÚBLICAS: CONCEPÇÃO, CLASSIFICAÇÃO E REFLEXÕES ● 564 Ana Lúcia Pascoal Diniz Dante Henrique Moura

38. DISCUTINDO AS CONCEPÇÕES DE ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS ● 585 Melissa Rafaela Costa Pimenta Gersonita Paulino de Sousa Cruz Sandra Michelle Bessa de Andrade Fernandes Lincoln de Souza Moraes

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39. OS SIGNIFICADOS DA PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL EM CONSELHOS GESTORES DE POLÍTICAS PÚBLICAS - CASO DO CEDEF-CEARÁ ● 596 Geovani Jacó de Freitas Abelardo Coelho da Silva

40. NEGOCIAÇÃO COLETIVA: UMA POLÍTICA DE DEMOCRATIZAÇÃO DO TRABALHO E DE QUALIDADE DOS SERVIÇOS EM SAÚDE ● 613 Andriério Lopes Pereira Sobrinho Nathalia Hanany Silva de Oliveira Janete Lima de Castro

41. O PODER CONSTRUTIVO DA AUTOIMAGEM: O DISCURSO POLÍTICO DE CÁSSIO CUNHA LIMA NO PLEITO ELEITORAL DE 2010 ● 624 Rodolpho Raphael de Oliveira Santos

42. UM OLHAR MAUSSIANO ACERCA DA POLÍTICA LOCAL EM BARREIRA-CEARÁ ● 641 Monalisa Lima Torres Hermano Machado Ferreira Lima

43. PFL NO RIO GRANDE DO NORTE: CONSIDERAÇÕES SOBRE ASPECTOS POLÍTICOS E ELEITORAIS. ● 662 Andrea Maria Linhares da Costa

44. RITUAL POLÍTICO NO INTERIOR DA PARAÍBA: O DISCURSO DO AFETO COMO (DES) CONSTRUTOR DA IMAGEM PÚBLICA ● 680 Cosma Ribeiro de Almeida

45. ELEIÇÕES, PARTIDOS E COLIGAÇÕES: DESÁFIOS METODOLOGICOS E TEORICOS NA INVESTIGAÇÃO SOCIAL ● 693 Joice Mara Cesar Bizerro Cleber de Deus Pereira da Silva (orientador)

46. LEI DA FICHA LIMPA VERSUS VIDA PREGRESSA DO CANDIDATO ● 711 Larissa Nunes Paiva Dijosete Veríssimo da Costa Júnior 10

47. UMA IMAGEM VALE MAIS DO QUE MIL COLIGAÇÕES: A REPERCUSSÃO DA FOTOGRAFIA DE LULA, HADDAD E MALUF NO COLUNISMO POLÍTICO DA IMPRENSA ESCRITA ● 731 Emanuel Freitas da Silva

48. UM OLHAR SOBRE O DISPOSITIVO: A MÍDIA IMPRESSA ● 748 Bruno César Brito Viana Maria Érica de Oliveira Lima (Orientadora)

49. O ETHOS MIDIATIZADO DA PRÁTICA JORNALISTA ASSESSOR DE IMPRENSA ● 765

SOCIAL

DO

Juliana Bulhões Alberto Dantas

50. POLÍTICAS PÚBLICAS E AGRICULTURA FAMILIAR: A EXPERIÊNCIA DO PROGRAMA DE AQUISIÇÃO DE ALIMENTOS EM MUNICÍPIOS PARANAENSES ● 785 André A. Michelato Ghizelini

51. PRONAF B, USO ALTERNATIVO E A REVELAÇÃO DE PARTICULARIDADES DA AGRICULTURA FAMILIAR ● 802 Márcio Monteiro Maia

52. AGRICULTURA FAMILIAR NA AMAZÔNIA: ATORES SOCIAIS E PRÁTICAS DE CONSERVAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS ATRAVÉS DA PRODUÇÃO DE ALIMENTOS E CONHECIMENTOS AGROECOLÓGICOS NO NORDESTE PARAENSE ● 814 Amanda Quaresma Kelly Lopes Lucélia Leite

53. OS ELEMENTOS DA VULNERABILIDADE DA AGRICULTURA FAMILIAR DO SERIDÓ AO CLIMA SEMIÁRIDO ● 822 Anna Jéssica Pinto de Andrade Neusiene Medeiros da Silva Cimone Rozendo de Souza

54. INOVAÇÕES SÓCIO PRODUTIVAS NA AGRICULTURA FAMILIAR DE MACAÍBA: CONTINUIDADES E DESAFIOS ● 841 Luna Dalla Rosa Carvalho 11

Profa. Dra. Cimone Rozendo (Orientadora) Raquel Francisco dos Santos

55. ANÁLISE DO SISTEMA DE PRODUÇÃO AGROECOLÓGICA INTEGRADA E SUSTENTÁVEL – PAIS NA REGIÃO METROPOLITANA DE NATAL ● 864 Lívia Maria de Oliveira Karlla Christine de Araújo Souza

56. DESAFIOS E NOVIDADES DA FEIRA AGROECOLÓGICA DE MOSSORÓ-RN ● 875 Joaquim Pinheiro de Araújo Danielly Cristina Farias Bezerra Sabrina Aiêcha de Oliveira Silva Zildenice Matias Guedes Maia

57. CAMPONESES E AGRICULTORES FAMILIARES: CATEGORIAS EM DISCUSSÃO ● 887 Vilson Cesar Schenato Roseilda Maria da Silva

58. EDUCAÇÃO DO CAMPO: UM ESTUDO SOBRE O DESENVLVIMENTO DO PROGRAMA ESCOLA ATIVA EM COMUNIDADES DE MARCELINO VIEIRA-RN ● 910 Mary Carneiro de Paiva Oliveira Ivonaldo Neres Leite

59. ECONOMIA CRIATIVA: URBANO BRASILEIRO ● 928

POSSIBILIDADES

NO

ESPAÇO

Marcelo Augusto Pontes de Araújo

60. PRETO E POBRE, DUPLAMENTE MARGINAL: ETNOGRAFANDO HOMENS NO CONTEXTO DA PEGAÇÃO EM JOÃO PESSOA ● 937 Thiago de Lima Oliveira Silvana de Souza Nascimento

61. DESEJOS POR “MACHOS”, DESDE QUE SEJAM “BRANCOS”PROSTITUIÇÃO, MASCULINIDADE E “RAÇA” NAS SAUNAS DE MICHÊ EM SÃO PAULO ● 958 Élcio Nogueira dos Santos

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62. O CASO GENILDO FRANÇA: HONRA E MASCULINIDADES NA CONSTRUÇÃO MIDÍATICA ● 970 Mikarla Gomes da Silva

63. BULLYING HOMOFÓBICO: UM ESTUDO ANALÍTICO SOBRE GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADE NESTE CONTEXTO DE VIOLÊNCIA ● 983 Jairo José dos Santos Junior

64. AVALIAÇÃO DA ATUAÇÃO DO JUDICIÁRIO NO ESCOPO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE GÊNERO ● 1000 Anna Christina Freire Barbosa Lore Fortes

65. NEM SÓ DE VERMELHO SE PINTA O AMOR: REFLEXÕES SOBRE UNIÃO HOMOAFETIVA ● 1022 Viviana Bezerra de Mesquita Francisco Paulo da Silva

66. ADOÇÃO HOMOAFETIVA: ROMPENDO BARREIRAS EM BUSCA DE DIREITOS ● 1036 Marta Simone Vital Barreto

67. PERCEPÇÕES E PRÁTICAS DE EDUCADORES/AS SERRANOS/AS SOBRE RELAÇÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE ● 1053 Izabel Cristina de Souza Nunes Amanda Patrícia Dias Sheila Mikaele Valério da Costa Maria Euzimar Berenice Rego Silva

68. ANÁLISE HISTÓRICA PATOLOGIZAÇÃO ● 1071

DA

TRANSEXUALIDADE

E

SUA

Cristina Diógenes S. Bezerra

69. GÊNERO E FAMÍLIA: INVESTIGAÇÃO SOBRE RELAÇÕES DE PODER INTRAFAMILIARES COM PESSOAS TRANS ● 1082 Marcos Mariano Viana da Silva

70. O AMBIENTE VIRTUAL NA CONSTRUÇÃO E COMPARTILHAMENTO DA MASCULINIDADE TRANSEXUAL ● 1110 Luarna Relva Felix Cortez 13

Mónica Franch

71. OS DESAFIOS METODOLÓGICOS E OS DIÁLOGOS SOBRE QUESTÕES RACIAIS NO UNIVERSO INFANTIL ● 1114 Teresa Cristina Furtado Matos Nady Jakelle Queiroz Dias Marinalda Pereira de Araújo Susi Anny Veloso Resende

72. AVALIAÇÃO DO PROGRAMA SAÚDE DA FAMÍLIA EM MOSSORÓ: UMA ANÁLISE DA EFETIVIDADE ● 1055 Paula Fernanda Brandão Batista dos Santos Talita de Figueiredo Lincoln Moraes De Souza

73. “PORQUE O NOSSO OBJETIVO É A PADRONIZAÇÃO...”: RECONSTITUIÇÃO DO PROCESSO DE ESCOLHA DO LIVRO DE SOCIOLOGIA NA PARAÍBA ● 1148 Ana Olívia Costa Andrade Vinícius Gabriel da Silva Simone Brito Magalhães Ivan B. Fontes

74. A REPRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA SOCIOLOGIA NA VISÃO DOS DISCENTES DA ESCOLA ESTADUAL DE ENSINO MÉDIO ESCRITOR JOSÉ LINS DO RÊGO, JOÃO PESSOA - PARAÍBA ● 1162 Emannuella Santana Vieira Rigel Marinho Pimenta Simone Magalhães Brito

75. SABER POPULAR E ESCOLARIZAÇÃO: UMA JUNÇÃO NECESSÁRIA NO SEMIÁRIDO PARAIBANO ● 1179 Izabel Cristina Martins Edineide Jezine

76. EDUCAÇÃO, CULTURA E COMUNIDADE: REFLEXÕES SOBRE O CONEXÃO FELIPE CAMARÃO ● 1195 Lúcia de Fátima Vieira da Costa

77. CURRÍCULOS ESCOLARES E DIVERSIDADE ÉTNICOCULTURAL: UMA ANÁLISE SOBRE O EMPREGO DA LEI 11.645/08 NOS COLÉGIOS DE BELÉM-PA ● 1208 Guilherme Bemerguy Chêne Neto 14

Lorena Alves Mendes Manoel Cláudio Mendes Gonçalves da Rocha

78. CONTRIBUIÇÕES DA MEMÓRIA NA (RE)PRODUÇÃO DE SABERES E FAZERES INDÍGENAS PARA UMA EDUCAÇÃO INTERCULTURAL ● 1223 Lívia Maria de Oliveira Karlla Christine de Araújo Souza

79. LIMITES E POSSIBILIDADES DO PROGRAMA NACIONAL DE ALIMENTAÇÃO ESCOLAR ENQUANTO ESTRATÉGIA DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL NO MUNICÍPIO DE MACAÍBA/RN. ● 1240 Emanuella Gracy N. C. Sousa Cimone Rozendo de Souza

80. O PROINFO E A GESTÃO PARNAMIRIM/RN (2008-2012) ● 1252

NO

MUNICÍPIO

DE

Lincoln Moraes de Souza (Orientador) Maria das Vitórias Ferreira da Rocha

81. PROGRAMA MAIS EDUCAÇÃO: UMA EXPERIÊNCIA DE EDUCAÇÃO INTEGRAL NA REDE MUNICIPAL DE ENSINO DO NATAL/RN/BRASIL ● 1271 Márcia Soraya Praxedes da Silva Antônio Lisboa Leitão de Souza

82. A ESCOLA DIANTE DO PARADIGMA SOCIOTECNOLÓGICO ● 1285 Andreia Regina Moura Mendes Luciana de Oliveira Chianca (Orientadora)

83. CIÊNCIA E TECNOLOGIA NA POLÍTICA EDUCACIONAL DO BRASIL NO SÉCULO XXI: DESAFIOS E POSSIBILIDADES ● 1301 Lenina Lopes Soares Silva Márcio Adriano de Azevedo

84. AÇÕES DO PIBID DO IFRN CAMPUS SANTA CRUZ NA REDE PÚBLICA DE ENSINO COM JOGOS DO LABORATÓRIO DE MATEMÁTICA ● 1318 Silvia Regina Pereira de Mendonça

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85. MESTRADO PROFISSIONAL EM MATEMÁTICA: UMA POLÍTICA SOCIAL ABRANGENTE ● 1330 Rosângela Araújo da Silva

86. AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO CONCEPÇÕES EM CONFLITO ● 1343

SUPERIOR

BRASILEIRA:

Pedro Isaac Ximenes Lopes

87. POLÍTICA NACIONAL DE FORMAÇÃO DOCENTE E INOVAÇÃO CURRICULAR NO ENSINO DE FÍSICA: PROJETO INTEGRADOR NA LICENCIATURA DO IFRN CAMPUS SANTA CRUZ ● 1366 Maria Emília Barreto Bezerra Nelson Cosme de Almeida

88. AS OBRAS DE ARTE PÚBLICAS COMO ESPAÇOS DE IDENTIDADE EM MOSSORÓ – RN. ● 1378 Thalles Chaves Costa Rosalvo Nobre Carneiro

89. MUTIRÃO DE GRAFITE COMO FORMA DE AÇÃO SOCIAL E POÉTICA DE JOVENS GRAFITEIROS NA CIDADE DE BELÉM-PARÁ ● 1395 Leila Cristina Leite Ferreira

90. PARA PENSAR EM CINEMA ENQUANTO CAMPO DE PESQUISA ● 1411 Maíra Leal

91. ÉTICA, ESTÉTICA E O CINEMA DA CRUELDADE ● 1423 Fagner Torres de França

92. A REPRESENTAÇÃO DO OBJETO VENTILADOR NO FILME “O PALHAÇO” ● 1439 Vanessa Paula Trigueiro Moura

93. CORPOS DIVERGENTES: RESSIGNIFICAÇÃO DO CORPO FEMININO NO FILME “CRIME DELICADO” À LUZ DO ENSAIO MULHERES, NEGROS E OUTROS MONSTROS ● 1453 Raquel P. do Amaral Camargo Eduardo R. Rabenhorst

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94. AS CORES CODIFICADAS NAS VESTIMENTAS DA PERSONAGEM CAPITU AO LONGO DA MINISSÉRIE DA GLOBO ● 1470 Rafaela Bernardazzi Torrens Leite

95. O TRABALHO, O HOMEM E A MÚSICA: UM DIÁLOGO. ● 1488 Lorrainy da Cruz Solano Ailton Siqueira de Sousa Fonseca Raimunda Medeiros Germano

96. RAVE EXCITADA – COMUNICAÇÃO E DESPESA NAS FESTAS DE MÚSICA ELETRÔNICA ● 1505 Thiago Tavares das Neves

97. A ASCENÇÃO E A DECADÊNCIA DA IMAGINAÇÃO POÉTICA NO FORRÓ ● 1519 Pedro Augusto de Queiroz Ferreira Allan Phablo de Queiroz Karlla Christine Araújo Souza

98. E DE REPENTE, DE UM CENÁRIO FAZ-SE POESIA: UMA ANALOGIA SOBRE A PRODUÇÃO POÉTICA DO CORDEL E DO REPENTE EM MOSSORÓ/RN ● 1534 Samuel Moreira Chaves Ailton Siqueira de Sousa Fonseca Thiago Romero Leite Barra

99. O HEROI, O BANDIDO E A POESIA: AS MÚLTIPLAS FACES DE LAMPIÃO ● 1548 Karlla Christine Araújo Souza Isadora Ingrid Augusto da Cruz Ridna Maria Tavares

100. ESPAÇO E FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO NOS PERSONAGENS DO ROMANCE ESSA TERRA DE ANTÔNIO TORRES ● 1563 Giza Karolyne Santiago Rocha Carolina Bentes de Oliveira Rosemary de Oliveira Almeida (Orientadora)

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101. A (DES) CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE RELIGIOSA: UM ESTUDO SOBRE A RELIGIOSIDADE DOS SEM RELIGIÃO ● 1574 Ronaldo Robson Luiz

102. UMA DESTERRITORIALIZAÇÃO DO CRISTIANISMO ● 1588 Joao Victor Costa Toores

103. EVANGÉLICOS: PENSANDO SOBRE O PENTECOSTALISMO A LUZ DA TEORIA WEBERIANA SOBRE RELIGIÃO ● 1600 Priscila Ribeiro Jeronimo Diniz

104. TURISTIFICAÇÃO DA ROMARIA? UMA ANÁLISE SOBRE DISPUTAS E APROPRIAÇÕES NO CONTEXTO DE ROMARIAS EM JUAZEIRO DO NORTE - CE ● 1613 Rosana Dayara Correia de Alcântara Maria Paula Jacinto Cordeiro

105. MEMÓRIAS SOCIAIS SOBRE O PADRE CÍCERO ● 1627 Domingos Sávio de Almeida Cordeiro Itamerson Macell de Oliveira Costa da Silva

106. INFLUÊNCIAS INTERGERACIONAIS NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS DAS ROMARIAS ● 1641 Patricia Sutel da Costa Maria Paula Jacinto Cordeiro

107. POLÍTICA E RELIGIÃO AYAHUASQUEIRA ● 1653 Janaína Alexandra Capistrano da Costa

108. POSSESSÃO, COOPERAÇÃO E PRÁTICAS EMANCIPATÓRIAS: UM ESTUDO SOBRE PLURAIDADE RELIGIOSA E TRASFORMAÇÃO DA EXPERIÊNCIA ENTRE MULHERES SOTEROPOLITANAS ● 1679 Paula da Luz Galrão Miriam Rabelo

109. ENTRO NA SUA CASA, ENTRO NO SEU TRABALHO E ENTRO NA SUA VIDA: UM ESTUDO SOBRE AS ESTRATÉGIAS DE LOCALIZAÇÃO DAS IGREJAS NEOPENTECOSTAIS NA TERRA DO PADRE CÍCERO ● 1694 Itamara Freires de Meneses Renata Marinho Paz

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110. “QUANDO O SAGRADO E O PROFANO COEXISTEM – A PRESENÇA DO ÁLCOOL NOS RITUAIS DE UMBANDA”. ● 1706 Melina Sousa Gomes Jânia Perla Diógenes de Aquino (orientadora) Daniel Italo Alencar Barros

111. MULHERES PASTOREANDO IGREJAS: APONTAMENTOS DE PESQUISA SOBRE OS SENTIDOS DA ORDENAÇÃO FEMININA DENTRO DO CAMPO RELIGIOSO EVANGÉLICO ● 1725 Eliana Coelho da Silva

. 19

APRESENTAÇÃO O V Ciclo de Estudos em Ciências Sociais (CESO 2012) é um evento promovido anualmente pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte com o objetivo de compartilhar e discutir o conhecimento produzido por professores, pesquisadores e alunos do Mestrado e do Doutorado, do Curso de Graduação em Ciências Sociais (bacharelado e licenciatura) e dos diversos Grupos de Pesquisa do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Nesta edição do ano de 2012, o tema proposto pelo Ciclo foi “Crise de sentido e novos significados nas relações sociais”. Entende-se que abordar os fenômenos sociais sob a perspectiva de uma crise de sentido produtora de novos significados nas relações sociais implica em perceber que a superfície dos fatos que se apoiam em estruturas requer profunda interpretação para que estes sejam realmente conhecidos. Quando o sentido de um símbolo, de uma denominação ou de uma explicação designa fenômenos ou classes de fenômenos distintos do que nomeavam antes, e esse sentido passa a ser partilhado por grupos significativos, instauram-se conflitos de sentido que obrigam a novos arranjos societários. Isso é especialmente importante quando se vive numa sociedade em que a informação, o conhecimento e a comunicação pautam os signos, significados e as ações políticas, sociais e culturais. O período em que ocorreu o evento estava compreendido entre 08 e 10 de outubro de 2012, mesmo período em que ocorreu paralelamente o VI Colóquio Internacional de Ciências Sociais, uma promoção do Departamento de Ciências Sociais da UFRN.

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O que possibilitou uma ampliação da agenda de debates e interlocução de saberes e experiências. O evento ocorreu em Natal/RN, nas dependências do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA), do Campus Central da UFRN. Como evento periódico este constará de Anais que possui o ISSN 19827210. A realização do evento compõe a agenda de atividades do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e a organização tem o efetivo apoio do Grupo de Pesquisa Cultura, Política e Educação, do Departamento de Ciências Sociais e demais professores e alunos da Pós-Graduação e da Graduação em Ciências Sociais da UFRN, e de professores da UERN em formação no PPGCS/UFRN.

A Comissão Organizadora

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OCTÁVIO IANNI: UM MESTRE POR EXCELÊNCIA

Dalcy da Silva Cruz1

Resumo: Apresenta-se o papel de um dos mais importantes sociólogos e os desafios enfrentados por Octávio Ianni na cena intelectual, o qual deixou um acervo sobre as questões e contradições da formação social brasileira. Ele viveu e centralizou seu interesse em estudar o Brasil, mantendo sempre a independência de seu ponto de vista em relação ao mundo, mesmo discordando dos demais companheiros com quem conviveu em sua época. Pelas suas posições críticas, quando do golpe militar, foi uma das vítimas das forças de repressão, sendo aposentado compulsoriamente, juntamente com outros professores da Universidade, em 1969. Tornou-se membro de um grupo de intelectuais que foram cassados nos seus direitos políticos. Ianni não se acomodou e buscou outros espaços para continuar seu trabalho intelectual. Foi pesquisador do CEBRAP, professor da PUC-SP e da UNICAMP, Palavras-chave: Octávio Ianni; sociólogo uspiano; formação social brasileira; ciências sociais; repressão.

OCTÁVIO IANNI: UM MESTRE POR EXCELÊNCIA

Octávio Ianni, nasceu em ITU, aos 13 de outubro de 1926, falecendo em São Paulo, no dia 4 de abril de 2004. Considerado o mestre por excelência, foi um dos sociólogos mais expressivos das Ciências Sociais no Brasil dos últimos decênios. Foi, também, um intelectual amante dos livros (SECATTO e SECATTO, 2004: 11). Porém, habilmente manteve permanente o diálogo com seus pares, embora tenha mantido acesa a chama do entusiasmo pelos jovens a quem dedicou grande parte de sua vida com um objetivo: sua formação permanente, o que o fez às gerações e gerações brasileiras. Como um

1

Graduada em Geografia (UFPB), Sociologia e Política (Fundação José Augusto), Mestra em Sociologia Rural (UFPB), Doutora em Educação (UFRN) e Pós-Doutoramento em Filosofia (Universidade Nova Lisboa). É professora associada da UFRN, integrante do Grupo de Pesquisa: Cultura, Política e Educação e do Grupo de Estudos da Complexidade. [email protected]

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estudioso de grande curiosidade sobre a realidade brasileira, foi visto e respeitado como “um pensador devotado à compreensão das diferenças sociais, das injustiças a elas associadas e dos meios de superá-las” (Informe eletrônico 2012).

Seu desaparecimento deixou

uma lacuna irreparável no conjunto do pensamento intelectual brasileiro. Integrante da geração dos anos 50 dos estudantes da USP, fez graduação em Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia, Ciências Sociais e Letras daquela Universidade, em 1954. Herdeiro, como os demais sociólogos, “de concepções que reconheciam o valor preeminente do conhecimento científico rigorosamente embasado, esses sociólogos afirmavam a natureza diversa entre as lógicas do saber e a da política. O papel afeito ao intelectual era o lugar da reflexão independente ao abrigo das questões mais imediatas, mas totalmente sintonizado com a necessidade de enfrentar os problemas sociais candentes” (ARRUDA, 2004, p. 12). Com isso, soube muito bem e com brilhantismo, honrar seu perfil de mestre no âmbito das Ciências Sociais, assumindo a execução dos princípios da Sociologia então nascente, enquanto ciência, no Brasil da época. Com relevante “participação no processo de construção do campo científico da sociologia, tarefa que ele realizou com a convicção de quem faz da sociologia profissão e vocação (PORTO, 2005, p. 504), Ianni, construiu uma carreira de mestre, tornando-se um verdadeiro scholar criando condições de desenvolvê-la a contento. A “Universidade de São Paulo transformara-se no epicentro da vida cultural paulistana, no espaço de legitimação intelectual, na expressão mais arrematada da nossa modernidade” (ARRUDA, 2004, p. 12). Aluno do também mestre e sociólogo de primeira monta, Florestan Fernandes, logo depois de formado, integrou o corpo docente como assistente da Faculdade, na “cadeira de Sociologia I, da qual 23

Florestan Fernandes era titular”. (Informe eletrônico, de agosto de 2012). Passou então a estudar a realidade brasileira, desde seus aspectos de sua organização política, como Independência, Império e República, até elementos de sua cultura, preconceito racial, expansão do capital na agricultura, até chegar a produzir relevante material sobre a região Norte, dando ênfase a Amazônia. Doutorou-se em 1961 e não parou mais de ampliar seus estudos e continuar a interpretar a formação histórica do Brasil, mantendo-se sempre independente do ponto de vista da sua visão de mundo. “Participou da chamada Escola de Sociologia Paulista, que traçou um panorama novo sobre o preconceito racial no Brasil” (Informe eletrônico, 2012) e também, um dos componentes do Seminário Marx, que marcou época na história intelectual reorientando suas reflexões como os jovens colegas, no engajamento da cultura do seu tempo.

Este grupo foi criado por um conjunto de sociólogos

daquela Universidade, entre eles Fernando Henrique Cardoso, com quem

trabalhou,

juntamente

com

Florestan

Fernandes,

porém

continuando seu percurso de estudioso do Brasil, juntando competência com teoria e prática. Sua importância foi sempre lembrada como “formador de gerações de sociólogos, como analista sensível da realidade brasileira, cuja obra”, tem um aspecto a ser ressaltado: compreender uma grande diversidade de temas, embora, marcada pelas suas posições de independência teórico-metodológicas em relação aos seus pares. Sempre foi e continua sendo “fonte incontornável de consulta para quem pretende aprofundar-se no conhecimento dessa realidade e da sociologia que a ele se dedica” (PORTO, 2005, p. 504). Sua militância profissional e política, sempre foi marcada por um “profundo sentido de profissionalismo e agudo senso crítico”, dedicando-se inteiramente “ao ofício de sociólogo” e como “agente ativo de institucionalização e consolidação da sociologia no/do Brasil” (PORTO, 2005, p. 506). 24

A relevância de sua obra “pela diversidade de temas tratados”, se constitui em uma fonte inesgotável de consulta para todo intelectual ou não, que queira conhecer com mais profundidade, seu país. O Professor Octávio Ianni, teve a ousadia de projetar a sociologia produzida no Brasil, “legitimando e dando visibilidade a esse campo do saber, não apenas dentro como também fora do país” (PORTO, 2005, p. 506).

Atuou em “distintas instituições de ensino e pesquisa” onde

exerceu a atividade docente, promovendo, além fronteiras, “o reconhecimento internacional da sociologia feita no Brasil” (PORTO, 2005, p. 505). Usou de sua liberdade de pensamento para apresentar suas críticas com espírito combativo o que o manteve sempre distante do poder e da mídia que nunca o seduziram. Com isso, teve possibilidade de dialogar “com a sociologia clássica e contemporânea, “com a familiaridade e a criatividade dos que sabem traduzir esse diálogo em produção de novos conhecimentos” (PORTO, 2005, p. 506). Portanto, professor Ianni, foi um grande inovador, conjuntamente com seu mestre Florestan Fernandes, de uma sociologia que, embora com apoio nos clássicos, é caracterizada por sua aplicação a uma realidade muito específica que é o Brasil de contrastes e desigualdades cujos desafios devem ser enfrentados com sua aplicação inteligente uma vez que se trata de uma área de estudos já realizado com uma “reflexão crítica sobre as relações entre a problemática na produção sociológica e os movimentos

as

sociedade”

que

se

tornou

importante

para

o

conhecimento dos mesmos (IANNI, 1975, p. 11). Participou como membro ativo de bancas e palestras, bem como de movimentos, então criados por um grupo de jovens sociólogos, quase sempre sob a orientação do mais ativo e competente sociólogo da época, o professor Florestan Fernandes. Trabalhou com Fernando Henrique Cardoso de quem foi professor, fez palestras, participou de congressos no Brasil e no exterior e teve uma produção de grande 25

envergadura, voltada para o desvendamento dos enigmas da sociedade brasileira, das suas contradições e continuidades, processos inerentes a qualquer formação histórica. Octávio Ianni, pode-se dizer, foi um grande pensador no rol dos interpretadores do Brasil que após os anos 30, no auge do ensaísmo, formaram a considerada tríade de explicadores do Brasil como Caio Prado Júnior, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda que complementaram os estudos realizados pr pensadores que já vinham do começo do século XX como Euclides de Cunha, Manuel Bomfim e Alberto Torres, e também os que pensaram o Brasil no período posterior, dentre os quais podem ser lembrados: Oliveira Vianna, Paulo Prado, os quais estavam preocupados como Ianni, a entender uma realidade que vinha se apresentando cheia de contrastes e desigualdades, antagonismos e complementaridades. Essa ousadia e senso de responsabilidade sofreu, um grande abalo por ocasião das grandes tensões provocadas pelo Golpe Militar de

1964,

quando

a

opressão

impôs

limites

a

produção

do

conhecimento e a continuação do processo de modernidade brasileira. Naquela ocasião, as aposentadorias compulsórias sofridas por vários professores da USP o atingiram. Membro do grupo de intelectuais submetido à cassação dos seus direitos políticos, Octávio Ianni buscou novos espaços para realizar a sua vocação de intelectual independente. Exemplos inequívocos dos seus atributos de intelectual que não se descurava da responsabilidade de seu ofício de mestre e pesquisador estão na sua própria trajetória como pesquisador do CEBRAP, professor da PUC de São Paulo e membro do corpo docente da UNICAMP, onde lecionou até os seus últimos dias. (ARRUDA, 2004, p. 13).

Nesse período de dificuldades políticas, Ianni, foi professor visitante em várias universidades do exterior, como norte-americanas, latino-americanas e européias, além de conferencistas em tantos outros 26

países estrangeiros. Mesmo tendo voltado a trabalhar no Brasil, não parou de visitar outros países onde fosse possível exercer o papel de professor e sociólogo. Era o seu ofício. Dessa bela trajetória, o Professor Ianni, deixa um legado tão rico e profundo, quanto o de Florestan Fernandes, seu mestre maior e o de Caio Prado Junior, pensador que teve sua produção fora da Academia em obras importantes como “Formação do Brasil Contemporâneo”, “Formação Econômica do Brasil” as quais serviram de coroamento às interpretações realizadas desde o começo do século XX.

Os

interpretadores do Brasil tiveram seus estudos realizados desde o início do século referido, seguindo na esteira de Euclides da Cunha com “Os Sertões” livro até hoje considerado indispensável para quem deseja conhecer o Brasil com mais profundidade sem a interferência de pensamentos vindo de além mar. Octávio Ianni, talvez tenha sido um dos pioneiros entre os estudos acadêmicos, a usar o método dialético como estratégia de análise no desvendamento

dos

enigmas

da

formação

histórica

brasileira,

inaugurando assim, uma interpretação cuja originalidade, conforme o próprio Ianni dizia, caberia a Caio Prado Júnior, que nos anos 30 inovava a forma de ler o Brasil pelas lentes do Materialismo HistóricoDialético.

A

partir

desse

método,

Ianni

procurou

estudar

as

contradições, as continuidades e as descontinuidades da formação histórico-social brasileira, sobretudo quando da transição e do ingresso do Brasil na modernidade capitalista. Além disso, Ianni, Em uma etapa da vida na qual alguns intelectuais passam a viver do que fizeram e a usufruir, legitimamente diga-se de passagem, da obra já construída(...)munido de coragem, espírito de luta, disposição para o trabalho de recomeçar e, instigado pelo que, no campo das ciências sociais, ficou conhecido como ‘a crise dos paradigmas’, mergulhou em novas leituras em novas pesquisas, abrindo espaço a outras vertentes de sua reflexão. (PORTO, 2005, p. 506))

27

Com um conhecimento engajado do ponto de vista político – ideológico, o conjunto de sua obra reflete esse engajamento, pois Octávio Ianni, faz uma abordagem sobre a formação brasileira, de modo muito abrangente, o que me leva a considerá-lo um pensador de características complexas no sentido da construção de um pensamento que obstinadamente, se recusa a aceitar uma visão de mundo fragmentária e disjunta, se propondo a rejuntar saberes e produzir um conhecimento mais totalizante. As análises de Ianni sempre trazem com propriedade, uma compreensão paradoxal, porém complementária das questões que dizem respeito á realidade concreta. Portanto, suas interpretações, são trabalhos que só trouxeram complementaridades às interpretações já realizadas por pensadores do começo do século XX e dos mais contemporâneos como Florestan Fernandes, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Celso Furtado, entre tantos outros. Suas análises do passado e do presente, são repletas de projeções para o futuro nas quais emergem um país rico em contradições, mas também, pleno em possibilidades pelas suas diversidades e aspectos multiculturais. Com uma produção que ultrapassa mais de quatro dezenas de livros, muitos dos quais traduzidos para o inglês, o espanhol, o francês, o japonês, além das centenas de artigos publicados em revistas nacionais e internacionais, fazem da sua obra, um rico e importante acervo que merece ser conhecido de todo brasileiro

estudioso

e

que

deseja

contribuir

para

um

maior

conhecimento do Brasil. Nos seus estudos, aparece de forma constante, o radical e coerente analista cujas concepções de ciência e do papel de cientista, estão prenhes de uma busca constante de um conhecimento responsável amparado na responsabilidade social em relação às transformações pretendidas e eticamente direcionadas á população brasileira... 28

Ao aliar coragem no enfrentamento dos desafios teóricos impostos pela realidade (desafios que nem todos aceitam) à personalidade radical, tal como diria acima, Octávio Ianni cunhou também um outro traço marcante de sua personalidade intelectual: assumiu em sua prática sociológica a característica weberiana da sociologia como a ‘ciência da eterna juventude’. Ao fazê-lo incorporou no praticante a qualidade que Weber reservava à ciência. (PORTO, 205, p. 505506)

Essa característica é, pois, perfeitamente reconhecível

no

Professor que aos 77 anos continuava a trabalhar na UNICAMP, mesmo em condições precárias de saúde, já bastante abalada. Encontrei Ianni, em 2000 em um dos Congressos da SBS, em Fortaleza, magro e abatido, mas ativamente participando das discussões brilhantes e entusiásticas como sempre o fazia. Conversamos muito nos intervalos e ele lamentava a compulsória haver o expulsado da Academia. Esse é o Ianni que o Brasil conheceu e continua a referenciá-lo. No seu acervo de interpretações, Ianni sempre manteve uma linha de unidade, apesar de temas e tempos diversos abordados, por procurar manter em suas análises, uma compreensão que tem como pressupostos a totalidade na construção do seu pensamento. Esse procedimento, vem atestar como as idéias como forças sociais contribuem para definir caminhos que, rejuntadas a outras forças como fatos

históricos

Independência,

e

relações

República,

sociais

e

ditaduras,

políticos transições

como

Império,

democráticas,

revoluções, delineiam os caminhos que foram trilhados pela sociedade brasileira nesses mais de quinhentos anos de construção, apreendidos e analisados pelo professor sociólogo. Essa estratégia demonstra como o pensamento social brasileiro tem sido marcado pela originalidade na sua formação a partir da sua origem, com uma organização capitalista gerada numa base produtiva 29

complexa,

dependente,

diversificada

porém

apresentando

descontinuidades e continuidades como lembra o também sociólogo uspiano, Francisco de Oliveira desde os anos 50 do século que passou. Essa marca das interpretações do Brasil sempre enfrentaram e continuam enfrentando os desafios por aqueles que procuraram e procuram entender os enigmas do processo de formação histórico brasileiro. As primeiras obras de Octávio Ianni, se constituem em uma mostra desses paradoxos e complementaridades da realidade. Uma delas “As metamorfoses

da

escravidão”

(1962),

marca

com

lucidez

e

competência uma análise do período colonial brasileiro. Outro estudo que faz uma análise rica em interpretação é “O colapso do populismo no Brasil” (1965) a qual interpreta questões políticas do país. Em o “Estado e planejamento econômico no Brasil” (1986) – traduzido para o espanhol, Ianni, mostra os fundamentos de como a constituição do Brasil moderno vem dos anos 30; e são lembrados ainda “A ditadura do grande capital” (1981), que tomou conta de todas as regiões do país; em “A luta pela Terra: história social da terra e a luta pela terra numa área da Amazônia (1978), o autor não esquece do papel que o capital desempenhou em regiões como a mais distante dos centros urbanos: a Região Norte. Em a “Ditadura e Agricultura: o desenvolvimento do capitalismo na Amazônia: 1964-1978” (1979) é outro trabalho que reforça a questão e a “Colonização e contra-reforma agrária na Amazônia” (1979), são exemplos de sua preocupação com o desenvolvimento e expansão capitalista no país. Esses trabalhos voltados para a Região Norte, demonstram a preocupação de Ianni em abranger, com suas análises, todo o território brasileiro não se restringindo somente às áreas urbanas. Como abordagens voltadas para outros aspectos da sociedade, devem ser lembrados “Políticas e Revolução Social no Brasil” (1965); “O ciclo da revolução Burguesa” (1985); “Imperialismo e cultura” (1976): “O 30

ABC da classe operária” (1980)); “Sociologia e Sociedade no Brasil” (1975); “Dialética & capitalismo: ensaio sobre o pensamento de Marx” ((1988), “As origens agrárias do Estado Brasileiro (1984). Entre muitos outros. Como se pode perceber, são livros que analisam as contradições e paradoxos da formação histórica brasileira, sempre apoiados no aporte teórico-metodológico por ele eleito desde a sua formação, do qual nunca se afastou, embora, tenha variado de temas conforme a diversidade dos enigmas que foram surgindo na trilha histórica, sempre mantendo uma discussão transdisciplinar e permanente para dialogar com outros saberes. A partir dos anos 80-90 do século XX, Ianni ampliou seu interesse de pesquisa, se dedicando ao processo de globalização do capitalismo então em evidente expansão no planeta, tomando como temática para suas análises a mundialização da política, do conhecimento, da mídia, enfim dos saberes e da cultura de modo geral. Seus livros desse período são emblemáticos: “Teorias da globalização” (1996); “A sociedade global: teoria” (1992); “A Era do Globalismo” (1997, “Enigmas da modernidade - mundo” (2000), sem, contudo, romper com temas já trabalhados em outros momentos históricos. Mas, ao ampliar sua visão de mundo e suas análises, Ianni, incorporou com mais intensidade, um traço que sempre esteve presente em suas análises e que foi sua marca: não se restringiu aos estreitos limites acadêmicos das especializações, mas cuidou com mais ênfase de rejuntar saberes e áreas muitas vezes, consideradas irreconciliáveis pelos preceitos da Academia, conforme o paradigma dominante até hoje nos meios acadêmicos. Assim, temas ligados à antropologia, à cultura em geral, à estética e às artes, os quais sempre estiveram presentes em suas análises, continuaram a fazer parte das suas narrativas, agora de uma forma muito mais poética e menos 31

prosaica, o que deu aos seus textos um colorido todo especial ao fazerem incursões na literatura, na poesia, na música, enfim nas artes em geral. Dessa perspectiva, Ianni, pode ser considerado um sociólogo de pensamento aberto longe da fragmentação dos saberes, postura que ainda hoje se vê na academia, mas que no mundo todo já começa a se consolidar como uma nova forma de se pensar a ciência. É um momento em que, segundo Boaventura de Sousa Santos, começa a emergir um novo paradigma, onde o que é sentido e que é proclamado sobre o futuro “mesmo que seja de um futuro que já nos sentimos a percorrer, o que dele dissermos é sempre o produto de uma síntese pessoal embebida na imaginação, no meu caso na imaginação sociológica” SANTOS, 2006, p.99). São sínteses que se apresentam diferentes, mas que apontam para uma nova contemporaneidade. Para um mundo repleto de contradições que vem expressando uma nova forma de expansão do capitalismo. Daí a necessidade de reconhecer que A trama da história não se desenvolve, apenas em continuidades, seqüências, recorrências. A mesma história adquire movimentos insuspeitados e surpreendentes. Toda duração se deixa atravessar por rupturas. A mesma dinâmica das continuidades, germina possibilidades inesperadas, hiatos inadvertidos, rupturas que parecem terremotos (IANNI, 1997, p. 07).

É um novo processo ou uma nova geopolítica que vai emergindo lenta e sorrateiramente, fazendo com que a história vá mostrando sua trama enredada em acontecimentos, muitas vezes impensáveis na percepção de quem os contemplam. Dessa nova concepção, nasce em um dos seus livros sobre a sociedade globalizada, uma análise que vai mostrar um mundo que se quer homogêneo, porém fragmentado e cindido. Esses aspectos são colocados com lucidez e maturidade nos 32

seus trabalhos acerca da globalização. Em um dos seus livros sobre a sociedade globalizada, suas contradições fundamentais na sociedade global, Ianni aponta as tensões que esse processo vem produzindo no planeta. Com essa visão e novas formas de narrar os fenômenos, Ianni, “torna suas análises do Brasil e suas recentes reflexões sobre a globalização, bem mais ricas do que as pesquisas que se limitam à definição das dimensões políticas e econômicas dos fenômenos analisados” (COUTINHO, 2000). Sua cosmovisão planetária fica mais evidente em um dos últimos livros sobre o momento atual da nova expansão do capitalismo: “Enigmas da modernidade-mundo” (2000), obra em que o autor em sua plena maturidade faz um percurso intelectual

dos

“processos

que

constituíram

a

sociedade

contemporânea” onde tenta mostrar “um quadro dos dilemas e dos impasses da modernidade”, além de rejuntar com grande lucidez e abrangência, a literatura, incluindo romance, poesia, música e construindo um trabalho com uma nova estética do conhecimento que, como livro-síntese, é bastante instigante e de agradável leitura. Mostra que “apesar da variação dos temas abordados continua fiel em sua produção teórica” a qual já ultrapassa a mais de quatro dezenas de anos e “continua trabalhando” apoiado no seu paradigma metodológico originário: “contra uma visão fragmentaria empobrecida do real” mantendo uma fidelidade metodológica inabalável e conservando com integridade sua postura “crítica e contestadora do restante” dos seus pares como sempre o fez e que iluminou seu caminho pessoal e o seu pensamento (COUTINHO, 2000). Nesta obra, diz no seu Prefácio que se trata de um diálogo resultante de várias vozes como de alunos, professores e outros intelectuais que vai traduzir “um diálogo múltiplo, polifônico, com o qual ele também pode tornar-se uma expressão da modernidade-mundo.” 33

(Ianni, 2000, p. 09). No primeiro capítulo, o autor tenta mostrar que a história se constitui como uma teia cuja participação vem de muito longe: todos os viajantes que com motivos concretos ou não buscam descobrir realidades, as mais diversas lembrando que, A história dos povos está atravessada pela viagem, como realidade ou como metáfora. Todas as formas de sociedade, compreendendo tribos e clãs, nações e nacionalidades, colônias e impérios, trabalham e retrabalham a viagem, seja como modo de descobrir o “outro”, seja como modo de descobrir o “eu”. É como se a viagem, o viajante e sua narrativa revelassem todo o tempo, o que sabe e o que não sabe, o conhecido e o desconhecido, o próximo e o remoto, o real e o virtual. (IANNI, 2000, p. 12).

Depois de discorrer sobre os viajantes de todos os tempos e lugares, ele vai dizer que como metáfora ou realidade, “a viagem está sempre presente em muito do que é o imaginário das ciências sociais”; para Ianni, não é preciso muito esforço para se fazer uma viagem.

Não é necessário ser exaustivo sobre a presença direta e indireta da viagem no pensamento de muitos cientistas sociais. Muito do que tem sido a força e a originalidade desse pensamento tem por base os dilemas que colocam e os horizontes que se abrem com as comparações, possibilitando confrontos e contrapontos (IANNI, 2000, p. 15-16).

Octávio

Ianni,

com

sua

inquietação

e

curiosidade

de

pesquisador, visitou e revisitou clássicos e contemporâneos com uma profundidade de conhecimento, como se fosse o seu solo teórico no qual pisava fazendo um mergulho profundo tanto na tradição sociológica como na contemporânea que tão bem dominava. Essa foi a sua ponte para a inovação fazendo de sua prática um instrumento de transformação da realidade. Seu trabalho de sociólogo, era uma atividade de tempo integral. É a opinião de Maria Stela Grossi Porto, ao 34

se referir ao intelectual que já vivido e experiente, continua jovem e entusiasmado como se fora iniciante.

Durante a gestão do Prof. César Barreira, a Sociedade Brasileira de Sociologia teve o privilégio de homenagear em vida o professor Octávio Ianni, ao incluí-lo na primeira turma de contemplados com o Prêmio Florestan Fernandes, entregue no último congresso da sociedade, realizado em Campinas em 2003. Naquele momento ele foi lembrado e homenageado como referência da sociologia e das ciências sociais, como uma obra que abarca uma multiplicidade de aspectos da realidade, abrangendo da questão racial às análises sobre o Estado e a Sociedade, das questões da cultura àquelas voltadas ao problema da escravidão e, por fim, dos estudos sobre globalização. (PORTO, 2004, p. 508).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Apresentação. In: IANNI, Octávio. Pensamento Social no Brasil. Bauru, SP: EDUSC, 2004. p. 11-14. (Coleção Ciências Sociais). SECATTO, Antonio Ianni e SECATTO, José Antônio. Nota Introdutória. In: IANNI, Octávio. Pensamento Social no Brasil. Bauru- SP: EDUSC, 2004. p. 09-10. (Coleção Ciências Sociais). COUTINHO, Carlos Nelson. Orelha do Livro. In: IANNI. Octávio. Enigmas da Modernidade-Mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. Octávio Ianni – foi um sociólogo brasileiro. Informe eletrônico, s-d. Acessado em agosto de 2012. IANNI, Octávio. Sociologia e Sociedade no Brasil. São Paulo: Alfa Omega, 1975. _____________. A Era do Globalismo. 3ª.ed.. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. _____________. Enigmas da Modernidade-Mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

35

PORTO, Maria Stela Grossi. Falecimento de Octávio Ianni: a sociologia perde um mestre. In: INTERFACE, Porto Alegre, ano 07, n. 14, jan-dez, 2005. p. 504-508. SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso das ciências .4 ed. São Paulo: Cortez, 2006.

36

A FORMAÇÃO DO SUJEITO EM ZIGMUNT BAUMAN E EDGAR MORIN Helder Cavalcante Câmara2 Ailton Siqueira de Sousa Fonseca3

RESUMO O presente trabalho visa discutir a noção de sujeito a partir das perspectivas teóricas de Edgar Morin e Zigmunt Bauman, identificando suas contribuições para compreensão da sociedade moderna e, para tanto, realizamos uma revisão e análise bibliográfica, de natureza qualitativa, construído e guiado pelos princípios do pensamento complexo: o princípio dialógico, recursivo e hologramático. Como delimitação do objeto, priorizamos aqui três obras de cada autor: A cabeça bem-feita (2000), Ciência com consciência (2007) e Os sete saberes necessários à educação do futuro (2010), de Morin. E as obras O mal-estar da pós-modernidade (1998), Identidade (2005) e 44 cartas sobre o mundo líquido moderno (2011), de Bauman. Como resultado identificou-se que tanto para Bauman como para Morin, a formação do sujeito não se dá de forma simplificada, mas a partir de uma relação complexa que envolve a autoeco-organização a qual pode conduzir a formação de um sujeito consciente e capaz de se constituir na própria história. A luta contra o esfacelamento do sujeito nesta sociedade líquida, redutora e simplificadora é anseio dos autores. Um outro sujeito precisa ser construído. Liberto das normatizações que o impede de ser ele mesmo.

CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS Essa reflexão é fruto do diálogo estabelecido nas aulas do Programa

de

Pós-graduação

em

Ciências

Sociais

e

Humanas

(PPGCISH), mais especificamente nas disciplinas Teoria em Ciências Sociais e Humanas e Seminário de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas.

A primeira disciplina tinha como objetivo a discutir a

2

Graduado em Educação Física (UERN), Mestrando do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH/UERN). É professor titular da UERN. Integrante do Grupo de Pesquisa do Pensamento Complexo (GECOM/UERN) e Líder do Grupo de Pesquisa em Educação Física, Sociedade e Saúde (UERN). [email protected] 3 Graduado em Ciências Sociais (UERN), Mestre em Ciências Sociais (UFRN) e Doutor em Estudos PósGraduados em Ciências Sociais (Antropologia) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É professor titular da UERN, Diretor da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais (FAFIC/UERN), Professor do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH/UERN). Líder do Grupo de Pesquisa do Pensamento Complexo (GECOM/UERN). [email protected]

37

condição do sujeito nas Ciências Humanas e, a segunda, trazia a proposição de se estabelecer um diálogo entre os saberes científicos. A partir das reflexões que cada disciplina proporcionou bem como do diálogo entre elas, despertamos o interesse em discutir a subjetividade que, embora presente e efetiva na organização social tem sido negada ou desconsiderada enquanto elemento constitutivo e atuante na própria organização societal. Falar de subjetividade implicar abordar a condição do sujeito sem a qual este não se constituiria social e existencialmente. Fazer essa discussão é fundamental, porque ao longo da construção das Ciências Sociais e Humanas, o próprio humano

desapareceu

ou

foi

ocultado

enquanto

ser

que

é,

simultaneamente, racional e passional, técnico e lúdico, prosaico e poético, sapiens/demens, como enfatiza Edgar Morin. Ao tentar revelar, esclarecer, desocultar as coisas, os mistérios, os saberes e o próprio sujeito, essas ciências terminaram ocultando aquele o sujeito para si mesmo. A máxima poderia ser assim construída: aquele que tudo conhece não se conhece. O sujeito não vê naquilo que ele vê. Ao longo das disciplinas acima citadas, o sujeito tomou nosso olhar, chamou nossa atenção, reapareceu como um ser querendo ser repensado por nós. Como sempre acontece, às vezes, um olhar precisa ser ampliado por outros olhares e, assim, enxergar melhor. Portanto, para ampliar nosso olhar foi preciso outros olhos a fim de que pudéssemos compreender e percebermos melhor a inserção e a condição do sujeito na sociedade. Os olhares de Edgar Morin e de Zigmunt Bauman irão ampliar nossas lentes de leitura e compreensão do que nos propomos. É a partir da perspectiva teórica desses dois autores, planetariamente reconhecidos e provocativos, autores que se afastam e, ao mesmo tempo, se aproximam em termos da reflexão, que iremos (re)pensar o sujeito societal contemporâneo. Esse trabalho, de revisão e análise bibliográfica, foi construído e guiado pelos princípios do pensamento complexo: o princípio dialógico, o princípio recursivo e o princípio hologramático. Para delimitarmos a 38

leitura e compreensão, priorizamos aqui três obras de cada autor: A cabeça bem-feita (2003), Ciência com consciência (2007) e Os sete saberes necessários à educação do futuro (2010), de Edgar Morin. E as obras O mal-estar da pós-modernidade (1998), Identidade (2005) e 44 cartas sobre o mundo líquido moderno (2011), de Zigmunt Bauman. Recorremos, ainda, à outras teorias, autores e obras para ampliar as questões recorrentes à noção de sujeito nas obras desses dois autores.

O SUJEITO EM EDGAR MORIN E SIGMUNT BAUMAN Embora nunca tenha deixado de existir, ao longo da história o sujeito ficou muitas vezes ocultado, apagado, negado enquanto ser existencial, complexo, em especial, na sociedade moderna que tem na razão e nos paradigmas a partir dela constituídos os fundamentos de um pensamento pautado num modelo de ciência que conduz a um entendimento fragmentado, compartimentalizado, simplificado da vida e dos aspectos que nela se inserem. Edgar Morin e Zigmunt Bauman se apresentam como autores que vem discutir a sociedade contemporânea e os elementos nela presentes, constituintes e constituidores do estado de ser do social e do sujeito. Dentre essas discussões, nos apropriamos de um recorte, a subjetividade, e procuramos analisar esse conceito a partir dos olhares dos autores em questão, identificando a contribuição desses para a constituição do sujeito numa sociedade tão sui generis, como é a sociedade contemporânea. Para Morin (2007), a história do mundo, tem se pautado no paradigma da disjunção, que separa, fragmenta, como se, ao tratar cada particularidade do objeto individualmente, pudesse compreender a totalidade. Tal aspecto é coadunado por Bauman (2005) ao indicar que é improvável que qualquer modelo que seja baseado num único fator tenha a capacidade de dar conta da complexidade do mundo e de abranger a totalidade da experiência humana. 39

Nesse processo de disjunção, fragmentação e dicotomias, o ser vivo e, sobretudo, o sujeito humano, não pode ser reduzido a um organismo que, mesmo dispondo de aptidões cognitivas e inteligências, funcionaria tão somente por meio de uma organização automática. O fenótipo, que seria a expressão modificada pelas condições ambientais, e o genótipo, as condições herdadas, se constituiriam como elementos que determinariam o sujeito (MORIN, 2010). No

entendimento

de

Morin,

o

humano

não

pode

ser

partimentalizado, pois é, ao mesmo tempo, totalmente biológico e totalmente cultural, de tal maneira que se torna impossível separar, pois essas dimensões do humano são, inextrincavelmente, ligados: O que há de mais biológico – o sexo, o nascimento, a morte – é, também o que há de mais impregnado de cultura. Nossas atividades biológicas mais elementares – comer, beber, defecar – estão estreitamente ligadas às normas, proibições, valores, símbolos, mitos, ritos, ou seja, ao que há de mais especificamente cultural; nossas atividades culturais – falar, cantar, dançar, amar, meditar – põem em movimento nossos corpos, nossos órgãos; portanto, o cérebro. (MORIN, 2003, p. 40)

O processo de constituição do sujeito tem relação com os processos de interação estabelecidos socialmente, portanto também com a formação das identidades dos indivíduos. Tal afirmação deve-se porque o ser sujeito, ao manter relação com o mundo social, vai adquirindo

compreensões

e

estas,

consequentemente,

vão

o

formando. Há assim uma relação circular, como explica o princípio da recursividade (MORIN, 2007). Cada “ciclo” nunca é o mesmo, mas um novo que se (re)constrói ao construir o novo. O “produto” dessa relação se dá a partir do que o indivíduo é e do que o constitui num dado espaço e momento. O sujeito é, portanto, produto de um diálogo constante entre a individualidade e a objetividade do mundo. De certa forma, é esse o entendimento que Boris Cyrulnik tem ao afirmar que,

40

O mundo inter-humano é tanto um mundo de sentidos quanto um mundo de sentidos (sic), um mundo onde nossa sensorialidade se impregna de história, ela que governa tanto nossas emoções quanto nossas percepções (CYRULNIK, 1995, p. 10).

Em diálogo com Cyrulnik, Morin é enfático ao afirmar: “o mundo exterior está no interior de nós num diálogo permanente” (MORIN, CYRULNIK, 2004, p. 15). Por sua vez, Bauman (2005) afirma que a vivência social se dá a partir de identificações e diferenciações, se tornando um poderoso meio de estratificação. O autor identifica dois pólos nesse processo. Num deles estariam aqueles que fazem parte do que o autor chama de “hierarquia global emergente”, os quais constituem e desarticulam suas identidades de forma mais ou menos autônoma. No outro pólo se abarrotam aqueles que tiveram negado o acesso à escolha da identidade, que não tem o direito de manifestar as suas preferências e que no final se vêem oprimidos por identidades aplicadas ou impostas por outros – identidades de que eles próprios se ressentem, mas não tem permissão de abandonar nem das quais conseguem se livrar. Identidades que esteriotipam, humilham, desumanizam, estigmatizam... (BAUMAN, 2005, p. 44)

És-se assim alvitre das diferenciações produzidas, não havendo muito espaço para a constituição de identidades ou de sujeitos diferente daqueles que o formam e o tornam. Para Bauman seria preciso a formação de uma identidade ou identidades pessoais num processo contínuo que acompanha toda a vida a fim de permitir a supressão da ênfase nas diferenças a partir das identidades que se fecham e, nesse fechar, ampliam a distinção que estereotipa os sujeitos envolvidos nessa relação. Para formação dessas identidades, nas palavras do autor, seria necessário um

[...] trabalho total é direcionado para os meios. Não se começa pela imagem final, mas por uma série de peças já obtidas ou que parecem valer a pena ter, e então se tenta descobrir como é possível agrupá-las e reagrupá-las para montar imagens (quantas?) agradáveis. (...) A tarefa de um construtor

41

de identidade é, como diria Lévi-Strauss, a de um bricoleur, que constrói todo tipo de coisa com o material que tem na mão... (BAUMAN, 2005, p. 55)

Já Morin, ao trata da disjunção, aponta a necessidade de que o ser, até então objeto, se torne sujeito. Mas para que o indivíduo se torne sujeito a ideia de autonomia precisa se tornar real. O “auto” passa a aparecer a partir da ideia de retroação e regulação, as quais permitem perceber que o sujeito não é em si determinado, mas é, ao mesmo tempo, causa e efeito e estas interagem com outras causalidades externas. Se torna auto-eco-organizador, ou seja, é capaz de tratar, examinar, calcular informações e dados coletados do ambiente, elevando o ser a condição de sujeito. Embora elevando o ser à condição se sujeito, não tem isto como suficiente,

pois

é

precisa

está

“liberto”

das

“cegueiras

do

conhecimento” (MORIM, 2007, p. 19) e quanto mais autônomo se torna, mais dependente ele fica. Ao mesmo tempo em que os indivíduos extraem do ambiente as informações que lhe permitem ser autônomo, também sofre os acontecimentos de sua vida. À medida que se torna autônomo define sua forma de ser e seu destino se constitui (MORIN, 2010). Associada a formação da autonomia estaria a necessidade da reforma da consciência, compreendo que a vida é uma teia de relações que se estabelece inextrincavelmente entre os seres, entre estes e o ambiente, de forma interconectada em que todas as ações são reflexivas (MORIN, 2003). A necessidade da busca pela superação das cegueiras do conhecimento deve considerar a incerteza e que todos estes aspectos tem de ser acompanhados de uma ética e da compreensão. Compreender no sentido de que viver é uma eterna complexidade

e

que

qualquer

simplificação

seria

limitação

a

percepção da vida. O

pensamento

reducionista,

elimina

a

compreensão

de

totalidade da vida e, consequentemente, da totalidade de si mesmo 42

que é parte inserida num todo maior: o cosmo. Restringe-se, então, a um pensar para uma dada realidade como sendo “a realidade”. Obedece-se a uma lógica que se estende “à sociedade e as relações humanas os constrangimentos e os mecanismos inumanos da máquina artificial e sua visão determinista, mecanicista, quantitativa, formalista; e ignora, oculta e dilui tudo que é subjetivo, afetivo, livre, criador.” (MORIN, 2003, p. 15) Pensar a vida a partir do princípio hologramático é necessário, pois o todo e as parte se interconectam de tal maneira que o todo é composto de partes, mas por ser todo se diferencia das partes. De forma similar, toda parte, por mais individual que seja, contem o todo. Portanto, “é impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, tampouco conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes” (PASCAL apud MORIN, 2003; 2007) É esse entendimento (todo/parte) que estar presente nas palavras de Michel Casse (apud MORIN, 2003, p. 36-37), quando este foi indagado sobre o que um astrônomo via em seu copo de vinho bordeaux. Ele responde a pergunta de forma poética: Vejo o nascimento do Universo, pois vejo as partículas que se formaram nele nos primeiros segundos. Vejo um sol anterior ao nosso, pois nossos átomos de carbono foram gerados nos seio desse grande astro que explodiu. Depois, esse carbono ligou-se a outros átomos nessa espécie de lixeira cósmica em que os detritos, ao se agruparem, vão formar a Terra. Vejo a composição das macromoléculas que se uniram para dar nascimento à vida. Vejo as primeiras células vivas, o desenvolvimento do mundo vegetal, a domesticação da vinha nos países mediterrâneos. Vejo as bacanais e os festins. Vejo a seleção das castas, um cuidado milenar em torno dos vinhedos. Vejo, enfim, o desenvolvimento da técnica moderna que hoje permite controlar eletronicamente a temperatura de fermentação nas tinas. Vejo toda histórica cósmica e humana nesse copo de vinho, e também, é claro, toda a história específica do bordelês. (CASSE apud MORIN, 2003, p. 36-37)

Para

Morin



uma

cabeça

bem-feita

estaria

apta

a

compreender a totalidade na unidade e a unidade na totalidade. Apta a organizar os conhecimentos e, assim, evitar a acumulação estéril. É 43

por isso que a reforma do pensamento é condição necessário para sermos sujeitos na humanidade. Só é possível um sujeito autônomo de houver a reforma do pensar. [...] um pensamento de complexo, pois não basta apenas inscrever todas as coisas e acontecimentos dentre de um “quadro” ou uma “perspectiva”. Trata-se de procurar sempre as relações e inter-retro-ações entre cada fenômeno e seu contexto, aas relações de reciprocidade todo/partes: como uma modificação local que repercute sobre o todo e como uma modificação do todo repercute sobre as partes. Trata-se, ao mesmo tempo, de reconhecer a unidade dentro do diverso, o diverso dentro da unidade; de reconhecer, por exemplo, a unidade humana em meio às diversidades individuais e culturais, as diversidades individuais e culturais em meio à unidade humana. (MORIN, 2003, p. 25)

A incerteza é também pontuada por Bauman (2011), ao discutir que o futuro é um desconhecido, assim como os sistemas complexos como é o viver, bem como a multiplicidade de fatores mutuamente independentes que compõe a existência humana continuará a ser imprevisível. Essa incerteza está inclusive na incompreensão que temos de nós somos. Bauman ilustra isso por meio das falas de Petter Sellers (“eu não sei quem ou o que sou”) e do rei Lear (“Quem pode me dizer quem sou eu?”). O que fica claro é que, quem ou o que eu sou não é uma resposta que cabe exclusivamente a mim. No jogo das relações circundantes que nos envolvem, “ouvem-se muitas vozes, com freqüência bastante dissonantes (BAUMAN, 2011, p. 39). Percebemos que o sujeito se constitui e é construído no diálogo estabelecido entre as diferentes vozes que nele se interpenetram. Umas mais fortes, outras mansas, algumas sensíveis, outras imperceptíveis e até mesmo as “mentirosas”. O grau de liberdade que os outros vão me dar irão oferecer as possibilidades de me constituir enquanto sujeito. Contudo, por maior que seja a determinação, esta dificilmente será a última. As identidades que temos nos tornam os sujeitos que somos, mas

44

ambos estão em constante possibilidade de mudança, principalmente na modernidade liquida que se apresenta a nós. Nessa modernidade, Bauman discute dois outros elementos que, a nosso ver, tem interferência em maior ou menos grau na formação da personalidade: o segredo e os meios de comunicação, em especial o celular. Algumas informações estão dentro do espaço da privacidade, as quais me preservam e garante um poder absoluto sobre quem e o que sou. Sigilo exprime, por exemplo, um conhecimento meu e sobre mim, que me torna “intocável” enquanto sujeito dessa relação. Ninguém além de mim pode interferir nas estruturas que garantem a solidez deste sujeito da relação estabelecida entre o segredo e o que ele define. O segredo pode não ser só para mim. Alguns sujeitos podem ser cúmplices, conforme pontua Bauman (2011, p. 42) Confidenciamos nossos segredos a um pequeno grupo de pessoas selecionadas, “especiais”, tecemos redes de amizade na internet, indicamos e conservamos nossos “melhores amigos”, ao mesmo tempo que bloqueamos a todos os demais o acesso a nossas intimidades; criamos e mantemos vínculos incondicionais e permanentes; como num passe de mágica, agregados frouxos de indivíduos são transformados em grupos integrados e fortemente unidos.

No mundo da internet ou virtual, a permissão e o bloqueio de acesso a certos grupos fortalecem a formação de identidades, pois os critérios de inclusão e de exclusão partem da minha subjetividade e, à medida que os membros vão se inserindo, inicia-se o diálogo entre estes e minha forma de pensar intrínseca, o que pode conduzir a uma reconstituição. Esse processo de constituição/reconstituição, que se aproxima bastante do paradigma da recursividade de Morin, garante a solidez do grupo. Esse sujeito em disponibilidade constante, surgiu

partir dos

avanços dos meios de comunicação, com destaque para a telefonia celular. Parte-se do pressuposto de que o uso do aparelho celular e a disponibilização do número para certos grupos, que podem ser 45

familiares, relativos ao trabalho, de amizade, dentre outros, conduz a “obrigatoriedade” por utilizá-lo, atendendo-o, sempre que solicitado for, isto porque “Dar o número de celular é conceder ou solicitar esses privilégio:

é

um

ato

de

aceitação

e

ao

mesmo

tempo

de

consentimento, e/ ou um pedido de ser aceito” (BAUMAN, 2011 p. 46) É por isso que o autor afirma que Agora todo mundo pode estar à disposição para qualquer contato telefônico, mas ainda é preciso se tornar disponível – e fazemos isso somente para um grupo selecionado de pessoas. Torna-se disponível é uma ferramenta de construção de redes: de unificação e separação, de ‘entrar em contato’ e ‘ficar fora de contato’ [...] (BAUMAN, 2011, p. 45)

Como o sujeito se constitui na interação entre os indivíduos, a formação de redes de comunicação, seja a partir do segredo, da telefonia celular ou mesmo outros tipos, como as redes sociais da internet (facebook, twitter, orkut), se apresentam na sociedade moderna, como mecanismos que participam do processo de formação de sujeitos, inserido numa “modernidade líquida”, instável, e por isso, uma formação que nunca finda, mas perpassa toda a vida dos indivíduos. (BAUMAN, 2011; 2005) A incerteza é algo que o indivíduo deve lidar constantemente e ser capaz de encontrar os caminhos e formas de segui-los a fim de ser capaz de enfrentar essa viagem que é chamada vida. Quanto mais evoluído o ser vivo, mais capaz de fazer escolhas e elaborar estratégias, deixando de ser e de fazer apenas o que é determinado, ou seja, se tornando sujeito consciente. (MORIN, 2010) A formação desse sujeito se torna imprescindível, pois é a garantia da inserção na vida, o que é condição para toda e qualquer mudança. Ao se mudar o sujeito muda-se o mundo. Vale ressaltar que, como já afirmado anteriormente, não há fim no processo formativo, mas constante ratificação e/ou retificação. Essas mudanças podem ser produtos de diferentes aspectos. Bauman (1998) afirma que o mesmo sujeito pode, em tempos e espaços diversos, se tornar diferentes tipos de 46

sujeitos, assumindo diferentes identidades ou, na relação com a diferença, se tornar a norma ou o estranho. Dadas as discussões apresentadas, pode-se perceber que Bauman e Morin veem a necessidade de um tratamento diferenciado na modernidade em se tratando da forma de pensar e formar o sujeito; contudo cabe destacar que Bauman não discute explicitamente o termo sujeito. Destaca-se, contudo, que as questões referentes a subjetividades estão bem presentes nas discussões do referido autor. Tal inferência deve-se porque o autor, ao tratar os conceitos referentes a identidades e ao discutir a criação e anulação de estranhos trata consequentemente de processos de formação de sujeitos. Bauman expressa em seus textos reflexões sobre a existência de um mundo líquido, o qual recebe essa denominação porque, como todos os líquidos, ele jamais se imobiliza, nem conserva sua forma por muito tempo. Assim, esse mundo e as “coisas” nele presentes acabam seguindo essa tendência. Tornam-se líquidas também as identidades, os sujeitos, o amor, dentre outros. Por outro lado, Morin infere que os sujeitos fragmentados precisam ser reintegrados e, para tanto, a reforma da consciência é condição sine qua non, o que conduz a inserção e ou reinserção do sujeito na história. Sujeito auto-eco-organizador que, quanto mais evoluído, mais consciente será e mais se torna capaz de fazer escolhas e de elaborar estratégias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir da bibliografia pesquisada, pode-se perceber que o sujeito encontra-se discutido nos dois autores; contudo, Bauman não trata diretamente deste conceito. As discussões que são apresentadas tanto por Bauman como por Morin partem do princípio de que a formação do sujeito não se dá de forma simplificada, mas a partir de 47

uma relação complexa que envolve, para Morin, a auto-ecoeducação, esta que pode conduzir a formação de um sujeito consciente e capaz de se constituir na própria história. Bauman associa a formação do sujeito a uma modernidade extremamente mutável, o que conduz a fluidez também do sujeito, que poderíamos chamar de sujeito líquido. Em seus textos percebe-se uma preocupação com o futuro a partir da análise da sociedade. Um futuro incerto que é um desafio a ser vivido. Traçam olhares numa perspectiva transdisciplinar e enfatizam a necessidade da formação de um novo sujeito que, para Morin, se dará a partir da reforma da consciência e, para Bauman, é imperativa na formação das identidades, que ocorrem “a todo instante”, não de forma fragmentadas e ou abjetas, mas que se auto-refaça a todo instante superando a ideia de que a diferença as seja objeto de imposição de uma(s) identidade(s) em relação a outra(s). O entendimento dados pelos autores sobre o sujeito na sociedade moderna conduz a necessidade de repensar os paradigmas ora impostos nesta mesma sociedade e se trilhar caminhos para superação deste a partir de uma visão de totalidade, permitindo a constituição de um ser humano que seja sujeito consciente de si, da sociedade, e do que é necessária para se viver.

REFERÊNCIAS BAUMAN, Z. O mal estar da pós modernidade. Tradução: Mauro Gama e Cláudia Martinelli. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. ________. Identidade: entrevista com Benedetto Vecchi. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. ________. 44 cartas do mundo líquido moderno. Tradução: Vera Pereira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011.

48

CYRULNIK, Boris. Os alimentos do afeto. Tradução: Celso MauroPaciornik. São Paulo: Ática, 1995. MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Tradução: Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. São Paulo: Cortez, 2007. ________. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução: Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. ________. Ciência com consciência. Tradução: Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. ________. CYRULNIK, Boris. Diálogo sobre a natureza humana. Portugal: Instituto Piaget, 2004.

49

TOBIAS BARRETO: MESTIÇAGEM, SOCIOLOGIA E EDUCAÇÃO

Ivan Fontes Barbosa4

Resumo: Objetiva-se compreender sociologicamente as razões das opções teóricas de Tobias Barreto na crítica à sociologia vigente e identificar as contribuições destas escolhas para o entendimento da educação e de sua relação com a mestiçagem e sociedade brasileiras dos novecentos. Trata-se de uma investigação de natureza bibliográfica e documental desenvolvida junto aos Arquivos da Biblioteca da Faculdade de Direito do Recife, na Biblioteca Pública Estadual Epiphânio Dória-SE e nas Bibliotecas centrais da UFS (Universidade Federal de Sergipe) e UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). O autor contribuiu para fornecer um status científico e filosófico ao debate sobre as razões dos males do Brasil e defender a educação como fundamental para pensar a nossa sociedade.

INTRODUÇÃO

No século XIX o mestiço brasileiro foi um dado relevante para a verificação da plausibilidade das perspectivas sociológicas que nutriam a percepção de que as dimensões biológicas e mesológicas eram elementos determinantes do avanço ou do retardo dos povos e raças no curso da hegemônica ideia de evolução. De forma ambígua, o mestiço apresentava-se como sintoma de que o malfadado insucesso desses povos estariam inscritos em sua constituição anatômica e fisiológica. A sociologia recepcionada e reelaborada no Brasil neste momento,

adotou

o

arcabouço

da

sociologia

darwinista

e

evolucionista. Ela foi à ferramenta para pensar a nação e delimitar os contornos intelectuais dos ajustes que seriam necessários ao ingresso do Brasil no contexto das estruturas capitalistas modernas. Era uma 4

Graduado em Ciências Sociais (UFS), Mestre em Sociologia (UFS) e Doutor em Sociologia (UFPE). Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais (UFPB). [email protected]

50

sociologia que buscava entrever no curso natural da história a saída do Brasil da menoridade e perceber a singularidade da formação brasileira. O papel do mestiço, neste sentido, foi sociologicamente relevante para pensar as dimensões não teóricas da figuração de um estilo de sociologia que emergia contra o positivismo e o darwinismo vigente. Tobias Barreto ilustra como o mestiço e suas possibilidades dentro do contexto de um regime escravocrata, opera a seleção de uma perspectiva sociológica que respalda a dissociação da relação entre cultura e natureza e aponta com isso, a importância da educação como vetor no processo de equalização das possibilidades de aprimoramento dos seres humanos. Iniciamos o texto tecendo ligeiras considerações acerca da predominância entendimento

das da

abordagens

sociedade

racistas

brasileira.

Em

e

naturalísticas seguida

indico

no a

singularidade da percepção sociológica da mestiçagem operada por Tobias a partir de duas dimensões: uma existencial e outra intelectual. Tentamos apontar os fatores que possibilitaram tanto no contexto biográfico e estrutural, como no intelectual, a proposição da perspectiva sociológica de Tobias no que tange as desigualdades sociais e o papel da educação nesse processo. Em seguida, apontamos como ele orquestra a seleção de sugestões teóricas para entender o papel da cultura e das instituições sociais ante o contexto das sociedades.

O MESTIÇO TOBIAS E A SELEÇÃO DE SUAS IDEIAS SOCIOLÓGICAS A tentativa de construção de uma reflexão que desse conta do entendimento das especificidades e do lugar da sociedade brasileira dos novecentos ante o contexto do avanço das sociedade ocidentais, 51

foi o mote que orientou a recepção das perspectivas sociológicas e os seus usos na busca da construção da identidade nacional. No âmbito das primeiras reflexões sociológicas sobre o Brasil, se fez presente, principalmente, as perspectivas evolucionistas de Augusto Comte e Herbert Spencer e das teorias raciais e deterministas. Tínhamos uma preponderância

de

percepções

que

alastravam

as

dimensões

naturalistas nas explicações dos fenômenos sociais e do destino da sociedade nacional. Conforme Thomas Skidmore (1976, p.13) a questão racial e os problemas afins, de determinismo climático, eram objeto de aberta discussão na Europa. Os europeus ofertavam termos poucos lisonjeiros à América latina e ao Brasil, principalmente, por causa de sua vasta influência africana. Os brasileiros liam tais autores sem nenhum espírito crítico. Caudatários na sua cultura, imitativos no pensamento – e cônscios disso – o brasileiros estavam mal preparados para discutir as ultimas doutrinas sociais da Europa. Estes pensamentos anunciavam alguns dos dolorosos dilemas que iam formar a maior parte da vida intelectual brasileira. Lilia Moritz Schwarcz (1993, p.17/18) aponta que as elites intelectuais locais consumiram este tipo de literatura e adotaram-na de forma

original.

Diferentes

eram

os

modelos,

diversas

eram

as

decorrências teóricas. Em meio a um contexto caracterizado pelo enfraquecimento e final da escravidão, e pela realização de um o novo projeto político para o país, as teorias raciais se apresentavam enquanto modelo teórico viável na justificação do complicado jogo de interesses que se montava. Para além dos problemas mais prementes, relativos à substituição da mão de obra ou mesmo à conservação de um hierarquia social bastante rígida, parecia ser preciso estabelecer critérios diferenciados de cidadania. Neste contexto, aparentemente contrário

às

dissidências,

emerge

uma

sublevação

que

iria

solitariamente advogar contra as sentenças teóricas condenatórias da 52

nascente sociologia e de seu uso na interpretação do Brasil e de suas intempéries. Tobias

Barreto

(1839-1889)

foi

um

acintoso,

vigoroso

e

temperamental mulato sergipano formado pela Faculdade de Direito do Recife. Tal robustez possivelmente adveio do furor de penetrar em uma das poucas brechas para a mobilidade e reconhecimento social existente àquele tempo, a intelectual. Notabilizando-se por um apego muitas vezes considerado exagerado e chistoso à cultura germânica, conseguiu, em detrimento de tantas limitações, edificar uma esquecida, porém curiosa e singular crítica à voracidade da razão positivista e de seu ímpeto de reduzir o universo da cultura a dimensões naturalísticas. Antônio Candido (1960, p.2107) indica a posição de Tobias dentro do contexto da história da sociologia brasileira. Segundo ele: [...] o primeiro escrito teórico de certo vulto sobre a matéria (deixando de lado as repetições automáticas dos positivistas) foi possivelmente devido a Tobias Barreto e obedeceu, vale mencionar, a um critério negativista. São as Glosas heterodoxas a um dos motes do dia ou variações anti-sociológicas, onde contesta, com a vivacidade costumeira, a validade e a autonomia de nossa disciplina.

Os momentos primeiros desta contenda precedem as Glosas. Estão inscritos nos discursos pronunciados em 1979 enquanto deputado e na dissertação elaborada para concurso para lente da FDR em 1882. São escritos que indicam como se dava a recepção e reelaboração da reflexão sociológica no Brasil do século XIX. O que desperta o interesse é que ao negar e restringir a possibilidade da sociologia, ele fez mediante argumentos e preocupações que estavam presentes nos neokantianos e, dedutivamente e isoladamente, encetou um dos debates mais instigantes desta disciplina no transcurso da transição do século XIX para o XX. A nossa constatação é a de que o cerne da relação crítica, principalmente com o positivismo, está na admiração assumida e 53

inconteste da cultura alemã, e que esta opção só pode ser compreendida dentro da sutura entre as dimensões sociais e biográficas. A este respeito, a relação com os alemães é um capitulo importante da biografia deste autor. Escrevia e publicava artigos e jornais nessa língua no município de Escada, interior de Pernambuco, e julgava ser um fiel defensor de suas ideias. Para Tobias Barreto [1872] (1962, p.283) a Alemanha ensina a pensar e a França a escrever. Em outro momento Tobias Barreto [1887] (Idem, p.245-246) afirmava dever aos

[...]

alemães

um

pouco

de

gratidão,

por

haverem

eles

indiretamente, com maior robustez dos seus argumentos e a maior profundeza de suas indagações, melhor assentado a insustentabilidade do positivismo e, sobretudo, a inanidade da sociologia.

[...] a minha germanomania não é de todo um fenômeno psiquiátrico, pois que se baseia em muito boas razões [...] os pensadores alemães, em quase todos os domínios da inteligência, andam dez anos, pelo menos, adiante dos franceses. Não sei se deva excetuar o domínio político. A política alemã não me é totalmente simpática. Olhada por este lado, a minha cara Alemanha assemelha-se a uma linda mulher, em que aliais a enormidade das mamas diminuí a beleza das outras formas. Por isso limito-me a contemplá-la só pelo rosto (Idem, p.201).

Consoante Tobias Barreto [1880] (1990, p.66): Aqui importa notar – e para destruir uma certa ideia, geralmente aceita, de que eu me dedicara à Alemanha, por ocasião ou depois da guerra desta com a França – que já no ano de 69, ainda acadêmico, eu começará a fazer estudo de gramática alemã, não podendo, porém, ir muito avante, por causa das ocupações acadêmicas [...] no ano seguinte (1872) vim para Escada, e entregando-me a profissão de advogado, entreguei-me também ao estudo da língua alemã, na qual nunca tive mestre; sou completamente um autodidata, ou mestre de mim mesmo.

54

Esse momento marca o ponto de partida da crítica que Tobias Barreto de Menezes faz entre 1879 e 1887 ao determinismo e ao positivismo. Autores como Miguel Reale (1973, 1990), Antônio Paim (1966, 1967), Vamireh Chacon (1959, 1969, 2008), Pinto Ferreira (1969) consideram que a contribuição fundamental de Tobias foi a de ter trazido para o cenário filosófico brasileiro, o debate inaugurado por Immanuel Kant. Tobias indicou as debilidades e fragilidade das doutrinas e perspectivas que estavam assentadas na suposição que a natureza cultural dos fenômenos estivesse sujeita a certos tipos de determinismos e aprisionada a dimensões involuntárias. Ele operou uma seleção que culminou numa crítica à sociologia positivista, partindo da apropriação de uma perspectiva teórica que se coadunava com a necessidade de atendimento das demandas que se impunham a afirmação de seus interesses. Isso implica compreendermos que na busca aleatória e assistemática de autores e ideias, as afinidades afetivas e existenciais são critérios legítimos para serem levados em consideração enquanto balizas para o entendimento da recepção e rejeição de determinadas pressuposições por parte deste autor. Se o positivismo e o determinismo são a tônica do momento, como situar à opção peculiar e crítica à sociologia perfilada por Tobias? A geração de 70 da FDR e as percussoras gerações foram partidárias do evolucionismo naturalista e quiçá do positivismo. Grosso modo, consoante a atenta constatação de Oracy Nogueira (1978, p.185), os intelectuais do Império eram ambivalentes e marcados pela rubrica da perplexidade que experimentavam ao observar o contexto em que estavam inseridos. Vendo-o com os olhos das perspectivas europeias, exacerbavam seus aspectos negativos, sem conseguir romper com os laços afetivos que a ele os prendiam. José Murilo de Carvalho (1980) cunhou situação semelhante de dialética da ambiguidade, pois denotava o fato de que emprego público indicado e nomeado constituía a principal alternativa para os 55

enjeitados do latifúndio escravista, ao tempo que tolhia e limitava a crítica e o protesto contra este mesmo latifúndio. Emília Viotti da Costa (1999, p.262-263) assiná-la que os intelectuais estavam presos a uma ambígua rede de relações de dependência para com o estamento. [...] a ambiguidade em que se debate esse tipo de intelectual fica evidente numa atitude de Tobias Barreto que, numa cidadezinha perdida no interior do Brasil, publicava em alemão um jornal que certamente não encontrava leitores, e fazia discursos [...] atacando as oligarquias rurais numa área controlada essencialmente por elas, diante de um público perplexo, senão atônito.

Acreditamos que é no interior dos interesses, inseguranças e incertezas que abarcavam o horizonte das sensibilidades intelectuais destes contendedores que podemos explorar as razões para a emergência da crítica de Tobias Barreto à sociologia a partir de seu excessivo apego à cultura alemã. Ele reage, imerso numa atmosfera temerária e inquietante, a sentença teórica condenatória que via o mulato como elemento social congenitamente inferior. Combate às teorias que advogam a dimensão natural das desigualdades sociais. A sua feição vistosamente marcada por sua filiação africana não poderia sacrificar a validade de seus argumentos e ideias. As rejeições parciais de percepções evolucionistas e raciais denotavam uma forma de ação que, ao buscar se afirmar enquanto igual – e, além de tudo, ímpar, singular, distinto – era capaz de envergar as rudes dimensões ideológicas e sociais que o condenaria, necessariamente, a um reconhecimento precário. A miscigenação neste sentido atuou como vetor para que alguns segmentos participassem da parca mobilidade social existente naquele período. Esta questão implicava, na sociedade brasileira, uma realidade que já era notada pela existência de alguns mestiços ocupando posições de prestígio e destaque. Tratava-se de um fenômeno definido por Sylvio Rabelo (1967, p.14) como um processo de aristocratização 56

pela inteligência. Para este autor, a miscigenação atuou diretamente na formação dos paradoxos de Tobias.

É possível ainda que seu problema social – a sua inferioridade de origem – tivesse perturbado a espontaneidade do artista; que a ascensão do homem humilde de Campos a condição de professor da FDR tivesse absorvido o que de melhor existia nele como personalidade – a sua força nativa [...] conquistou o título de doutor, o casamento em família burguesa, a cadeira de professor, a fama de gênio (Idem).

Conforme Gilberto Freire (2000, p.601) o [...] Bacharel e o Mulato (muitas vezes reunidos na mesma pessoa) foram as duas grandes forças novas e triunfantes no Brasil do século XIX. Foram eles os elementos dinâmicos da sociedade brasileira dos novecentos. Entre esses duros antagonismos é que agiu sempre de maneira poderosa, no sentido de amolecê-los, o elemento socialmente mais plástico e em certo sentido mais dinâmico, da nossa formação: o mulato. Principalmente o mulato valorizado pela cultura intelectual ou técnica (Idem, p.11).

Eram

momentos

situados

no

contexto

do

declínio

e

esmorecimento do patriarcado rural no Brasil, conforme aduzi Gilberto Freire (2000, p.1226) em Sobrados e Mocambos. Houve uma paulatina e gradual transferência de poder, ou de soma considerável de poder, da aristocracia rural, quase sempre branca, não só para o burguês intelectual – o bacharel ou doutor às vezes mulato – como para o militar – o bacharel da escola militar e da escola politécnica, em vários casos negróides. Tobias Barreto era sintoma desse processo de declínio da sociedade patriarcal e emergência dos modos de vida modernos. Gilberto Freire (2000a, p.444), a respeito deste autor, indica que o:

[...] seu próprio alemanismo talvez tenha sido, conforme antiga sugestão nossa ao professor Roger Bastide, que a vem cnnsiderando sociologicamente válida, como vingança ou desforço do brasileiro negróide contra aqueles outros brasileiros

57

que, sendo brancos, o eram apenas pela sua condição étnica de neolatinos, de neomediterrâneos, de neo-hispanos, faltando-lhes a perfeita arianidade que era a nórdica, particularmente a germânica; e com esta é que ele, Tobias, estava identificado pelo espirito; pela cultura; pelo intelecto; e de tal maneira que sua condição étnica afro-brasileiro ele talvez a considerasse superada pela intelectual ou cultural, de homem impregnado, da cabeça até quase aos pés, de alemanismo jurídico, filosófico, literário. Sob essa convicção, não poderia nunca tornar-se um abolicionista, semelhante ao neolatino Joaquim Nabuco.

Em outro momento, transcrito por Wilson Martins, Gilberto Freire reitera esse comentário:

[...] chamei há anos a atenção do professor Roger Bastide, quando esse sociólogo francês deu-me a honra de visitar-me em Apipucos, para o fato de parecer-me o germanismo fanático de Tobias Barreto uma espécie de vingança do mulato contra os brancos brasileiros em particular, e latinos, em geral, que eram aqueles cujo contato direto teria trazido ao sergipano maior número de ressentimentos: exaltando os brancos, a seu ver branquíssimos, completos, perfeitos da Alemanha, e considerando, junto deles, inferiores brancos a seu ver, imperfeitos, da Europa latina e do Brasil, Tobias como que se compensava do fato de não ser branco simplesmente latino ou brasileiro. Mais ainda: pelo conhecimento da língua e letras germânicas incorporava-se de algum modo aos dóricos-louros – estes sim, brancos perfeitos (Cf. Martins, 1977, p.70).

Para Gláucio Veiga (1989, p.18):

No fundo, os artigos de Tobias Barreto eram espetaculares legítimas defesas do mulato – mulato e pobre – mulato pela primeira vez se apresentando para invadir o espaço da branca congregação da faculdade, hospedando o barão Camaragibe, o visconde de Bom Conselho e uma serie de conselheiros.

A questão da relação entre a pulsão intelectual do mulato e seu reconhecimento é algo presente no século XIX. Gilberto Freire (2000a), simpático à percepção da importância do papel do mulato ou do elemento mestiço em nossa formação, sugeriram que o mulato 58

valorizado pela cultura intelectual ou técnica, representou o elemento socialmente mais plástico e em certo sentido mais dinâmico da nossa formação. Logo, dentro de uma sociedade escravocrata que reconhecia o mestiço e possibilitava a sua mobilidade por intermédio de credenciais intelectuais, muitos eram os que enveredavam pela via intelectual como forma de negociar certas formas de reconhecimento. Segundo Gilberto Freire (2000a, p.335) o mulato que vinha desabrochando em padre, em doutor, em bacharel, possuidor do diploma acadêmico ou o título de capitão de milícias (que acabava servindo-lhe de carta de branquidade) que iria dinamizar a sociedade brasileira no século XIX. Eles seriam a meia-raça a fazer de classe média, tão débil dentro do nosso sistema patriarcal. Desde o últimos tempos coloniais que o bacharel e o mulato vinham se constituindo elemento de diferenciação dentro de uma sociedade rural e patriarcal que procurava integrar-se pelo equilíbrio, e mais do que isso, pelos que os sociólogos modernos chamam de acomodação, entre dois grandes antagonismos: o senhor e o escravo. A casa grande, completada pela senzala, representou, entre nós, verdadeira maravilha de acomodação que o antagonismo entre o sobrado e o mocambo veio quebrar ou perturbar (Idem, p.601).

A leitura de Freire é endossada pelo conterrâneo Nelson Saldanha (1997, p.08), ao afirmar que: O padrão mestiço existente na sociedade permitiu-lhe subir na hierarquia social, vindo a ser professor da Faculdade, condição que no tempo correspondia a um status de enorme prestígio. Mas teve-se que haver com um mundo de antipatias e reações por conta de seus caracteres somáticos.

Thomas Skidmore (1976, p.60) conclui que os homens livres de cor tiveram importante papel no Brasil muito antes da abolição. Haviam conseguido atingir considerável mobilidade ocupacional enquanto a escravidão era dominante no país. Tais oportunidades econômicas e 59

sociais – abertas a homens livres de cor dão prova de que o padrão multirracial da categorização racial estava firmemente estabelecido muito antes de 1888. Pensamos que é no bojo destas situações que estão alojadas as certezas e plausibilidade da proposta sociológica que parte da natureza social das construções teóricas e sociológicas. A chave para a compreensão

dos

estilos

de

pensamento,

como

assevera

Karl

Mannheim (1963, 1986), estão situadas nas disputas políticas e no conjunto de interesses que perpassam a formatação de tais estilos. A seleção operada por Tobias, que culminou numa contundente reflexão sobre a natureza da cultura e da sua compreensão, pode e deve ser rastreada a partir do universo externo ao debate puramente intelectual e teórico. De um lado estava a restrita possibilidade fornecida ao mestiço de galgar um precário, porém inclusivo status. De outro se encontrava as inúmeras possibilidades de seleção de autores e pressuposições teóricas num momento marcado pelo autodidatismo. A mobilidade não se dava de forma tranquila. A afirmação de certas ideias era um embate a estas resistências. Era uma tensão intermitente entre o consagrado e o verossímil. A resposta a toda a esta sorte de questões se deu em torno da opção mais contundente, do ponto de vista lógico e de acordo com os interesses de uma demanda que rondava aquele contexto: a de entender o mestiço brasileiro e legitimar seu recorrente destaque no âmbito da nossa vida cultural.

SOCIOLOGIA E EDUCAÇÃO NO PENSAMENTO DE TOBIAS BARRETO Qual o efeito das indicações arroladas acerca da biografia de Tobias na silhueta de suas reflexões sobre a sociedade, a educação e suas relações? Curiosamente o início desta ventura deu-se com o 60

discurso intitulado A Educação da Mulher, proferido em 22 de março de 1879 na assembleia provincial enquanto deputado estadual pelo Partido Liberal. Versava sobre a defesa do projeto 61/79 que propunha um auxilio, a ser dado pelo governo da província, para que uma jovem pudesse estudar medicina nos Estados Unidos ou na Suíça. No polo diametralmente oposto ao de Tobias Barreto estava o médico e também deputado Malaquias Antônio Gonçalves. O contorno desta contenda tem início com fala de Tobias Barreto [1879] (1962, p.60-61) que indica o reconhecimento da dimensão social da relação desigual entre homens e mulheres, ao criticar a posição do Deputado Malaquias que advogava que a mulher estaria condenada por natureza a incapacidade e ao atraso mental. Conforme Tobias: [...] seria um pecado imperdoável contra o santo espírito do progresso, de um crime da lesa-civilização, da lesa-ciência [...] o de ficar aqui decidido, barbaramente decidido e assentado, que a mulher não tem capacidade para os misteres científicos, para os misteres que demanda uma alta cultura intelectual.

Tendo como referência as premissas da fisiologia humana em voga, o Deputado Malaquias pretendia demonstrar a inferioridade da mulher e atestar a sua dependência perpétua em relação ao homem, sobretudo, imputando às mulheres a condição de inaptas os estudos sérios. Tudo isto inscrito, como supunha, no próprio cérebro feminino. A questão da inferioridade da mulher era medida, por Malaquias, pelo peso do cérebro: O maior peso do cérebro é por si só uma prova de maior desenvolvimento? [...] como explicar o fenômeno: o cérebro de Byron, por exemplo, pesou 2.238g, e o de Dupuytren 1436g, um peso tal que oferece para com o primeiro uma diferença de 802g. ora, uma diferença tamanha no peso do cérebro deveria corresponder uma notável diferença intelectual entre os dois espíritos [...] mas isto não diz tudo [...] na pergunta que vou fazer, está a morte da teoria que combato: eis aqui o que vai mata-la: qual o peso normal do cérebro humano? Responde Malaquias: Há uma média. Uma média não é um peso normal. Peço ao nobre deputado que me dê o peso certo e determinado (BARRETO, 1962, p.72).

61

Para contrariar esses argumentos Tobias Barreto cita autoridades em medicina, principalmente alemãs, atestando a plena aptidão da mulher para o aprendizado e para o oficio. Invoca como exemplo a russa Nadeschda Suslowa, a primeira mulher a ser consagrada médica na universidade de Zurich em 1867 (Idem, p.66/71). Para Tobias, numa ambivalência típica dos intelectuais de então, não havia exagero algum em pensar a emancipação da mulher. Essa é uma das questões do nosso tempo, ressaltava. É um dos mais sérios assuntos da época, em toda a sua complexidade, e pode ser tratado sob três pontos de vistas distintos: o político, o civil e o social. Quanto ao primeiro, a emancipação política da mulher, confesso que ainda não julgo precisa, eu não a quero por ora. Sou relativista: atendo muito às condições de tempo e de lugar. Não havemos mister, ao menos em nosso estado atual, de fazer deputadas ou presidentas da província. (exclama um deputado: o Sr é oportunista) (Ibid. Idem, p.75).

Do ponto de vista civil argumenta ser necessário emancipar a mulher do jugo de velhos prejuízos, legalmente consagrados. O diagnóstico era de que as relações da família ainda eram dominadas e modeladas pelo influxo direto dos princípios bíblicos da sujeição feminina. Tobias: A mulher ainda vive sob o poder absoluto do homem. Ela não tem, como devera ter, um direito igual ao do marido, por exemplo, na educação dos filhos; curva-se como escrava à soberania da vontade marital. Essas relações deveriam ser reguladas por um modo mais suave, mais adequado à civilização. O Sr. Clodoaldo: com igualdade absoluta dos direitos é impossível família. Não compreendo a sociedade conjugal sem uma autoridade. Tobias retruca: esta autoridade estaria na lei. O que eu desejava, pois, era que a lei regulasse as relações de família de tal maneira, que não pudesse aparecer nem a anarquia nem o despotismo. O Sr. Clodoaldo: e é o que temos. Perdão, diz Tobias, nos temos o despotismo na família. Sr. Clodoaldo: não apoiado. [Malaquias retruca – perdão: estou nos braços da ciência]. Tobias exclama – engana-se; está com o catolicismo, está com São Paulo, está com os santos padres, que tinham dúvida sobre

62

a alma racional da mulher, como hoje se dúvida do seu cérebro [...] O deputado Gervásio Campelo interpela – então está salvo [1879] (Ibid. Idem, p.75-78)

Afirmar que a mulher não tem competência para os altos estudos científicos é além de um erro histórico, um atentado contra a verdade dos fatos, assevera Tobias. Ocorre que a partir do momento que a noção de cultura passou a ser percebida por Tobias como uma construção artificial utilizada no combate das intempéries impostas à condição humana, emerge a possibilidade de identificação no universo das relações sociais, a chave para compreensão dessa desigualdade. Para Tobias Barreto a mulher não teve no transcurso histórico, uma educação suficiente e dessa mesma falta de educação tem resultado para o sexo um tal ou qual acanhamento, chegando ao ponto de supor que ela não é suscetível de cultivar-se e ilustrar-se da mesma forma que o homem (Ibid. Idem, p.81). A procura de um maior ou menor grau de desenvolvimento entre os sexos deve levar em consideração a educação incompleta, a cultura escassa da mulher. Até hoje educação só e só para a vida intima, para a vida da família, ela chegou ao estado de parecer que é esta a única missão, que nasceu exclusivamente para isto. E tal é a ilusão, em que laboramos: tomando por efeito da natureza o que é simplesmente um efeito da sociedade, negamos ao belo sexo a posse de predicados que alias, ele tem de comum com o sexo masculino (Ibid. Idem, p.82).

Já existe, nesse momento, um creditável argumento que notadamente foi de encontro a algumas das pressuposições vigentes que legitimavam e explicavam as questões de gênero a partir de prismas naturalístico. A ossatura dessas pressuposições, que culminará na crítica à sociologia, será edificada e depurada em seus escritos subsequentes. Segundo a delimitação de Antônio Paim (1966) e Paulo Mercadante (1990, 2006) o ano de 1882 marca, na trajetória das 63

inquietações teóricas de Tobias Barreto, o inicio do ciclo de adesão ao Neokantismo. Embora a relação com o pensamento Alemão tenha vindo de antes, foi somente a partir do concurso realizado neste ano que Tobias manifestou abertamente sua posição anti-sociológica. A indagação apresentada pela congregação da FDR fora a seguinte: conforma-se com os princípios da ciência social a doutrina dos direitos naturais e originários do homem? Essa pergunta foi respondida tendo como referência a pressuposição teórica que acenava para o fato de que o fenômeno jurídico deveria ser compreendido como construção cultural humana. Conforme Tobias Barreto [1882] (1977, p.285) a concepção de um direito superior e anterior à sociedade é uma extravagância da razão humana, que não pode se justificar. O homem é um ser histórico. Acreditava que um direito natural e não relativizado seria impensável. O direito oscila e varia no espaço e no tempo. A etnologia nos mostra que as diferenciações que produzem raças, trazem diferenças nos costumes, nas leis, nas instituições das mesmas raças, e história confirma essa asserção. A educação, a Arte, a Ciência, a Religião e o Direito, assim como outras instituições humanas, eram produtos da cultura humana. Os direitos considerados como naturais e inalienáveis, tais como a vida, a propriedade, à liberdade nunca existiram fora da sociedade; foi esta que os instituiu e os consagrou (Idem. p.286). O direito, incorporando a reflexão de Rudolph Von Jhering (2001), é definido como um complexo de condições existenciais da sociedade, asseguradas por um poder público. Como esse poder público que garante os direitos não é natural, pois é criado pelo homem, nenhum direito pode preexistir a ele. Conclui Tobias Barreto (1977, p.287) que: A teoria de semelhantes direitos não é somente inarmonizável com os referidos pressupostos, mas até sucede que a sua permanência é um obstáculo à sociologia. Platão disse: não a ciência do que passa; a moderna teoria da evolução inverteu

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a proposição e redarguiu ousada: só a ciência do que passa, por que a história só se ocupa do que passa, e todas as ciências caminham para tornar-se preponderantemente históricas.

Serpente que não devora serpente não vira dragão, eis a essência do fenômeno jurídico conforme Tobias Barreto. O direito tem sua origem na transformação da força [...] que limitou-se, e continua a limitar-se no interesse da sociedade. Desta força conservada e desenvolvida, é que tudo tem-se produzido, inclusive o próprio direito, que em última análise não é um produto natural, mas um produto cultural, uma obra do homem mesmo (Idem, p.287).

As Glosas heterodoxas a um dos motes do dia ou variações antisociológicas [1881] é um texto mais denso que a dissertação para o concurso e mais significativo para o debate que gravitava em torno dos limites do conhecimento sociológico nos termos darwinistas e positivistas. Ele tece críticas à ideia de transposição dos modelos de explicação e entendimento das ciências naturais para a o entendimento dos fenômenos sociais. A sua reflexão estava endereçada a dois pilares do organicismo em voga. No primeiro instante refuta o determinismo que advogava a lei da causalidade e desprezava a volição nos assuntos sociais humanos, e em um segundo momento, vai de encontro às suposições de que os fenômenos sociais pudessem ser regidos pelo império inescapável das leis. A partir daí, a crítica ao positivismo ocorre em torno do conceito de sociedade e de cultura. Era impossível explicar a sociedade a partir da analogia a organismos vivos ou acreditar que sua dinâmica fosse alimentada por mecanismos involuntários inscritos institivamente nos sujeitos. As anomalias da vida social, que são a verdadeira vida do homem, são transgredidas a partir de formas de seleção que purificam os homens. A seleção jurídica e as outras formas de seleção (estética, 65

educativa, moral etc.) constituem um processo geral de depuração que caracteriza o grande progresso da cultura humana. A sociedade, como produto da cultura é um sistema de forças que lutam contra a própria luta pela vida. Ela depura e retira o homem de sua condição animal. Logo, a seleção dos aptos e dos normais, não poderia ser feita a partir de algumas instituições sociais, como asilos para mentecaptos, doentes e leis de socorro aos indígenas, como sugeria Gustave Le Bon. Advogava Tobias que a teoria que postula a normalidade da eliminação natural dos fracos diante dos fortes e dos enfermos frente aos sadios, acataria tranquilamente a ação do homem robusto e vigoroso, que em luta com o raquítico e inválido, chega a matá-lo. Entregar os míseros à sua própria miséria, deixar que morram de fome os que não podem conquistar pelo trabalho os meios de subsistência, e deste modo correr para o depuramento da sociedade, se isto é seleção, seria mil vezes mais bárbara do que a velha seleção espartana; e como precisa de um nome, que a caracterize, - pois que Esparta já não existe, bem pudera qualificar-se de seleção inglesa (Ibid.Idem, p.214).

Outro aspecto relevante desenvolvido por Tobias no que concerne a crítica a sociologia diz respeito ao fato da crença em uma disciplina denominada sociologia proceder do reconhecimento que as ciências naturais detinham. Afirma que os sociólogos, que em regra são espíritos tomados de admiração pelos progressos e conquistas das ciências naturais, entendem que nada há de mais fácil do que construir a sua sociologia, aplicando-lhe unicamente o método naturalístico, isto é, observando e induzindo. A ilusão é compreensível, mas não desculpável (Ibid.Idem, p.261). A crítica de Tobias neste momento do texto é dirigida a Paul Von Lilinfield (1828-1903), famoso sociólogo russo partidário e defensor do organicismo. Partindo do pressuposto, diz Tobias, de uma analogia real e positiva da sociedade com a natureza, como opina o sociólogo, a

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primeira

confrontação

a

estabelecer

entre

os

dois

ramos

da

embriologia, deve ser nestes termos: [...] assim como, nos estádios superiores da evolução embrionária do individuo, desaparece a cauda do primeiro período, assim também, nos estádios superiores da vida do embrião social, desaparece [...] o que? [...] Hic haeret aqua. O que, com efeito, corresponde à pequena cauda, ao rabinho do homem, e que em seguida acaba-se de todo? Ninguém sabe (Ibid.Idem, p.269).

Conforme Tobias: A teoria é bonita demais, para ser verdadeira. Efetivamente: um menino de cinco anos, nascido em uma das nossas grandes cidades, que brinca sobre o tapete de nossos salões, não pode apresentar os mesmos sinais de rudeza mental, que apresenta a pobre criança, da mesma idade, filha do alto sertão, ainda meio “alali”, que mal começa a conhecer e distinguir seus pais. Iguala-los é um disparate, que repugna à observação e o bom senso (Ibid.Idem, p.270).

Demonstrando uma estratégica sensibilidade para contrariar o critério empírico naturalista presente nos estudos de Lilienfield, apresenta a dimensão cultural e social como relevante para pensarmos os homens em sociedade. Encerra o texto convidando-o para visitar o Brasil para constatar que o determinismo racial não vinga e que este país é um sintoma de que os preceitos inexoráveis da sociologia de então, que advogava o malogro das raças inferiores em seus climas tropicais, encontra seus limites nas evidências aqui fornecidas. Segundo Tobias Barreto: Quanto ao ponto relativo às raças, isso é apenas o efeito de uma outra mania do nosso tempo: a mania etnológica. Eu quisera que Lilienfeld viesse ao Brasil, para ver-se atrapalhado com a aplicação de sua teoria ao que se observa entre nós. As chamadas raças inferiores nem sempre ficam atrás. O filhinho do negro, ou do mulato, muitas vezes leva de vencida o seu coevo de puríssimo sangue ariano [1877] (1962b, p.270-271).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

67

O apego à cultura germânica, cujas raízes remontam a uma índole social, ou seja, a possibilidade que emergia do espaço fornecido ao mestiço na sociedade brasileira, concorreu para que Tobias buscasse reflexões sobre a natureza dessa sociedade e da possibilidade de pensar o seu reconhecimento naquele contexto. Não incorporou o repertório positivista, apenas no início de sua jornada na FDR, pois essa vereda inevitavelmente condenaria as conquistas que a sua singular biografia colheu no transcurso de um período marcado pelo silencioso orbe da escravidão. Assim, nos autores alemães encontrou a resposta paliativa para acalentar suas angústias ante um sistema social iníquo. Talvez

possamos

auferir

uma

dose

representativa

de

sua

percepção sociológica e dos fatores que delimitaram e impulsionaram seu esforço intelectual, se observamos essa afirmação de Tobias Barreto (1926, p.286): não sou bastante forte para fazer à minha imagem e semelhança a sociedade em que vivo; mas esta, por sua vez, não é também bastante forte para me levar em sua corrente. Daí uma eterna irredutibilidade entre nós. A contribuição singular de Tobias Barreto à sociologia naquele momento esteve vinculada à possibilidade de fornecer um status científico e filosófico a pressuposição que advogava que as razões dos males do Brasil não estavam inscritos nas dimensões humanas naturais e sim, na forma como a cultura possibilitava a seleção e estímulo dessas dimensões. Neste contexto, a educação passou a ser tida como elemento embrionário para pensar a sociedade brasileira e as possibilidades e/ou razões de seu malogro, uma vez que suas escolhas teóricas já não mais possibilitavam deduzir que a raça fosse um fator mais determinante ou mais importante que a cultura para o entendimento da sociedade e de sua configuração.

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NA TRILHA INTERIOR, DUAS FLORES AZUIS EM BUSCA DO QUE É SUFICIENTE Lívia Maria de Oliveira5 Karlla Christine Araujo Souza6

Resumo: Este artigo trata de uma leitura sobre a natureza humana em sua analogia às flores do sistema floral de Bach. O fio condutor da discussão é a descoberta de duas das 38 flores do sistema Bach, suas expressões arquetípicas e sua interface com duas manifestações do temperamento humano: a hesitação e a autopiedade. Propõe uma reflexão sobre o que é suficiente a partir dos estados descritos sobre as duas flores azuis em análise (Cerato e Chicory) e a dimensão do sacrifício pessoal por amor ao outro, presente numa das fábulas de O Dom da História de Clarissa Pinkola Estés. Indaga-se sobre aprendizado de autoconhecimento pelas flores e o que é suficiente em nossas relações. Conclui que a primeira lição a partir das flores é o respeito pela nossa própria condição humana: a ambivalência, a insegurança, o egocentrismo, as carências, as mentiras/máscaras, o autoengano. Outra lição é a iluminação das zonas escuras de nosso subconsciente e a libertação de nossas possibilidades criadoras entendida como o amor, aquilo que é necesário para nos expressarmos plenamente em nossas trajetórias pessoais.

Palavras-Chave: Florais de Bach. Autoconhecimento. Amor. Condição humana.

SOBRE O NOSSO ROTEIRO Antes de seguir, repare o contexto em que você se insere nessa trilha. Nela seguimos você e eu rumo ao interior em busca do que é suficiente na companhia de duas flores azuis. Temos ainda outros participantes que nos inspiraram a seguir por ela. Apresento a você o Dr Edward Bach, médico alopata inglês, que se tornou homeopata e concluiu sua missão como herbalista. Guiado pela sua sensibilidade 5

Graduada em Serviço Social (UERN), Mestrando do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH/UERN). Integrante do Grupo de Pesquisa do Pensamento Complexo (GECOM/UERN). [email protected]. 6 Graduada em Ciências Sociais (UFPB), Mestra em Sociologia (UFPB) e Doutora em Sociologia (UFPB). É professora Adjunto II (UERN), Professora do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH/UERN). Vice-Líder do Grupo de Pesquisa do Pensamento Complexo (GECOM/UERN). [email protected].

72

com as questões humanas e pelo desejo de conhecer como os temperamentos humanos e estados emocionais influenciavam no processo de adoecimento e de cura dos seus pacientes, dedicou os últimos anos de sua vida a descoberta da cura da alma a partir das flores. Em sua trajetória de vida foi bacteriologista, desenvolveu vacinas, exerceu a medicina convencional, mas sua maior realização foi a “descoberta” das 38 flores consagradas como os Florais de Bach. A partir dos anos de 1930, após abandonar a medicina convencional, dr. Edward Bach começou a sentir em seu ser os estados emocionais que o levaram a intuir cada uma das 38 flores ou flower remedies

e

sua

atuação

nos

diversos

estados

emocionais

e

temperamentos humanos. Ele foi o precursor do que conhecemos hoje como Terapia Floral. A partir de então deixou como legado para todos aqueles que buscam a consciência e a cura de si mesmos, sua filosofia de autoconhecimento a partir da vibração das flores, para auxiliar no processo chamado por ele e por muitos de a cura da alma. A ação energética de cada flor sobre o ser humano foi intuída a partir de um estado emocional vivenciado pelo próprio dr. Bach naquela época. A partir da ressonância com os estados emocionais inerentes à condição humana, a vibração sutil de cada uma das flores, surge como força da natureza capaz de nos impulsionar à luz no momento em que vivenciamos estados de desarmonia interior. Por essa razão nas descobertas do dr. Bach existem as flores para doze tipos básicos de temperamentos humanos (Os doze curadores), para os estados cristalizados pelas experiências da vida (sete auxiliares) e para os estados circunstanciais e cíclicos da vida(19 complementares), formando um repertório de 38 essências vibracionais para aqueles que buscam conhecer-se. Em sua filosofia a expressão cura-te a ti mesmo é a mais emblemática e título de um dos poucos escritos que ele deixou de seu trabalho. 73

Agora te apresento a Clarissa Pinkola Estés em seu livro O Dom da História que nos fala um pouco da essência dessa “cantadora de histórias” que ao meu ver, inspira a muitas pessoas com sua simples e essencial indagação, o que é suficiente? Em O dom da História há uma fábula que particularmente me inspira a integrá-la em nossa trilha interior. Trata-se da estória de um casal em tempos difíceis em seu país, que anelavam cada um expressar seu amor um ao outro. Comprar um presente

especial

apareceu

como

uma

forma

de

traduzir

a

profundidade do amor de ambos. Acontece que cada um para poder dar o melhor presente decide desfazer-se de algo precioso e valioso para si. No fim da estória, quando os presentes são entregues, nenhum deles terá mais utilidade visto que, os finos pentes para os longos cabelos da amada já não podiam penteá-los, pois suas madeixas ela vendeu em troca da linda corrente para o relógio de seu amado que o teria também vendido em troca dos pentes. Por isso a indagação o que é suficiente em nossas relações, em nossas experiências e na expressão e renovação do amor? Em

nossa

viagem

em

busca

do

que

é

suficiente

nos

acompanharemos de duas flores azuis: Cerato e Chicory. Elas são duas das flores dos 12 curadores do sistema floral de Bach. A cor azul as une nesse passeio, mas sua expressão enquanto seres a separam e até as colocam em conflito.

PELOS JARDINS DE CROMER7 É verão na Inglaterra e estamos passando pela região de Cromer, próximo ao litoral. Sinta a brisa suave vinda do mar e os primeiros raios do sol. São sete horas da manhã, estamos num imenso jardim. Aqui está 7

Cromer é uma cidade que se localiza no litoral leste da Inglaterra e foi o local onde o Dr. Bach encontrou grande parte das flores de seu sistema de auto-cura.

74

Cerato, repare em seu azul semelhante ao azul do céu em uma manhã ensolarada, com alguns raios de cor branca, dando um aspecto resplandecente do interior para fora de suas pétalas. Cerato chegou do Tibet a Inglaterra a partir de um negociador de plantas e é comumente cultivada em jardins e parques. A flor abre-se pela manhã com um movimento de espiral e se fecha pela tarde reproduzindo o mesmo movimento e então murcha, concluindo sua existência. A pessoa que expressa

um

temperamento

Cerato

é

hesitante

e

deseja

a

comprovação externa sobre suas próprias opiniões. Pede conselho não por que não tem sua própria decisão, mas por não confiar no seu próprio direcionamento interior. Por essa razão o temperamento Cerato em seu estado negativo, frequentemente sente o amargor da consequência de ter tomado uma decisão errada por não ter ouvido a si próprio e ter seguido opiniões de outrem. É intuitiva, mas não confia em si, sofre de indecisão e por isso pode colocar-se constantemente em situações de desrespeito próprio, por ser mal aconselhada. Pode viver o dilema de não se encontrar, não saber qual sua identidade e até copiar os outros. Apesar disso não é tola, pode ser mestre ao confiar na sua sabedoria, isto é, ao aceitar sua voz interior, a devida comunicação entre a personalidade e a alma. Em seu ambiente natural, nas montanhas de solo calcário do Himalaia, cerato cresce sobre as rochas, suas raízes a sustentam apesar da adversidade dessa condição. Uma analogia a sabedoria profunda que vem das raízes, da profundidade da sua alma para expressá-la em sua personalidade. Azul, de pétalas irregulares que parecem retalhos de tecidos com pontas serrilhadas, esta é Chicory, flor que assim como Cerato só dura um dia. O temperamento Chicory é afetivo, gosta de gente a sua volta, envolve e cuida de todos. Porém, em seu estado negativo sente-se mal reconhecido pelos outros a quem doa ou emprega seu afeto. Sofre de 75

sentimentos

de

autopiedade

e

pode

manipular

por

meio

de

chantagem emocional àqueles a sua volta, pois não sabe entregar seu amor sem desapegar-se da retribuição. Uma pessoa de temperamento tipo Chicory, no fundo não sabe doar o seu amor incondicionalmente e por isso tende a manipular e a exercer influência sobre os outros para garantir que todos permaneçam ao seu redor. A definição do gestual da planta comunica algo sobre a sua essência, Julian Barnard em seu livro Remédios Florais de Bach: Forma e Função, faz uma leitura do gestual dessa planta e suas correspondências ao comportamento humano. Ele diz: As folhas são simples e irregulares, uma diferente da outra, mas com uma clara nervura central que dá sentido e estrutura. Chicory é absoluta, mas finge ser mutável no exterior. Pessoas Chicory sabem o que é melhor para todos, corrigindo e criticando aqueles em seu redor. As primeiras folhas surgem próximas ao chão e brotam da raiz, espalhando-se horizontalmente para evitar que outras plantas cresçam; elas se apossam da luz. (2012, p.106)

A tendência de manipular desse tipo de temperamento reside no fato da sua própria contradição: ser afetuoso, mas sentir o vazio da retribuição, não ser suficiente doar o amor e o cuidado que dispõe em relação aos outros. Para esse temperamento diante do amor que tem a oferecer o seu dilema é saber doá-lo sem o conforto da retribuição. Isso por que naturalmente nem todos ao seu redor dispõem da mesma capacidade de afeto. Uma pessoa Chicory sente a necessidade de controlar os outros e em seu estado negativo pode tornar-se amarga e fazer dos que convivem com ela, vítimas de suas necessidades. Julian Barnad faz uma relação entre o leite branco que dela escorre como uma característica venenosa das plantas e a expressão típica de mães injustiçadas e amarguradas. A autopiedade é então uma de suas estratégias manipulativas que manifestam que essa pessoa não está em seu equilíbrio, não está em harmonia com seu propósito interior diante da 76

sua própria condição enquanto ser humano e sua realização junto aos outros. Na classificação dada pelo dr. Bach esta flor está no grupo dos florais que auxiliam as pessoas que se preocupam excessivamente com o bem - estar dos outros. Por isso o descompasso interior, a necessidade de equilibrar sua própria natureza.

A HESITAÇÃO DE CERATO E A AUTOPIEDADE DE CHICORY

Parto de minha compreensão pessoal de que o suficiente parece ser aquilo que falta ou que é sublimado, invisibilizado em nós e por nós mesmos sobre nossa existência. A pergunta o que é suficiente nos leva antes ao silêncio do não saber ou reconhecer que não nos movemos pelo o que é suficiente. Perdemo-nos em labirintos em busca de nós mesmos. Quando se trata do que é suficiente em nossa existência há quase que um movimento automático para o outro. O suficiente parece não poder existir em nós mesmos e por isso nos remetemos às relações,

nos

lançamos

nelas

e

buscamos

a

partir

delas

o

preenchimento desse espaço. Mas por que ser tão intuitivo se não se sabe confiar em si próprio, se há a necessidade dos outros para nos dar confirmações? E como ter uma natureza afetuosa a oferecer e sofrer de tanta carência afetiva? Por que tanta necessidade de reconhecimento e retribuição? Seria aquilo que não sabemos ser o suficiente para um dia sermos plenamente realizados? Nesse ponto nos voltamos para a frequência vibratória das flores, cada uma tem a sua própria essência vibracional. Por essa razão 77

apesar de suas semelhanças cada espécie se manifesta e se relaciona com o seu meio natural de seu modo próprio. E os outros são referências importantes para o seu reconhecimento enquanto ser. Refiro-me à condição de cada flor, das suas possibilidade de ser. Mas isso nos remete também aos seres humanos. Cerato jamais se relacionará com o mundo como Chicory, mas as duas haverão de se relacionar e aprender com isso. A questão é como a hesitação de um cerato pode leva-lo

diante

de

um

chicory

afetuoso,

porém

com

atitudes

manipuladoras e de autopiedade? Chicory exige do outro o que pode ser um sacrifício para ele. Um companheiro, amigo, amante, filho seu, pode não ter o mesmo afeto a oferecê-lo ou a sua tradução para o outro não se basear no sacrifício de si como prova desse afeto. Uma personalidade manipuladora pode provocar uma intensa alteração na trajetória de uma personalidade hesitante. Mas o que uma pessoa Cerato pode aprender com uma Chicory? A expressão “Maria vai com as outras” pode significar uma pessoa hesitante e indecisa diante da onda de entusiasmos alheios, externos ao seu caminho, ao seu projeto existencial. Uma mãe cuidadosa e atenta ajudaria a “Maria” a encontrar-se em sua própria identidade. Porém essa mãe cuidadosa em sua veia manipuladora poderia tornar o encontro e a afirmação da identidade de “Maria” um verdadeiro suplício em busca da liberdade. Julian Barnard, nos explica o dilema que alguém pode viver ao lado de um Chicory diz ele: “[...] as vítimas de sua necessidade de controle podem iniciar um embate violento por liberdade. Em termos do remédio, o tipo Chicory positivo ama sem restrições, dá liberdade sem vínculos obrigatórios e a benção da harmonia celestial das flores azul celeste.”( 2012, p.108). Remeto-me agora a fábula de Clarissa Estés e percebo a dimensão do sacrifício presente nas atitudes da moça de cabelos 78

longos que decide perde-los para proporcionar ao seu amado a expressão objetivada do seu amor. Isso nos leva a compreender os gestos como expressões daquilo que nem sempre conseguimos manifestar com palavras. É quando o sentimento não cabe na palavra, quando ela não é suficiente para exprimir o que é tão sutil e verdadeiro. Mas será que para as pessoas de temperamento chicory não é suficiente a palavra ou os pequenos gestos? Será que elas não conseguem conceber o amor sem o sacrifício alheio? Mas até onde isso revela algo que ela é em si mesma? Mais uma vez, Julian Barnard nos aponta a resposta no gestual da planta: “é uma planta com penugem,[...] A penugem mais uma vez, denota sensibilidade. Mas a sensibilidade do tipo Chicory é mais um sentir para dentro e não um olhar para fora”( 2012, p.106). Certamente o amor em um ser que o objetiva nas suas relações, o fará dessa pessoa necessária ao seu redor. Muitos precisam do amor, como impulso motivador, como energia criadora. Mas por que nem todos são dotados dessa mesma bagagem é que necessitam das reservas dos outros em tal capacidade. É possível que Cerato tenha muito a aprender sobre o amor, em seu exercício diário, aquele que se expressa em cuidados, em atenção e zelo pelos outros. Quanto ao que Chicory pode aprender com cerato percebo a dimensão da sabedoria interior como alento para enfrentar as dores existenciais. Enquanto a primeira se ocuparia excessivamente em como se sente diante dos acontecimentos que a ferem em sua particularidade, a última se ocuparia de entender qual a lição a ser aprendida com tais acontecimentos. Se vissem um filme, ou lessem o mesmo romance uma se focaria nos sentimentos e emoções suscitados a outra na “moral da história”.

79

CHEGAMOS A UM PONTO DA INFINDÁVEL TRILHA INTERIOR

Até aqui o que as flores nos ensinam sobre a nossa condição humana? Para mim a primeira lição é o respeito pela natureza própria de cada uma, a ambivalência, a insegurança, o egocentrismo, as carências, as mentiras, o auto-engano, a luz e a sombra... O reconhecimento de tais atitudes é um passo para a abertura da percepção do amor como um bálsamo e energia criadora que transmuta as sombras do nosso ser em luz de realização. Mas a realização não se dá no eu em isolamento. Ela necessita do outro e é só com a manifestação do outro que se pode movimentar a energia criadora. Pode ser que o amor seja a emoção que mais nos afaste do nosso ego enquanto escudo de autodefesa perante os outros. Os Florais de Bach ajudam na iluminação das zonas escuras, aspectos não conhecidos por nós sobre nosso eu. Ao aceitarmos a nossa própria condição, nossos espinhos, nossos terrenos tenebrosos do inconsciente, caminharemos para a transmutação das sombras em luz de autoconhecimento. Por consequência o nosso movimento na direção do outro, renova-se como resultado de nossa postura perante nosso próprio ser, o amor próprio que desdobra em manifestação de amor para o outro, uma expressão genuína, uma centelha da energia cósmica criadora e eterna. O que liga você e eu a energia sutil das flores é a trilha que iniciamos em busca de nós mesmos, na filosofia de Dr Eduard Bach é a busca pela harmonia entre a personalidade e a alma. Para ele a Alma é a nossa essência cósmica ou divina, o nosso eu verdadeiro e a personalidade a sua manifestação na vida. Cura seria então, o

80

resultado do conhecimento de si, de nosso propósito de realização no aqui agora da terra e nossas condições para tal. Quando a clareza do propósito interior de nossa existência é capaz de elucidar a compreensão dos nossos caminhos, dilemas e possibilidades, podemos experimentar a harmonia entre a alma e a personalidade. Quando a moça de longos cabelos decide em lágrimas vendelos com a intensão de presentear o seu amado e ele também decide vender seu relógio de herança, manifesta-se na objetividade dos presentes (pentes finos para os admirados cabelos da amada e corrente lustrosa para o relógio do amado) o gesto de doação de si na direção do outro, o ceder-se e conceder-se para o outro. Esta é uma das expressões do amor. Os presentes são a imagem do sacrifício, apenas pretextos objetivos para movimentar a energia mais íntima, genuína e subjetiva. E assim se estabelecem os laços de continuidade criadora, a renovação do encontro entre os dois personagens da fábula. Essa é a minha percepção da sabedoria contida nessa fábula. Haverá muitas outras e você certamente terá a sua própria. Esteja livre para criá-la. Eu continuo a dizer que o amor é o que cria as possibilidades para que se desenrole a narrativa de nossas existências e por essa razão essa trilha é infindável. Infindável também por que são infindáveis as possibilidades de nosso eu, ele pode movimentar-se de inúmeras formas rumo a sua realização e rumo ás suas próprias criações. Acredito que o amor seja o suficiente e por isso há tantas criações pelo mundo a fora, por isso existem tantos poetas, tantos romancistas, tantos cantadores de histórias, tantas melodias compostas e tantos cientistas, estudiosos, pesquisadores... Quando não temos criamos nossos objetos de afeição àquilo sobre o qual projetamos nosso impulso de amor. Já quanto as flores azuis e seus embates, você deverá conhecer inúmeras destas, deverá ter reconhecido alguém próximo ou até a si 81

próprio na vibração natural das flores. Cada um de nós pode vibrar em inúmeras frequências durante uma vida toda, mas haverá alguma flor que traduz melhor os padrões de nosso comportamento, aquilo que deveremos trabalhar durante nossa existência e que será espelhado pelos outros em nossas relações. Paro nesse ponto da trilha e deixo você livre para seguir sozinho por ela ou criar a sua própria, descobrir outras flores, outras cores e formas, outras fábulas, outros contos e cantos, mas que o acesso seja você a você mesmo e assim crie, assim ame e assim atinja a expressão máxima da sua existência: floresça!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BACH, Edward. Os remédios florais do dr. Bach.Tradução de Alípio Correia de Franca Neto. 19 ed. São Paulo: Pensamento.2006. BARNARD, Julian. Remédios Florais de Bach: forma e função. São Paulo: Healing Essesncias Florais,2012. BARNARD, Julian. The Twelve Healers. Doze películas que exploram a relação entre plantas e pessoas. Julian Barnard MMV. ESTÉS, Clarissa Pinkola. O dom da história: uma fábula sobre o que é suficiente. Tradução: Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. VIEIRA FILHO, Henrique Vieira. Florais de Bach: uma Visão mitológica, etimológica e arquetípica. São Paulo: Pensamento. 1996

82

MEDIANERAS: UMA ANÁLISE ESPACIAL DO(S) EU(S) Érica Verícia Canuto de Oliveira Veras8 Fagner Torres de França9

Resumo: O presente artigo tem o objetivo de analisar aspectos do filme argentino Medianeras (2011), a partir de algumas formulações conceituais indicadas nos capítulos II e III do livro Esferas III, do filósofo alemão Peter Sloterdijk. Entre elas, a ideia de que, como sistema de imunidade, o apartamento individual é um exitoso projeto arquitetônico representativo do individualismo moderno. A partir dele, é possível conhecer a vida do sujeito na configuração atual da sociedade, na qual o indivíduo, isolado, dedica-se a entabular relações e experimentações com a própria subjetividade, prescindindo, de certa forma, do Outro real. Nesse contexto, pensaremos a transposição dos topos coletivos para o individual, centrado na ideia do apartamento como célula-habitação. Palavras-chave: arquitetura; modernidade, individualismo; Medianeras; Peter Sloterdijk.

INTRODUÇÃO Deixamos de apreender a possibilidade do encontro, se destruímos a imagem daquilo que procuramos. P. Sloterdijk.

Se no livro Esferas I - Bolhas, Peter Sloterdijk descreve o espaço da vida por meio do entorno de nosso ser-juntos, com base nos casais, pares, e não no indivíduo, a partir de uma necessidade básica que temos de construir a nossa própria habitação, permitindo ao ser o convívio com diversidade a partir do seu próprio habitat; e no Esferas II – Globo, encontramos a análise do espaço vivido e habitado em estado de expansão, uma ocupação imperial-cognitiva do mundo, que podemos chamar de metafísica, onde a existência local se integra na

8

Graduada em Direito (UFPB), Mestra em Direito (UFBA). Professora Titular da UFRN e Promotora de Justiça do Ministério Público do RN. 9 Graduado em Comunicação Social (UFRN), Mestre em Ciências Sociais (UFRN). Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (UFRN).

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esfera absoluta, inflando-se até a direção da esfera-todo; no Esferas III – Espumas, mais calcado na compreensão da atualidade, destaca-se uma visão não metafísica e não holística da vida, que se desenvolve de maneira reticular, hipermidiática e heterárquica. As perdas de formas são substituídas por comunicação em mobilidade10. Para Sérgio Bairon (2010), o totalitarismo das esferas globos cede espaço para o surgimento das esferas espumas como experiências estéticas de voos mais discretos, num fazer-se entre si envolto em uma relação atravessada por inumeráveis unidades existenciais. Portanto, trata-se de forjar a consciência universal de uma construção mútua do ambiente social. Para Gabriel Tarde (2007), com quem também dialoga Peter Sloterdijk no último tomo de seu projeto, o que conta não são os indivíduos, mas as relações infinitesimais de repetição, oposição e adaptação que se desenvolvem entre ou nos indivíduos, ou melhor, num plano onde não faz sentido distinguir o social e o individual. Seu objetivo é substituir o grande pelo pequeno, as totalidades e as unidades pelas multidões, os átomos, os indivíduos, mas isso apenas no contexto em que, na ação, cada mônada já é multidão, pois cada qual contém em si todas as outras. Tal substituição, ou seja, a saída do monocentrismo metafísico para o estabelecimento de uma relação dialógica entre o todo e as partes,

cuja

implicação

última

é

a

constatação

da

própria

provisoriedade do mundo, a condição movediça do ser, da linguagem, dos sentidos, da verdade, das experiências, do real, tudo isso torna patente a ideia de que co-participamos da construção social da realidade, a qual antes delegávamos a um ser superior doador do sentido último da vida. Em O sol e a morte (2007), Sloterdijk constata que quase nunca estamos “no mundo”, à margem das circunstâncias, mas normalmente

10

BAIRON, Sérgio. A comunicação nas esferas, a experiência estética e a hipermídia. Rev. USP, São Paulo, n. 86, ago. 2010 . Disponível em . acessos em 29 jun. 2012.

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em uma bolha, num lugar determinado e acordado, num lugar dotado de sua peculiar dilatação esférica. O que significa dizer que ser é também ter, ser é estar em algum lugar, retomando a velha fórmula existencialista de que a existência precede a essência. Nesse sentido, à clássica pergunta de quem somos?, talvez pudéssemos substituir pela questão de sabermos sobre onde estamos na realidade?, isto é, uma definição topológica do homem, a fim de fornecer “uma nova filosofia da localidade que, em analogia com a segunda tópica freudiana, que distribui o espaço anímico em três campos, Id, Ego e Superego, quer oferecer uma orientação filosófica à pergunta: onde está o homem?” (p. 119). Como detentores de um intenso segredo relacional, Sloterdijk acredita na existência humana apenas como polos de esferas, partículas, os pares e seus prolongamentos, enfatizando assim a dividualidade do ser, em detrimento de sua individualidade. De modo que

não



como

comunicabilidade,

imaginar

interação,

uma

algum

vida tipo

sem de

interfacialidade, cooperação,

de

construção mútua de sentidos e de espaços. Segundo Marc Augé (2006), o espaço é um lugar fortemente simbolizado, “no qual podemos ler, em parte ou em sua totalidade, a identidade dos que o ocupam, as relações que mantêm e a história que compartilham. (...) um universo de reconhecimento, onde cada um conhece seu lugar e o dos outros” (p. 107-8). Gaston Bachelard, em A Poética do Espaço (1993), afirma que “a casa é o nosso canto do mundo. Ela é nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos” (p. 25). E diz ainda: “Todo espaço realmente habitado traz a essência da noção de casa”. Para ele, “Sem a casa, o homem seria um ser disperso, pois é ela o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser ‘jogado no mundo’ (...) o homem é colocado no berço da casa. A topoanálise seria então o estudo psicológico dos locais da vida íntima” (p. 26). Para Bill Bryson, “tudo que acontece no

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mundo ecoa na casa. As casas não são refúgios contra a história. É nelas que os fatos históricos vão desembocar” (p. 19). Com base nesse quadro é possível, portanto, pensarmos os modernos lugares a partir dos quais se orientam as noções atuais de subjetividade, identidade, relação, cooperação, entre outras, ou seja, os espaços construídos por nós e por meio dos quais interagimos com nós mesmos e com o mundo.

EU: UMA ANÁLISE ESPACIAL

Através da análise dos espaços modernos de moradia, as célulashabitação ou egosferas, ou seja, por meio de uma topoanálise, talvez seja possível compreender, por alguns aspectos, a constituição do divíduo na sociedade moderna e sua forma de atuação no mundo, além de sua relação com si e os demais, pois a explicitação da existência co-isolada por meio das unidades habitacionais chamadas apartamentos,

munidos

de

seus

aparatos

técnico-existenciais,

proporciona um deslocamento de perspectiva em relação às demais bolhas-abrigos, notadamente construídas sobre outros pilares. Nesse sentido, a construção crescente dos apartamentos, um dos maiores êxitos arquitetônicos do século XX, como bem nota Sloterdijk, segue uma das tendências sociopsicológicas mais amplas de nossa época: a liberação de indivíduos, que vivem sós, mediante técnicas habitacionais e midiáticas individualizantes. O mito do apartamento emerge, assim, “como análogo arquitetônico e topológico do individualismo da sociedade moderna” (SLOTERDIJK, 2006, p. 433), lugar onde o cidadão, livre de amarras, imerso no fluxo de capital, dedica-se ao cuidado consigo mesmo. Mesmo sendo, como dito, uma tendência moderna, os atuais edifícios residenciais, apesar da armação de concreto e aço, guardam 86

sua semelhança com a metáfora da espuma. Nesta, os espaços preenchidos de ar são co-isolados, divididos por paredes em comum, de modo que a sobrevivência de uma das células depende de todas as outras, irmanadas numa relação de co-dependência. Da mesma forma, a “sintaxe de uma casa” permite mais que um mero empilhamento de unidades, pois, para que funcionem, necessitam dos corredores, janelas, escadas, elevadores, enfim, uma estrutura capaz de possibilitar a comunicação com os demais habitantes e com o mundo, além das próprias paredes divisórias, cujo limite demarca também o do outro. Mesmo assim, a bolha individual na espuma habitacional funciona como sala de operação de autocuidado do habitante consigo mesmo e como sistema de imunidade em um campo contaminado de conexões isoladas, a vizinhança (SLOTERDIJK, 2006, p. 438). Mas, para que possa servir de abrigo, é preciso que forneça todas as condições arquitetônicas e sanitárias mínimas de autonomia, pois o poder-viver-só não prescinde das técnicas e próteses, em suma, das extensões de conforto da “clausura”, que permitam a intra e a interfacialidade. Na ausência de algumas dessas condições, a célula habitação pode transformar-se em incubadora de patologias sociais. É o caso, por exemplo, dos antigos conjuntos habitacionais citados pelo autor, cuja precariedade do isolamento acústico não permitia o que, citando Le Corbusier, ele vai chamar de “ventilação psíquica”, ou seja, a capacidade de regular a entrada do som, ou, num sentido mais amplo,

das

interferências

externas

dentro

de

uma

unidade

habitacional. Fazendo um uso mais geral deste princípio, arriscamos dizer que o personagem Bartleby, de Herman Melville (2003), vê-se isolado do mundo justamente por sua incapacidade de comunicação, que se resumia à sua frequente negativa “eu preferiria não”, quando instado a fazer alguma coisa. Podemos chamar de “inferno” a falta de contato com exterior, se levarmos em conta o retrato pintado por Sartre (2007). 87

Nele, a falta de janela traduz-se por uma forçada volta ao interior, onde os ocupantes do apartamento precisam viver apenas relacionando-se entre si, eternamente. Da mesma forma, no filme Não matarás (KIESLOWSKI, 1988), o clima brumoso e pesado, representativo do totalitarismo comunista na Polônia do pós-guerra, a ausência de ventilação psíquica, de liberdade, faz com que alguns personagens desenvolvam sérios problemas de comportamento, sem motivações aparentes. Ainda nesse sentido, da ventilação psíquica, é que Marx vai elaborar, segundo Sloterdijk (2006), a questão da classe em si e classe para si em O 18 Brumário, pois o campesinato que não entra em corelação, como cada casa, cada família, que se basta a si mesma, como várias batatas que, juntas, formam apenas um saco de batatas, tal configuração é incapaz de manifestar uma tomada de posição ou subjetividade de classe. Materialmente, as casas não se comunicavam pela simples falta de janelas, de aberturas para fora. Formalmente, os isolamentos impediam os habitantes de levarem a frente a mudança do modo de ser de uma classe em si a uma classe para si. Ausência de janelas representa a escassez de comunicação, esclarecimento e solidariedade. No filme Medianeras (TARETTO, 2011), é colocada a questão de uma arquitetura que reflete, ao mesmo tempo que constitui, uma sociedade em isolamento progressivo, uma arquitetura que, segundo o personagem Martin, enlouquece as pessoas. Medianeras é justamente a parte dos edifícios que não dá para lugar algum, nem pra frente nem pra trás, que não possui janelas e que registra o passar do tempo, as marcas da chuva e do sol, enfim, da história. Mas a partir da análise fílmica, a qual empreenderemos nas próximas páginas, é possível traçar um breve diagnóstico das questões arquitetônico-modernas, tendo como pano de fundo as ideias de Sloterdijk, no livro Esferas III, no capítulo acerca da vida co-isolada no apartamento (capítulo 2), bem como dos indivíduos que nele habitam, partindo da reflexão do filósofo 88

alemão sobre os conceitos de liberação, descarga, levitação, leveza e tédio (capítulo 3). Longe de se limitar apenas ao fato de viver só, a moradia na bolha individual não se restringe a uma ideia de solidão pura e simples. Antes, pelo contrário, com ajuda dos aparatos técnicos com os quais complementamos a existência e fabricamos nosso estar-no-mundo, nossa ambiência própria, é possível desdobrarmos nossas experiências tanto para dentro quanto para fora, embora as consequências possam ser desastrosas no sentido da perda de corporeidade nas relações, além do desenvolvimento, no âmbito pessoal, de um individualismo hedonista intramundado, cuja imagem insuperável parece ser a Mão com Esfera Refletora (1935), de Escher. Aqui, a noção de autoparceria revela uma ideia de indivíduo cindido, a viver só consigo mesmo e seu entorno, tendo o apartamento como forma elementar egosférica. De acordo com Sloterdijk (2006), “Se pode falar da existência de uma egosfera quando seu habitante desenvolve costumes elaborados de

autoparceria

e

se

move

em

um

processo

constante

de

diferenciação de si mesmo” (p. 444). A aparente não-simbiose com outros, portanto, pode ser pensada como autossimbiose. Nesse novo contexto, “a forma de casal cumpre o indivíduo, que, em um processo continuo de diferenciação de si, se remete incessantemente a si mesmo, como se se tratara do outro interior ou de uma pluralidade de subeus”. (pp. 444-5). A realização da autoparceria pressupõe os meios designados como egotécnicas. Duas delas são citadas pelo autor. O diário, com seus procedimentos historicamente inovadores de diálogo interior, de autoexame e autodocumentação, que participa como exercício da hermenêutica incessante de si mesmo; e o espelho, que contribui para a transformação da reflexão sensível em outro na chamada autorreflexão. Por estar umbilicalmente relacionada com as próteses,

89

A expressão autossimbiose há de manifestar que a estrutura diádica da esfera primitiva pode ser reexercitada formalmente pelos indivíduos sob circunstâncias determinadas: a saber, quando, e só quando, estes disponham dos acessórios mediadores necessários para adaptar-se plenamente às situações orientadas para a autocomplementação (SLOTERDIJK, 2006, p. 447).

Essa nova ambiência revela um estar no mundo cercado de aparatos técnicos, onde não podemos ser considerados isoladamente, mas apenas em relação com nossas técnicas, próteses e máquinas. Portanto, uma moderna célula-habitação cercada de dispositivos permite ao filósofo alemão considera-la no sentido de seus vários topos: quirotopo, termotopo, fonotopo, ergotopo, erototopo e alethotopo. Ao mesmo tempo o lugar e seus complementos, enquanto enclausuram o sujeito, permitem sua abertura ao mundo, de forma tão ampla e reticular cujo alcance, para o indivíduo fechado, é inédito na história humana. O conceito de liberação, portanto, significa a abertura do mundo ao homem e do homem ao mundo,

enquanto

com

descarga

compreende-se

alívio

de

peso,

de

sobrecargas e tensões. É conclusivo que a liberação e a descarga são sinais característicos do ser humano na modernidade.

MEUS EUS Em muitos aspectos, o filme argentino Medianeras pode ser analisado sob o ponto de vista do Esferas III, já que a obra cinematográfica transversaliza praticamente toda a discussão. Os protagonistas, Martin e Mariana, que são exemplos modernos de indivíduos

co-isolados

moradores

de

apartamento,

têm

sua

individualidade cindida na medida em que realizam a autoparceria, ou seja, a autossimbiose apoiada numa constelação de aparatos técnicos autocomplementantes, atuando como substitutos numa relação de parceria. Tal situação existencial apresenta várias das características apontadas pelo livro, no sentido do sujeito que vive só, mas cujo 90

autodesdobramento proporciona que uma multiplicidade de subeus possibilite uma experimentação subjetiva contínua consigo próprio: “como microteatro da autossimbiose, o apartamento envolve a existência de indivíduos que aspiram a experiências e importâncias” (2006, p. 449). Acometido por diversas desordens de ordem psicológica, incluindo uma síndrome de pânico (que, juntamente com a depressão, são os principais distúrbios psíquicos da modernidade), Martin afirma ter passado dois anos sem sair de casa. Trancado em seu apartamento, desenvolveu uma rotina totalmente dependente dos aparatos técnicos. A partir de seu lugar ele se alimentava, trabalhava, conversava, comunicava-se com o mundo, informava-se, namorava e satisfazia-se sexualmente, sozinho ou acompanhado, situação semelhante à de Mariana, cujos problemas transparecem um caráter mais afetivo. Mas para chegar à ideia moderna de habitação, Sloterdijk (2006) acompanha a sua trajetória no tempo e no espaço. O desenvolvimento do dedo oposto na história da evolução humana representa toda uma nova forma de se relacionar com as coisas do mundo. Em 2001 – uma odisseia no espaço (KUBRICK, 1968), o manuseio de um objeto por um primata e a percepção de que o mesmo poderia ser utilizado como uma arma dispara um processo cognitivo de domínio sobre os outros indivíduos e sobre a natureza. A célebre cena do osso atirado ao alto e que se transforma em uma espaçonave dá o tom da importância desta descoberta. Segundo Sloterdijk (2006), “só quando uma mão colhe as coisas, as encontra manualmente ou as ordena manipulando-as, começa a transformação do que está ao redor em algo utilizável” (p. 281). Num plano mais individual e moderno, a cozinha do apartamento seria a miniatura do quirotopo. No ato de manipular os objetos e preparar o alimento, o sujeito só divide-se entre anfitrião e convidado, que come a própria comida. Embora Martin e Mariana não houvessem demonstrado dotes culinários, tal conhecimento fica implícito, pois é indispensável para quem pretende alcançar a hoje tão procurada 91

qualidade de vida. Em que pese o fato da crescente facilidade no preparo das refeições, o domínio sobre os componentes de um alimento permite por nas “mãos do autosustentador a possibilidade de desenvolver o cuidado de si mesmo em perspectiva crítico alimentar” (p. 451). Além disso, a tecnologia do fogão, da geladeira, do freezer, do microondas, bem como do ar-condicionado e do aquecedor, permite pensar o apartamento como termotopo eficiente, semelhante aquele que, desde épocas arcaicas, permitia constituir uma esfera de conforto primária, libertando os grupos parcialmente do sabor das intempéries climáticas. Às primeiras horas da manhã, o familiar tilintar dos objetos culinários, como o ressoar de panelas, copos, garfos e facas introduz o indivíduo no ambiente sonoro do fonotopo individual. Aquilo que representava o universo dos ruídos coletivos, agora assume uma perspectiva particular. Some-se a isso as emissões sonoras da televisão, do rádio, do telefone e teremos um fonotopo individual ampliado. A sintonização do grupo pelo grupo é substituída, então, por inúmeras bolhas de som individualizadas, microsferas auditivas, nas quais se há feito realidade uma relativa liberdade de escuta, que corresponde também a introdução do microapartamento acústico no espaço público. A sociedade moderna vibra em espumas sonoras em milhões de células; no que se refere a inumeráveis coletivos de audição, que rivalizam entre si, se tem falado com razão de uma guerra de ambiências. (SLOTERDIJK, 2006, p. 451).

Em Medianeras, essa guerra de ambiências pode ser identificada em alguns momentos. Um deles na figura da mulher cujo trabalho é passear com cachorros. Em alguns momentos ela aparece portando um fone acoplado ao ouvido, dificultando a comunicação entre ela, Martin e, de certa forma, o mundo, devido ao próprio fechamento que provoca. Em outra cena, já envolvendo Mariana, a personagem desespera-se com a música de um piano tocada por um morador

92

vizinho do seu apartamento. Consumida por lembranças, desejos e sensações, ela não consegue evitar que as emanações sonoras provenientes de outra ambiência despertem sentimentos angustiantes, que a leva ao extremo de atacar copos e paredes, em busca de alívio. Mas não se pode perder de vista que mesmo a ampliação do apartamento como fonotopo individual “assegura que a célula, ainda que cumpra satisfatoriamente suas funções defensivas como isolante, como sistema imunitário, como distribuidor de conforto e distanciador, siga sendo um espaço do mundo” (SLOTERDIJK, 2006, p. 453). Nesse sentido, destaca-se ainda a importância dos instrumentos de (tele)comunicação, seja o telefone ou a internet. A comunicação à distância, tornada rotina, é o que permite que o isolamento não se experimente como solidão, pois “possibilita o enlace da alma individual com outros relevantes ausentes e seus sinais de vida distante” (p. 454). À semelhança

das

civilizações

metafisicamente

ambiciosas,

na

modernidade, “a inteligência se desliga das comunicações locais e participa no traslado do fluxo semântico da vida próxima à vida distante”. Para o autor, “agora, por meio do telefone e dos meios de comunicação, ser-aí significa nadar-em-signos que vêm de longe, signos que são respaldados por grandes remetentes” (p. 455). Talvez por isso Martin, ao interagir por meio de seu MSN Messenger, colocava-se como “Superdisponível”, aberto para os signos do mundo, desde seu insulamento. Nesse contexto, o apartamento termina por transformar-se também num erototopo em miniatura, o modelo reduzido do campo desejo insular-humano. No campo da experimentação, a investigação das possibilidades e latências do ser pode, com mais clareza, segundo o Sloterdijk, ser observada no domínio do que ele chama de sexualidadevivência. Na célula-habitação, “os indivíduos podem seguir os impulsos de seu desejo, no sentido de querer-experimentar-também-o-queoutros-experimentaram” (2006, p. 456). De modo que, também aqui, observamos a cisão do individuo entre amante e amado, embora, para 93

o autor, o encurtamento da distância entre a conquista de um parceiro e a satisfação sexual não tire a complexidade de uma relação. No autoerotismo, a interação consigo mesmo não se encontra desprovida da possibilidade do equívoco. No ambiente privado como célula de ensaio, é possível exercitar a imaginação e reelaborar as frustrações, enquanto o “desejo de um confronto real ou imaginário se transforma em desejo de si mesmo, como representante mais plausível do outro ambicionado” (SLOTERDIJK, 2006, p. 456). A personagem Mariana, no filme Medianeras, fantasia um parceiro ideal a partir dos bonecos manequins, com os quais realizava seu trabalho de vitrinista. Em seu apartamento, sozinha, frequentemente realiza com eles uma simulação de relação amorosa, na qual recebe e oferece carinho. No dia em que precisa se desfazer do companheiro inanimado, despedese como que de um grande amor. A sem cerimônia do encontro, a facilidade com que o indivíduo aborda a si mesmo, a rapidez com que consuma o ato sexual não livra o sujeito do tédio onanista. A dificuldade dos verdadeiros encontros corporais predispõe à autossatisfação real/imaginária, na qual é possível ter quem se quer sem a necessidade de empenhar-se em uma busca que, não raro, é malfadada. Segundo Bill Bryson (2011), no século XVIII, a prática do “autoabuso” era tabu, e suas consequências, chanceladas pela ciência, iam da loucura à morte prematura. No século XXI, o personagem Martin, entre um e outro encontro fortuito, revela ser

um

adepto

da

masturbação,

dadas

as

constantes

decepções na busca de uma estável parceria sexual. Finalmente, como microcosmo do mundo e teatro da vida, no qual vivemos simultaneamente na coxia e no proscênio, o apartamento transforma-se

em

ergotopo

e

alethototopo.

No

primeiro

caso,

relacionado ao grupo, significa o esforço coletivo em prol da construção de um ambiente comum. Transportado para o universo restrito da moradia individual, representa o autocuidado desportivo da construção da forma e do corpo saudável, por meio do qual o indivíduo 94

cinde-se entre treinador e treinado. Desse ponto de vista, seguindo uma tendência da sociedade moderna a estilos de vida orientados ao fitness, ser-aí significa manter-se-em-forma. No segundo caso, considera-se a casa uma versão miniaturizada das repúblicas do saber. Nesse sentido, o indivíduo atua informalmente como professor e aluno. Mas a aquisição de habilidades cognitivas limita-se, em geral, a adquirir o mínimo essencial para manter-se a par das novidades sociais. Dado o crescente ritmo da sociedade, aliada a sua

atual

configuração

mercadológica,

a

informação

adquire

progressivamente uma função que se corresponde com as das marcas e artigos de moda: é objeto de mera distinção para a maioria das pessoas. Era a partir de seu computador pessoal que Martin e Mariana informavam-se do mundo e, de certa forma, o informavam. Foi assim, aliás, que conversaram pela primeira vez.

MARTIN E MARIANA: CONSERVAÇÃO E MODERNIDADE ...a leveza se consolidou por si mesma. Hegel Para Sloterdijk (p. 539), as expressões centrais de conservadorismo modernizado, liberação e descarga, são mais aptas que qualquer outra para conceituar os reflexos subjetivos da grande levitação. A liberação é a abertura do mundo ao homem e do homem ao mundo. E por descarga, compreende-se alívio de peso, de sobrecargas e tensões. É conclusivo que a liberação e a descarga são sinais característicos do ser humano na modernidade. É nesse contexto que é possível afirmar que a leveza e o tédio “constituem rastros prematuros do trânsito a uma flutuação apenas reconhecida do ser a um desvanecer-se do tempo, desligado de metas fixas, que proporcionam sua tonalidade a nova época em geral” 95

(SLOTERDIJK, 540). Hegel afirma que o tédio e a leveza são sintomas da modernidade. A gravidade é lei da natureza implacável, segundo a qual tudo o que sobe tem que descer. E há uma força de atração dos corpos ao centro da terra, os impedindo, incessantemente, de levitar. Sloterdijk (p. 545) assegura que “desde sempre, se tem crido na queda, não no voo. Se Ícaro cai no mar, serão eles que haviam sabido sempre. O pessimismo manifesta sua debilidade, tem seu parentesco com o ânimo vingativo, quando pretende ter razão frente ao esclarecimento”. No filme Medianeras, o personagem Matin revela ter síndrome de pânico. Afirma que confia nos pés (nada de aviões). E para assegurarse que vai ficar no chão, desconfia da lei da gravidade, e sempre que sai, leva consigo uma mochila pesada. Dedica-se ao trabalho árduo, intermitente 11.

Ao revelar ter medo das pessoas e ter passado mais

de dois anos sem sair de casa, demonstrou resistência à levitação, através dos caminhos da liberação e da descarga. 12 A personagem Mariana admira o prédio que lhe parece uma espaçonave. Diz que esperava que o prédio a levasse a algum lugar, se sentindo parte de um todo infinito e eterno. Revela a tendência efervescente da leveza. Queria flutuar. Mas se sente em um lugar perdido (vitrine), nem dentro nem fora, em nítida sensação de não pertencimento. A vitrine é um lugar abstrato, como ela. O trabalho não lhe parece pesado, já que assegura que a distrai. Mas tem fobia de multidão. Angústia de multidão. Procura o que não sabe bem o que é. A sua busca, sem sucesso, por Wally, em especial, na cidade, é o sintoma da necessidade que sente de liberação. Abertura para o mundo, busca do outro. Partindo da definição de espumas de Sloterdijk (p. 547), “há que descrever a totalidade do campo social modernizado como um sistema 11

Nietzsche afirma que “o ser humano sente autêntica volúpia em deixar-se forçar por demandas excessivas”. (Sloterdijk, p. 548). 12 Sloterdijk afirmou que Heidegger se manifestou claramente contra as tendências de levitação e, deduziu, da dignidade e da existência. (p. 547)

96

multicameral, composto de células de impulso para cima – vulgo “mundos da vida” – nos que os simbiontes gozam de efeitos antigraves....”. Embora a resistência à levitação, há uma tendência natural, sempre presente, que impulsiona os simbiontes, divíduos, para cima. Não por acaso, os personagens abriram janelas. Iluminaram a escuridão e ventilaram as medianeras. A música os faz voar. Efetuaram a liberação e a descarga. Assim, entregaram-se à leveza e puderam flutuar. A lei da gravidade foi violada. Os personagens contraditórios

13,

ao final, se encontram, formando um par de esferas. As paredes inúteis (medianeras) se abriram, cedendo à tendência moderna para a flutuação, percorrendo o caminho da leveza e do tédio. Sloterdijk (p. 550) fala que “o ser humano não se experimenta como uma forma oca e leve, não adstrita a conteúdo algum que a preencha; na altura e na largura, nada à vista que eleve a existência à dignidade do real”. Aqui se expõe conceitualmente a insuportável leveza do ser, que, neste ponto se chama: “necessidade da falta de necessidade”.

É nessa perspectiva que o autor questiona se

“espuma significaria, agora, ar para respirar em lugar inesperado” (grifo acrescido à p. 547). E se a falta de ar é a falta do outro, esse oco humano, que possui canais para respirar, é um sintoma da falta do outro, sendo esse inspirar, a liberação, abertura para o mundo e para o outro.

CONCLUSÃO Partindo das considerações do filósofo alemão Peter Sloterdijk, em seu livro Esferas III, acerca das condições psicossociais da vida em apartamentos e seus aparatos técnicos, tentamos observar como 13

Bauman (p. 8) afirma que “no líquido cenário da vida moderna, os relacionamentos talvez sejam os representantes mais comuns, agudos, perturbadores e profundamente sentidos da ambivalência”.

97

algumas destas ideias são de fato vivenciadas e apreendidas socialmente, por meio do filme Medianeras, bastante representativo das condições que constituem a existência na sociedade moderna. Sendo o viver a construção de ambientes e territórios nos quais nos reconhecemos, dedicar-se à análise das habitações constitui esforço importante no sentido de desvendar parte da psique social e individual na atualidade. Segundo o autor, o apartamento, como célula-habitação e sala de operação de autocuidado do homem consigo mesmo, além de um eficiente sistema de imunidade (a epopeia humana pode ser contada por meio da construção destes sistemas), representa um dos maiores êxitos arquitetônicos do individualismo moderno. Nesse sentido, os personagens de Medianeras, sozinhos em seus lugares, participam do mundo, enquanto, simultaneamente, dedicam-se ao desdobrar de suas personalidades, substituindo, de certa forma, a interfacilidade e o contato com o outro real. Em tal contexto, os personagens estão também sujeitos a construírem imagens equivocas de si mesmos, pois “a rejeição da protodualidade gera uma disposição geral para as más formações substitutivas” (SLOTERDIJK, 2007, p. 138). Como diz Martin, a arquitetura de Buenos Aires revela uma cidade cindida,

divida

entre

ideais

de

conservação

e

modernidade,

representados pelos próprios personagens. Da mesma forma, a urbe que separa é a mesma que os une, cruzando seus caminhos, convergindo seus desejos, preparando seus destinos, se destino houver. Pois o lugar de imunidade permite, a partir dele, o encontro. A sociedade que isola também conecta. É preciso saber tentar compreender o que podemos fazer a partir das condições dadas. Martin e Mariana permitiram-se o encontro, como a evidenciar que nem tudo está perdido.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 98

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993. BAIRON, Sérgio. A comunicação nas esferas, a experiência estética e a hipermídia. Rev. USP, São Paulo, n. 86, ago. 2010 . Disponível em . Acessos em 29 jun. 2012. BRYSON, Bill. Em casa: uma breve história da vida doméstica. São Paulo: Cia das Letras, 2011. MELVILLE, Herman. Bartebly, o Escriturário. Porto Alegre: L&PM Editores, 2003. SARTRE, Jean Paul. Entre quatro paredes. São Paulo: Civilização Brasileira, 2007. SLOTERDIJK, Peter. Esferas III. Espumas. Esferologia Plural. Madrid: Siruela, 2006. SLOTERDIJK, Peter. O sol e a morte. Lisboa: Relógio D’água, 2011. TARDE, Gabriel. Monadologia e Sociologia... e outros ensaios. São Paulo: Cosac Nasify, 2007. FILMOGRAFIA CONSULTADA KUBRICK, Stanley. 2001 – uma odisseia no espaço. Reino Unido, EUA. 1968. KIESLOWSKI, Krzysztof. Não Matarás. Polônia, 1988. TARETTO, Gustavo. Medianeras: Buenos Aires na Era do Amor Virtual. Argentina, Espanha, 2011.

99

FORMAÇÃO HUMANA E ENEAGRAMA Adeilton Dias Alves14 Profa. Geovânia da Silva Toscano (orientadora) 15

RESUMO: Problematiza-se o fato de a educação estar cada vez mais sendo conduzida como orientação para o mercado, e cada vez menos para o autoconhecimento e cuidado de si. O Eneagrama é um mapa, uma referência para o conhecimento de si. Compreende-se qual a noção de ser humano que orienta as suas práticas formativas como instrumento de autoconhecimento. Como fundamentação teórica apresentaremos as reflexões de Morin (2008), Balman (2007), Atlan (2004), Krhisnamurti (1953) indicando a sabedoria do Eneagrama como campo experimental da investigação. Identifica-se que os tipos de personalidade presentes no Eneagrama revelam as paixões do ego e considera-se que as suas práticas formativas apoiadas no Eneagrama apresentam-se como possibilidade de uma educação para o conhecimento de si, para o cuidado de si. Palavras-chave: Eneagrama, Personalidade, Condição Humana, Educação.

INTRODUÇÃO: Propomos uma reflexão a respeito do Eneagrama enquanto sabedoria que encerra uma compreensão profunda acerca da tipologia da personalidade. Se for considerado que os aspectos compulsivos dos comportamentos humanos repousam no núcleo ou centro do caráter, a tipologia do Eneagrama mostra sua pertinência. O Eneagrama é um mapa da personalidade humana que propõe nove arquétipos básicos, como nove possibilidades de expressão do caráter, dentre as quais invariavelmente uma predomina sobre cada 14

Graduado em Ciências Sociais (UERN), Mestrando do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH/UERN). É Assessor Nacional de Planejamento e Avaliação de Programas Sociais na ONG Visão Mundial. Integrante do Grupo de Pesquisa do Pensamento Complexo (GECOM/UERN). [email protected]. 15 Graduada em Ciências Sociais (UFRN), Mestra em Ciências Sociais (UFRN) e Doutora em Ciências Sociais (UFRN). Professora Adjunta (UFPB), Professora do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH/UERN). Líder do Grupo de Pesquisa Ciências Socais, Cultura e Educação (UFPB) e Pesquisadora dos Seguintes Grupos: Grupo Cultura, Política e Educação (UFRN), Grupo de Estudo em Ensino Superior e Sociedade (UFPB), Grupo de Estudos e Pesquisa do Pensamento Complexo (UERN). [email protected]

100

indivíduo. Estes nove tipos de personalidade são um esforço para interpretar os padrões das fixações, compulsões, paixões que mantém o indivíduo limitado a um conjunto de mecanismos deterministas que condicionam

grande

parte

dos

comportamentos

humanos,

influenciando fortemente no modo como nos relacionamos conosco e com os outros. Objetivamos neste artigo compreender qual a noção de ser humano que orienta as práticas formativas do Eneagrama como instrumento de autoconhecimento. A primeira e segunda parte deste trabalho apresentam uma breve introdução aos fundamentos do Eneagrama, assim como uma descrição sucinta de alguns traços dos nove tipos de personalidade. Na terceira parte há uma reflexão acerca da formação da personalidade, com suas possibilidades e compulsões. As idéias de Krhisnamurti (1953), Bauman (2007) e Campbell (2008) são tomadas como referência na discussão da necessidade de uma educação que dê conta dos problemas existenciais humanos. A quarta parte se apóia principalmente no trabalho de Morin (2008), discutindo a condição humana, e a necessidade dos processos educativos de considerá-la em sua intencionalidade pedagógica, sob pena de contribuir para formar sujeitos fragmentados, especializados, por vezes que não conseguem lidar com suas emoções e enfrentar suas necessidades. Esta investigação origina-se das reflexões que estão sendo desenvolvidas no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.

INTRODUÇÃO AOS FUNDAMENTOS DO ENEAGRAMA Eneagrama vem dos termos gregos Enneas e Grammus, que, numa tradução aproximada, significa Gráfico de Nove Pontas. É um 101

estudo do caráter. Uma tipologia da personalidade humana composta por nove arquétipos fundamentais, que expressam então os nove tipos ou estruturas de personalidade, que explicam, naquilo que possível, o ser humano. Seu símbolo é representado pela figura abaixo:

Fig. 01- Símbolo do Eneagrama com respectivos números dos tipos de personalidade

O Eneagrama demonstra características que nos levam a afirmar possuir este uma dimensão mitológica. Ao longo dos tempos seus ensinamentos foram transmitidos substancialmente por tradição oral; guarda em si toda uma simbologia, contendo símbolos mitológicos, e; trata de aspectos elementares fundamentais do humano, invariáveis no tempo e no espaço, a ideia de arquétipo – a diversidade das estruturas da personalidade. Segundo Campbell (2008: p.53) os mitos trazem consigo quatro funções básicas. Numa cultura mitológica tradicional, uma mitologia operante atende essencialmente a quatro funções fundamentais: a mística, a cosmológica, a sociológica e a psicológica ou pedagógica. Aqui, interessa-nos a discussão da função a que Campbell denominou de psicológica ou pedagógica. Esta função, a pedagógica, confere ao mito um potencial orientador, pois este ajuda o indivíduo a atravessar as fases da vida, desde a infância até à sua morte. Propõe uma trajetória psicológica que ajude o homem a livrar-se de sua dependência. Seria o desenvolvimento

do

indivíduo

pelo 102

conhecimento

de

si.

E

o

conhecimento de si viria pelo conhecimento do mito. O mito poderia então guiar jovens e velhos para que possam viver a eternidade, até o momento de sua retirada. Ademais das outras funções, é principalmente na função pedagógica onde há fundamental semelhança entre as sabedorias do Eneagrama e da mitologia. Teria então o Eneagrama a força de um mito orientador? O que nos inclina a constatar que a resposta que satisfaria essa pergunta seria um sim é o fato de a sabedoria do Eneagrama propor então os nove tipos de personalidade, que podem ser considerados arquétipos fundamentais, com um dos quais o indivíduo descobrirá profunda identificação, de modo que, dispondo de tal chave de interpretação, possa ele então compreender a si mesmo e para que direções deve orientar seus esforços de crescimento pessoal. Nos seguintes comentários de Palmer (1998: p.17), é possível refletir sobre o potencial pedagógico do Eneagrama: O Eneagrama de tipos é parte de uma tradição de ensino oral, e o material ainda é mais bem transmitido vendo e ouvindo grupos de pessoas do mesmo tipo falar sobre suas vidas. Ver e ouvir um grupo de pessoas articuladas e dispostas a expressar um ponto de vista semelhante transmite bem mais da força do sistema do que possivelmente transmitiria um mero registro escrito de suas palavras. Após cerca de uma hora, um grupo de pessoas que, no início, pareciam fisicamente muito diferentes, começam a parecer iguais. O espectador pode perceber as semelhanças nos padrões de retenção física, do tom emocional, nos pontos de tensão no rosto e nas características da emanação pessoal, que correspondem aos sinais mais sutis do tipo. O auditório se enche de uma presença definida à medida que se revela o caráter, e há, para cada um dos tipos, um sentimento único, uma característica distintiva, uma presença no ambiente.

Campbell (2008) apresenta o mito como modelo orientador, como mapa que ajuda o indivíduo a caminhar. O Eneagrama é um mapa da personalidade. Um artefato sensível e preciso o suficiente para captar as contradições do humano, desvela o modo como cada pessoa se apega a uma autoimagem de si que é pelo menos parcialmente falsa. 103

Do apego à falsa autoimagem surgem então os mecanismos deterministas que tecem um padrão que se fortalece e condiciona os comportamentos

humanos.

Esse

padrão

comporta

em

si

potencialidades e qualidades que são muito úteis para cada indivíduo. Entretanto, há também tendências destrutivas, que dificultam e por vezes estragam os relacionamentos humanos. Há grande semelhança entre o exposto acima e o que diz Campbell (Op. Cit. P.38) todos seguimos um caminho muito parecido do berço até o túmulo no que diz respeito ao desenvolvimento psicológico. O ser humano vive muitos problemas quando se confunde com a autoimagem que tem de si, quando toma as palavras como sendo as coisas, quando toma os conceitos das coisas, como se fossem a vivência dessas mesmas. A proposta do Eneagrama é que o indivíduo descubra o modo como se apegou a essa autoimagem distorcida de si, a tal ponto que legitima e repete o padrão desta autoimagem. Descobrindo, poderá atenuar o poder de tal autoimagem, e, poder conhecer-se a partir de uma autoimagem de si que seja mais generosa e até mais condizente com suas possibilidades, expectativas e atitudes. Mas não somente isso. Poderá ir mais longe, se considerarmos que: …ajudando-nos a ver como estamos presos a nossas ilusões e o quanto nos afastamos de nossa natureza Essencial, o Eneagrama nos convida a desvendar o mistério de nossa verdadeira identidade [grifo do autor]. Ele se destina a iniciar um processo de questionamento que pode levar-nos a uma verdade mais profunda sobre nós e sobre nosso lugar no mundo. Entretanto, se usarmos o Eneagrama simplesmente para atingir uma autoimagem melhor, interromperemos o processo de descoberta (ou melhor, de resgate) de nossa verdadeira natureza. Se conhecendo nosso tipo obtemos informações importantes, elas devem ser apenas o ponto de partida para uma jornada muito maior. Em resumo, saber qual o nosso tipo não é o nosso destino final [idem] (RISO e HUDSON, 1999: p.27).

104

A busca pela verdadeira identidade pode ser equiparada à jornada do herói, nos termos de Campbell16. Vemos então que o Eneagrama proporciona um trabalho interior de autoconhecimento onde o indivíduo vai confrontar-se com seus limites, com os aspectos de sua personalidade que encobrem e dificultam a realização de si; uma vez que a personalidade limita o indivíduo a um campo reduzido de possibilidades que se faz num caminho praticamente mecânico, ditando ações e reações perante as diversas situações da vida. Em suma o Eneagrama leva o indivíduo a confrontar-se com as paixões do ego, para, a partir daí buscar sobressair-se por meio de um trabalho de crescimento pessoal.

OS NOVE TIPOS DE PERSONALIDADE Cada tipo de personalidade condiciona os comportamentos humanos de um modo particular. Tal modo é semelhante ao mito do Leito de Procusto. Procusto representava o condicionamento do homem a um padrão específico e a rejeição de outros possíveis padrões ou possibilidades. Reza o mito que ele capturava as pessoas e as submetia às medidas de sua cama. As pessoas às quais suas medidas fossem maiores que as da cama, tinham cortadas de machado suas partes do corpo que sobravam em relação a tais medidas. Já as que suas medidas eram menores que as da cama, Procusto as esticava por meio de um engenhoso processo mecânico envolvendo cordas ligadas a roldanas. No leito de Procusto o destino era certo: a morte. Quem fosse maior era reduzido para caber e morria. Os menores não sobreviviam às dores do esticamento e também morriam.

16

Para mais informações, ver: CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito.

105

Geralmente o homem tende a inconscientemente generalizar a percepção (distorcida) que tem de si, para as outras pessoas. Tem-se um conflito de um humano que não compreende a si, e, portanto, fica impossibilitado de compreender os outros. O resultado deste processo de incompreensão é a morte simbólica do homem. Cada tipo de personalidade implica numa forma diferente de sentir, pensar e agir no mundo, mas, salva as exceções, geralmente não sabemos disso. Não sabemos ou por vezes esquecemos que “cada ser humano é um fenômeno único” (CAMPBELL: 2008: p.27). Cada pessoa responde de maneira diferente a um mesmo estímulo, a uma mesma situação. Os tipos de personalidade do Eneagrama mostram que cada pessoa possui motivações específicas, mas nos esquecemos disso. Por esse motivo, surgem muitos conflitos, e, por vezes as relações humanas são estragadas ou fragilizadas. No mito, o próprio Procusto é submetido às medidas de sua cama, e também acaba morto. Esta é a metáfora do sujeito carente de autoconhecimento. Negando à individualidade dos outros, está negando à sua própria individualidade. Os tipos de personalidade do Eneagrama revelam então as paixões do ego. Quando o apego a tais paixões é demasiado, operamos como Procusto, negando no ser humano a diferença que nos torna iguais. Os nove tipos não podem ser aqui descritos de forma mais completa. Segue abaixo um esforço de síntese, com intenção de dar uma ideia geral, ainda que incompleta acerca de cada um dos nove tipos de personalidade. Tipo 1 - PERFECCIONOISTA: São pessoas de muita habilidade prática, de grande poder de iniciativa. Possuem um senso de moralidade elevado. Podem ser líderes inspiradores pelo exemplo de seu trabalho ou podem descambar em um perfeccionismo que acaba dificultando e às vezes destruindo seus relacionamentos familiares, profissionais e amorosos. Mantêm altos níveis de exigência sobre si e sobre os outros. 106

Tipo 2 - DOADOR: São pessoas de grande sensibilidade e empatia para perceber e satisfazer as necessidades dos outros. Podem ser pessoas altamente capazes de ajudar os outros, ou podem acabar sendo pessoas orgulhosas ou facilmente irritadiças. Geralmente não conseguem reconhecer suas próprias necessidades e tornam-se dependentes da atenção e agradecimento das pessoas a quem ajuda. Tipo 3 - REALIZADOR: Pessoas de grande potencial empreendedor e talento para envolver as pessoas. Podem ser realizadoras de grandes projetos ou podem descambar em megalomania e perda de sua própria identidade. São pessoas que se preocupam muito com sua autoimagem e supervalorizam sua autoestima. Geralmente têm dificuldades para lidar com os sentimentos e vivem para suas realizações, numa busca incessante pelo sucesso a qualquer custo. Tipo 4 - INDIVIDUALISTA: Pessoas altamente originais, sensíveis e cultas, que têm um senso de criatividade aguçado. Podem ser pessoas que ajudam os outros serem mais sensíveis e criativos, ou podem descambar em inveja, melancolia e autopiedade. Possuem gosto pelo impossível, por aquilo que não pode ser alcançado. Frequentemente se pegam vivendo fantasias mentais a respeito da morte ou outros temas relacionados a perda. Tipo 5 - OBSERVADOR: As pessoas deste tipo são geralmente observadoras e investigadoras. Podem ser pessoas de boa percepção e contribuírem com a construção de conhecimentos de uma forma engajada, ou podem ser pessoas retraídas, frias e distantes. Geralmente têm dificuldades em lidar com os sentimentos e podem isolar-se em seu mundo mental. Têm dificuldades em conviver com as pessoas e geralmente são especialistas em alguma área do saber. Enfrentam

107

dificuldades no que diz respeito a partir do mundo das ideias para o mundo da ação. Tipo 6 - QUESTIONADOR: São pessoas que apresentam grande senso de lealdade, assim como grande competência. Preocupam-se de demasiadamente com sua segurança. Podem ser excelentes realizadoras e trabalhar muito bem em grupos ou podem descambar em

medo

e/ou

arrogância

o

que

acaba

por

sabotar

suas

potencialidades e possibilidades de crescimento nas diversas áreas de sua vida. Pessoas que travam, ficam paralisadas por seus medos e desconfianças sobre si e sobre os outros. Tipo 7 - ENTUSIASTA: São pessoas de muita alegria e senso de humor. São dadas ao exagero. Podem alegrar as pessoas à sua volta, ajudando-as a perceber o lado feliz da vida, ou podem acabar sendo pessoas inconvenientes e sem credibilidade (por não levar as coisas a sério e não cumprirem as muitas responsabilidades que assumem) perante aqueles com quem se relaciona de alguma maneira. Pessoas que buscam novas alegrias, situações agradáveis e emoções a todo custo. Apresentam dificuldades para enfrentar qualquer situação que possa infligir dor a si. Tipo 8 - DESAFIADOR: Pessoas de instinto e forças muito aguçadas. Podem ser líderes altamente corajosos na luta contra diversas formas de injustiça ou podem

ser pessoas rudes, insensíveis e vingativas.

Geralmente gostam de quebrar as regras. Por serem muito fortes, respondem às situações do dia-a-dia com força desproporcional, o que também dificulta o relacionamento com as pessoas que lhe cercam. Tipo 9 - CONCILIADOR: Pessoas serenas, que apresentam uma calma e um senso de justiça exemplar. Podem ser companhias muito agradáveis e excelentes mediadoras de conflitos ou podem ser pessoas 108

sem força de vontade, procrastinadoras e negligentes em relação às suas necessidades e às do mundo à sua volta. São dominadas por uma preguiça que pode ser entendida como a vontade de não querer ser incomodadas, um esquecimento de si. Cada um dos nove tipos de personalidade está envolvido numa dinâmica bem mais profunda em relação aos outros tipos. Elucidar tal dinâmica não caberá nos objetivos deste trabalho. Por hora devemos nos ater ao enfoque na reflexão sobre a possibilidade de, descobrindo as compulsões de sua personalidade, poder em alguma medida livrarse delas, coadunando com as idéias de ATLAN (2004). Este

autor

parece

concordar

que,

apesar

de

haverem

mecanismos que podem chegar inclusive a determinar grande parte dos comportamentos humanos, é possível conhecer estes mecanismos e então poder lidar com esta situação de forma a não se livrar totalmente deles, mas poder empreender outras escolhas, dentro de um campo maior de possibilidades. “Mesmo que, em teoria eu saiba que sou determinado, ainda assim construo a experiência da livre escolha.” (ATLAN 2004: p.46). As idéias de autores como Hudson (1999), Palmer (1993), entre outros que tratam sobre o Eneagrama, afirmam que o indivíduo, ao conseguir ampliar seu campo de possibilidades se sente mais completo, pode empreender escolhas e atitudes mais conscientes e condizentes com as necessidades; de fato está mais lúcido, mais presente, mais integrado com sua essência. É como se ela reencontrasse a si mesma e se aceitasse melhor, algo parecido com o enunciado de Atlan (2004: p.49): À medida que temos acesso mais preciso a esses determinismos, nosso sentimento de liberdade se modifica. Da sensação infantil de poder fazer escolhas arbitrárias, passamos, pouco a pouco, à aceitação daquilo que se faz em nós. É essa anuência que vai propiciar a experiência da verdadeira liberdade.

109

A experiência da liberdade ou livre necessidade, quando genuína, possui força formadora e pode transformar pessoas. A bibliografia que trata do Eneagrama demonstra que há muitas pessoas que, experimentando o Eneagrama em suas vidas, passaram com o tempo a vivenciar e compartilhar esse sentimento de liberdade e parecem demonstrar uma compreensão mais generosa do, e para com o humano.

DA ACENSÃO DO MERCADO À QUEDA DO HUMANO Na base da teoria do Eneagrama subjaz a ideia de que o ser humano possui um eu essencial, um si mesmo, que poderia ser chamado de self nos termos de JUNG (apud CAMPBELL: 2008). No desenvolvimento de sua vida, ainda na tenra infância, há episódios que, de alguma forma perturbam a harmonia ou a ligação da criança com esse si mesmo. Tal como as inevitáveis feridas da existência, essas perturbações, se mostram inevitáveis e necessárias. Sua intensidade é tal que, lhe faz ser interpretada pelo indivíduo como uma sensação de morte, uma ferida de morte. A partir daí vemos se estruturar a personalidade, ego ou centro do caráter, que surge como modo de defesa, meio de proteger o eu pela individuação. Dela surgem características, habilidades, tendências, limitações, paixões e compulsões que configuram um modo especial de ser e estar no mundo. As relações humanas e o modo como o indivíduo reage aos estímulos do mundo que o cerca, são cruciais neste processo. Ao passar do tempo esta personalidade tende a cristalizar-se, fixar-se, como uma máscara, que, ao proteger o eu, passou a tomar o lugar do próprio eu, como uma imagem distorcida de si. Aquilo que pensamos que somos. Assim a personalidade, de certo modo encobre

110

um eu essencial, mediando a relação do indivíduo com o mundo exterior. Sem essa tal ferida, sem passar pelo processo de desenvolvimento de sua personalidade, o indivíduo não poderia ser reconhecido como tal. Não teria condições de sobreviver às exigências e dificuldades da vida, na busca de sua sobrevivência. Deste modo parece ser constitutivo da condição humana, ter de passar por uma jornada onde será necessário cair, para aprender a levantar-se. No entanto, a fixação naquilo que lhe ajudou a levantar-se - a personalidade - parece exercer forte influência nos males que afetam nossa sociedade. Os mecanismos de defesa, as paixões, enfim as estratégias inconscientes que aprendemos como meio de sobrevivência frente aos perigos que ameaçaram a vida, engendram um padrão que limita e condiciona nossa visão de mundo, obstrui nossa consciência; padrão esse frente ao qual o indivíduo encontra muita dificuldade para sobressair-se. De fato sobressair-se frente aos determinismos da personalidade implica em árduo processo de autoconhecimento. Assim podemos considerar a formação humana como problema fundante da educação, posto que, seu objetivo deve ser “levar o homem a experimentar o processo integral da vida" (KRISHNAMURTI, 1953: p.19). Indo mais além na reflexão nesta reflexão, vemos que: A criança tanto é resultado do passado como do presente, e como tal já está condicionada. Se lhe transmitimos nossa própria mentalidade, perpetuamos tanto o seu como o nosso condicionamento. Só há transformação radical se compreendemos nosso próprio condicionamento e nos livramos dele.

O

autor

citado

autoconhecimento

como

acima

demonstra

possibilidade

de

ser

necessário

proporcionar

o um

desenvolvimento humano integrado, como meio de avançar do conhecimento de si, ao cuidado de si e do outro. Uma educação voltada somente para o aspecto técnico, para a internalizaação de 111

conteúdos, não possui amplas condições de dar conta dos problemas humanos, mas contribui sim para a cristalização no indivíduo do processo de fragmentação iniciado desde a infância; e do qual ele deveria em grande parte libertar-se. Nessa perspectiva é possível dizer, conforme NARANJO (1996): males do mundo, males da alma. Vivemos uma busca constante por algo que ainda não temos. Muitos autores demonstram parecer haver no homem contemporâneo, certa ânsia, certa busca por algo até então não encontrado. Como se ao homem lhe houvesse sido usurpada sua inteireza, sensação de completude, integralidade. Na sociedade contemporânea, a formação humana, a busca pelo conhecimento de si tem cada vez menos espaço frente à formação técnica, voltada para especializações, para uma função específica na divisão do trabalho. As pessoas têm cada vez menos tempo para o cuidado de si. A educação que se aprende “de fora para dentro” parece sufocar as tentativas de expressão dos indivíduos, produzindo pessoas frias, frustradas, por vezes, altamente especializadas e racionalistas. Como alternativa muitas, pessoas estão cada vez mais buscando espaços de convivência, caminhos de autoconhecimento, referências que dêem sentido maior às suas vidas e que abordem seus problemas existenciais, que atualmente são sufocados nestes tempos de “liquidez”, nos termos de BAUMAN (2007: p. 8): Em suma: a vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante. As preocupações mais intensas e obstinadas que assombram esse tipo de vida são os temores de ser pego tirando uma soneca, não conseguir acompanhar a rapidez dos eventos, ficar para trás, deixar passar as datas de vencimento, ficar sobrecarregado de bens agora indesejáveis, perder o momento que pede mudança e mudar de rumo antes de tomar um caminho sem volta. A vida líquida é uma sucessão de reinícios, e precisamente por isso é que os finais rápidos e indolores, sem os quais reiniciar seria inimaginável, tendem a ser os momentos mais desafiadores e as dores de cabeça mais inquietantes. Entre as artes da vida

112

líquido-moderna e as habilidades necessárias para praticá-las, livrar-se das coisas tem prioridade sobre adquiri-las.

Estamos a um só tempo testemunhando e vivenciando uma época onde cada vez mais a educação que recebemos é modulada pelos interesses do mercado. E este último baseia seus interesses naquilo que pode alavancar lucros, desenvolvimento e progresso contínuos. O mercado anuncia precisar de pessoas capazes de lidar com as exigências de especialização, produção em série entre outras. Pessoas capazes de desaprender tão rápido quanto aprendem, capazes de fluir num constante vir-a-ser de novas oportunidades econômicas que poderão ditar a próxima tendência do mercado. Nessa ascensão do mercado, vê-se a queda do humano. Aprender para o mercado, viver para o mercado, implica desenvolver e competências específicas, que, nem sempre caminham no mesmo sentido das necessidades humanas mais fundamentais. Temse então que a educação para a profissionalização, apesar de ser importante, não dá conta de desenvolver nos indivíduos suas habilidades para a vida de modo mais amplo, mais completo. A carência do conhecimento de si na educação conduz àquilo que Krhishnamurti (1953, p. 66) já demonstrava quando afirmava que: Todo desenvolvimento parcial de nossa feição geral será inevitavelmente desastroso, tanto para nós como para a sociedade; eis por que é da maior importância que consideremos os problemas humanos de um ponto de vista integrado.

Na

busca

de

respostas

as

pessoas

procuram

seu

autoconhecimento. E é aí que alguns buscam ajuda na sabedoria do Eneagrama. O Eneagrama é uma cosmovisão da personalidade humana que possui toda uma simbologia e uma teoria própria. É uma chave interpretação do humano a partir de nove tipos ou estruturas de personalidade. Está fundamentado em conhecimentos da psicologia moderna e nas antigas tradições espirituais. 113

A

tipologia

da

personalidade

humana

apresentada

pelo

Eneagrama elucida potenciais, tendências, armadilhas e determinismos que

muitas

vezes

condicionam

os

comportamentos

humanos.

Elucidando estes, o Eneagrama ajuda o indivíduo a: conhecer-se; conhecer melhor os outros, e; relacionar-se melhor consigo e com os outros.

Nessa

perspectiva

o

Eneagrama

aparece

como

uma

possibilidade, um caminho para a promoção do desenvolvimento integral do humano, que, invariavelmente perpassa pelas veredas do autoconhecimento.

FORMAÇÃO HUMANA E A CONDIÇÃO HUMANA A condição humana é talvez um dos mais fascinantes mistérios que cercam o próprio humano. Abre um conjunto combinativo, quase infinito de possibilidades de ser, pensar e agir; expressa paradoxos, ambigüidades e contradições, assim como impõe limites desafiantes – alguns possivelmente intransponíveis. É muito pouco provável que se conceba o humano fora ou para além de sua condição. Uma ampla compreensão do

fenômeno humano parece

somente ser possível a partir do princípio da incerteza, pois no decorrer de sua história o homem se revela em suas múltiplas facetas que articulam uma visão do humano inserido e ao mesmo tempo alheio à natureza; assim como embebido na/de cultura. Diversas dificuldades que decorrem da tentativa de explicar o humano decorrem do caráter ambivalente de sua condição. Morin (2008: p. 38), por exemplo, vai afirmar que:

Estamos, a um só tempo, dentro e fora da natureza. Somos seres simultaneamente, cósmicos, físicos, biológicos, culturais, cerebrais, espirituais… Somos filhos do cosmo, mas, até em conseqüência de nossa humanidade, nossa cultura, nosso espírito, nossa consciência, tornamo-nos estranhos a esse cosmo do qual continuamos secretamente íntimos.

114

Ao longo da história da humanidade vimos que há uma dificuldade de ordem ontológica de conceber a multiplicidade do homem que pertence de modo completo e simultaneamente ao reino da natureza e da cultura. Equívocos advindos desta dificuldade de compreensão da complexidade humana têm operado verdadeiras mutilações do pensamento, da ação e da riqueza de possibilidades do ser humano. Prejuízos decorrentes de tal situação são perceptíveis na política, na economia, na educação e em diversas outras áreas da atividade humana. A visão fragmentada a respeito do homem não tem dado conta dos problemas que o afetam. São problemas de diversas ordens, alguns inclusive de natureza desconhecida, mas que perpassam por diversas áreas do saber como a psicologia, biologia, antropologia, sociologia, entre outras. Entretanto, ainda que provenham de distintas origens, parecem convergir para um destino e alvo comum: a existência humana. Neste sentido, e guardadas as devidas proporções, não seria demasia falar em crise existencial humana. Curioso é que a própria visão limitada e fragmentada que o homem possui de si e de sua condição humana, venha limitar e fragmentar seu pensar e agir, influenciando em verdadeiras feridas da existência. Porém, a dor é sentida pelo humano completo, o humano do possível e da contradição. Fragmentar o mundo, o saber e a experiência de si irão então constituir-se num ato de negação de si, em sua própria condição humana. Morin (2008), assim como outros estudiosos do pensamento complexo defendem que os saberes sejam religados, de modo a abraçarem o fenômeno humano em sua amplitude e complexidade. Seus comentários expostos abaixo apresentam exemplos de como estamos, em nossa condição, implicados de modo completo nos fenômenos de nossa existência, e não fragmentados por áreas: 115

O cérebro, por meio do qual pensamos, a boca, pela qual falamos, a mão, com a qual escrevemos, são órgãos totalmente biológicos e, ao mesmo tempo, totalmente culturais. O que há de mais biológico – o sexo, o nascimento, a morte – é, também, o que há de mais impregnado de cultura. Nossas atividades biológicas mais elementares – comer, beber, defecar – estão estreitamente ligadas a normas, proibições, valores, símbolos, mitos, ritos, ou seja, ao que há de mais especificamente cultural; nossas atividades mais culturais – falar, cantar, dançar, amar, meditar – põem em movimento nossos corpos, nossos órgãos; portanto, o cérebro (MORIN, 2008: p. 40).

Cada ser humano parece guardar em si um caráter “unidual”. Demonstra ser uno, ter sua singularidade, individualidade que lhe fazem específico dentre os outros bilhões de pessoas que habitam o planeta; e, ao mesmo tempo, revelam seu caráter múltiplo, de ser parte de um todo e trazer consigo diversos papéis e facetas de um mesmo humano: razão

e

emoção,

paixões,

amores,

ódios,

delírios,

felicidades,

infelicidades, enganos, traições, imprevistos, destino, fatalidades… MORIN, (2008: p. 45). Enquanto mapa de consciência o Eneagrama parece ser um lembrete, uma aposta na condição humana, que não pode ser treinada, mas pode ser formada. CONSIDERAÇÕES FINAIS Até

o

presente

momento

a

condição

humana

tem

se

demonstrado um fenômeno atemporal. Passam-se os tempos, mas continuam

seus

mistérios,

suas

curiosidades,

contradições,

características, seus dilemas. Continua aglutinando grande interesse por parte de pesquisadores, teóricos, literários, entre outros. Os mecanismos deterministas da personalidade exercem grande influência sobre os comportamentos humanos e são uma chave para a descoberta de formas mais generosas e efetivas de interação humana, não somente da pessoa consigo mesma, mas também com os outros em sua volta. O Eneagrama, conforme constatamos nas leituras sobre 116

suas propostas, ajuda o sujeito a compreender e interpretar as facetas da condição humana. Consideramos a partir das leituras parciais sobre o Eneagrama que este guarda um teor educativo, capaz de auxiliar as pessoas na busca por seu autoconhecimento, e que este autoconhecimento, como defende Krhisnamurti (1953), é uma das principais chaves para a promoção de uma educação que esteja mais implicada no significado da vida. Partindo das idéias apresentadas até aqui, vemos que é emergente a necessidade de repensar a compreensão do humano, reconciliar o mesmo com sua própria condição, da qual ele parece buscar afastar-se em certos momentos, mas ainda assim, desta (condição), continua íntimo. Repensar as bases da compreensão humana pode ser o disparador de uma série de mudanças que talvez ocorram a partir daí, que podem influenciar diretamente todos os setores da atividade humana. Os processos de formação humana hão de reconhecer e lidar com o fato de que estamos todos implicados no que chamamos de condição humana. Esta contém características que lhes são próprias, assim como nos impõe limites, contradições, possibilidades… Um processo educativo que negue tal fato, não tem como contribuir para formar sujeitos livres e autônomos o suficiente para enfrentar de forma consciente os prazeres e desafios de estar vivo e de viver em sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ATLAN, Henri. A Ciência é Inumana? Ensaio sobre a livre necessidade. São Paulo: Cortez, tradução de Edgard de Assis Carvalho, 2004. BAUMAN, Zigmunt. Vida Líquida. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2007.

117

CAMPBELL, Joseph. Mito e Transformação. Trad. Frederico N. Ramos. São Paulo: Ágora, 2008. KRISHNAMUTRI, J. A Educação e o Significado da Vida. Tradução de Hugo Veloso. Editora Cultrix. São Paulo: 1953. MORIN, Edgar. A Cabeça Bem-Feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Bertrand Brasil: 2008. PALMER, Helen. O Eneagrama: compreendendo-se a si mesmo a aos outros em sua vida. [tradução Marisa do Nascimento Paro]. - São Paulo: Paulinas, 1993. RISO, D. R.; HUDSON, R. A sabedoria do eneagrama. São Paulo: Cultrix, 1999;

118

CONVERSAÇÕES SOBRE A FELICIDADE NO UNIVERSO SIMBÓLICO DO CONSUMO

Jéssica Ferrer Eduardo de Amorim17

RESUMO: Este artigo reflete sobre a felicidade no universo simbólico do consumo a partir das reflexões da sociologia do consumo, das emoções e da cultura. A discussão será fundamentada por Barbosa, Lipovestky, Bauman, Baudrillard dentre outros que analisam e discutem essencialmente o fenômeno do consumo na contemporaneidade. Ressaltamos suas percepções críticas sobre o conceito da felicidade associada ás práticas de consumo, e investigaremos suas visões sobre a posição ocupada pelo consumo na vida dos indivíduos. A felicidade é empregada e difundida na sociedade de consumo principalmente através dos apelos dos meios de comunicação em massa. Nesse sentido, ela se introduz no imaginário social coletivo, tornando-se um grande valor na cultura contemporânea. Palavras- Chaves: Felicidade; Consumo; Imaginário social.

1. INTRODUÇÃO “Trata-se, no fundo, de misturas. Misturam-se as almas nas coisas, misturam-se as coisas nas almas. Misturam-se as vidas, e assim as pessoas e as coisas misturadas saem cada qual de sua esfera e se misturam (...)” (MAUSS, 1974:71).

O século XXI é marcado pela difusão e expansão das novas tecnologias, das novas modas e bens de consumo expansivos a uma parcela da sociedade. Assim, a sociedade contemporânea é, sobretudo, uma sociedade de consumo, em que o consumo torna-se elemento fundamental na vida dos indivíduos. Nesta sociedade, percebe-se que o consumo possui “uma função acima e além daquela de satisfação de necessidades materiais e de reprodução social” (BARBOSA, 2009, p. 14). Isto é, vê-se a consolidação de uma cultura de consumo em que o espaço social produzirá consequências e

17

Graduada em Ciências Sociais (UFPB), Mestra em Sociologia (UFPB). Atualmente Cursa licenciatura em Ciências Sociais (UFPB) trabalhando com a temática consumismo e a felicidade sob ponto de vista da Sociologia das Emoções. [email protected].

119

efeitos na vida dos indivíduos produzindo uma nova cultura urbana, assim, originando novos modos ou estilos de vida, como bem frisa Slater (2002, p.32): A noção de “cultura do consumo” implica que, no mundo moderno, as práticas sociais e os valores culturais, idéias, aspirações e identidades básicos são definidos e orientados em relação ao consumo e não outras dimensões sociais como trabalho ou cidadania, cosmologia religiosa ou desempenho militar.

Deste modo, o fenômeno consumo passa a ser tratado nesta sociedade como o mais importante princípio estruturante da sociedade. O consumo modela as estruturas da sociedade e media as relações sociais entre os indivíduos, tornando-se um elemento de estudo na teoria sociológica. É constatado que o consumo é um elemento “privilegiado para determinar a consciência e a ação social”, concluindo que este elemento é tratado como o organizador das estruturas sociais. Barbosa (2009) sublinha este fenômeno sendo essencialmente significativo. Sua ideia central sublinha o consumo para além de seu aspecto econômico, percebendo-o como um fenômeno sociocultural dotado de sentidos sociais, assim, as práticas de consumo também possuem sentidos sociais. Isto é, o consumo é percebido para além da

satisfação

das

necessidades

físicas

e

biológicas,

e

da

lógica

econômica/utilitarista, agora o apreendendo como sendo uma prática cultural (BARBOSA, 2006). É nesse sentido que percebemos a ressignificação do conceito de consumo, ou novas maneiras de compreender este fenômeno. O consumo,

então, pode ser compreendido como manifestação social, no sentido em que é “una práctica constituyente y no solo un epifenómeno construido de las relaciones de producción y dominacion. Dicho de outro modo, hay homologia estructural entre el campo de lãs prácticas de consumo y el campo de las relaciones sociales” (ALONSO, 2006, p. 189). Assim, ainda sublinhamos quando Canclini nos diz que a sociedade contemporânea de consumo se organiza por grupos de interesse, de classes, de reconhecimento social, e é assim que

“se constrói parte da racionalidade integrativa e comunicativa de uma sociedade” (2008, p. 63), criando sentidos sociais que podem ser

120

analisados pela satisfação das necessidades mais básicas ou pela satisfação de desejos e prazeres. Contudo, nosso artigo se insere em um estudo mais amplo sobre o fenômeno do consumo, deste modo, tratando sobre sua disseminação entre os segmentos populares. Salientamos a partir de Barbosa (2006) a exclusão dos estudos sobre as classes sociais de baixa renda nas ciências sociais e humanas, excluindo principalmente as analises sobre o consumo entre essas classes. Estes estudos eram tratados diante um imaginário coletivo que levava a crer que os segmentos -ou a parcela pobre da sociedade- não tinham condições financeiras necessárias para consumir. Indagavam-se muitos teóricos,

“Por

que investir em conhecer quem não tem dinheiro para comprar?” (BARBOSA, 2006, p. 9). E a mesma, ratifica que, o fenômeno do consumo só pôde ser analisado e compreendido mediante sua expansão para todos os estratos sociais, assim, surgem análises sobre os segmentos de baixa renda que se tornaram

em

muitos

casos

os

principais

alvos

de

políticas

publicas

relacionadas ao incentivo ao consumo em prol da diminuição das desigualdades sociais. O que se tornou evidente, é que os segmentos populares

estão

inseridos

em

um

novo

cenário

econômico-social

proporcionado pela expansão do consumo, formando o uma nova classe de consumidores18. O fenômeno do consumo, dentro desta perspectiva, media às relações sociais e deste modo, existem valores simbólicos associados às práticas consumistas cotidianas, que justificam e sustentam o consumo, assim estão, os segmentos populares inseridos na sociedade de consumo e numa cultura de consumo19. As práticas e hábitos de consumo entre os segmentos populares são caracterizadas por valores simbólicos pertinentes a este universo, pois, o

18

A nova classe de consumidores é a denominada nova classe média ou emergente, que se caracterizam principalmente pelo seu crescimento progressivo no mercado de trabalho formal e de consumo. No Brasil, esta constatação foi realizada por uma pesquisa do FGV – Fundação Getúlio Vargas- realizada entre 2003 e 2009 em que foi verificada a expansão da classe média por meio do ingresso dos indivíduos da classe E e D para a classe C representando cerca de 94,9 milhões de pessoas (50,5%).O que nos revela aqui como razão da expansão deste fenômeno, isto é, disseminação do consumo entre os segmentos populares é seu ingresso no mercado formal de trabalho, segundo a pesquisa da FGV, e consequentemente num mercado de consumo proporcionando mobilidade social e formando uma nova classe de consumidores em que estes estão cada vez mais aptos a consumir; 19

Utilizo neste artigo Sociedade de consumo como sinônimo de Cultura de Consumo.

121

consumo entre estes além de uma necessidade básica prometem aos consumidores um padrão ou estilo de vida desejado. Estão todos os indivíduos sociais inerentes a lógica do capital e as lógicas sociais do consumo, numa sociedade urbanizada, industrializada, globalizada e informatizada. Com efeito, meu artigo se insere em um estudo abrangente sobre a correlação entre consumo, emoções e cultura. Investigamos, no decorrer do mesmo, o significado social da felicidade no universo simbólico do consumo entre segmentos de baixa renda na cidade de João Pessoa- Paraíba, investigação esta extraída de meu trabalho de conclusão de curso, indicando, sobretudo, as conversações e os diálogos entre a felicidade e o consumo na sociedade contemporânea. Sobre os sujeitos da pesquisa, estes foram escolhidos segundo o critério de renda familiar até quatro salários mínimos, o equivalente a R$2.180,00. A pesquisa empírica foi realizada em dois centros comerciais populares da cidade de João Pessoa, conhecidos como ‘o Centro de Passagem’ e ‘o Terceirão’. Ambos locais escolhidos são destinados a venda de produtos e serviços variados, e encontrando em enorme número serviços e venda de eletroeletrônicos. Vale salientar que os dois centros comerciais populares também são conhecidos pelos moradores da cidade como locais em que se encontram produtos bastante acessíveis, principalmente por se tratar de produtos em grande parte falsificados e pirateados.

2. CONVERSAÇÕES (E DIÁLOGOS) SOBRE A FELICIDADE NO UNIVERSO SIMBÓLICO DO CONSUMO

O tema da sociedade de consumo na contemporaneidade levanta várias problemáticas sobre identidade e subjetividade; diferença e igualdade social; gênero e classes sociais; comunicação, estética e educação; imagem e imaginário social; manipulação e alienação, dentre outras. E entre as mais variadas questões sublinhamos a confluência entre o universo simbólico do consumo, emoções e cultura. A felicidade e o consumo para muitos teóricos estão estreitamente relacionados em uma sociedade organizada pelo consumo incessante e 122

ininterrupto de bens materiais e simbólicos, envolvidos por um imaginário coletivo condizente a uma sociedade de ordem social capitalista, globalizada e informatizada. A sociedade de consumo para Jean Baudrillard (1991; 1993), por exemplo, produz uma variedade de códigos sociais anunciando-os aos indivíduos na medida em que estes vivem com objetos e mercadorias ao seu redor. Estes códigos são mecanismos próprios do mundo contemporâneo em que os indivíduos se comunicam em conformidade20 a uma lógica estrutural da diferenciação social. Essa lógica produz indivíduos distintos uns dos outros. Baudrillard, nesse sentido, nega uma função utilitarista do consumo, sublinhando que os objetos são cobertos e mediados por signos. O consumo não é uma simples prática funcional e nem serve como prestígio pessoal, mas como um sistema de linguagem entre significados e significantes sociais enunciados, recebidos e inventados aos indivíduos. O consumo se define como uma prática de manipulação sistemática destes códigos/ signos. (BAUDRILLARD, 1993, p. 94). E le ainda ratifica a ideia da felicidade como elemento supremo na sociedade consumo, assim, corrobora que exista a propensão da sociedade de consumo para alcançar a felicidade. A publicidade e a propaganda, para este, possui papel fundamental, a de manipular os indivíduos dessa sociedade os fazendo- ou os obrigando- a consumir, perdendo de vista suas necessidades reais. O consumo assim, se associada ao desejo em seu sentido social e a lógica social, inconsciente, da diferença. Lipovetsky (2007) também ratifica a ideia da felicidade como imperativo da sociedade de consumo, porém assinala que esta felicidade é paradoxal. A busca pela felicidade na sociedade de consumo constitui uma prática crucial para os indivíduos, porém é nesta cultura hedonista ou nesta cultura material da felicidade em que surge a ‘infelicidade’. Indaga-se Lipovetsky no limiar desta questão se o culto moderno do Homo Felix consiste no instrumento de nossa maior infelicidade. Assim este autor sublinha “quanto mais

se

exprimem

as

exigências

de

20

proximidade

emocional

e

de

Entretanto, a conformidade para Baudrillard não significa a homogeneização consciente do grupo, mas significa que os indivíduos que constituem um mesmo grupo partilham de códigos semelhantes e partilham signos que os diferenciam de outros grupos.

123

comunicação intensa, mas as decepções pontuam as existências individuais” (2007, p. 170). Lipovetsky (2007), no entanto, aponta uma cultura em que os bens, a ordem urbana, a educação e a mídia, tudo é pensado em nome da felicidade. Existem métodos e técnicas pra obtê-la, e estas se multiplicam cada vez mais se tornando imperativo nos dias atuais. Desta maneira, este autor cita Bruckner que aponta a felicidade como ideal supremo da sociedade de consumo, se tornando um sistema de intimidação em que todos os indivíduos são vítimas ratificando uma ‘felicidade despótica’.

Toda a vida das sociedades superdesenvolvidas se apresenta como uma imensa acumulação dos signos do prazer e da felicidade. Vitrines rutilantes de mercadorias nas publicidades resplandecentes de sorriso, do sol das praias nos corpos de sonho, de férias com divertimentos midiáticos, é sob os traços de um hedonismo radiante que se mostram as sociedade opulenta. Por toda parte ressoam os hinos ao maior bem-estar, tudo se vende em promessas de volúpia, tudo se oferece como de primeira qualidade e com musica ambiente difundindo um imaginário de terra da abundância. Nesse jardim das delicias, o bem estar tornou-se Deus, o consumo, seu templo, o corpo, seu livro sagrado. (LIPOVETSKY, 2007, p.153)

Essa busca pelo bem-estar, pela felicidade interior se consolida na terceira fase do capitalismo de consumo ou na “era do hiperconsumo”

21

em

que as experiências emocionais, a busca pela qualidade de vida e o consumo privado tomam o lugar do consumo ostentatório, do prestígio ou da posição social. Bauman (2009) também reflete sobre a busca pela felicidade na sociedade líquida - moderna. Ele sublinha o que significa socialmente a felicidade em uma sociedade de consumo, ou como o mesmo denomina e crítica em suas analises, em uma cultura de consumidores. Conforme este pensador é esta sociedade que direciona os indivíduos a buscar a felicidade como um projeto de vida. Um dos efeitos mais seminais de se igualar a felicidade à compra de mercadorias que se espera que gerem felicidade é 21

A terceira fase do capitalismo de consumo ou a “era do hiperconsumo” se refere á terceira fase do ciclo evolutivo do consumo segundo Lipovetsky (2007).

124

afastar a probabilidade de a busca da felicidade algum dia chegar ao fim (...). Na pista que leva à felicidade, não existe linha de chegada. Os pretensos meios se transformam em fins: o único consolo disponível em relação ao caráter esquivo do sonhado e ambicionado “estado de felicidade” é permanecer no curso; enquanto se está na corrida, sem cair exausto nem receber um cartão vermelho, a esperança de uma vitória futura se mantém viva. (BAUMAN, 2009, p. 17)

A ideia da felicidade como projeto de vida, então, é proporcionada e vendida pelo mercado, ratificando que, é através da aquisição de mercadorias ou bens, que se alcança a felicidade. Porém, é também o próprio mercado que torna esta busca uma corrida interminável. O se manter nessa busca incessante, sublinha Bauman (2009) é o que mantêm viva a esperança de viver feliz, isto é, a esperança de conseguir uma vida melhor. É nesta perspectiva, a de um imaginário social associado à conquista da felicidade através de bens simbólicos e materiais, que percebemos os significados sociais da felicidade no universo simbólico do consumo na atualidade, a partir principalmente da conexão entre essa felicidade as práticas de consumo entre os segmentos populares da cidade de João Pessoa.

2.1 Os significados sociais da Felicidade entre os segmentos populares da cidade de João Pessoa

É importante frisar que mediante pesquisas já realizadas22, apreendemos três tipos de consumidores entre os segmentos populares da cidade de João Pessoa, são: (a) os consumidores hedonistas, (b) consumidores pragmáticos e (c) consumidores hedonistas e pragmáticos. Nosso estudo, desta maneira, ratificou a presença de consumidores que estão envolvidos pelo imaginário coletivo de uma sociedade de consumo, em que a felicidade é o bem

22

Refiro-me neste ponto, a estudos e análises realizadas por mim, enquanto estudante voluntária do projeto ‘Da Individualização a distinção: O significado social do consumo entre classes sociais populares da cidade de João pessoa’, entre os anos 2009 e 2011, promovido pelo DCS da Universidade Federal da Paraíba.

125

supremo e o fim desejado por todos, mesmo que apenas condicionados por suas condições financeiras. Vejamos a seguinte fala da entrevistada, quando perguntado se consumir a deixava feliz, Sim, ‘né’! Quando é coisa boa fico feliz sim. (...) É tipo coisa boa! É assim, quando é uma coisa que a gente quer pra gente, por que pros outros não. A gente gasta muito dinheiro com os outros, imagina se compro pra mim e pros meus filhos, além de economizar é coisa pra gente. É isso! (Entrevistada 1; até três salários mínimo; 2° completo)

A característica fundamental elucidada pela entrevista acima é seu caráter hedonístico quando a consumidora revela que comprar para si a deixa feliz, bem mais do que comprar para os outros. Porém se analisarmos mais atentamente esta afirmação percebemos mais outro significado, relacionado a um sentido pragmático, ou seja, que se deve gastar ou evitar o dispêndio comprando para os outros. Sua fala, no entanto, se envolve com estes dois sentidos sociais, ratificando uma das premissas do consumo emocional e individualizado. Isto é, conforme Lipovetsky (2007) “o consumo para si suplantou o consumo para o outro, em sintonia com o irresistível movimento

de

individualização

das

expectativas,

dos

gostos

e

dos

comportamentos” (2007, p. 42), vivenciados em uma cultura hedonistica ou uma cultura do desejo. Apesar, então, do sentido do consumo para esta consumidora se associar a um sentido mais pragmático e hedônico, a mesma revela ainda a associação entre produtos de marcas que remete ao status e a posição social, Uso! Perfume ‘da boticário’, calça da C&A, mas olha, faz um bom tempo que não compro. Compro às vezes final do mês quando preciso mesmo. O dinheiro não dá! Tem ó, aqueles perfuminhos ali, são tudo da Natura (risos), as vezes também compro aqui, que se for comprar nessas mulheres que vendem sabe, é uma careira só. (Entrevistada 1; até três salários mínimo; 2° completo)

Vale salientar que esta não foi a única vez em que a mesma mencionou que consome marcas. A mesma em outras de suas repostas afirma que já comprou sandálias e roupas de marca e, portanto, objetos caros mesmo com cartão estourado para ir a uma festa. Percebemos, então, que as

126

marcas contem a forte ligação com produtos de vestuários, assim, este atributo é fundamental na hora da compra de roupas, acessórios e sapatos para ela. A marca é sublinhada como um produto bom, mas caro, porém percebendo fundamentalmente que o produto ou objeto não é mais consumido em seu valor de uso, o que se consome de certo é o seu ‘nome’ e o seu ‘status’. Percebemos mais nitidamente a associação entre a felicidade e o consumo quando a entrevistada nos informa sua concepção sobre luxo e sonho de consumo, vejamos, (...) acho que luxo é ter muito dinheiro, sabe aquele povo que pode comprar tudo o que quer. “Tá” vendo ai esses artistas “tudinho”, tudo tem luxo(...). Quero ganhar na mega sena! Mulher, quem não quer ‘né’!? Daria pra comprar tudo, e dava pra pagar as dívidas que é mais importante. Primeiro eu ia pagar os cartões da C&A (...) depois comprava o que tinha que comprar, mas meu marido mesmo ele pensa logo em comprar um carro bonitão, esse é o sonho dele. E meus meninos querem é viajar, tão certo eles ‘né’!? Tá vendo como é bom gastar com a gente! (Entrevistada 1; até três salários mínimo; 2° completo)

O luxo se relaciona ao poder de compra e consumo. Percebemos, entretanto, uma ambiguidade em suas respostas, ao mesmo tempo em que ela frisa não se preocupar com o luxo dos outros e ‘não possuir esse luxo que os ricos possuem’ ela se contradiz ao dizer que sonha ganhar na mega sena para possuir tudo e comprar o que tem que comprar. O sonho de consumo desta consumidora está associado, desta maneira, a uma vida rica e melhor em que o meio essencial é o dinheiro e aquilo em que ele pode se converter, em compras e em consumo. Em outra fala, a consumidora ainda elucida o sonho de consumo do marido que vai de encontro com as suas expectativas, assinalando que ele deseja possuir um automóvel bonito. Esta última constatação é crucial, pois o carro para ambos aparecem como mecanismo de distinção social, de exibição. Assim, o sonho de consumo ou sonho de felicidade desta família transparece um projeto de vida desejado, ratificando a felicidade como fim último, ou seja, a ideia de uma vida feliz. A felicidade nos remete ao consumo, ao comprar produtos e possuí-los em grande quantidade. Quem analisa tal fato é Zygmunt Bauman que sublinha, “a busca dos meios considerados necessários para que uma vida assim seja alcançada, os mercados fazem 127

com que essa busca nunca possa terminar.” (2009, p.19). Desta maneira, essa critica do autor a cultura consumista consiste na ideia de que a felicidade é associada a aquisição de mercadorias, porém esta busca pela felicidade torna-se interminável, pois as mercadorias são descartáveis, isto é, o mercado é sempre possuído pelo novo, pela novidade. Os consumidores, então, estão presos a essa cultura de consumo, (...) perpétua a não satisfação de seus membros (...). O método explícito de atingir tal efeito é depreciar e desvalorizar os produtos de consumo logo depois de terem sido promovidos no universo de desejo dos consumidores. Mas outra forma de fazer o mesmo (...) satisfazendo cada necessidade/ desejo/ vontade de tal maneira que eles só podem dar origem a necessidades/ desejos/ vontades ainda mais novos. O que começa como um esforço para satisfazer uma necessidade deve se transformar em compulsão ou vício. (BAUMAN, 2008, p.64)

Vejamos esta seguinte fala, Sair de casa, ocupar a cabeça com outras coisas, tem hora que não aguento ficar em casa ‘afe’, um saco, e quando é pra comprar para mim melhor ainda. (Entrevistada 2; até três salários mínimos;2° grau incompleto)

São revelados na fala acima, os dois tipos de consumidores já mencionados neste trabalho, os pragmáticos e hedonistas. Assim, percebemos que o motivo para a consumidora sair para comprar seria uma fuga de problemas em casa ou do trabalho, refúgio de magoas e constrangimentos outros. Lipovetsky (2007) elucida esta relação entre frustrações e atividade de compra “Sofro, logo compro’: quanto mais o indivíduo está isolado ou frustrado, mais busca consolo nas felicidades imediatas da mercadoria” (2007, p. 60). Assim, também é visto que a atividade de compra para a mesma é como uma atividade prazerosa, e que está em oposição ao trabalho. A atividade do trabalho se assemelha a um fardo, e a esfera do consumo se assemelha a um ato de refúgio, e de prazer. O trabalho como fardo é revelado durante a entrevista, salientando ela que vida boa é ‘não passar, não cozinhar, não fazer nada e ficar de perna pro ar’. Com efeito, o poder de compra aparece como um meio para suprir carências e/ou frustrações. Lipovetsky ainda elucida que o consumo “(...) é 128

uma forma de consolo, funciona também como um agente de experiências emocionais que valem por si mesmas” (2007, p.61). Explicita-se que o modo de vida feliz e alegre procurado na sociedade de consumo é similar à busca da salvação – neste caso a salvação da alma ou a salvação na fuga de problemas. Nesta perspectiva, ainda podemos nos reportar a Collin Campbell (2006)23 quando sublinha que o comprar, ou o consumo, possui a capacidade de proporcionar prazer aos indivíduos. Deste modo, segundo Campbell, “um aspecto característico do consumo moderno é a extensão em que produtos e serviços são comprados pelos indivíduos para uso próprio” (2006, p.48), percebendo a atividade de compra como um ato prazeroso e individualizado. Foi perceptível, entretanto, nas duas entrevistas acima a correlação entre felicidade e o consumo principalmente quando assinalado o comprar para si como motivo de felicidade ou de bem - estar. Assim, o consumo tornase uma condição de existência do próprio indivíduo em busca de sua felicidade material e/ou simbólica. Percebemos também que o luxo se associa com as ‘coisas boas da vida’, significando ‘uma vida alegre, uma vida feliz’, em que o dinheiro proporciona tal modo de vida. É transparente, assim, a felicidade relacionada ao ter e ao poder comprar, e o luxar. O projeto de vida, então, da sociedade de consumo contemporânea é alcançar um modo de vida feliz associado ao crescimento da renda e da condição de vida dos indivíduos.

Lipovetsky sobre isso explicita: “toda a

sociedade se mobiliza em torno do projeto de arranjar um cotidiano confortável e fácil, sinônimo de felicidade” (2007, p.35). Quando perguntada a mais uma consumidora se ela gosta de comprar, ela responde, Gosto, é bom! Mais ‘tá’, é bom demais ‘ir no’ shopping comprar. O problema é que a gente quando começa não quer mais parar (...) meus pais vive reclamando, mas tipo eu ganho meu dinheiro, nem peço mais a eles. ‘Vou no’ shopping e compro minhas blusas, minhas calças sem peso na consciência. (Entrevistada 3; até quatro salários mínimos; 2°grau completo)

23

Campbell (2006) formula uma teoria da conduta hedonista em que o comportamento do consumidor moderno é caracterizado pela procura do prazer, e os indivíduos exercem controle sobre os estímulos que experimentam.

129

Na fala acima perceberemos mais atentamente o caráter hedonístico dos consumidores contemporâneos. Além disso, em maioria de suas repostas a entrevistada refere-se a roupas de marca, mostrando-se uma consumidora antenada no mundo da moda, apesar de possuir renda familiar até quatro salários mínimos. E ela continua sobre o que a motiva para sair às compras, Depende do que eu for comprar ‘né’ não? Quando eu preciso de algo assim pra casa, tá ‘precisando de ir’ na feria comprar comida, eu vou. Mas eu ‘vou no’ shopping Manaíra comprar roupas lá na X e na Y. E ainda fiz um cartão da Z esse ano, por que lá as roupas são as mais em conta e também são bonitas. Mais assim, meu pai reclama que compro muito, mas se eu trabalho e tenho meu dinheiro e ainda ajudo a família, o que sobra eu corro ‘pro shopping’ comprar as coisas pra mim. (Entrevistada 3; até quatro salários mínimos; 2°grau completo) (...) Não, quer dizer... Minhas roupas compro tudo lá. Tenho já cartão em duas lojas é bom que pode dividir ‘e tal’. Mais tipo sapato, sandália, bolsa compro por essas lojas aqui do centro. Mas adoro ir nele sabe, me distrai e compro e olho as novidades. (Entrevistada 3; até quatro salários mínimos; 2°grau completo)

Em todas suas repostas, ela refere-se sempre ao shopping como local em que faz suas compras, fazendo referência ao ambiente e/ou espaço luxuoso. Essa sua associação remete ao shopping um ambiente distintivo, indicando exibição e status social em frequentar tal local. Assim, o que a motiva a sair para comprar, se relaciona, como a mesma revela, tanto com as necessidades mais básicas (alimentação) e o estar indo ao shopping. O ir ao shopping, no entanto, é mencionado várias vezes pela mesma durante sua entrevista. Ir a este espaço ‘luxuoso’ é um mecanismo para se distinguir dos outros ou exibir-se. Esta distinção, pois, relaciona-se por vezes com o estado de felicidade da consumidora. Percebendo, desta maneira, conforme Lipovetsky (2007) que são atribuídos significados ou sentidos sociais ao espaço de consumo. Assim, sublinha este autor, Ao transformar os locais de venda em palácios de sonho, os grandes magazines revolucionaram a relação com o consumo (...). O grande magazine não vende apenas mercadorias, consagra-se a estimular a necessidade de consumir, a excitar o gosto pelas novidades e pela moda por meio de estratégias de sedução. (LIPOVETSKY, 2007, p. 30)

130

Porém os grandes magazines estão relacionados com o comércio massificado. Tanto os magazines quanto os grandes shoppings se fizeram em uma maneira de ocupar o tempo e de se desculpabilizar dos atos de compra característicos inicialmente da primeira fase do capitalismo de consumo em que “inventou o consumo- sedução, o consumo- distração” até os dias atuais (2007, p.31). Sobre o assunto, Lipovetsky ainda assinala que os shoppings são parte de um universo hedonístico e lúdico, salientando uma compra- prazer como um consumo experiencial. A terceira fase do capitalismo de consumo, portanto, apontando pelo autor como a era do hiperconsumo é marcado pela intensificação das atividades de compra, como ir ao shopping e olhar as vitrines como uma atividade ou uma ocupação de divertimento entre as classes populares. A atividade de compra desta maneira é retratada como um modo de vida em que os indivíduos estão sendo orientados por uma lógica emocional do consumo. Verificamos, ainda, os meios de comunicação como elementos centrais na disseminação e profusão de um imaginário social que associa e aprofunda a felicidade, e o viver melhor, na sociedade de consumo contemporânea. Com efeito, a felicidade no universo simbólico do consumo exerce “funcionalidade mágica (...) capaz de lhe oferecer tais possibilidades de realização imediata” (BAUDRILLARD, 1993, p.170). A televisão, por exemplo, é um exemplo factual. Mais de 55% dos entrevistados em nossa pesquisa afirmaram sempre assistir televisão, sublinhando também, que todos possuem pelo menos uma TV em suas casas; e nenhum afirmou nunca assisti-la. Castro (2007) aponta sobre a publicidade televisiva: “Se antes se vendiam coisas, atualmente vendem-se, sobretudo, imagens e modos de ser. Verifica-se um investimento mais sutil do mercado nos próprios processos de subjetivação.” (2007, p.139).

Pois é na sociedade de consumo contemporânea que a

publicidade, paralelamente a proliferação de produtos, possui um papel fundamental na venda de ideias e valores. Assim, a publicidade e a propaganda influência fortemente e estreitamente as práticas e os hábitos de consumo entre os segmentos populares. A publicidade bem como a mídia, segundo Castro (2007), desempenha um papel central, pois em grande parte provem destes meios o desejo por certos produtos.

131

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nosso trabalho se insere em um estudo amplo sobre a sociedade de consumo contemporânea a fim de verificar e investigar os significados e os sentidos sociais atribuídos a felicidade no universo simbólico do consumo, ou seja, o consumo enquanto portador de sentidos socioculturais. Apesar das práticas de consumo entre os segmentos populares estarem revelando um consumo mais individualizado e experiencial, estes são caracterizados primordialmente como consumidores do tipo pragmático, isto é, são consumidores que compram de acordo com suas condições financeiras, e que buscam principalmente economizar. Porém, é um erro afirmar que os indivíduos destes segmentos são consumidores caracterizados apenas como pragmáticos, percebendo a

inserção destes na sociedade de consumo e

numa cultura de consumo, formando uma nova classe de consumidores e reconfigurando a relação destes com o universo simbólico do consumo. É neste sentido, que o consumo não serve para satisfazer apenas as necessidades mais básicas dos indivíduos, observando as práticas de consumo entre estes associados ao suprir desejos e a procura de bem-estar, proporcionando prazer ou felicidade. A felicidade (e o viver bem e melhor) significa para este segmento social um projeto de vida proporcionado pelo universo simbólico da sociedade de consumo, na qual a felicidade é um bem supremo. Esta proposição ratifica um rompimento com a lógica irreflexiva dos atos de consumo entre os segmentos de baixa renda, rompendo com a visão de que estes sujeitos sejam passivos no capitalismo de consumo. Dentro deste contexto, as práticas de consumo entre os segmentos populares da cidade de João Pessoa estão interligadas às suas ‘novas aspirações’ de classe, em que maioria vive em cargo da felicidade como um projeto de vida desejado. A aquisição de mercadorias em excesso os remete a uma ‘boa vida’ similar a vida das classes superiores, partindo do pressuposto destes últimos possuírem uma vida melhor e mais fácil proporcionada por suas altas condições financeiras para satisfação não apenas das necessidades, mas dos desejos e sonhos de felicidade. A felicidade, entretanto, no universo simbólico do consumo objetiva-se cada vez mais em uma busca de experiências novas, expressa em práticas e 132

hábitos de consumo voltados para si, numa perspectiva subjetiva e individual em detrimento das práticas de consumo como mecanismo de distinção social ou como sistema de diferenciação social como propôs respectivamente Bourdieu (2007) e Baudrillard (1991; 1993). Porém estas lógicas não são excluídas, quando ainda percebemos que o consumo principalmente de vestuário está envolvido por uma lógica da distinção social, isto é, o consumo confere status, pertencimento a um grupo ou diferencia socialmente os indivíduos, relacionados também com os locais de compra. A felicidade neste sentido se relacionaria em um segundo plano como assinalou Baudrillard (1993) ao ‘mito da igualdade’, surgindo como uma “exigência de igualdade (ou, claro está, de distinção) e deve em tal demanda significar-se sempre a propósito de critérios visíveis (...)” (1993, p. 48). As incitações à felicidade são legítimas quando esta não impede a autonomia dos sujeitos, não impedindo a formação dos mesmos e não excluindo suas consciências. Assim, a felicidade nesta cultura consumista é vista como paradoxal, em que as decepções marcam as existências individuais e em que os indivíduos entrelaçados pela relação entre consumo e felicidade se tornam vítimas da lógica do mercado. As experiências individuais e os modos de vida são mercantilizados gradativamente, apontando uma felicidade mercantil. O mercado vende a felicidade, e este prospera na medida

em que

os

indivíduos

não satisfazem seus

desejos

e

suas

‘necessidades’, ressaltando que a insatisfação perpétua é proporcionada pelo próprio mercado para sua manutenção e expansão. Assim, os indivíduos estão presos à lógica do capital proporcionada principalmente pela publicidade e propaganda segundo alguns autores que corroboram com a ideia da felicidade como bem supremo da sociedade de consumo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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133

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CASTRO, G. Mídia, cultura e consumo no espetáculo contemporâneo Em: Revista da ESPM, Vol. 14, Ed. nº 4, julho /agosto 2007. São Paulo: ESPM, 2007. CAMPBELL, Colin. A ética romântica e o espírito do consumismo moderno. Rio de Janeiro, Rocco, 2001. LIPOVETSKY, Gilles. A Felicidade Paradoxal. Ensaio sobre a Sociedade de Hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. SENNETT, Richard. O declínio do homem público. São Paulo, CIA das Letras, 1993. SLATER, D. Cultura do consumo & modernidade. São Paulo, Nobel, 2001.

134

“BIUTIFUL”: REVISITANDO A TEORIA CRÍTICA A PARTIR DE UM CASO FICCIONAL

Fábio Gomes de França24

Resumo: Neste paper pretendemos mostrar, a partir da análise de algumas cenas do filme “Biutiful”, como podemos compreender, à luz da dinâmica atual das relações sociais, como o alcance das consequências desencadeadas pela razão humana ainda faz parte de uma modernidade em desenvolvimento. Para tanto, revisitamos os dois principais expoentes fundadores da Teoria Crítica: Adorno e Horkheimer. A sua obra a “Dialética do Esclarecimento” servir-nos-á de referência teórica para, a partir do filme mencionado, revisitarmos o pensamento desses autores e mostrarmos o quanto suas contribuições teóricas permanecem válidas para buscarmos explicações que elucidem os fenômenos inerentes a uma modernidade dialética.

Palavras-chave: Razão, modernidade, Teoria Crítica, Dialética do Esclarecimento.

INTRODUÇÃO

A modernidade surgiu vinculada a ideais emancipatórios que delegaram ao homem, por intermédio de sua capacidade racional de entender e transformar o mundo e a si mesmo, a missão de concretizar a sua liberdade como ente autônomo e capaz de autorrealização. Para tanto, o homem desenvolveu, de acordo com sua crença na força do progresso, as ferramentas capazes de realizar esse intento como a técnica, a ciência, a política, a filosofia, o cálculo capitalista, o industrialismo. No entanto, inicialmente ver-se-á que essa relação entre razão humana

e

modernidade

desenvolveram

um

esteve

progresso

vinculada

caracterizado

24

a

premissas

por

avanços

que e

Graduado em Segurança Pública pelo Centro de Educação da Polícia Militar da PB, Mestre em Sociologia (UFPB) e Doutorando em Sociologia (UFPB). [email protected].

135

consequências. Tivemos, portanto, o estabelecimento de uma razão promotora do paradoxo que colocou o homem como vítima de si mesmo frente a sua capacidade de dominar a natureza e de compreender existencialmente as suas próprias faculdades. Diversas explicações foram teorizadas no campo das ciências humanas e da filosofia25 sobre esse paradoxo moderno, mas interessounos destacar a Teoria Crítica como um projeto que usou da razão para criticar a legitimação dessa mesma razão, que passou a conceitualizar a realidade e o “mundo da vida” por meio de um positivismo pragmatista e de uma metafísica especulativa. Adorno e Horkheimer foram as figuras destacadas desse sentimento crítico marcado pelo pessimismo num mundo dominado pelos princípios técnico-racionais que alcançaram todas as esferas da existência humana, segundo eles. Por fim, para demarcar o entendimento presente do modo crítico de analisar o governo da razão sobre o homem na realidade por meio da Teoria Crítica26, destacar-se-á as imagens do filme “Biutiful”, numa interrelação

com

a

obra

a

Dialética

do

Esclarecimento,

destacadamente o grande ícone do pensamento conjunto daqueles autores.

1 – A RAZÃO COMO SENTIDO DA MODERNIDADE

Em sua obra “Tudo que é sólido desmancha no ar”, Marshall Berman nos diz que “ser moderno é viver uma vida de contradição. É sentir-se fortalecido pelas imensas organizações burocráticas que detêm o poder de controlar e frequentemente destruir comunidades, 25

Destacamos aqui toda a tradição do pensamento ocidental com ênfase para autores como Max Weber, Karl Marx, Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud e Michel Foucault. 26 Falamos aqui da Teoria Crítica desenvolvida especificamente pela 1ª geração da escola de Frankfurt, destacadamente àquela desenvolvida no pensamento de Adorno e Horkheimer.

136

valores, vidas; e ainda sentir-se compelido a enfrentar essas forças” (1986, p. 13). Ainda segundo esse autor, que buscou em sua obra mostrar o significado do que é viver, compreender e sentir esse mundo dito “moderno”, a modernidade configura-se como uma “experiência de tempo e espaço, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida – que é compartilhada por homens e mulheres em todo o mundo” (Ibidem, p. 15). Na busca do entendimento desse sentido paradoxal

que concretiza

o

processo

de modernidade,

ainda

remetemo-nos à visão bermaniana sobre sua interpretação da estória de Báucis e Filêmon, que se encontra no capítulo sobre o “Fausto de Goethe”, e que, portanto, diz respeito a um mito grego 27 inserido na peça goethiana. Ao revisitar o mito, segundo Berman (1986), Goethe nos faz observar que um casal de velhos chamados de Báucia e Filemo – nomes tomados de empréstimo do mito - vive numa pequena colina, local que sempre foi a morada do casal que dava acolhida a marinheiros náufragos e sonhadores. Só que os velhos encontram-se no caminho das transformações empreendidas por Fausto, pois na sua visão de querer construir grandes obras que o traduzam como “o Fomentador”, Fausto pretende destruir a morada do casal de velhos, que são “pessoas que estão no caminho – no caminho da história, do progresso, do desenvolvimento; pessoas que são classificadas, e descartadas como obsoletas” (Ibidem, p. 66). Por não aceitar as propostas insidiosas de Fausto para deixarem o local, o outro lado do progresso mostra-se por intermédio de Mefistófeles, que a pedido de Fausto queima a morada do casal com seus corpos e toda uma história que não importa aos princípios transformadores do discurso progressista da modernidade. Desse modo, Fausto é o símbolo do que Berman (1986) interpreta como a “Tragédia do Desenvolvimento”, pois ele carrega em si um potencial criativo-destruidor disseminado pelo ideal 27

Para um melhor conhecimento do mito de Báucis e Filêmon ver Bulfinch (2006).

137

progressista da modernidade. É nesse contexto que Marx e Engels também nos ajudam a entender essa dialética moderna que encontra na fusão com o desenvolvimento do capitalismo e da burguesia (elementos caros à modernidade) a fundamentação de sua existência: A grande indústria criou o mercado mundial, para o qual a descoberta da América preparou o terreno. O mercado mundial deu um imenso desenvolvimento ao comércio, à navegação, às comunicações por terra. Subjugação das forças da natureza, maquinaria, aplicação da química na indústria e na agricultura, navegação a vapor, ferrovias, telégrafo elétrico, exploração de continentes inteiros [...]. A burguesia moderna não deixou subsistir de homem para homem outro vínculo que não o interesse nu e cru, o insensível “pagamento em dinheiro” (MARX ; ENGELS, 2009, p. 47-50).

Heller e Fehér (1995) esclarecem ainda mais esse sentido dialético da condição moderna de existência ao afirmarem que a “dialética é a dinâmica da modernidade” (p. 53). Ao analisarem o que chamam de “pêndulo da modernidade”, esses autores constatam que é próprio a essa época de mudanças, que deixou para trás um ordenamento prémoderno preso à tradição feudal, uma dinâmica que, ao se colocar de forma anterior ao processo de ordenação social moderna alcança todos os recônditos do planeta. Essa dinâmica da modernidade consolida-se por meio de conflitos internos que, através da presença de uma constante negação, sempre enseja novos ciclos e superações, nesse sentido tornando inevitável a contradição moderna em todos os níveis da vida social humana. Dessa forma, Heller e Fehér (1995) ainda destacam que a modernidade quando faz oscilar o seu pêndulo em variados extremos (individualismo x comunitarismo, Estado provedor x mercado autoregulado, secularização x preservação do sagrado), centra-se em três lógicas principais, ou seja, a divisão funcional do trabalho, a arte de governar e a tecnologia. A percepção teórica sobre o pêndulo da modernidade torna-se interessante para enxergarmos que o processo de construção do mundo moderno não se desenvolve num caminho unilateral. É nesse 138

sentido que Bauman (1998) demonstra, ao explicar o significado sociológico do Holocausto cometido pelos nazistas que esse fenômeno “não foi uma antítese da civilização moderna e de tudo o que ela representa. O Holocausto pode ter meramente revelado um reverso da mesma sociedade moderna cujo verso, mais familiar, admiramos” (p. 26). O que está presente nessa certificação é que “em nenhum momento de sua longa e tortuosa execução o Holocausto entrou em conflito com os princípios da racionalidade. Ao contrário, resultou de uma preocupação racional gerada pela burocracia fiel a sua forma e propósito” (Ibidem, p. 37, grifos do autor). Acrescentamos assim que o modo racional de apreensão do mundo a partir da relação sujeito x objeto propalado pelo modelo científico centrado no método matemático-experimental e na filosofia do sujeito estabelecida pelo cartesianismo-kantismo não pode deixar de ser observado quando se fala de modernidade, pois eis que aí reside seu cerne. Na sua “Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita”, Kant (1986) destaca as bases de entendimento do principal propulsor de uma concepção moderna de apreensão e construção do mundo. Para ele, a razão deve ser o elemento condutor da espécie humana no desenvolvimento do devir histórico, pois “a razão é a faculdade de ampliar as regras e os propósitos do uso de todas as suas forças muito além do instinto natural, e não conhece nenhum limite para seus projetos” (Ibidem, p. 11). Por meio desse pensamento positivo em relação à razão, Kant acredita que essa última diz respeito a um “propósito da natureza” no que concerne à vida humana e, nesse sentido, a razão é uma condição imanente ao homem porque “a natureza quis que o homem tirasse inteiramente de si tudo que ultrapassa a ordenação mecânica de sua existência animal e que não participasse de nenhuma felicidade senão daquela que ele proporciona a si mesmo, por meio da própria razão” (Ibidem, p. 12). Para Kant, é a razão que capacita o homem a encontrar os 139

fundamentos morais e políticos que permitem determinar uma história de equilíbrio entre os indivíduos e Estados, dado o potencial humano de competição e egoísmo que surge nas relações que os indivíduos estabelecem entre si. A razão localiza-se, portanto, para além dos instintos e como forma de mediação para conhecer a realidade, sendo imanente ao próprio ser humano através da natureza. Se assim o é, “podemos, por meio de nossa disposição racional, acelerar o advento de uma era feliz para os nossos descendentes” (Ibidem, p. 20). Nesse caminho, ao destacarmos a célebre resposta de Kant à indagação “Que é o iluminismo?, sintetizamos com suas próprias palavras que o iluminismo – atributo da própria razão – “é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado” (KANT, 1784, p. 11) e, entenda-se menoridade nesse caso como “a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem” (Ibidem, p. 11). Assim, de acordo com o exposto até aqui sobre o pensamento kantiano e sobre sua crença de que é a razão que conduz cada homem ao ato de pensar por si mesmo na busca de sua realização, mesmo que o próprio Kant reconheça à sua época que vive um tempo de iluminismo, mas não uma época esclarecida, temos que reconhecer que foi a partir desse pensamento racional que se desenvolveu ideais como o progresso, a felicidade, a liberdade e o desenvolvimento humanos, todos

esses

elementos

amadurecidos

dentro

do

processo

de

modernidade. Nessa proposição histórico-filosófico-racional que encontrou no pensamento kantiano um expoente teórico para se desenvolver28,

28

Reconhecemos que esse processo de emancipação da razão iniciou-se bem antes da modernidade na história humana. A eclosão do modo racional de pensar na Grécia antiga inaugurando a filosofia ocidental, bem como, o período renascentista, serve-nos de referência para validar essa observação. No entanto, a razão iluminista do século XVIII, que encontra no pensamento kantiano sua grande expressão, tem suas características peculiares por ter encontrado outros motes legitimadores de sua expansão (que não só o pensamento filosófico ou a arte) como a técnica, a ciência, o industrialismo e o capitalismo em todas as suas nuances. Além disso, ver-se-á adiante, de acordo com a exposição aqui desenvolvida, que o processo de domínio da natureza por parte do homem através da razão já se encontrava desenvolvido na própria experiência mítica.

140

descortinou-se um processo que aproximou esferas econômicas, sociais, políticas, ideológicas, filosóficas e culturais (a saber, a Revolução Francesa, a emergência do capitalismo e a derrocada feudal, a Revolução Industrial, a reforma protestante, a consolidação do Estadonação, o próprio kantismo). Guiamo-nos, pois, para a compreensão atual, em termos sociológicos, de como o próprio homem, em meio a essa macroestruturação de base racional encontrou na modernidade não só o significado de sua pretensa liberdade e emancipação autônoma proporcionada pela razão, mas outros parâmetros opostos que tiveram também a razão como seu regime fundador. Falamos, pois, de uma relação entre razão e modernidade que se baseia em conquistas e consequências, visto que esses dois vieses são condições intrínsecas do mesmo processo, e um não pode existir sem o outro, já que a modernidade, como vimos, é intrinsecamente dialética. Para que possamos construir uma crítica a essa modernidade dialética, ressaltando os males advindos de sua outra face, temos que “lutar contra a modernidade repressiva senão usando os instrumentos de emancipação que nos foram oferecidos pela própria modernidade: uma razão autônoma, capaz de desmascarar as pseudolegitimações do mundo sistêmico” (ROUANET, 1987, p. 25). Essa crítica à modernidade através da própria razão que a sustenta será adiante revisitada a partir de um movimento intelectual que surgiu na Alemanha na década de 30 do século passado, e que teve como expoentes nomes como Adorno, Horkheimer e Marcuse. Acreditamos que mesmo em meio às críticas

sofridas

por

esse

movimento29

e

aos

deslocamentos

empreendidos pelos diversos pensadores ligados de forma intrínseca ou extrínseca a essa conjuntura teórica, torna-se válido mostrar que suas explicações ainda permanecem importantes para melhor entendermos a atualidade. Além disso, assumimos a postura habermasiana em crer na modernidade como “um projeto inacabado” (HABERMAS, 2000). 29

Ver Honneth (1999) e Habermas (2000).

141

2 – O SURGIMENTO DA TEORIA CRÍTICA

No ano de 1923 foi fundado na cidade de Frankfurt, por iniciativa de Félix Weil, com donativos de seu pai, o Instituto para Pesquisas Sociais, que tinha o objetivo de buscar a fundamentação de um autêntico marxismo. Inicialmente, assumiu a direção desse Instituto Kurt Gerlach, mas com sua morte em 1923 Carl Grünberg tornou-se diretor, o que perdurou até Max Horkheimer assumir a chefia do Instituto no ano de 1931.

E foi exatamente esse último, no ano de 1937, em artigo

publicado na revista oficial do Instituto (a Zeitschrift fuer Sozialforschung), intitulado Tradizionelle und kritische Theorie (Teoria tradicional e Teoria crítica), que foram lançadas as bases da Teoria Crítica. Os desdobramentos históricos acabaram por tornar conhecidos todos os que tiveram contato com o Instituto para Pesquisas Sociais como teóricos da Escola de Frankfurt, visto o local de fundação do Instituto, apesar de não ter existido um único universo de pesquisas pelos diversos autores. Na verdade, tal denominação torna-se referência depois que os principais pesquisadores do Instituto retornaram para Frankfurt após o exílio nos Estados Unidos – especialmente Adorno e Horkheimer - no ano de 1950, com o término da 2ª Grande Guerra. Em síntese, a Escola de Frankfurt “é assim a etiqueta que serve para marcar um acontecimento (a criação do Instituto), um projeto científico (intitulado “filosofia social”), uma atitude (batizada de “Teoria Crítica”), enfim uma corrente teórica constituída por individualidades pensantes” (ASSOUN, 1991, p. 19, grifos do autor). Por se tratar de um “projeto científico” que habilita suas formulações por meio de uma “filosofia social”, a Teoria Crítica surge, portanto, como tentativa de estabelecer parâmetros que pudessem 142

realizar um programa teórico interdisciplinar que abarcasse a crítica filosófica com as diversas ciências empíricas, de forma a basear-se no materialismo marxista. Essa busca expressou-se numa clara crítica à filosofia da história hegeliana que, segundo Horkheimer teria sido a última concepção teórica a promover a junção num único sistema de pensamento da análise da realidade empiricamente estabelecida com uma condição histórico-filosófica com base na razão. Só que, no hegelianismo existia um distanciamento entre a pesquisa empírica e a filosofia que deveria ser superado. Esse distanciamento fundamentavase na crença hegeliana da identidade de um sujeito diante do mundo através de sua razão por meio de explicações idealistas. Essa emancipação do sujeito numa lógica de contradição posiciona a Teoria Crítica como aquela que vai rejeitar a teoria da identidade em Hegel. “A Teoria Crítica instalar-se-á então obstinadamente sobre as ruínas do templo da Identidade para enfrentar o irracional da história” (Ibidem, p. 25). Desse modo, o que se torna relevante para Horkheimer é mostrar que “as estruturas que se encontram nas coisas não provêm do sujeito que pensa e que observa, mas são objetivamente fundamentadas” (Ibidem, p. 29). Essa forma objetiva em que a razão se consolida encontra expressão no positivismo e no pragmatismo científico, o que estabelece a ruptura com uma metafísica que busca a verdade. Em seu artigo Teoria Tradicional e Teoria Crítica, Horkheimer (1975) nos mostra que a ciência, com seu modo tradicional de produzir conhecimento, destaca como relevante apenas a observação dos fatos empíricos de forma a transformá-los em conteúdos conceituais e teóricos.

Esse positivismo científico articula-se com base no cálculo

racional matemático que, sendo par excellence pragmatista, torna a relação sujeito x objeto como o cânon do desenvolvimento científico. O cientista, crente da sua isenção na participação da conjuntura social, visa apenas à aplicação prática de seus conhecimentos, o que se 143

estende inclusive para as ciências humanas e sociais, que passam a copiar o modelo das ciências naturais. O que importa é a aplicação do cálculo racional para dominar a natureza e tornar aplicável o conhecimento técnico para a transformação e produção das coisas do mundo. Para romper com esse dogmatismo da ciência que acabou por colocar a filosofia num plano especulativo, Horkheimer define que “a ciência natural matemática, que aparece como logos eterno, não é a que constitui o autoconhecimento do homem, mas a teoria crítica da sociedade atual, teoria esta impregnada do interesse por um estado racional” (1975, p. 132). A razão agora surge como a arma que deve ser colocada na luta contra seus próprios fundamentos que encontraram na ciência positivista um modo de expandir-se pelos diversos campos da sociedade. Em contraponto a essa expansão o pensamento crítico visualiza que “a realização do estado racional tem suas raízes na miséria do presente. Contudo, o modo de ser dessa miséria não oferece a imagem de sua superação. A teoria que projeta essa imagem não trabalha a serviço da realidade existente; ela exprime apenas o seu segredo” (Ibidem, p. 145). Foi,

portanto,

para

denunciar

o

segredo

interposto

na

contradição das relações sociais que em muito nos lembra o “Ovo da Serpente” da obra bergmaniana30 que, num primeiro momento, destacadamente a década de 30, Horkheimer, Adorno e Marcuse, juntamente com outros nomes como Erich Fromm e Friedrich Pollock, na crença do modelo materialista histórico de Marx, desenvolveram pesquisas no âmbito da economia política, da sociopsicologia explicativa da submissão dos indivíduos a um sistema de dominação social que também incluía os sistemas culturais como componente da engrenagem dessa dominação (HONNETH, 1999). Após as primeiras pesquisas interdisciplinares desenha-se um quadro em que a sociedade 30

Ver o filme o “Ovo da Serpente” do diretor sueco Ingmar Bergman.

144

passa a ser entendida num sistema fechado em que todos os caminhos de emancipação humana tornam-se inviáveis, e essa visão pessimista se agudiza, pelo que se pode perceber, com a ascensão do fascismo na Alemanha e do stalinismo na União Soviética, além da consolidação do modus

vivendi

da

sociedade

norte-americana.

Desse

modo,

desenvolve-se “a impressão de que a última centelha da razão desaparecera, deixando para trás as ruínas de uma civilização em decomposição. A história empalidecera, transformada no calvário de uma esperança que se tornara irreconhecível” (HABERMAS, 2000, p. 167).

3 - “BIUTIFUL”: A DIALÉTICA DO ESCLARECIMENTO SOB O OLHAR DE UM CASO FICCIONAL

É na década de 40 do século passado que a fase pessimista na vida intelectual da geração fundadora da Teoria Crítica vai se consolidar. Passados mais de sessenta anos, após a mudança paradigmática em relação ao que foi exposto no artigo de Horkheimer que opôs o modo tradicional de pensar através da ciência positivista à atitude crítica do pensamento; após uma década de 30 marcada pela crença no marxismo libertador e, posteriormente, em meio a recorrentes críticas em face da falta de qualquer chance do homem reencontrar sua emancipação e liberdade, retraçamos as premissas dessa fase da Teoria Crítica dos anos 40 com base em sua mais destacada obra: “A Dialética do Esclarecimento”. Essa obra foi escrita por Adorno e Horkheimer quando do exílio nos Estados Unidos e foi lançada em 1947. Surgida

envolta

do

pessimismo

schopenhaueriano

que

seduz

Horkheimer pela “consciência aguda da decepção” (ASSOUN, 1991, p. 63), a obra marca

145

A passagem de um conceito positivo do trabalho societário para um conceito negativo que introduziu uma nova fase na história da teoria crítica. A condição totalitária na qual o mundo havia caído com a ascensão do fascismo já não podia ser explicada pelo conflito entre forças produtivas e relações de produção, mas pela dinâmica interna da formação da consciência humana. O “trabalho societário” já não designa uma forma de prática emancipatória, mas, antes, o gérmen do pensamento objetivante. Para essa forma de pensamento reificado emerge o conceito de “racionalidade instrumental”; a função central atribuída a esse conceito é a de explicar a origem e a dinâmica do processo de desintegração (HONNETH, 1999, p. 520-521).

A partir dessa concepção teórica exposta na Dialética do Esclarecimento, inclusive através de uma forma muito particular que Della Volpe criticou como sendo herança do “romantismo tardio” (HONNETH, 1999), a Teoria Crítica impulsiona a busca do entendimento dos “efeitos devastadores que as realizações cognitivas pressupostas na prática do trabalho humano acarretam” (Ibidem, p. 519), ou, ainda mais, a capacidade encontrada numa razão humana que se instrumentalizou, pois o pensamento passou a reproduzir a lógica da sociedade científico-industrial-capitalista alienando-se de si mesmo e de sua capacidade de projetar qualquer mudança, visto que reproduz apenas o sistema de dominação que passou a gerar misérias e injustiça com seu alcance. Por esse viés, buscamos aqui retomar a visão dos autores da Dialética do Esclarecimento numa obra ficcional intitulada “Biutiful”. A estória desse filme se passa na cidade de Barcelona, na Espanha, no momento atual. Mas, o que fica notório é um lado da cidade marcado pela fragmentação das relações cotidianas, através de personagens que mais parecem párias sociais. Os ambientes em que circulam os personagens e, em especial o protagonista, Uxbal, caracterizam-se

como

lugares

lúgubres

e

escuros.

O

próprio

apartamento de Uxbal, onde mora com os dois filhos pequenos após a 146

separação de seu casamento é um retrato desse mundo deteriorado que surge como sintoma de uma desestruturada existência. Os ambientes mais parecem entulhos de móveis velhos e dilacerados pelo tempo. O conjunto psicológico dos personagens também se confunde nessa fragmentação cotidiana. Uxbal é desempregado e vive de várias transações ilícitas com diversos agentes. Ele intermedia relações com policiais que recebem dinheiro para não perseguir africanos refugiados que sobrevivem nas ruas vendendo mercadorias chinesas de baixa qualidade e ao mesmo tempo entorpecentes sem o conhecimento dos policiais; transaciona a contratação irregular de imigrantes chineses subempregados na construção civil, que trabalham dezesseis horas por dia e que vivem alojados sob condições precárias num abrigo coletivo de forma ilegal; recebe dinheiro dos familiares de pessoas falecidas para que exerça o dom da mediunidade que possui para conversar com os mortos durante os funerais. Nessas condições, Uxbal sobrevive na tentativa de ganhar dinheiro por meio de toda sorte de situações. Além disso, durante a narrativa, descobre que sofre de um câncer terminal que o coloca na condição de viver por apenas dois meses, e vive uma relação de conflitos constantes com a ex-esposa que representa a imagem do vazio existencial do homem moderno saturado pela sua própria liberdade em não encontrar sentido para a vida. Toda essa trama encadeia-se como exemplos da atualidade em que podemos traçar paralelos ao que podemos ver em diversas fontes midiáticas e em nossa própria experiência prática: o dilaceramento das relações

pessoais

e

afetivas

devido

à

realidade

totalmente

comprometida por princípios capitalistas; corrupção dos agentes administrativos que trabalham nos órgãos públicos para servir à sociedade; uma política severa de perseguição aos imigrantes “invasores” oriundos dos países pobres do Sul; fragmentação do trabalho e aumento do desemprego até mesmo numa Europa que foi 147

regrada pela estabilidade econômica e que agora sofre em meio a crises do capitalismo neoliberal; fragmentação moral que transforma valores como a solidariedade em mero jogo de interesse baseado no ganho financeiro. Assim, o próprio nome da película “Biutiful” e não “Beautiful”, do inglês bonito, bonita, belo, talvez traga em seu erro de grafia a feiúra de um lado da sociedade moderna surgida como resultado das consequências do progresso humano e não de suas conquistas. Essa fragmentação das relações cotidianas é descrita por Adorno (1993) em suas “Minima moralia”. Na obra, a exposição em forma de aforismos traduz o próprio pensamento do autor em expor algo que, como a realidade, apresenta-se de forma fragmentária. Dessa forma, Adorno utiliza-se do texto para nos conduzir ao mundo privado reificado e instrumentalizado por uma razão que capta a consciência crítica dos indivíduos, fazendo-os agir nas esferas pormenorizadas do senso comum para legitimar a reprodução do próprio sistema racionalizante, de forma a criar um contexto aparente de realidade que reduz a vida à mera objetificação. Segundo Adorno (1993), em contraposição ao princípio de totalidade presente em Hegel, “é na persecução dos interesses particulares de cada indivíduo que se pode estudar com maior exatidão a essência do coletivo na sociedade falsa. Neste sentido, é válida a afirmação de que o mais individual é o mais universal” (p. 38). Nessa obra, Adorno deixa explícita sua gratidão a Horkheimer, pois, as Minima moralia, escrita entre 1944 e 1947, é contemporânea à feitura por ambos da Dialética do Esclarecimento, pois, para ele, Adorno: “gostaria de reparar uma parte da injustiça implícita no fato de que somente um prossiga trabalhando no que só ambos podem levar a cabo e de que não desistimos” (Ibidem, p. 11). Assim, é no empreendimento da Dialética do Esclarecimento que toda essa dinâmica de consequências da razão instrumental foi teorizada por Adorno e Horkheimer. Ciência, arte e moral são os 148

elementos associativos a uma razão que reificou e instrumentalizou essas esferas do mundo humano, de forma que na modernidade a razão tornara-se autônoma e a principal responsável por um processo totalitário de dominação que não deixou saída para o homem, pois Com a difusão da economia mercantil burguesa, o horizonte sombrio do mito é aclarado pelo sol da razão calculadora, sob cujos raios gelados amadurece a sementeira da nova barbárie. Forçado pela dominação, o trabalho humano tendeu sempre a se afastar do mito, voltando a cair sob o seu influxo, levado pela mesma dominação (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 38).

Nessa lógica, os autores concluem na obra que a razão tornou-se repressiva desde a época em que o homem criou artifícios para dominar uma natureza que se expressava através dos mitos, pois, “o programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo” (Ibidem, p. 17). Nesse sentido, o mito já era esclarecimento e esse mitologizou-se. A epopeia de Ulisses na Odisseia de Homero é esmiuçada na Dialética do Esclarecimento para mostrar como o homem tornou-se esclarecido no entrelaçamento entre trabalho, mito e dominação. A passagem do barco de Ulisses e seus homens pelas águas dominadas pelas Sereias mostra que o canto mágico delas atrai o perigo da destruição. Esse princípio destrutivo encarnado no canto das musas das águas está associado ao ideal de felicidade. O homem é ameaçado pela morte e pelo prazer. Mas para evitá-los, Ulisses pede para que seus homens o amarrem no mastro e remem com tapões de cera nos ouvidos, retirando apenas os tapões de Ulisses, para que ele possa ouvir a melodia e por estar amarrado não se lance às águas. Nessa consecução, a arte e o trabalho comandado encontram-se no mesmo patamar da dominação e, o ato clássico de Ulisses demonstra em si um homem astuto que usa de sua razão para dominar a natureza e os outros homens, além de si mesmo. Executa-se um controle interno e uma coação externa que simboliza a essência do esclarecimento que é dialético exatamente por emancipar um homem que domina a

149

natureza e que ao mesmo tempo abre mão de sua autonomia para controlar suas vontades e determinar que a razão indique aquele que domina e os que devem ser dominados, mas onde todos estão enredados pelo mecanismo total de dominação. Nesse

sentido,

na

película

Biutiful,

destacam-se

cenas

interessantes que envolvem imigrantes chineses que vivem ilegalmente em Barcelona. Só que em meio a eles dois homens, um casal homossexual, montaram uma fábrica clandestina num galpão e explora os demais imigrantes com tratamento desumano ao mantê-los numa condição de trabalho precária. Todos são mantidos dormindo também num galpão insalubre: homens, mulheres e crianças. Os dois chineses, mesmo vivendo em condições ilegais como os demais mantêm a neutralidade da polícia em não persegui-los pagando-a por intermédio de Uxbal. Esse último fica incumbido pelo casal de comprar aquecedores para o galpão onde ficam os imigrantes. Por Uxbal ter comprado aquecedores mais baratos para ficar com parte do dinheiro, os imigrantes morrem de frio e, como solução, o casal resolve jogar os 25 corpos no litoral de Barcelona, que aparecem à deriva, à beira-mar, como manchete dos noticiários. Para Adorno e Horkheimer (1985), “o poder de todos os membros da sociedade, que enquanto tais não têm outra saída, acaba sempre, pela divisão do trabalho a eles imposta, por se agregar no sentido da realização do todo, cuja racionalidade é assim mais uma vez multiplicada” (p. 30-31). Ainda nesse entendimento, “é essa unidade de coletividade e dominação e não a universalidade social imediata, a solidariedade, que se sedimenta nas formas do pensamento” (Ibidem, p. 31). No filme, como exemplo do que referimos acima, os chineses eram todos imigrantes ilegais, mas dois deles resolveram sobreviver explorando impiedosamente “sua gente”, e ainda mais sendo vítimas em potencial de uma sociedade que oprime minorias como os homossexuais, condição essa desses dois personagens. O que aqui 150

ressaltamos é o momento de fragmentação em que se encontra atualmente o “mundo da vida”, que nos coloca a difícil possibilidade de pensarmos numa interação intersubjetiva, como defende Habermas em sua teoria da ação comunicativa, que abra espaços para horizontes que enalteçam ao mesmo tempo o ser individual e a existência coletiva.31 Como reconhece o próprio Habermas (2000), “à medida que o mundo da vida se racionaliza, aumenta o dispêndio de entendimento que é posto a cargo dos que agem comunicativamente” (p. 484-485). Sobre o estágio de deterioração atual da sociedade, que torna a Dialética do Esclarecimento uma visão pertinente para constatarmos o que significa hoje o mundo moderno, o conceito de individualismo serve de referência para tal intento: A adaptação do homem à sociedade gerou o individualismo e não a individualidade: no primeiro, adaptação é uma estratégia cínica da auto-preservação, já que se está na comunidade, mas priorizam-se os interesses imediatos. A emergência do indivíduo burguês desenvolveu a crença de que só fazemos parte da sociedade na medida em que participamos de uma competição desenfreada (MANIERI, 2008, p. 39).

Numa última cena que podemos destacar Uxbal e seu irmão decidem vender o túmulo do pai para que no local possa ser construído um Shopping Center. Se, segundo Adorno e Horkheimer (1985), o programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo, de forma que o homem perdesse o medo da natureza e passasse a dominá-la por meio do saber que ele possui subsidiado pela razão, percebe-se que nem ao menos o respeito familiar que se tem àqueles que se encontram no além-vida (para as consciências que queiram 31

No processo de continuidade da Teoria Crítica, além da construção teórica habermasiana, novas emergências conceituais despontam para explicar a situação atual de luta dos indivíduos frente às condições de subjugação social e desigualdade nas diversas esferas da realidade. Nesse sentido, torna-se relevante os estudos sobre reconhecimento de Honneth (2007) e seus desdobramentos, que desloca principalmente os novos contextos para entender o desenvolvimento teórico que acompanha as mudanças conceituais concomitante às mudanças de cunho normativo. Independente de qualquer posicionamento teórico, o que ainda constitui fato são as consequências terrificantes do “mundo social administrado”, o que trouxe à baila também novos discursos com destaque para as questões de degradação do meio ambiente.

151

acreditar) escapam da lógica da dominação do cálculo racional capitalista. Se também faz parte da natureza o mundo misterioso da vida espiritual que o homem não consegue explicar, temos que “o entendimento que vence a superstição deve imperar sobre a natureza desencantada. O saber que é poder não conhece barreira alguma. Não dever haver nenhum mistério. Cada resistência espiritual que ele encontra serve apenas para aumentar sua força” (Ibidem, p. 18-19). Em meio à crença de Uxbal de estar ajudando a todos solidariamente nas relações ilícitas que promove, fica a sua escolha em sobreviver por si e por sua família, pois no indecente jogo promovido pelo cálculo racional capitalista, a única opção ainda parece ser evitar o acordo intersubjetivo e solidário em prol da sobrevivência, pois, neste sistema de dominação totalitária “é suficiente que os indivíduos se preocupem apenas consigo mesmos” (HORKHEIMER, 1975, p. 142) e, além disso, “no momento em que todo poder dominante força o abandono de todos os valores culturais e impele à barbárie obscura, o círculo da solidariedade verdadeira mostra-se sem dúvida bastante reduzido” (Ibidem, p. 161).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como forma de revisitarmos sociologicamente a Teoria Crítica fundada por Horkheimer nos anos 30 do século passado, especialmente o desdobramento de suas acepções condizentes com uma fase marcada pelo pessimismo de influência schopenhaueriana e em consonância com as reflexões de Adorno, foi possível vermos a força do entendimento desse modo crítico de pensar a sociedade moderna. Mesmo em se tratando de um recorte exemplificador baseado numa ficção cinematográfica, mas traçando analogias de acordo com 152

nossa visão sociológica e da percepção de um mundo moderno que nos circunda em todos os extremos, a película analisada se compõe de fortes imagens explicitamente conectadas a um mundo fragmentado devido às consequências, pelo menos aqui entendido, do processo reificante que a tudo transforma em mercadoria dominada através da razão instrumental denunciada por Adorno e Horkheimer. Nesse intuito, vimos que a obra a Dialética do Esclarecimento, passados sessenta e cinco anos de sua primeira publicação, ainda muito nos revela de um projeto de modernidade inacabado segundo Habermas. Esse último, como um dos principais críticos do conceito totalizador de dominação presente no pensamento de Adorno e Horkheimer, fala-nos de possibilidades de emancipação por meio de uma razão comunicativa intersubjetivante, mas nos deixa na busca de saber onde está o interesse humano individualizado para mudar as engrenagens sociais que desagregam o “mundo da vida”. Portanto, destacamos que este paper visualiza uma configuração ao

mesmo

tempo

geral

e

sintética

do

entrelaçamento

entre

modernidade e razão, e como essa última passou a governar os homens que vivem naquela a partir da autonomia do pensamento construído por eles mesmos, mas que já não mais os pertence.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor W. Minima moralia. São Paulo: Editora Ática, 1993. ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. ASSOUN, Paul-Laurent. A escola de Frankfurt. São Paulo: Editora Ática, 1991. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. 153

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154

A BLOGOSFERA COMO ESPAÇO DE DESMISTIFICAÇÃO DO BDSM E CONFIGURAÇÃO DE IDENTIDADES VIRTUAIS Marcelle Jacinto da Silva 32 Lyanne Matias Teixeira 33

RESUMO: Este trabalho propõe reflexões sobre pesquisa em ambiente virtual, sexualidades dissidentes e subjetividade, tomando como ponto de partida blogs que constituem experiências e configuração de perfis identitários dedicados à desmistificação do BDSM ou sadomasoquismo erótico. Os discursos nos blogs enfatizam a noção de consentimento como definindo o que é considerado sadomasoquismo erótico, diferindo do que é criminoso e doentio e/ou patológico. Visamos discorrer sobre novas modalidades de produção de subjetividades na contemporaneidade possibilitada pela Internet, e reconfiguração de normatividades no espaço designado como Blogosfera, espaço no qual se delineia uma produção de posicionamentos identitários configurados no apelido ou perfil virtual do sujeito e na personalização da página virtual. Palavras-chave:

sexualidades

dissidentes,

sadomasoquismo

erótico,

Blogosfera,

identidades virtuais

INTRODUÇÃO Este trabalho propõe reflexões sobre pesquisa em ambiente virtual, sexualidades dissidentes e subjetividade, tomando como ponto de partida blogs que constituem experiências e configuração de perfis identitários dedicados à desmistificação do BDSM, sigla que engloba jogos eróticos que misturam dor e prazer, as práticas inseridas nos pares: B e D, Bondage que significa amarração e/ou imobilização seja com algemas, cordas ou similares, havendo uma ideia de Disciplina, D e S, referentes às relações de Dominação e Submissão, e S e M, referentes ao Sadismo e Masoquismo ou sadomasoquismo. Os discursos enfatizam 32

Graduada em Ciências Sociais (UFC), Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia (UFC). É pesquisadora do Núcleo de Pesquisas sobre Sexualidade, Gênero e Subjetividade (NUSS-UFC). [email protected]. 33 Estudante de Graduação em Ciências Sociais (UFC) com extensão em Francês na Casa de Cultura Francesa. Integrante do Núcleo de Pesquisa em Subjetividade e Sexualidade (NUSS/UFC). [email protected].

155

a noção de consentimento como definindo o que é considerado sadomasoquismo erótico, diferindo do que é criminoso e doentio e/ou patológico. A presente pesquisa visa discorrer sobre novas modalidades de produção de subjetividades na contemporaneidade possibilitadas pela Internet, e reconfiguração de normatividades no espaço designado como Blogosfera. Baseada em parte do trabalho de monografia Linguagens, experiências e convenções de gênero e sexualidade no BDSM (SILVA, 2012), que foi realizada por meio de observação e participação em alguns blogs com a temática do sadomasoquismo erótico, em sua maioria de blogueiras, troca de e-mails, troca de mensagens via Twitter e conversas via MSN Messenger e chat do Facebook, além de pesquisas e leituras em sites na Internet, no período de dezembro de 2010 a março de 2012. Não houve pretensão de um mapeamento de blogs com a temática BDSM, mas a observação de alguns com a finalidade de analisar como textos e imagens expressam vivências de sujeitos inseridos nessa rede de sociabilidade rodeada por estereótipos e estigmas, e mostrar a intenção dos autores dos blogs de desmistificar e explicar o que entendem por BDSM e como o vivenciam. A pesquisa se configura como um desafio, tanto em relação ao campo como a questão de referenciais teóricos sobre a temática do BDSM, visto que se trata de um recorte emergente em ciências sociais. São vários impasses que emergiram e emergem partindo desses pontos: “a busca de entendimento das identidades virtuais, a construção e reconstrução de corpos no virtual, as diferentes representações da subjetividade, o estabelecimento de relações de sociabilidade” (PARREIRAS, 2009, p. 343). Na Blogosfera como no BDSM delineia-se uma produção de posicionamentos identitários configurados no apelido ou perfil virtual do sujeito e na personalização da página virtual, a qual é um espaço de resistência e criação.

156

NOTAS SOBRE A PESQUISA EM AMBIENTE VIRTUAL Um dos primeiros desafios na pesquisa no ciberespaço é educar nosso olhar, nossa imaginação: o olhar antropológico, a imaginação sociológica (MILLS, 1969), e assim, adaptá-los aos novos contextos e “aspectos

socioculturais

abertos

pelas

novas

tecnologias

de

informação” (SILVA, 2010), aos dispositivos de comunicação que potencializam novas referências identitárias, um campo de novas formas de interações e que possibilitam a construção e disseminação de discursos sobre corpo, subjetividades, sexualidades, etc. A (re)produção de discursos na Internet, de hipertextos, inquieta no que tange às representações do corpo, do sujeito, das identidades e subjetividades. Delineia-se, então, o desafio de adotar o espaço da internet como campo empírico. Como utilizar métodos etnográficos no ciberespaço, se diferentemente da etnografia convencional, ou seja, a experiência do “estar lá”, uma descrição densa (Geertz, 2005) estando aqui, “do offline para o online”? O ciberespaço nos impõe dilemas sobre a metodologia de trabalho, e assim nos fala Carolina Parreiras: Seu desenvolvimento trouxe uma séria de questões para os estudos antropológicos, fazendo com que a própria metodologia de trabalho precisasse, de algum modo, adequar-se às novas demandas, em espacial ao fato de não se tratar mais de uma realidade material, física e baseada em contatos face a face (consideradas durante muito tempo como índice de legitimidades das incursões etnográficas) (PARREIRAS, 2009, p. 343).

A ideia de realizar uma etnografia remete a noções de espaço, territórios geográficos, de interação face a face. As principais diferenças entre a pesquisa em ambiente virtual e a etnografia convencional estão primeiramente no contexto considerado, no caso daquela, diríamos que seria o offline e na outra, o online. Nas interações online, estaria o informante em uma situação menos precisa, seria duvidosa justamente pela ausência de um contato presencial. O

157

próprio pesquisador se depara com diversos impasses, tanto por ele também estar online, portanto, também sendo um usuário de perfis virtuais, este pode encontrar os discursos dos sujeitos já prontos, e pode aderir mais facilmente estratégias de encobrir sua identidade de pesquisador.

SOBRE BDSM E DISSIDÊNCIA Os primeiros contatos que com o BDSM foram por meio da internet. A definição de BDSM a priori foi de uma sigla que se refere à tentativa de englobar relações sócio-sexuais e jogos eróticos, que estão diretamente relacionados à dor e prazer, e faz referência às práticas que mais apareceram nos discursos dos sujeitos da pesquisa: o Bondage, que significa amarração e/ou imobilização seja com algemas,

cordas

ou

similares,

Dominação/Disciplina,

Sadismo

e

Masoquismo. Foi por meio da socialização de informações online acerca dessa rede de relações sócio-sexuais que pudemos perceber, observando os sites e blogs sobre essa temática o quanto as práticas englobadas

pela

consequentemente

sigla

BDSM

serem

alvos

podem de

gerar

preconceitos

polêmica

e

devido

às

performances de punição física e psicológica, os praticantes assumem determinados scripts sexuais (BOZZON, 2004) e acabam criando e construindo perfis identitários que propomos serem vistos como personagens,

no

sentido

de

que

performatizam

características

diferenciadas, identidades que só se desenvolvem em determinados contextos. O BDSM representa relações múltiplas de sexo, poder e intimidade, “um conjunto de práticas de conteúdo erótico” (Facchini, 2008), mas não somente isso.

158

Ao estudar a(s) rede(s) BDSM, ultrapassamos claramente o sadomasoquismo. Todavia, cabe dizer que por muito tempo (e por muitos ainda) o sadismo e o masoquismo foram considerados o centro desta rede (por isto ela é às vezes chamada de SM). A reivindicação do B e do D na definição inicial diz respeito a uma ênfase no fato de que nem todos envolvidos incluem o causar ou o receber dor em suas práticas sexuais. (BRITTES, 2006, p. 9)

Não é possível especificar quando e como surgiram as primeiras práticas do S&M e suas primeiras manifestações como cultura de grupo, mas na cena pública o ano de 1918 é considerado como o marco pelo lançamento da revista fetichista London Life34. Na década de 1940 surgiram outras revistas, como a Bizarre (EUA), e o aparecimento de estrelas como Bettie Page (1923-2008), modelo que fotografou e fez filmes para o emergente “mercado fetichista” e virou um ícone das chamadas Pinups. O fato de muitas pessoas se mostrarem abertas a essas novas possibilidades de expressão fez com que as práticas fossem muito mais difundidas e incorporadas inclusive pela moda (STEELE, 1997). No BDSM há a criação de identidades que “devem estar” em consonância com suas performances sócio-sexuais no meio. São criados apelidos que acentuam um desdobramento do sujeito, e isso é percebido na diferenciação entre vida BDSM e vida baunilha, como se o apelido BDSM fosse utilizado para acionar outro universo subjetivo, outro mundo o qual se diferencia muito do mundo cotidiano. Há sujeitos que apenas vivenciam experiências BDSM no ciberespaço, outros que vivenciam em encontros presenciais, e os que utilizam a Internet como meio de conhecer e manter contatos online e offline, e a criação de um apelido é essencial para identificar-se. Da mesma forma que o apelido tem que ter coerência com a performance no contexto BDSM, o blog também está inserido como referencial do sujeito, não apenas da rede de práticas citadas. Há uma dupla configuração identitária e reinvenção de si nesse processo.

34

Informações coletadas no site do Senhor Verdugo, através do link www.senhorverdugo.com/historiado-bdsm.html, acesso no dia 11 de maio de 2011.

159

Diante

disso,

podemos

nos

questionar

sobre

o

lugar

dessas

subjetividades e identidades, quais categorias são utilizadas para representar esses sujeitos? Na medida em que muitos sujeitos enxergam a Internet como um espaço no qual podem, de repente, vivenciar o que não podem experimentar no cotidiano, ainda assim, há algo que pode reprimi-los: a exclusão das páginas virtuais. Pensar no BDSM como dissidência35 é salientar aspectos como produção de subjetividades, resistências e configurações identitárias, e refletir sobre estes processos nos blogs é também pensar no que pode esse tipo de escrita, que “oferece aquilo que se fez ou se pensou a um olhar possível” (FOUCAULT, 2004, p. 145). Pode ela ser experiência e corporificação de si no meio virtual? Ela possibilita diálogos e pode significar “um estar no mundo” (LOPES, 2002, p. 250)? Como será que esses sujeitos percebem as representações que eles mesmos montam no meio virtual? A Blogosfera36 é um universo online de circulação de sentidos, os quais podem ser acessados e (re)configurados com facilidade? Quais sentidos são esses? Os papéis que vão se delineando de acordo com o contexto no qual nos inserimos não são, nesse sentido, representações falsas, mas personagens que os sujeitos decidem como sendo atores de comportamentos que eles gostariam de desempenhar, mas não têm coragem, por algum motivo ou impedimento social e pessoal. Em linhas gerais, os blogs sobre sadomasoquismo são escritos por sujeitos que praticam o SM, com diferenciados níveis de experiência de prática e conhecimento. Muitos dos sites e blogs sobre o tema têm o intuito de informar e/ou desestigmatizá-lo, de forma a assemelhar-se a “manuais”, como atesta Bruno Zilli (2007, 2009) como verdadeiros “guias” no universo de definições e práticas, mas também podem conter contos, poemas, textos que visam compartilhar experiências. Nos

35

“Estudo de corpos e gêneros de fronteira, encontros interditos, sociabilidades fluidas, jogos sexuais proibidos e narrativas obscenas” (FÍGARI, DÍAZ-BENÍTEZ, p. 28, 2009). 36 Termo que se refere ao universo dos blogs.

160

blogs observa-se que não são apenas as postagens que informam ao leitor sobre o tema, mas a autoidentidade/perfil/avatar do blogueiro. Não que isso não ocorra em outras redes sociais, mas é interessante perceber nos blogs como se dá um processo de ressignificação dos conceitos acionados pelos sujeitos. UM UNIVERSO CHAMADO BLOGOSFERA E IDENTIDADES VIRTUAIS Montardo e Passerino (2006) definem Blogosfera como sendo “tudo o que circula no mundo dos blogs” (p.1), já Herrera e Passerino (2008) definem como “termo coletivo para englobar todos os blogs, formando uma grande rede entre os atores sociais, sendo em si, mais do que a soma das postagens coletivas de todos os blogueiros; um fenômeno social” (p.4). Os blogs são páginas virtuais nas quais há publicação constante de textos e imagens, são escritos para públicos variados, buscando, em alguns casos, uma determinada audiência (os seguidores/leitores), que vai ser designada de acordo com a temática do blog. Funcionando como ferramentas de fácil utilização e atualização, é também um suporte de micro-conteúdos que podem ser atualizados constantemente. A Blogosfera está inserida em outro universo ainda maior, o da internet, também designado por ciberespaço. Pierre Lévy (2000) define o ciberespaço como “o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial de computadores” (p. 17). O BDSM e a blogosfera estão aí inseridos, e são exemplos de (ciber)culturas que se estabelecem no/através do ciberespaço, mas também se alongam para “o real das interações cotidianas” (LÉVY, 2000, p. 112). A elaboração e produção de conhecimentos provenientes dessas ciberculturas nos remetem às novas relações com os saberes, os quais se encontram em expansão, principalmente por meio das redes sociais virtuais,das novas tecnologias de informação. A internet, assim,

161

proporciona a interatividade entre cultura, sociedade e tecnologia (LEVY, 200, p. 22-23). As blogueiras que nos ajudaram a construir essa pesquisa criaram seus blogs por motivos diferentes, vivenciam suas vidas de maneira diversa em relação ao BDSM e é notável que cada uma tenha sua opinião que se reflete na estrutura e no conteúdo dos blogs. Além do que, foi através da internet que umas tiveram sua iniciação no BDSM. Sendo assim, elas contribuem na reconfiguração virtual de informações, certamente sendo referência pra outras pessoas que venham a ter interesse por BDSM ou algumas práticas inseridas nesse universo. O BDSM teve mais divulgação por causa do uso da internet. Portanto, o ciberespaço, ou internet, seria um espaço de aquisição de conhecimento, tanto para os próprios praticantes, como para os curiosos, pesquisadores. Assim, novos espaços de vivências são criados, há possibilidade de expressão de novos interesses e necessidades, novos relacionamentos, reconfiguração de novas identidades e, como não poderia deixar de ser, há o aparecimento de novos conflitos. Na maioria das vezes, as autoras dos blogs, principalmente quando se tratam de blogs eróticos, não criam um perfil com seus nomes reais, mas com nomes fictícios, que aludam a alguma característica desejada, assim também acontece no meio BDSM, no qual as pessoas não se identificam com seus nomes reais, mas através de apelidos; é muito comum encontrarmos apelidos os mais diversos, que muitas vezes se repetem. “Mais do que proteger o nome socialmente reconhecido do adepto, o apelido procura passar uma ideia de suas tendências e posições dentro do BDSM...são alcunhas que já trazem embutidas em si, uma série de referências, ainda que implícitas ou subjetivas” (Leite Jr.: 2000, 24). A essa afirmação podemos exemplificar com o apelido Rainha Frágil: Demorou um tempo pra juntar Elisabeth e Samia e virar tudo Rainha Frágil...esse nick tem tantas explicações e faz tanto sentido.. é que as pessoas vão ainda naquele estigma da rainha poderosíssima. Eu desde sempre teimei que sou pessoa.

162

Rainha e pessoa. Sim é a forma como eu me posiciono no meio BDSM, é a Samia, frágil é a Beth, a pessoas e seus combates diários a Samia ensinou a Beth a ficar em cima do salto... mas foi um aprendizado... (Rainha Frágil, em conversa via MSN Messenger, dia 12 de novembro de 2011).

O que ajuda na composição dos personagens, além do apelido e do conteúdo postado, é o layout do blog, a maneira como o blogueiro se porta, retribuindo visitas, seguindo seus seguidores, enfim, interagindo, desdobrando-se , seja por meio do próprio perfil do blog ou por outras redes sociais, como Facebook e Twitter, ou até mesmo o MSN Messenger. Carolina Parreiras (2009) discute as representações do corpo no ambiente virtual, estudando “interações desenvolvidas a partir do e no ciberespaço (online)” (p. 344). A pesquisadora assinala a montagem de avatares que se definem como corpos virtualizados, os quais “podem adquirir diferentes modos de expressão, seja as representações gráficas (desenhos,

fotografias,

animações)

ou

textuais

(descrições,

caracterizações)” (p. 347). Essas representações acionam determinados itens essenciais na sua elaboração, e a foto desponta como fundamental na montagem de um perfil, já que representa a imagem do sujeito na rede. De acordo com Parreiras, esses corpos virtuais são marcados por categorias, classificações e rótulos (p. 344-345), sendo também

processuais,

entendidos,

igualmente,

como

discursivas (p. 349).

O DOREI FOBOFÍLICA: CONTRA A DISCRIMINAÇÃO DO BDSM

163

entidades

O ponto que primeiro impacta o leitor do blog poderia ser o banner de apresentação, no qual já se pode vislumbrar a necessidade de demonstrar aos leitores e possíveis leitores, o lado benéfico do sadomasoquismo, dando enfoque ao combate do “sadomasoquismo doentio e/ou criminoso”. A intenção é falar sobre a diferença que há entre o sadomasoquismo erótico, que só faz bem a quem pratica; e o sadomasoquismo doentio e/ou criminoso, dar minha simplória opinião sobre o tema a quem o desconhece e desejar saber algo, no intuito de desmistificar o assunto junto a sociedade leiga que só faz discriminar sem procurar saber de verdade. Me divertir na blogosfera também, claro! (risos).

Essa questão de desmistificar o BDSM vem do fato de que às práticas sadomasoquistas geralmente estão associadas à definições médicas como perversão e parafilia. Tendo um caráter de transgressão de normatividades, no meio BDSM há também espaços de contestação das idéias que circulam nas comunidades e os blogs servem inclusive como veiculo de idéias, assim como novas possibilidades de interações entre os membros. O título do blog em questão, Dorei Fobofílica, remete ao apelido da própria submissa, relacionado às práticas preferidas dela. Fobofilia

164

(prática de obtenção de prazer através do medo) e Shibari37 (arte japonesa de amarração e dominação erótica). Dorei seria “a profissional que faz o papel de ‘subjugada’ nas performances dos mestres, por isso é chamada de dorei (escrava ou serviçal em japonês) e, como atriz dramática que é, simula uma servidão imaginária ao mestre”. Há duas postagens no blog que explicam o apelido. Sendo assim, ambas se complementam, pois além de explicarem o apelido, explicam algumas das práticas que estão representadas pela sigla BDSM: Bondage e Dominação/Disciplina. Acreditamos que sejam indícios de uma construção da personagem Dorei Fobofílica. Além de o blog trazer ao público práticas inseridas no universo do BDSM, Dorei deixa muito às claras que muitas opiniões suas vão de encontro às regras que existem no meio, regras no sentido de nomear o que seria sadomasoquismo e diferenciá-lo de sexo apimentado, ou até mesmo do BDSM “light”, como ela mesma se refere: “Afirmo que é muito complexo definir o que é BDSM light e o que é sexo apimentado, mas não é difícil ver que SADOMASOQUISMO e sexo apimentado não tem diferença nenhuma, o que falta mesmo é conhecimento, porque as pessoas têm preguiça de ler e se informar em plena era da globalização, com a internet a disposição e só usada para futilidades.” 38.

Achei interessante o modo como ela coloca a questão das

diferenciações entre o que é o BDSM inserido nos jogos entre quatro paredes, no sentido de que a internet pode ser um meio utilizado no esclarecimento de confusões como essa, mas fica a reflexão de como essa ferramenta de comunicação e informação é utilizada, assim como pensar em como as postagens podem ser vistas como reconfigurações de normatividades. Contestar também o fato de haver regras no meio: qual deveria ser a “conduta de uma submissa”? 37

Em postagem do dia 29 de outubro de 2010. Disponível em: http://doreifobofilica.blogspot.com.br/ 2010_10_01_archive.html?zx=7f24bdb58478ce0. Acesso em: 5 abr. 2012. 38 Postagem intitulada “BDSM LIGHT OU SEXO APIMENTADO?”, do dia 2 de novembro de 2010. Disponível em: http://doreifobofilica.blogspot.com.br/2010/11/bdsm-light-ou-sexo-apimentado.html.

165

Não estou fazendo regras, até por que, se sadomasoquismo já é marginalizado, basta de regras, que cada top faça as suas e respeitem as dos demais. (...) penso que toda submissa é masoquista, em diversos graus, mesmo que não curta dor, mas nem toda masoquista se submete, ela apenas aprecia sentir dor. (...) Nosso corpo precisa de contato, somos animais sociáveis, precisamos de toques, principalmente na D/s, queremos o estalar da mão ou do chicote sobre a pele, não apenas a D/s psicológica. 39

O MIADOS, LAMBIDAS E ARRANHÕES BDSM E A “GATINHA”

Já a personagem Princess Kitty representa a construção de uma fantasia relacionada a gatos, imagens de desenhos japoneses, da gatinha Hello Kitty, o que dá a impressão de um blog bem feminino, que acaba contrastando com o assunto sadomasoquismo, à primeira vista. Ela também posta sobre suas práticas preferidas, mas além de, diferentemente de Dorei, a maioria das imagens publicadas no blog serem dela mesma, embora não mostre o rosto, apenas seu corpo adornado por belíssimas lingeries e acessórios, e de vez em quando, postar alguns vídeos estilo home-maid40, nos quais ela insinua masturbações, brincadeira com velas e agulhas, Princess Kitty se 39

Postagem de 19 de dezembro de 2010 sobre “Ser Submissa”. Disponível http://doreifobofilica.blogspot.com.br/2010/12/ser-submissa.html 40 Essa expressão estrangeira, em português, significa feito em casa, ou seja, são vídeos caseiros.

166

em:

identifica como “masoca”. No texto de descrição do blog, temos o seguinte: Já me defini tanto, já me definiram tanto, que hoje não busco mais definições. Apenas sou e estou. E sou posse, propriedade, pertenço. Masoquista? Escrava? Submissa? Tanto faz. Tenho Dono. Posso ser tudo isso e muito mais, só depende Dele. Estou vivendo minhas fantasias mais secretas, meus sonhos mais excitantes, meus desejos mais obscuros. Vivo intensamente, sinto profundamente e minha pele arde incessantemente. Sou cuidada, maltratada, desejada, amarrada, beijada, humilhada, dominada. Obedeço e me rebelo quase no mesmo instante. Enfrento e me entrego. Acredito e confio. Deixo-me levar, voar, conduzir. Brinco de seduzir e sou seduzida. Sou gatinha, sou brinquedo, sou menina. Sou mulher, sou provocante, sou atrevida. Sou tudo aquilo que eu sonhar. Sou tudo aquilo que Ele ordenar. Eu consegui, pulei o muro, caí, levantei e continuei. Misturo prazer e dor, sensações com emoções. Marquinhas na minha pele acariciam o meu corpo. Desejo o doce e o amargo. O carinho e o castigo. O beijo e o tapa. O sonho e a realidade. Quero tudo. Não quero nada. Tenho uma coleira no meu pescoço, algemas nos meus pulsos e um sorriso nos meus lábios. Há um brilho incontido nos meus olhos que não me deixa negar. E uma certeza que grita sem cessar: Eu pertenço! Cada um vive o seu fetiche como lhe da mais prazer, claro há uma hierarquia e umas regras básicas em bdsm, mas o resto cada um vive o seu, eu por exemplo não gosto de ser xingada, sempre bloqueei na hora "dominadores" que vinham me chamando de cadela, entendo que é um termo carinhoso do meio, e não um xingamento, mas acho que apenas o Dono tem o direito de chamar assim, e no meu caso meu Dono é extremamente carinhoso na forma de me tratar e pelo meu jeito arisco e rebelde ( como o animal gato) eu virei a gatinha Dele, é questão de gosto pessoal. 41

O estilo “fofo” e meigo do blog e, consequentemente, da blogueira, também contrasta um pouco com a atitude de contestação que ela impõe em seus textos. Ela comentou muito isso comigo: Não podemos sair afirmando que são todos iguais, eu respeito a opinião de todos e se alguém discordar de mim no meu blog, eu aceito numa boa, apenas respondo defendendo e explicando a minha opinião, que é só minha, só serve para mim e mais ninguém. É apenas aquilo que vivo e acho e não uma regra para todos. Agora existem muitas pessoas que não sabem debater, levam todas as criticas para o lado pessoal e fazem ataques nesse sentido, fico muito triste com isso, mas resolvi ignorar.

41

Em entrevista, em abril de 2011.

167

CONSIDERAÇÕES FINAIS A escrita observada em campo é uma forma de sociabilidade. A utilização

da

sociabilidades

internet possibilita

como a

ferramenta

visibilidade

de

de

divulgação novas

e

de

práticas,

de

experiências, de vivências, de referência para outras pessoas que ainda não se descobriram, que se acham “doentes” ou “anormais” porque sentem prazer com o que não é considerado convencional. Facchini (2008) também reforça a importância das redes sociais na internet pra a divulgação do BDSM, comprovamos isso com o fato de que foi por meio da internet que se popularizou o lema SSC, a safeword, e até mesmo a comunicação à distância dos praticantes de vários lugares do país, isso propicia o espaço pra a construção de conhecimento sobre as práticas, que acontece com o objetivo de diminuir o preconceito contra o SM, e unir fronteiras, já que as práticas estão alicerçadas em fronteiras pouco definidas: a relação entre sadomasoquismo e violência é um exemplo. Há nessa escrita nos blogs construção de verdades, saberes, vivências, desejos, amores, sexualidades e podem ser lidas como rupturas e subversões de determinadas ordens sociais, reflete o desejo ocupando novos

espaços, experimentando novas

possibilidades,

formando novas subjetividades e sexualidades, e como consequência, moldando novos desejos e identificações. “Assim, perfis do Orkut, weblog, fotologs, etc., são pistas de um ‘eu’ que poderá ser percebido pelos demais. São construções plurais de um sujeito, representando múltiplas facetas de sua identidade” (RECUERO, 2009, p. 30) E é inclusive para deslocar o BDSM da transgressão e da violência que muitos dos blogs foram criados. É a tentativa de dar um poder à palavra escrita. Sabemos que “o ‘tom' de um texto pode encerrar uma discussão ou, em vez disso, provocar polêmica ou dissenso.” (LOURO, 2007, p.237), que imagens podem incitar a várias atitudes, pode causar impactos os 168

mais diversos, em quem lê e em quem escreve e é importante lembrar que “é difícil compreender uma mensagem fora de seu contexto vivo de produção. Pelo que pudemos observar, é comum que haja preocupação em relação ao lugar que essas escolhas vão ocupar na vida dos sujeitos. A escrita nos blogs pode ser, além de compartilhamento e sociabilidade de experiências entre os praticantes, como também um exercício de autoconhecimento e reinvenção de si.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOZON, Michel. Sociologia da Sexualidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. BRITTES, Rogério. Bondage, Dominação e Sadomasoquismo: Esboço de uma teoria etnográfica da rede BDSM. 2006. Monografia (Graduação em Ciências Sociais) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Minas Gerais, 2006. FACCHINI, R.. Entre umas e outras: mulheres, (homo)sexualidades e diferenças na cidade de São Paulo. 2008. Tese. Doutorado em Ciências Sociais, IFCH/Unicamp. Disponível em: < http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/ > Acesso em: 27 set. 2011. FERREIRA, Carolina Branco de Castro. Ciência, Medicina, Auto-Ajuda e Mercado: a triangulação de três campos na constituição de políticas sexuais. In: 35º Encontro Anual da ANPOCS, 2011, Caxambu. Anais do 35º. Encontro Anual da Anpocs, 2011. FÍGARI, Carlos Eduardo, DÍAZ-BENÍTEZ, Maria Elvira. (orgs) Introdução: sexualdiades que importam: entre a perversão e a dissidência. In: Prazeres dissidentes. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: Ética, sexualidade e política. Coleção Ditos e Escritos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. GEERTZ, Clifford. Obras e vidas: o antropólogo como autor. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005. HERRERA, Miguel Hexel; PASSERINO, Liliana Maria. Estigma e Ciberespaço: desafios da netnografia como metodologia para 169

pesquisa de redes temáticas na blogosfera. Novas Tecnologias na Educação, v. 6, nº2, Dezembro, 2008. Disponível em: . Acesso em 12 nov. 2011. LEITE JR., Jorge. A CULTURA S&M. 2000. Monografia (Graduação em Ciências Sociais) – PUC, São Paulo, 2000. LÉVY, Pierre. Cibercultura. 2. Ed. São Paulo, SP: Editora 34, 2000. _________. O que é Virtual? São Paulo: Ed. 341, 1996. LOPES, Denilson. Experiência e Escritura. In: O homem que amava rapazes e outros ensaios. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002. LOURO, G. L. Conhecer, pesquisar, escrever... Educação, Sociedade & Culturas, nº 25, 2007, 235-245. Disponível em: . Acesso em: 5 fev. 2012. MONTARDO, S. P., PASSERINO, Liliana Maria. Estudos de blogs a partir da netnografia: possibilidades e limitações. Revista Renote: novas tecnologias de Informação, volume 4, Nº 2, Dezembro, 2006. Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2012. PARREIRAS, Carolina. Fora do armário...dentro da tela: notas sobre avatares, (homo)sexualidades e erotismo a parttir de uma comunidade virtual. In: Prazeres Dissidentes. María Elvira Díaz-Benítez, Carlos Eduardo Fígari (orgs). – Rio de Janeiro: Garamond, 2009. RECUERO, Raquel. Redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2009. SILVA, M.J. Linguagens, experiências e convenções de gênero e sexualidade no BDSM. 2012. Monografia. (Graduação em Ciências Sociais), UFC, Fortaleza, 2012. STEELE, Valerie. Fetiche: moda, sexo e poder. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. ZILLI, B. D. A perversão domesticada: estudo do discurso de legitimação do BDSM na internet e seu diálogo com a psiquiatria. 2007. Dissertação. Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. ___________. BDSM de A a Z: a despatologização através do consenso nos “manuais” na Internet. In: Prazeres Dissidentes. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

170

“MEU BRASIL BRASILEIRO”: RESGATANDO NOSSAS ORIGENS Amanda Kelly Alves Sarmento Abrantes42 Gilmara Juvina Diniz Silva43 Jéfesson Medeiros de Melo44 Lidiane Alves da Cunha (Orientadora)45

RESUMO: Este trabalho visa relatar a experiência construída no decorrer da disciplina Cultura Brasileira, durante o 6º período do Curso de Ciências Sociais, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Baseando-se nas obras A Águia e a Galinha de Leonardo Boff , e Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freire, foi possível construir discussões sobre a noção de Cultura, buscando desenvolver nos alunos a compreensão do seu real significado, utilizando a memória da nossa cultura, afim de recontar a história da Cultura Brasileira. A partir das discussões, e reconhecimento da condição humana buscou-se compreender a constituição desse humano não apenas como um ser físico e biológico, mas também como um ser cultural, permitindo-o tornar-se (re)construtor da história de sua própria cultura, a cultura brasileira. Palavras-Chave: Cultura; Homem; Memória.

INTRODUÇÃO Neste artigo relatamos a experiência, e apresentamos os resultados obtidos no decorrer da disciplina Cultura Brasileira, durante o 6º período do Curso de Ciências Sociais, da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais - FAFIC, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN, realizado durante o segundo semestre de 2011 e início de 2012. Mais especificamente, trataremos de discorrer sobre a experiência adquira no discorrer da disciplina, baseando-se nas leituras discutidas 42

Estudante de Graduação em Ciências Sociais (UERN). Integrante do Grupo de Pesquisa do Pensamento Complexo (GECOM/UERN). [email protected]. 43 Estudante de Graduação em Ciências Sociais (UERN), Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Incitação à Docência (PIBID/UERN). Integrante do Grupo de Pesquisa do Pensamento Complexo (GECOM/UERN). [email protected] 44 Estudante de Graduação em Ciências Sociais (UERN), Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Incitação à Docência (PIBID/UERN). Integrante do Grupo de Pesquisa do Pensamento Complexo (GECOM/UERN). [email protected] 45 Graduada em Ciências Sociais (UERN), Mestra em Sociologia (UFPE). Professora Adjunta (UERN), Coordenadora de Área do PIBID/Ciências Sociais (UERN). Integrante do Grupo de Pesquisa do Pensamento Complexo (GECOM/UERN). [email protected]

171

em sala de aula no que se refere à temática Cultura, focando a Cultura Brasileira e o resgate de sua constituição por meio da memória. Com o objetivo de buscar a real compreensão do termo Cultura, baseamos nossos encontros realizando discussões de leituras em torno de temáticas como Pluralidade Cultural, Alteridade e Natureza e Cultura. Como principal base de discussão para que alçássemos nosso objetivo, realizamos a leitura e discussão da obra A Águia e a Galinha, de Leonardo Boff ,onde pudemos dos debruçar e refletir sobre a noção de condição humana, e a obra Casa Grande e Senzala de Gilberto Freire, onde nos aprofundamos sobre a discussão da cultura Brasileira, sua origem e constituição. Essas leituras foram fundamentais, pois aliadas aos conhecimentos que já possuíamos possibilitaram uma abrangência da visão sobre o que é o homem, qual sua condição do mundo como um ser complexo, o que realmente entendíamos sobre cultura e o que poderíamos acrescentar de novo a esse entendimento, como se constituiu e se constitui a cultura brasileira e o paralelo que poderíamos fazer sobre o passado e o presente de nossa cultura a partir dessas noções e relatos de memória. Todo esse processo foi definido a partir de dois momentos: Primeiro, ocorreram as discussões dessas obras e temáticas em sala de aula, durante os encontros da disciplina, onde realizávamos as leituras e partilhávamos uns com os outros o que havíamos compreendido para que a partir disso fosse gerado um debate permitindo a troca de saberes e a geração de novos conhecimentos, tendo por base a mesma temática a partir de pontos de vista diversificados. Em um segundo momento, realizamos o que podemos chamar de “produto”. Esse produto, fruto das leituras e discussões, foi gerado a partir do desafio que foi nos dado de recontar a história da Cultura Brasileira utilizando para isto os próprios costumes e tradições do povo brasileiro – nesta ocasião, escolhemos a metodologia de literatura de cordel, onde desenvolvemos um cordel intitulado “Meu Brasil Brasileiro”.

172

A DISCIPLINA CULTURA BRASILEIRA A disciplina Cultura Brasileira é um dos componentes curriculares obrigatórios do Curso de Ciências Sociais da Universidade do Estado do rio Grande do Norte – UERN. A mesma está distribuída entre as disciplinas do 6º período do curso, na habilitação licenciatura. O objetivo desta disciplina é trabalhar o conceito de cultura, visando desenvolver junto ao alunado noções que reforcem a compreensão de seu significado e que proporcione aos mesmos uma formação que contribua para o futuro exercício da docência. Aqui, discute-se o conceito de cultura em linhas gerais, mas, mais especificamente a cultura brasileira em si, baseando-se em nossos, costumes, crenças, tradições, e discutindo como se deu o processo de constituição e desenvolvimento de nossa cultura. No decorrer dessa disciplina, as aulas de rotina fizeram toda a diferença por conter em sua metodologia o grande diferencial necessário à elaboração deste trabalho. As aulas ocorriam sempre nas noites das sextas-feiras, a princípio, nossos encontros se voltavam às discussões introdutórias ao conceito de cultura. Nessas aulas iniciais realizamos leituras e discutimos temas que nos fizeram compreender a importância da cultura em si e sobre a diversidade cultural existente em todo o mundo. Para obter essa compreensão se fez necessário a busca do entendimento do “outro”, das diferenças das raças, das crenças e da cultura em geral. Questões sobre alteridade (princípio das diferenças humanas) também foram pontos estratégicos e pertinentes para nossas discussões, pois nos permitiu refletir sobre a condição das diferenças, do “outro” enquanto ser diferente e não como inferior ou superior a nós, a nossa cultura. Nossas aulas ocorriam sempre de maneira diversificada, longe da monotonia e rotinas tradicionais de sala de aula. Nossa turma, formada por, uma média de 12 alunos, foi desenvolvendo uma dinâmica em que 173

as aulas ocorriam em círculo, como uma roda de conversa, e sempre em salas diferentes, em alguns momentos utilizamos até praça pública para enriquecer a experiência, perpassando por vários tipos de ambientes a fim de diversificar a metodologia da disciplina. Em todos os nossos encontros trabalhamos a obra a Águia e a Galinha. Trata-se de um conto que nos ajuda a refletir acerca da condição humana, além de nos proporcionar embasamento para todas as atividades que íamos desenvolver no decorrer desse processo. Com luzes apagadas, envolvidos no aroma de incensos e sob a luz de uma vela, líamos a cada fim de aula um capítulo dessa obra. Com o aconchego da pouca luz e sob a voz suave de um contador de histórias (sempre um de nós, alunos), desenvolvíamos essa leitura, e de forma bastante atenciosa, buscávamos compreender o significado da condição humana, além de relembrar a forma tradicional de se contar histórias em família, na perspectiva da busca pelo resgate de nossas origens e da origem do nosso povo, da nossa cultura. Essa atividade de reflexão foi nos proporcionando a clareza do nosso objetivo, e foi um auxílio para que passássemos a compreender o que é a condição humana, o que é o homem, qual sua condição enquanto ser no mundo, o homem enquanto sujeito ativo na história. RECONTANDO NOSSA HISTÓRIA Reunidos em grupo buscamos inovar na metodologia de apresentação do trabalho final da disciplina, pois por incentivo da professora

responsável,

não

bastava

apresentar,

era

necessário

“recontar a história de nossa cultura”. Assim surgiu a ideia de utilizar a forma poética muito usada no nordeste, de contar histórias através de cordel. O grupo composto por três alunos sendo duas mulheres, uma de cor branca e outra negra, e um homem também de cor negra, tornouse cenário perfeito para criação de um romance brasileiro. Que foi um convite a uma viagem em nossa memória, sob uma narrativa bem 174

humorada dos costumes e tradição dos três povos que deram origem a nossa cultura. Utilizando para isso um romance em uma triângulo amoroso, onde o ouvinte ou leitor, poderá observar e reconhecer a cultura do Brasil em cada um dos personagens envolvidos. O texto foi a primeira construção. E cada indivíduo do grupo ia tomando para si a identidade do personagem à medida que criávamos o texto e dávamos rumo a nossa história. Sempre com o cuidado de dar ao cordel vida, e características específicas do povo brasileiro, tornamos os personagens descendentes de índio, escravo e português, e identificando o homem como um eterno amante da figura feminina. O cordel buscou retratar o processo de miscigenação do nosso povo. Os personagens, embora imaginários, ganharam características humanas - pois se tratavam de figuras reais na nossa história - e por esse motivo eram dotados de desejos e amores, erros e acertos, com uma característica em comum, a necessidade da existência, os três buscavam existir para o outro e com ele viver e conviver. Para criar os personagens buscamos fazer um resgate de nossa memória e da memória de nossos familiares, acerca das características e costumes típicos de cada povo índio, escravo e branco. Por este meio recontamos a história da cultura brasileira tomando por base o processo de miscigenação que originou a cultura atual. A apresentação foi feita para os demais alunos da turma ao ar livre, nas margens do rio Mossoró, onde nos caracterizamos e representamos os personagens, vivendo-os em uma apresentação teatral do cordel. ESSE MEU BRASIL BRASILEIRO Pretendemos com este cordel recriar um pouco da nossa história, e da construção da cultura de nosso país, Uma cultura bela e rica que mistura raças, cores e tradições, gerando um povo novo, o povo brasileiro. Para isso narraremos aqui um romance, em triangulo amoroso, onde as três raças, negro, branco e índio mesclam-se, cada um com 175

seus costumes, crenças, desejos e identidade dando origem a esta nossa cultura maravilhosa. Convido os amigos pra conosco viajar

Ana:

Para com honras e glórias

Não sei por que a dúvida,

Essa história contar,

Pois é fácil escolher

De uma terra de índio

Os adjetivos que tenho

Onde o que planta se dá.

Essa aí não pode ter

Conto, fábula ou lenda Chamem como quiser

Sou branca de olhos claros

Essa é a história

Tenho na veia sangue nobre,

De Ana, Joana e José.

Como ficar na dúvida Entre eu e esta pobre?

Conta-se que naquela terra

José:

De um mundo chamado Brasil,

Tenha calma minha branquinha

O amor armou uma trama

Ana tente entender!

Um caso que nunca se viu

É que eu amo Joana

E o coração de José

Mas também amo você.

Em duas bandas se partiu. Joana: José descendente de índio

Ôxe meu neguinho

gostava de viajar,

Tá fazendo confusão

mas achou de por duas belas

Tu conhece o produto

De uma só vez se apaixonar.

Que hoje tu têm na mão Pois muito além do amor

José:

Por mim tu tem tesão.

É agora que o cordel Vai ficando complicado

Sei que é pela negra

Pois no meio desta trama

Que tens amor verdadeiro

Foi que eu fiquei lascado

Pois em seu coração Eu que cheguei primeiro.

Com tanta mulher bonita De cor e perfumes diversos

Ana:

Eu não poderia escolher

Lá vem ela de novo,

Só uma no universo.

Com esse papo furado

176

Essa afro-brasileira Descendente de escravo.

Mas preciso decidir Pois eu quero me casar

Fica comigo meu bem

Escolher o meu amor

Não vais se arrepender

Pra com ela procriar.

Sou letrada, civilizada, No conforto vais viver. Ana: Joana:

É por isso que comigo

Mas é muito atrevimento

Tu precisa viver

Se achar melhor que eu,

Pois saúde e educação

A inteligência que tenho

Nossos filhos vão ter

Foi a vida que me deu

Serão criados nas normas

Mas não duvide meu nêgo

Da ética e da moral

Pois eu posso garantir

Dentro da religião

O conforto que tu queres

Contra o pecado e o mal.

Na minha cama vai sentir. Joana: José:

Posso até imaginar

Ora, parem vocês duas

Como vai ser esse bruguelo

Pois tá ficando pior

Que vive sem respirar

Não tem como decidir

Ficando até amarelo

Qual das duas é melhor

Sem saber o que é vida Vivendo em seu castelo.

Quanto mais vocês falam Mais eu fico indeciso

Nossos filhos serão livres

Necessito dessa nêga

Pra correr e pra trepar

E da branquinha preciso.

No pé de manga ou de coco E a vida aproveitar

Joana com sangue de índia

Os bons costumes do meu povo

Esse sangue africano

Eu irei lhe ensinar

Esse calor brasileiro

Mas não vamos criar bicho

Ainda acaba me matando.

Pra no terreiro amarrar.

Ana com seus olhos verdes

Ana:

Teu olhar, tua doçura

Vamos cria-los pra Cristo

Tua pela branquinha

Com pulso forte na mão

Também me leva a loucura.

E dentro da Igreja

177

Lhes daremos salvação.

Eu que não faço questão De contigo ir morar

Joana:

Sei que nem meu axé

Meus filhos serão educados

Eu vou poder escutar

Com dureza e com amor

Ouvir ópera não é comigo

Dançando lá no terreiro

Então certo não pode dar

Papai oxum e nagô.

Gosto de comer feijão Temperado com jabá Só vai querer comer frescura

José:

Esse tal de caviar.

Tive uma inspiração divina Mas preciso analisar

José:

Não sei se veio de Cristo

Vamos poder juntar

Ou de mãe Iemanjá

Um pouco de cada um

Vamos acabar com isso

Viveremos em conjunto

E juntos vamos morar.

Acabando com tabu. Misturando os temperos

Ana:

Uma canta a outra dança

Nem pensar meu neguinho

Juntaremos as culturas

Nisso nem se fala

Desde o tempo de criança.

Só se for pra dividir Em casa grande e senzala.

Ana e Joana: -Eu cozinho e tu lava.

Joana:

-Eu de noite,tu de dia.

Casa grande e senzala até pode ser

-Uma fica com o feijão.

Mas dessa vez pra senzala quem vai é

-E a outra com a pia.

você Para aprender no tronco

Ana:

O que de fato é sofrer.

Pois chegue cá meu neguinho Não vai mais se aperrear

Ana:

Decidimos que contigo

Eu ir parar no tronco?

As duas vão se casar

Veja se isso tem graça

E nos nossos filhos a mistura

Neguinho tá decidido

Vai se manifestar.

Com essa descendente de índio Não divido a mesma casa.

Quando esse sangue A gente misturar

Joana:

Negro, branco e índio

178

Até caboclo vai dá. José: Eita que vai ter menino Pra todo gosto e vontade Foi isso que pedi a Deus Isso é felicidade. Joana: Uns vão querer axé Outros vão preferir rock As meninas dançam funk E os meninos dançam xote. José: No meio dessa mistura Se verá a união Construiremos cultura Sem perder a tradição Negro, branco e índio Juntos em uma só nação Esse foi o desfeche Do romance complicado De Ana e de Joana E José apaixonado. Assim finda a história Que até hoje é contada Nessa nação brasileira De gente miscigenada. Esse amor nascido aqui Tem fama no mundo inteiro, Pois essa é a cultura do meu Brasil brasileiro.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Vivendo a experiência deste trabalho, acreditamos que para recontar a história de uma cultura, faz-se necessário dois exercícios fundamentais: primeiro o reconhecimento de nossa própria origem, o entendimento de que somos seres antes de tudo animais, mas com a capacidade de dar significado às nossas vidas. O segundo exercício é o de observação do nosso olhar, a forma como vemos o mundo. A cultura, se observada após estes dois exercícios, poderá ser definida como a visão de mundo que um ser animal adaptado ao social tem ao olhar através das lentes dos óculos da sua sociedade. As memórias necessárias para a construção deste trabalho e para todo o desenvolvimento da disciplina, não foram apenas lembranças nossas, mas sim relatos de terceiros, que nos permitiram construir as nossas próprias memórias. Enquanto animais, somos todos iguais, mas, para viver em grupo precisamos partilhar dos mesmos costumes e ver o mundo com os mesmos olhos. Não somos puramente o que queremos ser, somos a verdade que nos fizeram crê, somos sementes de nossa cultura. Observamos o mundo por uma janela de vidro colorido, o que enxergamos lá fora pode até ser preto e branco, mas, vemos o que o vidro nos permite, um mundo de flores coloridas e passarinhos amarelos. Foi com este olhar colorido composto de memórias coletivas que nos foi permitido reconstruir a imagem da origem de nossa história para assim reconta-la. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOFF, Leonardo. A Águia e a Galina, a metáfora da condição humana. 40º ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. 34ª Ed., Rio de Janeiro, RJ, Editora Record,1998. 180

TODOROV, Tzevetan. Ser, viver, existir. In: A vida em comum: ensaio de antropologia geral. São Paulo: Papirus, 1996.

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O DIREITO A SAÚDE: UMA ALTERNATIVA DE COMBATE AO RACISMO

Hayane Mateus Silva Gomes46 Otília Aparecida Silva Souza47

Resumo Nos últimos anos o governo brasileiro vem trabalhando com o intuito de implementar políticas públicas em favor de grupos historicamente discriminados. Esse trabalho se propõe a analisar como o Estatuto da Igualdade Racial é apreendido e utilizado pelos diversos segmentos que trabalham com a saúde pública e pela população afro-descendente que se utiliza dela nos municípios de Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha no Ceará. O trabalho consiste numa pesquisa realizada nas Secretarias Municipais de saúde e nos cursos de saúde de ensino superior destas cidades. O seu objetivo principal é procurar conhecer a forma como essas instituições trabalham as questões voltadas á saúde das pessoas negras e como esse grupo concebe o atendimento que lhe é destinado nos serviços públicos de saúde. Palavras-chave: Estatuto da Igualdade Racial. Racismo. Saúde.

INTRODUÇÃO Esse trabalho se propõe a analisar como o Estatuto da Igualdade Racial é apreendido e utilizado pelos diversos segmentos que trabalham com a saúde pública e pela população afro-descendente que se utiliza dela nos municípios de Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha no Ceará. O trabalho consistirá numa pesquisa realizada nas Secretarias Municipais de saúde e nos cursos de saúde de ensino superior destas cidades. O seu objetivo principal é procurar conhecer a forma como essas instituições trabalham as questões voltadas á saúde das pessoas negras e como esse grupo concebe o atendimento que lhe é destinado nos serviços públicos de saúde. Para isso, é importante perceber como a sociedade compreende os conceitos de saúde e doença para em seguida tratarmos das questões voltadas á saúde dos afrodescendentes brasileiros. Assim será possível conhecer as varias possibilidades de aplicação do Estatuto, bem como identificar os obstáculos na sua execução. 46

Estudante de Graduação em Ciências Sociais (URCA). Estágio voluntário junto a área do Georpark Araripe desenvolvendo trabalhos comunitários. [email protected] . 47 Graduada em Ciências Sociais (UFC), Mestra em Sociologia (UFC). Professora Adjunta de Antropologia (URCA). [email protected].

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Nos últimos anos o governo brasileiro vem trabalhando com o intuito de implementar

políticas

discriminados

através

públicas da

em

favor

realização de

de

projetos

grupos

historicamente

que impulsionam

o

crescimento social e favorecem as manifestações culturais.Essa atitude se constitui como “uma resposta” do Estado ás desigualdades sociais e étnicas impostas pelo poder político e econômico que, ao longo dos séculos, tanto comprometeu o desenvolvimento da sociedade brasileira. Concebidas atualmente como Ações Afirmativas, essas iniciativas contribuem para a valorização social e a inserção de pessoas ou grupos discriminados no mercado de trabalho. Elas podem ser desenvolvidas pelo poder público ou privado e fazem parte do Programa Nacional de Ações Afirmativas (instituído pelo Governo Federal em 13 de Maio de 2002) que tem como meta o combate á discriminação racial, de gênero e de origem nacional e a execução de medidas que favoreçam a igualdade e o acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego. De acordo com Sarmento as políticas de Ações Afirmativas podem ser definidas como: medidas públicas ou privadas, de caráter coercitivo ou não, que visam promover a igualdade substancial, através da discriminação positiva de pessoas integrantes de grupos que estejam em situação desfavorável, e que sejam vítimas de discriminação e estigma social. Elas podem ter focos muito diversificados, como as mulheres, os portadores de deficiência, os indígenas ou os afro-descendentes e incidir nos campos mais variados, como educação superior, acesso a empregos privados ou cargos públicos. (In: D’ANGELO, 2010, p.21) É possível perceber que as ações afirmativas baseam-se na concepção de igualdade contrariando uma das principais características da sociedade brasileira que é a desigualdade social. Portanto, uma análise mais atenta nos faz refletir sobre a ambigüidade que esse tem sugere e nos impulsiona a procurar compreender como a questão da igualdade de direitos é tratada historicamente pelo estado brasileiro através das Constituições, já que a desigualdade social sempre esteve presente na história do país.

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Mas, para falar sobre igualdade numa sociedade desigual é necessário delimitar um campo específico, por isso pretendemos analisar o tema da igualdade através do item “O direito à saúde” do Estatuto da Igualdade Racial. Proposto pela primeira vez no ano 2000 pelo então deputado Paulo Paim, este projeto de Lei vem tramitando no Congresso até agora, tendo a sua redação final aprovada apenas em 21 de julho de 2010, devendo entrar em vigor noventa dias após a data de sua publicação. O Estatuto da Igualdade Racial tem como objetivo principal o combate a “descriminação racial e as desigualdades raciais que atingem os afrobrasileiros, incluindo a dimensão racial nas políticas públicas desenvolvidas pelo Estado” (PAIM, 200 In: D’ANGELO, 2010:172) Constitui-se, portanto, no reconhecimento por parte do governo de que o racismo é um forte determinante da desigualdade, da exclusão ou da inclusão desqualificada e, conseqüentemente, da concentração de renda. O estado brasileiro se compromete assim a saldar uma ‘divida histórica’ provocada pelas diversas formas de ‘etnocídios’ praticadas contra a vida dos afro-descendentes. No Brasil, a trajetória da discriminação sofrida pelos negros está registrada na sua história desde o período colonial até os dias de hoje. Mas, ironicamente, as tentativas de propor medidas que amenizem ou diminuam o problema das desigualdades étnicas aqui são antigas, muito embora os esforços para execução e aplicabilidade dessas Leis sejam quase inexistentes. Observando

as

Constituições

Federais

outorgadas

no

país,

percebemos que o tema da igualdade está sempre presente, muito embora ele seja abordado de forma bastante ambígua. Na Constituição de 1842 o direito a igualdade excluía a população negra escravizada. Mas tarde, a primeira Constituição promulgada após a proclamação da República, apesar de reafirmar a igualdade de toso perante a lei, restringia o direito ao voto apenas para pessoas alfabetizadas impedindo aos negros o acesso às urnas além de proibir também o voto feminino. Nas Constituições seguintes o tema da igualdade apresentava avanços e retrocessos: em 1934 a Carta condena a discriminação racial entre o direito à igualdade e a proibição (e punição) do preconceito racial.

184

No entanto, apesar dessas Constituições abordarem o preconceito étnico como uma atitude passível de punição legal, as Leis tornaram-se ineficazes porque exigiam da vítima que elas provassem “o especial motivo de agir” e as manifestações de racismo foram associadas à contravenções penais, o que reduzia consideravelmente o número de condenações pela prática do racismo. Finalmente, a Constituição de 1988 protege contra discriminação social e aborda o tema da igualdade, considerando a sua relação com a desigualdade ao propor como objetivo fundamental, a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos, sem distinção de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Mas, é a partir da promulgação da Lei N°. 7.716 em 1989 que o problema do racismo na sociedade brasileira é tratado de forma mais coerente, pois esta define e estabelece punições para “crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” (BARROS, 2009:10). Essa determinação se configura como um marco na história do tratamento jurídico do racismo no Brasil. Pela primeira vez, as manifestações de preconceito contra as pessoas negras são tratadas como crime inafiançável e imprescritível, tornando o acusando sujeito à pena de reclusão nos termos da lei. Agora, com a publicação do Estatuto da Igualdade Racial, a desigualdade social é pensada como conseqüência do racismo e uma série de medidas “compensatórias” é programada para amenizar os problemas decorrentes das práticas racistas. O Estatuto insere o debate sobre o racismo em diversos aspectos da vida social porque estabelece disposições que tratam do direito à saúde, à educação, à cultura, a lazer, à liberdade de crenças e manifestações religiosas, ao acesso a terra e à moradia adequada...Enfim, propõe medidas de inclusão e submete as práticas de racismo a um julgamento digno, favorecendo a construção de uma sociedade mais justa e menos desigual. A nossa sociedade propõe uma separação muito clara entre os estados de saúde e de doença. No entanto, ao mesmo tempo em que os conceitos são separados, não são definidos e apenas o que fica óbvio é o fato de existir uma separação entre os dois, ou melhor, de existir um lugar para cada uma na sociedade. Portanto, é fácil delimitarmos o lugar da doença )na cama, no

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hospital) e o lugar da saúde ( na rua) porque aprendermos a fazer isso na infância, porém, fica difícil avaliarmos como os estados de saúde e de doença estão presentes na nossa vida e como eles podem interferir no nosso cotidiano. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (1995), “saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social, não só a ausência de doença”. Percebe-se que o conceito de saúde vai alem da “ausência de doença” e compreende também os aspectos econômicos e culturais da sociedade, pois “o estado de completo bem-estar” só é possível se o indivíduo possuir condições dignas de sobrevivência e se problemas externos ao seu corpo não possam comprometer o seu estado de saúde. Saúde, assim, por ouro lado, definida de formas menos abrangente, depende de educação, de condições de trabalho, de condições financeiras, de condições de conforto físico. Cada uma destas variáveis se liga à outra de maneira irreversível, uma vez que, educado, o indivíduo tem possibilidade de conseguir um emprego que lhe dê acesso a condições financeiras. Estas permitem que o indivíduo compre serviços de saúde mesmo por esta visão extremamente simplista, passa a ser difícil ignorar que todas estas variáveis estão diretamente envolvidas no desenvolvimento (MALIK, 19982:05).

Fica claro que a saúde não pode ser estudada isoladamente, mas sim considerando todos os aspectos mencionados anteriormente, tendo em vista que esses fatores dizem respeito e são essenciais para o desenvolvimento de qualquer indivíduo. Considerando o fato de que a pesquisa pode ser encarada como um “oficio de construção de categorias”, a noção de saúde deve ser trabalhada, como pretende Bourdieu (1992), relacionalmente. Ou seja, deve ser analisada neste trabalho a partir da representação que o fenômeno possui no senso comum e da forma como as instituições de saúde concebem a idéia de um programa voltado essencialmente para a pessoa negra. Em geral, o homem no tem consciência da saúde quando está sadio. Não a vive como algo especial. Simplesmente vive e isto resulta em algo natural. A menção à saúde, como um estado, é ocasional e poucas vezes se preocupa em pensar porque está com saúde. Isto muda, quando se “sente” doente, quando é despertado para uma necessidade de procura de algo desconhecido (LESSA, 1986:03).

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A saúde é assim considerada como uma situação natural e a sua “ausência” só e sentida quando, finalmente, a pessoa se depara com uma situação desconhecida em relação ao seu bem-estar físico. É nesse momento que a compreensão sobre o processo saúde/doença se manifesta de forma mais ampla, pois a busca por um atendimento de qualidade no serviço público passa a ser utilizada como um parâmetro para a pessoa compreender em que condições a sua saúde se encontra. E, por outro lado, é a partir da ausência de bons serviços públicos de saúde que as noções de cidadania e de igualdade são assimiladas e inseridas no cotidiano das pessoas. No que diz respeito aos afro-descendentes, o acesso adquire outros obstáculos: a presença do racismo na sociedade brasileira que toma a vida do negro mais difícil em toso os aspectos e a falta de conhecimento por parte dos profissionais de saúde sobre noções de igualdade, sobre os direitos e a saúde da pessoa negra. Nesse sentido o Estatuto é bem claro quando estabelece no Capítulo Irt. 6°: “O direito a saúde da população negra será garantido pelo poder público mediante políticas universais, sociais e econômicas destinadas à redução do risco de doenças e de outros agravos” e quando acrescenta em seguida: O acesso universal e igualitário ao Sistema Único de Saúde (SUS) para promoção, proteção e recuperação da saúde da população negra será de responsabilidade dos órgão e instituições publicas federais, estaduais, distritais e municipais, da administração direta e indireta (In: D’ANGELO, 2010:246).

No entanto, o que percebemos é que há desconhecimento (ou negação) dessa Lei por parte dos órgãos de saúde, já que na prática as pessoas negras são cotidianamente discriminadas nos serviços públicos. E, mesmo considerando o fato do Estatuto ter sido promulgado apenas em julho de 2010. Não podemos esquecer que desde a Constituição de 1988 existe uma determinação de propor a redução das desigualdades sociais a partir da promoção do bem de todos, sem distinção de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Assim, podemos concluir que há descumprimento da Lei pois a sociedade brasileira não concebe, na prática,

187

a idéia de que todos são iguais e continua manifestando atitudes racistas no atendimento aos negros Esse argumento foi confirmado no 2 Seminário Nacional da Saúde da População Negra(Rio de Janeiro-2006) quando o então Ministro da Saúde Agenor Álvares afirmou que há diferença entre o atendimento ofertado á pessoa negra e o ofertado á pessoa não negra. Com essa afirmação, o governo brasileiro admite que é destinado ao negro um tratamento desigual e propõe medidas para melhoria das condições de saúde dessa população (BOLETIM CRI, 2006). Á prática do racismo é, finalmente, inserida nas discussões políticas de forma mais consciente. O racismo institucional passa então a ser utilizado como um elemento indispensável para avaliar a qualidade dos serviços de saúde e vai impulsionar a elaboração de programas que objetivam a correção das desigualdades raciais e a promoção da igualdade de oportunidades. Devemos ressaltar que as doenças que possuem grandes incidências nos afro descendentes são a anemia falciforme, hipertensão, glaucoma e outras hemoglobinopatias e, de acordo as determinações do Estatuto da Igualdade Racial, o Sistema Único de Saúde deve conferir atenção especial aos seus portadores (BOLETIM CRI, 2006 E D”ANGELO, 2010). Outro ponto que merece destaque refere-se ao fato do governo federal ter criado a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra que inclui nos seus objetivos ‘o fomento á realização de estudos e pesquisas sobre racismo e saúde da população’ e propõe ‘a ampliação e o fortalecimento da participação de lideranças da saúde da população negra nas instâncias de participação e controle social do SUS’ (D’ANGELO, 2010;268). Percebemos que esse programa propõe mudanças substanciais em relação ao tratamento destinado ao negro quando determina ações voltadas á sua participação política junto aos órgão do governo responsáveis pela saúde. Portanto,

é

importante

que

os

afro-descendentes

tenham

conhecimento das Leis que garantem os seus direitos de cidadãos brasileiros e dos

programas

sociais

desenvolvidos

pelo

governo,

pois

uma

das

possibilidades de reafirmar a identidade dos negros é através da consciência sobre os seus próprios problemas e da conseqüente luta pela resolução deles.

188

Assim, para a realização desse trabalho pretendemos abordar o racismo como uma prática construída historicamente e acreditamos que o seu estudo deve estar relacionado á idéia de identidade e aos conceitos de igualdade, diferença e desigualdade porque entendemos que esses conceitos não devem ser trabalhados isoladamente. As

noções

que

possuímos

sobre

igualdade

estão

sempre

acompanhadas das noções que possuímos sobre diferença (Woodward In; Silva, 2007), mas é importante esclarecer que esses conceitos não se opõem apenas se confrontam e por isso a diferença não deve ser utilizada como justificativa para negar a igualdade. No entanto, a presença da escravidão no processo de formação da sociedade brasileira, faz surgir no país uma forma diferenciada de pensar as relações sociais que passam a ser determinadas a partir do critério da cor das pessoas. Assim, as concepções sobre igualdade de direitos passam a ser intimamente relacionadas ao lugar que as pessoas ocupam na sociedade, e o cumprimento da lei no que diz respeito a igualdade de todos é totalmente desconsiderado quando a questão envolve negros, já que estes dificilmente tem consciência dos direitos que lhe assistem. Os fatos de no Brasil, o critério da cor ser utilizado para definir direitos, nega, inclusive, o principio da diversidade que é inerente ao mundo humano e ao mundo animal. Por outro lado, o conceito de igualdade tem também como contraponto

o

conceito

de

desigualdade

e

quando

pensamos

em

desigualdade devemos considerar que ela refere-se a uma realidade circunstancial e só pode ser compreendida a partir de um ponto de vista, de um espaço de reflexão. De acordo com Barros: A desigualdade é sempre circunstancial, seja porque estará necessariamente localizada social e historicamente dentro de um processo, seja porque estará obrigatoriamente situada dentro de um determinado espaço de reflexão ou de interpretação que a especificará (um determinado espaço teórico definidor de critérios, por assim dizer). Falar sobre desigualdade implica nos colocarmos em um porto de vita, em um certo patamar ou espaço de reflexão(econômico, político, jurídico, social e assim por diante). Mais ainda, implica arbitrarmos ou estabelecermos critérios mais ou menos claros dentro de cada espaço potencial de reflexão. (BARROS, 2009, P. 22).

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Não se esquecendo, portanto que, quando falamos sobre o tratamento destinado aos negros,entendemos que as camadas sociais dominantes não estão conscientes por muitas vezes, dos mecanismos de sua dominação e, no limite, podem permitir-se uma boa consciência compatível com convicções racistas. Esse modo de análise implica que as lógicas pelas quais essas camadas podem julgar-se superior e assim, asseguram á discriminação um funcionamento mascarado ou invisível ao mesmo tempo que tiram vantagem delas. As causas do racismo são por diversas vezes camufladas, não detectáveis aparentemente, enquanto seus efeitos são tangíveis. Sendo assim,a utilidade do conceito de racismo institucional é, antes de tudo, a de pleitear para que se ouça aqueles que sofrem a discriminação e a segregação e que pedem as mudanças políticas e institucionais para retificar as desigualdades e as injustiças as quais são vítimas. Logo, é um convite para debater, investigar, recusar uma cegueira que, em virtude da espessura e da opacidade dos mecanismos próprios ao funcionamento das instituições, permite a amplas parcelas da população beneficiar-se das vantagens econômicas ou estatutárias que o racismo ativo pode trazer, evitando ao mesmo tempo assumir seus inconvenientes morais. Ele preserva, dito de outra forma, a boa consciência daqueles que dele tiram proveito Sendo assim, existem alguns negros, mais conscientes do problema racial dentro das instituições de saúde de que outros, e esses lutam juntos contra o preconceito e a discriminação racial. Dessa forma, considerando a intensidade do processo de miscigenação e a alta taxa de mortalidade da população negra no Brasil, poderíamos admitir que o número de negros diminuísse dia após dia, tornando-se um grupo reduzido. O mesmo, porém não poderíamos dizer do preconceito e da discriminação. Tanto os negros como seus descendentes enfrentam os mesmos tipos de problemas dentro dos serviços públicos de saúde. Assim, tudo isso, pode estar parecendo complicado ou confuso. Mas, ser negro no Brasil hoje significa esclarecer os outros negros e seus descendentes do papel fundamental que têm a desempenhar para mudar a situação racial aqui. Significa, também, conhecer com quem o negro pode contar na sua luta, ou seja, conhecer quem está ou pode estar comprometido

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com a luta do negro. Em outras palavras, é uma questão de identidade étnica e de identidade de princípios e objetivos. Logo, ser negro no Brasil hoje é uma questão política. Não política apenas no sentido partidário, que é importante, mas no sentido mais amplo das relações devem ser conhecidas, reconhecidas e assumidas. É preciso ressaltar que, a massa negra precisa ter consciência e ser sensível ao problema racial. Ela o sente dificuldade de conseguir emprego e de ser atendida dentro dos centros de saúde. O problema é que essa consciência fica apenas a nível da constatação.Uma coisa do tipo; ‘Eu sei que o problema existe, mas não sei que nome dar a ele’;eu sei que o problema existe, más não sei como lidar com ele’; eu sei que o problema existe, mas prefiro pensar que não.’ A ‘questão do negro’ não é só um problema de raça, é também um problema de classe. E isso implica que o negro deve criar uma consciência uma, diante do branco e de si mesmo, como membros de outra raça, e nisso está só; e outra como membros de uma classe ante os membros de outras classes. No entanto, vários obstáculos impedem o negro de criar essa dupla consciência. Entre eles, o mito da democracia racial é o mais eficaz. A não existência de conflito racial aberto impede que muitos negros se identifiquem como tais e partam, juntamente com outras pessoas comprometidas com a causa negra, para a ação política. A sutileza das manifestações de preconceito e de discriminação raciais dentro das instituições de saúde, muitas vezes torna invisível a violência exercida sobre a população negra no Brasil. Mas, a partir do momento em que são conhecidos os mecanismos dessa violência, o problema se torna claro, transparente. E não é preciso ir muito longe ou armar raciocínios elaborados para conhecer os mecanismos utilizados pelo racismo. Sendo assim, queremos fazer um alerta, ou seja, falar sobre a questão racial exige seriedade, muito estudo e pesquisa, pois ela é complexa e polêmica. Lidamos com conceitos contraditórios, com dados e situação ambíguas que, de repente, fogem das mãos. Chamamos a atenção para o que é manifesto quando muitos ainda acreditam ser simples impressão. Tanto

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é assim que você, se não for cuidadoso e atento em sua análise, pode cair na armadilha de achar que ‘aqui não temos esse problemas’ Portanto, quando falamos que no Brasil o tratamento destinado á saúde da pessoa negra é desigual estamos admitindo que quando se trata de pessoas brancas, a realidade é diferente. E, como a desigualdade está relacionada a circunstancialidade histórica’, é possível que esta situação seja revertida através da ação humana. Nesse sentido, o Estatuto da Igualdade Racial se constitui como ferramenta importantíssima no combate ao racismo, pois introduz questões de extrema relevância para a compreensão da exclusão social que compromete a população negra no Brasil e propõem debate sobre as perspectivas de mudança a partir da participação dos negros como ‘agentes políticos’ atuando a favor da sua própria história.

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BARROS, José D’ Assunção Barros.

A construção Social da cor-

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193

PROCESSOS EDUCATIVOS NAS ATUAIS POLÍTICAS PÚBLICAS VOLTADAS PARA A JUVENTUDE Rosicleide Araújo de Melo48 Resumo: O artigo discute os processos educativos presentes nas atuais políticas públicas voltadas para a juventude, no caso o Projovem Urbano em Recife-PE. A partir de consulta a documentos, bem como entrevistas a Coordenadores e professores que atuaram no Programa, buscou-se identificar como essa política tem funcionado e que atores estão envolvidos. A pesquisa aponta que o Programa apresenta algumas especificidades, sobretudo por propor uma metodologia que integra três pilares, a saber: formação básica, qualificação profissional e participação cidadã. Porém, apresenta alguns limites, começando pelo modelo que já vem proposto por parte do Governo. Palavras-chave: Projovem Urbano; políticas públicas; Recife-PE.

1- JUVENTUDE E POLÍTICAS PÚBLICAS As políticas públicas têm sido implementadas como resposta do Estado às demandas que emergem da sociedade. Sposito e Carrano (2003) assinalam que a ideia de políticas públicas está associada a um conjunto de ações articuladas com recursos próprios (financeiros e humanos), envolvendo uma dimensão temporal (duração) e alguma capacidade de impacto. Elas não se reduzem à implantação de serviços,

pois

englobam

projetos

de

natureza

ético-política

e

compreendem níveis diversos de relações entre o Estado e a sociedade civil na sua constituição. No caso da juventude, se constituem em “políticas setoriais ou por categorias de população e, além disso, em suas últimas versões, políticas focalizadas, já que as categorias destinatárias se definem a partir de um nível de necessidade, pobreza e risco” (ABAD, 2003, p.16). Para o autor, isso as distinguiu de outras

48

Graduada em Ciências Sociais (UERN), Mestra em Ciências Políticas (UFPE) e Doutora em Sociologia (UFPE). Professora Assistente (UNIVASF) e Coordenadora de Área do PIBID/UNIVASF. É integrante do Núcleo de Teoria da Democracia (NTD/UFPE). [email protected].

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políticas do Estado, já que as anteriormente realizadas apresentavam caráter universal, como as de seguridade social ou de pensões. De acordo com Bango (2003), a questão juvenil foi ganhando espaço nas iniciativas políticas nos últimos 15 anos. Isso se deveu em parte pela notoriedade que os jovens ganharam nos processos de democratização ocorridos na América Latina em fins da década de 80, através da participação em movimentos estudantis, partidos políticos e movimentos sociais. Além desse fator, a designação do ano de 1985 como o Ano Internacional da Juventude, pelas Nações Unidas, fez com que esse tema ganhasse maior relevância para os órgãos internacionais e nacionais. Porém, essas iniciativas não constituíram “a rigor numa política de juventude como tal” (p.41). Abad

(apud

Sposito

e

Carrano,

2003)

estabelece

uma

periodização em torno de quatro distintos modelos de políticas de juventude: a) a ampliação da educação e o uso do tempo livre (entre 1950 e 1980); b) o controle social de setores juvenis mobilizados (entre 1970 e 1985); c) o enfrentamento da pobreza e a prevenção do delito (entre 1985 e 2000); e d) a inserção laboral de jovens excluídos (entre 1990 e 2000). Assim, “orientações tais como as dirigidas ao controle social do tempo juvenil, à formação de mão-de-obra e também as que aspiram à realização dos jovens como sujeitos de direitos”, convivem simultaneamente nos debates sobre a juventude (SPOSITO e CARRANO, 2003, p. 183). “Os jovens ora são vistos como problemas ou como setores que precisam ser objeto de atenção” (idem). No que se refere à formulação de políticas, de acordo com Castro e Aquino (2008), as questões relacionadas à juventude estiveram ao longo dos anos sob a perspectiva de dois enfoques: ora como uma fase crítica, e por isso as políticas se direcionavam para a área da saúde e da segurança, ora como uma fase preparatória para a vida adulta e nesse sentido a educação e o emprego tiveram destaque. “Em geral, tais ações não se estruturaram como elementos de uma “política de juventude”, mas como estratégias de atuação da 195

sociedade para orientar a formação dos jovens e minimizar seu envolvimento em situações de ‘risco’” (p. 29). A promulgação do ECA (Estatuto da Criança e do adolescente), em 1990, foi importante para a constituição de políticas sociais voltadas para esse segmento. Programas e ações foram criados não mais com base na ideia do menor em situação irregular, mas sob a perspectiva da proteção aos adolescentes em conflito com a lei. Analisando as políticas de juventude no Brasil, Sposito e Carrano (2003) afirmam que no governo de Fernando Henrique Cardoso diferentes programas destinados aos adolescentes foram implantados. Conforme os autores (2003, p.189): A identificação dos referidos 33 programas que incidem sobre a juventude no âmbito federal é acompanhada também da constatação de que os mesmos não constituem uma totalidade orgânica naquilo que se refere à sua focalização no segmento jovem. Na análise do público a que se destinam, pode-se dizer que existem focos fortes, médios ou de fraca intensidade, sendo distribuídos da seguinte forma: a) o foco dirige-se explicitamente a adolescentes e/ou jovens (18 programas ou projetos); b) o foco é difuso entre crianças e adolescentes ou jovens e adultos (10 programas); e c) o foco dirige-se à população jovem apenas de modo incidental (cinco programas).

Entretanto, estes se concentraram em áreas como saúde, segurança pública, trabalho e emprego, apresentando a condição juvenil

como

um

elemento

problemático

e

que

requer

um

enfrentamento dos problemas referentes a essa fase. Isso se constata a partir da criação de jogos esportivos, culturais e de trabalho orientados para o controle social do tempo livre dos jovens (SPOSITO e CARRANO, 2003). De acordo com os autores, o déficit de conhecimento sobre os jovens faz com que as discussões e ações do Estado sejam fragilizadas. Em suas palavras: Um dos primeiros diagnósticos se relaciona com a constatação da ausência de registros sobre a avaliação e o acompanhamento gerencial das políticas. O Ministério do

196

Planejamento, Orçamento e Gestão demonstrou algum esforço na avaliação do desempenho de programas e projetos agrupados em torno dos macroobjetivos ministeriais do Plano Plurianual (2000-2003), mas o que foi divulgado não foi suficiente para a percepção do conjunto das ações realizadas e seus resultados na área da juventude (SPOSITO e CARRANO, 2003, p.187).

Mais recentemente, essa temática ganhou novos contornos no Brasil, o que tem contribuído para a ampliação das visões anteriormente citadas, colocando novas questões para a elaboração de um cenário de atuação junto a essa parcela populacional. De acordo com os autores, o surgimento de grupos de jovens com atuações nas mais diversas áreas, desde a educação, cultura, entre outros, possibilitou o reconhecimento por parte dos gestores dos problemas que os afetam. No decorrer dos dois mandatos do governo Lula, quatro ações de abrangência nacional vem pautando a discussão sobre as políticas de juventude no Brasil: a Comissão Especial de Políticas Públicas de juventude na Câmara dos Deputados, o Grupo Interministerial, a Criação do Conselho Nacional de Juventude e da Secretaria Nacional de Juventude. Entre as iniciativas mais importantes ocorridas em 2004, destacam-se as seguintes: i) Realização da Conferência Nacional de Juventude pela Comissão Especial de Juventude da Câmara Federal, que organizou debates (conferências regionais) em todo o país sobre as principais preocupações dos jovens brasileiros e possíveis soluções para seus problemas; ii) criação do Grupo Interministerial ligado à Secretaria-Geral da Presidência da República, que realizou um extenso diagnóstico das condições de vida dos jovens do país e dos programas e ações do governo federal voltados total ou parcialmente para a população juvenil; iii) realização do Projeto Juventude, do Instituto Cidadania, que também propôs como metodologia debates regionais e temáticos e organizou uma pesquisa nacional para traçar o perfil da juventude; iv) encaminhamento da Proposta de Emenda à Constituição (PEC n° 394/2005), que inclui a expressão “jovem” na denominação do capítulo VII e dá nova redação ao artigo 227 da Constituição; v) encaminhamento de PL propondo a criação do Estatuto de Direitos da Juventude (PL n° 27/2007); e vi) encaminhamento de PL versando sobre o Plano Nacional de Juventude (PL n° 4.530/2004), o qual estabelece os objetivos e metas a serem alcançadas pelos governos para a melhoria das

197

condições de vida dos jovens brasileiros (CASTRO e AQUINO, 2008, p. 141).

Em fevereiro de 2005 foram criados a Secretaria Nacional de Juventude (SNJ). Com a secretaria, também foram criados o Programa de Emergência, voltado para jovens entre 18 e 24 anos que estão fora da escola e do mercado de trabalho (ProJovem, na fase inicial), e o Conselho Nacional de Juventude (Conjuve). Este arranjo pretendeu atender três objetivos: i) articular as ações federais voltadas ao público juvenil (majoritariamente destinadas aos jovens de baixa renda); ii) promover a participação dos representantes dos vários grupos e organizações de jovens na reflexão e formulação da política de juventude; e iii) melhorar as condições de vida dos jovens em situação de vulnerabilidade social extrema, por meio de transferências de renda e de ações de elevação dos índices de alfabetização e de escolaridade e de qualificação profissional – escopo original do Programa Nacional de Inclusão de Jovens (ProJovem) –, na perspectiva de melhorar suas chances de inserção no mundo do trabalho (CASTRO e AQUINO, 2008, p. 30).

Como política voltada para a juventude, o Projovem teve início em 2005 em várias capitais brasileiras, dentre elas Recife, visando oferecer condições objetivas de superação das desigualdades que cercam os jovens de 18 a 24 anos, faixa etária exigida para participar do programa e que não tenham concluído o ensino fundamental. Assim, o Programa visava oferecer

elevação da escolaridade,

qualificação profissional e experiências de participação em ações nas suas comunidades. Esses três elementos, juntos, formaram a proposta de integração no programa. O Projovem tem uma metodologia única sendo aplicada em todo o território nacional. Em 2005, o programa teve como meta atuar em todas as capitais brasileiras, atendendo a 200 mil jovens. Em 2006, começou a ser implantado nas periferias das capitais dos estados de Pernambuco, Espírito Santo, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro. 198

Porém, em 2007 essa política foi reformulada tomando como parâmetro os resultados obtidos pelas ações desenvolvidas no país para esse público. O objetivo agora seria integrar as ações de viés emergencial juntamente com a educação, saúde, esporte e cultura, além de ampliar o programa para a faixa etária de 18 a 29 anos. Esse novo formato passou então a constituir o Projovem Urbano. É o que analisaremos a seguir.

2. PROJOVEM URBANO O Projovem Urbano é uma política pública desenvolvida pelo Governo Federal e executada por Estados e municípios. Em Recife teve seu início em 2008, sob a responsabilidade da Secretaria de Educação, Esporte e Lazer da Prefeitura do Recife. É uma reformulação do Projovem – Programa Nacional de Inclusão de jovens, iniciado em 2005 em várias capitais brasileiras, inclusive em Recife. Nesse novo formato, o programa contempla o público de 18 a 29 anos, que saiba ler e escrever e que não tenha concluído o ensino fundamental. É apresentado como uma política que pretende a inclusão cidadã dos jovens em situação de vulnerabilidade social através da educação básica, qualificação profissional e participação cidadã, três eixos que integram o programa. Aos jovens participantes é concedida uma bolsa/benefício no valor de R$ 100,00 (Cem reais) mensais, com duração de 18 meses, sendo condição para esse recebimento a frequência regular na sala de aula. As atividades desenvolvidas acontecem nos núcleos, escolas vinculadas aos pólos, que é a instância local de gestão do programa, sendo por eles administradas. Em Recife existem dois pólos funcionando, cada um com 16 escolas, totalizando 32. Cada núcleo é composto por 5 turmas, sendo cada uma delas assistida por um professor de formação 199

básica, uma assistente social, responsáveis pelo desenvolvimento das atividades de participação dos jovens no programa, aliando teoria e prática, um qualificador profissional, responsável pela execução das atividades de formação para o trabalho. A carga horária do ProJovem Urbano é de 2.000 horas (1.560 presenciais e 440 não presenciais), a serem cumpridas ao longo de 18 meses letivos (78 semanas). Esse percurso formativo foi organizado em seis unidades formativas, cada uma com a duração de três meses. O desenvolvimento das atividades previstas pressupõe a dedicação dos jovens ao curso por aproximadamente 26 horas semanais. As horas presenciais (20 horas semanais) incluem as atividades em sala de aula, visitas, pesquisas de campo, participação em palestras, práticas relacionadas ao campo da Qualificação Profissional e à Participação Cidadã, sob a supervisão de um educador. As horas não-presenciais são dedicadas às leituras e atividades das unidades formativas e à elaboração de planos e registros - individualmente ou em pequenos grupos - nos espaços e tempos mais convenientes aos estudantes. Conforme é apresentado na proposta do Programa, a integração deve ser basilar nos trabalhos dos educadores, sendo esta concebida no

nível

da

formação

básica,

qualificação

profissional

e

da

participação cidadã. O currículo é pensado para favorecer a construção do protagonismo juvenil a partir desses três pilares. A formação básica busca garantir as aprendizagens para a certificação no ensino fundamental, conforme as Diretrizes curriculares nacionais. Portanto, os conteúdos trabalhados nas diversas disciplinas, como Matemática, Ciências Humanas, Português, Inglês e Ciências Naturais devem de alguma forma contemplar essa base curricular articulando-se com a qualificação profissional e a participação cidadã. Esses conteúdos são divididos em Unidades formativas, conforme é expresso no Manual do educador (2008, p.40): Cada Unidade Formativa constrói-se em torno de um eixo estruturante que funciona como tema transversal, ou seja, orienta a seleção final dos conteúdos e sua organização em

200

tópicos. Cada componente curricular enfoca o eixo estruturante com o olhar da disciplina ou campo de conhecimento correspondente, de modo a criar um ambiente pedagógico favorável à construção de noções fundamentais e ao desenvolvimento de habilidades básicas. Esse processo se traduz em ações curriculares ou situações de ensino e aprendizagem nas quais o aluno se apropria das informações e as incorpora ao seu repertório de aprendizagens por meio de atividades integradoras: as sínteses interdisciplinares orientadas pelos temas integradores, o POP, o PLA.

Portanto, os seis eixos articuladores que norteiam todo o currículo integrado do Programa são: Juventude e Cultura, Juventude e Cidade, Juventude e Trabalho, Juventude e Comunicação, Juventude e tecnologia e Juventude e Cidadania. Dentro de cada eixo citado foram organizados conteúdos específicos das disciplinas de formação básica, qualificação para o trabalho e participação cidadã, para, a partir de uma interligação dessas visões plurais compreenderem determinados fenômenos. O desenho do seu currículo, através de atividades desenvolvidas em sala de aula, bem como em espaços externos à escola, tem como meta o desenvolvimento social dos jovens participantes do programa, o qual se propõe fomentar o exercício da cidadania do jovem de forma efetiva. A prática pedagógica é pensada a partir das vivências desses jovens, o contexto social em que estão inseridos, se integrando às questões contemporâneas relativas ao conhecimento. Em relação à qualificação profissional os jovens desenvolvem atividades em torno da questão do trabalho, bem como elaboram o POP (Projeto de orientação profissional). Em relação ao POP, podemos dizer que este traz como contribuição a possibilidade de o jovem ter perspectiva, sonhar com o futuro, pois muitas vezes o que presenciamos em sala de aula é uma auto-estima muito baixa devido à realidade vivida por muitos deles em suas casas, começando pela família, lares desestruturados, gravidez precoce das meninas, envolvimento com drogas, etc. Partindo desse cenário de vida, o que esses jovens poderiam pensar do futuro? A capacidade de sonhar com um mundo melhor, com uma outra realidade de vida para eles e sua família muitas vezes é algo tão distante desse público do Projovem que está tão imerso numa comunidade onde se vê violência, além da pobreza e miséria de seus lares (Depoimento de uma qualificadora profissional, 2010).

201

Faz parte ainda da qualificação profissional a realização de um curso, chamado arco ocupacional, o qual no período de seis meses é executado por instituições de qualificação profissional da cidade. Outra dificuldade diz respeito ao acesso aos locais em que funcionam os cursos, pois muitas vezes os jovens precisam se locomover para localidades distantes dos seus bairros, tendo inclusive o problema da rivalidade entre esses locais. A participação cidadã, como um dos eixos que formam o programa, tem como objetivo “contribuir para o reconhecimento pelos jovens de seus direitos e deveres cidadãos e para o desenvolvimento de potencialidades que resultem no exercício de uma cidadania ativa” (MANUAL DO EDUCADOR, 2008, p.84). Nesse sentido, se propõe como política de mudança social na vida dos jovens recifenses. No caso da participação cidadã, ela se dá a partir de uma preparação teórica, sob a responsabilidade de uma assistente social, envolvendo conceitos como democracia participativa, cidadania, direitos e deveres do cidadão, entre outros, para subsidiar a ação que será desenvolvida pelos jovens em suas comunidades, chamada de ação comunitária. O Plano de ação comunitária – PLA ou a ação comunitária, “tem como referência a ideia de que participar e exercer cidadania são ações que se aprendem fazendo” (MANUAL DO EDUCADOR, 2008, p.44). Sendo assim, a dinâmica de participação no programa passa pela questão da educação para a cidadania.

2.1 - Projovem Urbano em Recife-PE: breves considerações Conforme foi apresentado, o Projovem Urbano segue um modelo que já vem delineado como proposta em todo o Brasil. Na pesquisa aqui citada, situaremos de forma breve como em Recife-PE essa

202

proposta foi executada no período de maio de 2010 a novembro de 2011. Durante esse período haviam 2 Pólos funcionando com a seguinte formação: 1 coordenador administrativo, 1 apoio de nível superior, 2 apoios de nível médio,1 coordenador pedagógico, 1 apoio de nível superior para cada Pólo. Cada Pólo concentrou algumas áreas da cidade, o 3 concentrou 16

escolas das RPA’s (Regiões Político-

administrativas) 1, 2 e 3 e o Pólo 4 concentrou 16 escolas dos bairros das RPA’s 4, 5 e 6. A meta prevista no início era de 200 alunos em todas as escolas.

Quanto

aos

profissionais

que

atuaram

no

Programa,

inicialmente eram 80 professores de Formação básica (distribuídos nas áreas de matemática, Língua portuguesa, Língua inglesa, Ciências humanas, Ciências da natureza), 15 profissionais de Qualificação profissional (nas áreas de Turismo, Administração, Saúde, Telemática, Transportes), e 8 assistentes sociais para cada Pólo. Vale salientar que à medida que havia evasão em algum núcleo, os profissionais iam sendo demitidos. Por isso, ao final do Projovem a equipe que iniciou as atividades já não era a mesma. Durante o período de funcionamento do Programa houve bastante evasão de jovens. Inicialmente eram 32 escolas, com 5 turmas cada uma e um número de 40 alunos por turma. Ao final esse número de turmas e alunos já não era o mesmo. Conforme a Coordenadora administrativa do Pólo 4, os motivos para a evasão são em sua maioria devido aos problemas da própria comunidade em que estes jovens estão inseridos, já que muitos convivem com situações de violência, possuem famílias desestruturadas e sem perspectivas de futuro. Além disso, conforme a Coordenadora, falta apoio das Gestões locais no que se refere a aceitar esse grupo nas escolas em que já funciona o ensino tradicional. No que se refere à Qualificação profissional, os cursos oferecidos durante o Programa foram: Turismo, Administração, Saúde, telemática e Transportes. Vale salientar que é a Coordenação local que faz a 203

escolha desses cursos em cada cidade tomando como base as necessidades e possibilidades de locais de trabalho para os jovens. Um limite em relação a essa qualificação diz respeito à escolha desses cursos, pois de acordo com os professores “muitas vezes os alunos não conseguem fazer o curso desejado por conta do número de vagas e por isso eles acabam desistindo de estudar ou se desestimulando durante o processo”. (Depoimento de uma Professora, 2011). Já na participação cidadã, as atividades são organizadas sob a responsabilidade de uma assistente social. Assim, a partir de alguns temas norteadores, os jovens vivenciam práticas em sala de aula, através de debates dirigidos, dinâmicas, trabalhos em grupo, entre outros. Como o programa é dividido em seis unidades formativas, cada uma mais ou menos de 3 meses, os estudantes passam 6 meses realizando

um

mapeamento

dos

problemas

que

passam

sua

comunidade e constrói um “mapa de desafios”, elencando os principais problemas vivenciados em seu local de moradia. Com esse material elaborado, as assistentes sociais, juntamente com o professor orientador e

os

estudantes,

planejam

uma

ação

que

será

desenvolvida

posteriormente pelos jovens em algum local escolhido por eles. Esse projeto é chamado Plano de Ação Comunitária (PLA), o qual constitui o resultado de todo um trabalho anterior construído e vivenciado em sala de aula, bem como fora dela. Acompanhando as atividades de cinco turmas, observamos algumas particularidades. As atividades desenvolvidas em sala de aula, através da confecção de cartazes, debates, entre outros, visa uma maior percepção desse jovem em relação aos problemas vividos em seus locais de moradia. A partir desse mapeamento, duas questões são trabalhadas em sala de aula pelos professores: “que situações consideram indesejáveis e gostariam de modificar? Em que sentido deverão ser alteradas?” (SALGADO e AMARAL, p.151). Conforme a assistente social entrevistada, “há um envolvimento dos

estudantes

nas

atividades,

apesar

204

de

alguns

terem

mais

dificuldades que outros por serem tímidos” (Depoimento de uma assistente social, 2011). Ainda de acordo com ela, o esforço tem sido para que de fato todos se envolvam e se sintam protagonistas. Por esse ângulo, a participação cidadã, conforme é proposta no Projovem Urbano, visa trazer aos jovens experiências de protagonismo juvenil na medida em que dá centralidade a estes como sujeitos de mudança. O foco sobre a dimensão educativa da participação constitui uma grande contribuição para esses jovens, na medida em que quanto mais eles participam mais o senso de eficácia política poderá ser desenvolvido neles (PATEMAN, 1992). Analisando os aspectos teóricos dessa experiência pode-se dizer que ela consiste numa tentativa de inserir e de delegar aos jovens responsabilidades para com a sociedade, partindo de contextos micro, ou seja, o bairro ou comunidade. Na medida em que é planejada e organizada, a participação cidadã traz para o contexto da escola e do espaço da sala de aula alguns desafios. Um deles está relacionado ao respeito às diferenças, pois as discussões são dinamizadas a partir de vários atores e situações. Outra questão está relacionada ao formato do PLA, pois este já vem delineado pelos gestores e precisa ser executado em variados contextos. Nesse sentido deve-se refletir sobre a viabilidade desse Plano considerando a complexidade de cada cidade em que é colocado em prática. Portanto, podemos identificar alguns limites e potencialidades do Projovem urbano. Como limite, tem a questão do formato que já vem proposto por parte dos Gestores. Como potencialidade, identificamos que as atividades de participação poderá desenvolver um sentimento de eficácia política entre os jovens.

205

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206

JOVENS ENTRE 15 E 17 ANOS NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: REFLEXÕES SOBRE RECONHECIMENTO E DESIGUALDADES NO CAMPO ESCOLAR Maria do Carmo Walbruni Lima49 Rosemary de Oliveira Almeida50

Resumo: Este estudo problematiza a situação de inserção de jovens entre 15 e 17 anos na Educação de Jovens e Adultos - EJA. Procura-se refletir sobre a adequação dessa modalidade de ensino às especificidades das demandas dos jovens dessa faixa-etária, bem como pensar as tensões dialéticas que se estabelecem entre direito universal e reconhecimento de particularidades no contexto das políticas públicas governamentais de educação direcionadas aos jovens estudantes em distorção idade-série, matriculados em escolas públicas. Na fase exploratória da pesquisa de campo foram entrevistados 07 (sete) estudantes de EJA de Escola Pública Municipal em Fortaleza, com oferta exclusiva de EJA para as séries finais do Ensino Fundamental e restritas ao período noturno, indicando limitação das possibilidades de atendimento desse público. Palavras-chave: Jovens, Escola, Distorção idade-série, Desigualdades e Reconhecimento.

1. INTRODUÇÃO A educação constitui um dos direitos sociais formalmente afirmados através da Constituição brasileira. O país tem avançado na efetivação desse acesso à educação, particularmente, no Ensino Fundamental, que se aproxima da universalização. No entanto, apesar da disponibilidade de oferta de vagas para esse nível de ensino nas redes públicas do país, responsável por 84,5% do atendimento 51, apenas metade dos jovens entre 15 e 17 anos encontram-se no Ensino Médio na 49

Graduada em Filosofia (UFC), História (PUC/RJ), Mestra em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Serviço Social e Saúde da Família (UECE). É Assistente Social do Instituto Federal de Educação do Ceará (IFCE). [email protected]. 50 Graduada em Ciências Sociais (UFC), Mestra em Sociologia (UFC) e Doutora em Sociologia (UFC). Professora Adjunta (UECE) e Professora do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Coordenadora de Área do PIBID/Ciências Sociais (UECE). Líder do Laboratório de Estudos da Conflitualidade e Violência (COVIO/UECE), Pesquisadora do Laboratório de Direitos Humanos, Cidadania e Ética (LABVIDA/UECE) e Pesquisadora Associada ao Grupo de Pesquisa Sociedade, Ciência e Ideologia (SOCID/UEPA). [email protected]. 51 Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. INEP - Censo da educação básica: 2011 – Resumo Técnico – Brasília, 2012.

207

idade recomendada52 para cada série. De acordo com informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2010), “[...] a escolarização dos adolescentes de 15 a 17 anos de idade no nível médio não está universalizada. Houve uma melhora em relação a 1999, mas ainda cerca de metade deles estava no nível adequado em 2009, para sua faixa-etária”. (IBGE, SIS 2010, p.46), o que corresponde a aproximadamente 5 (cinco) milhões de brasileiros, uma vez que o país apresenta um total de 10.326.872 jovens53 nesse intervalo etário. Dentre os jovens que compõem a outra metade desse grupo populacional, parte deles ainda permanece no Ensino Fundamental, em situação de distorção idade-série54, e 16,7% não frequentavam mais a escola em 2010. Se considerarmos o número absoluto de jovens representado por esse percentual, que é da ordem de 1.724.587 brasileiros, é possível perceber a dimensão do quanto ainda estamos distante do reconhecimento efetivo desse direito social representado pela educação. O município de Fortaleza apresenta um contingente de 136.858 jovens entre 15 e 17 anos. De acordo com Censo Escolar 2011, havia 121.857 jovens frequentando algum estabelecimento de ensino, correspondendo a 89%55 desse grupo populacional. A escolaridade líquida apresentada foi de 52,7 %, indicando que pouco mais da metade desses jovens encontravam-se no Ensino Médio, percentual que se aproxima da estatística nacional que é de cerca de 50%. No que se refere ao número absoluto de jovens dessa faixa-etária fora da escola em Fortaleza, o número pode chegar a 15.000 jovens no intervalo etário considerado neste estudo. 52

A idade considerada ideal para ingressar no Ensino Médio é de 15 anos de idade e de 17 anos para a conclusão. Dessa forma, a idade adequada para cada uma das séries do Ensino Médio seria: 15 anos para 1ª Série; 16 anos para 2ª Série e 17 anos para a 3ª Série do Ensino Médio. (Instituto Brasileiro de Estudos e Pesquisas Educacionais – INEP – Notícias da Imprensa – Defasagem Idade – Série. Consulta realizada em 13/06/2012). 53 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – Censo Demográfico 2010. 54 A noção de distorção idade-série parte da compreensão da existência de uma adequação teórica entre a série e a idade do aluno. No caso do sistema educacional brasileiro, atualmente, considera-se a idade de 6 anos como a idade adequada para o ingresso de crianças no 1º Ano do Ensino Fundamental. Com duração de 9 anos, o Ensino Fundamental deveria ser concluído aos 14 anos de idade. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais – INEP – EDUDATA BRASIL /GLOSSÁRIO. Consulta realizada em 24/05/2012. 55 Secretaria da Educação do Ceará - SEDUC, COAVE/CEPES – Censo Escolar 2011. (página anterior)

208

Esses jovens encontram-se legalmente protegidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. Fundamentado nos preceitos da Constituição Federal, o ECA reafirma o direito desses cidadãos à educação, bem como reforça o preceito constitucional de que o ensino ministrado tenha por base o princípio da igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola. Os números apresentados acima podem subsidiar uma análise sobre as limitações que ainda persistem para esse acesso e permanência desse grupo populacional na escola Com efeito, as leis asseguram o acesso dos jovens à educação pública. A questão é perguntar como eles se mantêm do ponto de vista quantitativo e qualitativamente usufruindo dos bens do ensino e de seus recursos, e, ainda, dos demais equipamentos da educação. Segundo Libâneo (2012, p. 15), “têm-se observado, nas últimas décadas, contradições mal resolvidas entre quantidade e qualidade em relação ao

direito

à

escola,

entre

aspectos

pedagógicos

e

aspectos

socioculturais, e entre uma visão de escola assentada no conhecimento e outra, em suas missões sociais”. As últimas décadas questionadas pelo autor referem-se aos 20 anos após a década de 1990, que sofreram os impactos neoliberais no que se refere à reforma do Estado que passa a ser baseado em características de flexibilidade e descentralização que impactaram, da mesma forma as políticas públicas. No campo das políticas de educação o autor questiona quais são, de fato, os objetivos da educação básica em termos de quantidade e qualidade do ensino quando se detecta, ao longo desse tempo, impactos negativos em relação aos objetivos e funcionamento das escolas, advindos dos Planos de Educação no Brasil que ensejam em si as orientações e determinações de organismos internacionais, como o Banco Mundial, de caráter economicista56. Tais orientações privilegiam bem mais a 56

Segundo Libâneo, as determinações originaram-se a partir da Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizada em 1990, em Jomtien, Tailândia, que originou um documento intitulado Declaração Mundial da Conferência de Jomtien, seguido de outras conferências e documentos. As políticas públicas

209

estruturação de um ensino e aprendizagem mínimas voltados para a sobrevivência e para o mercado, descartando investimento nos conteúdos, na cognição ampla, na aprendizagem efetiva, enfim, no conhecimento, e voltando-se para investir em uma escola aberta a todos, assistencialista e “moderna”, visto que se sobressai a tradição conteudista e se ambienta mediante projetos sociais voltados para o amparo dos mais pobres. O fato é que, esta forma de investimento se dá para a escola pública, afetando seu currículo (mais curto e aberto), a formação de professores (sem continuidade e aprofundamentos), a gestão da escola (geralmente subserviente à cartilha dos Planos), as práticas de avaliação (voltadas para a contagem de índices e não para a aprendizagem), entre outras questões. Não ocorre da mesma forma em outras escolas que se afirmam pelo conhecimento e pela inserção de tecnologias e outros meios de aprendizagem. É como assevera Libâneo (2012, p. 16), tratam-se de tendências polarizadas, indicando o dualismo da escola brasileira em que, num extremo, estaria a escola assentada no conhecimento, na aprendizagem e nas tecnologias, voltada aos filhos dos ricos, e, em outro, a escola do acolhimento social, da integração social, voltada aos pobres e dedicada, primordialmente, a missões sociais de assistência e apoio às crianças.

Assim, mediante esta configuração dualista da escola brasileira, neste artigo buscaremos pensar, particularmente, sobre as condições de acesso e permanência na escola pública para aqueles jovens entre 15 e 17 anos que não chegaram ao Ensino Médio e que se encontram matriculados em turmas de Educação de Jovens e Adultos – EJA57, uma

brasileiras no campo da educação aderiram à proposta, criando, também, documentos como o “Plano Decenal de Educação para Todos (1993-2003), elaborado no Governo Itamar Franco. Em seguida, seu conteúdo esteve presente nas políticas e diretrizes para a educação do Governo FHC (1995-1998; 19992002) e do Governo Lula (2003-2006; 2007-2010), tais como: universalização do acesso escolar, financiamento e repasse de recursos financeiros, descentralização da gestão, Parâmetros Curriculares Nacionais, ensino a distância, sistema nacional de avaliação, políticas do livro didático, Lei de Diretrizes e Bases (Lei no 9.394/96), entre outras.” (Libâneo, 2012, p. 15). 57 Modalidade de ensino que, de acordo o Artigo 37 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394/96, é “destinada àqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino fundamental

210

das modalidades da política educacional brasileira voltada para a assistência destes jovens. Pensamos que, neste caso, as questões levantadas por Libâneo se agravam ainda mais. Não queremos nos colocar, com isto, indiferentes a EJA e sua importância para contingentes significativos de jovens fora de faixa, mas chamar a atenção para as condições de acesso e qualidade da educação básica, em especial de seus recursos pedagógicos constituídos para estes sujeitos. A inserção de jovens dessa faixa-etária em turmas de EJA parece tornar-se um fenômeno nacional, problema já identificado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais – INEP através do Censo Escolar 2011. De acordo com o referido Instituto: O Censo Escolar 2011 mostra que os alunos que frequentam os anos iniciais do ensino fundamental da EJA têm idade muito superiores aos que frequentam os anos finais e o ensino médio dessa modalidade [...] Esse fato sugere que os anos iniciais não estão produzindo demanda para os anos do ensino fundamental de EJA. Considerando as idades dos alunos nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio de EJA, há fortes evidências de que essa modalidade está recebendo alunos provenientes do ensino regular. (INEP, 2012, p. 25).

Uma investigação aprofundada do fenômeno poderia indicar os fatores que podem estar contribuindo para a inserção desses jovens na EJA, nas várias localidades do país, o que permitiria verificar regularidades e variâncias entre seus contextos de existência e suas experiências quanto às condições de igualdade ou desigualdade para o acesso e a permanência na escola. Embora atravessem uma determinada fase da vida que os aproxima como pessoas em processo de desenvolvimento fisco, psicológico, intelectual, afetivo, os jovens vivenciam uma pluralidade de situações e condições que demarcam e distinguem suas posições dentro do espaço social, compreendido como o lugar da coexistência de diversas posições sociais (BOURDIEU, 2001): seja como homens ou mulheres com diferentes orientações sexuais, religiosas e culturais ou e médio na idade própria”. O mesmo artigo afirma a competência do poder público de estimular e viabilizar o acesso e a permanência do trabalhador na escola. (MEC, CNE/CEB nº 7/2010, p.36).

211

como estudantes trabalhadores, desempregados, dentre tantas outras posições. Discutiremos aqui, especificamente, o caso de uma escola investigada durante a fase exploratória de pesquisa realizada para dissertação de Mestrado, procurando pensar sobre as experiências escolares de 07 (sete) jovens entre 15 e 17 anos, 04 (quatro) mulheres e 03 (homens), estudantes do ensino noturno de turmas de EJA IV e V. Colocamos em pauta questões que envolvem as condições para o acesso e permanência desses jovens na escola, discutindo as configurações do reconhecimento dos seus direitos no contexto escolar. Nesse sentido tomamos como referência para essa discussão os relatos dos estudantes entrevistados que abordam aspectos de suas trajetórias escolares, condições socioeconômicas e situação em relação ao trabalho.

2. OS JOVENS DA ESCOLA “BOM SUCESSO” A escola Bom Sucesso está situada em um bairro de Fortaleza que apresenta baixo IDH –B58 Geral (0,443), com uma taxa de alfabetização considerada alta, mas com média de anos de escolaridade e renda do chefe de família considerados baixos. O bairro, com uma população residente entre 15 e 17 anos de idade de 2.364 jovens59, faz parte da Secretaria Executiva Regional60 III – SER III que é composta por 16 bairros, aparecendo entre os 5 (cinco) bairros da referida Regional com maior incidência de casos de Relações Conflituosas, Furtos, Roubos, Lesão Corporal, Mortes Violentas e Homicídios61 em 2009. 58

O IDHM – B é o Índice de Desenvolvimento Humano do Município por Bairro. Em Fortaleza, é elaborado pela Secretaria de Planejamento e Orçamento de Fortaleza – SEPLA. O último relatório elaborado pela SEPLA sobre o IDH- B dos bairros teve como referência as informações do Censo 2000. 59 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE - Censo Demográfico 2010 – Características da População e dos Domicílios - Resultados do Universo. Rio de Janeiro, 2011. 60 O município de Fortaleza está dividido em seis Secretarias Executivas Regionais as quais congregam os bairros da cidade de acordo com sua localização geográfica. 61 Mapa da Criminalidade e da Violência em Fortaleza – Perfil da SER III. Cartilha elaborada a partir dos resultados da Pesquisa Cartografia da Criminalidade e da Violência na cidade de Fortaleza. A referida pesquisa foi realizada pelos Laboratórios de Direitos Humanos, Cidadania e Ética (Labvida) e Laboratório de Estudos da Conflitualidade e Violência (COVIO) – Universidade Estadual do Ceará e pelo laboratório de Estudos da Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará.

212

O campo para investigação foi selecionado tomando como critério de seleção a taxa de distorção idade-série62 apresentada pelas escolas da Rede Pública Municipal de Fortaleza nos anos finais do Ensino Fundamental. A escola Bom Sucesso apresentou em 2011 a taxa de 100% de distorção entre as escolas de Fortaleza, uma vez que a oferta de matrícula para essas séries restringiam-se às turmas de EJA, no ensino noturno. Esse fato observado suscitou de imediato a seguinte reflexão: Qual a alternativa existente para os jovens entre 15 e 17 anos que desejassem cursar o ensino regular no período diurno ou noturno? De acordo com o núcleo gestor da escola, bem como das falas dos estudantes entrevistados, a solução seria procurar outra escola do bairro, embora para muitos jovens da comunidade, aquela fosse a unidade escolar mais próxima de suas residências. Os turnos manhã e tarde da Escola Bom Sucesso têm oferta exclusiva de matrícula para os primeiros anos do Ensino Fundamental (1º ao 5º Ano)63, esgotando a capacidade física de atendimento da escola no período diurno. Após a conclusão do 5º Ano, os estudantes são transferidos para outra unidade de ensino no bairro. No turno noite funcionavam turmas de EJA II, III, IV e V no período da pesquisa, bem como havia iniciado a primeira experiência da escola com turmas do Projovem Urbano64. Nas primeiras incursões em campo, durante essa fase exploratória, foram realizadas entrevistas com 07 (sete) estudantes (03 homens e 04 mulheres) das turmas de EJA IV e V65, procurando compreender as motivações para inserção desses jovens na Educação de Jovens e

62

A taxa de distorção idade-série é expressa através de percentuais que variam de zero a 100% e é calculada da seguinte forma: “[...] considerando o Censo Escolar do ano t e a série k do ensino fundamental, cuja idade adequada é de i anos, então o indicador será expresso pelo quociente entre o número de alunos que, no ano t, completam i+2 anos ou mais (nascimento antes de t-[i+1]), e a matrícula total na série k”. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais – INEP – EDUDATA BRASIL /GLOSSÁRIO. Consulta realizada em 24/05/2012. 63 A unidade escolar ofertou matrícula para os anos finais do Ensino Fundamental (6º ao 9º Ano) até o ano letivo de 2010. Os gestores afirmaram que havia uma maior demanda pelas séries iniciais, o que teria justificado o cancelamento da oferta de matrícula para as turmas de 6º ao 9º Ano. 64 O Programa Nacional de Inclusão de Jovens – PROJOVEM é uma ação do Governo Federal que tem como objetivo a elevação da escolaridade e qualificação profissional de jovens entre 15 e 29 anos que não concluíram o Ensino Fundamental. (Organização Internacional do Trabalho - OIT, 2009). 65 A opção pelas turmas de EJA IV e V foi definida em função do número de jovens entre 15 e 17 anos ser mais expressivo nesse seguimento de EJA da escola pesquisada.

213

Adultos, no período noturno. Entre os sete entrevistados, 03 (três) declaram-se

como

trabalhadores

e

04

afirmaram

ser

apenas

estudantes. Os estudantes que se declararam como trabalhadores afirmaram que a jornada de trabalho seria de cerca de oito horas diárias, sem contrato formal de trabalho, e a remuneração mensal seria inferior ao salário mínimo vigente no país, situação que é experimentada por outros brasileiros da mesma faixa-etária, pois segundo Corti et al (2011), 29% dos jovens brasileiros entre 15 e 17 anos já possuem alguma inserção no mercado de trabalho e “71% deles recebem menos de um salário mínimo” (Corti et al), 2011, p.18). Entre os estudantes trabalhadores da escola pesquisada, 02 jovens desenvolviam atividades em uma confecção do bairro e o terceiro trabalhava em uma movelaria também localizada no próprio bairro. Ao serem indagados se gostavam do tipo de trabalho que realizavam, apenas um deles expressou insatisfação: “É o que veio” (EJA V, 17 anos). Esse mesmo jovem afirmou que seu primeiro tipo de trabalho foi na roça, aos 15 anos, antes de chegar a Fortaleza. Outro jovem afirmou que, caso não trabalhasse, gostaria de estudar no período da manhã. No entanto, referindo-se ao trabalho afirmou: “Eu quero mesmo [...] são muitos irmãos. Eu quero comprar minhas coisas”. (EJA V, 17 anos). Os outros quatro jovens que declararam não trabalhar, ao serem indagados sobre as motivações para estudarem no período noturno e em turmas de EJA, afirmaram gostar de estudar nesse período, uma vez que ajudavam nas tarefas domésticas de suas residências. Uma das garotas afirmou ser responsável por levar o irmão mais novo para a escola no período diurno; outra comentou que, estudando à noite, ficaria livre durante o dia para conseguir um trabalho. Para outra estudante, a opção pela EJA estaria associada ainda à possibilidade de acelerar a conclusão do Ensino Fundamental, “É melhor do que série por série” (EJA IV, 16 anos), mas também uma condição da própria 214

escola, pelo fato de não ofertar matrícula para o ensino regular de 6º ao 9º no período noturno. Entre os sete jovens (04 garotas e 03 garotos) consultados durante essas primeiras aproximações com a escola investigada, quatro entrevistados apresentavam em comum um histórico de algumas repetências escolares. Um dos garotos havia repetido o 5º Ano várias vezes: “estudava até a metade do ano e parava” (EJA IV, 17 anos). Duas garotas (EJA V, 16 anos) haviam cursado até o 8º Ano. Uma delas teria repetido o 8º Ano duas vezes e a outra teria sido reprovada no 2º e 8º Anos. Outras duas garotas da EJA IV (16 anos) afirmaram ter abandonado as escolas onde estudavam porque se localizariam longe de suas residências. Embora os estudantes entrevistados não tenham expressado em suas falas insatisfação em relação ao fato de estudarem na EJA e no período noturno, seus relatos demonstravam não haver outras opções viáveis

naquele

momento,

considerando

que

precisavam

ou

desejavam estudar no período noturno e a escola Bom Sucesso era a mais próxima de suas residências.

3. EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS - EJA: OPÇÃO OU AUSÊNCIA DE ESCOLHA? De acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB nº 9.394/96, a EJA constitui uma modalidade de ensino que se destina àqueles que não tiveram acesso à educação ou não tiveram condições de efetuar seus estudos na idade regular. Em um contexto histórico e político do país em que o direito social da educação se aproxima de sua universalização no Ensino Fundamental, por que para alguns brasileiros ainda não são garantidos “certos possíveis”, como a permanência na escola e a conclusão desse nível de ensino na idade considerada adequada? Para Bourdieu (2001, p.275), Quando os poderes estão desigualmente distribuídos, em vez

215

de se mostrar como um universo de possíveis igualmente acessíveis a todo sujeito possível [...] garante a alguns o monopólio de certos possíveis que, no entanto, encontram-se oficialmente garantidos a todos (como o direito à educação). Os direitos exclusivos consagrados pelo direito constituem apenas a forma visível, e explicitamente garantida, desse conjunto de oportunidades apropriadas e de possíveis antecipados, logo convertidos, para os demais, em proibições de direito ou em impossibilidades efetivas [...]

As afirmações de Bourdieu nos ajudam a entender que, embora a educação seja oficialmente garantida a todos pela Constituição e demais dispositivos legais que fundamentam os direitos dos jovens, a permanência na escola e o sucesso nesses empreendimentos que envolvem os processos formativos viabilizados pela instituição escolar ainda se apresentam, para parte desse grupo, como uma proibição, particularmente para aqueles que se encontram em posição de desvantagem na estrutura de distribuição de poderes e de capital no espaço social. As desigualdades no campo econômico e social incidem na configuração de desigualdades no campo escolar. As afirmativas de Libâneo (2012) complementam esta ideia, na medida em que, percebemos, mediante olhar mais apurado, que as referências dos Planos de Educação no Brasil voltados para a escola pública, carregadas de ideias humanistas e democráticas, como educação para todos, concorrem, na verdade, para a propagação de uma escola aberta em seus espaços e tempos necessária para atendimento básico de necessidades mínimas de crianças e jovens em posição de desvantagem socioeconômicas e culturais. A ideia é atender a todos, mas de um ponto de vista de uma formação básica, mínima, voltada apenas para a sobrevivência, sendo assim, “proibido” maior investimento em conhecimento amplo. Na EJA, observamos possibilidades ainda mais reduzidas para os jovens em termos de alcançar conhecimento; trata-se de espaço que obedece a certas determinações dos Planos de educação de “Educação para todos”, aprendizagem mínima voltada para conseguir qualquer acesso ao mercado de trabalho, em detrimento da possibilidade de dar continuidade aos estudos com maior envergadura. 216

Se para alguns estratos juvenis que ocupam posições de vantagem no espaço social (seja no aspecto econômico, social e/ou cultural) são criadas as oportunidades necessárias para a efetivação do que o direito consagra, como o direito social da educação, tornandose um “possível antecipado”; para os que estão em posição de desvantagem, essas oportunidades transformam-se em proibições, proibições que não se referem ao acesso a uma vaga na escola, uma vez que o direito lhes garante, mas à permanência e ao sucesso66 nesse empreendimento educativo. A necessidade de trabalhar para contribuir na complementação da renda familiar tem sido apontada por alguns estudos como um fator que dificulta a permanência dos jovens entre 15 e 17 anos na escola. De acordo com Corti et al (2011, p.18), “[...] são essas frações dos jovens que entram mais cedo no mercado de trabalho e largam mais cedo a escola [...] São eles que evadem, abandonam, repetem anos na escola por não conseguirem acompanhar os ritmos definidos pela cultura escolar”. Vivenciam, portanto, a proibição simbólica e efetiva de permanecerem na escola. Tais questões nos fazem pensar no conceito de justiça no campo escolar. Este conceito nos remete à necessidade de pensar sobre a concretização de outros direitos sociais como a alimentação, a moradia e o trabalho nem sempre garantidos a todo o conjunto da sociedade. As desigualdades na distribuição social de determinados bens, como o alimento cotidiano, a casa para morar, o trabalho para os pais, podem implicar em desigualdades no campo escolar quando determinados jovens não dispõem igualmente das condições e do tempo necessários para a escola, acessíveis a alguns de seus pares em situação

diferenciada

no

espaço

social

e

que

não

precisam

abandonar a escola para se dedicarem ao trabalho ou dividir o tempo entre escola e trabalho. 66

Emprega-se aqui o termo sucesso no sentido de designar o alcance dos objetivos que se espera do trabalho das instituições escolares, o desenvolvimento dos processos de aprendizagem dos estudantes dentro dos parâmetros oficialmente estabelecimentos e socialmente valorizados.

217

Em análise acerca da situação de jovens entre 15 e 17 anos que não concluíram o Ensino Fundamental, Corti et al (2011, p.18) afirmam que São eles que buscam o ensino noturno e Educação de Jovens e Adultos para permanecerem estudando, o que demonstra que, apesar dos fracassos, o valor da escola ainda é relevante. São eles que não partilham do banquete da modernidade, restando-lhes as migalhas que lhes sobram. As promessas de ascensão social por meio de uma escolaridade longa distanciam-se no horizonte, pois nem a escolaridade básica e, mais precisamente, nem a educação prevista e garantida em lei como obrigatória e gratuita – o ensino fundamental – são consolidadas para essa fração juvenil. (MEC, 2011, p. 18).

O problema da distorção idade-série pode ser apontado como um dos principais fatores para a transferência de jovens acima de 15 anos para essa modalidade de ensino. As escolas tendem a dar prioridade para a matrícula no ensino regular diurno aos estudantes que se encontram na idade recomendada para a série cursada. Ainda que não exista uma orientação oficialmente instituída pelos órgãos gestores da Educação que impeça esses jovens de serem matriculados no ensino diurno (caso existam vagas disponíveis nesse período), há outras situações do cotidiano escolar que podem influenciar no desenvolvimento dessa prática, como os conflitos entre estudantes no ensino diurno, muitas vezes atribuídos à presença de jovens com idade acima da recomendada para a série cursada. A redução do número de matrículas no ensino noturno, com a consequente redução do número de turmas, também constitui um fato que pode gerar problemas no processo de lotação de professores efetivos da rede de ensino. O Ministério da Educação reconhece a inadequação da modalidade de EJA para essa parcela dos jovens ao afirmar que São poucos, porém, os cursos regulares noturnos destinados a adolescentes e jovens de 15 a 18 anos ou pouco mais, os quais são compelidos ao estudo nesse turno por motivo de defasagem escolar e/ou de inadaptação aos métodos adotados e ao convívio com colegas de idades menores. A regra tem sido induzi-los a cursos de EJA quando o necessário são cursos regulares, com programas adequados à sua faixa-

218

etária [...]. (MEC, CNE/CEB. Parecer nº 7/2010, p.22).

Há um reconhecimento formal da necessidade de elaboração de programas educacionais que atendam às especificidades das demandas desses jovens. No entanto, tal reconhecimento não tem se efetivado no âmbito das práticas escolares cotidianas, o que indica que a essa parcela juvenil “certos possíveis” continuam como proibições que podem conduzi-los, gradativamente, à compreensão e à aceitação de que a escola “não é para pessoas como eles”.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em

um

mundo

social

onde

posições

e

poderes

estão

desigualmente distribuídos, não há espaço para a crença em princípios universalistas de justiça a partir dos quais os jovens possam ser colocados numa posição de imparcialidade quanto às vantagens que podem retirar devido à sua condição social (ESTÊVÃO, 2001). Se muitos jovens brasileiros ocupam posições econômicas, culturais e sociais desiguais em relação a seus pares, desiguais são também os caminhos trilhados dentro do campo da educação. A desigualdade de oportunidades para permanecer na escola pode provocar a perda da illusio frente a essa instituição social e o seu abandono. A perda do encantamento, da crença nos resultados que a escola poderia imprimir em suas trajetórias sociais é expressão da dúvida quanto aos resultados desse empreendimento educativo que aos poucos pode passar a ser visto pelos jovens como um projeto pouco confiável para ser perseguido por pessoas do seu grupo social, uma vez que não lhes parece um investimento com garantias futuras. As desigualdades no campo escolar favorecerem o desinteresse pelo jogo, jogo representado por esses embates e tentativas realizadas por muitos jovens brasileiros para permanecerem na escola, ainda que inseridos em programas educacionais nem sempre adequados às suas demandas, como a EJA. O abandono do jogo fragiliza ainda mais as 219

possibilidades de uma luta social desses jovens pelo reconhecimento do direito de permanecerem na escola e com a garantia das condições necessárias a essa permanência. Apesar das pretensões jurídicas socialmente vigentes que afirmam o direito à educação para todos, através do acesso e permanência na escola, os jovens em posição de desvantagem na estrutura de distribuição de capitais no interior da sociedade não possuem, efetivamente, o status de seus pares que se encontram em posição de vantagem no acesso a esses capitais. A denegação dos direitos formalmente afirmados de acesso a um tipo de educação socialmente valorizada significa ser lesado na expectativa de ser reconhecido como sujeito de direitos, o que para Honneth (2003, p.216) pode resultar na “[...] perda da capacidade de se referir a si mesmo como parceiro em pé de igualdade na interação com todos os próximos”. Os jovens cujos direitos são denegados no campo da educação, além de serem atingidos pela não concretização da expectativa de terem tais direitos reconhecidos, podem também passar a naturalizar a condição de se posicionar em um lugar de status de menor valor em relação aos demais jovens para os quais esses direitos são permitidos. De acordo com Honneth (2003, p. 217), “[...] a experiência da privação

de

direitos

se

mede

não

somente

pelo

grau

de

universalização, mas também pelo alcance material dos direitos institucionalmente garantidos”. Dessa forma, a existência de um número considerável de jovens no Brasil entre 15 e 17 anos que não conseguiu concluir o Ensino Fundamental (cerca de 50%) dá indicações de que ainda é elevado o nível de privação do direito à educação entre os jovens brasileiros dessa faixa-etária.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL, Ministério do Planejamento. Instituto Brasileiro de Geografia e 220

Estatística – IBGE. Indicadores Sociais Municipais: Uma Análise dos Resultados do Universo do Censo Demográfico 2010. Estudos e Pesquisas. Informação Demográfica e Socioeconômica número 28. Rio de Janeiro, 2011. ____________, Ministério Educação – CNE.

da

Educação.

Conselho

Nacional

de

Câmara da Educação Básica – CEB Parecer Nº 7/2010. Parecer sobre Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica. BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Tradução Sergio Miceli. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 200l. CORTI e al. Caderno de Reflexões – Jovens de 15 a 17 anos no Ensino Fundamental. Brasília: Via Comunicação, 2011. HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais; tradução de Luiz Repa. – São Paulo: Ed. 34, 2003. LIBÂNEO, José Carlos. O dualismo perverso da escola pública brasileira: escola do conhecimento para os ricos, escola do acolhimento social para os pobres. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 38, n. 1, p. 13-28, 2012. ESTEVÃO, José Carlos. Educação, Justiça e Democracia: um estudo sobre as geografias da justiça em educação. São Paulo: Cortês, 20004. OIT. Organização Internacional do Trabalho– Trabalho Decente e Juventude – Relatório – OIT - Brasil, 2009.

221

MEMÓRIAS JUVENIS E ESPAÇOS SOCIAIS: PERCEPÇÕES E APROPRIAÇÕES

Ricardo Cruz Macedo67 Domingos Sávio de Almeida Cordeiro 68 Resumo: Este texto refere-se a considerações provisórias e parciais de pesquisa em andamento a respeito de relações entre memórias juvenis e espaços sociais, considerando percepções e apropriações de indivíduos ditos jovens. Apresentamos as memórias sociais como uma “presentificação” através da ação inter geracional. O objetivo é analisar como esses jovens na cidade de Juazeiro do Norte apresentam com distinção e particularidades os seus espaços de sociabilidades. Como juventudes, apontamos os sujeitos que fazem parte da coorte de 15 a 29 anos, conforme o IBGE. Através de etnografia buscamos em interlocução com um grupo de jovens de bairros distintos na cidade, as referencias de destaque e as versões de interações nas novas dinâmicas do espaço. Por fim buscamos compreender as atuações dos mesmos nas construções de tais espaços. Palavras Chave: Juventudes. Memórias Sociais. Espaços. Sociabilidades. Juazeiro do Norte.

INTRODUÇÃO Quando nos relacionamos com um lugar e nele estabelecemos vínculos, nos inteiramos com práticas já estabelecidas em suas manifestações socioculturais. Por outro lado colaboramos também para a formação de novas praticas naquele espaço e também novas percepções sobre fatos que podem passar a fazer parte do universo semântico local, constituindo expressões e atribuições de sentidos aos lugares, sujeitos e manifestações culturais. Cabe aqui também afirmar que o fato de significar os espaços atribuindo a eles sentidos passa antes por um processo de socialização espaço - agentes nos quais são impressos expressões culturais e traços característicos relativos a 67

Graduado em Ciências Sociais (URCA), Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS/UFCG). [email protected]. 68 Graduado em Comunicação Social (UFPE), Ciências Sociais (URC), Mestre em Sociologia (UFC) e Doutor em Sociologia (UFC) com estágio sanduiche na Universidade de Lisboa. Professor Associado (URCA). [email protected].

222

determinados grupos nos quais nós convivemos, atribuindo valores nos determinados processos de participação no meio social. Sendo assim tornar um objeto, personagem, lugar ou fato como constituinte do sentido de memória é apresentá-lo em suas vivências, nos espaços em que atuamos e ouvimos sobre narrações. É assim que as memórias coletivas

como

propõe

Maurice

Halbwachs

(1990,

p.143),

se

desenvolvem num quadro espacial. Ao abordarmos memórias coletivas, geralmente, remetemos as perspectivas para as pessoas tidas como mais experientes, ou idosas. Mas, quando nos referimos às memórias compreendemos que elas envolvem relações de socialização que podem ser estabelecidas nas trocas inter geracionais que se configuram em diversos espaços de convívio (MARTINS, 2011, pág. 2). Portanto, seguindo uma distinção entre memória social e coletiva, a memória social tem maior amplidão e é produzida por indivíduos pertencentes a várias coortes. O que procuraremos aqui é pensar esse aspecto da vida social a partir do ângulo juvenil. Vale ainda destacar que de maneira específica que os jovens podem imprimir à sua formação conceitos próprios demandados por suas práticas sociais, pelas novas configurações dos espaços e com elas novos conceitos, fazendo ver seus significados aos lugares e aos personagens de destaque outrora apresentados pelos seus próximos. Sendo assim, dinâmicas e percepções nos espaços e dos espaços surgem a partir da entrada de novos sujeitos nos meio social e com elas alguns traços que caracterizam a vida social tendem a perder alguns objetos culturais acumulados (MANHEIM, [196...], pág. 140). Referindo-se a juventudes não apenas na Sociologia, mas nas demais as Ciências Sociais não há, por assim dizer, um consenso na definição dessa categoria. Tomando os referenciais do IBGE (2010) para se ter uma noção operacional, iremos abordá-la aqui como o recorte etário que vai dos 15 aos 29 anos. No âmbito das memórias pretenderemos contextualizá-las como o que os jovens carregam das 223

suas relações com outras gerações que não a sua, observando como se dispõem para se referir aos lugares que se quer descrever e referenciar

de

acordo

com

as

interações.

Tais

memórias

são

sobreposições de significados, atribuições conceituais que se dão quando se ouvi falar das histórias do Juazeiro de “outro tempo” e que, não obstante, contextualizam o espaço “agora”. Tais versões são apresentadas também de acordo com as dinâmicas do próprio espaço, das relações dos indivíduos e ainda dos fluxos interacionais da cidade com as transformações em nível macro. Sendo assim pensando no contexto das rápidas transformações do mundo contemporâneo as contextualizações sobre memórias sociais são uma discussão relevante, pois as noções de passado e presente se mostram cada vez mais distantes mesmo quando nos referimos a intervalos de tempos curtos. Aqui quando tratamos de jovens, o que chamamos de memórias vêm de experiências próximas, das pessoas que contribuem para as suas definições enquanto sujeitos sociais no presente. Segundo Cordeiro (2011, pág. 36) ao lembrar fatos localizados no tempo e no espaço agregamos valores e interesses do presente, mantendo com esse dado lugar e com suas manifestações, seu povo e costumes uma estreita ligação, pois somos ao mesmo tempo resultado e resultante do que se afirma e se apresenta sobre os espaços, os personagens relevantes, dentre outros que os caracterizaram. De acordo com Marshall Sahlins (2003, pág. 11) os significados em jogo são em última instância submetidos a riscos subjetivos. O fato de significar os espaços atribuindo a eles sentidos nos passa antes por um processo de socialização espaço - agentes nos quais são impressos expressões culturais e traços característicos relativos a determinados grupos nos quais nós convivemos, atribuindo valores aos determinados processos de participação no meio social. Entre esses termos quando nos referimos às memórias tomemos que elas envolvem relações de socialização estabelecidas nas afinidades entre gerações e espaços de convivência. 224

Apresentadas as questões acima, apontamos que a memória coletiva, quando tratamos de juventude, é por si só um desafio, nos levando a pensar numa questão anterior a elas que nós vamos apresentar aqui como “mediações que nos fazem conhecer e significar tais aspectos das nossas vidas em âmbito coletivo”, pois são a partir delas que nós apoiamos nossas vivencias, nossas experiências, mesmo (re) significando-as de forma particular. Como sugere Carlos Henrique Martins (2011), Ao participar da memória, o jovem entra em contato consigo mesmo, pois se reconhece e se encontra com o seu espaço social de referência, na sua individualidade. Com o auxílio da memória, ele recupera a trajetória que orienta a elaboração da identidade como expressão de sua unidade, que é a complexa soma de tudo aquilo que o constitui como homem (pág. 2).

Constituir essa memória é entrar em contato com a influência da ação inter geracional, dos espaços e do processo de formação na cultura ou participação nela. Os espaços de proximidade com essas lembranças no processo de desenvolvimento enquanto pertencente a essa faixa etária tendem a se localizar em: a casa onde reside; as interações com pais e avós; os ambientes que freqüenta e participam escolas, igrejas, praças e as ruas que na cidade se apresentam como espaços de práticas de socialização-aproximação com as memórias constituintes delas mesmas. Apresentar conceituações sobre a memória social significa tomálas como expressões desses jovens através de contatos com referenciais anteriormente definidos, mas também apresentações próprias, pois são eles também contextualizadores dos espaços. De acordo com Reguillo (2009, pág. 3) as culturas juvenis como lugares de novas sínteses estão construindo referentes simbólicos distintos daqueles do mundo adulto, ou melhor, usando-os ainda de maneiras diferentes. Conversas sem muitas vezes parecer diretamente apresentações de tempos vividos se tornam elaborações de experiências e de

225

sociabilidades entre gerações. Entre alguns relatos de interações, como propomos, com os jovens em campo indicam percepções dos espaços pelo vínculo da memória que definem o Juazeiro pela distinção entre o que se ouviu falar e o que se viveu, nesse caso pela juventude, por vezes distanciando-se dos discursos ouvidos, mas o pontificando para reconhecer o lugar que hoje se fala. Entre essas considerações nos vale apresentar os lugares e os sujeitos participantes do trabalho, ressaltando percepções sobre espaços e a cidade, e ainda quais fontes podemos destacar para pensarmos nas interações que hora nos ocupam sobre memórias sociais e interpretações dos espaços e narrações da vida social na cidade de Juazeiro do Norte. Perceber tais sujeitos e suas narrações significa buscar compreender suas atuações nos espaços que convivem, e, sobretudo que traços carregam através das memórias, quando guardam, para falar do tempo passado, apenas escutado e do tempo presente, vivido e contextualizado pelos mesmos. OS SUJEITOS E ESPAÇOS DA PESQUISA: A CONSTRUÇÃO DO CAMPO. Ao entardecer do dia 30 de maio de 2012 na cidade de Juazeiro do Norte, saio para a uma visita a um grupo de amigos que tinha marcado conhecer a poucos dias antes. No ponto de ônibus que fica em frente ao Hospital de Fraturas do Cariri, já por volta das dezoito e vinte, me chama a atenção o trânsito na Avenida Padre Cícero que naquela hora, considerada de pico, apresenta intenso fluxo de automóveis e de alunos das IES69 que por ali se concentram. Fazendo anotações sobre tais experiências buscava sempre registrar os trajetos, percebendo nos espaços, eventos e “micro eventos” (FONTANARI, 2010, p. 154). Assim por instantes me interrogava sobre quais expressões

69

O Bairro Triângulo tem se mostrado como um pólo de concentração de Instituições de Ensino Superior em Juazeiro sendo o Campus CRAJUBAR da Universidade Regional do Cariri, o Campus CENTEC e os dois Campi Leão Sampaio, dentre outros que se encontram instalados naquela região da cidade.

226

poderiam melhor definir o Juazeiro de hoje tendo em vista seu papel não só no cenário social da Região Metropolitana do Cariri, mas do Ceara e do Nordeste Brasileiro. Já na Praça Padre Cícero, centro da cidade, encontro com o Fernando, rapaz que me apresentaria aos seus amigos. Quanto a minha relação com o mesmo, tinha-o conhecido na cidade de Crato nas proximidades da Universidade Regional do Cariri onde trabalha com o manuseio de maquinas de impressão e onde costumo imprimir textos e trabalhos. Dali fomos para um ensaio de quadrilhas juninas da qual eles estavam a participar. Cerca de dez minutos de caminhada por entre estreitas ruas do Bairro Socorro, região central de Juazeiro, chegamos ao nosso destino. O Ponto de Cultura, como é conhecido abrigando também uma Creche local. Ao entrar por ali, muitos dos presentes me observam atentamente. Na calçada do salão onde estávamos, sentamos e começamos as nossas conversas. Ali me puseram no meio da roda, queriam mais saber de mim do que mesmo me falar alguma coisa sobre suas vidas, famílias, relações pessoais. Cerca de trinta minutos depois da chegada, por volta das dezenove horas já tinham umas oito pessoas. Junior, rapaz de corpo franzino

se

mostrava

mais

sobressaído

nas

falas

dos

sujeitos

apresentando-se porta voz do grupo, pois ao suscitar alguma coisa sobre eles logo tomava a frente na tentativa de responder pelos outros. Por horas estava também, além de ocupar o centro do espaço físico, no centro das atenções sendo observado pelos mesmos na devida proporção que os observava nas suas narrações. Conforme Bonetti (2010, p. 168) o pesquisador de campo é, ao mesmo tempo, analista e instrumento de analise. Nesse caso, curiosas perguntas surgiram sobre a pesquisa e sobre os desdobramentos daquela situação de conversas, o que tipicamente costuma ser; o que se faz com isso que estamos falando? Etnografando, conforme Robert Emerson (1995, p. 10 e 11), me comprometia com o desvelar e retratar significados nativos e ainda o 227

que as experiências e atividades podiam significar.

Nos discursos

observava por vezes tensões entre o passado e o presente agora apresentado por esses jovens. Segundo Carol Dias (30/05/2012); Meu pai conta ter vivido num tempo de sossego na mocidade no Bairro Socorro, onde as portas da casa podiam dormir escoradas que a violência era discurso do distante. Hoje já não é mais assim, o bairro é violento e assaltos acontecem constantemente por aqui.

Aqui podemos destacar que esse aspecto do tempo passado, apenas lembrado no presente é hoje, conforme a informante um discurso que se entrelaça com novas apresentações, apropriações sobre o bairro da qual ela faz parte. Quando se afirma que era assim e não é mais esses discursos nos revelam que há uma interação no sentido de apropriação do passado, narrado e do que dele pode se apresentar como presente. Se Carol Dias diz que foi assim e hoje não é mais, Juazeiro passa então a ser descrito em outras versões e caracterizações. Porém as memórias aqui são além de pontes com o passado, na medida em que referenciam um tempo que não o presente vivido pelo jovem, aspectos de um sentido de formação de identidade com o espaço, pois colabora no encontro com suas referencias e trajetórias pelos quais percorreu nos lugares, pois, são espaços também narrados pelos seus pais, avos, e no mais, pessoas próximas que estiveram presentes nas suas socializações. Para além dessa visita fiz ainda outras ao grupo, nos encontrando no mesmo lugar e hora, assim como da primeira vez. No entanto algumas conclusões me sobressaíram a partir daquela, dia em que me encontrei com um maior numero de pessoas e quando ainda tínhamos um tempo maior antes do começo dos ensaios juninos que eles vivenciavam. A tal identificação de grupo, que poderia, com a aproximação desses indivíduos supor uma mesma linguagem sobre os espaços da cidade foi algo logo posto abaixo nas conclusões. Surgiram por vezes 228

apropriações que transitavam de pessoa para pessoa, de fonte para fonte sobre o passado, e ainda de lugares para lugares de onde se estava descrevendo, apontando principalmente para o bairro onde se mora, sendo os mais citados aqui o Socorro, Salesianos e Lagoa Seca. Conforme aponta Gilberto Velho, (1978, pág. 38) falar-se a mesma língua não só não exclui que existam diferenças no vocabulário mais que significados e interpretações diferentes podem ser dados a palavras e expressões. Ao propor pensar nas situações de campo enquanto construção dessa leitura questionava sobre aquilo que mais se destacava e com isso contextualizava situações ditas e ouvidas. Porém carregava uma certeza, mesmo ali, próximo daqueles sujeitos aceitava que não enxergava tudo o que pretendia e almejava, mas somente aquilo que podia.

NOS ESPAÇOS DA CIDADE; PERCEPÇÕES DO JUAZEIRO PELO JOVEM. Quando fazemos parte dos lugares, socializando-nos com os sujeitos que os constroem e com suas manifestações sociais temos com o mesmo uma determinada identificação, aproximação. Nos discursos sobre

as

percepções

do

Juazeiro

pela

juventude

da

cidade

destacamos uma multiplicidade de apresentações e apropriações do mesmo. Do “metropolitanizado” ao atrasado, do violento ao calmo surgem as referencias para falar da cidade. Um fato de destaque, até já posto em discussão anteriormente, diz respeito à volta a um tempo passado, vivido pelos seus pais e avós e também pessoas próximas a esses jovens, para fazer um contraponto com o presente da cidade. Conforme Júnior (30/05/2012), residente do Bairro Socorro;

229

O Juazeiro esta totalmente diferente do que nossos pais contam, pois hoje já se tem um grande aumento de violência, questão da economia, crescimento das romarias e com elas os problemas das cidades grandes. Juazeiro hoje é a capital do interior e como uma grande cidade ela carrega muitos problemas.

Ao passo que se tem um Juazeiro dos problemas das grandes cidades temos também uma vinculação com aquilo que mais comumente se tem para se referenciar a cidade. Elegendo o Padre Cícero e as romarias como respostas do que pode descrever o Juazeiro para quem dele deseja se informar, esses termos traduzem também às apropriações desses jovens no tempo presente quando nas romarias há um sobressalto do comercio, das festividades, dos serviços oferecidos na cidade, das expressões culturais misturando-se e ao mesmo tempo marcando a diferença entre o distante, contado por outras gerações a essa e por ela mesma hoje. Entre tais considerações achava-me atravessado por um constante número de informações que decorriam dos sujeitos de minha interação. Quando aparece um Juazeiro moderno, das ofertas de serviços, empregos e ao mesmo tempo de problemas assim como cidades grandes na descrição do Junior, me questionava sobre as inúmeras possibilidades com as quais estava lhe dando naquelas situações e algumas questões de coerência nos discursos dos mesmos. A esse respeito Foote Whyte (2005, p. 283) considera que, as ideais que vamos tendo na pesquisa são apenas produtos lógicos que crescem a partir de uma cuidadosa avaliação de evidencias. Em geral a maneira de refletir sobre os problemas não é linear. Com freqüência temos a sensação de estarmos imersos numa massa confusa de dados. Mesmo ali, cara a cara com as pessoas com as quais estava a me interagir acabava percebendo umas tantas descrições que se apresentavam sobre os mesmos lugares a partir do mesmo sujeito, me levando a não só indagar sobre as atuações dos mesmos naqueles

230

espaços, mas, sobretudo como os podiam perceber e interpretar de formas distintas. Por entre tais razões pensava que estava lidando não só com um numero infindável de atuações, descrições dos espaços através dos sujeitos que o compunham, mas contextualizações, narrações de fatos memoráveis sobre tempos vividos por seus próximos que não pareciam ser muito distantes, pois as transformações seriam para além dos espaços, nos modos de vida e nos costumes das novas gerações. As romarias, por exemplo, teriam crescido como eles cresceram na cidade e tornado-se também espaço de lazer, de festividades e com isso outras versões sobre fatos, pessoas, e espaços de sociabilidade. CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS Em termos conclusivos nessa fase da pesquisa inferimos que as versões hora postas em foco pelos sujeitos da pesquisa se mostram apresentadoras do espaço e dos personagens que destacam a cidade de Juazeiro como um conjunto de caracterizações onde se mistura o narrado por outras gerações às mais novas, com o vivido pelas gerações mais velhas e por essa da qual nos estamos referindo. Porem essas memórias juvenis se costura para além do que se ouvi sobre esses lugares pelos mais velhos, com suas interações nos espaços e as manifestações que nos mesmos ocorrem. Fazendo parte desses, as novas gerações resguardam traços apontados como principais, nesse caso o fenômeno do Padre Cícero é um deles, apontando ao mesmo tempo suas atribuições aos lugares como resultante das suas atuações e das transformações que também vão surgindo na vida social. Entre próximos e distantes os espaços de convivência e de não convivência dessas memórias se criam, formando novas posições, olhares e experiências com o que delas resultam, apontando ainda para delimitações próprias dos sujeitos envolvidos e seus recortes de mundo. 231

Por essas tais observações podemos considerar ainda que as memórias juvenis referenciem os espaços da cidade e seus personagens de destaque de forma ainda efêmera. Não desconsiderando as versões dadas para falar dela por outras gerações, sugerimos que a forma como percebem, como narram o que ouviram e ainda de quem ouviram

tais

historias

e

contextualizações

dos

espaços

e

dos

personagens da cidade para formar suas memórias, memórias juvenis sobre a cidade, são espaços em formação de repertórios que se apresentam ainda não cristalizados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BONETTI, Aline de Lima. O rei está nu! O diário de campo cru e a exposição das etnografias. In: PETERS, Roberta; SHUCH, Patrice; VIERIA, Miriam Steffen (org.) Experiências, dilemas e desafios do fazer etnográfico contemporâneo. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2010. CORDEIRO, Domingos Sávio. Narradores do Padre Cícero: muito mais a contar. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2011. EMERSON, Robert M.; FRETZ, Rachel L.; SHAW, Linda L. Writing Ethnographic Fieldnotes. Chicago: University Pres, 1995. FONTANARI, Ivan Paolo de Paris. Nu, em público: o diário de campo fora do lugar. In: PETERS, Roberta; SHUCH, Patrice; VIERIA, Miriam Steffen (org.) Experiências, dilemas e desafios do fazer etnográfico contemporâneo. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2010. FOOTE-WHYTE, William. “Anexo a: sobre a evolução da sociedade de esquina”. In: Sociedade de Esquina: a estrutura social de uma área urbana pobre e degradada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice/ Revista dos tribunais, 1990. MANHEIM, Karl. Sociologia do conhecimento II. Porto, Portugal: Rés, [196...]. MARTINS, Carlos Henrique dos Santos. Juventude e Memória: lembranças de tempos recentes. In: SANTOS, Myrian Sepúlveda dos; GADEA, Carlos A. (org.) Dossiê: Memória e Sociedade. Ciências Sociais 232

Unisinos. Curitiba PR, v. 47, n. 3 setembro/dezembro, 2011. Disponível em: . Acesso em: 09/09/ 2011 SAHLINS, Marshall David. Ilhas de Historia. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2003. VELHO, Gilberto. Observando o familiar. In: NUNES, Edson de Oliveira (org.). A Aventura Sociológica: objetividade, paixão, improviso na pesquisa sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

233

MÚSICA E LAZER: PRÁTICAS JUVENIS ACERCA DO GÊNERO MUSICAL DO FORRÓ ELETRÔNICO NA CIDADE DE BARBALHACE. Cícera Tayane Soares da Silva70 Ana Ruth de Melo71 Roberto Marques72 RESUMO: O ritmo musical do forró eletrônico73 constitui-se em um aspecto que se faz presente em meio às cidades do Cariri 74 e em outras localidades espalhadas pelo Brasil. Dedicamos nossas atenções para à Festa de Santo Antônio 75 realizada na cidade de Barbalha, interior do Ceará. Esta festa popular que vem ganhando notabilidade como patrimônio cultural, em geral é pensada a partir de seus aspectos mais tradicionais, como o corte do pau da bandeira, grupo de reisados, manifestações publicas de grupos de penitentes, manifestações religiosas, etc. No entanto, tomaremos como foco desse artigo, as festas de forró eletrônico, que acontecem durante o período da festa e que reuni milhares de jovens em torno desse evento. Como a festa que é caracterizada pelo tradicionalismo se mescla com o tradicional, elaborando assim um dialogo entre esses dois pontos. PALAVRAS- CHAVES: Práticas Juvenis. Simbologias. Forró Eletrônico. Sociabilidades.

INTRUDUÇÃO Observar o contexto de uma festa de forró implica em tratar esse fenômeno a partir de uma dimensão temporal, ou seja, como um processo ritual que desfruta de um antes e um depois. É partindo desse pressuposto

que

lançamos

bases

70

sobre

alguns

pontos

que

Graduada em Ciências Sociais (URCA), Membro representante do Conselho de Sala (CRT) no Centro Acadêmico Florestan Fernandes. Desenvolve pesquisas relacionadas sobre festas de forró eletrônico no Cariri, com foco na dramatização das festas e juventude. [email protected]. 71 Graduada em Ciências Sociais (URCA), Membro representante do Conselho de Sala (CRT) no Centro Acadêmico Florestan Fernandes. Desenvolve pesquisa sobre o espaço ocupado pelo esporte dentro das políticas públicas de segurança, voltadas para bairros periféricos. [email protected]. 72 Graduado em Psicologia (UFC), Mestre em Sociologia (UFPB) e Doutor em Antropologia Cultural (UFRJ). Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais (URCA). É sócio Efetivo da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). [email protected]. 73 Forró eletrônico constitui-se um gênero musical que surge na década de noventa, a partir de bandas administradas pelo empresário Emanuel Gurgel. Esse ritmo se diferencia do forró pé de serra, pelos novos instrumentos utilizados, como guitarra, baixo, etc. 74 O Cariri é uma das micros regiões do Estado Brasileiro do Ceará, localizada ao centro sul do Estado 75 É uma festa que acontece anualmente na cidade de Barbalha, Região do Cariri, atraindo milhares de pessoas no final do mês de Maio e/ou inicio do mês de Junho em homenagem ao Padroeiro de Cidade, Santo Antônio.

234

aparentemente são de fácil compreensão, mas que caracterizam um ambiente dotado de tensões e conflitos. O publico alvo desta festa de forró eletrônico, que acontece na cidade de Barbalha são jovens, mas isso não anula a participação de outras faixas etárias nesse ambiente festivo. É pensando na categoria juventude, que nos propomos a observar as práticas juvenis em meio a esse cenário que agrupa múltiplas

e

variáveis

relações,

sociabilidades

que

surgem

momentaneamente, mas que podem extrapolar o ambiente festivo. Embasados em algumas ideias de Geertz (1989), que podemos, a partir desse ambiente festivo, obter varias significações em torno das práticas juvenis nesse contexto festivo. Partindo do princípio que cada indivíduo atribui significados distintos às práticas culturais que compartilham, podemos observar até onde o corpo social exerce influência em suas ações; onde ao mesmo tempo em que os indivíduos incorporam práticas que são aceitas por determinados grupos, também transmitem a outras pessoas fora daquele contexto festivo essas práticas, dando continuidade assim a um sistema de simbologias em torno das ações realizadas nas festas de forró. Tomaremos como eixo central três práticas que caracterizam o ambiente das festas de forró: a dança, que retrata padrões de erotização e um apelo forte para sexualidade entre as partes envolvidas; a bebida, que serve para mediar relações com as pessoas com as quais se quer estabelecer contatos. E o “fica 76”, que quase sempre resulta dessas duas praticas acima descritas. Os consumos simbólicos e materiais que estão contidos na festa. A partir dessas reflexões podemos pensar como os conjuntos de símbolos “identitários e imagéticos” (MARQUES, 2011) possibilitam aos jovens se perceberem nesse contexto: como se dão os encontros afetivos sexuais entre os jovens, pensados a partir da noção de fugacidade; as praticas de beber que mediam as relações e a dança;

76

Expressão usada pelos jovens para designar um relacionamento em curto prazo de uma noite.

235

a dança como ferramenta de conquista através do seu erotismo e sensualidade, possibilitando aos jovens, ao mesmo tempo, semelhança e diferenciação, construindo um ambiente de pluralidade. Estaremos refletindo também sobre o que é o modelo do feminino em uma festa de forró e como o álcool contribui para a elevação de status entre os membros daquele espaço.

PARA ALÉM DO SAGRADO Barbalha é uma cidade localizada na Região do Cariri, ao sul do Ceará. Com cerca de aproximadamente 55.000 habitantes, segundo pesquisa do IBGE, 2010. A atmosfera da cidade ainda é regido por uma tranqüilidade que em tese caracteriza as cidades interioranas. Pensaremos a questão geográfica como um ponto de partida, ou seja, Barbalha por esta localizada próxima as cidades de Crato-CE e Juazeiro do Norte-CE e demais cidades possibilita uma maior visão para com esse evento. Porém, durante o período em que ocorre a festa em homenagem ao Santo Padroeiro, Santo Antônio, a rotina se modifica. A cidade ganha novas formas. A polaridade que se gera entre o sagrado e o profano, vida cotidiana e vida extraordinária, erudito e popular são aspectos que se modificam durante o período festivo. Esse período permite a população que ali reside, sair de seus patamares rotineiros e abrir margem para um período de efervescência e ebulição social. Victor Turner (1974) já afirmava o quanto é importante para a antropologia e para a sociedade esse período de elevação de status, que permite aos indivíduos sair da normalidade e exercer práticas que não são possíveis na sua vida rotineira. As festas de forró irão ser consideradas aqui, a partir da noção de “communitas”, ou seja, algo imediatista, transitório. É neste momento festivo que estão implícitos os significados de determinadas ações individuais, mas que agrupam uma coletividade. 236

Considerando a cultura como um valor não estático, portando dinâmico, a festa que é de cunho religioso abrigam as ideias de tradição e modernidade. O religioso, no seu aspecto mais tradicional; e as festas de forró, com o seu caráter de modernidade: na festa de Barbalha, há traços de tradicionalismo, como o corte do pau da bandeira77, os grupos artísticos que se apresentam durante toda a festa religiosa. Cedo da noite se tem os cultos religiosos ao Santo Padroeiro, o Sagrado; ao entardecer da noite, há shows que animam as pessoas, que podemos trabalhar com a idéia de profano. Não se tem como pensar nesta festa sem levar em consideração esses dois eixos básicos que caracterizam o evento. O tradicional se mistura com o moderno. O primeiro, obtendo uma necessidade de se atualizar perante o segundo. O segundo busca o que já é conhecido para então se fixar e criar raízes que caracterizaram determinado evento. É isso que acontece em Barbalha: as constantes adaptações das festas de forró eletrônico em meio ao cenário do tradicionalismo que a festa carrega. Esse ambiente que comporta o sagrado e o profano como esferas distintas, mas que ao

mesmo

tempo

podemos

acionar

uma

relação

de

complementaridade. Uma ligação entre cultos religiosos e cultos profanos. O caráter repetitivo da festa e ao mesmo tempo inovador que faz com que o ritual da festa possa acontecer periodicamente, mas nunca do mesmo jeito. O TRABALHO DE CAMPO: PRÁTICAS E SOCIABILIDADES NA FESTA DE FORRÓ ELETRÔNICO EM BARBALHA

77

É um ritual que faz parte da festa, mas que é realizado dias antes do início da mesma para que o pau perca líquido ficando mais leve, assim os carregadores podem efetuar o cortejo de forma menos desgastante. O cortejo se dá da zona rural até o centro da cidade, onde o pau servirá de mastro para o hasteamento da bandeira do santo padroeiro em frente à igreja matriz. Durante esse percurso que é realizado no primeiro dia de festa, o trajeto é efetuado com o pau sendo carregado nos braços por uma comissão organizadora que realiza essa atividade todos os anos, a maioria dos que compõem essa comissão são homens, onde os mesmo sobem cedo da manhã para pegar o pau e se divertem bebendo, dançando e rezando.

237

A importância que a festa de Santo Antônio desempenha no circuito de festas que ligam as cidades do Cariri, ganhando notabilidade como patrimônio imaterial. O circuito de festas no Cariri começa por volta do mês de Maio e vai até o começo de setembro. Esse circuito, caracterizado pelas constantes atrações das bandas de forró eletrônico em suas programações, atrai milhares de jovens para seus shows. Em Barbalha, esse evento começa com o corte do pau da bandeira e segue nove noites adiante com festas religiosas e festas dançantes. É nesse período que a rotina da cidade é alterada, e que as ruas que abrigavam uma postura calma agora são palco de efervescências e euforias. Ao mesmo tempo em que a população aproveita os momentos religiosos para cumprir suas obrigações, a população também aproveita ao máximo aquele ambiente festivo que ocorre paralelamente aos eventos religiosos. As ruas estreitas e íngremes da cidade, com seu calçamento característico de uma cidade pacata, ganha ornamentações que vão de um extremo ao outro da cidade. Com bandeiras e balões, que nos remetem a uma imagem ligada ao passado das festas juninas. A imagem do Santo Padroeiro da cidade está presente nos postes das avenidas e nas suas ruas estreitas. A intenção em relacionar o presente das festas com a tradição do passado ressalta ainda mais os traços urbanísticos da cidade: casas em estilo colonial, cavalos guiados por seus montadores, calçadas de pedras arredondadas pelo tempo. Ao mesmo tempo em que há naquele espaço imagens do passado, esta se tenciona agora com o moderno: ruas que agrupam milhares de pessoas com os seus diversos estilos e formas, carros que lotam os estacionamentos com seus diversos sons agitando as pessoas que ali estão. As ruas de Barbalha, no dia 03 de junho de 2012, não eram mais as mesmas de antigamente. As milhares de pessoas que circulavam pelos espaços, os diversos sons que embalavam os jovens no contexto de festa, os figurinos que estavam à mostra nas diferentes pessoas que transitavam pelos espaços, todos esses aspectos constituintes de um 238

novo transito da cidade. O sucesso inquestionável das bandas de forró eletrônico fazem as ruas ganharem trilhas sonoras que remetem a modernidade. Onde, ainda que as bandas de forró estivessem ausentes da festa ainda se escutavam em larga escala esse estilo musical. Nos vários palcos alternando a festa. Três estruturas armadas ao longo da cidade. As bandas que se apresentavam eram de forró pé de serra78 e outros estilos musicais. Ainda sim o forró eletrônico é o estilo musical mais recorrente. As músicas tocavam em paredões de som79 distribuídos ao longo das ruas da cidade. Em torno dos carros pancadões 80 um aglomerado de pessoas se formava. Os jovens nas suas diversas sociabilidades dançavam, bebiam, gritavam, cantavam etc. Em torno de uma garrafa de bebida, um grupo de pessoas dançava este tendo faixa etária de dezenove a vinte e quatro anos de idade, o mesmo era composto por homens e mulheres. Os vínculos irão ficando cada vez mais definidos. As mulheres que estavam a se agrupar em torno do litro de bebida na rua principal da festa vestiam shorts, blusas sem detalhes e sandálias sem salto invocando signos comunicantes a partir de suas vestimentas, acessórios e maquiagem. Os movimentos corporais acionam

para emoções

que surgem

naquele contexto

festivo

proporcionando um sentimento de comunhão entre os participantes que possibilitam o surgimento dos vínculos na festa. Os jovens ali presentes adotavam uma postura descontraída e feliz. Ao som das músicas das Bandas Garota Safada e Aviões do Forró, Clara81 me falava que o “pau da bandeira é uma coisa cultural da cidade, o que atrai os jovens para aquele lugar é o forró”. As distintas opiniões nos remetem a pensar os vários significados existentes em torno de um evento, conforme nos chama atenção 78

O forró pé de serra é uma vertente musical que deu origem aos demais ritmos incluindo o forró eletrônico. Surge com Luiz Gonzaga, considerado o Rei do Baião. 79 É constituído por uma aparelhagem potente de som, constitui-se em muitos casos em uma estrutura grande em tamanho. 80 Uso a expressão carro pancadão para automóveis que possuem uma aparelhagem potente de som em sua parte posterior. 81 Estarei usando nome fictício para nomear a interlocutora da pesquisa, visto que a mesma preferiu não se identificar.

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Geertz (1989), com sua antropologia dos significados, de acordo com Clara, o “pau da bandeira” no sentido concreto da palavra é algo secundário, atribuindo ao forró eletrônico o foco principal da festa. Carlos, outro interlocutor da pesquisa, não faz nenhuma referência ao pau de Santo Antônio, ele afirma que: – a festa é uma pegação. É bom para conhecer pessoas, reencontrar amigos e o forró tem tudo a ver com o clima da festa –. As distintas opiniões acima expostas assemelham-se entre si, porém houve pessoas que discordavam quanto ao papel do forró eletrônico naquele espaço. Segundo Fernando, outro interlocutor da pesquisa; - o evento é de cunho cultural, e o forró esconde a beleza da festa com suas músicas sem letras-. Fica claro como o discurso das pessoas se diferencia, e como eles atribuem significado distinto para um determinado evento. Os códigos que são compartilhados pelas pessoas são públicos e constantemente construídos nas relações entre os indivíduos. É assim que irão ser construindos as múltiplas teias de significados que Geertz abordará em seus trabalhos. Em determinada área da cidade, havia três mulheres de shorts, blusa colada e sandália rasteiras dançando empolgadas a música do enfica82. Segundo Felipe Trotta (2009. P. 199). [...] ao narrar as idéias de festa, amor e sexo, a banda identifica seu publico potencial e faz uma espécie de propaganda dos seus shows, nos quais a festa se instaura pela dança que se relaciona a paquera e favorece a formação de casais.

O corpo das mulheres que ali estavam dançando enuncia uma mensagem diferenciada das demais mulheres que ali se encontravam, estas querendo, através da dança, diferenciar-se das demais e conquistar seu espaço através de performance que atrai a atenção do 82

Música gravada pela banda Aviões do Forró em 2011 a letra diz... Vou te pegar de jeito e levar pro meu AP Te fazer um enfica até o dia amanhecer O enfica é muito bom e é fácil de aprender Quer ir comigo vamos que eu ensino pra você...

240

publico em geral. Desta maneira, a intenção de aproximação com o publico

masculino

demonstram

seus

interesses

em

prováveis

relacionamentos voláteis. O entrelaçamento entre corpos que possui semelhança e dessemelhança expressa uma assimetria entre o eu e o outro, (o casal que dança). Estar inserida naquele contexto possibilitou-me uma observação do social em seus diversos aspectos, desde a forma de se vestir até a forma de se portar. Aquela atitude de dançar eroticamente revelava algo que pode ser dito naquele momento de ebulição (DURKHEIM, 1912). Nesse contexto, observar questão referente a gênero se torna algo indispensável no contexto da festa. Mediante aquela atitude de dançar eroticamente e de se comunicar através do corpo, o corpo agora ganha uma notabilidade para além do aspecto biológico, ele passa a ser um signo, um símbolo que também media relações. A superação da face cotidiana ultrapassa o que é corriqueiramente usado visto que as mulheres que dançam eroticamente nas festas não costumam fazer isso nos momentos em que essa ebulição não acontece. Tanto homens como mulheres utilizam-se de representações que os invadem nessa ebulição, possibilitando a vinculação de imagens e a reformulação do espaço festivo. Inúmeras relações surgem a partir de uma dança. Podemos ver isso claramente nas formas rápidas com que os membros inseridos nesse contexto trocam de pares no decorrer da festa ou até mesmo no decorrer da dança, gerando sociabilidades momentâneas ou duradouras, sendo que as primeiras as mais comuns. A prática da dança também media relações entre palco e platéia, onde cantoras e dançarinas de banda de forró eletrônico expressam imagens sensuais que agradam preferencialmente aos homens, mas que servem de modelo para as mulheres que estão naquele contexto: seguir seu ritmo e atrair o publico para si. Os vínculos entre a música escutada e o gesto praticado expressam identidades reforçadas pelo forró e pela apresentação no palco que se instaura por toda a festa. A partir da dança abre-se a possibilidade da segunda pratica mais 241

recorrente nas festas de forró: o “fica”. Como diria uma música da banda Garota Safada “eu só sei dançar beijando na boca83”. Ancorado nas idéias de sociabilidades momentâneas os jogos de aproximação entre pares caracterizam o ambiente festivo. Esses pares são constituídos tanto por pares semelhantes, (do mesmo sexo), como dessemelhantes, (sexos opostos). Ao me locomover pelas ruas que abrigam a festa, percebo que a cena do beijo é um fenômeno constante, ainda que caracterizando, muitas vezes, uma relação momentânea. Em um local central do percurso do pau da bandeira para a igreja matriz, dois homens trajando shorts e camisas estavam se beijando como qualquer outro casal da festa. Isso era tão repetido que não apenas esse casal como outros beijos se dissolviam em meio às várias manifestações de afeto. O ambiente festivo de forró eletrônico possibilita uma maior liberdade aos indivíduos de expressarem seus sentimentos e atitudes. Os jovens começam a dançar embalados por esse som e em questão de minutos já é possível saber se o beijo poderá acontecer ou não, devido às atitudes rosto colado, beijo na orelha, falando no ouvido, etc. e reações de quem as recebe. Então essas práticas, da dança e da conquista, acionam para uma terceira pratica “beber, cair e levantar84”. Os grupos distintos que se formam em torno de uma garrafa de bebida possibilitam a todos uma experiência. Os limites do físico são testados e ultrapassa o que seria usualmente consumido, mediando relação entre membros que ali se encontram. Relembro as falas de uma amiga, que coagida a beber por seus companheiros de festa, que afirmara na ocasião que se ela não o fizesse não falariam mais com ela. Os grupos sociais possuem mecanismos que forçam seus membros a

83

Porque eu só sei dançar beijando na boca Eu só sei dançar beijando na boca Eu só sei dançar.. E ta bombando no twiter que eu deixo as meninas loucas 84 Beber, cair, levantar Beber, cair, levantar Beber, cair, levantar...

242

agirem de determinadas maneiras. Há nessa relação, uma negociação desprovida de interesses materiais e cheia de simbolizações, acionando também para uma postura hierarquizante no interior dos grupos e nos diferentes status no uso dos espaços da festa. Nesse espaço, há uma distribuição entre pares que permitem interações entre pessoas que desfrutam dos mesmos gostos e a distribuição da bebida é uma forma de comunhão entre os membros. Nessa distribuição dos espaços hierarquizados, podemos perceber os significados atrelados aos espaços. Perto do palco ficam situados os “cafuçus85”, porém com uma nova modalidade criada entre os anos de 2010 e 2011, a ária vip, isso nem sempre acontece. Barbalha por ter sido um evento público isso não ocorreu. As pessoas que se situavam perto dos palcos eram consideradas de menor poder aquisitivo; e mais afastado dos palcos e próximo aos estabelecimentos de bebidas e lanches ficam os que possuem um maior poder aquisitivo. As pessoas que se localizam entre esses dois pólos são pessoas em situação diversa e de difícil mapeamento para o pesquisador. Não pretendo afirmar que, as pessoas permaneçam estaticamente paradas no mesmo local, e muito menos que conhecemos todos os mecanismos que fazem isso acontecer, mas que existem relações de poder expressas em cada fato desses, onde as pessoas se situam nesse espaço a partir de suas preferências. Portanto, podemos, a partir de um mapa, nos familiarizar com o campo, obtendo determinadas formas de ver o social partindo de sua forma de se organizar geograficamente. Segundo Gilberto Velho (1987.p.40) Assim, em principio, dispomos de um mapa que familiarizam com os cenários e situações sociais de nosso cotidiano, dando nome, lugar e posições aos indivíduos. Isto é, no entanto, não significa que conhecemos o ponto de vista e a visão de mundo dos diferentes atores em uma situação social nem as regras que estão por detrás dessas interações, dando continuidade ao sistema. 85

Categoria nativa atribuída a pessoas sem nenhum fator de distinção positiva, seja beleza, poder econômico, educação entre outros. Trata-se da categoria mais estigmatizada nas festas de forró eletrônico.

243

Nessas constantes legitimações e negociações que são geradas pelos indivíduos, as formas de demarcação de território se dão de maneira ampla. Os agrupamentos que se formam possuem mecanismos inconscientes, mas que ao mesmo tempo acionam para uma postura consciente, que faz com que os membros desejem alcançar patamares hierarquizados nas festas. Desempenhando assim, práticas que elevem seu status perante o grupo. Nesse sentido há uma inflação valorativa dos membros pelo uso do álcool, ou seja, o consumo do mesmo se vincula a ideia de enviar uma mensagem para o grupo de que você bebe e por isso pode fazer parte do mesmo. Como toda festa de forró eletrônico aquele espaço ocupa também o que vou designar como pedaço (MAGNANI, 2010), ou seja, onde as pessoas que desfrutam dos mesmos gostos se encontram. “Gangues, bandos, turmas, galeras exibem- nas roupas, nas falas, na postura corporal, nas preferências

musicais- o pedaço a que

pertencem” (MAGNANI, 2002. P.22). A partir da localização se tem uma comunhão de gostos semelhantes, porém nesses grupos situados perto do

palco

e

constantemente.

distante

dele,

também



grupos

circulando

Ao andar pelo percurso da festa isso se torna cada

vez mais explicito. Alguns critérios como o de classe social, preferência sexual, preferência por estilos musicais norteiam para essa delimitação do espaço. A festa de Santo Antônio também possibilita outro fenômeno que é o encontro das pessoas ausentes da cidade.

FESTA E REENCONTROS Pensar a festa de Santo Antônio é pensar também em reencontros. Onde os filhos ausentes da cidade vêm no período da festa para rever familiares e conhecidos. Aquele espaço festivo que na 244

maioria dos casos, ocupa relações imediatistas também abre margem para reencontros entre passado e o presente. Algumas pessoas que saíram de sua terra natal por motivos diversos retornam nesse período. Andando pela festa, conheço um rapaz de nome Paulo que veio de São Paulo para prestigiar o evento e rever familiares ele me afirma que “todo ano ele deixa para tirar suas férias nessa mesma época, pois rever seus amigos e familiares e ainda se diverte durante a festa”. Pode-se notar que naquele contexto marcado pela espontaneidade de relações imediatas, ainda se tem um vinculo com o passado, onde as pessoas vem através de algo novo, mas também atrás das lembranças geradas a partir de vínculos com o passado. O moderno mais uma vez se mescla com passado. As sociabilidades são reformuladas, como construções simbólicas não originadas de formas isoladas, mas a partir de vivências coletivas entre o eu e o outro. O processo de manutenção da festa ocorre com esse conjunto, conhecer o que não tinha visto ainda e reviver o que já tinha sido vivenciado. As pessoas que estão naquele contexto de festa não só absorve informações, mas também as transmitem. Isso faz com que o evento ganhe anualmente pessoas que nunca vieram ou pessoas que vem todo o ano. A forma como as pessoas transmitem o evento festivo da festa de Santo Antônio, faz com que a mesma fique mais conhecida e, portanto atraindo um maior numero de pessoas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Relações que se estabelecem no âmbito das festas de forró possibilitam práticas que não são possíveis em outro momento social, fazendo com que as práticas juvenis obtenham significados diversos. Esses momentos pelos quais a cultura evidência sua performance tanto para o nativo quanto para mim enquanto pesquisadora nos diz algo sobre o contexto de interações simbólicas (GEERTZ, 1889), pois é onde os 245

sujeitos estão em constante interação uns com os outros trocando simbologias que os ajudam a se comunicarem, isso ocorre através de atitudes concretas dotadas de significados. Tendo em vista a delimitação geográfica como um ponto de partida podemos observar o fluxo de pessoas em uma determinada festa. Barbalha por está situado próximo as cidades de Juazeiro do Norte-CE e Crato-CE faz com que se tenha uma acessibilidade maior, proporcionando assim uma maior quantidade de pessoas e uma maior visibilidade perante a festa de Santo Antônio. Esse espaço composto por diversas sociabilidades também esconde relações de poder e estereótipos diversos. Podemos observar esse poder nas distribuições dos espaços agindo sutilmente sobre os indivíduos que ali estão agrupados. É inegável que o fenômeno do forró eletrônico conquistou seu espaço nas festas interioranas do Cariri ganhando notabilidade e atraindo um público cada vez maior de jovens que se tornam cativos desse estilo musical. Isso é visível pelo fato de que as festas de forró se multiplicam cada vez mais, onde as práticas juvenis se remodelam e ganham novas significações a cada evento acontecido. A partir de um estudo explanatório do campo podemos pensar algumas questões referentes a esse contexto de festa: como os jovens se percebem nesse contexto? Como está sendo construídas as negociações de sentidos naquele ambiente? Como se dão as relações amorosas? Enfim, inúmeros questionamentos são lançados, as respostas não estão contidas em uma única e breve consideração, mas, em um ritmo contínuo, batidas que viram a noite e suspendem a ordem rotineira do social. O ritmo será o mesmo, mas as formas de agrupamentos e o contexto dessas festas não, causando assim uma semelhança

e

dessemelhança

que

conhecidos e desconhecidos.

246

gera

sociabilidades

entre

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa.3. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (Introdução, cap. I do livro e conclusão). EMERSON, Robert M,; FRETZ, Rachel,; SHAW, Linda L. “Notas de campo na Pesquisa Etnográfica” (do original em línguas inglesa, “Fieldnotes in Ethnogrphic Research” in Writing ethnographic fieldnote. Chicago: University of Chicago press, p. 01-16 [tradução para uso didático por Leandro de Oliveira]). FOOTE-WHYTE, Wiliam. “Anexo A: sobre a evolução de sociedade de esquina” in Sociedade de Esquina: a estrutura social de uma are urbana pobre e degradada. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989: Uma descrição densa: Poe uma teoria interpretativa da cultura. P. 03 a 07. LAPLANTINE, François “A etnografia com atividade perceptiva: o olhar” in A descrição etnográfica. São Paulo: Terceira Margem, 2004. MARQUES, Roberto. “O Cariri do forró eletrônico: festa, gênero e criação- Diversidade e (dês) igualdade”. In Anais do XI Congresso Luso Afro brasileiro de Ciências Sociais. 2011, UFBA. TURNER, Victor. “Liminaridade e “communitas”;” Humildade Hierarquia”. O processo ritual: São Paulo: Perspectiva, 1974.

e

TROTTA, Felipe. O forró eletrônico no Nordeste: um estudo de caso. Intexto Porto Alegre: UFRGS, v. 1, n. 20, p. 102-116, janeiro/ junho 2009. STRAUSS, Anselm L. “Interação” in Espelhos e Mascaras: a busca de identidade. São Paulo: EDUSP, 1999. VELHO, Gilberto. “Observando o familiar”. In: NUNES, Edson de Oliveira (org) A Aventura sociológica: objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa sociológica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. P. 36-46.

MÚSICAS UTILIZADAS86 “Enfinca”. Aviões do Forró. 86

Conforme Marques (2010), por razões especificas do modo de distribuição dos produtos, ralação do autor e relação do modo de distribuição dos autores, relação com as gravadoras, torna-se quase impossível determinar os autores das músicas.

247

“Beber, cair levantar”. Aviões do Forró “Eu só sei dançar beijando na boca”, Banda Garota Safada.

248

ESPAÇO ALTERNATIVO: UM ESTUDO SOBRE A JUVENTUDE QUE FREQUENTA O ESPAÇO DA REFESA NA CIDADE DO CRATO-CE

Jakeline Pereira Alves87 Maria Paula Jacinto Cordeiro88 Resumo: A REFESA é uma antiga estação de trem localizada no centro da cidade do Crato-CE. No período noturno os jovens de diversas cidades da região frequentam este ambiente fazendo usos diversos deste espaço. Este trabalho tem como objetivo compreender as práticas desenvolvidas por estes jovens, identificando que juventude frequenta este ambiente e quais as formas de interação desenvolvidas pelos mesmos. A pesquisa revelou que estes jovens não são pessoas apenas da cidade do Crato-CE, como também, jovens advindos de diversas cidades da Região Cariri. No período noturno o cenário deste espaço ganha uma nova configuração, os jovens interagem com seus grupos de amigos, desenvolvendo práticas de lazer e sociabilidade. Palavras-chave: Jovens. Lazer. Interação. Sociabilidade.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS Este texto apresenta elementos de pesquisa que está em andamento. O principal objetivo volta-se para compreender as interações e redes de sociabilidade construídas por jovens no espaço da REFESA. Este local é um cartão postal do município do Crato-CE, onde funcionava a antiga estação de trem da cidade. Neste espaço acontecem atrações culturais promovidas pelo SESC, BNB e Secretaria de Cultura da Prefeitura Municipal do Crato-CE. Estas instituições realizam estas atrações direcionadas ao publico jovem. Para, além disto, os jovens frequentam este ambiente mesmo não havendo festas ou eventos culturais. Os que costumam frequentar a REFESA consideram este espaço como um lugar alternativo, tornando-se 87

Estudante de Graduação em Ciências Sociais (URCA), Integrante do Núcleo de Estudos Regionais (NERE/URCA) com pesquisas: dimensão lúdica nas romarias de Juazeiro do Norte; Atualmente desenvolve pesquisas nas áreas de Religião, Juventude e Romarias, com ênfase, na Renovação Carismática Católica. [email protected]. 88 Graduada em Ciências Econômicas (URCA) e Ciências Sociais (URCA), Mestra em Desenvolvimento Regional (URCA) e Doutora em Sociologia (UFC). Professora Adjunta do Departamento de Ciências Sociais (URCA). [email protected].

249

mais que um ambiente de lazer e sociabilidade, um ambiente de afirmação de identidade. As estratégias metodológicas utilizadas para a realização deste trabalho

foram

entrevistas,

observação

participante,

e

acompanhamento de alguns jovens que costumam frequentar este lugar durante as festas e em outros dias em que não há programação para o espaço. O objetivo central deste trabalho é compreender esta juventude que frequenta este espaço, através dos significados que os mesmos atribuem às suas práticas que são desenvolvidas neste ambiente. É necessário esclarecer que Juventude é uma construção socialmente construída e naturalizada. Corroboramos com Machado Pais (2003), quando ele se refere à juventude como uma categoria socialmente construída, manipulada e manipulável, quando a mesma é naturalizada pelo senso comum como se fosse uma unidade ou grupo dotado

de

interesses

comuns.

Frente

a

isto,

tomamos

como

participantes potenciais da pesquisa todos os frequentadores do espaço que se representam como jovens, tendo em vista que a mera caracterização em termos demográficos que determina como jovem os participantes de determinada faixa etária não é suficiente para dar conta de uma categoria que é melhor representada como geração social1 que como geração etária. Enquanto pesquisador que busca compreender um campo complexo,

composto

por

pessoas

que

possuem

expectativas,

experiências, ideologias e anseios de vida distintos, faz-se necessário criar uma categoria como um tipo ideal sugerido por Max Weber, que possibilite uma melhor forma de análise deste recorte de pesquisa que se enquadra numa categoria complexa como esta que conhecemos como juventude. Corroboramos com Clifford Geertz (1978), quando este coloca que um trabalho etnográfico de qualidade deve conter uma “descrição densa” que dê ênfase as relações entre os agentes 250

envolvidos e os sentidos que eles estão construindo dentro de uma rede de significados. A partir da proposta metodológica de Geertz, “elegemos” os jovens que frequentam o espaço da REFESA com objetivo de compreender os significados e sentidos que eles estão atribuindo às suas práticas sociais, contemplando as interações e formas de sociabilidade. Clifford Geertz (1978) afirma que a cultura é formada pelo conjunto de textos interpretados pelos próprios sujeitos. É pensando nesse viés que procuramos compreender por meio dos elementos interpretados pelos jovens sobre sua própria condição enquanto atores sociais que interpretam sua cultura e dão sentido a suas próprias ações.

ENTRANDO PELAS TEIAS DE RELAÇÕES Nas linhas a seguir são apresentados aspectos anotados em caderno de campo com o objetivo de dar ênfase a elementos que possibilitem uma melhor compreensão das práticas culturais dos jovens que interagem no espaço da REFESA e, consequentemente, oferecer elementos demonstrativos das inferências analíticas, apresentando-os como material para análise antropológica mais aprofundada. Pois, segundo Fontanari (2010, p. 155). O diário de campo é um tipo de texto que descrevemos para nós mesmos. Os trechos de diário que incluímos em nossas etnografias são selecionados, bastante editados, recortados do texto original, retirados do meio de partes que muitas vezes escrevemos já sabendo que não serão aproveitadas, pois são desabafos pessoais, formas de controlar frustrações e sentimentos resultantes das transformações pessoais e de perspectiva por que passamos na tentativa de compartilhar do mundo do outro e compreendê-lo. Produzir este tipo de texto no diário é uma forma de se preparar para o dia seguinte, supondo-se que as experiências e tensões vivenciadas no dia anterior já tenham sido minimamente exorcizadas, fixadas no diário e assim controlada através de sua análise.

251

Frente a isto, esse autor nos ajuda a pensar na trajetória de um pesquisador, nas dificuldades que o mesmo enfrenta na tentativa de compreender seu campo de pesquisa. Assim, pensando neste viés, expomos fragmentos de um diário de campo com objetivo de explorar oportunidades de observação, nem sempre previsíveis que surgiram no cotidiano de pesquisa. No dia 26 de Maio de 2012, durante realização de um evento na Praça Siqueira Campos estava a observar a conversa de duas jovens, uma estudante e a outra graduada, uma delas habita no Crato há alguns anos, apesar de ser natural de Mauriti (CE), a mesma é solteira e professora do ensino infantil em uma escola particular situada no centro da cidade. A outra jovem, também solteira, é assistente social, natural de Nova Olinda-CE, uma cidade vizinha ao município do Crato-CE. Estava atenta a conversa das duas que falavam porque gostavam de alguns ambientes da cidade do Crato, cujas mesmas consideravam interessantes. Durante esta conversa uma delas, a professora, falava que assumia posturas diferentes de acordo com ambiente em que se encontrava inserida. Ela dizia que gostaria de ficar a vontade para fumar e beber, mas que, no entanto, não podia porque ali se encontravam vários de seus alunos acompanhados pelos pais. No decorrer da conversa ela comparou o espaço da REFESA, com o Restaurante Tênis Clube que está localizado no Bairro Pimenta, na mesma cidade. A mesma argumentava que a postura que ela assumia na REFESA jamais assumiria da mesma maneira no Tênis Clube. Reforçando sua opinião ela disse: “eu vou pra REFESA, chegar lá eu bebo cachaça, se quiser ando com um litro debaixo do braço e não tem nada. Agora no Tênis Clube não tem sentido eu pedir uma dose de cachaça. Tem que ver o ambiente que você está”. (S. Jovem que frequenta a REFESA). Na fala desta jovem pude perceber que mais que um espaço como qualquer outro, existe uma construção social do que é a REFESA a partir da atitude e comportamento assumido pela mesma, cuja não 252

pode se repetir, pelo menos da mesma forma, em outro local e relaciona de forma clara a noção de espaço à de papel social. A REFESA aparece como um local de afirmação de identidade descolada de conteúdos formalizados pelos papéis sociais, parece haver certo sentido de liberdade de práticas que pode implicar tanto em flexibilidade de coerções como num certo sentido de rebeldia que ali encontra espaço para também ser encenado. Beber na REFESA parece

ser

um

comportamento

no

mínimo

adequado

ao

ambiente,como se a regra do lugar fosse também representar um tanto de

rebeldia,

de

pontapé

no

comportamento

adequadamente

esperado. Isso que leva a pensar: até que ponto é a juventude enquanto categoria e estilo de vida que está sendo ali encenada? Na medida em que a interlocutora se diz à vontade quando está na REFESA, de uma maneira que ela não poderia ficar em outro lugar, estaria acenando este espaço como geracional, já que as idades dos participantes se aproximam e não há uma distinção de natureza classista? Depois de algum tempo acompanhei as interlocutoras e fomos dar uma volta pelas ruas do Crato, pouco tempo depois de andar algumas ruas, dobramos uma esquina e chegamos a REFESA, atravessamos uma avenida que fica em um dos lados da praça, assim, seguimos dando continuidade à mesma conversa. A REFESA é um local largo e comprido. Possui um calçamento de praça, em seu centro existem várias árvores plantadas umas em seguida de outras. Em baixo dessas árvores existem bancos de madeira. No canto desta praça existe uma parte mais alta, a mesma toda coberta de grama, como também algumas árvores. Existem duas formas de acessar essa parte gramada da REFESA. No início a parte gramada é inclinada para baixo, onde o chão faz divisão com o seu calçamento. Em frente a este espaço, ficam o Restaurante Popular e em seguida a Biblioteca Municipal. Pouco adiante existem escadas de pedras de calçamento que dão acesso à grama e aos bancos. Os 253

jovens que costumam frequentar o ambiente da REFESA costumam sentar na grama, divididos em pequenos grupos, para beber, tocar violão, fumar e conversar. Mais adiante, no centro da praça, existe uma caixa de água muito grande, pintada na cor de alumínio. Após andar alguns passos, chegamos a um dos prédios com uma estrutura antiga, que quase sempre é utilizado para mostras artísticas de quadros, fotos, pinturas e etc. Este prédio possui uma calçada larga, onde, jovens costumam sentar com amigos para conversar e beber, cantar e andar de skates. Posteriormente, fica mais um prédio dessa antiga estação. No outro lado, existe um alto todo coberto de grama, com mais algumas árvores e plantas. Este último prédio citado anteriormente é dividido em duas partes, uma fica uma sala de vídeo que é utilizada em eventos e na outra funciona um restaurante. Naquela noite ao chegar à praça, onde ao lado está localizado o Restaurante Popular e mais adiante a Biblioteca Municipal, havia no início uma roda de jovens, lá no alto sentados na grama em forma de circulo. Na parte de baixo haviam quatro jovens sentados e encostados no canto da parede. Mais adiante havia mais um grupo de cinco pessoas que estavam vestidos de preto, com uma franja quase que cobrindo os olhos do rosto, cujo um destes estava com um violão na mão. Posteriormente havia em baixo de uma árvore na faixa de nove jovens em circulo, uma moça escutava musicas de Rock em uma pequena caixinha de som, enquanto conversavam com as pessoas ao seu redor. Ao lado deste grupo estavam dois jovens na parte de cima, sentados na grama, um destes estava com um violão na mão e a conversar com outro. Ao passar observei atentamente todas estas pessoas, como também as garotas que estava comigo que, de certa forma, estavam mais acessíveis. Uma das garotas na qual acompanhamos falou que “a REFESA não era a mesma de antes” (Jovem que frequenta a REFESA, S.), que antes ela podia beber a vontade. No entanto, depois que a 254

administração pública começou a transformar aquele espaço e que as coisas haviam mudado. Antigamente todo final de semana tinha festas aqui e as pessoas que frequentava eram outras. Hoje venho aqui e encontro os pais de meus alunos, coisa que antes não acontecia. Isso tudo por causa da administração pública que havia proibido de sentar na grama, por isto que todo este pessoal ai estão em pé. Não é por outro motivo, têm uns que estão sentados, más os “guardinhas” chegam já colocando eles pra sair. Antes eles ficavam em frente ao restaurante da antiga Estação, na parte de cima, todos sentados na grama, tocando violão e tomando uns “vinhozinhos”. Fizeram isso dizendo que ai era um ponto de drogas. Por isto o pessoal estão todos no outro lado da REFESA, em frente ao Restaurante Popular. Mais mesmo assim, daqui a pouco os “guardinhas” aparecem e colocam eles pra sair da grama. (S.Jovem que frequenta a REFESA.)

Nesta fala a jovem mostra que a postura que a administração pública assume, modifica aquele espaço que como a mesma diz; “a REFESA não é a mesma de antes”. Pude perceber através desta fala que a REFESA não é simplesmente uma antiga estação de trem, nem tampouco, apenas uma praça onde se realizam eventos culturais. Pois, para, além disto, a REFESA tornou-se uma construção social a partir do momento que atores sociais idealizam e atuam neste espaço de formas distintas. Diferente dos servidores públicos, como os guardas e policiais que rondam aquele espaço, os jovens atribuem um significado diferente que estão sendo materializado conforme afirma Geertz (1989), nas práticas dos próprios sujeitos. As festas que acontecem nesse espaço também são um instrumento que estes jovens aderem para afirmação de identidades. Os shows ali realizados possuem estilos musicais diferentes, quando comparados ao forró caracterizado como estilo de música que se apresenta como símbolo característico da região Nordeste. Há um universo de estilos musicais diferentes sendo evocados ali, mas juntos compõem uma minoria em relação ao forró eletrônico.

255

Faço este relato de experiência em campo com objetivo de ressaltar a importância do caderno de campo, onde descrevi minuciosamente as experiências que obtive em um dia que resolvi dar uma volta pela cidade de Crato. Nesta noite surgiu uma oportunidade inesperada de visitar o campo com duas jovens que costumam frequentar a REFESA. Mostrando também como: Os etnógrafos se empenham em sair por aí e permanecer próximos das atividades e experiências cotidianas de outras pessoas. “Permanecer próximo” requer, minimamente, proximidade física e social da circulação diária destas pessoas; o pesquisador de campo deve ser capaz de assumir posições no meio de cenas e locais chave para a vida dos outros, a fim de observar e compreender. Mas existe, no “permanecer próximo”, outro componente muito mais relevante: o etnógrafo busca uma profunda imersão no mundo de outros, de modo a captar o que estes experimentam como algo dotado de importância e significado. (EMERSON; FRETZ; SHAW, 1965. P.1).

Este autor fornece elementos para pensar na atuação de um pesquisador que adentra um universo de relações que não são as suas, interagindo no mundo alheio para observar elementos que permitam uma melhor compreensão do seu universo de pesquisa. Para, além disto, penso que o pesquisador deve estar sempre preparado para aproveitar as oportunidades que lhes surgem. Em outra experiência de campo no ambiente da REFESA, em que acontecia um show musical cuja atração era “Monbonjó”. Uma jovem de outra cidade veio para o Crato para ir a esta festa, onde a mesma se hospedou em meu apartamento. Ela chegou com uma mochila nas costas pedindo para dormir em minha casa e me convidando para ir até a festa com ela. Esta foi uma boa oportunidade de inserção no campo, uma situação inesperada que se apresentou como um privilégio que tive enquanto pesquisadora. Lembrei-me de Malinowski quando o mesmo diz que devemos ficar atento aos eventos para aproveitá-los quando eles acontecem. Pouco antes de sair de casa ela começou a se preparar para festa, vestiu um short curto na cor rosa, cujo mesmo estava com a sua 256

cor um pouco desbotada. Ela direcionou seu olhar para minha pessoa e disse “Este short é velhinho, mas já que a festa é na REFESA não preciso me arrumar muito, vou de qualquer jeito” (J. Jovem que frequentam a REFESA.). Nesta fala ela mostra que se identifica, ao mesmo tempo em que, afirma sua identidade. Essa jovem que acompanhei durante essa festa é uma de minhas principais informantes, levando em conta que em um trabalho etnográfico há sempre uma pessoa que o pesquisador tem mais acesso. Conforme Emerson (1995), no trabalho etnográfico há uma pessoa que ele classifica como DOC, ou seja, um informante que te adota, tornando-se elemento chave que possui contato com pessoas daquele mesmo campo, assim, ajudando a compreender o objeto estudado. Ao chegar à REFESA, a festa ainda não havia começado, havia um palco montado no centro desta praça e pequenas rodas de conversa ocupavam todo aquele espaço. As pessoas bebiam e conversavam enquanto aguardava o show começar. Desde já ressalto que estes grupos não são fechados, pois, os jovens transitam entre os grupos, conversando e interagindo uns com os outros. É importante salientar que os jovens que transitam entre vários grupos, eram os mesmos que costumam frequentar a REFESA em outros dias. Pouco depois o show começou. Observei que as pessoas que transitavam entre os grupos, retornaram aos seus grupos de referência, ou seja, composto por pessoas mais próximas. Durante o show duas garotas que estavam no mesmo grupo que eu e minha interlocutora me convidaram para dar uma volta pela festa. O objetivo era transitar em meio ao espaço em busca de ver pessoas interessantes. Não demoravam muito e retornavam para o mesmo lugar. A festa durou duas horas, terminando às 11 da noite. Mesmo a festa terminando, os jovens permaneciam naquele espaço. Depois da festa, os grupos se espalharam por aquele grande local, assim, ficando em grupos mais reservados. Eles se espalharam desde o início da praça

257

até o final, sentados por todos os lados. Uns ocupavam os bancos enquanto que outros sentavam na parte gramada da praça. Esta movimentação de jovens na Praça da REFESA acontece frequentemente no horário noturno. Enquanto que nos horários da manhã e tarde este espaço é pouco movimentado. Ao seu lado ainda existe circulação de pessoas que esperam o transporte coletivo, que almoçam no Restaurante Popular que se localiza ao lado da Praça, tornando-se apenas um trajeto. Já durante a noite, o cenário social deste ambiente se transforma, tornando-se um point de encontro. O que difere a noite do dia são as pessoas e as práticas que as mesmas desenvolvem neste espaço. Enquanto que no horário da manhã as pessoas passam para trabalhar, para pegar transporte coletivo ou para almoçar no Restaurante Popular. Durante a noite os jovens surgem como elemento que modifica o cenário social. Em que os jovens interagem com amigos, transitam entre os grupos conversando, bebendo, se divertindo e conhecendo outras pessoas. Para, além disto, os jovens que ocupam este espaço usam vários instrumentos para afirmação de identidades. Dentre eles podemos destacar os gostos musicais que variam más em oposição ao forró eletrônico, a bebida alcoólica, o uso de maconha, violão, skate, e etc. Durante a observação empírica, percebi que no discurso os jovens costumam criticar a o forró eletrônico. Contudo, este público também frequentam os shows de forró eletrônico. No dia 9 de Junho de 2012, estava acontecendo um show na Praça da REFESA que tinha como atração os zabumbeiros cariris. Ao final da festa percebi que estava acontecendo um transito diferente, pois, as pessoas estavam agitadas e transitavam pelos outros grupos. Fiquei atenta e curiosa para saber o que se passava. Estava na companhia de duas garotas, pouco tempo depois uma jovem chegou e chamou uma das garotas que estava comigo e disse que todos estavam combinando de ir para o Parque de Exposição, pois, estava 258

acontecendo uma festa de forró na Expoafro, evento que acontece anualmente na cidade do Crato-CE. Acompanhei os mesmos que passaram o resto da noite em frente ao palco onde estava acontecendo um Show de forró. Frente a isto, notei que existe um discurso apresentado pelos atores sociais em que os mesmos criticam o forró eletrônico. Entretanto, não percebo isto como uma mera contradição. Para, além disto, existe discurso construído que caracterizam as pessoas que frequentam a Praça da REFESA. Estes jovens que frequentam este espaço são pessoas de vários municípios localizados na Região do Cariri e cidades próximas. Devido às faculdades e universidades ficarem localizadas entre os municípios de Crato-CE e Juazeiro do Norte-CE, muitos jovens migra de suas cidades natais e passam a habitar nestes dois municípios para cursar o nível superior. É uma juventude que vivencia práticas de lazer e sociabilidade de forma distinta de outras gerações. Assim, formando uma geração social¹ que compartilha valores, gostos, sentimentos e práticas que são referências comuns ao seu grupo/geração. Desta forma se distinguindo de outros grupos geracionais. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste sentido, a REFESA aparece como uma construção social idealizada de formas distintas pelos próprios sujeitos que a frequentam. Tanto este ambiente, quanto as práticas desenvolvidas nele são elementos chaves que ajudarão a compreender a cultura juvenil dos jovens que frequentam o espaço da REFESA. As práticas de lazer, sociabilidade e interação realizada por estes jovens no ambiente da REFESA mostra a importância que eles atribuem aquele ambiente específico. A REFESA possui significados distintos atribuídos às práticas que são desenvolvidas pelos próprios indivíduos que a frequentam. Pois, quando 259

uma das jovens fala que na REFESA ela bebe a vontade, e anda com um litro de baixo do braço, assim como a outra ao dizer que frequenta com qualquer vestimenta, consequentemente elas estão se referindo as práticas que costumam desenvolver naquele espaço específico, tornando-se práticas de afirmação de identidades. Neste sentido, percebemos que os jovens transformam o cenário deste ambiente durante a noite, através das suas práticas de lazer e sociabilidade. Como também, transitam entre os grupos interagindo uns com os outros na construção de um espaço de afirmação. Perceber como a ideia de juventude é evocada pelos participantes e como dimensionam suas redes de sociabilidade tendo como cenário a REFESA são os próximos passos da pesquisa. Nota: 1 Geração social é tomada aqui como apresenta Nunes (1969), ou seja, refere-se a um grupo (ou quase-grupo) cujas idades se concentram, possuem sentimento comum de distinção etária em relação a outros grupos mais jovens ou mais velhos, além de diferentes referências sociais e culturais em relação àqueles.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS EMERSON, Robert M.; FRETZ, Rachel I.; SHAW, Linda L. “Notas de campo na pesquisa Etnográfica”. (Do original em língua inglesa, “Fieldnotes in Ethnographic Research” in Writing ethnographic fieldnotes. Chicago: University of Chicago Press, p. 01-16, 1995 [tradução para uso didático por Leandro Oliveira]). FONTANARI, Ivan Paolo de Paris .Os DJs da perifa : música eletrônica, mediação, globalização e performance entre grupos populares em São Paulo. Tese de doutorado da UFRG,2010. GEERTZ, Clifford. Uma Descrição Densa: Por uma Teoria Interpretativa da Cultura. In: A Interpretação da Cultura. Rio de Janeiro: Zahar Editoriais, 1978, PP 13-41. ___________. Um Jogo Absorvente: notas sobre a briga de galos balinesa. In: ____ A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.

260

NUNES. A. Sedas. As gerações na sociedade moderna. Conceitos e perspectivas gerais. In: Sociologia e ideologia do desenvolvimento. Lisboa: Moraes , 1969. P. 75-93. PAIS, José Machado. A transição dos jovens para a vida adulta. In: Culturas juvenis. Lisboa: Imprensa nacional – Casa da moeda, 2003.

261

TUDO BEM, TÁ TUDO AZUL

Cláudio Gomes da Silva Júnior89 Crísthenes Fabiane de Araújo Silva90 Resumo: Em meio a tantas transformações acompanhadas nas diversas manifestações culturais que fazem parte do calendário festivo da sociedade alagoana, o carnaval vem se desenvolvendo de diversas maneiras, a exemplo o Tudo Azul, um tradicional bloco de carnaval que arrasta uma multidão na cidade de Murici, no interior do Estado. Não interpretado enquanto uma simples festa, o Tudo Azul é percebido enquanto um ritual agregador de costumes e que traz consigo fortes símbolos que o diferenciam dos demais blocos, e como o próprio nome denota, a única cor permitida para se sujar é o azul, bem como os trajes, a vestimenta dos foliões que se misturam à tinta, reforçando a monocromia da festa, uma regra costumeira que ainda sim é quebrada por alguns comportamentos anômalos e dissonantes facilmente percebidos por entre os semelhantes. Palavras-chave: símbolo, ritual, estrutura, carnaval, communitas.

INTRODUÇÃO É sabido que as comemorações do carnaval de rua são centenárias, e antes mesmo de se tornarem públicas, tais festividades eram realizadas em bailes restritos a uma parcela abastada da sociedade, como também se realizavam os bailes de carnaval de Murici, uma pacata cidade da zona da mata alagoana, de economia sustentada pelos grandes engenhos. A partir da iniciativa de um grupo de amigos da sociedade local, foi pensado um espaço próprio para a realização de eventos esportivos e culturais que mantivessem a unificação e o status das grandes e tradicionais famílias do município, um espaço reservado apenas aos

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Graduado em Ciências Sociais (UFAL), Metre em Antropologia (NPPA/UFS). Professor de Sociologia e História no ensino médio, Antropologia, Sociologia, História da Educação, Ética, Cidadania e Trabalho em cursos técnicos e formação pedagógica, atuado nas redes pública e privada de ensino. [email protected]. 90 Graduado em Ciências Sociais (UFAL), Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (UFCG). Desenvolve pesquisas acerca dos movimentos feministas, relações de gênero e a participação política das mulheres no Estado de Alagoas. [email protected].

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membros de um clube privado, uma espécie de agremiação de ordem restrita: Uma sociedade de comemorações, simbolicamente representada pela figura do Campo Grande Esporte Clube [...] dotada de uma série de atividades complementares, como festas que iam para além do Carnaval e práticas de esporte. (GOMES, 2012, p.55).

Em meados do século XX as comemorações do carnaval costumavam reunir no espaço do Campo Grande a pompa dos tradicionais carnavais das grandes cidades, os bailes de máscaras tocados pelas bandas de frevo, e do lado de fora do clube uma parcela menos favorecida economicamente comemorava à sua maneira o carnaval pelas ruas da cidade. Na terça-feira de carnaval pelas ruas de Murici a banda de frevo encerrava as festividades, sendo acompanhada pelos foliões que costumavam sujar as vestes com farinha, atirar ovo e outros elementos que caracterizavam um melamela de fim de festa em sinônimo de despedida. A partir dessas comemorações mais popularizadas, que mesmo de forma indireta contribuíram para a formação de um bloco de rua, foi se solidificando a tradição do mela-mela pelas ruas da cidade, consequentemente a falta de registros que marquem com exatidão o surgimento do Tudo Azul. Existem duas versões para o nome dado ao bloco de carnaval, que segundo levantamentos realizados por Gomes (2012) a primeira destas versões é que durante o desfile da orquestra pelas ruas da cidade, na noite de terça-feira de carnaval, um senhor chamado Batista, um cidadão membro do clube Campo Grande amarrou duas vassouras

cruzadas,

e

estendeu

um

pedaço

de

tecido,

que

coincidentemente era azul, e afirmou: “Olhem! Esse bloco aqui... Bloco do Campo Grande Esporte Clube... Vai se chamar Tudo Azul!”. 263

A segunda delas é contada por alguns membros fundadores do bloco, relato de que um grupo de amigos sócios estava bebendo e comemorando numa terça-feira de carnaval, e o céu estava escuro, nublado, com previsão de chuva, mesmo assim decidiram comemorar a última noite do carnaval, e fingiram que o céu estava azul, passando a gritar, que está tudo azul, um dos muitos provérbios populares que remontam à ideia de que tudo está bem, e que condiz com o propósito da festa. Muitas informações se confrontam ao longo do levantamento acerca do surgimento do bloco, segundo alguns sites e blogs, como é o caso do Blog do Lininho1, o veículo de notícias mais acessado da cidade. Seu surgimento data de 1956, mas de acordo com alguns dados apreendidos em entrevistas2, e como é trazido estampado mostrado no estandarte do bloco, sua fundação data do ano de 1944. Ao longo dos anos o carnaval de Murici, em específico o bloco Tudo Azul sofreu transformações, deixando de lado o tradicional carnaval de rua sendo recriado composto por corpos em exposição, muita bebida, o fim dos abadas e das fantasias, o não uso das cordas de separação, produzindo um cordão gigantesco de cerca de 40 mil foliões3 que juntos formam um manto azul, guiado pelo som do axé e do forró elétrico, ocasionando um esquecimento das tradicionais bandas de frevo, valendo ressaltar a expansão do bloco que deixa de lado suas premissas iniciais e começa a se configurar num carnaval meramente comercial com fins lucrativos. Durante o trajeto, no momento em que a multidão vai percorrendo as ruas da cidade, os foliões são enxergados enquanto indivíduos não posicionais, remetidos à antiestrutura, um estágio de oposição ao exercício dos papeis sociais e denominado enquanto estado de estrutura para Turner (2008).

264

Para Turner (2008) um período liminar é um período intermediário, visto enquanto cenário ideal para que se estabeleçam as relações de communitas, as relações de igualdades, baseadas em uma noção de comunhão de ideais. No Tudo Azul o ideal de folião é a marca que permite a todos “vestirem a mesa camisa”, partilharem do mesmo espaço, do mesmo som, da mesma forma de diversão. Uma noção que é amparada também em Gennep (2011) ao tratar das etapas rituais e do límen enquanto espaço não posicional, que serviu de base fundamental para a formação de novos conceitos teóricos explanados por Turner. É o límen a etapa ritual crucial para que possam ser percebidas as relações que se estabelecem entre seus membros/participantes, onde existe possivelmente um drama social camuflado na diversão coletiva, no momento em que todos se agregam à massa e que transcendem o cotidiano marcado por regras estabelecidas, compromissos pessoais, posições sociais e/ou constrangimentos morais. Segundo Gomes (2012), a Prefeitura de Murici, desde o ano de 1996 durante a gestão do Prefeito Remi Calheiros buscou maneiras de controlar uma festa que já perpassava as “fronteiras do permissivo”, adotando um plano de segurança e de mobilidade com uma maior e melhor organização logística, bem como a distribuição da tinta em pó xadrez, e em troca de tais investimentos recebem visitantes, “turistas”, foliões que aquecem a economia local e inserem a cidade de Murici na rota dos carnavais mais frequentados do Estado. Vale ressaltar que o fato do carnaval ocorrer em pleno verão, período de alta temporada e aquecimento do turismo na capital do Estado, existe um planejamento em todo o Estado, onde a capital não investe no carnaval enquanto atrativo, inserindo Maceió na rota turística das cidades em que se pode descansar no carnaval, e muitos outros

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destinos no interior e litoral do Estado passam a oferecer as mais diversas atividades culturais e turísticas para o período de festas. Ainda de acordo com suas análises, Gomes (2012) relata que nos últimos anos veio sendo montada uma estrutura durante o carnaval, em específico na terça-feira, dia em que acontece a folia do Tudo Azul. Durante a realização do bloco no ano de 2012 foram implantados chuveiros na praça para os foliões que se deslocam de outras cidades para acompanhar o bloco, os pontos de distribuição da tinta em pó xadrez azul, e a acessibilidade através de rotas de transporte alternativo entre Murici e as cidades circunvizinhas. Ao invés de turistas a cidade acolhe visitantes; um público vasto que é somado à massa dos foliões que acompanham o Tudo Azul e que não pernoitam na cidade, e ao fim da festa se desfazem do azul da alegria e retomam as suas atividades normais, é o fim do período transicional, o fim do carnaval. Um ponto interessante também levantando é o fato de muitos foliões locais tornarem-se espectadores de foliões e visitantes de outras regiões que vêm prestigiar o bloco, sendo estes, os foliões visitantes os grandes protagonistas da festa. A arte carnavalesca minimamente sofisticada de outrora foi reconfigurada em cultura de massa ou cultura popular, provida pelas práticas de entretenimento, na sua legitimação como produto de diversão fornecido pela roupagem administrativa do carnaval empresarial, moldando e sendo moldada pelas novas gerações de foliões (GOMES, 2012, p.64).

A tinta se encarrega de uma nova responsabilidade, a de não identificar que é branco, negro, pobre ou rico, ela é capaz de materializar um estado de unificação onde todos passam a ser foliões, ela padroniza, unifica e torna homogêneo o processo de interação social mesmo que por determinado momento, o trajeto do bloco. Seu uso não é obrigatório, mas pintar-se de azul é indispensável para sentir-se pertencente ao bloco, sentirse parte do processo.

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Assim, o “cartão de embarque da folia” pode ser caracterizado como uma veste necessária, um uniforme, contrapondo-se ao caráter (ao menos tradicional) subversivo das festas carnavalescas, que quebram com sanções e obrigações, desconstruindo as estruturas socialmente igualadas e compartilhadas (GOMES, 2012, p.70).

Um mesmo estágio se percebido através de Turner e DaMatta pode gerar uma ideia discursiva de drama social, pois segundo DAMATTA (1997, p.75)

muitos dos surtos de violência podem ser

estimulados a partir da própria configuração da festa, “Ou seja: igualdade de todos é problemática e provoca surtos de hierarquização pela violência, já que a igualdade e a liberdade vigentes no carnaval podem ser percebidos como „bagunça‟, „loucura‟, „abuso‟ etc.” , uma vez que o carnaval é apontado enquanto período liminar que denota liberdade e anonimato aos foliões. Aqui todos deixam fluir as fantasias e se despem dos pudores e limites impostos sob penas e sanções jurídicas, sejam elas de ordem moral ou social. Em Turner a ideia de unificação é enxergada enquanto um espaço propício para rompimento das estruturas, sem que seja visto enquanto espaço de permissividade, sendo amparado pelo estágio de unificação denominado communitas: A liminaridade, cenário ideal das relações de communitas, e a communitas, relação gerada espontaneamente entre seres humanos totais e indivíduos nivelados e iguais, despidos de atributos estruturais, constituem o que se poderia chamar de antiestrutura (TURNER, 2008, p.188).

O uso de símbolos rituais, a exemplo da predominância da cor azul pode proporcionar múltiplas análises, transmitir as mais variadas significações, podendo ser percebido enquanto uma ação, um gesto, ou um objeto, algo materialmente palpável, e segundo Turner (2005) pode transitar pela fronteira do concreto e do abstrato, sendo observado e aplicado à realidade do Tudo Azul não se distancia das ideias do autor acerca de suas análises sobre rituais e simbolismo: O mesmo símbolo pode ser reconhecido como tendo significados diferentes em fases distintas da performance ritual,

267

ou melhor, diferentes significados vem a ser dominantes em distintos períodos. O que determina qual significado deve se tornar o mais importante é o propósito ostensivo da fase do ritual na qual ele aparece [...] um ritual tem fases, e cada fase é direcionada a um objetivo limitado que se torna ele próprio um meio de se atingir o objetivo definitivo da performance total [...] existe uma relação consistente entre o objetivo ou finalidade de cada fase em um ritual, o tipo de configuração simbólica usada em cada fase, e os significados que se tornam dominantes nos símbolos multivocais naquela com figuração (TURNER, 2005, p. 87).

São definidas como fases rituais aqui pequenos e notáveis momentos, o que também discute Gennep (2011), ao tratar dos períodos que definem as etapas rituais, o antes, quanto à preparação, o durante, sendo este a fase de transitoriedade, momento em que os foliões se vestem de azul dão vida ao bloco, e o depois, onde os papeis passam a ser relocados em seus devidos lugares. Desde o início da concentração dos foliões a tinta xadrez azul começa a ser distribuída e a imensidão multicolorida vai tomando forma e cor, e como é costumeiro, quase que uma “regra social”, as camisas dos homens vão sendo rasgadas pelos demais foliões, o que chamamos de o momento do rasga-rasga, e somente a tinta azul é incorporada enquanto vestimenta permitida durante a festividade, e esta onda unicolor vai exercendo uma dominação por sobre o corpo seminu. Seria o tudo azul uma desordem programada? A regra é quanto menos peças de roupa e quanto mais azul estiver o corpo mais pertencente ao ritual você é, uma ação demarcadora do rompimento dos limites da limpeza e da sujeira. Para Douglas (1985, p.20) o universo é dividido entre coisas e ações, algumas destas que estão sujeitas a restrições, outras não, desta maneira, a relação estabelecida entre o sagrado e o profano pode não ser aplicada para definir aqui o momento festivo do carnaval.

268

Em alguns momentos podemos acreditar que a noção de igualdade se instala com maior ou menor intensidade na medida em que a cor é impregnada no corpo, onde dessa forma o tom azul seria mais autêntico visto que este estaria sobre a pele, gerando assim um “sentimento de pertencimento”. O Tudo Azul é um espaço onde as fronteiras são interpostas, e a permissividade toma conta do conjunto de proibições, e aqui a função maior de todos os foliões é proteger o profano - a festa do mela-melacontra a intrusão do sagrado e das regras de pureza, as proibições e possíveis

retaliações

sofridas

de

acordo

com

um

determinado

comportamento, que geralmente só é exercido em momentos como este, de festas profanas e sem maiores regras morais. Ainda

que

algumas

fronteiras

sejam

demarcadoras

do

comportamento e do espírito festivo, como é o caso dos espaços da casa e da rua, DaMatta (1997) descreve que o clima do ritual pode ser percebido através dos elementos manipulados e das 8 relações nele estabelecidas, e ainda reforça que entender as relações básicas do mundo social é simultaneamente entender o mundo ritual, sendo através dos rituais que poderemos perceber as coisas com mais clareza, aqui a veemência aponta os principais pontos que devem ser discutidos, pois para repensar os ritos, portanto, é necessário primeiro desritualizar, (DAMATTA, 1997, p.84). O folião não estando coberto de azul é facilmente notado, mesmo ele externando características comportamentais semelhantes aos demais foliões em meio à massa, o que pode gerar uma noção de estranhamento, o que proporciona a vivência de um “drama social”, mencionado de forma discreta por entre muitos dos participantes do ritual, mas não abordado no discurso daqueles que acompanham a massa. Como discutido em Douglas (2010:16) quando se referindo ao

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diferente e à noção de inquietação, o folião acaba sendo percebido enquanto uma anomalia em meio ao “ninho dos iguais”. Durante todo trajeto do bloco as pessoas vão se misturando, entre conhecidos e estranhos, todos se pintam, se sujam, rasgam as vestes, preenchem os espaços estruturais demarcados das diferenças sociais vividas no dia-a-dia através das relações sociais que demarcar cada individuo em seu verdadeiro espaço. O prefeito continua a ser prefeito, o gari continua a ser gari, o visitante continua a ser visitante, mas de forma diferenciada, aqui os papéis se misturam, por hora são ressaltados, mas não enfatizam uma imaginária exclusão ou divisão de grupos e espaços, uma vez que as cordas e os abadás foram substituídos pelo azul antiestrutural. Em uma fala de um dos organizadores do carnaval, o ex-prefeito Renan Filho (apud GOMES: 2012) é ressaltada a ideia de unidade percebida enquanto praticada durante a realização das festividades: A tinta azul é um sustentador da igualdade e da democracia do bloco. Por que a tinta recai como uma segunda pele. Naquele instante, não se percebe cor ou classe social. Em Turner é percebido que o termo antiestrutura possui uma conotação negativa somente quando visto da perspectiva da estrutura, da consolidação dos papeis, do que é estático e limitador dos espaços sociais: Os laços de comunistas são antiestruturais uma vez que são indiferenciados, igualitários, diretos, não-racionais (embora não irracionais) [...] estrutura é o que mantém as pessoas separadas, define suas diferenças e limita suas ações (TURNER, 2008, p.41).

Através da análise das unidades de espaço e tempo Gennep (apud) discute o que Turner (1974) também define enquanto aspectos estruturais da passagem, não que neste objeto de análise – o bloco 270

Tudo Azul enquanto ritual e manifestação cultural viva -, seja uma fase de passagem que define estágios de mudança e reagregação sociais, ainda sim aqui o estado de liminaridade que permite que: [...] o comportamento e o simbolismo se acham momentaneamente libertados das normas e valores que governam a vida pública dos ocupantes de posições estruturais. Neste ponto a liminaridade torna-se central (TURNER, 974, p.201).

Dessa forma, o carnaval da elite, até os dias atuais, perdeu sua força, dividindo espaço com o desfile público do mela-mela que, um dia, já fora considerada uma prática selvagem pelos idealizadores da civilidade afrancesada. Portanto, o Tudo Azul concilia esta relação aparentemente dicotômica e não exagera no exagero, fazendo um carnaval grande, porém silencioso e previsível, sem a polemização que poderia ser gerada pela perspectiva tradicional e moral dos tradicionais carnavais e bailes de marchinha. Como sugere DaMatta (1997, p.29)., é através de determinados rituais que se permite tomar consciência de certas

estruturas sociais

mais profundas que a própria sociedade deseja situar como parte dos seus ideais e práticas „eternos‟. Atualmente, o Tudo Azul já é considerado patrimônio imaterial de Murici, e aqui fica um entendimento acerca do carnaval muriciense enquanto pluridimensional, tomando aspectos diversos de formas imbricadas numa mesma unidade ritualística, garantindo a preservação do seu simbolismo e logo sua perpetuação através da maneira popular de fazer seu carnaval, tornando o “bloco carnavalesco” um espaço aberto e agregador, visto que o rito não divide, não cria um indivíduo, ele estabelece uma noção de totalidade.

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NOTAS: Endereço eletrônico: http://www.lininho.com/ Foram realizadas entrevistas ao longo do mês de agosto com alguns membros da sociedade muriciense, bem como sócios fundadores do Campo Grande Esporte Clube. 3 Estimativa levantada pela Polícia Militar do Estado de Alagoas neste ano, 21 de fevereiro de 2012. 1 2

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis. Rio de Janeiro: Rocco, 1997 DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo: Ensaio sobre as noções de poluição e tabu. São Paulo: Editora Perspectiva, 2010. GENNEP, Arnold Van. Os ritos de passagem: estudo sistemático dos ritos da porta e da soleira, da hospitalidade, da adoção, gravidez e parto, nascimento, infância, puberdade, iniciação, ordenação, coroação, noivado, casamento, funerais, estações, etc. Petrópolis: Vozes, 2011. GOMES. Wanderson José Francisco. Muricy dos Canaviais, Murici dos Carnavais: Uma análise da gênesis e desenvolvimento da ritualização carnavalesca na cidade de Murici – Alagoas. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Alagoas – ICS/UFAL: Maceió, 2012. TURNER, Victor. Floresta de Símbolos: Aspectos do Ritual Ndembu. Tradução de Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2005. ____________. Dramas, Campos e Metáforas: ação simbólica na sociedade humana. Niterói, EDUFF, 2008. ____________. O Processo Ritual: estrutura e antiestrutura. Tradução de Nancy Campi de Castro. Petrópolis: Ed. Vozes, 1974.

272

SURFISTAS DO TITANZINHO: ALGUMAS APROXIMAÇÕES.

Hélida Lopes da Silva.91 Resumo: O presente trabalho é fruto de insvestigações e pesquisas de campo, onde é analisado brevemente uma das formas de resistencia desenvolvida em uma comunidade da periferia de Fortaleza-CE contra o aumento contínuo do ingresso de crianças e adolescentes no tráfico de drogas e na criminalidade, assim como os fatores sociais e midiaticos que corroboram para a manutenção dos estereotipos e preconceitos vigentes sobre a comunidade em questão, o Titanzinho. Assim, como afirma Rondelli (2000) as formas que os meios de comunicação falam da e sobre a violência faz parte da própria realidade do fenômeno, onde a mídia alem de descrever os fatos e/ou ações sobre a violência, é também produto do drama social produzido pelos fatos narrados por ela. Palavras-Chaves: Juventude, Violência, Preconceito, Periferia e Mídia.

INTRODUÇÃO Pesquisar a Escolinha Beneficente de Surf Titanzinho-EBST, é ter que lidar com diferentes conceitos que perpassam tanto a sociologia e a antropologia quanto também a comunicação social. Juventude e violência são, sobretudo, representações sociais; são categorias dispersas

no

imaginário

social,

carregadas

de

simbolismo

e

subjetividades. Com isso, torna-se relevante refletir sobre a construção histórica dos preconceitos de pessoas e/ou lugares perigosos e de que maneira os meios de comunicação cooperam para gerar na opinião publica tais estereótipos. Quando se fala em opinião publica é importante percebê-la como algo paradoxal “o poder invisível do visível”, onde ela não seria uma mera transmissão de informação, mas, antes, disseminação dentro de um sistema (FILHO, 2004) Significativa parte da população ainda associa a imagem do surfista a um indivíduo que não possui grandes ambições materiais, 91

Graduada em Ciências Sociais (UECE), Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS/UFRN). Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas Conflitualidade e Violência (COVIO/UECE). [email protected].

273

utiliza drogas e não tem a mínima capacidade intelectual, estigma este que vem acompanhando o surfe desde os primórdios de sua prática, assim como alguns autores da Sociologia do imaginário já afirmavam que, As relações entre o imaginário e o real revelam a complexidade da condição humana. Das lembranças da infância aos desejos da idade adulta, das angustias reprimidas às projeções do futuro, tudo isso sublinha que as condições fisiológicas e materiais- a partir das quais a vida se estendepermanecem insuficientes para compreender as formas de experiência vivida (Legros et al, p.17)

Assim, o imaginário seria como os próprios autores afirmam, “uma representação acrescentada”. Tal conotação tem relação com a construção de preconceitos e estigmas sociais que descaracterizam e tornam invisível a pessoa em sua humanidade e direitos básicos e a expõem como uma caricatura vivível, tornada real. Afirma Soares, O preconceito provoca invisibilidade na medida em que projeta sobre a pessoa um estigma que a anula, a esmaga e a substitui, por uma imagem caricata, que nada tem a ver com ela, mas expressa bem as limitações internas de quem projeta o preconceito. (Soares, 2006, p.133)

De acordo com o que foi exposto acima, percebe-se que há uma significativa reverberação entre a maioria dos leitores midiáticos, gerando no imaginário de tais pessoas caricaturas, de bairros e pessoas violentas, perigosas, incapazes de alteração, locais onde não se deve freqüentar, portanto, sem nenhuma mobilização para mudanças. Este discurso embala o nascimento de sujeitos sociais dispersos, desmobilizados para a ação, desencantados com o futuro, desacreditados de uma ética. Sujeitos sem potência política transformadora, que se vêem justificados e legitimados por esta visão essencialmente negativa da condição humana contemporânea. (RONDELLI, 2000, p.160)

É comum ouvirmos falar sobre a veracidade dos fatos transmitidos pelos meios de comunicação através da simples expressão “mas passou 274

na televisão” ou “eu vi nos jornais”, grande parte da população crê fielmente nas informações publicadas nestes meios como sendo elas próprias uma verdade real sobre os fatos ocorridos na cidade, ou no país em que elas moram. Creio que esta confiança que os expectadores destas mídias, seja televisiva ou jornalística, possuem cabe ao fato de que como McLuhan(1964) já observava os meios de comunicação cumprem o “papel” de extensões do homem, onde inserido no cotidiano social da população, as “novas” tecnologias seriam as extensões do ser. Como já analisa Elizabeth Rondelli (2000), para quem a violência, em determinados episódios, apresenta-se não só como um mero fenômeno de agressão física, mas como linguagem, como um ato de comunicação e que “a repercussão de alguns episódios ocorre porque revelam questões sociais que estão além dos limites dos espaços de sua ocorrência.” (p.151). Para a autora, a mídia exacerba casos de violência como meio espetacular para ganhar audiência, mas, de forma crítica, atenta para o fato de que, mesmo com estas características,

a

mídia

também

funciona

como

canal

de

comunicação, de apresentação dos fatos tornando-os conhecidos, reveladores e, portanto, objetos de discussão e possíveis mudanças na compreensão e ação sobre os mesmos. Cabe-nos educar para também ver para além dos fatos meramente visíveis e sabermos ler as entrelinhas.

O TITANZINHO Caminhar por entre suas ruelas é um exercício social ao qual me esforço em completar, haja vista que, para chegar ao meu destino de pesquisa, a Escola Beneficente de Surf Titanzinho- EBST é necessário adentrar no bairro e penetrar no interior de becos estreitos que fazem crescer o imaginário social de uma arquitetura profundamente perigosa. Consequentemente, a EBST não pode ser vista da avenida 275

principal, mais ampla e movimentada, onde trafegam os ônibus que “cortam” o bairro. A escola e suas façanhas do surf dirigidas a crianças e adolescentes é invisível, neste sentido. Da mesma forma, o mar que embeleza o bairro fica escondido aos olhos dos transeuntes, e isso faz com que a imaginação dos que não conhecem o bairro, os que apenas “passam” dentro dos ônibus e carros se torne mais fértil ao pensar sobre os fatos noticiados pelos programas policiais, em especial. Os jovens da periferia estão situados em “comunidades estigmatizadas, situadas na base do sistema hierárquico de regiões e onde os problemas sociais se congregam e infeccionam, atraindo a atenção desigual e desmedidamente negativa da mídia, dos políticos e dos dirigentes do Estado. (WACQUANT, 2001, p. 7 apud SÁ, 2010, p. 25).

A Praia do Titanzinho, situada no bairro Serviluz, apesar de está entre os mais belos cartões-postais da Cidade, é, além de ponto turístico, uma área em que há presença de casas de prostituição, bem como o aumento dos índices de crimes, como homicídios e tráfico de drogas, colaborando para a construção do medo e a conseqüente incerteza sobre se deve ou não visitar o lugar devido ao imaginário da insegurança. Esta área é constituída por uma população que apresenta, em sua

maioria,

aspectos

socioeconômicos

em

níveis

considerados

insatisfatórios, detectado no cotidiano dos moradores. Assim como a praia, o Serviluz vem apresentando problemas urbanos como a ocupação de terras públicas por habitantes de baixa renda, criando áreas de favela e sem planejamento urbano, problemas característicos de grandes metrópoles assim como Fortaleza. Compartilho da idéia de Magnani ao falar sobre Metrópoles: “Trata-se enfim, de uma metrópole, com suas mazelas e também com os arranjos que os moradores fazem para nela viver.” (2008, p.19).

276

O Titanzinho, nome que dá referência a marca dos tratores que foram usados para remoção das antigas casas da praia mansa- os Titan, sofre há muitos anos com a poluição, resultado da falta de investimentos públicos em saneamento básico, associado a falta de educação ambiental da população que joga lixo na praia, que causa sujeira, doenças e deformações dos corais e da natureza local. O esgoto despejado no mar agrava a escassez de instrumentos de desporto, espaços de recreação e lazer. Tal quadro é alarmante e prejudicial a todos os que depositam no mar sua fonte de sobrevivência e lazer. Há entre a praia e seus moradores uma relação de natureza dialética, onde não apenas os atores são impactados pelo ambiente próprio da urbanidade, mas também participam ativamente do processo de constituição do ambiente representacional em que vivem. O Titanzinho é um desses lugares deixado de lado nesse enorme país, longe do sonho econômico da nação inteira. Por ali, você acha que as pessoas do Brasil foram esquecidas, são aqueles que ninguém quer ver. Estão na periferia, longe da sua visão. Vivem em precariedade e pobreza, sofrendo pelas drogas, prostituição e violência extrema. As crianças na favela freqüentemente são deixadas de lado, têm de encarar todos os perigos por conta própria.92 (RIBEIRO, 29/12/2010.)

São crianças que, em sua maioria, se encontram em situação de abandono, o que agrava ainda mais o índice de vulnerabilidade social de tais crianças que, por diversas vezes, amadurecem e aprendem a cuidar de si de forma abrupta, visando a sua sobrevivência a cada dia. Isto me faz refletir sobre o conceito de “mortos-vivos” (SOARES, 2006) os quais estão presentes em nosso cotidiano, porém invisíveis; são indivíduos que, para a maioria dos moradores da Cidade já estão mortos, mesmo continuando vivos, porém em péssimas condições de sobrevivência, tornando-se seres socialmente invisíveis. “A gente deixa de ver (...) porque se visse não conseguiria tocar a vida.” (SOARES, 2006, 92

Descrição feita no site mochileiro. Ver: http://www.mochileiro.net/guias/titanzinho-ce/

277

p.135) É a chamada amnésia seletiva, que nos proporciona a indispensavel paz interior, cauterizando os canais de percepção de certos fatos sempre seletivamente. Percebo que o “ser” visível de tais crianças e adolescentes se torna evidente, principalmente, quando há uma quebra no marasmo do cotidiano da sociedade. A situação de crianças e adolescentes no Brasil coincide, (...) com expressões agudas da violência social, a compor um paradoxal quadro e invisibilidade social desse amplo segmento (...) somente rompido em momentos de crise, conflito e violência extrema, sofrida ou praticada por eles. (SOARES, 2000a apud SALES, 2007 p.22).

A insuficiência de projetos e equipamentos educativos e culturais faz com que os jovens do bairro sejam excluídos das oportunidades de trabalho, que consequentemente, como observado, levam uma vida ociosa e, por vezes, muitos se envolvem com o tráfico de drogas e violência urbana presentes no cotidiano, fazendo surgir mais vítimas, muitas das quais são jovens também. Diante da ênfase dada a relação entre a categoria juventude e o conceito de violência, podemos perceber que a juventude tem sido, constantemente vítima e/ou algoz de diversos casos de violência registrados. Mesmo aqueles que não estão diretamente envolvidos em algum caso podem facilmente falar sobre o assunto, já que a proximidade com a violência, e conseqüente banalização faz com que ela se naturalize mais rapidamente, principalmente entre os jovens da periferia. Essa relação de proximidade com a violência surge nas palavras de Diógenes (1998) como importante objeto de análise, onde a autora nos mostra que a juventude está quase sempre no centro de debates sobre violência, ora sendo pensada como agente da violência, ora se apresentando como vítima a experimentá-la no próprio corpo.

278

Pesquisa recente que realizou uma cartografia da criminalidade e da violência em Fortaleza93, por cada Secretaria Executiva Regional da Cidade94, observou que é a região de praia, onde se localiza o Serviluz, situada na Regional II, que abrigam índices crescentes de crimes como homicídio. As características da região praiana do Cais do Porto, próximo a localidades com altos índices de conflitos, como Serviluz, detentor do mais baixo índice de rendimento médio da Regional e onde, também, verifica-se a ação de gangues, podem ser fatores catalizadores de crescimento de homicídios nessas áreas. As relações conflituosas, quando não mediadas, tendem a evoluir para crimes de natureza mais grave, o que podem influenciar o aumento do número de homicídios. (Cartografia da Criminalidade e da Violência na Cidade de Fortaleza, 2010, p. 109).

A pesquisa assevera que muitos conflitos registrados nesta região motivados por brigas de gangues e uso de drogas, bem como por delitos de baixa complexidade como brigas de casais e vizinhos, são fortes candidatos

a evoluírem

para crimes mais graves como

homicídios.

ESCOLA BENEFIENTE DE SURF TITANZINHO- EBST Quem olha “de dentro” do mar para a comunidade encara uma paisagem de pobreza. A falta de assistência social e o estereótipo pejorativo do “ser surfista” sempre incomodou o Fera, podemos

93

Para maiores informações ver Cartografia da Criminalidade e da Violência na Cidade de Fortaleza (2010), realizada pela UECE com interveniência do Instituto de Estudos, pesquisas e Projetos-IEPRO e a Guarda Municipal e Defesa Civil de Fortaleza, com recursos da Secretaria Nacional de Segurança Pública – SENASP e Ministério da Justiça, realizada por pesquisadores doLaboratório de Direitos Humanos, Cidadania e Ética-LABVIDA e Laboratório de Estudos da Conflitualidade e Violência-COVIO, ambos da Unviersidade Estadual do Ceará, e do Laboratório de Estudos da Violência-LEV da Universidade Federal do Ceará, com apoio da Guarda Municipal e Defesa Civil de Fortaleza – GMF. A Cartografia tem como objetivo formatar um documento contendo mapas e dados dispostos em representação gráfica para comunicar as informações sobre criminalidade e violência na Cidade. Disponível em: http://www.uece.br/covio/dmdocuments/relat%C3%B3rio_final.pdf 94 Fortaleza está dividida administrativamente em seis Regionais, sendo que a Regional II abriga o Centro da Cidade, que é bairro, porém foi transformado em uma Regional específica, a Secretaria Executiva Regional Centro- SECEFOR.

279

perceber assim que há uma estreita relação entre o indivíduo Fera e o grupo social que criou, a Escola de surf, com apoio do pensamento de Norbert Elias. Trata-se de uma história de interdependência entre atitudes individuais e sociais. Elias (1994) fala dos vínculos indivíduo e sociedade cuja explicação mais fácil se dá pela dicotomia entre um e outro e pela normatividade do dever ser como estratégia da compreensão. Por estarem os indivíduos vinculados, quase que rotineiramente, ao sistema de valores de um campo ou do outro, verificamos com freqüência que, na tentativa de descobrir o que realmente é a relação entre indivíduo e sociedade, é comum adotarem-se os gritos de guerra dos campos opostos, que estão predominantemente interessados no que essa relação deve ser. (ELIAS, 1994, p.113)

Entretanto, o que podemos ver é uma estreita relação indivíduo e sociedade. Para Elias, o indivíduo não é completamente autônomo em suas decisões já que também é movido pelas contingências da vida social, mas também ele não é absolutamente determinado pelo social. Assim, nosso informante percebeu que, para realizar seu ideal de construir uma escola de surf, o primeiro enfrentamento era desmistificar a antiga ideia de associar o surf às drogas, já que é uma visão há tempos ultrapassada; a relação drogas e surf, drogas e esporte não possui nada em comum, mas ainda ressoa no imaginário social. Com efeito, estou escrevendo sobre um estatuto moral que permeia a experiência da Escola idealizada por Fera. Os valores morais de uma sociedade fazem parte do processo de identificações dos jovens “uns com os outros”, no sentido desta experiência e da ideia presente na vida social de pensar a vida em coletividade. Porém, “a formação da identidade para os jovens é um processo penoso e complicado. As referências positivas escasseiam e se embaralham com as negativas.” (SOARES, 2006, p.137). Significa dizer que a experiência moral na Escola se embaralha com outras referências que os jovens 280

obtêm no seu dia a dia na rua, no bairro, no contato com a criminalidade. Assim, refletir sobre o que é ser bandido, traficante ou criminoso, se compartilhada com a ideia de que estes têm obtido melhora de vida, tem vivido com qualidade, tem alcançado status social e ainda reconhecem e dão oportunidade aos jovens. Significa dizer que “a identidade só existe no espelho, e esse espelho é o olhar dos outros, é o reconhecimento dos outros.” (SOARES, 2006, p.137) Trata-se de uma luta que é travada ao levar em consideração a subjetividade do indivíduo e sua capacidade de reflexão e potencial de mudança, quando se depara com as experiências do eu e do nós, da vida individual e coletiva. Há, neste sentido, presente no indivíduo em processo civilizador, a vida em sociedade sem se deixar esmagar totalmente pelos fatores externos a ele. É o que Elias sugere ao falar da balança nós-eu. Isso se expressa no conceito fundamental da balança nós-eu, o qual indica que a relação da identidade-eu com a identidadenós do indivíduo não se estabelece de uma vez por todas, mas está sujeita a transformações muito específicas. (ELIAS, 1994, p. 9).

CONSIDERAÇÕES FINAIS Violência simbólica, econômica, física ou psíquica faz parte do cotidiano dos alunos da EBST, pois, apesar da escola tentar preencher todo o dia dos alunos com atividades, envolvendo-os com outras significações de não-violência, ao voltarem para suas casas ou surfarem isolados em outra praia, acabam por sofrerem o estigma e preconceito difundido no imaginário social dos moradores da cidade de Fortaleza que caracteriza o bairro e seus jovens como indivíduos dotados de um extremo potencial perigoso. Sabemos que são poucos os investimentos governamentais em políticas públicas de fato no Brasil e no Ceará. Especificamente, na 281

cidade de Fortaleza e nos seus bairros, podemos observar a distinção desses investimentos, podendo falar de políticas públicas para bairros classificados como nobres e projetos sociais para comunidades pobres. Mas as políticas e, especialmente os projetos têm sido marcados pela descontinuidade, dependendo das mudanças de gestão e de políticas individuais. Projetos como o de João Carlos Sobrinho95, o Fera, de cunho idealizador por parte de um indivíduo e seus laços sociais construídos na Escola de surf, são experiências que têm ocorrido nas comunidades, marcadas muitas vezes pela descrença nas políticas governamentais. Trata-se de experiências sociais que buscam abarcar os invisíveis da Cidade, os vulneráveis, que são conhecidos apenas pelas classificações estereotipadas de “marginais” pelo fato de residirem em bairros também classificados pela marginalidade, já que de periferia. Neste caso, são vistos em “condição de visibilidade perversa”: Esses são alguns elementos que apontam, de um lado, a invisibilidade do sofrimento por que passam crianças e adolescentes das classes trabalhadoras nas suas áreas de moradia e socialização [...]. De outro, sinalizam o tipo de malhas simbólicas e ideológicas que permitem a visibilidade dos adolescentes, uma visibilidade intensificada pelo preconceito e medo da violência, [...]. Trata-se, portanto, de uma condição de visibilidade perversa, seletiva e reprodutora de discriminações históricas contra os setores mais pauperizados e insubmissos das classes trabalhadoras urbanas... (SALES, 2007, p. 27).

Assim em relação à EBST, percebo que tais malhas simbólicas e ideológicas também perpassam entre seus sujeitos, transformando-os em agentes do mal e da violência. A Escola entra em campo, com estratégias, na tentativa de buscar outra visibilidade em meio a precariedade da vida dos jovens, na tentativa de mudança da realidade ali presente. Assim a tarefa de ensinar o surf e a mensagem de “se tornar uma pessoa do bem” ou “ser gente”, como fala Fera, é o trabalho cotidiano 95

O projeto seria a Escola Beneficente de Surf Titanzinho; a qual é objeto da pesquisa.

282

da Escola. Tal pensamento me remete a Roque Laraia, em que ele levanta

a

questão

do

homem

ser

considerado

um

Ser

predominantemente cultural, onde todos os seus atos dependem inteiramente de um processo de aprendizado. (LARAIA, 2005). No caso da

Escola,

as

estratégias

pedagógicas

e

socializadoras

têm

demonstrado uma experiência que pode contribuir com o controle social no sentido cidadão, ou seja, não controle como amarração, punição, mas como forma de mediação entre o desejo individual de ser alguém que satisfaça suas necessidades a qualquer custo, que precisa do controle social para ter autocontrole e saber conviver em sociedade. Neste processo, entendo o objetivo geral da Escola, para além do lema “ser uma pessoa do bem”, no que se refere à redução do ócio e resgate da cidadania através do esporte, como processo socializador no sentido de voltar-se para o lazer e a educação como formas de controle social cidadão. Olhando para os objetivos específicos podemos alargar esta percepção: estimular a prática de esportes, principalmente, entre as crianças e adolescentes do bairro; promover a educação ambiental e o desejo de viver social e saudavelmente; identificar novos talentos, contribuindo com uma geração de renda e inserção de pessoas no mercado de trabalho; desenvolver, reconhecer e resgatar valores.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Cartografia da Criminalidade e da violência na Cidade de Fortaleza. BRASIL. Fortaleza, 2010. Disponível em: http://www.uece.br/covio/dmd ocuments/ relat%C3%B3rio_final.pdf. DIÓGENES, Glória Maria dos Santos. Cartografia da cultura e da violência: gangues, galeras e o movimento Hip Hop. São Paulo: Annablume; Fortaleza: Secretaria da Cultura e do Desporto,1998. 283

ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. FILHO,Ciro Marcondes. O Escavador de Silêncios: Formas de construir e de desconstruir sentidos na comunicação. São Paulo: Paulus,2004. LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 18ºed. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. LEGROS, Patrick; MONNEYRON, Frédéric; RENARD, Jean-Bruno, TACUSSEL, Patrick. Tradução Eduardo Portanova Barros. Sociologia do Imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2007. MCLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação Como Extensões do Homem. Tradução Décio Pignatari. São Paulo: Ed.Cultrix, 1964. MAGNANI, José Guilherme Cantor. Quando o Campo é a Cidade: fazendo antropologia na metrópole. In: MAGNANI, José Guilherme Cantor; TORRES, Lilian de Lucca (Orgs.). Na metrópole: textos de antropologia. 3ª ed. São Paulo: Edusp, 2008. RIBEIRO, Philipe. Titanzinho (CE) Disponivel em: http://www.mochileiro. net/guias/titanzinho-ce/. Publicado em: 29 de dezembro de 2010. Acesso em: 20 de setembro de 2011. Hora:17:30 RONDELLI, Elizabeth. Imagens da violência e práticas discursivas. IN: PEREIRA, Carlos Alberto Messeder; RONDELLI, Elizabeth; SCHOLLHAMMER, Karl Erik; HERSCHMANN, Micael. (Orgs.). Linguagens da Violência. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. SALES, Mione Apolinario. (In)visibilidade Perversa: Adolescentes infratores como metáfora da violência. São Paulo: Cortez, 2007. SOARES, Luiz Eduardo. Juventude e Violência no Brasil Contemporâneo. In: NOVAES, Regina; VANNUCHI, Paulo (Orgs.). Juventude e Sociedade: trabalho, educação, cultura e participação. 1ª Reimpressão.São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo: Instituto Cidadania, 2006. WACQUANT, Loïc J. D. O Retorno do Recalcado: violência urbana, “raça” e dualização em três sociedades avançadas. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, Nº 24, ano 9, fevereiro/1994.

284

ENTRE PALAVRAS, IMAGENS E SENSAÇÕES: REPRESENTAÇÕES MIDIÁTICAS DA VIOLÊNCIA URBANA EM NATAL-RN. Francisco Augusto Cruz de Araújo96

Resumo: A violência social é uma das dimensões da vida humana que mais produzem efeitos sobre o imaginário social, pois é nela que transitam valores relativos ao que há de mais enérgico e vital aos seres humanos, como a força, o encanto, e o prazer, mas também é permeada por estímulos e sentimentos negativos da vida humana: a dor, a fúria, o medo e a revolta. A variabilidade de sentimentos e razões que inteiram a violência exige cada vez mais leituras sensíveis que abarquem a complexidade dos seus fenômenos. A sensação de medo e insegurança que constitui o imaginário social coletivo tem provocado amplas transformações nos comportamentos tanto dos indivíduos, quanto da sociedade como um todo. Este estudo busca refletir sobre o poder das representações produzidas pelos meios de comunicação sobre a violência social. Por meio de um levantamento teórico e documental das mídias, foi possível elencar acontecimentos e traçar diferentes cenários que tanto se remetem a violações, quanto apontam para a promoção e valorização dos direitos e da dignidade humana. Palavras-Chaves: Violência; imaginário social; comunicação social; representações midiáticas.

O alto celestial que nos vigia, o baixo infernal que nos espia. Paradiso das esferas ascendentes, glória já esquecida dos longínquos círculos cadentes, inferno, abandono de toda a esperança. A esquerda, “o outro lado do lado”, kelippah, concha cabalística das trevas, morada feminina, sinistro lado do mau agouro, onde Bohème depositou a mão irada do Senhor e, como no Credo, colocou à sua direita o implacável Juiz dos vivos e dos mortos que há de proferir a sentença final. A encruzilhada sempre fatídica. O fechado, propício à emboscada e o aberto que nos expõe ao nada. Onírico e mítico, ser dos confins inalcançável pela geometria, o espaço é mistério absoluto. Além de cada paisagem somente outra paisagem, além de cada horizonte apenas outro horizonte. Rasteado de sinais, dá medo. Do que se tem medo? Da morte, foi sempre a resposta. E de todos os males que possam simbolizá-la, antecipá-la, recordá-la aos mortais. Marilena Chauí, Sobre o medo (2009).

96

Graduado em Ciências [email protected].

Sociais

(UERN),

285

Mestre

em

Ciências

Sociais

(UFRN).

INTRODUÇÃO O termo ‘sensacionalismo’ é um substantivo masculino derivado da palavra sensação. Usualmente ele é empregado em referência aos conteúdos dramáticos apresentados pelos veículos de comunicação, em especial aqueles que apresentam a violência como temática central dos conteúdos de sua programação. Algo sensacional é aquilo que provoca sentimentos e sensações que comovem os sujeitos, e neste contexto, a violência representa talvez o fenômeno que mais provoque fascínio aos seres humanos, seja pela atração ou repulsão das suas ocorrências. Diariamente milhares de pessoas por todo o mundo estabelecem algum tipo de relação com a violência social, especialmente através do acesso que possuem aos meios de comunicação: pela televisão na sala, no quarto ou na cozinha, pelo jornal entregue ainda pela manhã, nos e-mails que chegam, nas redes sociais, nos portais de notícias, etc. E mesmo que jamais tenham sido vítimas de alguma ocorrência violenta como assaltos, roubos, agressão física, dentre muitos, a exposição à violência remete os sujeitos às emoções humanas mais profundas e primitivas:

proteção,

dor,

desamparo,

angústias,

solidariedade,

compaixão, ira, medo e pânico. Em todas as partes das grandes cidades e até naquelas de médio e pequeno porte, estão impressas as marcas da violência social. De norte a sul, regiões leste e oeste das cidades por todo o mundo, tanto os habitantes quanto os governantes buscam alternativas de controle e estagnação da violência: condomínios fechados cada vez mais fechados, muros residenciais e comerciais com cercas elétricas de alta voltagem (capazes de emitir choques de até 20.000 volts), câmeras de vigilância eletrônica com visão noturna, alarmes interligados às linhas telefônicas, sensores de movimento, casas gradeadas, carros blindados, policiamento ostensivo nas ruas, centrais policiais de monitoramento das 286

vias públicas, novas viaturas, armamentos letais e não-letais, concursos públicos para aumento do efetivo policial, polícias especializadas, empresas de segurança privada e muitas outras estratégias que buscam a prevenção, o controle e o combate. A segregação espacial97 da cidade escreve na história de vida cada família e de cada indivíduo as marcas da violência e impõe a necessidade da criação de alternativas de combate. Os mais ricos das cidades buscam estratégias que resultam em uma maior sensação de segurança, aos mais pobres resta o improviso e os arranjos que remetam-lhes pelo menos à sobrevivência diária. Em meio ao cenário de uma guerra silenciosa que acontece a conta-gotas98, compartilhase um único sentimento: o medo de ser a próxima vítima. No Brasil, morre-se anualmente vítima de homicídio tanto quanto em uma guerra. Dados levantados nos últimos dez anos (entre 2001 e 2011) apontam que apenas no Estado do Rio de Janeiro vitimou-se (homicídios, suicídios e acidentes de trânsito) em um período de 20 anos o equivalente a 200 anos de guerras na qual os Estados Unidos fez parte (SOARES, 2006). Observando o cenário nacional, a maioria das vítimas da violência tem entre 15 e 29 anos de idade, são geralmente pessoas pobres, do sexo masculino, moram nas regiões mais desvalorizadas de cada cidade e com grande frequência são negros (SOARES, 2011). Apesar de os dados coletados por todo o Brasil apontarem a violência atuando em uma estratificação social específica, os mais privilegiados economicamente não escapam das estatísticas: cada vez mais o número de sequestros relâmpagos, as saidinhas de banco, assaltos a comércios e latrocínios (roubos de carros, motos, invasões a residências) crescem em escala considerável. Já não é mais possível se falar em violência social como parte do cotidiano de um grupo em especial. Este fenômeno tão complexo ultrapassou os muros que separavam os guetos periféricos das regiões 97 98

Espacial sim, mas principalmente social. Guerra nem tanto silenciosa e aos borbotões.

287

mais seguras das cidades, espalhou-se pelos centros das grandes, médias e pequenas cidades, invadiu condomínios, casas, shoppings, prédios comerciais e transportes públicos e tem vitimado pessoas em todos os lugares. E desta forma, nas cidades com elevados quadros demográficos, tornou-se impossível distinguir as piores formas de violência diante de tamanha diversidade de ocorrências, tampouco identificar o “inimigo” que ameaça. O resultado deste processo é o enfraquecimento das relações de defesa como os valores de solidariedade e arranjos comunitários que visam a criação de redes e laços que estimulem a segurança coletiva. Na cidade, todos os estranhos são suspeitos. (PEDRAZZINI, 2006) Este processo segue o caminho já guiado pelas sociabilidades individualistas impostas pela globalização. Como resultado, constatamos pessoas cada vez mais preocupadas com suas próprias sobrevivências e cada vez menos preocupadas com a coletividade. O sentimento de insegurança e medo tem acentuado a distância com o outro (GIDDENS, 1991). Por estar cada vez mais presente na vida das pessoas e pela popularização dos meios de comunicação, as discussões sobre os problemas

da

violência

migraram

dos

debates

nas

esferas

governamentais e dos meios acadêmicos e se tornaram cada vez mais um assunto comum na vida das pessoas. A violência enquanto fenômeno

simbólico

agressivo

e

ameaçador

tornou-se

uma

característica definidora da pauta midiática, conforme apontam Muniz Sodré (2002) e Malena Segura Contrera (2002). O pânico na mídia tem se consagrado ao longo dos últimos anos um excelente mobilizador emocional com vistas à audiência e ao lucro. A violência transcendeu suas condições físicas e objetivas e cada vez mais se sustenta no universo simbólico da sociedade, alimentada especialmente pelas representações midiáticas que variam em um cenário de exposição dos dramas e fatos da realidade, à espetacularização e difusão de um pânico apaziguado. Em outras palavras, a pauta midiática alimenta

288

ainda mais, através dos seus conteúdos simbólicos, o medo social da violência, em troca de share99. Em que pese essa característica, o papel de promover a atração de novos interlocutores ao debate sobre a violência cotidiana foi capaz de provocar consequências tanto positivas quanto negativas. Entre as positivas, há a possibilidade das pessoas desenvolverem estratégias de vida que visem minimizar o contato com a violência, como a criação de uma rotina mais segura evitando-se determinados lugares, horários de maior risco ou sabendo como se comportar diante de uma situação de violência. Dentre as negativas, está o surgimento de estados emocionais sustentados pelo medo e tensão que são capazes de repercutir diretamente na rotina da sociedade (BAIERL, 2004), como o desenvolvimento de doenças psicológicas relativas ao medo da violência, a acentuação do individualismo ou até o surgimento de um “mercado da segurança” que tem servido apenas como um placebo contra a violência. A utilização da violência como tema da cobertura midiática tem diversos aspectos, todos imbricados à manipulação das emoções com a ativação de pulsões de vida e morte. Nessa direção, a mídia apropriou-se da violência para transformá-la também em rentável instrumento de entretenimento. Todos os anos, os grandes e pequenos estúdios de cinema, principalmente norte-americanos, lançam no mercado cinematográfico dezenas de produções recheadas das mais diferentes formas de violência. Somando-se a estas produções, estão as telenovelas e jogos virtuais, que simulam batalhas ocorridas na realidade como guerras ou as caçadas a terroristas, criminosos ou até mesmo a seres extraterrestres. O leque de opções é amplo e representa um cenário a ser pensado e discutido nos espaços de tomadas de decisão. Quais as possíveis consequências sociais da aproximação da 99

O "share" é um valor comparativo. Permite verificar quais os canais e os programas que obtiveram - no mesmo momento ou no mesmo dia - uma preferência em relação aos outros programas do momento ou do dia. O valor de referência é a totalidade das pessoas que estavam com o televisor ligado naquele instante ou naquele dia.

289

violência por via das simulações de realidades como as das produções de telenovelas, videogames, ou, de modo geral, do mercado de entretenimento midiático? Estas

modalidades de exposição midiática provocam

nos

receptores reações de prazer variado e representa uma alternativa ineficaz de se encarar e compreender a violência no meio social, transformando-a em puro entretenimento para espectadores em situação de desigualdade intelectual, tendo em vista que a recepção e decodificação dos mesmos conteúdos variam de acordo com os contextos sociais. Sendo os meios de comunicação de massa, em especial a televisão, o rádio e o jornal as únicas fontes de informação de milhares de pessoas por todo o mundo100, como pode a violência, fenômeno social,

tornar-se

algo

natural

e

objeto

de

especulações

mercadológicas, tendo em vista a sua capacidade de aterrorizar, controlar e coagir os sujeitos e grupos sociais? Não seria apropriado insinuar que o consumo elevado de conteúdos recheados de violência poderia estar ligado até certo ponto a uma autossatisfação humana? Trilhando neste rumo, um amplo e consolidado grupo das Ciências Sociais apontam para a idéia de que a espetacularização da violência na mídia e nas esferas públicas representam uma estratégia de canalização dos instintos mais primitivos existentes no homem, anulados por um amplo e poderoso Processo Civilizador (ELIAS, 1994; FOUCAULT, 2005). Diante da dor dos outros é possível acreditar que a vítima expiatória purificaria gradativamente o mundo e serviria de calmante aos espíritos aflitos do mundo, afastando-lhes da morte (GIRARD, 2008). O medo da morte seria, portanto, uma explicação possível à atração social pela violência na mídia, na televisão, no jornal ou no rádio. Enquanto a violência estiver enquadrada nos televisores, nas páginas dos jornais ou limitadas às notícias do rádio, espera-se que

100

Fontes midiáticas tecnológicas, pois com certeza existem outras fontes de informação no cotidiano.

290

ela esteja sob controle e longe de casa. De preferência, dentro da caixa-preta. A violência e a vida são sempre polarizadas e sobre a primeira, sempre associada à morte, está a ênfase maior dada pela mídia. A exposição excessiva da violência na mídia, como se pôde observar, faz ligações com a busca pela satisfação e promoção da vida. Diante de um mundo tão violento, a morte recebe espaço pelo desejo de que o “outro” morra no lugar do leitor naquele instante (SONTAG, 2003). O que norteia tal comportamento? Quais valores e sentimentos fazem parte deste processo de anulação da morte? Baitello Jr. observa: Uma vez que a morte está associada sempre à ausência de pessoas queridas, é também sempre vinculada a sentimentos de dor e perda enquanto ela está presente, enquanto as pessoas ausentes estejam simbólica e afetivamente presentes. Também por isso, porque ela dói, busca-se permanentemente espantá-la para o passado, o que também quer dizer recalcála para o futuro, pois cada procedimento de textualização tem seu preço: porque os símbolos vivem mais tempo do que os homens, porque são construções sociais, são obrigados a oferecer uma dimensão prospectiva e uma dimensão retrospectiva do tempo. (BAITELLO JUNIOR, 2003, p.110)

Com a morte estampada nas páginas do jornal ou nos programas de televisão, temos reforçado a sua presença constante, mas afirmamos também que temos do lado de cá a presença das pessoas que guardamos. Esta é uma forte estratégia de anulação da morte, manifestada por exclamações como “Deus me livre disso”, “Deus tenha piedade dele”, “pobre vítima”, quando nos deparamos com cenários de violência apresentados na televisão ou jornais. Tal atitude impõe distanciamento do fato apresentado e atenua o medo social, fazendonos crer que não somos personagens centrais dessa história, mas sim uma vítima oculta da violência social (SOARES, 2006). Desse modo, percebe-se que o medo social não se constitui unicamente a partir das experiências diretas da violência, mas pelo contrário, percebe-se que o medo de ser vítima de uma agressão violenta está presente em elevado grau tanto nas tranquilas e 291

pequenas cidades rurais, quanto no centro das metrópoles de todo o mundo, embora estas sejam muito mais perigosas. Em todos os universos apontados, transitam representações midiáticas da violência.

A MÍDIA COMO RESSIGNIFICADORA DO REAL – REPRESENTAÇÕES A mídia opera, na modernidade, como um dos principais agentes de construção social da realidade. Sobre esta construção, é importante se considerar que os seres humanos experimentam a vida cotidiana em diferentes graus de aproximação e distância, espaço e tempo. Desta forma, entende-se que qualquer análise feita sobre a mídia deve considera-la

como

construtora

de

identidades

e

imagens

estereotipadas do real, uma vez que ela cria realidades, e também faz parte dela, tornando-se forte instrumento para a reprodução, atuando de forma privilegiada na divulgação dos acontecimentos, construindo discursos e imagens. Michel de Certeau (2010) observou o paradoxo das mediações entre a história e a escrita, refletindo sobre o discurso que é construído por meio do qual tempo e história se revestem de inteligibilidade e sofrem influências diretas e indiretas de forças ocultas que só podem ser desveladas a partir da análise crítica do método da escrita e de compreensão do tempo histórico. Assim, torna-se imprescindível aos pensadores e atores do mundo midiático, que a interrogação acerca dos procedimentos de “fazer a história”, considere “o lugar” de produção do saber, as práticas disciplinantes e a construção das narrativas que registram e divulgam. Pode-se aproximar da reflexão desenvolvida por Certeau o comunicador que é responsável pela fabricação e seleção dos “fatos” e o peso do presente (seu contexto histório-político-cultural) na definição da leitura feita sobre cada evento noticiado. O pensador critica ainda a convicção errônea construída acerca da construção da 292

“verdade”,

apontando

conhecimento

enquanto

a

objetividade

estratégias

e

frágeis

imparcialidade de

construção

do das

narrativas. Surgem assim, a partir de Michel de Certeau, uma série de questionamentos ligados à construção das representações midiáticas, dentre os quais, as relações do comunicólogo e do comunicador com suas fontes; as mediações pelas quais temas e questões são abordadas; as forças exercidas sobre a tarefa de comunicar; a quem comunicar e como comunicar, dentre outras. Certeau afirma que a atividade de narrar a realidade ou de pesquisar a história está inserida em um lugar social, marcado pelo consenso de interesses que definirão o que poderá vir a ser feito e o que não é permitido ser realizado. Desta forma, considera-se sobre a construção da notícia ampla incidência do peso que a instituição e o lugar social dos profissionais da mídia recebem sobre a construção do discurso. Neste sentido, Certeau (2010) afirma: Antes de saber o que a história diz de uma sociedade, é necessário saber como funciona dentro dela. Esta instituição se inscreve num complexo que lhe permite apenas um tipo de produção e lhe proíbe outros. Tal é a dupla função do lugar. Ele torna possíveis certas pesquisas em função de conjunturas e problemáticas comuns. Mas torna outras impossíveis; exclui do discurso aquilo que é sua condição num momento dado; representa o papel de uma censura com relação aos postulados presentes (sociais, econômicos e políticos) na análise. Sem dúvida, esta combinação entre permissão e interdição e interdição é o ponto cego da pesquisa histórica e a razão pela qual ela não é compatível com qualquer coisa. É igualmente sobre esta combinação que age o trabalho destinado a modificá-la. (p. 77)

Atualmente, a mídia101 ocupa a posição de portadora de um discurso autorizado sobre a realidade e a especificidade desse discurso reside no fato de que ele não seja compreendido, mas que seja reconhecido. Esta realidade afirma que a eficácia simbólica do discurso autorizado é exercido apenas na medida em que a pessoa ou grupo-

101

Insisto em explicitar que mídia é essa. A mídia dominante, burguesa, capitalista... enfim, especificar prá não ficar tão generalizado.

293

alvo (o receptor) reconhece quem o exerce e considera-o portador do direito, firmando o reconhecimento como mecanismo de sujeição. Assim, a supervalorização da utilidade da notícia é legitimadora do discurso midiático, permitindo que, configure-se o poder de atualização e de representação cotidiana dos problemas sociais. Não são poucos os exemplos de jornais televisivos ou impressos, programas

de

televisão

e

rádio,

comunicadores

e

redes

de

comunicação que erigem a bandeira de portadores da “verdade”, como se percebe nos próprios slogans dos veículos de comunicação: “Compromisso com a verdade”, “Sem meias verdades”, “Verdade acima de tudo”, “Jornalismo Verdade”. E desta forma, constroem as relações de confiança e credibilidade, abrindo espaços ou ocupando lacunas na vida das pessoas. Pode-se afirmar a partir de Certeau que, a mídia não apenas traz a público as questões sociais mais relevantes, como as torna amplamente conhecidas e, por consequência, influencia diretamente nos programas e agendas do Estado. Em outras palavras, os temas de interesse público também passam pelo aval midiático e transformam-se e constroem cotidianamente a realidade, enquanto outros temas, caem no limbo do esquecimento. A produção de uma narrativa, como as criadas nas reportagens, campanhas publicitárias, programas de rádio e televisão são, segundo o pensamento de Michel de Certeau operações complexas que contêm em si as fases da construção social da realidade, variando entre aquilo que foi pronunciado (dito) e aquilo que foi silenciado. O não-dito, para Certeau representa o resultado das escolhas feitas pelo criador das narrativas e fatalmente, a escrita (narrativa) da história obedece uma seleção de critérios que incidem na construção da realidade, orientando-se pelos campos de forças que atuam sobre os sujeitos autorizados a construí-la. Escrever sobre um objeto ou um fato, para Certeau, significa transforma-los em parte da história, e desta

294

forma, não sendo feito dentro de um contexto histórico, ficaria no espaço do não-dito. A Teoria das Representações Sociais, parte especialmente das contribuições do psicólogo social Serge Moscovici que afirmam que as representações têm como uma de suas finalidades tornar algo exótico em algo familiar. Isso representa classificar, categorizar e nomear novos acontecimentos e ideias com as quais os sujeitos não haviam nenhum tipo de relação, aproximando de suas vidas através da manipulação das conhecimentos, valores e teorias já preexistentes e internalizadas pela sociedade. O pensador afirma: As representações que nós fabricamos – duma teoria científica, de uma nação, de um objeto, etc. – são sempre o resultado de um esforço constante de tornar e real algo que é incomum (não-familiar), ou que nos dá um sentimento de nãofamiliaridade. E através delas nós superamos o problema e o integramos em nosso mundo mental e físico, que é, com isso, enriquecido e transformado. Depois de uma série de ajustamentos, o que estava longe, parece ao alcance de nossa mão; o que era abstrato torna-se concreto e quase normal (...) as imagens e ideias com as quais nós compreendemos o não-usual apenas trazem-nos de volta ao que nós já conhecíamos e com o qual já estávamos familiarizados. (MOSCOVICI, 2007,p.58)

A sociedade e seus grupos buscam compreender, decodificar e dar significados próprios às informações e acontecimentos por toda a sua vida, pois sua sobrevivência no mundo tem dependência direta deste processo. Impulsionada pela proliferação das idéias científicas, da quantidade inumerável de informações que circulam diariamente nos meios de comunicação de massa e também pelo conhecimento que emana das ruas, bares e esquinas do senso comum, as representações sociais encarregam-se de operacionaliza-las e inserir os saberes no cotidiano social. As relações humanas dependem diretamente das relações de comunicação que travam entre seus grupos. As representações sociais dão sentido à vida, pois organizam os códigos, símbolos e dados que circulam no universo social e os municiam os sujeitos para o processo de comunicação. 295

(...) a dinâmica das relações é uma dinâmica de familiarização, onde os objetos, pessoas e acontecimentos são percebidos e compreendidos em relação a prévios encontros e paradigmas (...) a memória prevalece sobre a dedução, o passado sobre o presente a resposta sobre o estímulo e as imagens sobre a ‘realidade’ (MOSCOVICI, 2007, p. 55)

Neste mesmo sentido, o sociólogo Emile Durkheim já havia formulado sua teoria sobre a coesão da sociedade e apontado para a necessidade de manutenção das idéias, símbolos comuns (valores, crenças, dogmas religiosos, ideologias, etc.), denominando consciência coletiva. As representações sociais atuam exatamente na coesão da consciência coletiva, pois são exatamente a organização destes valores e idéias compartilhados coletivamente que dão significado e fortalecem o cimento social. As representações midiáticas sobre a violência constituem-se, segundo Rondelli (1998): Do real ela nos devolve, sobretudo, imagens ou discursos que informam e conformam este mesmo real. Portanto, compreender a mídia não deixa de ser um modo de estudar a própria violência, pois quando esta se apropria, divulga, espetaculariza, sensacionaliza ou banaliza os atos de violência está atribuindo-lhes um sentido, ao circularem socialmente, induzem práticas referidas à violência. (RONDELLI, 1998, p.149)

Em meio ao amplo e complexo processo de produção social da realidade por meio das representações construídas pelos meios de comunicação, não há de se negar a existência de relativa passividade do espectador que resulta da verticalidade do fluxo comunicativo, constituindo relações de poder autoritárias entre mídia de massa e público massivo. Entretanto, o fato do processo de comunicação necessitar de uma decodificação e interpretação por parte do espectador, que mobilizará memórias, capital cognitivo e escolhas afetivas, impede que o processo seja de inteira competência da mídia. A recepção, conforme Edgar Morin (1977), é um fenômeno que implica também na participação afetiva por parte do espectador, dessa forma convertido em sujeito relativamente ativo no processo de construção 296

da realidade102. Segundo Lúcia Santaella, “os interpretantes emocionais estão sempre presentes em quaisquer interpretações, mesmo quando não nos damos conta deles” (SANTAELLA, 2005. p. 25).

OS CONTORNOS MIDIÁTICOS DA VIOLÊNCIA Em Natal, capital do Rio Grande do Norte, as representações que compõem o universo simbólico da cidade apontam para a direção do esforço em fortalecer a imagem de uma cidade tranquila, pacífica, com riquezas naturais singulares e de um povo acolhedor e com elevada qualidade de vida. Grande parte desta imagem é reproduzida diariamente pelos canais midiáticos em atuação na cidade e no Estado. Este aparato simbólico contraria-se com o cenário de crescimento

da

violência

na

cidade

que

é

estimulada

pela

desigualdade social e também espacial imposta pela especulação imobiliária, pela exploração do turismo sexual e como muitas outras cidades, pelo tráfico de drogas que se apropriou da pobreza para se desenvolver. Os jornais impressos que circulam em Natal são os jornais Tribuna do Norte, Diário de Natal, Novo Jornal, Correio da Tarde e Jornal Metropolitano. Dentre eles, os mais antigos e com maior tiragem são a Tribuna do Norte e Diário de Natal. Todos eles estão acessíveis on-line via internet (Ver capa dos jornais em anexo). Nos três principais jornais (TN, DN e NJ), as notícias da violência não são apresentadas em um caderno específico, como acontece com o Esporte ou Cultura&Lazer, mas aparecem diluídas dentro do caderno Cidades ou Cotidiano. Já Jornal Metropolitano, jornal semanal que circula na região metropolitana de Natal, as notícias da violência são veiculadas na coluna Policial, uma das principais deste noticiário. 102

Tal afirmação entra em contradição com o que exposto acima como a mídia que domina tudo. A mídia que constrói a realidade.

297

Nesta

pesquisa

que

está

em

andamento,

buscaremos

correlacionar os jornais que circulam na capital em torno de um caso em especial: o duplo homicídio ocorrido no bairro de Nova Parnamirim, região metropolitana de Natal, no dia 07/05/2012, cometido por um funcionário da residência. O caso ficou popularmente conhecido como “o homicídio de Nova Parnamirim”, “O caso do jardineiro” ou “O jardineiro infiel” (em alusão ao filme O Jardineiro Fiel, 2005). Optou-se por este caso em especial, por causa da comoção pública que causou e pelo empenho dos veículos de comunicação na cobertura do caso. A notícia apresentada no Diário de Natal (17-05-2012) resume o caso que será aprofundado: Raiva e ciúmes. Esses são os sentimentos usados pelo jardineiro João Batista Caetano Alves, 28 anos, para explicar porque matou a aposentada Olga Cruz de Oliveira Lima, 61, e sua filha, a estudante Tatiana Cristina Cruz de Oliveira, 36, no último dia 7, na residência das vítimas em Nova Parnamirim. Ele foi detido juntamente com a esposa, a dona de casa Marlene Eugênia Gomes, 28 anos, e o enteado de 13 anos, pela equipe da Delegacia Especializada de Defesa da Propriedade de Veículos e Cargas (Deprov) no bairro de Novo Amarante, na Grande Natal, ontem pela manhã. João Batista alega ter cometido sozinho os assassinatos e afirma ter pedido ajuda à companheira para roubar objetos da casa das vítimas. (...) O acusado confirmou ter torturado Tatiana para que ela passasse a senha de seus cartões, e que tentou matar a menina por asfixia utilizando um travesseiro, mas que depois desistiu, pois tinha uma filha de nove anos e não foi lá com a intenção de machucar a criança. (...) Olga e Tatiana Cruz foram encontradas mortas com requintes de crueldade na casa em que moravam na Rua Antônio Lopes Chaves, no bairro de Nova Parnamirim, Grande Natal, na manhã do dia 8 deste mês. Os corpos foram encontrados pelos vizinhos depois de desconfiarem do fato de a filha de Tatiana, uma menina de 10 anos, ter saído de casa na tarde anterior machucada e afirmar que não teria ninguém na residência. A aposentada sofreu mais de cinquenta golpes de faca e Tatiana teve um dos dedos decepados e foi amarrada a uma cadeira.

De modo geral, as notícias sobre a violência são apresentadas de maneira sensacionalista (em busca de chamar a atenção pelo apelo

298

emotivo), mas em pequenas dosagens para que os jornais não sejam qualificados como “imprensa marrom” do tipo “espreme que sai sangue”, como popularmente são conhecidos esses veículos. Mesmo assim, alguns veículos de comunicação, em especial aqueles mais destinados às classes menos escolarizadas ou mais pobres, não possuem restrições sobre os usos de imagens ou palavras. Esta distinção será melhor realçada ao longo do estudo. O objetivo central desta pesquisa é compreender como são construídas e apresentadas as representações sobre a violência urbana nos jornais impressos (e virtuais) de Natal e Região Metropolitana, percebendo a dimensão subjetiva das notícias e o seu caráter ético. Têm-se como delimitação os casos de homicídios, latrocínios ou aqueles que resultem em vítimas fatais, centralizando as discussões no estudo do caso anteriormente citado.

CONSIDERAÇÕES (IN)CONCLUSIVAS

Para se compreender de maneira mais clara as motivações pelas quais os veículos midiáticos desempenham de maneira tão empenhada papéis sociais diversos, é preciso atentar para as relações objetivas invisíveis, tanto econômicas quanto simbólicas, que exercem pressões e efeitos sobre os jornalistas, publicitários, fotógrafos, filmadores, editores de imagens, linha editorial, etc. Desta maneira, será possível perceber que existe uma relação simbólica que pesa sobre aqueles que compõem cada mídia, onde são agregados valores tanto objetivos quanto simbólicos - difíceis de serem quantificados – nos produtos finais de cada mídia. Os meios de comunicação exercem um papel fundamental no processo

de

construção

da

realidade,

levando

informações,

conhecimento, lazer e principalmente, estimulando sonhos individuais e coletivos. Neste sentido, é importante que a sociedade utilize sempre as 299

lentes da crítica nos momentos em que seja necessário polir ou aparar algumas arestas em um sentido inverso: partindo do expectador para o mediador (a mídia). Pois como nos afirma Bourdieu (1997, p. 63), “quanto mais um jornal estende sua difusão, mais caminha para assuntos que não levantam problemas. Constrói-se o objeto de acordo com as categorias de percepção do receptor”. E uma sociedade mais crítica é capaz de exigir produtos mais críticos e que não se limitem à superfície dos fatos. O clamor pela difusão de notícias manchadas de sangue, de lágrimas e indignação é sustentado pelo medo social que permeia as sociedades modernas. O medo da morte, da violência, das catástrofes naturais, do trânsito, etc., dão sustentação à campanha midiática em torno da indignação descomprometida. A indignação não é suficiente para a mudança da realidade, mas apenas altera os estados emocionais e fornece uma carga de medo e responsabilidade aos expectadores. Bordões popularmente conhecidos como “Isto é uma vergonha”, “Polícia é pra ladrão”, “Lugar de bandido é na cadeia”, apresentados em programas policiais como Linha Direta, Aqui Agora, Brasil Urgente, Repórter Cidadão, Cidade Alerta e Barra Pesada são estratégias midiáticas que estimulam a indignação social. É importante que neste contexto de violência difusa que tenhamos sensibilidade moral de comoção diante das adversidades que surgem, e que provoquem também reações de absurdo e indecência, mas a indignação que a mídia tem estimulado possui outra natureza, é definitivamente uma mercadoria como outra qualquer, que busca produzir é a terceirização da consciência moral, oferecendo um juízo moral pronto e enxuto ao expectador, impossibilitando que a complexidade das questões sejam postas em discussão. A análise dos jornais locais apontou traços do cenário brasileiro, dentre muitos, que a exploração da temática da violência apresenta características para atrair a atenção dos leitores mais pela curiosidade 300

e medo das questões ligadas à violência, do que aspectos reveladores de uma maior preocupação em difundir informações e provocar o debate sobre as violências cotidianas. O resultado é a banalização do terror, da angústia, das imagens violentas pela sua comercialização por meio da vitrine que são os jornais, a televisão e internet, representado um recorte que possibilita ao leitor “amenizar” ou “abafar” seus temores, visto que a maioria das notícias não dão informações sobre consequências ou rumos que os fatos tomarão após serem registrados pela mídia. Embora Isso possa parecer lugar-comum em análises sobre o conteúdo da mídia jornalística,

permanece

sendo

relevante

tentar

compreender

a

realidade construída pelo discurso midiático, que em todos os estratos sociais é considerado o único modo de acesso a muitos fatos distantes. Fatos que na mídia não são fatos, e sim discursos, nem sempre assumidos pelos leitores como tais.

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303

“A VIOLÊNCIA NAS IMAGENS”: O IMPACTO DAS IMAGENS E TEXTOS DE VIOLÊNCIA PUBLICADA EM JORNAIS DA CIDADE DE BELÉM.

Jorge Oscar Santos Miranda103

Resumo: Este trabalho é parte integrante da pesquisa de dissertação desenvolvida sobre a temática violência e mídia, em particular, as imagens fotográficas no jornal impresso. A proposta do artigo é fazer uma discussão acerca de como a superexposição das imagens de violência nos meios de comunicação inibir o ato reflexivo, ou melhor, provoca o efeito choqueiforme de Walter Benjamin. Isso tem contribuído gradativamente para uma regressão dos sentidos humanos, aponto de provocar (de) sensibilização no público e, principalmente, nos produtores dessas notícias: os jornalistas. Por isso torna-se pertinente pensar a dimensão da eticidade no contexto dos meios de comunicação já que estão presente no cotidiano.

Palavra-Chave: Violência; Imagem; meios de comunicação.

APRESENTAÇÃO

Um dos questionamentos feito pelo homem gira em torno da violência. Tentar entender as múltiplas razões que levam a essa prática, talvez seja um grande desafio para quem se dispõem a investigá-la. Os caminhos que levam na busca da compreensão desse fenômeno apresentam uma amplitude de abordagem a partir de determinadas áreas do conhecimento como: a filosofia, psicologia, antropologia, sociologia, etc; cada uma delas têm sua óptica de análise que possibilita interpretar e explicar a violência e seus desdobramentos no contexto social. Cabe ao pesquisador optar pela vertente que melhor auxiliará na busca de uma resposta do fenômeno social estudado, 103

Graduado em Ciências Sociais (UFPA), Mestre em Ciências Sociais (PGCS/UFPA). Integrante do Grupo de Pesquisa Violência e Diálogo: Investigações em torno da sociologia da Ética. Professor colaborador do PARFOR-UFPA no curso de Ciências Sociais e pesquisador colaborador do Projeto de Pesquisa Mídia e Violência: as narrativas midiáticas na Amazônia [email protected].

304

neste caso, em questão: a construção das noticias, através das imagens fotográficas de violência urbana publicadas no jornal impresso. A escolha por um campo do conhecimento - aqui faço uso da perspectiva sociológica-, não elimina o diálogo interdisciplinar que possa surgir no decorrer do desenvolvimento da pesquisa. A grande evidencia que é dada a violência na sociedade está associado ao espaço urbano, ela aparece como sintoma, símbolo, representação “da civilização e da barbárie moderna” (WAISELFISZ, 2011). A violência do cotidiano, em particular, a urbana tem sido nos últimos tempos uma das principais preocupações no Brasil e no mundo, o que representa certo problema na organização social. Perante a essa questão nota-se, paralelamente, à ocorrência de elementos que trazem “uma profunda mudança nas formas de manifestação, de percepção e de abordagem de fenômenos que parecem ser características marcantes da nossa época: a violência e a insegurança.” (WAISELFISZ, 2011, p.10), que são explorados em sua potencialidade pelos meios de comunicação de massa. A apropriação pela mídia leva a pensar aquilo que Mongin (1998) denomina de “metamorfose da violência”. Uma violência que já não é mais assentada somente na agressão física e sim, aquela que nos chega através da imagem midiatizada. É assim que encontramos as imagens de violência urbana no cotidiano, superexposto aos olhos do público. Na sociedade contemporânea o meio de comunicação visual (cinema, fotografia, televisão, etc.), ganha destaque, os atores sociais passam a ter no visual sua referência; as relações sociais passam a ser mediadas pelas imagens que se apresentam na forma de espetáculo, algo prefigurado por Guy Debord no século XX, entretanto, presente na atualidade. A imagem (tanto a fotográfica quanto as televisivas) sofreu avanços progressivos da tecnologia, transformações que, a priori, tinha a pretensão - ou ainda tem – de se tornar cada vez mais próximo da 305

realidade, todavia, o continuo incremento tecnológico, trouxe um lado negativo e, que a princípio passa despercebido na sociedade: a modificação no sentido visual; que pode ter na superexposição das imagens de violência veiculada pela mídia, caminhos inclinados em direção a “construção de um imaginário social assentado na banalização da morte, no silêncio e na incomunicabilidade das pessoas, na ruptura dos laços sociais.” (MENDONÇA, 2011, p.7). A predileção que as imagens de violência urbana têm ocupado na sociedade através da mídia (televisionada ou impressa) consegue capturar a atenção do individuo. Esse evento aparenta ser óbvio, no entanto, merece uma reflexão acerca da temática, haja vista que, todo o dia acompanha-se um grande fluxo de informação dessa natureza que embora noticie o fato, rápido ele cede espaço ao espetáculo e sensacionalismo do grotesco noticiado. O público que ler essa informação manifesta uma postura de frieza na presença das imagens de violência – nota-se certa atrofia na sensibilidade do sujeito, agregado ao sentimento de estranheza. É assim que podemos encontrar no cotidiano do espaço urbano (nas ruas, bancas de jornal, ponto de táxi, feiras livres, etc.) os leitores de jornal impresso na cidade de Belém, sobretudo, aqueles que buscam a informação no caderno Policial. Os jornais impressos que circulam hoje em Belém, tempos atrás, aproximadamente, há dez anos não tinham como atração a violência estampada de maneira grotesca, no caderno policial. A “estética do trash” (FERREIRA, 2005) não fazia parte do cotidiano do belenense, lembro-me desse período, pois, o jornal impresso fez parte da minha formação educacional na prática da leitura (junto com literatura e gibis); o grande público, em especial, os homens tinham preferência pelo caderno de esportes – ainda tem, mas , em menor importância -, porém, perdeu o lugar para o caderno policial que passou “implantar” uma leitura do dia-a-dia assentado no medo e na

306

insegurança, sensações que insinua ao público o crescente aumento da violência urbana. Essa transformação ocorrida na produção e na veiculação da notícia configura-se numa agressão aos sentidos humanos, em particular, o visual, e que ao mesmo tempo funciona como “disfunção narcotizante”

104,

já que o fluxo informativo de imagens de violência

veiculado pela mídia pode ter a capacidade de ameaçar as relações sociais. A modificação do sentido visual pode ter uma estreita relação com o avanço das tecnologias de comunicação, Mendonça (2011) explica que isso pode conduzir a uma regressão ética dos homens e da sociedade. Consequência que na maioria dos casos é negligenciada pelos produtores da notícia (de violência), o jornalista, uma vez que, o contato diário e o grande fluxo de acontecimentos que dão origem as informações dessa natureza, leva-o a agir de maneira a não considerar a imagem do Outro (que é notícia nos jornais), dotada de humanidade, mesmo que esteja morto. Há outro lado nesse contexto pouco explorado quando tratamos da violência nos meios técnicos de comunicação de massa: é o envolvimento dos jornalistas, responsáveis na construção, ou melhor, na produção das notícias sobre a violência. Questionados enquanto a sua prática de noticiar o cotidiano de extrema violência, esses profissionais trabalham em meio a permanente tensão, de um lado, noticiar os “fatos reais” e de outro, suprimir qualquer manifestação de humanidade diante dos indivíduos que serão a noticia (relação que se estende ao cadáver fotografado até as imagens que chega ao público), isso está para além da discussão da imparcialidade ou / isenção profissional e, também, do aspecto mercadológico da informação, mas, tem haver diretamente com a construção de um trajeto que leva para uma “vida danificada” (MENDONÇA, 2011) desses 104

Termo criado por Lazarsfeld e Merton para explicar os efeitos dos meios de comunicação de massa na sociedade.

307

profissionais, vítimas da própria violência que notícia. Em suas crônicas sobre o cotidiano não há espaço para dissertar o universo que envolve o seu métier diário, repleto de experiências que incide diretamente em suas vidas. Dessa maneira a pesquisa a pretende fazer uma análise centrada na discussão dos aspectos do comportamento ético do homem contemporâneo frente aos meios de comunicação de massa, partindo da perspectiva dos jornalistas da mídia impressa do caderno policial. Os profissionais que trabalham nesse gênero do jornalismo recebem severas criticas quanto a sua conduta de trabalho e, no entanto, pouco são escutados sobre o que pensam dela, sobretudo, o tema que envolve o universo da sua profissão: a violência e morte. IMAGEM E VIOLÊNCIA NA MÍDIA O presente referencial teórico tem por objetivo destacar algumas criticas manifestada em relação à temática: imagens de violência noticiadas pela mídia. São perspectivas teóricas que versam sobre a superexposição dessas imagens de violência no cotidiano. A sociologia sempre confiou à análise social, através das palavras; à imagem passava despercebido nos estudos dos fenômenos sociais. No entanto, ela – a imagem – ganhou importância no cotidiano dos sujeitos segundo, Kossoy (2001) gradativamente a sociedade, se viu, substituído na alvorada do século XX, por sua imagem fotográfica (grifo do autor), concedendo ao sujeito a ação de manifestar a expressão da sua individualidade. “A imagem provoca fascínio. O poder que tem nas nossas sociedades comprova-se pelos processos de mudança social e política que despoletou.” (FERRO, 2005, p.377) dada esta relevância que a imagem adquiriu na sociedade é que, então, a sociologia busca ampliar seus os horizontes de compreensão do social, um percurso sociológico que caminha ao encontro do visual - iniciado nas ciências sociais pela antropologia. 308

Na sociedade contemporânea, altamente mecanizada, onde se estabelece o controle tecnológico de todos os ambientes da vida, os indivíduos precisam se adaptar ao ritmo e à aceleração das máquinas. A procura por essa adaptação “acaba também provocando uma mudança no quadro de valores na sociedade” (SEVCENKO, 2003, p.63). A aceleração dos ritmos do cotidiano, também, aprofunda mudanças na sensibilidade e nas formas de percepção sensorial do individuo. “A supervalorização do olhar, logo acentuada e intensificada pela difusão das técnicas publicitárias, incidiria, sobretudo no refinamento da sua capacidade de captar o movimento, em vez de se concentrar, como era o habito tradicional, sobre objetos e contextos estáticos.” (SEVCENKO, 2003, p.64). O autor evidencia a transformação no olhar do sujeito na contemporaneidade a partir da inserção da tecnologia. Com a presença acentuada de uma “civilização da imagem”, (JOLY, 1996)·, cria-se a sensação de ameaça em relação ao destino da sociedade, pois, quanto maior o fluxo de imagens é apresenta ao sujeito, cresce também as possibilidades delas enganá-los, através de mundos ilusórios. A imagem que hoje tem capacidade de ludibriar. Teve no passado para algumas civilizações, inclusive, a ocidental outro significado o qual estava ligado, a morte. Regis Debray (1994) comenta que o nascimento da imagem tinha na morte o seu princípio e, que ao tentar desconsiderá-la aponto de apagar da vida social, o homem consegue gradativamente fazer com que a imagem perca sua vivacidade, sendo assim, a necessidade de imagens para a sociedade também passa a ter menos valor. Quando Debray coloca a morte como elemento fundador da imagem, ele sobre hipótese nenhuma quer justificar a banalização da morte, algo que ocorre na atualidade, principalmente, quando apropriado pela mídia. O autor busca mostrar que a exaltação da morte tinha caráter de simbólico e, nele criava-se a imagem que eram cultuada e respeitada, exemplo disso, são as sepulturas do período Aurignacioano (30.000 a.C), os sarcófagos do alto 309

Egito (2.000 a.C), os túmulos reais de Micenas com suas máscaras funerárias em ouro (1.500 a.C), Catacumbas cristãs, urnas para ossadas da alta Idade Média ( séculos V e X), etc. Todas tinham uma representação através da imagem : No Egito, em Micenas ou Corinto, as imagens postas a salvo deveriam ajudar os defuntos a prosseguir suas atividades normais, ao passo que nós devemos interromper as nossas para visitar nossos mausoléus. Interrupção tardia da preocupação bem prática de sobreviver que viemos a batizar com o nome de Estética. (DEBRAY, 1994, p. 22).

Numa análise da imagem a partir do avanço técnico, Debray (1994), assinala que vivemos na era da videoesfera, em que a imagem foi substituída pelo visual, ou seja, houve uma época que para a imagem ser aceita como verdade se exigia dela o princípio de realidade, no caso do visual, agora basta apenas satisfazer ao princípio de prazer. Debray atenta para a substituição da imagem pelo visual. É o princípio de prazer que influência o sujeito (principalmente na atualidade) que acompanha os noticiários pela mídia impressa todos os dias e aguça um deleita aos leitores, colocando à vista imagens de extrema violência. O leitor pode até se angustiar com a imagem, mas, o sentimento é substituído por outro, o prazer; em ver os detalhes do corpo da vitima “o que importa, nessas imagens, é que elas existem, e que sejam vistas.” (BENJAMIN, 1985). Outra critica pertinente sobre o poder que a imagem adquiriu na atualidade é feita por Moisés Martins·, segundo ele, a incorporação da tecnologia nas imagens produz simulações perfeitas que forja uma harmonia entre os sujeitos, “o que é um grande passo feito no sentido da idolatria.” (MARTINS, 2003). Para Martins a preocupação com o desvirtuamento que a imagem poderia causar tem seu problema fundamentado na diabolia

105

(grifo do autor), no poder de separação

105

Segundo o autor a diabolia é a separação imediata do corpo e do mundo, que se agrava com a implantação dos recursos tecnológicos. O ponto de partida do autor para a construção do conceito está nos escritos do Antigo Testamento que impediu as imagens de Deus, uma vez que nelas espreitava a idolatria, que é um efeito da rebelião da imagem. Autotelizando-se, as imagens deixam de remeter para fora de si e negam, deste modo, a sua essencial dependência.

310

que ela traz. Isso é constatado através das narrativas bíblicas, o Antigo Testamento, descreve a situação em que Moisés pronuncia ao povo o Decálogo escrito por Deus, dentre os quais, destaca-se: “3Não terás outros deuses além de mim. 4Não farás para ti ídolos, nem figura alguma do que existe em cima, nos céus , nem embaixo , na terra , nem do que existe nas águas, debaixo da terra.” ( Êxodo, Capítulo 20 ). Apresenta-se de maneira clara, nessas leis a idolatria elemento que transforma a natureza da imagem, ela facilita o processo de autonomia a

partir

da

negação

de

referenciais

(como

foi

mencionada,

anteriormente, a importância da morte e a vida). Com a velocidade tecnológica a imagem confirma de vez sua condição de diabolia (grifo do autor) e separação, como, atesta Martins (2003) em que a imagem definitivamente separou-se do corpo e do mundo: Em todo o caso, pela tecnologia, a imagem dispensa o mundo, já não é cópia dele. E porque a tecnologia nos garante a ilusão de imagens produzidas nas mais perfeitas harmonias ecológica e transparecia humana, o mundo deu consigo a fazer-se à imagem da imagem, a replicar-se à semelhança de um mundo protésico e clónico, não sendo mais a origem de coisa alguma. (MARTINS, 2003, p. 129).

A impossibilidade de o sujeito perceber o que é mostrado, através da exposição de imagens violentas pode ser atribuída à sucessão brusca e rápida de imagens; fragmentos que se impõem ao espectador

ou

/

público

como

uma

sequência

de

choques,

interrompendo-lhes a capacidade de associação de idéias, a “estética do choque” (BENAJAMIN, 1985) passa a tomar conta do sujeito. O mundo visual regido pela imagem tornou o visível, mais próximo e palpável, capaz de encantar o espectador. O visível passar a ser e ter um

“olhar

burocrático”

(JAMESON,

2006)

que

prima

por

uma

mensuração do outro e de seu mundo. O meio visual em si mesmo constituiu o veiculo através do qual vários públicos são seduzidos e “interpelados”: é o próprio visual

311

que abstrai esses públicos de seus contextos sociais imediatos, criando a sensação de uma materialidade e concretude cada vez maiores, visto que o que se consome esteticamente não é abstração verbal mas, sim, imagem tangível. (JAMESON, 2006, p.154).

Como são apresentadas as imagens de violência na mídia (em especial, a mídia impressa)? São exibidas sobre as insígnias do espetáculo. Ele reveste o caráter informativo da mensagem contida na imagem. E, proporciona, o envolvimento capaz estimular a sua veneração; consegue estabelecer um grau íntimo que passa a guiar os sujeitos que a observam, assim, configura-se definitivamente que “o espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda vida humana- isto é social- como simples aparência.” (DEBORD, 1997, p. 16), o espetáculo é o responsável em arquitetar as relações sociais, portanto, torna-se, segundo o pensamento de Debord (1997) o elemento que constitui no modelo atual da vida dominante na sociedade aonde realidade começa e se encontra no espetáculo, proporcionando, uma troca e nela se estabelece a alienação, através dela está o alicerce da sociedade existente. A alienação do espectador em favor do objeto contemplado (o que resulta de sua própria atividade inconsciente) se expressa assim: quando mais ele contempla, menos vive; quando mais aceita reconhece-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existente e seu próprio desejo. Em relação ao homem que age, a exterioridade do espetáculo aparece no fato de seus próprios gestos já não serem seus, mas de outro que representa por ele. É por isso que o espectador não se sente em casa em lugar algum, pois o espetáculo está em toda parte (DEBORD, 1997, p. 24).

Analisando a influência da estética de imagens de violência, Olivier Mongin (1998), comenta que rejeitar as imagens da violência acreditando que, elas não apresentam nenhuma relação com a violência efetiva das nossas sociedades é esconder no intimo uma

312

apologia, vontade para que se realize. Porém esta mesma atitude de rejeitar funciona como proteção do sujeito a própria violência. A grande carga das imagens de violência não é apenas o reflexo ou a exacerbação da violência que nos rodeia, mas também uma maneira de nos protegermos dela. A natureza da violência mudou assim como a sua difusão: ela é cada vez mais indiscernível, lateral, está cada vez menos controlável, e faz cada vez mais medo. (MONGIN, 1998, p. 18).

Mongin indica certa mudança na relação do individuo para com a violência, segundo, o autor, ela está centrada na experiência física, sensível nas imagens que parece ser intolerável em alguns momentos, no entanto, a representação contemporânea da imagem apresenta-se como um fluxo ininterrupto, que, por conseguinte pode gerar prática de violência.

A postura contemporânea do espectador consiste em desembaraçar-se desta experiência da violência descarregando-a cegamente numa grande latrina: ele olha o espectáculo da violência que gira sobre si mesma julgando assim proteger-se dela mas deixando-se devorar em fogo lento (..) Portanto, esta insensibilização à violência acompanha-se da constatação de uma violência exterior cada vez mais insuportável e de uma interiorização da violência que se esconde sob a mascara insensível do espectador. (MONGIN, 1998, p. 162-163).

A midiatização106 da violência contribuí para naturalizar as imagens de violência. Através da mídia se produz visibilidade e, se constroem os sentidos de algumas práticas sócio-culturais. Alda Costa (2010) a atenta sobre a característica de visibilidade da mídia, segundo,

106

FAUSTO NETO, Antônio. Midiatização, prática social – prática de sentido. Rede Prosul, paper CNPQ/Unisinos, 2006. Conceito que representa o processo de emergência de uma nova ambiência existencial, na qual a lógica da mídia atravessa à ordem social e afeta, juntamente com a tecnologia, as formas de ser e de perceber o real.

313

a autora antes das informações do mundo chegar até o homem, ela passa primeiramente pela mídia, desta maneira ganha importância na sociedade. É interessante destacar que os indivíduos e as formas de relação entre eles são alimentadas pela mídia porque a maior parte dos acontecimentos acerca do mundo, dos modelos de papel, dos valores e dos estilos de comportamento chega à mente humana não pela experiência direta do mundo físico e das relações com os outros, mas cada vez mais pela mediação dos meios de comunicação. E diversas questões passam a habitar a mente humana, a partir da discussão por esses meios. Esses meios se tornam fundamentais como suportes de inclusão e exclusão sociais e de controle das coisas que acontecem no mundo. (COSTA, 2010, p. 63).

O que é observado sobe a violência ambientalizada pelos meios de comunicação de massa, especificamente, o jornal impresso é uma conjugação da violência com “expressões estéticas” (PEREIRA, 2000). A imagem de violência ao ser estetizada pela mídia passa por um processo de tradução que favorece e estimula o consumo pelo público. O que pode criar um poder de fascinação pela violência e, quando apropriada pelo espetáculo altera os sentidos das manifestações, pois, “torna os indivíduos menos sensíveis às diferentes realidades expostas. Ela -a violência- se torna mais um (entre tantos) produto consumível, assimilável, ao ser submetido aos procedimentos da repetição midiática (PEREIRA, 2000, p. 18). Pode-se dizer que a ambientalização da violência pela mídia tem sua base na “estética do trash” (FERREIRA JR, 2005), ela, alimenta as imagens de violência que tanto é mostrada nos jornais impressos. Ela tem participação direta na banalização da violência e, também, da morte já que a repetição massiva provoca uma (des) sensibilização no indivíduo, neste caso, o leitor que tem sua percepção deformada. “Esta repetição, que cria um reconhecimento do desqualificado, não apenas deforma a capacidade de comoção, mas também a possibilidade de critica.” (FERREIRA JR, 2005, p. 29).

314

Belarmino Costa (2002) explica que as imagens de violência na mídia fazem parte de um contexto assentado no que ele chama de lógica de produção jornalista. É através dela que a “estética da violência” (COSTA, 2002) encontra-se imbricada na natureza dos meios de comunicação de massa, isso, ultrapassa as fronteiras do caráter informativo, pois está subordinada à natureza das mídias que se justifica pela racionalidade técnica. A estética da violência, dado o estágio avançado das forças produtivas do capitalismo, deve ser compreendida pela racionalidade técnica presente na conformação do formato das mercadorias simbólicas. Sua interpretação não se esgota apenas na manifestação do conteúdo da noticia, pois é a expressão da aparência do fenômeno do sensacionalismo que, em sua totalidade, incorpora também a forma e as condições de sua produção. (COSTA, 2002, p. 169).

Isto favorece a compulsão pela novidade informativa e a exploração da curiosidade, do grotesco de maneira rápida e compromete gradativamente à formação da sensibilidade do receptor (o público leitor) que deixar de se sensibilizar quanto ao trágico, à miséria, à dor. “A repetição continuada da violência amortiza a indignação e age no sentido de sua banalização” (COSTA, 2002, p. 135). Essa situação leva a refletir sobre um aspecto importante diante do avanço da tecnologia sobre a imagem: a regressão no olhar do sujeito exposto as imagens de violência. Mendonça (2011) esclarece esse evento a partir da reflexão com Walter Benjamin sobre a arte. Segundo ela, o olhar do homem moderno rompeu com a sacralidade da obra de arte; mergulhado na técnica a obra de arte tornou-se vazia de sentido. Theodor Adorno, também havia realizado uma análise da regressão de sentidos humanos (audição) pela tecnologia. A partir da discussão iniciada pelos pensadores, a autora traz uma proposta para o pensamento em relação à imagem em tempos de apropriação pelos meios técnicos, embora se refira diretamente à televisão, sua análise auxilia na compreensão das imagens de violência urbana tão presente 315

na mídia impressa (da cidade de Belém), possibilita refletir sobre o comportamento ético do homem contemporâneo frente aos meios de comunicação de massa. Paul Virilio (2002) chama a atenção para a transformação ou, melhor, para o novo direcionamento do sentido visual adquirido pelo homem contemporâneo, segundo o autor, o homem da atualidade deixou de olhar e contemplar o que se apresenta diante de sua retina, uma vez que, “já não é para as estrelas que lançamos o olhar; aquilo que hoje olhamos são ecrãs.” (VIRILIO, 2002). A mudança do olhar mencionada por Virilio aparenta ser um fato simples e, inevitável no cenário de progresso tecnológico, em que a velocidade torna-se um valor, a qual apressa os eventos da vida como, também, acelera sua destruição, neste caso, o sentido visual do homem. Essa deformação do sentido humano agrava-se pela supervalorização das tecnologias de comunicação, o que pode ser compreendida na perspectiva de Virilio como ‘acidente’, ocasionado pela inovação da técnica que ver na sociedade tecnocrata e positivista o seu repouso, já em Mendonça (2011) a noção regressão ética dos homens e da sociedade (grifo da autora), ilustra bem esse ‘acidente’, que modifica o comportamento ético do sujeito tomado pela tecnicidade. A autora esclarece que tal regressão ética que pode surgir de uma regressão dos sentidos, bem como, do senso estético. Porém nem mesmo certo refinamento estético é garantia de livrar o homem da barbárie. Um meio técnico de comunicação como à televisão permite levantar duas análises sobre a regressão ética que pode afetar o meio social: “fenomenologicamente a audição e visão possuem uma força singular em termos de conteúdo para a compreensão da eticidade das relações interhumanas e, fisicamente estes são os sentidos mais profundamente afetados na relação do homem com o objetivo televisivo”. (MENDONÇA, 2011, p. 4). Na análise feita por Mendonça há a retomada do conceito de “ofuscamento” desenvolvida por Adorno e Horkheimer para explicar 316

a postura da sociedade diante do projeto iluminista a razão que iria libertar o homem. “Ofuscamento, irreflexão, dizem respeito a nãopercepção da humanidade presente em cada ser, humanidade elidida na relação algoz-vítima. O ofuscamento expressa e alimenta uma sociedade doentia na qual os sujeitos perdem a perspectiva do Outro e de si – mesmos” - grifos meus- (MENDONÇA, 2011, p. 5). Hoje qual a nova face do ofuscamento? É o espetáculo107 (conceito explicado anteriormente), ele é que cega e violenta os espectadores e a sociedade - basta recordar a imagem fotográfica que expõe de maneira degradante o cadáver nas publicações de jornais todos os dias. O espectador e a sociedade cegam, pois não reconhece o Outro, mesmo morto, como ser humano : a superexposição da violência nos diversos níveis que esta possui, avança também para a construção de um imaginário social assentado na banalização a morte, no silêncio e na incomunicabilidade das pessoas, na ruptura dos laços sociais (...) e na frieza diante dos grandes ramas e do mistério da vida. (MENDONÇA, 2011, p.7).

Para Mendonça, o mundo contemporâneo está assentado nas técnicas de envilecimento (MARCEL apud MENDONÇA, 2011, p. 9)·, que corresponde à construção de padrões de comportamento social marcado pela frieza que rodeia a as esferas da vida do homem. Para ela a prevalência do Problema, sobre o Mistério (conceitos apoiados em Gabriel Marcel) altera a visão de mundo, o Problema, configura-se através de soluções que a razão instrumental operacionaliza se eleva diante do que Mistério está ligado à vivência do ser humano que compartilha sentimento e emoções que já não conseguem ser mensuradas pela racionalidade. Diz Mendonça: O problema, “é algo que está colocado diante de mim”, o que eu posso solucionar pelos caminhos da razão instrumental (...) a existência humana é feita e entrelaçada, por mais que o ser humano o negue, á vida, à fé, à morte, ao amor, á solidariedade, etc. Estas são realidades existências, mistérios 107

Guy Debord conceitua espetáculo não como um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens.

317

jamais apreensíveis pela razão cartesiana. Nós nos relacionamos com essas realidades, não equacionamos. (MENDONÇA, 2011, p. 10).

Acerca do Mistério e Problema, citado no parágrafo anterior abriu-se o caminho para levantar o conceito cegueira ética108 (grifo da autora), exortado por Mendonça como uma limitação dos sentidos humanos que passa a acompanhar o sujeito contemporâneo que fica entregue a total ausência de relações éticas com o outro em suas dimensionalidades:

da

natureza,

do

homem

e

do

absoluto

(transcendente). Segundo a autora, o mundo do problema cega o homem da atualidade, uma vez que, o excesso de imagens de violência , atrelada ao incremento da tecnologia acaba por soterrá-lo e, é a partir do uso demasiado da técnica que Mendonça ( 2011 ) critica o excesso da profusão de objetos e de imagens como condutores em potencial da cegueira ética. A “sociedade-espetáculo” é vista por Mendonça, como tento nas imagens televisionadas seu ápice, porque é nelas que a profusão da violência torna-se presente no cotidiano já que:       

Impede a reflexão dos sujeitos mergulhados na cultura choqueiforme. A velocidade e o choque de imagens estão materialmente na base de nossa cegueira ética. Impede a escuta e a visão éticas do outro na mesma medida em que regridem os sentidos diante das imagens e dos sons espetaculares. Reproduz, na esteira da ausência de reflexão e da precessão de simulacros, comportamentos violentos veiculados pelas imagens. Afasta o homem do real em favor de uma vida de substituição daquele pelo imaginário televisivo. Banaliza a morte a partir da sua superexposição. Aprofunda o vazio ético, o vazio existencial do homem contemporâneo. Aprofunda os estados de impessoalidade de incomunicabilidade típicos da situação levisiana do Il y a ( MENDONÇA, 2011, p.13)

108

Mendonça entende por cegueira ética uma situação subjetiva e social na qual as pessoas não conseguem estabelecer relações éticas com o outro, entendido em sua tripla dimensão: a natureza, os homens e o absoluto. Sair de si mesmo, se evadir, no sentido levinasino, e estabelecer laços de amizade, de solidariedade, de compaixão e de amor com o outro se torna impossível.

318

Esses campos privilegiados de profusão levantado pela autora estabelece semelhança imediata com as imagens fotográfica de violência publicadas na mídia impressa, em especial, em centros urbanos como é o caso da cidade de Belém onde pode ser notado a realização (pessoal) do público diante da informação do grotesco diariamente anunciada. A breve discussão teórica apresentada até, aqui, permite nesse primeiro momento de construção do projeto de pesquisa mostrar um panorama de como a imagem se aduz em nossa sociedade, principalmente, quando o fenômeno social da violência vem em anexo, também, estimula a buscar a interpretar a relação: homem (ou sujeito) e meios técnicos de comunicação no contexto atual.

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Rio de Janeiro

:

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321

CIDADE E JARDINAGEM SOCIAL: MEDO, ESTIGMA E SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL NA CIDADE DO BELO JARDIM, NO AGRESTE PERNAMBUCANO

José Adilson Filho109

RESUMO: Este texto procura discutir como o processo de modernização econômica vivenciado pelo Brasil nas duas últimas décadas e, simultaneamente, influenciado pelos efeitos da globalização – contribuiu para ampliar e aprofundar mal-estares, medos, estigmas e segregação espacial entre indivíduos, grupos e classes sociais em pequenas e médias cidades brasileiras. Pretende-se mostrar, sobretudo, como a cidade metaforicamente é pensada e materializada sob a lógica da jardinagem.

Palavras-chave: cidades médias, estigma, medo, jardinagem social.

INTRODUÇÃO

Trataremos de analisar e compreender o processo de segregação espaciosocial na cidade do Belo Jardim, localizada no agreste de Pernambuco e a uma distância de 150 km da cidade do Recife, a capital do Estado.1 Ela possui uma população estimada em cerca de 80 mil habitantes e apresenta uma estrutura econômica relativamente dinâmica com algumas indústrias de médio e grande porte, diversos bancos, dois hospitais, várias clínicas, além de duas faculdades, uma instituição federal de ensino e um comércio bem diversificado que atende razoavelmente o consumo das classes médias e das camadas populares. Todavia, Belo Jardim não é somente

109

Graduado em História (Faculdade de Formação de Belo Jardim), Especialista em História Econômica (Faculdade de Caruaru-PE), Mestre em História (UFPE) e Doutor em Sociologia (UFPB). Professor Adjunto (UEPB) e Professor/Pesquisador (FAFICA). Líder do grupo de pesquisa "\Cultura Política e Poder Local". Membro do Grupo de Pesquisas "Antropologia da Política, Cultura, poder e mídia". [email protected].

322

constituída por flores, há também muitos espinhos e arbustos, aos quais uma parte da sociedade, isto é, a sua elite procura se distanciar ou combater. Estes compõem a outra face do Belo Jardim – aquela classificada como caótica, perigosa, incivilizada e que vive da economia informal, do trabalho precarizado, do salário mínimo. Destes pelo menos umas 11 mil famílias vivem com a ajuda do programa Bolsa-Família. Eles são vistos e concebidos como o lado destoante do “Belo Jardim” das elites, ou seja, as suas ervas daninhas. São aqueles que sofrem a ação da jardinagem quando rotulados, estigmatizados e segregados como feios, sujos e malvados. Mas raramente há flores sem espinhos ou plantas sem arbustos. A “bonança” produzida pelo “novo milagre econômico brasileiro” aumentou os deslocamentos e a mobilidade espacial das antigas e das novas elites locais, produzindo (des)encontros entre os diferentes e desiguais da cidade. Só que neste caso, paradoxalmente, são foram flores que “invadiram” o território das “ervas daninhas”. Esta coabitação não se materializou sem a ajuda de cercas e fronteiras, fossem essas simbólicas ou não. AS NOVAS ÁREAS DA JARDINAGEM SOCIAL DO BELO JARDIM. Os processos de segregação espacial seguem os princípios da jardinagem moderna, isto é, a necessidade que têm as elites de fugirem das indeterminações e ambiguidades geradas pelos (des)encontros com os indesejados. Livrar-se dessa situação desconfortante é o que tem provocado a invenção das chamadas “áreas nobres”. O discurso do medo, da busca de segurança, tranquilidade e paz, vem sendo usado sistematicamente para justificar a mixofobia das elites com relação à proximidade e vizinhança com os mais pobres da cidade.

Sendo um componente permanente da vida urbana, a presença perpétua e ubíqua de estranhos visíveis e próximos aumenta em grande medida a eterna incerteza das buscas existenciais de todos os habitantes. Essa presença, impossível de se evitar senão por breves momentos, é uma fonte de ansiedade inesgotável, assim como de uma agressividade geralmente adormecida, mas que volta e meia pode emergir.2

323

Contudo, a fonte desta “inesgotável ansiedade” não se aloja necessariamente no medo à presença “daninha” dos outsiders, mas deve-se, principalmente, à concepção individualista e higienista das próprias elites. Talvez seja esse o ponto nelvrágico da questão e que não aparece como fator principal. O problema maior é de quem tem medo de “cair nas armadilhas da ambivalência, evitando as misturas e as indefinições de uma realidade confusa”3. Nesse caso, a mixofobia ao pobre e ao estranho explica o fechamento das elites à vida pública. Não importa o tamanho do sítio urbano, fugir ou desviar-se a qualquer custo da companhia indesejável dos mais

pobres

tem

sido

o

principal

desafio

vivido

pelas

elites

na

contemporaneidade. Na cidade de Belo Jardim, há duas décadas verifica-se um processo de

deslocamento

contínuo

das

elites

locais

(empresários,

médicos,

advogados, engenheiros, professores, funcionários públicos, etc.) para localidades mais distantes do centro urbano. O novo endereço da jardinagem local fica nas proximidades do Instituto Federal de Educação e Tecnologia (IFE), da Autarquia Educacional de Belo Jardim (AEB) e nos arredores do Colégio Frei Cassiano de Comachio, do Colégio Bento Américo e da Fábrica de Acumuladores Moura.

Habitar em tais localidades significa para a classe dos emergentes – professores, médicos, engenheiros, advogados, empresários, políticos e segmentos do funcionalismo público e privado – não apenas a possibilidade de ter mais paz e qualidade de vida, mas também e, principalmente, a chance de viver num espaço de semelhantes. O seu desejo de viver num habitat de iguais, pode ser interpretado como uma atitude eugenista e burguesa que se reflete no distanciamento físico e simbólico com relação aos contatos de primeiro grau com os indivíduos considerados diferentes e problemáticos.4

A concepção estética presente na construção dessas moradias obedece a um processo que atualmente predomina nos grandes centros urbanos do Brasil. As casas e as ruas são projetadas para autossegregação dos seus próprios proprietários. Não se trata de áreas verticalizadas tais como blocos de apartamentos ou de condomínios fechados, mas de “casas grandes”, protegidas e isoladas por muros altos, cães e cercas elétricas. Essa é

324

a

concepção estética

que

marca

as

novas

áreas

de jardinagem,

denominadas por seus moradores de “áreas nobres”. José Geraldo de Sousa Couto, 54, nascido, no Recife, empresário do setor imobiliário, foi um dos primeiros a investir na venda de terrenos, em áreas próximas à AEB (Autarquia Educacional de Belo Jardim). Atuando há quase 20 anos nessa localidade, praticamente viu nascer o bairro da Boa Vista, o qual é atravessado pela Av. Cel. Antonio Marinho. Conforme o seu relato, o processo de ocupação espacial assume formas distintas entre os dois lados da Av. Cel. Antonio Marinho. Aqui chamarei de Lado A, a parte onde fica o escritório de vendas de lotes, isto é, à direita de quem vai à AEB. Neste lado, observa-se que o processo de apropriação espacial deu-se de modo mais heterogêneo, pois misturou na mesma área segmentos das chamadas classes A e B (médicos, advogados, empresários, engenheiros, professores universitários, etc.) e da classe C (operários, pedreiros, marceneiros, mecânicos, professores estaduais e municipais, militares, pequenos comerciantes). MAPA DOS BAIRROS: BOA VISTA, PONTILHÃO E MARIA CRISTINA.

A trampolinagem feita por vários compradores de lotes fora um dos aspectos responsáveis por essa heterogeneidade espacio-social. Segundo o empresário José Geraldo, os lotes vendidos tinham inicialmente o formato padrão de 12 metros de largura por 30 de comprimento. Porém, muitos 325

compradores burlavam o contrato dividindo o terreno adquirido em lotes menores para depois revendê-los. Assim, o que seria apenas uma residência transformava-se em duas. As relações de parentesco facilitavam ainda mais a prática da trampolinagem, uma vez que a divisão do lote convencional em partes menores tinha por objetivo geralmente atender aos desejos dos pais em ver sua família vivendo junta. Esse modelo corresponde principalmente às famílias de trabalhadores e pequenos proprietários, cuja prole é ainda relativamente numerosa e, por conseguinte, estimula estilos de vida mais cooperativos. Apesar de haver diferenças relativas à especialização, à qualificação profissional e ao status quo entre os membros das classes A, B e C do Lado A, existe entre eles alguns pontos em comum, como por exemplo: a) o fato de todos eles fazerem parte da população economicamente ativa, ou seja, de estarem integrados ao mercado de trabalho, permite-lhes maior possibilidade de mobilidade social b) assumem comportamento típico de estabelecidos, isto é, das pessoas ou grupos que olham o seu lugar como o mais qualificado para se viver longe da presença de pessoas incômodas e indesejadas. No entanto, tais aspectos comuns não ocultam as desigualdades e hierarquias. A dimensão das casas, o tamanho e altura dos muros e portões – tanto os diferencia como também os segrega espacialmente. A casa materializa vários diferenciais de poder, porque pode agrupar e sintetizar num só local os vários tipos de capital. Eles podem até ser vizinhos, mas estão socialmente distantes. O viver encastelado das classes A e B, inverte o conceito de sociedade, levando-nos a crer que os mais “integrados” socialmente são justamente aqueles que optaram por esse modelo de vida fechado e exclusivista.5 O programa de financiamento da casa própria “Minha Casa Minha Vida”,

do

Governo

Federal,

tem

aumentado

consideravelmente

a

especulação imobiliária na cidade de Belo Jardim, principalmente no bairro da Boa Vista. Algumas pessoas têm-se especializado nesse negócio, primeiro comprando os lotes para construir casas para depois revendê-las a valores bem acima do mercado. Este é o caso de Marcos Batista, 45, tributarista, que

326

mora há 12 anos na Rua João Barbosa Maciel, situado no Lado A da Av. Cel. Antonio Marinho. Segundo seu relato: Há12 anos tinha apenas umas 05 casas. Hoje tem mais de 50 casas. E os lotes vizinhos a sua casa foram todos vendidos. Tá todo mundo construindo neste bairro {...} Todas as casas são de grande porte, né? Os terrenos lá medem 12 por 30. Tem um valor elevado, acima de 35 mil reais. E hoje se você quiser comprar um terreno não tem na área da Boa Vista.

O preço de 35 mil reais em média de um lote, certamente não permite “todo mundo” residir no pedaço mais valorizado do Lado A do bairro da Boa Vista. Apenas aqueles que o Sr. Marcos define depois como membros “da classe média e da classe alta, isto é, os funcionários públicos de bancos e comerciantes”. A razão principal que leva as pessoas a migrarem para tal área é o fato do referido bairro ser considerado uma “área nobre”. A população de Belo Jardim, hoje, tá saindo do foco do centro da cidade e se deslocando para o Boa Vista, que é um dos bairros mais nobres da cidade. É a tranqüilidade, é o futuro de Belo Jardim que está crescendo para aqueles lados. E é por isso que se você quiser comprar ou alugar uma moradia lá, o preço é alto.

Mas o que há realmente de nobre nestes espaços, senão apenas o fato de ser a moradia de um grupo de pessoas que se vêem como estabelecidos? As novas áreas de jardinagem são constituídas em sua maioria por ruas esburacadas, desprovidas de calçamento, boa iluminação e, às vezes, até de saneamento básico. Em algumas ruas existe saneamento, em outras não. Agora dinheiro pra isso tem, mas ninguém sabe pra onde vão os investimentos. A Prefeitura informa que para bairro de rico não tem dinheiro pra saneamento. Eles têm que cobrar por fora como se fosse uma rua particular. Você cobra ao morador para a Prefeitura entrar apenas com a mão-de-obra. Eu acho que isso não existe.

Nessas áreas, parte dos serviços urbanos como calçamento e segurança é feita em parceria com a Prefeitura. Mas o poder de pressão dessas elites tende futuramente a inverter essa realidade, forçando a Prefeitura 327

local a suprir suas ruas de praticamente toda a infra-estrutura urbana e serviços de que precisa. Principalmente porque a maioria dos representantes dos três poderes locais (prefeitos, ex-prefeitos, vereadores, juizes, promotores, advogados) mora nessas áreas. Os resultados desse poder de pressão já podem ser observados na infra-estrutura de algumas ruas que compõem o Lado B do bairro da Boa Vista.

O Lado B da Av. Cel. Antonio Marinho6 apresenta um processo de apropriação espacial mais homogêneo, na medida em que a venda dos terrenos seguem um padrão mais ou menos fixos. Os lotes vendidos geralmente seguem o tamanho padrão de 15 metros de largura por 30 metros de comprimento. São terrenos que dependendo da sua localização podem chegar a ser vendidos por até mais de 50 mil reais.

328

O tamanho dos terrenos segue uma explícita concepção de jardinagem, a qual procura excluir de uma só vez às camadas mais baixas da sociedade local. A renda média de um operário, trabalhador autônomo ou feirante dificilmente lhes permite comprar um terreno no valor de mais de 30 mil reais para somente depois construir a casa. Normalmente, investe-se tal dinheiro diretamente na compra de uma casa, ou usa-se para financiar um imóvel mais caro. As pessoas que compram um terreno a partir desses valores não podem simplesmente ser classificadas como membros da classe trabalhadora. Sobretudo quando elas vivem numa cidade com uma população de 71 mil habitantes, em que pelo menos mais de 10 mil e quinhentas famílias sobrevivem da ajuda do Programa Bolsa Família do Governo Federal.

Apenas aqueles que passaram por um processo de

aburguesamento7 têm as condições reais para fazer este tipo de investimento. Na verdade, trata-se de pouquíssimos operários que conquistaram postos mais elevados nas empresas através de qualificação profissional e longos anos de dedicação. No âmbito local, essa realidade pode ser exemplificada pela ascensão de alguns trabalhadores da fábrica de baterias Moura, isto é, operários qualificados, diretores, gerentes de produção, controladores, técnicos e prestadores de serviços. Nadja Maria Nunes de Lacerda fala com entusiasmo da importância do Grupo Moura, para o qual trabalha há mais de 20 anos. {...} Vejo a empresa como uma grande exportadora de talentos. Nesse tempo de serviço, consegui dar uma boa educação às minhas filhas, inclusive colocando-as na universidade; pude comprar a minha casa, além de outros benefícios, como poder pagar um plano de saúde. Só tenho que agradecer pelas oportunidades, confiança, aprendizagem que a empresa deposita em mim.

A ascensão social de um pequeno número de trabalhadores e prestadores de serviços ligados ao Grupo Moura estimulou o processo de urbanização e expansão das áreas de jardinagem na cidade de Belo Jardim. A própria empresa teve participação fundamental nesse processo ao construir uma vila voltada para atender às exigências da sua mão-de-obra mais qualificada. Ou seja, dos engenheiros, diretores e executivos que teriam de morar na cidade. Esta área fica, inclusive, localizada por trás da fábrica de 329

acumuladores Moura e faz fronteira com o bairro do Pontilhão, uma localidade pobre e castigada no passado pela emissão de vários poluentes despejados no ar através das chaminés e atualmente de produtos químicos que são jogados num riacho, poluindo o solo e a água, durante o processo de fabricação das famosas baterias Moura. Pode-se dizer que o bairro do Pontilhão, com suas casas geminadas e humildes, representa a contradição e o mal-estar para parte dos moradores do bairro da Boa Vista. Suas casas modestas e cheias de crianças, jovens, adultos e animais nas calçadas e nas ruas contrastam com o silêncio e o vazio dos casarões de muros altos, portões de aço e cercas elétricas. Duas realidades distintas e desiguais, porém, filhas do mesmo processo histórico. O capitalismo, como assinalou enfaticamente Marshal Bermam, é a unidade da desunidade.8

A INDUSTRIALIZAÇÃO E A DANAÇÃO DO “BELO JARDIM” Como vimos, o novo percurso da jardinagem na cidade de Belo Jardim segue a direção da periferia urbana, porém, para transmutar-se em “áreas nobres”. O termo periferia no imaginário urbano emerge não somente como uma geografia distante, mas, também como uma realidade social precária. Daí a necessidade de adjetivação do lugar, de realçá-lo com cores e tons nobiliárquicos e/ou burgueses. O processo de reterritorialização das elites também foi motivado pela “danação” sofrida pelo Belo Jardim nos últimos 20 anos. Durante a década de 1990, a cidade assistiu a um rápido crescimento urbano e demográfico, efeito da migração de milhares de pessoas oriundas da zona rural, distritos e das

330

cidades circunvizinhas (Sanharó, São Bento do Uma, Tacaimbó, Brejo da Madre de Deus, Cachoeirinha). A presença de indústrias de médio e grande porte e a razoável oferta de serviços de saúde, educação básica e superior contribuiu para singularizar a cidade de Belo Jardim como uma das mais estruturadas e atraentes do agreste setentrional. Naturalmente, isso teve um efeito marcante na ocupação espacial e nas relações sociais desenvolvidas no sítio urbano. A pressão demográfica foi respaldada pela extensão territorial e a abundante oferta de imovéis que a fizeram crescer para todos os lados. Os bairros populares como o Maria Cristina, o Frei Damião, as Cohabs 2 e 3 desenvolveram-se sem nenhum planejamento racional. Muitas dessas áreas são oriundas de ocupação ilegal, feitas por pessoas desempregadas ou vivendo de atividades informais e temporárias.

A pobreza de tais áreas fora aprofundada pelo abandono dos governos locais, que as excluíram de serviços essenciais como saneamento básico, calçamento, boa iluminação, segurança, transporte e lazer. Estes moradores, principalmente aqueles que habitam nas Cohabs 2 e 3, tonar-seão fonte inesgotável para a produção de estigmas, insegurança e de diversos tipos de medo.

Ao lado dos moradores da Lagoa, tornaram-se os nossos

“bárbaros ou selvagens internos”, habitantes dos territórios mal ... ditos da cidade. O afluxo populacional provocado pela industrialização e urbanização foi fundamental para provocar novas formas de tensão social, pois o que vem “de fora” tanto gera atração quanto repulsa. A chegada de milhares de pessoas, em sua maioria desconhecida, modificou o cenário da cidade,

331

quebrando a “tranqüilidade” entre vizinhos, conhecidos e amigos. “O forasteiro” ainda não podia ser imediatamente classificado como “um igual”. Ele é ubíquo porque se movimenta em todas as direções. A

parte

dos

cidadãos que estava acostumada com a rotina do dia a dia se viu confrontada com uma verdadeira mixórdia de pessoas e novos mal-estares. A solução encontrada foi se deslocar para outros espaços e se enclausurar sob o “argumento da busca da “paz” e da “tranqüilidade” perdidas, devido à chegada de estranhos. A velha e nova elite precisam reinventar novos jardins para o seu sossego. Foi isso, por exemplo, o que aconteceu com o professor universitário José Sandro dos Santos, um desses novos emergentes que, motivados pela nova semântica que acompanha as sensibilidades burguesas, trocou o “barulhento” bairro do São Pedro pela “tranqüilidade” da Rua Maria Urquiza Tenório, no Bairro Boa Vista, no qual reside há 7 anos.

Estava procurando uma casa grande, com mais conforto. Eu estava tentando fugir da poluição sonora. A tranqüilidade, o conforto, a ausência de barulho. Tudo isso possibilita melhores condições de trabalho e estudo.

O que significa, pois, “fugir da poluição sonora” e buscar a “tranqüilidade, o conforto” para garantir as condições de trabalho? Afinal, que tranqüilidade é essa, na qual as pessoas precisam se afugentar da sociedade para viver em fortalezas. Não é apenas a busca do “conforto” e da “ausência de barulho”, mas a concepção burguesa e higienista que promove esse estilo de vida “social”. É interessante, e ao mesmo tempo irônico, constatar

que

no último

decênio deste

século uma pequena

mas

surpreendente parcela da população local tenha passado por um processo tão radical de “refinamento” dos sentidos. Foi preciso apenas melhorar um pouco a renda para se condenar o lugar onde antes se vivia e descobrir as “áreas nobres”, a civilidade dos jardins. Ás vezes, a ideia de tranqüilidade não é o requisito fundamental, ela é usada para ocultar o desejo de diferenciação e poder que há em todos os grupos sociais. A primeira coisa que ocorre com a maioria dos indivíduos quando ascendem socialmente é buscar várias razões que justifiquem sua saída para outros lugares. A despeito de morarem em locais calmos, confortáveis e bem próximos dos familiares, amigos e dos serviços que mais 332

precisam, muitas dessas pessoas procuram as ditas áreas nobres mesmo sabendo que algumas delas são distantes e destituídas de calçamento, saneamento básico e, principalmente, de fraca relação social. Esta situação pode ser comprovada pelo depoimento de Vânia Madalena Maria, cabeleireira, 30, que trocou a rua Regina Alves, no bairro Tancredo Neves, que era “uma rua boa, uma rua tranqüila, uma rua calma”, pela Rua Nelson Meirelles, no bairro Boa Vista, que descreve da seguinte forma: “É um bairro nobre da cidade, um bairro muito bom de morar, calmo. A rua é excelente, falta calçar, é na terra, mas é uma rua boa”. E sobre a relação com os vizinhos afirma que:

Muito pouca. Eu vivo do trabalho pra minha casa; conheço os meus vizinhos, é um pessoal bom, mas a relação é muito pouca ... dificulta por ter muro alto. Na rua anterior era mais fácil [o contato], pois não tinha muro e eram casas geminadas. Então, qual foi a razão da mudança de endereço? Terá sido a falta de tranqüilidade, a convivência com péssimos vizinhos, o barulho ensurdecedor, a distância dos serviços, o desconforto da casa anterior? Parece-nos que não foram essas as questões principais que a levaram a escolher morar na Rua Nelson Meirelles, na Boa Vista, um bairro que ela considera como bom, tranqüilo, mas que não tem calçamento e onde quase não existe contatos entre vizinhos, embora defina-os como “um pessoal bom”. Vânia e seu marido, que é ex-operário e proprietário de uma empresa prestadora de serviços mecânicos ao Grupo Moura, evoluíram da classe C para a classe B, ou seja, fazem parte do que podemos chamar de uma classe média. Ele é proprietário de um automóvel de luxo, de duas casas residenciais, além do imóvel no qual funciona sua empresa. São exemplos de pessoas que passaram por significativas mudanças no nível econômico e na concepção de urbanidade. Nas falas dos entrevistados a escolha por “uma área nobre” articula-se com a visão aristocrático-burguesa de superioridade e distinção social. Fazer parte do grupo seleto dos homens e mulheres “magníficos e superiores” da cidade é a principal razão para tanto trabalho e disciplina financeira. Entretanto, descontada a grandiosidade das casas, muros e portões, fica difícil perceber o lado magnífico e sublime da sociabilidade dos 333

moradores de tais áreas nobres. Nobre quer dizer entre outras coisas um ser magno, isto é, de grande elevação espiritual. Mas parece que os discursos não condizem com as práticas, pois o que mais falta nestas pessoas é justamente a nobreza do espírito humano, da alteridade. Os castelos foram inventados pela nobreza com a finalidade de ser sua fortaleza e local de ritualização de um modus vivendi das sociedades de corte. A burguesia e as classes médias, a despeito da ênfase dada ao aspecto econômico e à individualidade, parecem ter sucumbido à armadilha do modo de vida aristocrático. A estética e a ética cultivada por eles se assemelham em alguns aspectos a determinados rituais valorizados pela nobreza como distinção, exclusivismo e fobia à mistura com a plebe.

NOTAS E REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido. Sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, p. 129. 1

²ADILSON FILHO. Cidades, globalização e ambivalência: Imagens e representações da urbs contemporânea. In. O Fenômeno da globalização em sua dimensão local e multidimensional. (Orgs.) MOREIRA, Eliana Monteiro, VÉRAS, Roberto. João Pessoas, Ed. UFPB, 2009, p. 145 ³ADILSON FILHO, José. A cidade atravessada. p. 113-114. O conceito de Integração Social é ambíguo e deve ser criticado, já que sugere que os grupos mais integrados são aqueles que vivem em melhores condições materiais. Assim, os grupos mais ricos estariam socialmente mais integrados do que as camadas médias e baixas. Com efeito, deixa-se de ver a importância que tem a força da comunidade, da vizinhança, da solidariedade, dos contatos face a face, entre grupos populares e médios para o fortalecimento da própria noção de sociedade, tão cara à Sociologia. Contrariamente a isso, os grupos de elite, através de seu individualismo, cada vez mais favorecem o esgarçamento da esfera pública. Sobre isso ver: Amor líquido e Vidas desperdiçadas. BAUMAN, Zygmund (ambos publicados pela Editora Jorge Zahar); Cidade de Muros. CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. São Paulo, Edusp, 2008. O Declínio do Homem Público. SENNETT, Richard. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 4

5O

lado esquerdo de que vem da AEB no sentido cidade de Belo Jardim Como enfatizamos, as elites têm preferência por nomes que temporalizem situações e contextos mais profanos e racionais. O bairro chama-se Boa Vista e a avenida recebe o nome do Cel. Antonio Marinho – o primeiro prefeito da cidade de Belo Jardim – para servir como emblema da nova área de jardinagem. “Aburguesamento é o processo através do qual a classe operária, ao adquirir níveis relativamente confortáveis de segurança financeira e bem-estar material, torna-se mais semelhante à classe média, graças à influência dos sindicatos.”. In. JOHNSON, 6

334

Allan G. Dicionário de Sociologia. Guia prático da linguagem sociológica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. p. 3 Ver de BERMAN, Marshal. Tudo que é sólido se desmancha no ar: A aventura da modernidade. São Paulo: Cia. das Letras, 2007. 7

Para uma compreensão sócio-histórica dos mecanismos de funcionamento da vida social na corte, ver de ELIAS, Norberto. A sociedade de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 8

335

O BRASIL SERTANEJO DE CAPISTRANO DE ABREU E O DEBATE COM A HISTORIOGRAFIA CEARENSE DO FINAL DO SÉCULO XIX EM SUAS CORRESPONDÊNCIAS110.

Vinicius Limaverde Forte111

Resumo: O presente trabalho analisa a prática epistolar entre Capistrano de Abreu e outros historiadores cearenses, destacadamente Guilherme Studart e, secundariamente, Antônio Bezerra e João Brígido, durante o fim do século XIX e primeira década do século XX. O intuito disto é compreender como o debate sobre a importância do sertão nos discursos historiográficos constituintes da nação brasileira e da província cearense estruturou-se a partir de práticas escritas de âmbito privado e público. Nesse sentido, indica-se que o intercâmbio entre esses intelectuais propiciou a constituição de um “ponto de vista nortista”, expresso na interpretação de Capistrano sobre a formação do Brasil, bem como nas interpretações de seus conterrâneos sobre as origens do Ceará, tendo sido estabelecido um processo de influência mutua entre essas interpretações.

Palavras-Chave: Capistrano de Abreu, Correspondências e Sertão.

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho trata da prática epistolar entre Capistrano de Abreu (1853 – 1927) e seus conterrâneos cearenses durante o período abrangido entre o início da década de 1880, quando ele iniciou sua incursão mais sistemática sobre os estudos historiográficos, e meados da década de 1900, quando em 1907 publicou Capítulos de História Colonial, consagrada como sua principal obra. Intenta-se demonstrar com a opção pelo estudo das correspondências ativas e passivas de Capistrano de Abreu com seus interlocutores cearenses que tais

110

As reflexões expostas neste trabalho consistem em desdobramentos do debate apresentado na Dissertação que elaborei para a obtenção do título de Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (FORTE, 2011). 111 Graduado em Ciências Sociais (UFC), Mestre em Sociologia (UFC) e Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia (UFPE). Atua principalmente nos seguintes temas: Pensamento Social Brasileiro, Sociologia do Conhecimento e Sociologia da Vida Intelectual. [email protected].

336

documentos pessoais constituem um registro relevante do debate sobre a constituição das representações a respeito do sertão e da nação na passagem do final do Império para o início da República. Nesse sentido, a reflexão centra-se no movimento de circulação de ideias a partir de uma prática de escrita de caráter privado como meio que contribuiu com o desenvolvimento e a disseminação de uma concepção a respeito da sociedade brasileira sob o “ponto de vista nortista”, a partir da formação de uma comunidade discursiva. A utilização de documentos pessoais como fonte de pesquisa em sociologia não constitui novidade. Willima I. Thomas, um dos fundadores do interacionismo da Escola de Chicago, costumava consultar cartas e diários para a realização de suas pesquisas, destacadamente no caso de seus estudos com imigrantes poloneses nas primeiras décadas do século XX. Tal abordagem fez dele um pioneiro da abordagem biográfica em sociologia, bem como nos estudos sobre imigrantes. A predileção

por

esse

tipo

de

fonte

documental

se

justificaria

metodologicamente para Thomas pelo fato de a informação produzida não sofrer interferência do pesquisador (POUPART, 2008, THOMAS, 1918). No âmbito da sociologia da vida intelectual e artística a utilização de cartas para apreender melhor a trajetória de determinados sujeitos ou de formas específicas de sociabilidade é bastante recorrente, como se observa no caso do estudo de Norbert Elias (1995) sobre Mozart, por exemplo. Na pesquisa em História a utilização de cartas como fonte de pesquisa é algo bem mais difundido em comparação à sociologia. De acordo com Angela de Castro Gomes (1998), a corrida aos arquivos privados iniciou-se para os historiadores na década de 1970 e pode-se considerar que o recurso a esse tipo de fonte estaria “rotinizado” contemporaneamente. Ainda de acordo com a autora, no campo de pesquisa da historia cultural as cartas constituem uma importante fonte de pesquisa, pois elas são um lugar de sociabilidade das elites culturais, onde se trocam ideias e constroem-se projetos (GOMES, 1998). 337

Como indica Foucault (1992), a carta é uma forma de escrita de si, em que o remetente não apenas cria uma representação de si para o outro, mas também objetiva-se na escrita. Assim, a troca de correspondências proporcionaria uma situação de interação em que de certo modo se estabeleceria uma relação face a face. Foucault considera, ainda, que através das correspondências seria possível estabelecer uma história da cultura de si, pois a partir da escrita da narrativa epistolar o remetente faria coincidir o olhar do destinatário e o seu próprio olhar sobre suas atividades cotidianas e seu modo de vida (FOUCAULT, 1992). Desse modo, pensando-se esse tipo de produção escrita como uma situação de interação consigo mesmo e com o outro, torna-se possível problematizar a questão da construção de fachadas112 por meio desse tipo de interação (GOFFMAN, 2011). A reflexão sobre a questão da construção da fachada nas cartas possibilitaria evitar o risco do que Angela de Castro Gomes (1998) denominou de “ilusão da verdade”. De acordo com a autora, a pesquisa de arquivos pessoais possibilitaria uma aproximação muito estreita entre pesquisador e pesquisado, tornando o sujeito pesquisado “demasiado real” por estar “sem disfarces”. Contudo, caso a troca de missivas seja tomada como uma espécie de relação face a face, como sugeriu Foucault, seria preciso considerar que, em certa medida, o remetente procuraria desempenhar na elaboração da escrita de si o que Goffman denomina de construção da fachada – “uma imagem do eu delineada em termos de atributos sociais aprovados” (GOFFMAN, 2011, p. 14). Não se trata de considerar a fachada como um tipo de fingimento, mas de considerá-la uma construção relativa a uma dada situação de interação em que a linha de ação adotada pelo sujeito estaria em conformidade com o que ele considera como sendo a expectativa de seu interlocutor. Nesse

112

Acata-se neste trabalho o termo “fachada” como tradução para face, palavra empregada por Goffman no seu texto original em inglês.

338

sentido, as pessoas costumam assumir diferentes fachadas de acordo com cada contexto. No caso de Capistrano de Abreu, suas correspondências têm sido recorrentemente tomadas como objeto de investigação. Sem dúvidas, um dos principais motivos para essa intensa produção deve-se à relativa facilidade de acesso a esse material, fato propiciado pela publicação em três massivos volumes de uma seleção do vasto acervo epistolar acumulado pela Sociedade Capistrano de Abreu. A iniciativa ocorreu sob a direção de José Honório Rodrigues, por ocasião da comemoração do centenário de nascimento do intelectual cearense (RODRIGUES, 1954; GONTIJO, 2002). Desde

então

essa

coleção

tem

servido

de

fonte

para

investigações sobre diversos aspectos da vida e obra de Capistrano. Seria possível afirmar que muitos desses trabalhos apresentam reflexões sobre a construção/manutenção de diferentes fachadas por parte de Capistrano, as quais seriam definidas de acordo com a situação de interação com cada interlocutor específico a que ele se reportava. Em virtude da maioria das cartas publicadas terem sido emitidas a intelectuais e políticos engajados em estudos sobre a história brasileira, predominou em sua escrita de si a fachada do pesquisador/estudioso, embora essa fachada se manifestasse de maneira variável, de acordo com as especificidades de cada tipo de interação113. Trabalhos como os de Amaral (2003), Gontijo (2004, 2005), Amed (2006), Silva (2006) e Batista (2008) apontam para a importância do estudo da prática epistolar de Capistrano para compreender como essa forma de sociabilidade contribuiu para a própria constituição do

113

Os trabalhos de Gontijo (2004) e Silva (2006) são ilustrativos do modo peculiar como a fachada de pesquisador construída por Capistrano está permeada de outros elementos, como é perceptível no caso das cartas trocadas com Paulo Prado. Ao utilizar o tratamento “mestre e amigo”, Paulo Prado contribuía para definir discursivamente a situação de interação entre ambos. Com esse tratamento, Prado definia sua posição (amigo e discípulo) e “informava” suas expectativas em relação a Capistrano, que por sua vez, apesar de recusar a posição de mestre, orientava sua conduta com base nessas expectativas. Evidentemente, outros elementos extra discursivos também contribuíam para a definição de situação, como a relação de mecenato que havia entre eles e a amizade que Capistrano tinha com Eduardo Prado, tio de Paulo.

339

ofício de historiador mediante o debate de ideias, metodologia de pesquisa, trocas de informações, documentos e livros. Inserindo-se nesse debate, intenta-se com este trabalho indicar como emerge nessa prática a gestação de sua interpretação sobre o Brasil em consonância com uma interpretação sobre o Ceará e como elas estão vinculadas. 2. O INÍCIO DA TRAJETÓRIA INTELECTUAL DE CAPISTRANO DE ABREU E A IMPORTÂNCIA DO CAPITAL DE RELAÇÕES SOCIAIS. Capistrano de Abreu foi um intelectual cearense que se consagrou como historiador. Os primeiros trabalhos que produziu foram críticas literárias de inspiração sociológica publicadas em jornais de Fortaleza no início da década de 1870, quando participava da agremiação denominada Academia Francesa. Fundada em 1872-73, a Academia surgiu como um grupo formado por amigos que se conheciam desde a infância. A maioria dos integrantes dessa agremiação era oriunda de famílias integrantes da elite política e econômica da província e detinha formação educacional mais ou menos semelhante, pois quase todos eles estudaram nos mesmos colégios e frequentaram a Faculdade de Direito de Recife (CÂMARA, 1999). Além de Capistrano de Abreu, outros participantes que posteriormente obtiveram alguma notoriedade na época foram os jovens Tomás Pompeu Filho, Araripe Júnior, Xiderico de Farias, Rocha Lima. Inicialmente, tratava-se de uma espécie de sarau ou grupo de estudo em que predominavam as leituras positivistas, como é perceptível pela descrição de suas reuniões fornecida por Capistrano:

Era em casa de Rocha Lima que reuniam-se os membros do que chamávamos Academia Francesa. Quanta ilusão! quanta fôrça, quanta mocidade! França Leite advogava os direitos do comtismo puro e sustentava que o Systhème de Politique era o complemento do Cours de Philosophie. [...] Pompeu Filho dissertava sôbre a filosofia alemã e sôbre a Índia, citava Laurent e combatia Taine. Varela – o garboso abnegado paladino, – enristava lanças a favor do racionalismo. Araripe

340

Júnior encobria com a máscara de Falstaff a alma dolorida de René. Felino [Barroso] falava da revolução francesa com o arrebatamento de Camilo Desmoulins. (ABREU, 1975, p. 77-78).

Em decorrência das disputas envolvendo maçonaria e Igreja Católica na Questão Religiosa114, as atividades da Academia Francesa passaram a possuir um caráter militante em prol de um Estado laico e da

liberdade

de

pensamento.

Fundamentados

em

doutrinas

cientificistas, parte desse grupo de jovens intelectuais ingressou na maçonaria, editou o jornal maçônico A Fraternidade e criou a Escola Popular em 1874. Todas essas iniciativas possuíam vinculação estreita com a Academia, sendo a Escola Popular a que obteve maior repercussão. Dentre suas atividades podem-se destacar: oferecimento de cursos regulares de português, francês, aritmética, geografia e história; aulas de alfabetização, gramática e leitura comentada de jornais; aulas sobre a Constituição do Império; conferências públicas. Todas essas atividades eram abertas ao público, mas as aulas priorizavam pessoas com um menor grau de instrução, trabalhadores pobres e mulheres. Já as conferências visavam atingir um público com maior grau de instrução, atacando frontalmente o papel exercido pela Igreja na sociedade brasileira, contestando-se as bases de sustentação do Estado monárquico. O movimento durou aproximadamente um ano. Depois disso, a Academia Francesa foi desfeita e esse grupo de jovens dispersou-se. Capistrano de Abreu possuía um perfil diferente em relação a maior parte dos seus colegas da Academia Francesa. Seu pai era 114

A questão religiosa iniciou-se em Pernambuco nos fins de 1872 com o bispo de Olinda Dom Vital, que, seguindo as determinações do Papa Pio IX, solicitou que as irmandades católicas desligassem de seus quadros todos os maçons. Entretanto, como o catolicismo era a religião oficial do Estado, os decretos eclesiásticos só poderiam ser validados ou não a partir dos parâmetros fornecidos pela Constituição. Naquela ocasião quem presidia o Conselho de Ministros era o Visconde do Rio Branco, que era maçom. Assim, ele revogou a determinação de Dom Vital e ordenou sua prisão, juntamente com a de outro bispo. Desta forma, iniciou-se um conflito aberto entre a Igreja Católica e os maçons, o qual só foi atenuado com a dissolução do gabinete Rio Branco, a anistia dos bispos e a suspensão pelo papa das proibições aplicadas aos maçons (FAUSTO, 2002, p.128).

341

proprietário rural em Maranguape, mas não era um grande latifundiário. O prestígio de sua família restringia-se à localidade onde residia, o suficiente para posteriormente render ao seu pai o título de oficial da Guarda Nacional. Capistrano era o filho primogênito e sua família soube converter o limitado capital de relações sociais que possuía em favor da formação dele. O trânsito de seu pai junto ao clero de Fortaleza possibilitou que ele pudesse frequentar as melhores instituições de ensino da capital da província, onde se tornou amigo de Guilherme Studart, Rocha Lima, Rodolfo Teófilo, Tomás Pompeu e outros. Portanto, a rede de contatos que seu pai teceu e o capital cultural que Capistrano acumulou foram elementos chaves para o início sua trajetória intelectual. O convite que ele recebeu de José de Alencar para que se mudasse para o Rio de Janeiro pode ser tomado como um exemplo representativo da importância dessa conjugação de fatores. Em 1875, Alencar estava em campanha eleitoral concorrendo para o senado e foi a Maranguape. Ao saber disso, o pai de Capistrano providenciou para seu filho um encontro com o literato por intermédio de um amigo bastante influente politicamente na cidade. Desse encontro resultou um convite para que Capistrano se mudasse para o Rio de Janeiro ir tentar a sorte no meio intelectual da Corte (CÂMARA, 1999).

3. SOCIABILIDADE EPISTOLAR E PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO: A RELAÇÃO ENTRE ESCRITA DE SI E A PRODUÇÃO DE REPRESENTAÇÕES SOCIAIS SOBRE O CEARÁ E O BRASIL

Capistrano de Abreu conseguiu seu primeiro emprego no Rio de Janeiro por intermédio de José de Alencar, que foi uma de suas grandes inspirações. Após um período escrevendo resenha de livros para jornais e ministrando aulas particulares, ele trabalhou como funcionário da Biblioteca Nacional, até que em 1885 foi aprovado em concurso para professor de História do Brasil do Colégio Pedro II. 342

Costumeiramente essa aprovação no concurso para professor é tida como um marco na conversão definitiva de Capistrano aos estudos históricos (RODRIGUES, 1953), embora nesse período ele tenha iniciado seus estudos em etnologia indígena, campo de estudos no qual atuou de forma intercalada com a pesquisa historiográfica até o fim da vida (FORTE, MESQUITA, 2012). Portanto, é na década de 1880 que começam se delinear mais claramente os interesses de pesquisa de Capistrano. Nesse período sua prática epistolar passa a ser mais intensiva e em suas cartas se apresentam os primeiros esboços do seu programa de investigação, cuja ênfase foi nos processos de povoamento do interior do território brasileiro durante o período colonial. Assim, pode-se afirmar que os interesses de Capistrano em diferentes campos disciplinares como a história, a antropologia, a sociologia, a geografia, a linguística etc. articulam-se em torno do estudo da colonização dos sertões115. Como é possível observar na coleção de cartas editadas por José Honório Rodrigues (1954) e no trabalho de Fernando Amed (2006), a partir da década de 1880 o trabalho de pesquisa de Capistrano começa a se estruturar em forma de uma rede articulada por uma prática de sociabilidade epistolar, como parte de um ritual de interação de produção do conhecimento. Nesse processo novamente torna a emergir a vinculação entre capital de relações sociais e capital cultural como meio que possibilita o desenvolvimento dessa dinâmica de pesquisa. A acumulação desses capitais convertido no prestígio e na posição privilegiada que Capistrano detinha no meio intelectual de sua época pode ser inferido pela significativa quantidade de cartas que foram

conservadas

e doadas

pelos seus

115

correspondentes 116 e,

A designação “sertões” deve-se ao fato do autor reconhecer como sertão a porção continental do país que não é banhada pelo Oceano Atlântico, implicando na abrangência de uma grande diversidade de regiões sob essa denominação. 116 Foram publicadas 1243 cartas na edição de José Honório Rodrigues, das quais 1039 constituem parte da correspondência ativa de Capistrano e 204 de correspondência passiva (GONTIJO, 2002).

343

principalmente, pela criação póstuma da Sociedade Capistrano de Abreu, com fins celebratórios de sua memória. A rede de contatos de Capistrano era bastante extensa, incluindo um total de 123 correspondentes identificados em sua coleção de cartas publicadas por Rodrigues, segundo levantamento de Gontijo (2002).

Ainda

de

acordo

com

a

autora,

os

dois

principais

correspondentes presentes na edição elaborada por Rodrigues são o historiador português João Lúcio de Azevedo, com 264 cartas remetidas a ele, e Paulo Prado, com 114 cartas remetidas a ele. Guilherme Sutdart, ilustre historiador cearense e importante interlocutor de Capistrano, figura com 37 cartas remetidas a ele na publicação (GONTIJO, 2002). As 37 cartas remetidas por Capistrano a Guilherme Studart compreendem o período entre 1892 e 1922. Em trabalho que analisa a troca epistolar entre esses intelectuais, Amaral (2003) qualifica a interação deles como sendo marcada pelo estabelecimento de uma correspondência

cordial,

apesar

das

profundas

diferenças

programáticas entre ambos. Tendo eles se conhecido no período em que estudaram no Colégio Ateneu durante a infância, os dois amigos enveredaram por caminhos diferentes no campo da historiografia, mas sempre compartilharam a paixão pela pesquisa e a preocupação constante com a crítica documental no fazer historiográfico, como é perceptível no trecho da carta remetida por Capistrano em 20 de abril de 1904, por ocasião do recebimento do primeiro volume de uma série de documentos organizados por Studart chamada Documentos para a História do Brasil e principalmente do Ceará: Agora que és um mestre reconhecido e acatado, podemos portanto conversar claramente sobre o assunto. Por que não dás a procedência dos documentos que publicas? [...] Por que motivo, portanto, te insurges contra uma obrigação a que se sujeitam todos os historiadores, principalmente desde que, com os estudos arquivais, com a crítica histórica, com a crítica das fontes, criada por Leopoldo von Ranke, na Alemanha, foi renovada a fisionomia da História? (RODRIGUES, 1954, p. 165166),

344

Se por um lado, Capistrano considerou importante a divulgação feita por Studart mediante a publicação dos documentos em um volume impresso, por outro, como expresso no trecho acima, a simples divulgação sem a indicação da procedência da fonte torna o empreendimento incompleto do ponto de visto da abordagem rankeana, pois o pesquisador continua impossibilitado de ir consultar os documentos

originais

nos

arquivos

e

bibliotecas

onde

estão

depositados. Capistrano e Studart possuíam projetos e concepções distintas sobre a ciência histórica. Enquanto ao primeiro preocupava “o povo, durante três séculos, capado e recapado, sangrando e ressangrando” (RODRIGUES, 1977a, p. 166), voltando-se para o povoamento do sertão na tentativa de descobrir se “o brasileiro é povo em formação ou em dissolução”

(RODRIGUES,

1954,

p.

182),

o

segundo,

teria

uma

preocupação maior com a dimensão factual da história, apresentando efemérides referentes aos feitos das grandes personalidades. Conforme Oliveira

(2001),

Studart

construiu

uma

narrativa

pautada

em

documentos reconhecidamente legítimos, privilegiando a biografia dos agentes portugueses na colonização, procurando delimitar os marcos iniciais da história cearense a partir dos feitos de Pero Coelho, dos Padres Francisco Pinto e Luís Filgueira e principalmente de Martins Soares Moreno. Essa divergência entre os autores quanto às suas concepções sobre história e às questões que lhes orientaram em suas investigações podem ser associadas a duas intepretações distintas da formação da sociedade cearense que teriam relação direta ou indireta com interpretações distintas da obra literária de José de Alencar. Um paradigma aborda a colonização cearense a partir do litoral, que teria como inspiração o colonizador português, cujo ícone é Martins Soares Moreno. Nesse caso predomina a intervenção direta da Metrópole sobre a colônia mediante seus agentes e os missionários jesuítas. O outro aborda a colonização a partir do sertão, cuja inspiração estaria no 345

indígena e no mestiço vinculado à pecuária, destacando-se o povoamento do interior. Essa ideia corrobora a indicação de Menezes, segundo a qual “o Ceará é invenção sobretudo de Alencar que, com seu poema Iracema, fez de sua província a única do país a possuir sua epopeia fundadora” (MENEZES, 2001, p. 74). Embora seja possível situar Capistrano de Abreu nesse debate acerca das abordagens existentes na historiografia cearense na passagem do século XIX para o XX, ele nunca se ocupou efetivamente com o assunto, embora sempre tenha se mantido atualizado sobre as discussões, dialogando com diversos pesquisadores e sempre disposto a contribuir com a cópia de documentos para torná-la mais completa possível, como indica outra carta que ele remeteu a Studart: Como pretende celebrar o centenário do Ceará e quando? Evidentemente estou às ordens para tudo o quanto mandar. Nunca me ocupei, porém, especialmente, com a história do nosso torrão, e creio que de meu rochedo não sairá mel. (RODRIGUES, 1954, p. 155).

Essa carta remetida em junho de 1902 refere-se ao tricentenário da chegada dos portugueses ao Ceará, que foi comemorado no ano seguinte. Em uma carta data de setembro de 1903, Capistrano comenta dois trabalhos de Studart publicados por ocasião do tricentenário e lhe promete que escreverá a respeito deles (RODRIGUES, 1954, p. 160). Desse modo, apesar de atribuir maior ênfase a uma história da vida material em detrimento da história política e das grandes personalidades, Capistrano participou das comemorações produzindo um dos seus raros textos sobre o Ceará. Contudo, torna-se patente o contraste entre as propostas dos trabalhos dos dois historiadores, pois, enquanto Studart enfocou as figuras de Martins Soares Moreno e dos Padres Francisco Pinto e Luís Filgueiras, Capistrano de Abreu elaborou uma síntese da monografia de Studart sobre Martins Soares Moreno e na segunda parte de seu trabalho tratou da especificidade da colonização da região, abordando os fatores que 346

retardaram seu início, dando ênfase à presença da população indígena, analisando seus costumes e o caráter conflituoso de sua relação com os portugueses (ABREU, 2004). As divergências quanto aos modos de fazer e interpretar a história aparentemente nunca influíram na relação entre Capistrano e Studart. Como salienta Amaral (2003), Capistrano percebia a história local articulada organicamente com o processo de interiorização ocorrido de modo diverso, partindo de diferentes pontos do território. Seu interesse não era exatamente o Ceará, mas passava necessariamente por lá, posto que para ele o povoamento da região entre os rios São Francisco e Parnaíba consistia na questão máxima da história brasileira (RODRIGUES, 1977). Ainda de acordo com Amaral (2003), para Studart a história nacional seria composta pelo somatório das variedades de histórias locais, tornando-o mais afeito às demarcações territoriais e de distribuição da população forjadas administração colonial. Se há um contraste entre as obras de Capistrano e Studart, podese estabelecer uma relação de proximidade significativa entre o primeiro e João Brígido e Antônio Bezerra. Em virtude da importância que o debate acerca da “civilização do couro” assumiu na obra de Capistrano, os caminhos e o povoamento do interior representam para ele questões fundamentais, as quais consistem no cerne dos trabalhos de Brígido e Bezerra. Em carta enviada em 20 de janeiro de 1883 a João Brígido observa-se como essa preocupação com a ocupação do Ceará foi importante para a construção do argumento de Capistrano. Nessa ocasião, o debate deu-se em torno do artigo Fortaleza em 1810, de autoria de Brígido. Segundo consta, a leitura foi muito proveitosa e gerou um interessante debate sobre o local onde estaria estabelecida a fortaleza criada por Martim Soares Moreno, em torno da qual foi erigida a capital cearense. Todavia, a principal questão para Capistrano dizia respeito à presença dos baianos e dos pernambucanos no início da colonização cearense. Ele questiona os argumentos de Brígido, 347

apontando falhas em relação aos caminhos que supostamente essas bandeiras teriam percorrido para chegarem ao Ceará. A preocupação intensa sobre o assunto é logo justificada: Insisto com especialidade neste ponto porque ele interessa a um trabalho que tenho em mãos e para o qual pode ajudarme bastante: é o das estradas antigas. Já conheço a estrada do Aracati ao Crato e daí pelo São Francisco à Bahia. Conheço também a estrada do Crato para Oeiras. Sei vagamente da estrada para Sobral; mas o resto ignoro. Pode dar-me alguns esclarecimentos? Meu trabalho deve atacar todo o Brasil: já conheço as estradas de Maranhão, Piauí, São Paulo, Goiás, Rio Grande do Sul, Mato Grosso. Como vê, ainda me falta muito: portanto tudo quanto souber a este respeito é favor comunicar-me. (RODRIGUES, 1954, p. 53)

Possivelmente o trabalho em elaboração referido por Capistrano de Abreu era o seu artigo Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil, o qual só veio a ser publicado em 1899 no Jornal do Commercio. Nesse texto, o autor procurou investigar como se deu o povoamento de diversas regiões do interior do Brasil, apontando sempre para a especificidade de cada uma delas, demonstrando o caráter plural do amplo território brasileiro e a dispersão do seu povoamento decorrente daí. Reitera essa preocupação com o povoamento cearense sua apreciação da obra Algumas Origens do Ceará, de autoria de Antônio Bezerra, como indica carta enviada ao próprio autor: Com a primeira leitura aprendi muito: o povoamento do Ceará é muito menos simples do que eu supunha. A ribeira do Jaguaribe teve a maior parte da população de procedência pernambucana. Os afamados baianos, não são de todo um mito – o da Casa da Torre V. destruiu de uma vez; mas parece que só foram baianos para o Cariri depois que a gente deste procurou a Bahia. Distingo os caminhos sertanejos de penetração e os de vazão: a este pertencem os baianos. Tenho minhas dúvidas quanto ao Salgado: parecem simultâneos ou quase o movimento da foz parta as cabeceiras e o das cabeceiras para a foz. V. pode considerar-se feliz, porque salvou ao menos uma parte dos seus trabalhos: hão de ser lidos, hão de ser apurados e reunidos ao cabedal comum. O Ceará é talvez, dentre os estados do Brasil, aquele cuja história é mais conhecida. Conheço bem o quinhão que lhe cabe. (RODRIGUES, 1954, p. 71).

348

Para concluir, é preciso indicar que as abordagens sobre a formação do Ceará a partir do litoral e do sertão, apesar de terem implicações políticas distintas, na medida em que legitimam ou os português ou os nativos com suas “consciências capitaniais” como principais agentes da história, possuem um caráter complementar, apontando para uma possibilidade idílica de uma síntese ao modo alencarino, a qual origina uma comunidade discursiva (MAINGUENEAU, 2006) que estabelece um “ponto de vista nortisita” para compreensão do Brasil. Nesse sentido, por ocasião do lançamento do primeiro volume do livro Datas e Fatos para a História do Ceará, Capistrano escreveu uma resenha em que emite o seguinte parecer sobre a formação da sociedade cearense: Pode-se desde já antecipar que grande parte deles [os demais volumes a serem lançados por Studart] será preenchida pela luta entre a marinha e o sertão. É este um fato comum a todas antigas capitanias, ocupadas na criação do gado, e povoadas por gentes idas do rio S. Francisco, isto é, do interior para o litoral. [...] Como no Ceará o sertão investiu contra o litoral, chegando a dominá-lo na Confederação do Equador; como o litoral resistiu ao sertão e por fim domou-o; como estes dois elementos unidos se amalgamaram e conciliaram, formando hoje uma população homogênea e entusiasta de sua terra, é a história que nos contará Studart, velho amigo e companheiro de colégio, com quem um momento me imagino transportado às terras dos verdes mares, ‘verdes mares que brilhais como liquidas esmeraldas aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias ensobrandas de coqueiros’” (ABREU, 2004, p. 170).

Portanto,

foi

possível

apreender

a

constituição

de

uma

comunidade discursiva que instituiu um “ponto de vista nortista” sobre o Brasil a partir das correspondências de Capistrano de Abreu, indicando, por um lado, o papel da conjunção entre seu capital de relações sociais e capital cultural para o estabelecimento de uma rede de pesquisa e a importância da sociabilidade epistolar no ritual de interação de produção de conhecimento no campo historiográfico.

349

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352

UFPB: TRAJETÓRIA HISTÓRICA E DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO NO PERÍODO DE 1990-2010. Edineide Jezine117 Camilla Regina Pinto Barbosa da Trindade118 Janaína Gomes Fernandes119 Resumo: Analisa-se o desenvolvimento do ensino superior na Paraíba, em específico na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) com foco no acesso e democratização da oferta de cursos, vagas disponibilizadas, matrículas oferecidas e áreas de conhecimento, no período de 1990 a 2000. Busca-se apreender a dinâmica histórica do processo de expansão do ensino superior na UFPB, a partir da memória que resgata o percurso histórico e a ampliação da educação superior no Estado e os reflexos de suas modificações ao longo dos anos. O objetivo centra-se na análise dos dados coletados nos relatórios anuais das décadas de 1990 e 2000, relacionados com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e outros estudos baseados nessa temática que serão significativos para a compreensão do desempenho e crescimento das áreas de aprofundamento, cursos e vagas disponibilizadas na UFPB nos anos citados. Palavras-chaves: Ensino Superior, expansão, acesso, vagas.

INTRODUÇÃO

O Ensino Superior na Paraíba data seu surgimento do início do século XIX, por influência da família real, ao requer escolas que capacitassem e dessem continuidade a educação e formação dos

117

Graduada em Pedagogia (UFAM), Mestra em Educação (UFPB). Doutora em Sociologia (UFPE) e Pós-Doutoramento em Sociologia (Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnológicas de Lisboa). Faz parte da Rede Ibero Americana de Investigação em Políticas de Educação (RIAIPE/CYTED) e da Rede Universitas/Br Produção Científica sobre Educação Superior no Brasil. Professora Associada da Universidade Federal da Paraíba como atuação no ensino, pesquisa e extensão. [email protected] . [email protected]. 118 Graduada em Pedagogia (UFPB), Mestranda no Programa de Pós Graduação em Educação (PPGE/UEPB). Integrante da Rede Universitas/Brm. Integrante do grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Sociedade (GEPES/UEPB), [email protected]. 119 Graduada em Pedagogia (UFPB), Integrante da Rede Universitas/Brm. Integrante do grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Sociedade (GEPES/UEPB), [email protected].

353

filhos da elite portuguesa que chegavam à capitania da Paraíba, para eles esses locais de ensino eram as Universidades. O

deputado

Joaquim

Manoel

Carneiro,

foi

um

grande

incentivador para a implantação da primeira Instituição de Ensino Superior na região, pois esta oferecia condições naturais e de localidade favoráveis para a construção de universidades. O ensino era dividido em dois grandes grupos: o primeiro era organizado para perpetuação e perduração do poder das elites da época, ou seja, era formar os filhos da elite para permanecerem na camada alta da sociedade, durante todas as gerações e o segundo objetivava a qualificação da mão-de-obra para a produção, para assim, cuidar e realizar um bom trabalho nas terras que pertenciam a elite. Assim perdurou o ensino no Brasil, não sendo diferente na Paraíba. A divisão da sociedade refletia no ensino e atendia aos interesses dos mais poderosos. O Ensino Superior tinha como objetivo atender de forma específica uma determinada camada da sociedade, a elite. No decorrer das décadas e dos acontecimentos históricos do Brasil, as Universidades Públicas Federais crescem e se desenvolvem, em vista da evolução econômica, social e cultural, o que faz emergir novas e diversas áreas de conhecimento, havendo uma expansão do Ensino Superior por todo país. O desenvolvimento econômico do capitalismo e o processo de industrialização passaram a exigir especializações que viessem atender às novas necessidades da sociedade industrializada e do mercado emergente. O ensino superior no Estado se desenvolveu de acordo com o que era favorável a localidade, focado nas áreas da saúde, direito, engenharia

e

educação.

Com

o

desenvolvimento

social

e

o

crescimento cada vez mais significativo do capitalismo, as exigências e necessidades do mercado profissional em paralelo ao desenvolvimento social e econômico do Estado processa-se a expansão do ensino superior. Todavia é importante frisar que a sociedade paraibana não se 354

desenvolve

economicamente,

como

outros

estados

da

região

Nordeste, a cultura do coronelismo e as próprias dificuldades da região dificultavam o desenvolvimento desse nível de ensino, o atraso foi marcante, comparado com os outros estados que já dispunham de instituições bem elaboradas e estruturadas.

ENSINO SUPERIOR NA PARAÍBA: PRIMEIROS PASSOS O Ensino Superior no Estado da Paraíba foi crescendo de forma fragmentada, e as áreas foram se desenvolvendo isoladamente, todavia estimulava o crescimento significativo desse nível de ensino. As diversas escolas constituíam o Ensino Superior no estado, a partir da especificidade do conhecimento de cada instituição. A primeira instituição de ensino superior do Estado pode ser considerada a Escola de Agronomia do Nordeste, criada no município de Areia no ano de 1934, que segundo Bezerra (2006, p. 54), [...] quem vai se destacar é um representante político de grande capacidade intelectual, o areiense José Américo de Almeida, que, através de seu prestígio junto ao governo federal assumia compromissos políticos de estado, em troca de implementação de algumas Escolas e Faculdades.120

Com a criação da Escola de Agronomia, outras escolas surgiram com o incentivo da pioneira, por exemplo, a Faculdade de Ciências Econômicas e a Academia de Comércio Epitácio Pessoa – ACEP, na cidade de João Pessoa. O mercado em desenvolvimento crescente necessitava de mão-de-obra cada vez mais capacitada, em vista disso, essas são as escolas que marcam na época o início da educação superior no Estado. No decorrer das próximas duas décadas muitas outras escolas e faculdades de ensino, foram sendo criadas no Estado. Em Campina 120

BEZERRA, Francisco Chaves. História, cultura e ensino superior na Paraíba: implantação, estadualização e federalização. SAECULUM – Revista de Historia; ano 06, n. 15, 2º semestre de 2006. Disponível em: Acesso em: 24 maio 2012.

355

Grande a Escola Politécnica e em João Pessoa a Escola de Engenharia, Faculdade de Filosofia, Faculdade de Direito, Escola de Serviço Social, Faculdade de Medicina, Faculdade de Odontologia e a Escola de Enfermagem. Devido às dificuldades enfrentadas pelas escolas e faculdades já existentes no Estado, com a precariedade da estrutura e dos materiais de ensino e práticas, exigidas para melhor capacitação dos estudantes, o governo foi estimulado a criar campos que acomodassem as escolas da educação superior. No sentido, de atender as demandas da sociedade industrializada o Ensino Superior no Estado da Paraíba, se reestrutura a partir de cursos superiores e em 02 de dezembro do ano de 1955 sanciona a Lei Estadual de nº 1.366

121,

que cria a Universidade da

Paraíba, na cidade de João Pessoa, capital do Estado, instituição de ensino superior, dotada de personalidade jurídica e de autonomia didática, financeira, administrativa e disciplinar na forma da lei. A federalização da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) ocorreu no dia 13 de dezembro de 1960, em que foi aprovada e promulgada a Lei nº. 3.835122. Com o passar dos anos a UFPB foi tornando-se cada vez mais sólida e integrada às problemáticas do Estado, contribuindo com o avanço e desenvolvimento deste. A expansão da instituição no contexto de desenvolvimento era factual, a cada ano os responsáveis dedicavam-se ao planejamento dos cursos e áreas como também na elaboração estrutural da Universidade, sendo retratados nesse texto com base em dados de duas décadas, 1990 a 2010, o que pode nos fornecer dados concretos do crescimento da instituição acerca das matrículas, cursos e campus, tendo um panorama geral da expansão institucional nesta década.

121 122

LEI Estadual nº 1.366, 02 de dezembro de 1955. Paraíba 1955. LEI Federal nº 3.835, 13 de dezembro de 1960. Paraíba, 1960.

356

UFPB NA DÉCADA DE 1990 A 2000 No período que compreende a década de 1990, muitas mudanças aconteceram no cenário mundial. O regime autoritário dos anos de ditadura militar refletiam na década que se iniciava, porém, uma nova realidade envolvia o mundo em expectativa de crescimento e

domínio

da

ordem

mundial

sociopolítico-econômica.

O

desenvolvimento foi alcançando os países, em alguns lugares o avanço era notório, porém insatisfatório, já em outros, ainda muito tímido e deficiente como no Brasil. A década de 1990 teve um início conturbado devido problemas políticos e econômicos que influenciaram todas as áreas no país. Novas

exigências

desenvolvimento

contínuo

foram

surgindo

da

sociedade

para e

acompanhar

prevalecimento

o do

capitalismo, entre elas mão de obra qualificada. O mundo girava em torno de um ideal globalizado, com as inovações e inserção das tecnologias que contribuíam para o avanço da comunicação, da economia e política que predominavam no mundo. Com o intuito de qualificar-se, ser reconhecido pela sociedade, ter um bom trabalho, adquirir status social, as camadas mais humildes da sociedade buscavam especialização profissional e o ensino superior deveria atender a esta demanda. O mercado, por influencia do capitalismo,

tornava-se

cada

vez

mais

exigente,

formação

e

qualificação superior, com isso, houve um grande aumento no número de inscrições para os processos seletivos das universidades, porém a oferta de vagas era insuficiente para atender a demanda. No estado da Paraíba não foi diferente, o ensino superior foi crescendo nos anos anteriores e durante a década de 1990, ainda precário a expansão do ensino foi alcançando o interior do Estado, conseguindo assim, qualificar e incentivar a educação nas mais diversas áreas de trabalho.

357

Com a expectativa de inserir-se nesse grupo provido de um melhor nível de instrução, com um bom emprego, reconhecimento profissional, uma condição de vida melhor ou manter o nível social qual já faz parte, o número de inscritos no processo seletivo teve um aumento considerado, exigindo assim uma expansão urgente do ensino superior. Como diz CASTELO BRANCO e NAKAMURA (2012, p. 4). Tal expansão do Ensino Superior no país pode encontrar justificativa na pressão exercida pelos setores médios e pelas camadas mais baixas da população por ascensão social, tendo como via a educação, atendendo à finalidade de consolidação do modelo capitalista industrial e as mudanças de ordem sócio-econômico-política decorrentes de suas necessidades.123

De acordo com o censo do IBGE dos anos de 1991 a 1996 podemos perceber que o crescimento populacional do estado da Paraíba foi de 104.502 mil habitantes, avaliando assim o índice é a cada ano mais significativo, podendo assim perceber que as vagas disponibilizadas a nível superior é muito “aquém” do número anual da população. Na tentativa de suprir a demanda de 16.000 inscritos em média no vestibular, como mostra o quadro abaixo, a expansão dos campus, áreas de conhecimento, cursos, vagas disponibilizadas e candidatos inscritos incentivaram a expansão da Universidade Federal da Paraíba – UFPB. A tabela abaixo mostra como era organizada a UFPB na década de 1990, sua estrutura, os campus, os centros, uma média de vagas disponibilizadas por ano, nessa década e os candidatos inscritos. QUADRO 1 – Centros, cursos, vagas e candidatos da UFPB nos anos 1990. UFPB - Dados anos 1990 Centro Curso Candidat Campus s s Vagas os Campus I - João Pessoa 7 34 2.640 10.403 Campus II - Campina 3 20 989 4.327 123

NAKAMURA, Paulo; CASTELO BRANCO, Uyguaciara Veloso. Expansão do acesso à educação superior: inclusão ou exclusão ampliada? Ano: 2012.

358

Grande Campus III - Areia Campus IV - Bananeiras Campus V – Cajazeiras Campus VI – Souza Campus VII - Patos Total Geral

1 1 1 1 1

2 2 5 1 2

120 40 400 100 80

486 98 918 392 313

15

66

4.069

16.937

Em foco, o Campus I (Campus João Pessoa) dispõe de uma estrutura acadêmica organizada em 7 centros e um total de 34 cursos de Licenciatura e Bacharelado, sendo disponibilizado no ano de 1989 um total de 2640 vagas para 10403 candidatos inscritos no Campus I. A demanda era maior nos Campus I e II, devido a disponibilidade de cursos que qualificavam para áreas de maior interesse para a população na época que, em geral, eram cursos que interessavam aos filhos dos que já eram médicos, advogados, engenheiros ou seja a elite que tinha por objetivo perdurar a situação econômica e o status da família. Já nos Campus localizados no interior do Estado, a oferta de cursos era baixa, refletido pelo baixo número de candidatos às vagas ofertadas e disponibilizados nas áreas de Saúde, Direito, Educação, Ciências Agrárias e Tecnologia Rural. No decorrer da década de 90 o desenvolvimento foi significativo em todos os campus, mesmo com todas as dificuldades imposta pelo contexto de política neoliberais e de reforma do estado brasileiro, que ainda sofria com os reflexos da ditadura. Ainda sim, podemos perceber o avanço na demanda dos cursos, na estrutura física das instituições, nos cursos de pós-graduação e nas pesquisas e extensão, sendo desenvolvidas e aperfeiçoadas para acolher de forma eficaz os estudantes nesta década. Podemos concluir que a década de 1990 avançou muito pouco comparando com os anos anteriores, por influencia do capitalismo todas as áreas da sociedade foram se desenvolvendo, entre elas a educação. O objetivo de educar estava centrado em atender as 359

necessidades do desenvolvimento do capitalismo, portanto o modelo escolar centra-se em formar para o mercado, tornar a mão de obra qualificada e obter resultados satisfatórios, contribuindo assim para o melhor desempenho da economia. Devido a esse crescimento significativo as oportunidades para quem se qualifica é maior e tem por diversas um reconhecimento favorável, mas para isso a dedicação no Ensino Superior em busca de qualificação é indispensável, inserir-se no mercado de forma diferenciado, crescer a renda e status é um desejo de todos, porém as oportunidades oferecidas na Universidade Federal da Paraíba durante a década de 1990 é muito pouca, conquistando a vaga os que conseguem passar pelo processo

seletiva, os que não

conseguissem seria por culpa própria e não pelos processos de exclusão dos quais passa a educação no Brasil. UFPB NA DÉCADA DE 2000 A 2010 A década de 2000 a 2010 foi marcada por diversas mudanças na estrutura da UFPB e também na intervenção de novas políticas publicas de acesso ao ensino superior na instituição, na expectativa de facilitar o ingresso das classes menos favorecidas da população brasileira. Tais mudanças são caracterizadas pelos reflexos da década anterior em que pouco foi feito para atender a demanda contida no processo seletivo da instituição. No que diz respeito à estrutura da UFPB, o primeiro marco significativo desta década ocorreu através da Lei nº. 10.419 de 9 de abril de 2002124, que desmembrou quatro dos sete campus, criando assim a Universidade Federal de Campina Grande, depois de anos de luta da comunidade acadêmica e a sociedade local como um todo. A partir deste desmembramento a UFPB passou a ter quatro campis que foram estruturados da seguinte forma: Campus I na cidade de João

124

LEI Federal nº 10.419, 09 de abril de 2002. Paraíba, 2002.

360

Pessoa, Campus II na cidade de Areia, Campus III na cidade de Bananeiras. No que se refere à oferta e a procura de vagas para o Ensino Superior na Paraíba no período que compreende os anos de 2000 a 2007, nos reportamos aos dados do censo da Educação Superior realizado até 2007, pelo INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) expostos no gráfico 1.

GRÁFICO 1- Quantidade de vagas e de candidatos inscritos no período de 2000 a 2007.

Fonte: MEC/INEP/DEED

Como podemos observar no gráfico 1, a demanda de inscritos nos vestibulares das IES da Paraíba foi superior à quantidade de vagas oferecidas pelas IES da Paraíba tanto públicas quanto privadas em todos os anos. No ano de 2000 foram ofertadas 12.355, já em 2007 esse número chegou a 28.074, ou seja, houve um acréscimo considerável, mas que ainda sim não atende, satisfatoriamente, a quantidade de inscritos nas IES.

361

Segundo o Censo do IBGE realizado no ano 2000125, a população de faixa etária de 20 a 24 anos, que de acordo com o MEC são idades próprias para ingresso no Ensino Superior, era de 323.117 pessoas, ou seja, 9,4% da população neste ano. Ao compararmos a quantidade de vagas ofertadas com o número de pessoas que estão em idade de ingresso nas IES percebemos que, se todas essas pessoas tentassem o ingresso em alguma IES do estado, apenas 3,8% conseguiriam.126 Tais dados demonstram que a criação de políticas que visassem à expansão da oferta de vagas, principalmente no setor público, era emergente. A partir disto uma nova mudança é instituída na UFPB: a criação do campus do Litoral Norte (Campus IV) através da Resolução do Conselho Universitário (CONSUNI) nº 05/2006127, funcionando nas cidades de Mamanguape e Rio Tinto. A

necessidade de ampliação do acesso às

IFES foi

se

caracterizando como urgente e algumas ações foram pensadas para suprir a demanda de procura ao ensino superior em todo o país. Nesse contexto surge no cenário federal, como política governamental de expansão o REUNI (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais) instituído pelo Decreto nº. 6.096, de 24 de abril de 2007128, a fim de criar condições para a ampliação do acesso e permanência na educação superior. O cenário da UFPB após a criação do REUNI foi se modificando e de 2007 a 2010, segundo fontes do site da UFPB, o Programa contemplou a criação de 938 vagas a mais nos cursos já existentes. No que tange a criação de cursos, até 2010, 10 novos cursos haviam sido

125

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2000: Resultados Preliminares. Rio de Janeiro: IBGE; 2000. Disponível em: Acesso em: 20 ago. 2012. 126 ATLAS do Desenvolvimento Humano no Brasil. Brasília: PNUD, 2003. Disponível em: .Acesso em: 02 set. 2012. 127 RESOLUÇÃO CONSUNI nº 05/2006, UFPB, 2006. Disponível em: . Acesso em: 10 ago. 2012. 128 RESOLUÇÃO CONSUNI nº 27/2007, UFPB, 2007. Disponível em: . Acesso em: 02 set. 2009.

362

criados, sendo desses 9 no campus I (João Pessoa) e 1 no campus II (Areia). Na medida em que a oferta de vagas foi aumentando, a necessidade de ingresso de alunos de várias classes sociais, foi brotando, fazendo com que fosse aprovada a Lei de nº. 3.627/2004129 que “Institui Sistema Especial de Reserva de Vagas para estudantes egressos de escolas públicas, em especial negros e indígenas, nas instituições públicas federais de educação superior”. Na perspectiva de cumprir o que determina essa lei, outra política significativa para o acesso à UFPB, aprovada pelo CONSEPE (Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão), através da Resolução nº 09/2010130 que“Institui a Modalidade de Ingresso por Reserva de Vagas para acesso aos cursos de Graduação, desta Universidade, e dá outras providências”. A resolução ainda propõe que a reserva de vagas para todos os cursos ocorrerá de maneira gradativa, iniciando com 25% das vagas em 2011. Chegando ao último ano da década de 2000, foram oferecidas no Processo Seletivo Seriado realizado pela COPERVE (Comissão Permanente do Vestibular) em 2010 um total de 113 cursos e de 7.145 vagas descritos no quadro 2.

QUADRO 2 – Cursos e vagas oferecidos no Processo Seletivo Seriado, UFPB 2010. PROCESSO SELETIVO SERIADO (PSS) 2010 ÁREAS DE CONHECIMENTO

CURSOS

Ciências Agrárias

VAGAS 5

129

PROJETO-LEI nº 3.627/2004. Disponível projlei3627.pdf> Acesso em: 09 ago. 2012 130

em:

350


RESOLUÇÃO CONSEPE nº 09/2010, UFPB, 2010. Disponível em: Acesso em: 14 set. 2012.

363

Ciências Biológicas e da Saúde

15

1.065

Ciências Exatas e Tecnológicas

26

1.485

Ciências Humanas e Sociais

61

4.055

4

160

2

30

113

7.145

Graduação em música, teatro e

artes

visuais. Cursos superiores sequenciais em música.

TOTAL GERAL

Se compararmos com o ano de 1990 e voltarmos ao quadro 1, teremos um acréscimo significativo de cursos e vagas, pois com apenas 4 campus, os números que fecharam a década de 2000 quase chegam a dobrar, tanto na oferta de vagas, quanto de cursos, significando um grande avanço no que se busca com a instituição de medidas que facilitem o acesso à UFPB. Diante destas mudanças, podemos observar que o período de 2000 a 2010 foi, para a UFPB, sinônimo de grandes transformações ocorridas tanto em algumas políticas internas quanto de ações afirmativas que contemplam, sobretudo, a expansão do Ensino Superior na Paraíba. O acesso, por sua vez, é defendido pela instituição para diminuir a disparidade entre os que conseguem ingressar e os que almejam, criando novos cursos e vagas a fim de promover a tão sonhada equidade. CONSIDERAÇÕES FINAIS Analisando as duas décadas, podemos concluir que no período entre 1990 a 2010, vários fatores influenciaram para a evolução do ensino superior no Estado da Paraíba. Mesmo com todas as dificuldades presentes no âmbito social provenientes dos anos anteriores ao período estudado, refletiram de forma direta na trajetória desse nível de ensino. As modificações e os avanços estimularam o crescimento das IFES, 364

como também as propostas de ingresso nas instituições particulares financiadas pelo próprio governo, podendo esse, ser um investimento na educação superior pública. Mesmo com todos esses aspectos o ensino público destaca-se no Estado como sendo o melhor ensino. A sociedade girava em torno de um ideal, o capitalismo moldando todos os aspectos sociais a essa política globalizada, determinando a educação, em todos os seus níveis, como principal ponto de formação, permanência e consagração do capitalismo. Em vista disso o crescimento da sociedade baseava-se no desempenho econômico, ou seja, o mercado necessitava de mão de obra qualificada, para que a situação financeira coletiva e individual favorecesse o crescimento no nível da renda mensal dos indivíduos e principalmente na economia geral. Portanto, na busca de qualificação e reconhecimento profissional social desses indivíduos o ensino superior cresceu significativamente, pois as propostas de inclusão nesse mercado são mais vantajosas para quem se qualifica a nível superior. Durante esses vinte anos a demanda de inscritos no vestibular da UFPB teve um crescimento considerável, necessitando de mudanças estruturais e organizacionais com a proposta de “facilitar” o acesso dos indivíduos nela inscritos. Em vista que o ensino superior teve um crescimento considerável nos anos de 2000 a 2010, mesmo esse aumento ter prevalecido na rede particular com o financiamento do governo, houve políticas públicas de acesso também na rede pública. O Reuni possibilitou o ingresso da classe menos favorecidas, expandindo o acesso ao ensino superior, mas nada que supra a demanda da população que se inscreve no vestibular anual da UFPB, possibilitando avanços nas áreas de conhecimentos e evolução dos cursos e das disciplinas nos diversos campus da UFPB.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

365

ATLAS do Desenvolvimento Humano no Brasil. Brasília: PNUD, 2003. Disponível em: Acesso em: 02 set. 2012. BEZERRA, Francisco Chaves. História, cultura e ensino superior na Paraíba: implantação, estadualização e federalização. SAECULUM – Revista de Historia; ano 06, n. 15, 2º semestre de 2006. Disponível em: Acesso em: 24 maio 2012. CASTELO BRANCO, Uyguaciara Veloso. A construção do mito do “Meu filho doutor”: Fundamentos históricos do acesso ao ensino superior no Brasil-Paraíba. João Pessoa: Universitária UFPB, 2005. CENSO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR, MEC/INEP. Disponível em: . Acesso em: 08 jun. 2012. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2000: Resultados Preliminares. Rio de Janeiro: IBGE; 2000. Disponível em: http://www.censo2010. ibge.gov.br/sinopse/webservice/default.php?cod1=25&cod2=&cod3=2 5&frm=pirâmide. Acesso em: 20 ago. 2012. LEI Estadual nº 1.366, 02 de dezembro de 1955. Paraíba 1955. LEI Federal nº 3.835, 13 de dezembro de 1960. Paraíba, 1960. LEI Federal nº 10.419, 09 de abril de 2002. Paraíba, 2002. PROJETO-LEI nº 3.627/2004. Disponível em: Acesso em: 09 ago. 2012 RESOLUÇÃO CONSUNI nº 05/2006, UFPB, 2006. Disponível em: . Acesso em: 10 ago. 2012. RESOLUÇÃO CONSUNI


27/2007, UFPB, 2007. Disponível em: sods/consuni/resolu/2007/Runi27_2007.htm>.

RESOLUÇÃO CONSEPE nº 09/2010, UFPB, 2010. Disponível em: Acesso em: 14 set. 2012.

366

URBANIDADE E MEMÓRIA DOS MORADORES DO BAIRRO DE PONTA GROSSA, MACEIÓ – ALAGOAS. José de Oliveira Junior131

Resumo: A cidade de Maceió situada no Estado de Alagoas possuía 25 espaços habitados considerados como bairro. No ano 2000 o número de bairros na cidade aumenta para 50. Com esta nova configuração os espaços habitados da cidade passaram a ser divididos em sete regiões administrativas. Cada localidade reúne um grupo de bairros de uma mesma região administrativa. Deste modo, Ponta Grossa é um dos mais antigos da cidade de Maceió que sofreu e vem sofrendo alterações significativas com os avanços da urbanização e o modo de ser da urbanidade verificada nos últimos tempos no mundo, no país e na capital. Ao longo do tempo habitado o número de moradores desta localidade vem crescendo expressivamente e, com isso, surgiu também às transformações das antigas formas de sociabilidade. Pesquisou-se a história e identidade sócio-espacial do bairro de Ponta Grosa, sendo o objetivo desta investigação a construção urbana da sociedade brasileira através da urbanização do bairro e a memória e história dos moradores desta localidade da cidade de Maceió.

Palavras-chave: Urbanização – Cidade – Memória.

INTRODUÇÃO

Sigo sentindo o cheiro das ruas. Cada uma delas por onde passa o ônibus, traz-me odores e me traz lembranças. [...] É subúrbio isto aqui. Bairro é melhor assim (JAMBO, 1998, p. 19).

A partir da epígrafe de Arnoldo Jambo (1998), quando em cuja obra descrevia suas sensações e percepções a respeito do bairro do Poço, em Maceió, foi possível pensar o bairro de Ponta Grossa, também localizado na cidade a partir da história através das memórias. Sua abordagem sobre a história espacial e social se faz necessária porque 131

Graduado em Ciências Sociais (UFAL), Mestre em Sociologia (UFAL). Professor titular do ensino básico, técnico e tecnológico (EBTT), no Instituto Federal de Alagoas - Campus Maceió. Integrante do o Grupo de Pesquisa GEMPE - Grupo Multidisciplinar de Estudos e Pesquisas em Educação (IFAL). [email protected].

367

estaremos descrevendo percepções, sentimentos, pontos de vista. Sendo o objeto desta investigação a construção urbana através do desenvolvimento da cidade, da urbanização e da memória e história dos moradores de uma localidade e comunidade. Deste modo, analisamos o surgimento do bairro de Ponta Grossa para que pudéssemos entender o que pensam seus moradores acerca do local. Quem são as pessoas que vivem no bairro. E o que pensam. Como vivem. Como vêem o lugar que habita. Pretendemos refletir a respeito da condição humana de sujeitos que constroem a sociedade e comunidade num mundo marcado pela diferença, exclusão, falta de respeito, à vida na cidade e a superação das dificuldades impostas pelo sistema capitalista no modo de gerir nossa conduta dentro da sociedade contemporânea complexa. Estudar o local é importante para que possamos perceber de que maneira o processo de urbanização das cidades – e mais especificamente da cidade de Maceió – vem se desenvolvendo e de que forma pensamos os espaços sociais e culturais populares no Brasil. Através da memória individual dos moradores do bairro buscar-se-á uma memória coletiva e social sobre a história do local e do global. Pensar o bairro me faz lembrar as práticas e vivências do ser e do vir a ser numa sociedade e cultura contemporânea complexa. Por ser morador durante 32 anos e ter crescido nesta localidade da cidade pude, assim como tantos outros habitantes, construir uma memória e história a respeito do espaço e seu modo de ser e estar num mundo concreto. A infraestrutura foi fazendo parte do bairro na medida em que a cidade era pensada e tratada de acordo com a “lógica do capital”

132.

Alguns trabalhos sociais e culturais surgiram e foi sendo construída uma identidade sócio-espacial. Aqui é um lugar pobre e de classe média.

132

Modo de falar, pois sabemos que o sistema capitalista não tem nenhuma lógica. Expropria e exclui os sujeitos que nada possuí e enaltece os interesses dos dominantes.

368

Por isso, o meu objetivo foi realizar um estudo sistemático do bairro de Ponta Grossa. Deste modo, o passado de Ponta Grossa, através da memória como metodologia de análise tornou-se um caminho possível para interpretar e entender de que maneira e como viveram e vivem hoje os moradores desta localidade da cidade, bem como um caminho para redescoberta dos processos de desenraizamento social e cultural, e para a redefinição dos projetos que articulam passado, presente e futuro. As práticas e costumes sócio-culturais de antes existem como lugar presente na memória individual e na conservação de algumas formas de tradição. Mulheres, crianças, velhos, não são classes, mas aspectos diversificados que existem entre as classes, pois o que define a classe social é sua posição ocupada pelos sujeitos nas relações objetivas de trabalho. Caminhar e ver são confundidos pela lembrança. O tempo de lembrar é o tempo de trabalhar. As pedras da cidade traduzem o esforço de cultura desenvolvida pelos seres humanos que trabalharam. As sociedades destroem os apoios da memória e substituem a lembrança pela história oficial comemorativa. Com a destruição dos suportes da memória a sociedade através de sua cultura de consumo bloqueou os caminhos do lembrar. Arrancou seus marcos e apagou seus rastros. A memória não é oprimida apenas porque seus suportes materiais foram tirados e roubados, mas devido à história oficial que enaltece a vitória do vencedor e esmaga a tradição dos vencidos. Deste modo, as memórias pessoais e grupais são invadidas por outras histórias que roubam o sentido das primeiras, a transparência e a verdade. Lembrar, de acordo com Ecléa BOSI (1994), não é reviver e sim refazer com a reflexão buscando uma compreensão do outrora a partir do agora. É sentimento do feito e do ido, um fazer lembrar.

369

O tempo da memória é social e cultural. O indivíduo lembra o que o grupo transmite e aquilo que vive e signifique. Tempo e espaço existem nas lembranças. No entanto, estamos vivendo e sentindo o desencaixe desse espaço e tempo. Por isso, segundo ROCHA e ECKERT, “a matéria do tempo traduz em raios ondulatórios lembranças e reminiscências cujos feixes de ondas se transformam reciprocamente em matéria” (2001, p. 31- 2). O concreto habita a memória porque está na lembrança vivida e sentida. Reviver o tempo que passou é aprender e ver o que foi e como tem sido. A memória é um fragmento do evento e cotidianidade do que passou. Por isso, o sentido das identidades consiste nos arranjos e rearranjos dos pedaços e fragmentos do passado. Habitar e ser habitado pela cidade e pelo bairro. Deste modo, a pesquisa tem um caráter interdisciplinar porque pensar a urbanidade da cidade e toda a riqueza social e cultural, bem como sua complexidade, requer múltiplos olhares e saberes.

A CONSTRUÇÃO URBANA DA CIDADE DE MACEIÓ De acordo com Dirceu LINDOSO (2000), o Estado de Alagoas surge a partir de um projeto mundial de ocupação e conquista do mercantilismo da Europa nos séculos XVI e XVII. Com a colonização do Brasil instalou-se o processo de conquista e distribuição do território; no início Alagoas fazia parte do território de Pernambuco. Os pólos de colonização no extremo sul de Pernambuco eram Penedo (1570), o de Porto Calvo (1590) e o de Santa Luzia do Norte (1608) – Alagoas (1611). Desde o início da colonização brasileira pelos portugueses, Alagoas possuía uma população indígena hostil dominada pelos Caetés133 que de certo modo retardaram a sua conquista e exploração. 133

Os índios Caetés foram os primeiros habitantes da região que pertenciam à nação Tupi, eram excelentes pescadores e caçadores; também eram belicosos, traiçoeiros e antropófagos. Com o naufrágio da nau Nossa Senhora da Ajuda, na costa de Alagoas no ano de 1556 comeram o bispo Pero Fernandes

370

A velha capital de Santa Maria Madalena da Lagoa do Sul foi precursora no nosso processo de desenvolvimento e modo de ser, pensar, estar. Foi a partir do crescimento populacional e habitacional bem como das duas lagoas: Mundaú e Manguaba que os hábitos e costumes dos populares através de seus ritos culturais criou Maceió. A cidade de Alagoas mergulha na cultura lagunar enquanto que a de Maceió passa a dominar o litoral. Foi o brejo, o pântano, o mangue que a expansão urbana conquistou e aterrou. O bairro da Cambona foi o início de uma zona suburbana no rumo da lagoa Mundaú. O bairro de Jaraguá começava a surgir e nele foi erguida a igreja de Nossa Senhora Mãe do Povo. Posteriormente a 1840, as construções ganham espaço e surgem prédios com estilo Greco-Romano. Cresce Maceió. No ano de 1927 de acordo com DIEGUES JÚNIOR o prefeito da cidade, Moreira Lima, coloca em linha reta a velha Rua do Açougue que era conhecida como 1º de março, provocando um reboliço na vida urbana (1981, p. 201). Foram derrubados os velhos quarteirões de taipa existente na área central da cidade e os moradores foram expulsos para a periferia, para os bairros mais afastados e sem infraestrutura. Em seu lugar foram construídas casas modernas. Assim como ocorre a transformação dessa rua, outras também passaram a ser modificadas. Os bairros e arrabaldes da cidade de Maceió passam a ser renovados e construídos. Bairros como Jaraguá, Poço, Farol, Trapiche da Barra, Levada, Bebedouro, que são os mais antigos são investidos de ruas novas, palacetes, casas, praças com estatuas de animais, homens lutando com bichos, figuras do Olimpo, deuses mitológicos, tudo isso a partir da década de trinta em diante. Desse modo, as praças nesse período passam a ter maior importância e significado tirando as pessoas

Sardinha e outros náufragos. O governo português empreendeu uma caçada sanguinária a esta etnia, dizimando quase todos, os sobreviventes foram escravizados. Informação obtida no sítio http://www.museudouna.com.br/ curiosidade.htm, consultado em 08 de setembro de 2009.

371

de casa e levando-as as ruas para freqüentar os novos espaços públicos que surgem. Desta maneira, DIEGUES JÚNIOR diz que, [...] o contato com a rua não é privativo dos moleques, dos negros, dos vagabundos, das mulheres perdidas. As famílias já procuram as ruas, já vão às praças, já assistem os festejos públicos (1981, p. 202).

Com a democracia política a partir da República alcançamos de certa forma uma democracia social. A rua passa a ser uma atração, mas não seria um lugar de mistura de classes e sim de segregação, disputa de classes. Os hábitos das cadeiras nas calçadas que se torna símbolo do contato mais íntimo da família com a rua e com o que nela se passa e com quem passa foi um comportamento surgido com a urbanização da cidade. DIEGEUS JÚNIOR diz que, [...] os homens vestidos de pijama, espichados em cadeiras preguiçosas, as senhoras de chinelos sem meias, recostadas em cômodas cadeiras de balanço, as crianças sentadas na beira da calçada ou brincando de roda, de calçadinha de ouro, de cabra-cega. A rua vai mudando a fisionomia, perdendo aquele ar de coisa feia com que ainda nos dias do período imperial era tratada pelas famílias. Com essa aproximação com a rua, a freqüência à praça – uma oportunidade de contato coletivo para amostra de vestidos, de chapéus, de sapatos, tão ainda ao gosto da cidade – torna-se mais assídua (1981, p. 202-03).

As praças na cidade transformam-se no cenário do passeio, dos encontros, conversas, namoros, passarela de moda e estilo. Nelas, a partir da década de 20 e 30, aconteciam concertos que eram freqüentados de início por pessoas mais requintadas da sociedade, em seguida, foram recebendo também pessoas simples e de toda a sociedade. Outro fator de aproximação com a rua, e não com a elite social e cultural local, eram as festas religiosas de elevada concorrência. Os espaços públicos serão os palcos do folclore produzido pelos populares em busca de diversão e lazer. Desta maneira, segundo Maria Aparecida SILVA “[...] A memória é fragmentada. O sentido da identidade consiste nos arranjos e rearranjos constantes dos pedaços, dos fragmentos de acontecimentos passados” (2001, p. 372

301). O passado condiciona o presente impondo um modo de ser, estar, pensar, sentir. Lugares provocam sentido porque produzem sentidos. As vegetações de anos atrás vão dando lugar a paisagem de ruas e avenidas que surgem na cidade. Desse modo, no ano de 1950 a população da cidade chega a 120.980 habitantes. Dez anos depois os dados censitários revelam que a cidade passa a ter 170.134 habitantes. Com uma área de 508 km², conforme nos mostram dados da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra 134, a cidade apresentou uma progressão de sua densidade demográfica bastante relevante. No ano de 1950 a população de Maceió era de 238,1 hab./km². Na década seguinte, ou seja, nos anos 60, aumenta para 334,9 hab./Km², nos anos 70 atinge-se 519,0 hab./km², no entanto, a tendência seria o aumento dessa proporção fazendo com que no final de 1985 a estimativa chegasse a ter uma elevação para 1.056,1 hbts/ km² Nos anos de 1980 a população de Maceió era de 392.254 habitantes.

Nos

anos

de

1990

essa

população

aumenta

significativamente passando para 583.343, de acordo com dados do IBGE. A partir de novos estudos feitos de acordo com alguns dados do IBGE referente ao ano de 2004 a área da cidade de Maceió corresponde a 511 km2 e sua situação geográfica corresponde à seguinte: micro região de Maceió; possui limites com Rio Largo, Satuba, Santa Luzia do Norte, Coqueiro Seco, Marechal Deodoro, Paripuera, Messias e Flexeiras. Tem uma população total de 2.822.621 habitantes, sendo a população urbana da cidade de Maceió correspondente a 1.919.739. Com os dados preliminares do IBGE através do resultado do

134

Associação dos Diplomados da Escola superior de guerra. Delegacia de Alagoas/Sergipe. 6º Ciclo sobre Segurança Nacional e Desenvolvimento – Alagoas. Maceió – O Impulso habitacional e suas repercussões ecológicas nos bairros residências existentes e emergentes – 1976.

373

último censo de 2007 a cidade hoje possui 2.183.014 habitantes na área urbana. Deste modo percebemos de que forma a população aumenta e com ela os problemas de moradia, saneamento básico, transportes, trabalho, renda etc.. A cidade de Maceió ao longo dos últimos 20 anos tem sido palco de uma crescente concentração demográfica de acordo com alguns dados obtidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), nos anos 80, como a capital que mais cresceu nos últimos tempos no Brasil. No ano de 2000, a cidade teve oficialmente definido em 50 o número de bairros existentes. Antes da sanção da lei que definiu o novo abairramento da cidade, eram reconhecidas como bairros apenas 25 localidades definidas a partir da divisão censitária do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Com 511 km 2 total de área, a cidade possui 233 quilômetros considerados de área urbana. A partir da nova configuração do abairramento definitivo da cidade esta passou a ser dividida em sete Regiões Administrativas onde cada uma tem reunido um grupo de bairros de uma mesma região e com características que parecem ser semelhantes, mas que tem algo de específico e significativo. As cidades e os bairros, de acordo com Maria do Carmo VIEIRA (1997), possuem histórias peculiares, vida coletiva organizada de forma característica, isto é, sistemas de relação que os distinguem de outras cidades e outros bairros.

O BAIRRO NA MEMÓRIA Quando depoimentos de populares são registrados através da gravação, transcritos e publicados, podemos conhecer a própria visão que os segmentos menos favorecidos têm de suas vidas e como percebem o mundo ao seu redor. A memória contém elementos 374

básicos para a construção de uma determinada concepção histórica e simbólica. Ela tem como característica fundante o processo reativo que determinada realidade provoca no sujeito. Ela é formada a partir da reação, efeitos, impactos sobre o grupo e o sujeito construindo todo um imaginário que passa a ser referência permanente de futuro. A fonte da memória é distinta da fonte histórica devido sua dimensão

do

próprio

efeito

como

os

eventos

ou

situações

desencadeiam. A memória individual ou coletiva quando reelabora o real, o vivido, adquire uma dimensão baseada na construção imaginária ou baseada em influências do presente e nos efeitos que essa representação provoca social e individualmente. O tempo da memória é distinto da temporalidade histórica porque sua construção está associada ao vivido e a uma dimensão do inconsciente. Está vinculado a uma elaboração da subjetividade coletiva e individual. A narração é um dos elementos determinantes da fonte documental quando se trabalha com memórias. Por isso, a abordagem direta de um assunto ou evento nem sempre faz desencadear um processo de rememoração. A memória não é um mecanismo de gravação, mas seleção que a todo o tempo e momento sofre alterações. Com isso, a cidade e o bairro passam a ser corpo onde se inscrevem

sentimentos

e

eventos,

experiências

intransmissíveis

e

peculiares. Deste modo, Antônio Torres MONTENEGRO, expressa que:

[...] A cidade é um mundo em miniatura – nômada da modernidade, e como toda nômada benjaminiana é cristalização de tensões: passagem de um espaço flutuante entre o interior e o exterior das Passagens, o real e o irreal, a desvalorização mercantil de tudo e a nova aura do imprevisto (2007, p. 27).

A partir de eventos passados e presentes são estabelecidas representações que nos faz projetar um campo de ação. A fala é um 375

meio de comunicação muito importante para as populações pobres. Vivem a radicalidade do dia-a-dia dos bens materiais e de consumo. As histórias de vida mostram um processo de socialização de uma visão do passado, presente e futuro das camadas populares consciente ou inconscientemente. Segundo Antônio T. MONTENEGRO “[...] a fala é fonte de aprendizagem mas é também instrumento de luta [...]” (2007, p. 46). Na medida em que um sujeito fala, escuta, e através dessa escuta as idéias são percebidas e sentidas fazendo com que essa fala se transforme em signos e sentidos de um instrumento de luta. Desta forma, aqui daremos ênfase a fala registrada dos moradores onde o critério de escolha para as entrevistas aconteceu de uma maneira aleatória. Foram realizadas nove entrevistas em sua maioria com mulheres com idades que variam entre 47 anos a 88 anos. Entrevistamos mulheres porque os homens abordados se recusaram a falar.

A partir das entrevistas poderemos perceber de que forma

algumas memórias sobre o bairro foram construídas e como as identidades sócio-espaciais se enraizaram no modo de estar e habitar o lugar. Dito isso, vamos ao que falaram e evocaram as moradoras em relação ao tempo de moradia no bairro de Ponta Grossa, como era o bairro e quais as modificações ocorridas. Muitas destas pessoas estão no lugar há bastante tempo e presenciaram o processo de urbanização se expandido. Desta forma dizem que, Somente eu vai fazer 62, o meu pai comprou essa casa em 1939, foi quando ele casou-se e nós nascemos todos aqui nessa casa. Eu conheci... isso aqui era tipo um povoadozinho, casas de taipa, ali n’aquela parede verde ali era um sítio que tinha um riachozinho... na Rua Soledade, era o nome antigo, ali o povo gostava de pescar, pegavam camarão onde hoje é o conjunto Veneza, ali era um sitiozinho, então encostado naquela parede de lá, encostada na parede branca, tinha um, tinha um riachozinho que dava camarão, peixinho, aquelas piabazinhas e o povo pescava pra sobreviver. As casas eram todas de taipa, a rua era toda na areia preta, depois com a evolução do tempo foi que foram ajeitando as casas. Meu pai construiu essa daqui, construiu essa outra aqui e foi

376

melhorando assim as condições do bairro, mas que antes a situação eu acho que era precária porque não tinha casas, as casas eram tudo de taipa, e depois foi que passaram o calçamento... Olhe que eu saiba quase nada, só que as casas já estavam velhas e o povo foi melhorando-se financeiramente e foi construindo, fazendo casa de satimbandas, de tijolo, somente, e esse calçamento que fizeram, somente mais nada, paralisou tudo135. Eu nem sei bem minha idade... Menino ta fazendo, vai fazer muitos anos... (pergunta a filha, qual é teu ano? 58 anos; ela disse que chegou aqui com 15 anos) cheguei aqui com 15 anos essa é minha segunda filha com essa idade avalie... quanto é 58, quer dizer que é mais ou menos assim, 59, eu vim pra aqui pra essa rua com 15 anos. Não quero nem falar, era uma coisa tão horrorosa essa Ponta Grossa, agora ta uma, vixe nossa senhora, ta uma beleza. Mato não tinha não, mas não existia esse calçamento, as casas eram tudo de taipa, tudo mesmo, essa daqui era meu Deus caio, não to caindo e muitas aqui, só nesse pedaço que eu moro, nesse pedaço faz muitos anos, agora ta muito diferente, eu tinha um cunhado que ele morava lá em cima, nessa mesma rua, era no tempo que essa rua era aquela beleza (ironizando) ele foi embora para o Rio, passou uns 10 anos mais ou menos pra lá sem vir aqui quando ele veio, o irmão morava aqui comigo e à mãe Marina, ele não acertou que disse que a Ponta Grossa tava diferente né, diferente mesmo, ai agora ta especial. Ponta Grossa toda, mas naquele tempo meu Deus... Rio não tinha agora quando chovia, meu Jesus Cristo agüentasse as portas136. A mais de 40 anos que moro no bairro, bota mais do que isso. Eu cheguei para morar aqui era pequena, já estou dessa idade, repare quanto tempo está. Tudo era o barro, ô meu Deus, só tinha areia, areia mesmo, aquelas areia pronto, e era mato num canto e mato no outro, pronto. As casas tinham uma aqui, tinha outra lá em baixo e uma aqui, era umas três casas. Muita coisa... depois que mudou as coisas pronto foram melhorando botando as casas, foram alugando e o povo entrando, oxê, quando deu fé tava uma beleza 137.

Estas são as lembranças de algumas moradoras que estão no espaço habitado do bairro de Ponta Grossa durante um longo tempo de suas vidas. Ao falarem do tempo habitado nesta localidade e

135

Depoimento de Dona Lourdes (61 anos). Local: Maceió. Data: 17/12/2008. Depoimento de Dona Marinete Barbosa (88 anos). Local: Maceió. Data: 17/12/2008. 137 Depoimento de Dona Maria José (85 anos). Local: Maceió. Data: 27/01/2009. 136

377

descrever o desenvolvimento do mesmo percebemos de que maneira as memórias são construídas e com ela suas identidades sócioespaciais. Pudemos perceber de que forma as memórias vão sendo selecionadas e como uma parece se apoiar na outra. De acordo com Antônio T. Montenegro (2007), entre a descoberta e a apropriação da fala ocorre um processo de interiorização e transformação do imaginário popular que se reconhece. Por isso, a fala é fonte de aprendizado porque é instrumento de luta. As memórias dos sujeitos se confundem se equivocam, mas evocam os anos passados no concreto e dos eventos significativos. Quando perguntadas a respeito do bairro ser um bom lugar ou não para se morar todas foram unânimes em afirmar como Dona Neilde Viana de 57 anos, “[...] é um bairro bom, tranqüilo”138. Para Dona Ângela Maria de 47 anos, “É ótimo, aqui é [...] eu não saio daqui, só saio daqui pro cemitério, não troco por nenhum outro bairro, nenhum lugar nem do mundo, nem de Maceió pra sair daqui não, nem que eu tivesse dinheiro eu não sairia daqui”

139.

Para Dona Maria José, de 85 anos, “É.

Pra mim é um bom lugar, pra mim”

140.

E, Dona Maria de Lourdes de 61

anos, afirma que “Eu acho, eu gosto daqui é um bairro pacato, agora que esta aparecendo ladrão que já vem de fora...”

141.

Todas as

moradoras mais antigas concordam que o bairro é um bom lugar para se morar. Aqui construíram sua morada e lar, educaram seus filhos, fizeram suas histórias. Deste modo, percebemos como as identidades estão ligadas ao espaço habitado e de que forma o desenvolvimento sócio-espacial, através da chegada de infraestrutura e urbanização, fez com que os moradores do bairro gostem e cuidem do lugar, dentro daquilo que podem e querem fazer. As moradoras entrevistadas se expressam em relação ao bairro como sendo um bom lugar para se viver, morar e estar. Isso na fala dos 138

Depoimento de Dona Neilde Viana (57 anos). Local: Maceió. Data: 27/01/2009. Depoimento de Dona Ângela Maria (47 anos). Local: Maceió. Data: 27/01/2009. 140 Depoimento de Dona Maria José (85 anos). Local: Maceió. Data: 27/01/2009. 141 Depoimento de Dona Lourdes (61 anos). Local: Maceió. Data: 17/12/2008. 139

378

mais velhos, pois, para os mais jovens a resposta sobre este assunto é completamente oposta. Para alguns deles o bairro não é interessante por ser pobre e não oferecer nada de atraente e atrativo. Enquanto os que ocupam o espaço habitado por mais tempo e acompanharam o processo de desenvolvimento do local dizem que é um bom lugar por fazer parte de suas histórias escritas no chão, de perdas e ganhos; os moradores mais jovens não se sentem pertencentes ao lugar pelo fato de trazer à tona a realidade concreta e as limitações e alienações impostas pelo capital. Em nossas memórias só conseguimos guardar aquilo que fica e significa, isto porque, somos seres completamente influenciados pelo mundo externo e esse mesmo mundo externo ao qual fazemos e somos parte nos faz lembrar a todo instante o nosso verdadeiro papel dentro dele. A memória nos dias atuais serve como se fosse um banco de dados com informações supérfluas e manipuláveis. No apogeu da civilização grega a memória era fato e transcendência. Com o tempo cada parte da memória individual passou a ser fragmento da memória coletiva. É através da memória e de sua conservação que poderemos conduzir ou distanciar-se das coisas ligadas à vida humana e sua conduta neste mundo histórico, pois é a memória que nos dá a vida e que nos faz buscar o significado que queremos dar a nossa existência neste mundo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O processo de desenvolvimento e crescimento das cidades e seus sujeitos é algo que vem de longa data. Não desejamos traçar uma evolução, mas pensar cronologicamente a partir da história do tempo de que forma as cidades surgiram e como se desenvolve. Este itinerário se fez necessário para que pudéssemos entender de que forma as 379

cidades brasileiras e, mais especificamente a cidade de Maceió, se desenvolve e com ela seus habitantes. Como os espaços foram e são ocupados e pensados pelo poder público. O processo de urbanização e urbanidade é um fenômeno mundial porque o sistema capitalista conquistou lugares, povos e nações. Para que fosse necessária a circulação das mercadorias e produtos os espaços habitados precisariam se adequar e adaptar ao novo modo e estilo de vida que surgia. No Brasil, as cidades cresceram ao redor de uma praça central e devido à expansão marítima comercial. A colonização portuguesa não se preocupou em construir, mas consumir e destruir. A partir das constantes invasões e da descoberta de riquezas é que o espaço será pensado de uma forma a ser habitado. A cidade de Maceió, no Nordeste brasileiro, crescerá enquanto um projeto colonial aqui instalado. Com o fim da colônia e o começo da república faremos parte de um Estado Nacional. Deste modo, prédios, ruas e bairros surgirão devidos o aumento populacional e a vontade política em trabalhar em prol do capital e demonstração de poder e status. O bairro de Ponta Grossa surgirá enquanto um lugar inóspito e pouco habitado. Ao longo do tempo transforma-se em lugar de reduto de festeiros e cultuadores da religião afro. Ganha salas de cinema e praças. Cresce o local. Com seu crescimento e desenvolvimento diversas pessoas de vários lugares da cidade e vinda de outras localidades passam a habitá-lo. Existem moradores que nasceram e cresceram aqui, deste modo, as memórias construídas dizem respeito ao lugar. O bairro passou a fazer parte das memórias posto que se enraizasse no corpo e nas falas. A memória é a faculdade de entendimento e conhecimento do mundo concreto permeada de imagens e lembranças do passado evocadas no presente. Memória é trabalho e instrumento de luta. Os moradores do bairro de Ponta Grossa lembram o local porque faz parte de suas vidas e vivências. A partir das experiências e 380

dos eventos vividos e sentido o lugar habita a memória. Lembranças foram colhidas para entendermos e percebermos de que forma as identidades sócio-espaciais foram e são construídas. Para os moradores mais antigos, como já foi dito, o bairro fica porque significa. Diferentemente dos mais jovens que vêem o local de uma forma sem significado e perspectivas. Os espaços se tornam habitados e habitáveis porque o processo de urbanização passa a ser instalado e incentivado em toda parte. No passado as ruas eram suporte de trajeto e malandragem. Ao longo do tempo passará a ser um lugar de encontros e desencontros. Não só um lugar de passagem, mas de eventos e personagens. Um espaço público.

FONTES Depoimento de Dona Lourdes (61 anos). Local: Maceió. Data: 17/12/2008. Depoimento de Dona Marinete Barbosa (88 anos). Local: Maceió. Data: 17/12/2008. Depoimento de Dona Maria José (85 anos). Local: Maceió. Data: 27/01/2009. Depoimento de Dona Neilde Viana (57 anos). Local: Maceió. Data: 27/01/2009. Depoimento de Dona Ângela Maria (47 anos). Local: Maceió. Data: 27/01/2009.

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383

ANDAR DE ÔNIBUS EM FORTALEZA: SOCIABILIDADES EM TRÂNSITO

Ryanne F. M. Bahia142 Dra. Linda Gondim143

RESUMO: Esse artigo expõe as primeiras considerações acerca do estudo das sociabilidades do fortalezense com o transporte público, especificamente, trabalharemos com ônibus. Trazemos com questão de partida a seguinte indagação: como os usuários do Terminal Parangaba vivenciam e percebem o cotidiano do transporte público coletivo? Tem por objetivo produzir um estudo de caso acerca dos usos de um espaço público bem como perceber a dinâmica do transporte coletivo em Fortaleza. Serão relatados os apontamentos registrado por etnografia, que ainda encontra-se em andamento. Portanto, não apresentaremos resultados conclusivos. A técnica de coleta de dados utilizada foi a observação participante que teve até o momento seis meses de duração. Realizamos uma discussão sobre cidade, sociabilidades urbanas e trânsito.

Palavras-chave: Ônibus. Cidade. Terminal rodoviário.

1. INTRODUÇÃO

O direito de ir e vir e permanecer é assegurado pela constituição brasileira, porém, nas metrópoles esse direito depende cada vez mais do transporte público coletivo. O desenvolvimento das cidades foi acompanhado de uma urbanização precária que compromete a mobilidade,

onde

disputam

o

mesmo

espaço:

automóveis,

motocicletas, ônibus, bicicletas e pedestres. Perpassa a temática da 142

Graduada em Biblioteconomia (UFC), Mestra em Sociologia (UFC), Doutoranda em Sociologia (UFC). Integrante da Unidade Curricular de Pesquisa do Departamento de Ciência da Informação (UFC) [email protected]. 143 Graduada em Ciências Socais (UFC), Mestra em Planejamento Urbano e Regional (UFRJ) e Doutora em Planejamento Urbano e Regional (Universidade de Cornell). Professora Associada (UFC). vinculada ao Curso de Graduação em Ciências Sociais e ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Coordena o Laboratório de Estudos da Cidade (UFC). [email protected].

384

mobilidade urbana hierarquias sociais, segregações entre a cidade turística, com uma malha viária bem cuidada, e as periferias precariamente pavimentadas. Existe ainda uma dinâmica peculiar às diferentes linhas rodoviárias; lógicas distintas de compreensão referente a conceitos como: comportamento apropriado e inapropriado, aceitável e inaceitável, bem como as percepções de qualidade e conforto, as quais variam conforme o lugar social dos sujeitos. Para DaMatta (2010) o trânsito deveria, por definição, referir-se a um espaço público e democrático. Democrático no sentido em que a rua está para o anonimato, em contraponto com a casa, que se relaciona à pessoalidade. Em tese, em um local público aberto como em um terminal rodoviário, ou em um espaço como uma via rodoviária, os atores são postos em nível de igualdade, onde não se fariam valer nossa profissão e origem social. No entanto, desde o período colonial quando os escravos transportavam os nobres em suas liteiras e palanquins, fazia-se questão de manter a pessoalidade, as pessoas simples teriam que curvar-se ante a presença do nobre. Ou seja, era alimentada uma hierarquia, aristocratização; mesmo sendo todos andarilhos da rua, integrava a afirmação social estabelecer distinções. Gilberto Freyre (1961) em Sobrados e Mucambos relata a resistência da elite brasileira em aderir ao transporte coletivo, pois este representava o contato com a população pobre, com seus hábitos, costumes e relação com o corpo. O automóvel surgiu coma função não apenas da locomoção, mas da separação do lugar social. O automóvel foi a alternativa contra o transporte coletivo, até então, constituído pelos bondes. DaMatta (2010) relata sua experiência no referido meio de transporte durante a década de cinqüenta do século passado.

Jovem, cansei de [...] de ser obrigado a diminuir o espaço lateral do meu corpo [ ...] para dar lugar a algum senhor ou senhora de idade. Foram, porém, menos freqüentes as vezes

385

que fiquei apertado de encontro a alguma beldade. O bonde foi, por tudo isso e mais alguma coisa que certamente fico devendo ao leitor, tema recorrente de contos e crônicas que descrevem o incômodo dos passageiros, eventualmente apertados entre homens ou mulheres feios, malcheirosos, negros, pobres e gordos. (DAMATTA, 2010, p. 21)

Com a substituição do bonde pelo ônibus, ficou consolidado o desdém das classes dominantes pelo tipo de transporte do qual elas não fariam uso. O ônibus ficou definido como sinônimo de pobreza. Todavia, além da segregação social do transporte das elites e classe média (as quais fazem uso do automóvel, o qual não é apenas uma mercadoria, mas um estilo de vida) em relação à população carente que necessita do ônibus, existe uma segregação própria entre esses últimos. Algo que pode se expresso pela anedota citado por Alcântara júnior: “Diga-me em que ônibus andas que eu te direi quem és.” As diferentes linhas rodoviárias apresentam demandas diversas e perfis diferentes de usuários. E que dispõem de apropriações muito próprias no tocante ao conceito de qualidade, melhoria e conforto. Como os usuários compreendem sua rotina no transporte público? Como o passageiro percebe sua conduta? DaMatta (2010) sustenta o argumento de que a principal chaga do trânsito em nosso país jaz na inabilidade do brasileiro de incorporar sansões, leis, normas tolhedoras de nosso comportamento. Mesmo dentro de um ônibus ou em um terminal, não se admite ser apenas “um qualquer”, um anônimo. O que conduz o ator social a fazer valer sua diferença, em uma expressão de alteridade negativa. O outro é inimigo, aquele que está ocupando o seu lugar na fila, no assento do coletivo, que está obstruindo a passagem. A falta de regulação contribui para ações cotidianas onde se

ocupa

o

assento

preferencial,

no

desrespeito

às

filas,

na

agressividade de alguns homens que empurram de forma violenta os mais fracos que estão a sua frente. Tais comportamentos são comuns

386

para aquele que gasta horas de sua vida nos translados, como me foi possível conferir ao longo de seis anos. Interessa-nos

compreender

a

dinâmica

do

aparentemente

simples ato de locomover-se por meio de ônibus, desde o instante que antecede o embarque: as filas, as dificuldades (ou ausência das mesmas) no caminho que se faz para chegar à parada ou aos terminais. Os sujeitos da pesquisa serão usuários do Terminal Parangaba. Não desejamos, contudo, produzir apenas uma etnografia do referido lugar; será feito um acompanhamento do comportamento do usuário de ônibus no interior do veículo, onde serão observadas as práticas de sociabilidades

dos

passageiros,

motoristas

e

cobradores,

e

o

comportamento do usuário do serviço de transporte público mais amplo: pessoas que utilizam o terminal para outros fins que não apenas a viagem. Nos

terminais

rodoviários

convive

a

mais

heterogênica

população: vendedores formalizados, que pagam aluguel para trabalharem nas lojas, vendedores ambulantes de doces, pedintes, evangélicos que freqüentemente realizam pregações nas filas de espera

dos

ônibus,

“evangelizadores”

relacionados

ao

grupo

Manassés144, travestis, prostitutas, torcedores de futebol, guardas municipais, estudantes e motoristas, fiscais e trabalhadores em geral. Os mais diferentes grupos realizam ocupações as mais diversas no referido local e para muitos, o terminal não é apenas um local de passagem. Buscamos desvendar os diferentes significados que o local possui a partir das interações entre os indivíduos e as formas de sociação. (SIMMEL, 1983, p. 59). Nosso estudo se volta para o comportamento social em lugares públicos. Portanto, voltaremos nossa atenção para as ações que ocorrem entre “ajuntamentos”

145

que exercem determinados atos que

144

Grupo religioso que realiza venda de produtos, geralmente canetas, chaveiros e adesivos, que realizam trabalho junto a dependentes químicos. Realizam as vendas no interior dos coletivos. 145 Termo adotado por Erving Goffman para se referir a um agrupamento de pessoas, geralmente desconhecidas entre si.

387

decorrem em função da presença ou da simples existência do outro. (GOFFMAN, 2011) Compreendemos a dinâmica do transporte público rodoviário realizado por ônibus como um fato social total que perpassa várias esferas do social como o econômico, o moral, o comportamental e até o religioso. (MAUSS, 1974). A pergunta de partida que conduzirá nossa pesquisa é: como os usuários de transporte público urbano (ônibus) de Fortaleza vivenciam esse serviço? Acreditamos que as relações dos usuários do terminal integram o conjunto maior que é a relação do fortalezense com o transporte público. Escolhemos o Terminal como lócus de nossa pesquisa porque entre chegadas e partidas poderemos observar e entrevistar os indivíduos que utilizam mais o ônibus para se locomover; são também os locais onde as experiências vivenciadas em relação ao transporte público são sentidas com maior intensidade, e é nele que as observaremos pelo fato de a relação com serviço de transporte estar para além da viagem dentro do ônibus. Existem interlúdios importantes a serem observados, tais como: as filas de espera, ambiente riquíssimo de

sociabilidade e

tensões

entre

diferentes

grupos

sociais;

os

vendedores e religiosos, os quais dependem do transporte para realizar suas funções tanto quanto os passageiros convencionais; os profissionais de segurança e fiscais, para os quais, os terminais não constituem um não-lugar.146

Em

nossa

perspectiva,

essas

pequenas

cenas

de

relacionam e devem ser observados para a melhor compreensão do fenômeno a ser estudado. A relevância dessa pesquisa se confirma na medida em que é patente a insustentabilidade do serviço de transporte da maneira como hoje se apresenta. Pois a cidade se expande, as demandas de aceleração do tempo imanentes à modernidade não tem sido acompanhadas por uma melhoria na qualidade do serviço e

146

Termo utilizado por Marc Augé para definir espaços transitórios, lugares de passagens, que não possui identidade.

388

tratamento mais humanitário entre seus usuários e prestadores. Tal como nos alerta DaMatta:

Sair para a rua ainda é, no Brasil, um ato dramático. Trata-se de passar de uma teia bem urdida de laços sociais onde todos se conhecem para um espaço aberto e, pior que isso, igualitário, onde ninguém é de ninguém e só Deus (pois não há normalmente governo) cuida de todos. (DAMATTA, 2010, p. 43)

A compreensão do comportamento de usuários lato sensu do transporte coletivo, aliada à perspectiva de um melhor entendimento do comportamento em locais públicos, no caso o Terminal Parangaba, será uma tentativa de contribuir para uma elucidação desse fenômeno que envolve de modo mais contundente a população de baixo poder aquisitivo, que vivencia cotidianamente as benesses e vicissitudes desse serviço. Temos por objetivo compreender o serviço de transporte urbano público e, por meio da observação participante, viajar de ônibus e estar atento às dinâmicas de comportamento no interior dos veículos e dos terminais rodoviários;

2. CIDADE E COMPORTAMENTO HUMANO “Uma maneira simples de descrever a diferença entre a integração do indivíduo em uma sociedade complexa e em outra menos complexa consiste em pensar em seus diferentes sistemas rodoviários.” Norbert Elias

O trecho acima é parte constituinte da obra O Processo Civilizador, vol.2. Norbert Elias (1994) enxergava no transporte, uma ferramenta indispensável para o desenvolvimento das sociedades. A diferença do transporte público rodoviário nas pequenas cidades é 389

bastante diversa da encontrada nas metrópoles, inclusive pelo fato de ser utilizado de forma menos intensa nas cidades pequenas, do interior do estado. Ao tentar locomover-se nas grandes cidades brasileiras, fica patente que a relação com o transporte é um problema social, adensando o eixo temático denominado Sociologia Urbana ou das Cidades. Esta pesquisa está inserida nos estudos sobre as práticas urbanas; por isso falaremos sucintamente do campo ao qual pertencemos. A Sociologia demonstrava interesse nos fenômenos citadinos já nas obras de seus autores clássicos. Isso se dava por que a cidade estava intimamente relacionada à modernidade. Percebemos nos textos de Durkheim, Simmel, Weber, Marx e Norbert Elias, o ideário de que a vida nas urbes trazia em seu interior um modo mais complexo de socialização. É o que se constata na transição da solidariedade mecânica para a orgânica, na substituição da figuração da sociedade de corte para a sociedade burguesa e na teoria de Simmel que sustenta que a vida nas metrópoles altera a vida psíquica dos sujeitos. Os autores em lide trabalhavam com temas que ocorriam no âmbito da cidade, onde estavam mais visíveis as transformações capitalistas e o desenvolvimento industrial, mas os estudos que ocorriam dentro da cidade e voltado para as mesmas notabilizou-se com a Escola de Chicago. (BECKER, 1996) A Sociologia da Cidade surge na Universidade de Chicago. Até então não havia separação entre Sociologia e Antropologia, pois ambas formavam uma única disciplina. Conforme Sansone (2008), os trabalhos de Sociologia e, posteriormente, os de Antropologia, foram impulsionados pelo Welfare State, apesar de já existirem antes deste. No entanto, com o advento do Estado de bem-estar social, houve uma maior preocupação com a questão da pobreza e suas associações com a migração e a etnia. Tais estudos eram fomentados por instituições que tinham por meta “solucionar” problemas sociais.

390

Dentro da Escola de Chicago, merece destaque o pesquisador Robert Park, o qual ganhou destaque por sistematizar um corpo de idéias coerentes a respeito da dinâmica urbana, dando relevo às relações entre os habitantes das cidades. Para esse autor, tão importante quanto as análises referentes à estrutura física e econômica, eram as sociabilidades que as compunham. [...] a cidade é um estado de espírito, um corpo de costumes e tradições e dos sentimentos e atitudes organizados, inerentes a esses costumes e transmitidos por essa tradição. Em outras palavras, a cidade não é, meramente um mecanismo físico e uma construção artificial. Esta, envolvida nos processos vitais das pessoas que a compõem; é um produto da natureza, e particularmente da natureza humana. (PARK, 1979, p. 26)

Park (1979) compreende a cidade para além da perspectiva ecológica, arquitetônica e econômica; ele não as nega, mas as complementa

com

a

dimensão

cultural,

debruça-se

sobre

as

“sociações”, para nos remetermos a Simmel, dos homens na cidade. Além de apresentarem uma organização física, apresentam também uma organização moral e ambas as esferas se retroalimentam. Em The City: Suggestion for the Investigation of Human Behavior in the City Environment, Robert Park escreveu sobre a interdependência das esferas que se compõem a questão urbana. [...] Essas coisas, em si mesmas são utilidades, dispositivos adventícios que somente se tornam parte da cidade viva quando, e enquanto, se interligam através do uso e do costume, como uma ferramenta na mão do homem, com as forças vitais residentes nos indivíduos e na comunidade. (PARK, 1979, p. 27)

O

que

faz

a

urbanidade

tornar-se

objeto

de

estudo

socioantropológico são as ações e apropriações que os atores sociais com elas estabelecem. Nesse sentido, estabelecemos uma proximidade com DeCerteau (2010), que analisa a cidade como um texto que se é apropriado de modos diversos conforme o repertório de quem o lê. Por caminhos distintos, ambos os autores conceberam as urbes modernas intrínsecas às suas “artes de fazer”. 391

Para DeCerteau (2010), de modo semelhante do que ocorre com a linguagem, onde o homem “comum” se apropria das palavras produzindo novas significações que lhe sejam mais próximas, ou subvertendo lógicas, a vivência na cidade produz apropriações dos espaços distintas das quais foram originalmente pensadas pelos sistemas peritos147. O presente trabalho propõe uma reflexão sobre as práticas culturais que constituem a sociabilidade dos usuários de ônibus em Fortaleza,

de

modo

específico,

do

Terminal

Parangaba.

Para

analisarmos esse fenômeno, faremos uso da microsociologia de Erving Goffman (2011) pela qual buscaremos compreender melhor o ritual de interação dos sujeitos da pesquisa no espaço público supracitado; Georg Simmel (1983) sob um prisma semelhante, ou seja, observar as sociações entre os sujeitos e por meio de Michel de Certeau (2010) tentar perceber as apropriações feitas por estes. Ao observarmos o ritual de interação, temos como finalidade compreender “a ordem comportamental encontrada em todos os lugares povoados, sejam eles públicos, semipúblicos ou privados, e estejam sob os auspícios de uma ocasião social organizada ou sob as coerções

mais

prosaicas

de

mero

ambiente

social

rotinizado.”

(GOFFMAN, 2011, p. 9-10). A perspectiva do ritual de interação se adéqua ao estudo de nosso objeto, uma vez que nossa preocupação jaz nas relações dos usuários de ônibus entre si, e com os prestadores do serviço com que eles têm contato direto no terminal. Aliado ao conceito de ritual de interação de Goffman, está a perspectiva simmeliana. O autor enxerga a sociedade pelo prisma da interação mútua. Por sociedade não entendo apenas o conjunto complexo de indivíduos e dos grupos unidos numa mesma comunidade 147

Os sistemas peritos para nos remetermos ao conceito de Antony Giddens, se referem aos saberes referendados socialmente, aos especialistas.

392

política. Vejo uma sociedade em toda parte onde os homens se encontram em reciprocidade de ação e constituem uma unidade permanente ou passageira. (SIMMEL, 1983, p.48).

A sociedade seria como um produto das ações e reações dos indivíduos entre si, ou seja, como uma espécie de resultante de suas interações uns com, contra e pelos outros. Essas interações entre os homens são denominadas por ele de sociações, sendo que estas são formadas pelos interesses ou objetivos e impulsos dos indivíduos e pelas formas que estes adquirem. A sociedade não é algo parado, estático, ela está em movimento, “é algo que acontece e está acontecendo”. Em Simmel (1983), as sociabilidades são um vetor das formas sociais, as quais são produto de inúmeras interações entre grupos, classes e indivíduos.

3. METODOLOGIA Em nosso esforço de realizar nosso “artesanato intelectual”, para nos apropriarmos de uma expressão de Wright Mills (1982), buscaremos trabalhar com uma abordagem qualitativa. Tendo como fio condutor a pergunta de partida: Qual a percepção dos usuários de transporte público urbano (ônibus) de Fortaleza acerca do serviço prestado? Como já foi dito anteriormente, o local da pesquisa é o Terminal Parangaba e os sujeitos da pesquisa são seus usuários lato sensu. Para melhor compreender esse fenômeno, realizamos uma etnografia, a qual se constitui no exercício do olhar, crítico e orientado; do ouvir o ambiente de que se constitui nosso campo de investigação, e os sujeitos informantes e do escrever/traduzir em forma de texto científico o que foi apreendido nas etapas anteriores. (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2006) Ou ainda como informa Laplantine: “A descrição etnográfica (que significa a escrita das culturas) [...] não consiste apenas em ver, mas em fazer ver, ou seja, em escrever o que vemos”. (LAPLANTINE, 2004, p. 10) 393

Também

fazemos

uso

da

pesquisa

bibliográfica,

a

qual

perpassará toda a produção da tese, adotando-se um arquivo de pesquisa. “A manutenção de um arquivo é uma estratégia para estimular a escrita, em que nele também devem estar registradas as reflexões sobre filmes, programas de TV, cenas do cotidiano etc”. (GONDIM; LIMA 2010). somado a isso, será produzido um diário de campo com o objetivo de registrar as impressões sobre o campo e o contato com os pesquisados. As etapas anteriormente citadas fazem parte de uma estratégia de pesquisa mais ampla: a observação participante. Segundo Denzin citado por Flick: “estratégia de campo que combina, simultaneamente, a análise de documentos, a entrevista de respondentes e informantes, a participação e a observação diretas, e a introspecção”. (DENZIN, apud FLICK, 2004, p. 152). Ao traçarmos a perspectiva da observação do ritual de interação, temos por objetivo fazer uso do que Goffman denominou Sociologia das ocasiões. “está em questão aqui uma estrutura estabilizada normativamente, um ‘ ajuntamento social’, mas essa entidade é mutante, necessariamente evanescente, criada por chegadas e assassinadas por partidas”. (GOFMAN, 2010, p. 10). 4. DESCRIÇÃO DOS TERMINAIS DO SITFOR A cidade de Fortaleza possui uma população de 2.431.415 habitantes. Para gerir o transporte foi criada em 23 de dezembro de 1993 a Empresa de Trânsito e Transporte Urbano S/A (ETTUSA), mediante a lei municipal 7.481. Trata-se de uma empresa de economia mista na qual 98,69 % do capital pertencia à Prefeitura Municipal de Fortaleza e apenas 1,32% às empresas que lá operam. A ETTUSA nasceu vinculada à Secretaria de Transportes do Município (STM), quando esta foi extinta, a responsabilidade da gerência do transporte de ônibus foi totalmente entregue à ETTUSA, até que em 2006 foi criada a Empresa de Transporte 394

Urbano de Fortaleza de Fortaleza S/A (ETUFOR). Com ela, a prefeitura fez o resgate das ações que outrora pertenciam a sócios particulares e tornou a empresa responsável pelo transporte público 100% pública. A população de menor poder aquisitivo, sem condições de dispor de automóveis para sua locomoção, fica refém do uso de ônibus e transporte público alternativo, conhecido em Fortaleza como topiques. Apesar de o uso de motocicletas ter aumentado substancialmente nos últimos anos, os ônibus ainda são o meio de transporte mais utilizado pelo fortalezense. Como modo de baratear os custos daqueles que precisam se locomover das áreas mais distantes do centro e áreas mais elitizadas na cidade como Aldeota, onde há mais empregos, foram criados os terminais rodoviários. Em 1992, o SITFOR inaugurou os terminais de Antônio Bezerra e de Messejana. O objetivo dos terminais era o de permitir aos seus usuários o acesso a diversos locais da cidade mediante pagamento de uma tarifa única. Os passageiros podem se transferir para linhas circulares e interbairros

que

são

integradas

em

seus

respectivos

terminais.

Atualmente, Fortaleza conta com sete terminais que trabalham de modo integrado. São eles: Papicu, Antônio Bezerra, Lagoa, Siqueira, Messejana, Conjunto Ceará e Parangaba. É nesse último que realizaremos nosso trabalho de campo. (ETUFOR, 2006). O terminal Parangaba iniciou suas atividades em 07 de agosto de 1993, composto por dois pisos nos quais estão localizadas diversas lojas. Nele estão contidas também uma casa lotérica, lanchonete e sorveterias, uma farmácia popular e um posto de atendimento ao estudante onde é possível incluir mediante pagamento créditos na carteira de estudante. Está localizado na Rua Pedro Ramalho no bairro que lhe confere nome e recebe diariamente cerca de 230 mil passageiros, sendo responsável por 20% da operação no transporte de terminais, possuindo a segunda maior demanda, perdendo apenas para o Papicu. (ETUFOR, 2006)

395

5. DISCUSSÃO PRELIMINAR DOS DADOS 5.1- Notas de campo A pesquisa ocorreu no período entre março a setembro de 2012. As linhas escolhidas foram: Cuca Barra/Centro; Parangaba/Mucuripe; Parangaba/Náutico; Siqueira/João Pessoa e Henrique Jorge. Tais linhas cruzam a cidade, vão da periferia: Barra do Ceará e Siqueira para a área nobre: Náutico e Mucuripe, passando pelo centro da cidade. 5.2 - O embarque (rua) A cena mais comum para quem usa transporte público coletivo em Fortaleza (de circulação interna) é a em quem o cidadão sai de sua casa (esse caminho pode ser curto ou não) e então espera sob o sol frequentemente escaldante em uma parada. Esta pode ser composta por assentos de aço, que como o material sugere, fica mais quente conforme a temperatura sobe, inviabilizando o conforto do pedestre enquanto espera; há bancos de cimento, mais largos e confortáveis que os descritos anteriormente, e em outros pontos há apenas uma placa indicativa, restando ao usuário ficar de pé enquanto espera. O tempo de espera varia de uma linha para outra. Algumas levam 15 minutos e as mais demoradas ultrapassam 30 minutos. Porém, um dos momentos mais tensos é da inserção no veículo. Nas paradas mais populosas ocorre uma “batalha”, cujo intuito é conseguir entrar antes dos demais e disputar um banco vazio ou simplesmente um espaço na parte dianteira do ônibus, o que, em teoria, torna menos penosa a saída. 5.3 - Dentro do ônibus É pertinente assinalar o fato de que existem padrões de comportamento distintos conforme duas variáveis básicas: o horário da 396

viagem e a lotação de passageiros. A variante do horário é menos determinante que a da lotação. Isso por que em determinados períodos do ano (férias, alguns feriados) a dinâmica se altera. Em minhas observações, foi possível perceber que quando o ônibus não está lotado, o comportamento dos usuários é visivelmente mais cordato, a viagem mais silenciosa e tranquila, e não há o calor causado pela aglomeração de pessoas, nem o temor de não conseguir descer no local solicitado por não conseguir chegar à porta em tempo hábil. No entanto, outros problemas persistem mesmo quando há poucos passageiros: os solavancos, arrancadas bruscas, a dificuldade em inserirse no ônibus porque os degraus de acesso ao ônibus são altos, e o motorista não raro acelera após o passageiro colocar os pés no primeiro degrau. Várias vezes, tive que agarrar-me a uma barra de aço próxima à porta para não cair. Isso demonstra que a estrutura física dos ônibus são desconfortáveis e inadequadas. Mesmo quando a frota é composta por itens novos, há um barulho do chão em movimento, dos parafusos, tudo sacoleja. Os bancos são duros, de plástico, e os que ficam anteriores à roleta, na parte traseira dos veículos, proporcionam um

profundo

desconforto

quando



solavancos

existindo

a

necessidade de o passageiro mais leve segurar na cadeira à sua frente para não ser arremessado contra o banco. Curiosamente, percebi que grande parte dos passageiros parecem não sentirem mais essas trepidações. Quanto ao perfil dos usuários, é rara a presença de crianças, em qualquer horário. Nos horários de pico, predominam trabalhadores e estudantes de colégios famosos, havendo universitários em menor número. Fora dos horários de pico, nos turnos matutino e vespertino existe um número expressivo de idosos, especialmente na linha Siqueira/João Pessoa. Os problemas mais frequentes nos horários de maior movimento são: calor excessivo, causado devido às passagens de ar ficarem bloqueadas pelo número de pessoas amontoadas no corredor; mau 397

cheiro devido principalmente à escassa ventilação natural e ausência de ventilação artificial (não há ar-condicionado), que contribuem para a proliferação de fungos que potencializam o odor natural do suor. É patente a dificuldade de passar pelo corredor para chegar à porta de saída, pois o indivíduo precisa esgueira-se entre mochilas, bolsas, pastas e sacolas de compras. Essa tarefa é particularmente árdua para mulheres ou homens franzinos. Em linhas como Mucuripe, Náutico e Papicu ocorre ainda uma poluição sonora muito específica: o som de celular. Já presenciei em uma mesma viagem três pessoas ouvindo em alto e bom som três estilos diferentes: forró, música gospel e pop internacional. O que pode indicar que os usuários tentam negar a perspectiva de que são uma massa anônima, através de comportamentos como acima citado. O que pode significar que os sujeitos estão tentando transmitir informações sobre o eu, transformando aparelhos de celular e mp4 em kits de identidade (GOFFMAN, 2010c,). Entretanto, a maior vitima da poluição sonora, em parte proveniente da apropriação do espaço (mesmo em movimento) nos ônibus é o motorista. Este é forçado a ouvir uma buzina alta e de som irritante que soa cada vez que um passageiro pede para desembarcar. O barulho é alto o bastante para disputar com os ruídos padrões da rua, carros, descarga de motocicletas, etc, e o motorista precisa ouvi-lo durante todo o dia de trabalho. A própria naturalização dos ruídos é uma ameaça ao serviço do motorista, pois um momento de distração implica no risco de um usuário não descer na parada solicitada. A posição do motorista é duplamente difícil, os passageiros apressados (são a maioria, pelo que observei) o antagonizam se o ônibus anda devagar devido a um acidente ou reforma na via, e o responsabilizam pelas freadas abruptas. Raras foram as ocasiões que percebi um cumprimento, um sorriso, um tratamento mais cordial para com o motorista. Já em relação ao cobrador são frequentes em horários fora do rush, uma simpatia, apertos de mão, tratamentos 398

amigáveis, especialmente por parte dos vendedores e pregadores evangélicos que solicitam que alguém “passe” sua passagem no vale transporte eletrônico.

6. NO TERMINAL PARANGABA: APROPRIAÇÕES MÚLTIPLAS DE UM ESPAÇO PÚBLICO No terminal de integração, podemos dividir seus usuários em dois grupos, um para os quais o terminal é um lugar de passagem, e para o outro se trata de um “segundo lar”.

No primeiro grupo, temos

provavelmente a maioria, pessoas que usam o Terminal Parangaba como interlúdio para chegar a outro lugar, não sendo, portanto, o destino final do usuário. Chegar ao terminal não é o fim a ser atingido, mas o meio. É o caso dos estudantes, trabalhadores, pessoas que vão a consultas médicas etc. No segundo grupo, referimo-nos a vendedores dos box comerciais, funcionários do ponto de recarga de créditos para a carteira de estudante, trabalhadores responsáveis pela limpeza, guardas municipais e fiscais. Para esses sujeitos o lugar possui uma identidade. Percebemos laços com os companheiros de trabalho e convivência. Dentro desse grupo existem aqueles que realizam uma apropriação informal do espaço: são os “artistas” de rua, vendedores ambulantes, evangélicos (que vão exclusivamente para pregar) e pedintes, além de alguns eventuais assaltantes, sendo estes menos comuns do que folclore popular anuncia. Apesar da divisão (apenas didática) entre dois grupos, falar em Terminal de integração é falar de diversidade, mistura. É o lugar da mixofilia, que significa a atração que a cidade exerce sobre as pessoas dentro das urbes e principalmente, mixofobia, que representa o medo e insegurança típica das cidades contemporâneas que tendem a produzir o sentimento de desconfiança do outro, muitas vezes antagonizando-o. (BAUMAN, 2009) O que corrobora

Simmel

(1983)

que

relatava 399

um

tipo

específico

de

sociabilidade produzida pelas metrópoles, o qual apontaria para um enfraquecimento

dos

laços

de

solidariedade

(e

de

relações,

teoricamente, mais objetivas, menos pautadas pela pessoalidade). No entanto, percebemos que se os laços de solidariedade diminuem, as relações continuam, em nosso país, marcadas pela pessoalidade, tal qual o homem cordial descrito por Sérgio Buarque de Holanda (1993). Os usuários tipo um, que denominaremos, de passagem, protagonizam (não apenas em horários de pico), um momento tenso no Terminal: a formação das filas de embarque. Estas possuem uma característica que as distingue das outras filas de embarque na rua: são por assim dizer, “fantasmas”. Quando chega ao ponto de embarque da sua linha de destino, estas se encontram vazias ou quase. Todavia, no momento de aproximação do ônibus, subitamente surge uma pequena multidão. O que nos comentários e anedotas de alguns passageiros seria um “fenômeno sobrenatural” pode ser facilmente explicado para o observador que está atento à sua dinâmica. O que ocorre é que as faixas de embarque são demasiado próximas umas das outras, e dado o sistema de integração entre os outros terminais, o passageiro pode escolher entre dois ou três ônibus que passem pelo destino desejado. Desse modo, os passageiros ficam espalhados nas várias linhas, ou rondando o local fazendo um lanche etc, mas o primeiro ônibus que passa recebe essas pessoas que estavam dispersas, indo convergir para o mesmo ponto, de modo que as poucas pessoas solitárias que estavam nos primeiros lugares da fila acabam sendo empurradas por essa pequena multidão que força sua entrada agressivamente. Nos horários de pico, essa dinâmica ganha proporções maiores. Durante o dia, as principais ocorrências relatadas pela segurança são: confusão nas filas, o que foge ao controle em situações excepcionais como em dia de jogo dos dois principais times de futebol da capital, Ceará e Fortaleza quando suas torcidas organizadas promovem distúrbios ao se encontrar. Eventualmente ocorrem histórias de assaltos onde são levados principalmente celulares. Durante a noite, 400

o fluxo de usuários é menor, e em horários após as 22 horas os distúrbios mais frequentes envolvem atentado violento ao pudor e pessoas alcoolizadas. Esse quadro pode ser explicado pelo fato de que nesses horários vão trabalhar profissionais do sexo, mulheres e travestis, bem como algumas pessoas que voltam de festas nas casas de show da proximidade, o que por vezes causa confusão a ser resolvida por três guardas municipais em média.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Apropriar-se seria a transformação de um espaço em um lugar em que se observa sentimento de posse e pertencimento a um espaço, deixando marcas, modificando o local, o qual se torna referência para o sujeito, permitindo, assim, que este se oriente e preserve sua identidade. Percebemos que o Terminal Parangaba é apropriado de modos diversos pelos atores sociais. Entre os sujeitos mais engajados com o local, esta relação está evidenciada, mas nos grupos menos identificados com o local, os passantes, estes ainda expressam sua presença em situações como as disputas entre os diferentes sons que competem nas filas ou dentro dos ônibus. Além de distrair, o aparelho de celular, smathphone, mp4, entre outros identificam o usuário em sua pessoalidade, seus gostos. São o que Goffman (2010) chamou de kit identidade. Em vários comportamentos como no desrespeito às filas de embarque,

percebemos

o

desejo

de

fazer

predominar

sua

pessoalidade: o famoso, olha com quem está falando, de Damatta. Onde o sujeito enxerga a si como especial, que não pode seguir as regras como um qualquer. Por isso, o comportamento nas filas regido pela lógica do “Eu não posso me atrasar para o trabalho”, “Eu tenho consulta”, suas necessidades são importantes e as dos outros estão em segundo lugar. Observamos os traços assinalados por Sergio Buarque de 401

Holanda em Raízes do Brasil, assim como os “jeitinhos” e olha com quem está falando de DaMatta. Ao falar de comportamento social em lugares públicos, levamos em consideração a relação das pessoas com o lugar. O Terminal Parangaba possui uma “identidade”, características que o diferem em relação aos outros não apenas no aspecto físico, mas uma dinâmica conhecida por seus usuários os quais atribuem outros usos ao espaço planejado para ser apenas de passagem. Os populares são os que se apropriam desse espaço para vender, realizar pregações religiosas, produzir performances artísticas e até cometer atos ilícitos, fazendo do improvável, possível por meio de suas artes de fazer.

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prisões

e

conventos.8

ed.

São

Paulo:

GONDIM,Linda. Jacob Carlos. A pesquisa como artesanato intelectual: considerações sobre método e bom senso. São Carlos: Ed UFSCa, 2010. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 25. ed. Rio de Janeiro: J. Olimpio, 1993. LAPLANTINE, François. A descrição etnográfica. São Paulo: Terceira Margem, 2004. MAUSS, Marcel; ALMEIDA, W. B.; PUCCINELLI, Lamberto. Sociologia e antropologia. São Paulo: EPU, 1974. MILLS, C. Wright. A imaginação sociológica. 6. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. PARK, R. E., Burgess, E. W., McKenzie, R. D., & Wirth, L. The city. Chicago : The University of Chicago Press, 1925. SIMMEL, Georg; MORAES FILHO, Simmel: sociologia. São Paulo: Ática, 1983.

403

Evaristo

de. Georg

ENSAIO SOBRE A CASA

Ozaias Antonio Batista148

RESUMO: Pensando a imagem da casa enquanto espaço voltado para a formação subjetiva do indivíduo, assim como refletindo aspectos de sua constituição social, o presente trabalho tem como objetivo central problematizar a casa enquanto espaço de habitação poética, na qual o indivíduo forma suas impressões em torno de si e do mundo. Para tanto, tomaremos de empréstimo algumas imagens construídas por Vicent van Gogh em torno do habitar: “A casa amarela” e “O Quarto de van Gogh”. Faremos uso também da concepção de esferologia desenvolvida por Sloterdijk (2003), uma vez que a residência também pode ser caracterizada enquanto uma esfera produtora de sentido.

Palavras-chave: A casa ; habitação poética; Vicent van Gogh; Peter Sloterdijk.

A CASA ENQUANTO ESPAÇO DE HABITAÇÃO POÉTICA

A minha casa aqui é pintada por fora de amarelo-manteiga e tem persianas em verde-forte; fica, rodeada de sol, numa praça, onde também há um parque verde com plátanos, aloendros, acácias. Por dentro é pintada de branco e o chão é de azulejos vermelhos. E por cima, o céu de azul luminoso. Lá dentro posso com efeito viver e respirar e pensar e pintar. Vincent van Gogh

Um dos espaços fundamentais para a formação do homem é a casa. Principalmente porque esta serve enquanto ambiência que contribui para a constituição do indivíduo, sobretudo em seu processo de socialização primária, assim como enquanto espaço que irá lhe possibilitar certa noção de pertencimento e estadia no mundo. Habitar

148

Graduado em Ciências Sociais (UFRN). Mestrando do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (UFRN). [email protected]

404

poeticamente é poder vivenciar o processo de construção do espaço, através do qual o indivíduo vai moldando seu local de habitação. Porquanto, a casa pode ser compreendida enquanto espaço de formação, bem como espaço em formação. O primeiro se expressa na estruturação da subjetividade dos indivíduos que residem nela, desde as crianças até os mais velhos. E espaço em formação, porque o espaço da residência vai sendo moldando em consonância com os indivíduos que habitam nela. A partir do momento em que as condições materiais ou de gosto vão impulsionando os mesmos a resignificarem o espaço, a casa vai se constituindo enquanto local em formação. Evidentemente que

essas

modificações

ocorrem

de

forma

gradativa,

e

não

dinamicamente. Formado este espaço de habitação, o indivíduo começa a se sentir dono do mesmo, assim como se inserir no mundo. Esta noção de pertencimento e estadia no mundo pode ser identificada através da expressão: “minha casa”. A palavra ‘minha’ expõe uma conotação de posse, através da qual o indivíduo estará se inserindo no mundo através do complemento ‘casa’. Uma vez que, esta é um importante elemento para a constituição da vida do morador, pois é nela que o mesmo vivenciará inúmeras experiências que permearão suas reminiscências. E por mais que a casa possua certas semelhanças com as demais presentes na vizinhança, para o indivíduo, sua moradia sempre conterá (estruturalmente ou simbolicamente) singularidades que a difiram das demais residências. Porque a constituição arquitetônica da casa carregará consigo certa sentimentalidade, a qual varia de acordo com cada cômodo presente na mesma – sala, cozinha, banheiro, quarto. Pode ser na sala em que se reúne toda a família para assistir um filme, na cozinha a mãe pode preparar deliciosas refeições, no banheiro guardar todos os cosméticos necessários para a manutenção da beleza, no quarto se vive todas as delícias propiciadas pelo amor – ou a ausência delas, sendo muito comum em casamentos tidos como fracassados. 405

Isto

é,

cada

espaço

tem

um

significado

carregado

de

sentimentalidade, e esta se expressa mediante o auxílio da memória, a qual se materializa nos objetos e ambiências: a poltrona da vovó, a cadeira do papai, o avental da mamãe, a bola do irmão, o quarto da tia. Embora haja esse caráter de interioridade (indoors) – o qual alude proteção, parada – é também na casa em que começamos a ter os primeiros contatos com o mundo exterior, principalmente através da vestimenta, alimentação, bem como as regras morais transmitidas através da educação, colocada pelos educadores profissionais como informal (atribuições paternas e maternas). A casa vai se estruturando de acordo com os elementos que os indivíduos vão trazendo a partir de suas experiências extradomiciliares. Ou seja, a residência não se constitui unicamente com portas, janelas, estandes repletas de eletrodomésticos, mas também com elementos que estarão contribuindo para que o morador construa um sentimento de posse e estadia no mundo (desde porta retratos, souvenirs que o mesmo trouxe de sua última viagem, a forma como os livros e CDs estão alocados na estante). Afinal, o morador convidará seus amigos e parentes para “sua casa”. Em sua casa, Vicent van Gogh pôde construir o olhar a respeito do mundo, imprimido em suas obras a forma como concebia poeticamente o espaço no qual ele estava habitando, assim como vivenciar as melhores e as piores experiências de sua vida. Assim, a forma como van Gogh descreve sua casa expressa esse ar de pertencimento e estadia no mundo. Pois, pode ser que houvessem outras casas amarelas no quarteirão em que a mesma estava localizada, mas aquela casa amarela era a sua casa amarela, com persianas verdes fortes e rodeada de sol. O sol alcança todas as residências, mas é ao abrir suas persianas que ele tem a experiência de ser banhado com os raios solares.

406

Imagem 1: A casa amarela:http://luzcor.no.comunidades.net em 29.06.12.

Através da descrição feita por van Gogh acerca de sua casa amarela, podemos observar que o aspecto indoors só pode ser descrito pelo próprio morador, pois a interioridade da casa não é formada apenas por cores e azulejos, mas também como se vive, respira, pensa e pinta dentro da mesma. Dessa forma, a vida começa a trazer consigo certa dependência dos espaços arquitetônicos que mais agrada o indivíduo, porque certas atividades, como estudar, por exemplo, só se tornam possíveis mediante a ocupação do quarto. Ou quem nunca se sentiu impedido de fazer uso do banheiro de outra casa por não se sentir a vontade? Esse impedimento na execução de determinadas atividades (que geralmente são as mais recorrentes no dia-a-dia: utilizar o banheiro, trocar de roupa, dormir) se dá em decorrência do indivíduo não se sentir pertencente aquele espaço, podendo estar ocupando o mesmo apenas enquanto local de passagem. O seu espaço de parada se constitui apenas em sua casa; na casa do outro há apenas vivências, e não habitação. Na casa do vizinho se passa apenas um tempo, pois a modernidade conseguiu introjetar no imaginário das pessoas a necessidade da manutenção do espaço particular. Embora não se 407

consiga adentrar na casa do outro com tanta facilidade, pois a cada dia que passa as pessoas estão tendo mais dificuldade para abrir as portas da sua residência para o outro, mesmo que este outro seja um amigo ou colega de trabalho. Isso se dá porque quando o outro entra na casa do vizinho, este mostra sua intimidade, a qual pode destoar da intimidade do primeiro – desde a constituição dos móveis, até a estruturação arquitônica da casa. Quem nunca pediu ao outro um espaço? Seja desligando o celular para não ser encontrado ou fingindo que não estava em casa ao ser acionada a campainha por um conhecido que estava de passagem e estava a fim de tomar um café jogando conversa fora. Está-se sempre tentando garantir uma vivência mais agradável mediante o isolamento e a necessidade de transformar a casa em um espaço

cada

vez

mais

particular,

preparado

apenas

para

determinados grupos ou circunstâncias. Obviamente que a casa se constitui enquanto espaço particular, passível de ser frequentado apenas pelos indivíduos autorizados pelo morador – premissa por demais legítima. Entretanto, o que ocorre é um processo de imunização exacerbada no espaço de moradia, no qual se torna impossível a existência de rupturas ou novas construções acerca da concepção do ser e da vida. Em decorrência desta imunização do espaço, enquanto tentativa de proteção do diferente cristalizam-se concepções e ideias difíceis de serem rompidas, construindo-se, dessa forma, impressões fechadas acerca da política, sociedade e cultura. Tomemos como exemplo o grupo que frequenta a casa de um determinado líder religioso que se coloca obstinadamente contra o aborto149. Em decorrência de sua posição ideológica, os indivíduos que frequentarão sua casa serão compostos por sujeitos que compartilham da mesma posição, do 149

A utilização da casa enquanto metáfora para se pensar como as relações sociais se constituem e são estruturas no decorrer da produção cultural da vida, não se limita apenas ao espaço doméstico, propriamente dito. De forma que, a casa também serve enquanto espaço para se pensar a constituição social da vida, embora a mesma seja uma ambiência majoritariamente pessoalizada.

408

contrário, caso haja um debate em torno do assunto, havendo a presença de dissidentes, o dono da residência pode sentir que seu espaço privado foi invadido. Dessa forma, a imunização causa a distinção, e esta segrega cada vez mais os seres humanos em distintas realidades. Não é que se deva

existir

uma

sociedade

composta

apenas

por

indivíduos

concordantes, estando sempre em harmonia em torno de temas que abarcam diversos setores sociais – como política e religião. Mas, com o distanciamento

causado

pela

imunização,

os

indivíduos

não

conseguem mais conceber uma realidade social que priorize o bem coletivo, estando sempre colocando em pauta apenas os anseios defendidos pelo grupo particular. Como, por exemplo, os diversos movimentos sociais com olhares ensimesmados, não conseguindo encaixar em suas lutas metas que abarquem um cenário mais global; limitando-se apenas a uma causa particular. Seja a questão ambiental, de gênero, das crianças e adolescentes, do negro, do índio. Este fechamento, decorrente da imunização, também contribui para a construção de verdades e mentiras em torno da condição de existência do homem e da vida, expressas, principalmente, na produção de discursos nos distintos espaços relacionados com a participação política. De modo que, o primeiro movimento capaz de inserir sua demanda na pauta do dia, poderá adquirir seus “15 minutos” de atenção, seja pela sociedade ou bancada política. Não garantindo, entretanto, que o mesmo estará com suas demandas devidamente encaminhadas. Assim, esta imunização da vida contribui para a construção de múltiplas alternativas acerca das demandas sociais, limitando os homens a pensarem soluções sociais de acordo com os elementos que melhor lhe explicam as carências existentes na realidade mundial ou local. Auxiliando-nos a pensar a sociedade, de acordo com sua proposta metodológica pautada na esferologia, Sloterdijk coloca:

409

En realidad, las sociedades sólo son compreensibles como associaciones agitadas y assmétricas de multiplicidadesespacios y multiplicidades-procesos, cuyas células no puedem estar ni realmente unidas ni realmente separadas (SLOTERDIJK, 2006, p. 49)

Para ele a sociedade se constitui enquanto associação agitada e assimétrica,

pois

as

múltiplas

células

estão

associadas, e esta

associação se consolida de forma dinâmica, pois cada estrutura celular está condicionada por determinadas necessidades de existir ou de habitar-en-el-mundo. E o corpo social é formado por células agitadas, de modo que esta agitação adquire vida para o corpo. Todavia, esta interação celular não alude a uma sintonia, mas sim momentos de rupturas, nascimentos e mortes celulares. Pois, no corpo social as células não estão nem totalmente unidas – em decorrência da singularidade de cada estrutura nuclear de cada corpo celular – assim como totalmente separadas, uma vez que para se garantir a sobrevivência do corpo social às células necessitam garantir certa coesão estrutural. Dessa

forma,

a

casa

se

constitui

enquanto

espaço

de

estruturação das relações sociais, pois a ambientação indoors é fruto da produção de sentido de seu morador em torno das experiências socioculturais detidas pelo mesmo. Assim também se estrutura a habitação poética, pois vai se formando uma espécie de construção do espaço arquitetônico que irá auxiliar no modus vivendi dos indivíduos que lá fazem morada. A CASA ENQUANTO ESPAÇO DE PARADA – O QUARTO “DE ESPERA” Dessa vez é muito simplesmente o meu quarto, aqui tem de ser só a cor a fazer tudo; dando através da simplificação um maior estilo às coisas, deverá sugerir a ideia de calma ou muito naturalmente de sono. Em resumo, a presença do quarto deve acalmar a cabeça, ou melhor, a fantasia. Vincent van Gogh

410

A casa não se limita unicamente enquanto espaço de produção de sentido ou certa extensão das relações sociais estabelecidas pelos indivíduos, mas também enquanto espaço de parada, mediante a sala de espera (SLOTERDIJK, 2006). Tendo esta a possibilidade de levar o indivíduo a maturar suas ideias e princípios em torno da realidade sociocultural vivenciada. Ou apenas uma sala que possibilite o indivíduo se desligar, de certa forma, do contexto social existente na realidade extradomiciliar. Até por que, mesmo compreendo a casa enquanto lugar de parada, isso não quer dizer que o indivíduo vai fazer uso da sala de espera como espaço para amadurecer suas impressões em torno das questões políticas e sociais existentes em sua realidade cultural. Talvez ele só anseie fazer uso desta sala de espera para descansar ou até mesmo fugir destas imagens sociais construídas em seu cotidiano. A residência em si já se constitui enquanto um fim último para esperar, isto é, vivenciar esta espera – seja na expectativa de um novo dia ou na possibilidade de maturar certa condição do ser. Todavia, esta vivência não necessariamente estaria vinculada a um determinado cômodo da casa, podendo existir pessoas que melhor esperam na sala, varanda ou até mesmo no banheiro. A sala de espera se estende a toda à estrutura arquitetônica da casa. Entretanto, estaremos fazendo uso da imagem do quarto enquanto simulacro para se produzir a reflexão inerente à parada. Compreendemos também que cada cômodo da casa possuem suas especificidades, de modo que os elementos materiais que os constituem carregam em sua estrutura determinados significados de difícil generalização. Com relação ao quarto, é no mesmo em que os indivíduos vivenciam suas maiores intimidades, sejam elas sozinhas ou acompanhadas, de modo que estamos sempre atribuindo ao quarto uma noção de segredo, intimidade, como nos coloca o pensador Jesus Cristo em um dos seus muitos ensinamentos: “Quanto orares, entra no

411

teu quarto, fecha a porta e ora ao teu Pai em segredo; e teu Pai, que vê num lugar oculto, recompensar-te-á” (Mateus 6; 6). Sloterdijk coloca que Las casas son salas de espera en lugares de parada (SLOTERDIJK, 2006, p. 387). Esta espera está vinculada, sobretudo, com o ato de maturação de conceitos, entretanto compreendemos que essa espera também pode estar conectada com o descanso, que ao invés do sujeito refletir em torno das questões sociais, o mesmo apenas busca se desconectar das mesmas. Assim, tomamos de empréstimo mais uma imagem pictórica de van Gogh, na qual ele apresenta o seu quarto, local onde acalmava a “fantasia”.

Imagem 2: O quarto de van Gogh: http://minhamatria.blogspot.com.br em 29.06.12

Mas, não podemos esquecer que, embora o tempo estabelecido no contexto indoors esteja conectado com a realidade exterior, é com esta temporalidade que o indivíduo poderá executar as diversas atividades passíveis de serem efetuadas na intimidade doméstica. Sejam as mesmas em consonância com sua vontade ou não – uma vez que podem existir necessidades em sua casa que precisem ser supridas mas que em nada agradam o seu morador, porque com toda a impessoalidade-imunizante formatada pela modernidade, os indivíduos

412

ainda se deparam com circunstâncias em que precisam administrar sua vivência doméstica. Porém, mesmo com estas interdições, ainda é na casa que podemos viver de forma mais livre150, longe das sansões morais que muitas vezes impedem o indivíduo de expressar sua visão em torno da constituição da sociedade. E através desta vivência, o indivíduo encontra condições de respirar, podendo adquirir fôlego para um novo dia que inicia. Através desta respiração, o mesmo pode pensar acerca da sua existência no mundo – mesmo que os elementos utilizados para o auxílio desta reflexão seja a TV, jornal, ou músicas comerciais. Pois, após o momento de parada, o indivíduo precisará acionar sua “fantasia”, construindo suas próprias considerações em torno do mundo no qual está inserido. Em muitas circunstâncias as opiniões políticas da grande população são formatadas tomando enquanto referencial às grandes mídias, as quais vão estruturando o imaginário dos indivíduos em torno de temas que muitas vezes parecem banais ou construídos mediante opiniões

pessoais.

Seja

levando

em

consideração

os

embates

diplomáticos entre as grandes potências existentes na realidade econômica mundial ou as mais triviais condições de existência – como, por exemplo, a constituição do homem e da mulher. Dessa forma, os lugares de parada não estão isentos de sofrerem influências exteriores, muito menos os indivíduos maturam suas ideias a partir de suas próprias impressões em torno das questões sociais. Esta parada está sendo constantemente invadida pelas mais diversas influências, que muitas vezes fogem ao controle do indivíduo produtor da reflexão, sendo esta produzida para além da pessoalidade. Uma vez que, a cada dia as pessoas acreditam que os juízos de valor construídos em torno das mais variadas questões possuem um caráter pessoal, o qual se constitui a partir de uma opinião particular. 150

Devemos entender esta liberdade enquanto condição decorrente de nossas escolhas ou condição de existência.

413

Entretanto, esta particularidade, que também toma corpo nos espaços de parada, traz em sua estrutura padrões hegemônicos de opinião. Porquanto, as pessoas estão ficando mais a vontade para falarem o que pensam, afinal se trata de uma (pseudo) opinião particular. Não importando, se em alguma escala, a mesma estará diferindo banalmente da opinião do semelhante. Essa banalidade se expressa nas mais variadas questões que os indivíduos são chamados a opinarem. Cotidianamente as principais questões políticas estão negligenciadas por problemas banais que em nada contribuem para a consolidação de uma realidade social mais justa e democrática. Pois, nunca se refletiu tanto em torno das questões particulares, uma vez que um casamento ou acidente de alguma celebridade se tornou mais importante do que refletir em torno da questão da miséria, que atinge uma parcela significativa de pessoas no mundo todo. Entretanto, compreendidas enquanto elemento de produção da cultura, as diversas produções artísticas também servem para os indivíduos se colocarem diante da sua estadia no mundo, mesmo que estas produções tenham sido pouco pensadas para serem capazes de instigar a produção de reflexão ou significado em seus acompanhantes. Entretanto em determinados momentos, os indivíduos ao menos opinam diante de certo comportamento ou ponto de vista, se conhecendo ou não diante de alguma letra musical ou participante de um reality show. Enquanto produção democrática da cultura, devemos pensar na possibilidade da existência de inúmeras vias, com os mais variados produtos culturais, problematizando apenas a forma como estas vias estão sendo consolidadas, assim como as mesmas estarão chegando às mãos dos indivíduos, uma vez que o produzido pelo mercado cultural atualmente está cada vez mais direcionado para um determinado tipo de público. Assim, despertando o interesse apenas do público para o qual foi pensado. Por consequência, se deve haver uma multiplicidade de vias de produção e escoamento das mercadorias culturais, as quais 414

possam estar alcançando a residência dos consumidores de forma mais plural, e não fechado a determinadas classes ou grupos. Nesse sentido, não podemos ser negligentes quanto às inúmeras dinâmicas

domiciliares

que

a

modernidade

foi

imprimindo,

principalmente no Ocidente. Pois, podemos constatar que a casa é um lugar de espera, mas também, em alguns momentos, pode se tornar um espaço de múltiplos acontecimentos, metamorfoseando-se de um local de descanso, para um espaço da falta de descanso, causando a inexistência da reflexão. E a ausência desta faz com que o indivíduo caia no estado de alienação, constituindo enquanto condição psicológica produzida pelo sistema capitalista. PALAVRAS ÚLTIMAS As palavras últimas em um diálogo nem sempre indicam que todas as informações já foram trocadas, não havendo mais a possibilidade do surgimento de novos assuntos que possam ser compartilhados com o interlocutor. A casa enquanto metáfora para se pensar a organização filosófica da sociedade ainda precisa ser por demais visitada, a fim de explorarmos os mais infinitos elementos que a mesma pode nos oferecer. Apenas vislumbramos como a mesma se constitui em sua totalidade, bem como a estruturação do quarto enquanto ambiência “de espera”. A casa transmite para o morador a sensação de estadia no mundo, pois a localização da mesma lhe insere dentro de uma realidade geográfica capaz de fazer com que o indivíduo associe à mesma determinados elementos extradomiciliares, a fim de se localizar sócio-espacialmente no mundo. Essa premissa pode ser visualizada quando o morador diz que sua casa “é rodeada de sol, numa praça, onde também há um parque verde”. Sendo também dentro da mesma que o morador vivenciará inúmeras experiências, as quais farão parte

415

de sua história de vida – daí o sentimento de estadia, de local para retornar. Assim, a constituição da casa se dá mediante a condição subjetiva de seu morador, pois a mesma passará por sucessivos processos de construções, embora esses não ocorram de forma dinâmica,

mas

gradual.

Habitando

poeticamente,

o

indivíduo

significará o espaço ocupado, sobretudo mediante a organização dos elementos materiais e a estrutura arquitetônica que compõe o imóvel. A partir da significação do habitar, o indivíduo começará a constituir seu espaço particular, sendo no mesmo que as sanções morais poderão

ser

minimizadas

mediante

a

sensação151

de

segredo

engendrado pela particularidade inerente ao espaço privado. E esta privação deixa o indivíduo mais condicionado a retirar as máscaras sociais impostas pela moralidade. Em decorrência desta passividade diante das privações morais mais gerais, os indivíduos estão cada vez mais lutando por espaços privados, repletos de pessoalidade. Pois, são nos mesmos em que as opiniões particulares poderão ser lançadas de forma mais livre, sem a preocupação

de

estar

ocupando

espaços

destinados

para

pensamentos mais plurais. Consequentemente, se tem uma imunização exacerbada do espaço doméstico, o qual limita o intercâmbio cultural entre os pares, sendo barrada qualquer tentativa de ensaiar uma mudança em princípios tidos como enraizados ou hegemônicos. Por consequência, os indivíduos estão adquirindo uma visão mais hermética diante de temas sociais e políticos que deveriam ser abertos para um debate mais múltiplo, uma vez que existem demandas que precisam contemplar as mais diversas fatias do bolo social – tais como as condições sexuais, de trabalho, de lazer, habitação.

151

O segredo está sendo colocado apenas enquanto sensação, porque o fato de estar no espaço privado não quer dizer que as ações dos indivíduos estão totalmente em segredo. Principalmente se as atitudes estiverem relacionadas com as ferramentas cibernéticas, as quais nos ligam com toda a realidade mundial.

416

Todavia, o espaço da casa enquanto local de parada está cada vez mais sendo invadido por essas propostas ideológicas recheadas de princípios hegemônicos, fazendo com que a opinião social esteja em confluência com os padrões morais impostos pela indústria cultural (podendo ser chamada de dominante), impossibilitando que a grande parte da população construa um ponto de vista emancipatório e/ou alternativo diante das problemáticas sociais. Com toda essa colocação em torno do espaço doméstico e das condições sociais de existência, se faz necessário ensaiar uma nova estruturação do habitar, a qual esteja aberta para receber novos elementos capazes de construir múltiplas concepções em torno dos seres e da vida. Que as pessoas tocadas para lançar mão das amarras impostas

pelos

padrões

culturais

da

existência,

não

sejam

desencorajadas como foi à personagem descrita por Antonie de SaintExupéry: As pessoas grandes aconselharam-me a deixar de lado os desenhos de jiboias abertas ou fechadas e a dedicar-me de preferência à geografia, à história, à matemática, à gramática. Foi assim que abandonei, aos seis anos, uma promissora carreira de pintor. Fora desencorajado pelo insucesso do meu desenho número 1 e do meu desenho número 2. (SAINT-EXUPÉRY, 2008, p. 8)

Comecemos a desenhar gibóias, sem tomar como referência os traços colocados como certos ou errados, apenas desenhemos nossas gibóias...

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SAINT-EXUPÉRY, Antonie de. O pequeno príncipe. Rio de Janeiro: PocketOuro, 2008. SLOTERDIJK, Peter. Esferas III. Espumas. Esferologia Plural. Madrid: Siruela, 2006

417

WALTER, Ingo F. Vincent van Gogh (1853 – 1890): visão e realidade. Köln: Taschen, 2007

418

AVENIDA BERNARDO VIEIRA: A ORGANIZAÇÃO SOCIOESPACIAL DOS SERVIÇOS EM UMA ÁREA TRANSFORMADA DA CIDADE

Gerson Gomes do Nascimento152

RESUMO: O objetivo, deste trabalho, se constituiu em analisar a organização socioespacial desta avenida após sua transformação no ano de 2007-2009 via políticas públicas urbanas de transportes, levando em consideração a grande desorganização do fluxo de veículos nesta avenida. Aplicamos formulários com quatro atores diretamente envolvidos nessa questão: os motoristas de ônibus, os transeuntes da avenida, os comerciantes e os motoristas de carros particulares bem como consultamos também órgãos municipais (SEMURB e STTU). Concluímos que tais transformações, a maneira como foram executadas não agradou nem tampouco solucionou os graves problemas socioespaciais ali existentes tais como: roubos, poluição sonora, falta de estacionamento, perda de consumidores, congestionamentos entre outros. Palavras-Chaves: Políticas Públicas Urbanas; Organização socioespacial; Serviços.

INTRODUÇÃO A Avenida Bernardo Vieira com seus 5 km de extensão1 constitui, na atualidade, uma das mais importantes avenidas de Natal, no que se refere ao comércio e serviços, em face da sua ligação com toda a cidade, principalmente, com uma das áreas que mais cresce em Natal, que é a Zona Norte. Até 2007, esta era a principal via de ligação à Igapó, na Zona Norte da cidade, passando pela ponte sobre o rio Potengi. Hoje, é um importante eixo viário dentro da “trama” urbana da cidade, principalmente, por está situada de forma perpendicular a outros grandes eixos viários, como as avenidas Salgado Filho e Prudente de Moraes, tornando-se, uma avenida de grande entroncamento viário.

152

Graduado em Geografia (UFRN), Especialista em Geografia do Nordeste (UFRN), Mestre em Geografia Urbana (UFRN) e Doutor em Ciências Sociais (UFRN). Professor Efetivo (IFRN). Membro das Base de Pesquisas NUPEG do IFRN (Núcleo de Pesquisas e Estudos em Geografia). Coordenador do Curso de Licenciatura Plena em Geografia do IFRN (2013-2015).

419

Todavia, esta importância só pode ser compreendida quando consideramos alguns aspectos e fatores relevantes ocorridos na cidade. Quando da inserção de Natal na Segunda Guerra Mundial, esta avenida era mais conhecida como Avenida 15, num plano de avenidas que, segundo Lima (2003), tinha a função, apenas, de ligar as bases militares existentes na cidade em decorrência da guerra. Entretanto, em 1968, com o advento do Plano Diretor da Cidade, denominado de Plano de Sistematização de Natal (PSN), na administração do então prefeito Agnelo Alves, através da Lei número 2.211, a cidade foi organizada até a Avenida Capitão Mor Gouveia, então, área de expansão urbana. Neste contexto, outras avenidas, como a Bernardo Vieira, também, seriam contempladas com infra-estrutura básica, com o objetivo de dotá-las de melhor equipamento urbano. Anteriormente a este período (1950/1960), esta avenida se constituía, na sua maior parte, de casas populares, distantes ainda do centro

(Ribeira

e

Cidade

Alta)

com

pouquíssimos

serviços

e

infraestrutura bastante precária, pois, até então, para a construção de algumas vias importantes na cidade, foi aproveitado o traçado já existente no Plano da Cidade Nova, do início do século, cuja ocupação já se consolidara. Entretanto, o prolongamento e consolidação desta avenida, como de outras nesse período, orientou o surgimento de novas localizações, direcionando parte do crescimento da cidade para a Zona Sul a exemplo da Avenida Bernardo Vieira.

2 AVENIDA BERNARDO VIEIRA: CONSIDERAÇÕES GERAIS A Avenida Bernardo Vieira no começo da década de 1970, já se constituía como uma das grandes e promissoras via de ligação entre os bairros que por ela se formavam1 e a Zona Norte que abrigava, em sua grande maioria, uma população que trabalhava em vários setores da economia da cidade, destacando-se o pólo têxtil. Uma das maiores 420

fábricas instaladas em Natal, nesse período, mais precisamente nesta avenida, era a Confecções Guararapes, da família Rocha, vindo a fechar suas portas na década de 1980. Hoje, em seu lugar, se localiza o maior shopping-center da cidade, o Midway Mall. A partir das décadas de 1980 e 1990, com a consolidação e expansão dos conjuntos habitacionais populares na Zona Norte, o crescimento e desenvolvimento da Zona Sul e o surgimento de novas centralidades urbanas em Natal, fora dos eixos dos serviços mais tradicionais da cidade (Ribeira, Cidade Alta e Alecrim), a avenida ganhou grande impulso, consolidando-se com serviços diversos em suas margens, bem como na sua área circunvizinha. Sobre a diversidade dos serviços na avenida, Mello (2008, p. 84) nos mostra que Hoje, a avenida se consagra no setor de serviços de autopeças, revendedoras de automóveis usados, madeireiras, lojas de material de construção, postos de gasolina, um shoppingcenter de grande porte, pequenos comércios e algumas residências. Portanto, uma grande variedade de equipamentos, ou seja, uma grande diversidade de usos.

Desta forma, como projeto viário, a Bernardo Vieira nasce de uma necessidade ligada à abolição das distâncias entre as várias regiões da cidade, pelo controle da velocidade, por meio da construção de via de trânsito rápido – semi-expressa. Assim, a velha avenida firmou-se, desde o início, como importante artéria comercial e de serviços em Natal, fato consolidado nos dias atuais. Na realidade, o Plano de Sistematização de Natal ao contemplar várias avenidas, a exemplo desta, viria a viabilizar a extensão da “mancha terciária” da cidade, com a criação de áreas passíveis de serem incorporadas pelo mercado imobiliário com a finalidade de construir espaços os mais variados e modernos, destinados aos serviços. Assim, esse fato se tornou mais concreto a partir dos anos de 1980, com o desenvolvimento verificado na cidade, notadamente, nas suas zonas Norte e Sul. A Avenida Bernardo Vieira concentra, na atualidade, um excessivo fluxo de veículos de trânsito, principalmente, de passagem, 421

uma vez que cerca de 35% dos itinerários das linhas de ônibus de todas as empresas operantes no município, trafegam no seu espaço físico (STTU, 2010). Nos últimos anos, essa avenida perdeu a sua fluidez com o aumento

progressivo

do

tráfego

acima

de

sua

capacidade,

aumentando, consideravelmente, os conflitos entre os transportes coletivos de passageiros e os veículos particulares (Quadros 1 e 2). QUADRO 1: NÚMERO DE LINHAS E ITINERÁRIOS DOS ÔNIBUS QUE TRAFEGAM NA AV. BERNARDO VIEIRA

LINHAS

INTINERÁRIOS

83

Felipe Camarão/Ponta Negra

30

Felipe Camarão/Pirangi via Campus Candelária

31

Felipe Camarão/Pirangi via Campus Candelária

63

Felipe Camarão/Campus Mirassol

02

Gramoré/Mirassol/Campus/Nova República

04

Amarante via Campus/Mirassol

08

Redinha/Mirassol via Campus

18

Bairro Nordeste/Campus

72

Vale Dourado/Mirassol

76

Felipe camarão/Parque das Dunas

77

Parque dos Coqueiros/Mirassol via Campus

79

Parque das Dunas/Mirassol via Campus

07

Alvorada IV/ Ponta Negra

26

Soledade I/Ponta Negra Soledade II/Viaduto de Ponta Negra via Nova

29 Descoberta Soledade II/Viaduto de Ponta Negra via Nova 29 Descoberta 46

Ribeira/Ponta Negra via Praça Cívica

422

73

Santarém/Ponta Negra via Av. Itapetinga

50

Serrambi/Conjunto santa Catarina

03

Nova Natal/Campus/Mirassol

28

Nova Natal/IFRN

TOTAL

20

Fonte: STTU (2010).

QUADRO 2: QUANTITATIVO DE VIAGENS POR EMPRESA. EMPRESAS

DIAS ÚTEIS

SÁBADOS

DOM/FERIADOS

Viação Cidade das Dunas LTDA

272

205

191

Auto Ônibus Santa Maria

1096

936

711

Empresas de Transportes Guanabara

1507

1303

416

694

585

416

694

585

416

Reunidas Transportes Urbanos LTDA

793

672

597

Viação Riograndense LTDA

176

120

99

Transflor LTDA

363

260

173

Total de Viagens

4901

4082

3171

Emp. Transp. Nossa Senhora da Conceição Emp. Transp. Nossa Senhora da Conceição

Fonte: STTU (2010).

Observando-se os quadros, notamos o considerável número de linhas que trafegam pela Avenida Bernardo Vieira, com destinos variados, mostrando a importância desta via para toda a cidade e sua Região Metropolitana. Seu papel de articuladora de fluxo de pessoas e de veículos, também, se torna mais evidente quando, segundo dados da STTU, o número de veículos particulares circulando na avenida por dia, é da ordem de 45.000. Além da frota efetiva de 588 ônibus, existe 423

uma frota reserva de 126 ônibus, totalizando 714 coletivos ao todo (STTU, 2010). Nesse sentido, com o crescimento e os problemas, ali, verificados, no ano de 2007 a PMN (Prefeitura Municipal de Natal), via STTU (Secretaria de Transportes e Trânsito Urbano), buscando alternativas que viesse a amenizá-los, realizou dois grandes projetos: o Projeto de Geometria Viária – nivelamento das calçadas e o Projeto da Rota Acessiva para esta avenida, objetivando, entre outros aspectos, dar uma maior mobilidade ao sistema de transporte coletivo e conforto aos usuários. Assim, em 2006, a ARCO Engenharia, empresa vencedora da licitação para a execução dos dois projetos - o projeto de geometria viária e o da rota acessiva – iniciou os seus trabalhos, no mesmo ano, finalizando-o em 20081. O

primeiro

projeto

visou

amenizar

a

problemática

dos

congestionamentos de veículos na avenida. Nesse caso particular, a solução apontada pelos estudiosos para a área foi o de investir no transporte público. Sob esta ótica, a PMN optou pela implantação da faixa exclusiva para ônibus, nessa que é uma das maiores e mais movimentadas avenidas da cidade. Portanto, a implantação da faixa exclusiva para ônibus, teve como objetivo mudar o perfil do transporte urbano na capital, dentro do conceito de mobilidade urbana sustentável, com a valorização dos usuários de transporte público de massa, obedecendo aos critérios das políticas públicas urbanas de transporte do município (PLANO DIRETOR DE NATAL, Lei complementar Nº 082, 2007). Entrementes, no âmbito municipal foi criada a SEMOB, a qual tinha como objetivo maior a formulação e implementação de políticas de mobilidade urbana sustentáveis, entendidas como a reunião de políticas de transporte e de circulação, integradas à política de desenvolvimento urbano, com a finalidade de proporcionar o acesso amplo e democrático ao espaço urbano, priorizando os modos de

424

transportes

coletivos

e

os

não

motorizados,

de

forma

segura,

socialmente inclusiva e sustentável. Neste sentido, a partir do que foi mencionado na supracitada política, foi realizada uma obra, que passou mais de um ano para ser concluída, cujo objetivo era melhorar o tráfego de veículos nos horários de pico, dando ênfase aos transportes públicos e procurando resolver os transtornos para motoristas e pedestres que por, ali, trafegavam. Segundo levantamentos da STTU, a quantidade de veículos dia que trafega nessa avenida é da ordem de 80 mil veículos em média, sendo 150 ônibus num intervalo de apenas uma hora. Segundo Carlos Azevedo, um dos engenheiros responsáveis pela obra, a cada mês, a cidade recebe, aproximadamente, cerca de 2.000 a 2.500 veículos novos, necessitando, dessa forma, de intervenções que venham a possibilitar a amenização dos congestionamentos, bem como diminuir o tempo das viagens do transporte público de passageiros (STTU, 2010). Além disso, hoje, segundo dados da STTU, cerca de 650 mil usuários

utilizam,

diariamente,

o

transporte

coletivo

em

Natal.

Atualmente, dentro dos 3,5 km que sofreram intervenções, pela qual passou a avenida podemos destacar: alargamento da pista existente em direção ao canteiro central, visando, entre outros aspectos, a ampliação e dedicação da faixa mais a esquerda para o tráfego exclusivo de transportes coletivos; demolição do canteiro central para implantação e pavimentação de faixa exclusiva para as paradas de ônibus; construção de plataformas para embarque e desembarque de passageiros; fechamento da abertura existente no canteiro central no cruzamento com a Rua dos Pegas; adequação semafórica, proibindo o sentido à esquerda no cruzamento com a Avenida Coronel Estevam; fechamento dos retornos no canteiro central ao longo do trecho de implantação do projeto; sinalização viária; instalação de iluminação pública nas plataformas de ônibus; relocação de postes de alta tensão e recapeamento das pistas existentes. As figuras abaixo ilustram as transformações pelas quais passou a Avenida Bernardo Vieira. 425

Segundo a STTU, a melhoria na malha viária contemplou outros benefícios como: a nova pavimentação e a renovação da sinalização vertical e horizontal; à implementação da “onda verde”, com a sincronia de todos os semáforos, a exemplo do que já acontece nas avenidas Prudentes de Moraes e Hermes da Fonseca, permitindo aos motoristas trafegarem a uma velocidade média de 50 km, encontrando todos os sinais abertos e na sua faixa exclusiva, fato que, segundo a STTU, diminui substancialmente as distâncias e o tempo gasto pelo usuário e os motoristas de ônibus, que têm essa avenida em seu itinerário diário. Em média, se gastava cerca de 30 minutos no corredor antes das modificações. Hoje, esse tempo caiu para 15 ou 20 minutos (STTU, 2010). Na época do nosso trabalho de campo (2008-2009), com essa transformação os conflitos entre os ônibus e os veículos particulares foram amenizados, além de terem contribuído de forma prazerosa para a redução do número de acidentes e congestionamentos em toda a avenida. Por outro lado, a instalação das plataformas no canteiro central da avenida não oferece nenhum tipo de perigo aos pedestres, uma vez que existem botoeiras e faixas de pedestres nos trechos que dão acesso às plataformas de embarque e desembarque. Cada plataforma comporta até três ônibus, não sendo mais permitido o embarque ou desembarque dos usuários fora das mesmas. Esse fato contribuiu, de forma substancial, para a organização dos transportes de massa, naquele logradouro. Além disso, nos dois primeiros meses, enquanto a população não se acostumava às mudanças que ocorreram na Bernardo Vieira, foram disponibilizadas equipes da STTU em toda a extensão da avenida, com a finalidade de orientar os usuários. Outro fato digno de nota foi à proibição do estacionamento de veículos na avenida a partir das intervenções realizadas pela obra acima mencionada. No que concerne ao Projeto Rota Acessiva, apenas, parte dele foi implementado, em virtude do mesmo ter logrado um orçamento de R$ 426

1.300.000 (um milhão e trezentos mil reais), quantia esta que, ainda, está sendo viabilizada pela STTU, junto aos órgãos ligados a esta secretaria. Como se trata de um projeto que prevê desapropriação de alguns estabelecimentos comerciais e de serviços para que seja executado da forma como foi planejado no projeto original, levou algum tempo tanto para se garantir o valor da obra, bem como as negociações dos atores diretamente envolvidos nessa questão (STTU, 2010). Assim, apenas as calçadas mais, diretamente, próximas às plataformas de embarque e desembarque de passageiros sofreram transformações, ou seja, foram niveladas e equipadas para facilitar a locomoção dos pedestres, incluindo os portadores de deficiência que precisam trafegar por esta área. Todavia, as transformações ocorridas na avenida, via políticas públicas de transportes, vêm causando grande insatisfação por parte, principalmente, dos comerciantes da área. Estes alegam que desde a proibição do estacionamento dos veículos nas calçadas, em função da execução do segundo projeto na avenida, houve uma queda considerável nas vendas de todos que, ali, têm algum tipo de comércio e/ou serviços, ocasionando uma perda considerável dos consumidores. Nesse sentido, na tentativa de elucidar as conseqüências trazidas por esse tipo de política pública de transporte, implementada nesta área da cidade, aplicamos formulários com os diferentes atores sociais, diretamente, envolvidos nesta problemática, ou seja, os comerciantes, os motoristas de ônibus, de carros particulares e os usuários dos transportes coletivos que trafegam na avenida, a fim de obtermos um diagnóstico mais verdadeiro, no que tange ao discurso do Estado, via PMN e a realidade de quem circula, diariamente, na Bernardo Vieira, sentindo de perto todas as conseqüências, sejam elas negativas ou positivas a partir das transformações por que esta passou. Nesta perspectiva, aplicamos um formulário contendo 2 questões (uma fechada e outra aberta) para estes atores. Todavia, tanto para os comerciantes como para os motoristas de ônibus, adotamos como 427

forma de amostragem, um percentual de 20% de formulários por serviços, totalizando 104 formulários. Para os motoristas de ônibus, esse percentual de 20% foi aplicado, levando-se em consideração a frota de veículos, abrangendo 168 ônibus/dia, em 20 linhas, das 7 empresas que trafegam na avenida, totalizando 36 formulários. TABELA 1: OPINIÃO DOS PRINCIPAIS ATORES DIRETAMENTE ENVOLVIDOS NA AV. BERNARDO VIEIRA

Sim

Não

(%)

(%)

Comerciantes

2,9

97,1

Motoristas de ônibus

100

-

Entrevistados

Motoristas de veículos particulares

86

14

Usuários de transportes coletivos

75

25

Respostas positivas

Respostas negativas

Avenida mais organizada/mais sinalizada Diminuição no tempo do percurso/Tráfego mais organizado Avenida mais organizada/menos perigosa Avenida mais organizada/diminuição no percurso

Falta de estacionamento/Falta de segurança Aumento no tempo das viagens/Falta de retornos Avenida mais lenta/Aumento dos engarrafamentos

Fonte: Pesquisa de campo (2010-2011).

Para os motoristas de carros particulares, o formulário foi aplicado junto a 50 pessoas, nos 15 postos de gasolina existentes na avenida, em ambos os lados. Para os usuários de transportes coletivos, também , aplicamos 50 formulários no conjunto das plataformas de embarque e desembarque existentes ao longo da avenida. O resultado das questões levantadas a todos os atores envolvidos nesse processo, nos mostrou o seguinte quadro da atual situação da Avenida Bernardo Vieira, no que se refere às transformações implementadas pela STTU, via PMN (Tabela 1). Com base na tabela, podemos constatar que 97,1% dos comerciantes

da

avenida

não

428

ficaram

satisfeitos

com

as

transformações ali ocorridas, alegando, principalmente, que a falta de estacionamentos tem prejudicado de forma substancial os seus negócios e, consequentemente, perda de consumidores. Outra característica apontada diz respeito à falta de segurança, pois, os assaltos na avenida são constantes. No entanto, um percentual de 2,9% afirmou que foram boas as recentes transformações, alegando que a avenida ficara mais organizada, mais sinalizada e que diminuíra os acidentes nela registrados. Constatamos também que um percentual de 2,9% afirmou que foram boas as recentes transformações, alegando que a avenida ficara mais organizada, mais sinalizada e que diminuíra os acidentes nela registrados. A tabela, também, nos mostra que 100% dos motoristas de ônibus aprovaram as transformações ali ocorridas alegando, entre outros aspectos, que diminuíra substancialmente o tempo no itinerário por eles almejado na avenida, bem como o tráfego para os transportes coletivos ficara mais organizado. Todavia, para a maioria dos motoristas de veículos particulares (86,6%), as transformações não foram bem aceitas, porquanto, para estes houve um aumento no tempo das viagens na avenida, como também a falta de retornos tem causado muitos transtornos. Os motoristas afirmaram ainda que a via ficara muito estreita para seus veículos com a implementação do corredor viário. Entretanto, um percentual de 14% aprovou tais transformações. Entre as razões apontadas destacamos as seguintes: a avenida ficara mais organizada, menos perigosa e mais bonita do ponto de vista paisagístico (pesquisa de campo, 2009-2010). No que concerne aos usuários de transportes coletivos que, ali, trafegam 75% afirmaram que tais transformações foram positivas porque a avenida ficara mais organizada, havendo, também, uma substancial diminuição no tempo dos percursos por eles realizados. Entretanto, 25% ressaltaram que estas não haviam surtido os efeitos esperados, pois, a avenida

ficara

mais

lenta,

provocando 429

com

isso,

um

grande

engarrafamento,

o

que

para

eles

era

motivo

de

grandes

aborrecimentos. Contudo, consideramos que a atual situação, na qual a Avenida Bernardo Vieira se encontra, é muito preocupante, sobretudo, no que tange ao comércio e serviços, ali, instalados. É notório na Bernardo Vieira, além da perda de consumidores, o fechamento de muitas lojas e a transferência destas para outras áreas da cidade, onde há possibilidade de vendas para os lojistas. Segundo o Sindicato dos Lojistas de Natal (SLN), houve desde as reformas implantadas na Bernardo Vieira, uma queda nas vendas da ordem de aproximadamente 30%, causando prejuízo na economia da área, bem como para a cidade como um todo, pois, essa diminuição nas vendas implicou na demissão de empregados. Registramos, ainda, que após a conclusão dos projetos para a avenida, qualquer estabelecimento comercial que pretenda, ali, instalar-se tem que ter, segundo a STTU, seu próprio estacionamento, fato completamente impossível dada às condições em que a Bernardo Vieira se encontra na atualidade (SLN, 2010). CONSIDERAÇÕES FINAIS Pelo exposto, depreendemos que a participação em todo e qualquer projeto que venha a ser implementado na área urbana, deve ser objeto de discussões e debates junto à população. Só desta forma, através de muito diálogo e participação conjunta de todos os envolvidos e interessados em políticas públicas urbanas, principalmente, as de transportes, podemos contemplar e beneficiar a sociedade de modo adequado e consensual. Passado dois anos da conclusão das reformas implementadas na avenida, muitos são os problemas ali encontrados, uma vez que os dois anos do novo sistema de funcionamento da Avenida Bernardo Vieira não mudaram em nada a opinião dos moradores e comerciantes do entorno da via, que desde a sua inauguração em 2008 reclamam da reformulação do local. 430

O desgaste do tempo, aliado ao vandalismo, tem prejudicado a estrutura da passarela e das paradas de ônibus. Os canteiros estão cada dia acumulando mais lixo, o asfalto segue irregular, sem contar os inúmeros buracos existentes ao longo dos seus 3,5 km de extensão da via. Para quem transita de carro, além desses problemas, também é preciso ter paciência para passar pelos 16 semáforos não sincronizados. Já os pedestres precisam torcer para não estar entre as próximas vítimas dos assaltantes que circulam pelas paradas dia e noite. Assim, constatamos que este é o quadro atual em que se encontra uma das mais importantes avenidas da capital potiguar. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS LIMA, P. Saneamento e modernização em Natal: Januário Cicco, 1920. Natal: Sebo Vermelho, 2003. MELLO, Erick de Santana. Mobilidade Urbana Sustentável em Projetos estruturantes: análise urbanística do corredor de transporte da Avenida Bernardo Vieira. Dissertação (mestrado); Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, UFRN, Natal, 2008. PLANO DIRETOR DE NATAL. Lei Complementar nº 082, de 21 de junho de 2007. Título IV – da política de mobilidade urbana; artigos 57, 58, 59. SECRETARIA DE TRANSPORTES E TRÂNSITO URBANOS – STTU. Dados da Av. Bernardo Vieira. Disponível em: . Acesso em: 20 de maio 2010. ________ Dados da Av. Bernardo Vieira. Disponível . Acesso em: 03 de agosto 2008.

em:

SINDICATO DOS LOJISTAS DE NATAL (SLN). Breviário e perfil dos serviços em Natal. Documento original, 2010.

431

CIDADES MÉDIAS E TRANFORMAÇÕES INTRA-URBANAS NA REGIÃO DO CARIRI CEARENSE: O CASO DOS MUNICÍPIOS DE CRATO, JUAZEIRO DO NORTE E BARBALHA Aline Alves de Oliveira153 Maria Nivânia Feitosa Barbosa154 Rosana Marques Feitosa155 Francisco do O’ de Lima Júnior (Orientador)156 RESUMO: Este trabalho objetiva estudar a ocupação e uso do espaço urbano nas cidades médias da conurbação de Crato-Juazeiro do Norte-Barbalha (CRAJUBAR), a partir da dinâmica econômica. Realizou-se estudo de literatura levantando categorias da temática e utilizou-se dados secundários (IBGE e RAIS-MTE). Observou-se que as mudanças dos últimos trinta anos e as alterações na acumulação aprofundaram as diferenciações espaciais. O CRAJUBAR insere-se neste contexto: ocorreu intensa diferenciação intra-urbana com predomínio de população vivendo em bairros de baixa renda e deficiências infraestruturais (54,2%, 55,7% e 74,7% das populações urbanas de Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha, respectivamente). Sob condução Juazeiro do Norte, o ordenamento de ocupação e uso do espaço segue as lógicas similares às grandes metrópoles. Palavras-chaves: Mudanças Econômicas; Espaço Urbano; CRAJUBAR

1. INTRODUÇÃO As mudanças macro estruturais observadas na economia mundial a partir dos anos 1970, trouxe impactos irreversíveis. Sobressai-se a inflexão no paradigma de regulação e suas conseqüências sociais, econômicas,

políticas,

culturais.

Todos

153

os

aspectos

associados

Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional (UFRN). [email protected] 154 Graduada em Pedagogia (URCA) Ciências Econômicas (URCA), Especialista em Desenvolvimento Regional (URCA), Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional (UFRN). Integrante do Grupo de Estudos em Politicas Públicas e Desenvolvimento (URCA). [email protected]. 155 Graduada em Ciências Econômicas (URCA), Eletromecânica (IFCE), Auxiliar Financeira da Fundação de Desenvolvimento Tecnológico do Cariri-CE. Integrante do Grupo de Estudos em Políticas Públicas e Desenvolvimento (URCA). [email protected]. 156 Graduado em Ciências Econômicas (URCA), Mestre em Economia (UFU) e Doutor em Desenvolvimento Econômico (UNICAMP). Professor Adjunto (URCA). [email protected]

432

diretamente

ao

reorientação

processo

atendendo

de aos

acumulação imperativos

capitalista desta

sofreram

lógica,

e

as

problemáticas relacionadas à questão urbana se constitui uma de suas expressões mais intensas. A transformação do Brasil em país eminentemente urbano nos anos 1970, os caminhos tomados pela desconcentração produtiva com incorporação de espaços e redimensionamento de outros, o processo de metropolização, a diferenciação intra-urbana advinda da rápida urbanização, o crescimento das cidades médias em todo o território nacional são algumas constatações. O crescimento de trabalhos com problemáticas sobre os impactos territoriais desta conjuntura é notável, evocando vários aspectos dos estudos regionais e urbanos157. No caso dos que tratam do sistema urbano cearense, é consensual considerar o seu processo de modernização política e econômica, vivenciado desde meados da década de 1980 (PEREIRA JÚNIOR, 2011). Na seqüência de uma série de programas

de desenvolvimento

desenvolvimentistas

a

um

combinando velhos instrumentos

contexto

de

intervenção

neoliberal,

importante será a busca pela interiorização objetivando redução das disparidades entre a Região Metropolitana de Fortaleza – RMF e o interior do estado. No conjunto destas medidas, em 2009 é criada a Região Metropolitana do Cariri- RMC, também tendo como fundamento a histórica

relevância

assumida

pela

conurbação

formada

pelos

municípios de Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha – CRAJUBAR, no que concerne à polarização em áreas do sul cearense. Devido à localização geográfica, sua influência vai além dos limites estaduais ao incluir espaços dos estados de Pernambuco, Piauí e Paraíba e desde os anos 1970.158. 157

Desconcentração produtiva, os aspectos da rede urbana, a metropolização, a repaginada no processo de fragmentação da nação pela inserção individual de cada região são algumas abordagens. 158 A Região Metropolitana do Cariri é criada pela Lei Complementar Estadual No. 78 de 29 de junho de 2009, que também ampliou a Região Metropolitana de Fortaleza peal incorporação dos municípios de

433

Na

realidade

observada

em

outras

regiões

do

Brasil,

o

crescimento das cidades médias está associado com o processo de espraiamento

das

atividades

econômicas

(NEGRI,

1996),

desconcentração concentrada (CANO, 2007; DINIZ, 1993) ou ainda os novos aspectos da configuração espacial capitalista e sua divisão espacial do trabalho a partir da dinâmica de inserção externa (MACEDO, 2010). No caso dos municípios em análise aqui, somam-se a estes fatores algumas especificidades. Como parte de um sistema urbano dentrítico (CORREA, 1994), localizados distantes da capital e num espaço privilegiado em meio às adversidades climáticas do semi-árido nordestino, os centros urbanos pólo do Cariri cearense desenvolvem dinâmica de destaque a partir de fatos ligados à sua história e riquezas naturais. As atividades econômicas derivadas deste processo de aglomeração populacional permitiram portanto a continuidade do crescimento, atraindo atenção de políticas de investimento em infraestrutura, oferta de serviços públicos como saúde e ensino superior e ação de setores privados. Como resultado, o processo de diferenciação na ocupação e uso dos espaços urbanos se amplia e reproduz nessas cidades o mesmo padrão observado nas grandes metrópoles, relativizadas as suas características particulares. Tratar dos deslocamentos proporcionados se constitui no objetivo do presente trabalho. O trabalho está dividido em duas partes além desta Introdução, acompanhadas por algumas notas conclusivas. Na seção seguinte, utilizando-se de referencial bibliográfico atinente às questões espaciais, serão abordados elementos acerca dos processos de ocupação e uso do espaço urbano. Em seguida, no âmbito de todo o processo recente de

desenvolvimento

do

capitalismo

brasileiro

e

transformações

Pindoretama e Cascavel. Além da conurbação de Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha, a RMC é formada pelos seus municípios limítrofes (Jardim, Missão Velha, Caririaçu, Farias Brito, Nova Olinda e Santana do Cariri) e possui de acordo com o IBGE (2010) uma população total de 564.478 habitantes, dos quais 76% vivem na referida conurbação.

434

econômicas mais gerais, busca-se perceber as respostas sentidas nas cidades do CRAJUBAR a esta conjuntura.

2. OCUPAÇÃO E USO DO ESPAÇO URBANO: OBSERVAÇÕES PARA O CASO BRASILEIRO A ocupação e uso do espaço urbano apresenta-se como uma nítida manifestação das contradições capitalistas. Sendo o urbano imprescindível ao avanço do processo de acumulação visto se apropriar dos efeitos da aglomeração pelo capital e ser lócus principal da reprodução da força de trabalho (OLIVEIRA E BARCELOS, 1987; SPÓSITO, 2000), destacam-se ainda questões como a presença concentrada das atividades econômicas e as infraestruturas para produção e circulação de mercadorias juntamente com a gestão das demais atividades que não se situam no urbano. Mesmo considerando que a urbanização precede ao modo de produção capitalista, esta inerência se confirma com a gradativa impressão no espaço urbano de marcas das etapas deste modo de produção desde a fase comercial, passando pela industrial e chegando até o capitalismo financeiro. A ocupação territorial brasileira e sua conseqüente urbanização seguem suas etapas atendendo ao intento de suporte à expansão do capitalismo mundial, não sofrendo alterações substanciais ao longo do tempo. A conformação espacial será de “arquipélagos regionais” onde cada região tinha suas relações comerciais diretas com exterior através dos produtos primários e um sistema urbano funcional a isto (OLIVEIRA, 1993). Os núcleos urbanos, quando localizadas no interior, eram de coleta da produção destinada à cidade portuária mais próxima. Com os deslocamentos econômicos e políticos dados a partir da década de 1930, inicia-se um processo de ruptura marcado pela industrialização.

A

nítida

diferenciação

entre

as

etapas

de

industrialização restringida (1930-1955) e de industrialização pesada 435

(1955-1980)159 demarcam o desenvolvimento do capitalismo brasileiro e seus impactos regionais e urbanos, tendo em comum o fato de ampliar as desigualdades sobre o território, intensificar a concentração e consolidar o papel das diversas frações na divisão espacial do trabalho. O Centro-Sul irá comandar o dinamismo econômico protagonizado num primeiro momento pelo Eixo Rio-São Paulo e com participação complementar das metrópoles nas demais regiões. A fase posterior de crise do modelo desenvolvimentista, a partir de fins dos anos 1970, dá novos sentidos a estas determinações. No concreto, a reestruturação produtiva acompanhando tendências de flexibilização, abertura econômica, estabilidade monetária, domínio da acumulação financeira, transformações tecnológicas e informacionais têm efeitos espaciais: novas áreas são incorporadas, seus conseqüentes pontos de articulação assumem papel preponderante, a atividade industrial se desloca ficando nos antigos centros as atividades de gestão. A lógica deste deslocamento será dada por inúmeros elementos cujo fundamento é o da redução de custos. A oferta de incentivos de várias órbitas, a presença de matérias primas, a disponibilidade de mão de obra, a ausência de deseconomias de aglomeração e as facilidades de inserção externa assinalam o exercício sobre a ocupação e uso do espaço, determinada pela concorrência. Considerando estas transformações, Maricato (2002) lembra as questões estruturais do avanço urbano brasileiro intensificado nesse período e a sua industrialização. Aponta que ambos se dão com baixos salários, incapazes de cobrir os custos com moradia e infraestruturas concernentes à reprodução da força de trabalho. Associado a tal fato, destaca-se a reafirmação circunstancial responsável pelo movimento populacional campo-cidade e das cidades menores para as cidades maiores, ampliando-se nestas a participação das cidades.

159

Esta periodização é seguida pela Escola de Economia de Campinas. Maiores detalhes ver Cano (2007) e Cardoso de Mello (1982)

436

Por representarem a concretização da divisão de classes no espaço, suas imbricações maiores permeiam os impasses relacionados à propriedade privada do solo (OLIVEIRA E BARCELOS, 1985). Explicamse com isto os usufrutos ao capital imobiliário e os estrangulamentos a sua reprodução se apresentam pelos limites da disponibilidade de terras. Onde a pressão por demandas urbanas são maiores, isso é mais visível. Para o presente trabalho vale enfatizar, conforme lembra Spósito (2012), que as cidades médias são um caso emblemático: estes processos se reproduzem em lógicas semelhantes às metrópoles, constituído de formas diversas pelo fato de as temporalidades serem outras. O crescimento populacional, a instalação/ampliação dos distritos industriais e a crescente diversificação das atividades de serviços intensificam as mudanças espaciais intra-urbanas. Os centros das cidades passam a abrigar não mais somente o tradicional comércio, mas também o comercio informal. Dentro deste espaço central, as atividades comuns vão revitalizando alguns espaços marginais à valorização imobiliária160. Por outro lado, na concretização da divisão de classes sobre o espaço urbano, os bairros residenciais de trabalhadores nas periferias ladeando parques industriais suscitam uma questão relevante nos estudos intra-urbanos como os referentes aos custos de transporte (VILLAÇA, 2006, p. 20). A saída para os problemas decorrentes se apresenta mais na esfera do individual e reproduz cada vez mais a segregação social (SPÓSITO, 2000). A busca individual por segurança, esgotamento sanitário, abastecimento de água potável, coleta de lixo permite a ampliação do número de condomínios fechados. Para Coy (2006) os gated communities, como também são denominados os condomínios, fazem parte do conjunto de padrões inovativos imobiliários de 160

O caso do setor financeiro nas grandes metrópoles ao migrar para as bordas do centro em algumas grandes cidades é um bom exemplo.

437

segregação juntamente com formas modernas de consumo e de lazer, como é o caso dos shopping centers. 4. OCUPAÇÃO E USO DO ESPAÇO NA REGIÃO METROPOLITANA DO CARIRI – RMC: OS MUNICÍPIOS DE CRATO, JUAZEIRO DO NORTE E BARBALHA. No caso cearense, grande destaque é dado nesta literatura às transformações políticas e econômicas na gestão governamental estadual dos últimos trinta anos. Esta decorrência é importante visto que traz para a arena dos processos urbanos os elementos forjados na inserção competitiva global sob o marco neoliberal de regulação. O papel das políticas governamentais é assim reorientado para atender aos requerimentos do mercado. No caso estudado pelo presente trabalho, a conurbação CRAJUBAR se constitui núcleo da RMC, criada recentemente. O seu centro mais importante é a cidade de Juazeiro do Norte, ditando os ritmos do movimento de conurbação em direção às cidades de Crato e Barbalha161. Muitos

aspectos

do

que

foi

discutido

anteriormente

são

averiguados na ocupação destes três núcleos, decorrentes dos embates contraditórios de seus processos de formação face às transformações em circuito. É importante a nota de que no plano do marco regulatório, se reproduz algumas incongruências como o descompasso entre a matriz teórica dos Planos Diretores Municipais– PD’s e a prática real citados também por Maricato (2002) para grande parte das cidades brasileiras. Na visão que percebe a cidade como mercadoria, objetivando atrair investidores diversos, a mercantilização das peculiaridades presentes no aspecto paisagem urbana do CRAJUBAR foram âncora. Serão destacados alguns destes aspectos a seguir cuja esquematização 161

A distância média entre os centros urbanos de cada um dos três municípios é de 12 km, favorecendo a conurbação.

438

está na Figura 1 que traz foto de satélite da conurbação CRAJUBAR com eixos de ocupação feitos de acordo com atividades econômicas e também por classes sociais. A definição se deu com base na consulta a

documentos

de

zoneamento

das

prefeituras,

em

trabalhos

acadêmicos tratando da geografia urbana dos três municípios e, principalmente, em pesquisa de campo162.

4.1 - A ocupação residencial A iconização da figura do Padre Cícero Romão Batista e sua relação com o crescimento de Juazeiro do Norte pode ser elencada como um dos mais importantes aspectos que influenciaram na sua paisagem

urbana.

Grandes

grupos

de

populações

nordestinas

migraram para a cidade, inicialmente motivados pelas romarias. Na ligação com o Padre, os preceitos de suas pregações são reproduzidos dentre eles a dedicação ao trabalho163. Assim, ainda nos anos 1950, a cidade já se destaca como centro de artesanato, beneficiamento e comercio que deu origem às principais atividades enquanto pólo econômico regional sobressaindo-se os setores de calçados, têxtil, alimentos e folheados. A cidade nos anos 1970 já tinha seu centro densamente povoado. Além do centro, se registra nítida expansão para dois eixos: i) nas áreas periféricas ao centro e ii) no sentido da conurbação, em direção a Crato, para o oeste, e a Barbalha, para o sul. Inicialmente, nessas áreas se instalavam os romeiros de várias regiões do país bem como também

162

A pesquisa de campo aqui referida faz parte do conjunto de coleta de dados e informações junto a autoridades da administração municipal responsáveis pela gestão do espaço urbano, entrevista com moradores e lideranças de bairros, gerentes de imobiliárias e construtoras que atuam nos três municípios. 163 Para o Padre Cícero, a idéia de que não é necessário uma vida de sofrimentos para alcançar o paraíso depois da morte era um dos principais preceitos. O paraíso pode ser alcançado em vida como resultado do trabalho e da oração (BARROS, 2008).

439

levas de retirantes nas fases de seca, tendo no Cariri a possibilidade de resistência pela sua prosperidade. Figura 1 – Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha: Eixos de ocupação segundo renda média e atividades econômicas 9

Crato

1 3 4

2 1 5

4 6 7

1

5

3

2

Juazeiro do

7 8 6

Juazeiro do Norte: (1) Centro; (2) Pirajá; (3)

4 1 3 2

Tiradentes, Novo

Barbalha

Juazeiro e Betolândia; (4) João Cabral; (5)

Fonte: Elaboração dos autores a partir de dados do IBGE (2010), Programa Google Earth e pesquisa de campo

No primeiro eixo, a ocupação forja o crescimento de bairros nas mediações do centro (São Miguel, Pirajá e Romeirão) num primeiro momento e, com dos anos 1990 em diante, pela expansão mais extensiva para leste, com a incorporação das áreas que compreendem os bairros de Novo Juazeiro, Vila São Francisco (Aeroporto), Betolândia, Tiradentes. No segundo eixo, em direção ao Crato desponta o Bairro Antônio Vieira e o Bairro São José, conhecido por Atacadão pela instalação recente de uma unidade de venda por atacado nas margens da Rodovia Pe. Cícero e, em direção a Barbalha o João Cabral e a Lagoa Seca, com discrepâncias gigantescas. Nas proximidades deste último localiza-se ainda o Parque Frei Damião, 440

adjacente ao Distrito Industrial. A disparidade intra-urbana é marcante, pelo cercamento do espaço mais elitizado da cidade por dois bairros carentes e com infra-estrutura deficiente em esgotamento, saneamento básico e pavimentação. O Lagoa Seca se constitui na área de maior valorização imobiliária do Cariri. Segundo Pereira e Oliveira (2010) o papel público confirma as diferenças espaciais em Juazeiro do Norte. A discriminação das intervenções públicas em infraestrutura beneficia o Bairro Lagoa Seca. Também aí se instalaram instituições de ensino superior, hotéis de boa qualificação, centros empresariais e complexos imobiliários de alta renda. Em Crato, com uma configuração de heranças históricas mais antigas, são visíveis quatro possíveis distinções: i) as áreas antigas centrais onde além dos comércios se apresentam as ruas da primeira etapa de ocupação no entorno da Praça da Sé; ii) o eixo de classes mais altas que sobe em direção à encosta da Chapada do Araripe e a própria área da encosta; iii) os bairros de renda média e, iv) os bairros periféricos. Na caracterização da velha ocupação, está a área com patrimônio histórico não reconhecido pelas instâncias cabíveis e desvalorizado enquanto registro concreto de fatos da história regional e estadual. Este espaço localiza-se no perímetro que deu origem a aglomeração onde residiam as primeiras famílias importantes da região e se situavam também as obras de caridade ligadas à Igreja católica. A partir do centro, o segundo eixo mencionado avança em direção à Chapada. A ocupação se dá de um lado por famílias abastadas em busca de áreas com clima ameno propiciado pela maior altitude e a vegetação da serra e, de outro, nas áreas lindeiras, pela população de baixa renda que ocupou proximidades de riachos, com disponibilidade de terras para o plantio de subsistência. Na encosta da Chapada essa ocupação toma novas formas de especulação

predadora

com

espaço 441

de

grandes

residências,

condomínios horizontais, hotéis e os tradicionais clubes de lazer que se beneficiam das fontes e nascentes naturais. O elevado preço da terra é marcante nessas áreas em que se situam os bairros de Lameiro, Granjeiro e em direção à cidade de Barbalha com um grande eixo de elite, seguindo a encosta, motivados por infraestrutura advinda da instalação do complexo de lazer Arajara Park. As áreas assinaladas por ocupação de classes de médio rendimento, apesar de não serem recentes como é o caso do bairro Mirandão, tiveram expansão com a disponibilidade de linhas de crédito à casa própria nos últimos anos. Bairros intermediários entre os locais de elite e o centro (Bairro Zacarias Gonçalves e Sossego) e o eixo que segue em na direção de Juazeiro do Norte pela rodovia Pe. Cícero (Conjunto

Belas

Artes)

teve

ocupação

definida

nesse

mesmo

fundamento. A dinâmica em Barbalha, embora siga caminho semelhante, apresenta particularidades associadas ao seu menor tamanho e às características de sua funcionalidade. Além de possuir um patrimônio histórico conservado com seus casarões e sobrados, a cidade se destaca por oferta de serviços de especialidades médicas de média e alta complexidade. Isso possibilita que seja um pólo de atendimento a público oriundo de todo o centro e sul cearense e estados vizinhos e tenha um mercado de trabalho de alta remuneração no campo da saúde. A segregação decorrente da moradia destes profissionais ocorre no bairro juazeirense da Lagoa Seca, área de conurbação entre os dois município onde crescem os condomínios164. Na ocupação urbana barbalhense sobressaem-se os bairros de residências de renda mais baixa e onde se destacam os casos do Bairro Alto da Alegria e outros trechos próximos ao centro com a vizinhança do Parque da Cidade. Outro destaque está na presença dos clubes aproveitando

os

potenciais

dados

164

pela

Chapada

do

Araripe,

Em entrevista realizada em uma das construtoras que atuam nessa área, o gerente entrevistado definiu alguns dos empreendimentos nesse espaço como os condomínios dos médicos.

442

semelhante ao que ocorre em Crato, em direção ao Arajara Park e ao distrito de Caldas. A Tabela 1 apresenta a proporção percentual da população dos bairros de acordo com classificação em três perfis de renda165. Conforme aprensenta, a densidade populacional é confirmada nas áreas caracterizadas pela carência. O caso de Juazeiro do Norte chama a atenção tendo em vista que apenas 3,9% da população do município reside em áreas de alta renda, reduzida praticamente ao bairro Lagoa Seca que, conforme mencionado, é a área dos condomínios de luxo. Tabela 1 - Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha: Proporção da população municipal por bairros de acordo com níveis de rendimento. (%) Bairros Alta Bairros Renda Bairros renda média Populares 8,4 37,4 54,2 Crato 3,9 40,4 55,7 Juazeiro do Norte 16,1 9,2 74,7 Barbalha Fonte: Elaboração dos autores a partir de dados do IBGE (2010), Programa Google Earth e pesquisa de campo

4.2. A ocupação das atividades econômicas em geral A dinâmica econômica também define aspectos que muito dizem sobre a ocupação e uso do espaço urbano no CRAJUBAR. As principais atividades são alguns ramos tradicionais da indústria de transformação, as atividades ligadas ao movimento de romarias e o setor de serviços público e privados decorrentes de demandas

165

A definição desses níveis considerou o fato de a ocupação urbana não se dar de forma homogênea sendo caracterizada como: 1) alta renda as áreas de valorização e especulação cujo aspecto maior é e as grandes residências com espaços de jardins e lazer e a expansão dos condomínios de luxo verticais e horizontais. Nesses espaços os rendimentos são em sua maioria acima de dez salários mínimos; 2) médios rendimentos os espaços com boa infra-estrutura e residências com áreas menores cujos moradores ganham acima de três salários mínimos 3) bairros populares as áreas compreendidas por favelas, população carente e com infra-estrutura de saneamento precária. A maioria de suas populações é beneficiada por programas de transferência de renda do Governo Federal.

443

derivadas de outras atividades e do próprio incremento trazido com a urbanização recente. A indústria de transformação tem o setor de calçados como sua principal atividade. Além da vocação histórica herdada da fase em que a civilização do couro tornou a região um espaço de produção e comercialização de artefatos, os empreendimentos atraídos pelas políticas de interiorização corporificada na oferta de incentivos beneficiando investimentos forâneos tiveram grande impacto. Ainda que Juazeiro do Norte tenha maior número de empresas, a atividade está espalhada nos três municípios e no final de 2009 além da unidade de grande porte da Grendene em Crato, havia 300 empresas de porte diversificado no setor. Segundo Pereira Júnior (2011, p. 258-259) os municípios não se destacam apenas na produção do bem acabado mas também na de insumos, sendo hoje o maior espaço produtor nacional de placas de etileno vinil acetato (insumo para o uso em solados sintéticos). A Tabela 2 apresenta o número de empregos formais por atividade e a afirma a preponderância de atividades ligadas à urbanização crescente vivida pelos três municípios. Somando os setores de serviços e comercio, ocupam mais da metade do número de empregos nos três municípios. Importante perceber também o crescimento do emprego no setor da Construção Civil em Crato e Juazeiro do Norte, onde as manchas de urbanização são mais intensas. Tabela 2– Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha: Número de empregos formais por setor, 2008-2010.

Fonte: RAIS, 2008 e 2010.

444

No que concerne a estas atividades, o centro comercial das três cidades é bem circunscrito. No caso de Juazeiro do Norte, além de um comercio que atende a uma demanda regional, as ruas centrais se sobrecarregam em períodos de romaria. Para o atendimento da população

local,

novas

centralidades

se

manifestam

com

a

emergência de centros comerciais em outras partes da cidade como é o caso do Pirajá. A cidade também é centro regional de comercio mais elitizado: além de inúmeras lojas de bens de consumo de luxo, em 1996 ocorre a instalação pioneira no interior do Ceará de um shopping center pertencente a uma grande rede nacional. A recente ampliação do shopping - e sua equalização padronizada aos congêneres dos grandes centros - demonstra o potencial deste setor e consolida a idéia de segregação também manifestada nas áreas de consumo de elite aqui reproduzida (COY, 2006). Nas mediações deste empreendimento, conhecido como bairro Triângulo, inúmeros prédios e torres se instalam com clínicas e consultórios de especialidades médicas, escritórios de negócios além de condomínios residenciais que convivem com trechos mais precários. É importante mencionar também os corredores de concessionárias de automóveis de inúmeras marcas nas rodovias Padre Cícero

e

Leão

Sampaio,

a

caminho

de

Crato

e

Barbalha,

respectivamente. Na indústria, apesar de uma área designada para instalação de um Distrito Industrial, a disposição das unidades fabris se dá de forma dispersa conforme a Figura 1. Além do centro, destacam-se bairros como Salesianos, Triângulo e Vila São Francisco com fábricas de calçados, curtumes, plásticos bebidas e alimentos. Nas margens da Rodovia Padre Cícero no sentido Triângulo-Crato situa-se inúmeras fábricas dentre elas a unidade da Singer, fábrica de motores instalada com a interiorização vai incentivos fiscais.

445

Em Crato, além do centro comercial se destaca a unidade produtiva da Grendene, com mais de 3 mil empregados e localizada no bairro Seminário, um dos mais populosos desta cidade. No outro lado, o corredor perimetral formado pela Av. Tomaz Osterne e que dá acesso às rodovias que ligam às outras regiões e ao estado do Pernambuco também possui empresas no setor de bebidas (alambique), alumino e plásticos. Nas proximidades de todas as unidades, a expansão de bairros formados em grande parte por trabalhadores destas instalações é usual. Outra área de transformação impactante resultante da forma de ocupação e uso do território nesta cidade é o trecho ocupado por cerâmicas na saída da cidade pela CE- 055 em direção à região Centro-Sul Cearense. Além do forte impacto ambiental pela falta de monitoramento no uso da matéria prima, e com isso depredando imensas áreas de vegetação, esse espaço vai sendo cada vez mais ocupado por populações pobres como resultado da expulsão de outras áreas e de migração provenientes do meio rural. Em Barbalha alguns destaques pontuais podem ser feitos. A começar pelo conjunto de empresas do setor de calçados com instalações localizadas na Rodovia Leão Sampaio, próximo à divisa com Juazeiro do Norte. Embora seus trabalhadores fixem residências mais próximas do centro, vão se formando alguns espaços de moradia nas proximidades destas fábricas. Acrescentam-se

ainda

duas

outras

atividades

industriais

importantes em Barbalha: i) no outro lado da cidade, a instalação da fábrica de cimento, ainda nos anos 1960, apesar de não ter efeitos de grande expansão de moradias nas suas proximidades em decorrência da qualidade do ar comprometida. Os impactos aqui são mais no sentindo ambiental e seus trabalhadores residem nas imediações centrais da cidade e, ii) a ampliação recente da metalurgia Bom Sinal, diversificando de forma inovadora sua produção para o setor de vagões para Veículos Leves sobre Trilhos – VLT’s destinados aos 446

transporte urbano, com galpão instalado na rodovia de saída para o município de Missão Velha. Em todos esses casos, o ordenamento de ocupação e uso do espaço reifica nesta conurbação, que se enquadra na dinâmica de crescimento dos centros urbanos médios do Brasil, as mesmas lógicas que regidas nas metrópoles. A cidade como instrumento capitalista devido ao seu caráter de aglomeração, fundamental da reprodução do capital e da força de trabalho, reproduz as contradições dessa reprodução no espaço. Bairros de alta renda são beneficiados com a ação das gestões municipais, falta infraestrutura e saneamento em áreas mais pobres, os eixos de especulação imobiliária avançam em áreas de proteção ambiental (como é o caso da encosta da Chapada do Araripe), reproduz-se a segregação da moradia e do consumo. Os PD’s existem apenas como exigência constitucional. Junto com esta realidade, programas de revitalização dos centros comerciais seguindo padronização recomendada pelas consultorias urbanas de tendências internacionais que colocam a cidade à venda são executados166. Neles, se manifestam também nas cidades médias o urbanismo municipalista destacado por Vainer (2002, p. 94-95), em que o patriotismo local é reencontrado pelo grande capital na reforma dos monumentos, na garantia da estética e na busca, encontro ou mesmo resgate do símbolo da cidade. O mesmo padrão paisagístico observado nas ruas do comercio turístico de cidades litorâneas como Fortaleza é encontrado na revitalização do centro comercial do Crato e também proposto para Barbalha e Juazeiro do Norte negligenciado particularidades e não alcançando bairros periféricos, tão próximos deste centro167. O Padre

166

Dentre pressupostos de consultoria urbana mais conhecidos estão os difundidos por Borja (1997), que a partir da experiência de Barcelona nos anos 1990 traça um modelo abarcado pelos órgãos internacionais de forte atuação na América Latina como BID e Banco Mundial do qual os governos cearenses pós 1986 são tributários. 167 Executado pelo programa Cidades do Ceará, da Secretaria Estadual das Cidades.

447

Cícero escolhido como o cearense do século alimenta o orgulho da população juazeirense e de todo o Cariri com destaque para a tentativa de estender as visitas dos romeiros ao Crato, terra natal do líder religioso. A exploração eco-turística da Chapada é exarcebada sem a preocupação com preservação nem do patrimônio ecológico das fontes minerais, biodiversidade de um cerrado verde no semi-árido centro nordestino. Inúmeros são as manifestações da venda do lugar e da cidade aguçados pela atual etapa de crescimento que passou a incorporar também espaços interioranos como este. As implicações maiores comprometem qualquer projeto inclusivo mais amplo que atenda aos requisitos de um desenvolvimento econômico e social autônomo. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS. Conforme observado, a conurbação CRAJUBAR insere-se no contexto de reorientação das políticas governamentais para atender o processo de acumulação capitalista em reestruturação e a sua instauração se deu mais no âmbito de algumas medidas objetivando a desconcentração populacional e econômica da RMF, além de considerar o fato de se constituir em uma das áreas urbanas mais importantes do estado. Observaram-se inúmeros aspectos de ampliação da segregação em decorrência destas transformações. A diferenciação presente no processo de formação ganha nova forma nas últimas três décadas. Em relação à ocupação residencial nas três cidades é observa-se a concentração da maior parte da população em bairros populares, com infraestrutura de saneamento precária. O exercício de funções de pólo regional, os novos movimentos urbanos de expansão das cidades médias, a política estadual de interiorização e desconcentração, o crescimento de atividades econômicas eminentemente urbanas são alguns aspectos indutores do boom urbano nestes municípios. 448

No caso em destaque as especificidades se somam. Dentre elas são bem conhecidas o movimento populacional relacionado ao ciclo de romarias de Juazeiro do Norte, a expansão de rede de instituições de ensino superior e tecnológico, o turismo ecológico e científico na Chapada do Araripe, a disponibilidade diversificada de serviços de média e alta complexidade no campo da saúde em Barbalha, a consolidação do parque industrial com ênfase no setor calçadista. Todos estes aspectos têm impactos na ocupação e uso espaciais urbanos, conforme detectado ao longo do trabalho. Ao lado de áreas com funcionalidade de especulação imobiliária, crescem os espaços destinados ao consumo espacial da elite como os condomínios verticais e horizontais, as torres empresariais, shopping Center, clínicas de serviços especializados, etc. Todos localizados em áreas com disponibilidade de infraestrutura e saneamento. Numa outra frente, maior proporção da população de fixa em bairros pobres e deficientes desta mesma infraestrutura nos três municípios. Os

problemas

urbanos

decorrentes

são

de

várias

ordens

merecendo uma agenda de pesquisa mais ampla, na qual este trabalho se insere como primeiros resultados. Alguns podem ser apontados como: o transporte urbano formal deficiente dando espaço para a intensa informalidade das vans e motoboys; a própria irregularidade nas ocupações periféricas; a informalidade no comercio e indústria que em Juazeiro do Norte tem papel relevante sendo até funcionalizado pelos setores formais. A conurbação CRAJUBAR possui organicidade capitaneada por Juazeiro do Norte, que favorece a diferenciação intra-urbana. As áreas periféricas às vias de ligação entre as três cidades concentram pobreza sendo atendidas com restrições em termos de serviços de consumo coletivo, negligenciando o direito à cidade abordado por Lefebvre (2001). Nas áreas pertencentes àquelas vias de ligação, observam-se outro dois tipos de segregação espacial: a expansão dos condomínios fechados entre Juazeiro do Norte e Barbalha e expansão das áreas de 449

negócios entre Juazeiro do Norte e Crato. Em ambos, a disponibilidade de infraestrutura garantida pelo planejamento público são nítidas. Portanto, o ordenamento de ocupação e uso do espaço público reifica

nesta

conurbação,

que

se

enquadra

na

dinâmica

de

crescimento dos centros urbanos médios do Brasil, as mesmas lógicas que regem o processo nas metrópoles. A cidade como instrumento capitalista dado o seu caráter de aglomeração, fundamental da reprodução do capital

e da força de

trabalho, reproduz as

contradições dessa reprodução no espaço. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROS, L. O. C. Juazeiro do Padre Cícero: a terra da Mãe de Deus. 2ª. Ed.. Fortaleza, CE: Editora IMPH, 2008. CANO, W. Reflexões sobre o papel do capital mercantil na questão regional e urbana no Brasil. Texto de Discussão No. 177. Campinas, SP: IE/UNICAMP, mai/2010. _________. Desequilíbrios regionais e concentração industrial no Brasil 1930-1970. 3ª. Ed.. São Paulo: Editora UNESP, 2007. CARDOSO DE MELLO, J. M. O capitalismo tardio. São Paulo: Brasiliense, 1982. CORREA, R. L. A rede urbana. 2ª. Ed.. São Paulo: Editora Ática, 1994. COY, M. Gated communities and urban fragmentation in Latin America: the brazilian experience. GeoJournal (2006) 66: 121-132. DINIZ, C. C. Desenvolvimento poligonal no Brasil: nem desconcentração, nem contínua polarização. Nova Economia, Belo Horizonte, v. 3, n. 1, p. 35-64, set. 1993. HARVEY, D. A produção capitalista do espaço. 2ª. Ed.. São Paulo: AnnaBlume, 2005.

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452

AS “CIDADES MÉDIAS” NO CONTEXTO ATUAL: REFLEXÕES TEÓRICO-CONCEITUAIS. Joseney Rodrigues de Queiroz Dantas168 Maria do Livramento Miranda Clementino 169 Rosana Silva de França 170 Resumo: Os estudos sobre as cidades médias no Brasil ganham destaque no meio acadêmico e na elaboração de políticas públicas nos anos 1970, as quais tinham como meta fortalecer cidades de médio porte no sentido de conter os fluxos migratórios e amenizar os problemas tipicamente urbanos. Com o novo contexto econômico da globalização e as reconfigurações territoriais, alguns autores tem proposto a utilização do termo cidade intermédia ou cidade intermediária, em cujo escopo está embutido critérios de natureza qualitativa, dentre eles a idéia de um espaço de relações estruturados em nós e fluxos. Propomos neste artigo fazer uma reflexão teórico-conceitual sobre as ‘cidades médias’ hoje, com enfase sobre a utilização deste conceito nos estudos realizados no Brasil. Para além dos aspectos quantitativos, identificamos que vem ganhando força na literatura especializada, a importância das funções de intermediação das cidades tidas como médias, a ponto de alguns autores tratarem-nas como “cidades intermédias”. Palavras-chave: Cidades médias, conceituação, funcionalidade.

1. INTRODUÇÃO

As cidades médias tornaram-se objeto de atenção nos anos 1960, nas políticas de desenvolvimento e ordenamento do território em vários países europeus. De acordo com Ferrão et al (1994), os objetivos do planejamento visavam por um lado, a continuidade do crescimento da 168

Graduada em Ciências Econômica (UERN), Mestra em Economia Rural (UFCG) e Doutora em Ciências Sociais (UFRN). Professora Adjunta (UERN). Integrante dos Grupos de Pesquisa 'Núcleo de estudos em Geografia Agrária e (UERN) e 'Espacialidades Econômicas e Desenvolvimento Regional e Urbano (URCA). [email protected]. 169 Graduada em Ciências Econômica (UFRN), Ciências Sociais (UFRN), Sociologia e Política (Fundação José Augusto), Mestra em Sociologia (UFCG) e Doutora em Ciências Econômicas (UNICAMP) com Pós-Doutorado na Université Lumière (Lyon). Professora Titular (UFRN). [email protected]. 170 Graduada em Geografia (UFRN), Mestra em Geografia (UFRN) e Doutoranda no Programa de PósGraduação em Ciências Sociais (UFRN). Professora Assistente II (CERES/UFRN). [email protected].

453

economia, e por organização

do

outro lado, corrigir eventuais território,

no

sentido

de

desarranjos

evitar

a

na

excessiva

concentração de população e de atividades, estimulando assim, os mecanismos de desconcentração. No Brasil, os estudos sobre as “cidades médias” ganham destaque no

meio

acadêmico

e

na

elaboração

de

políticas

públicas,

especialmente, com as políticas de planejamento urbano e regional a partir dos anos 1970. O processo de concentração da produção e da riqueza e o consequente processo de migração que a acompanhou, impulsionou a elaboração de políticas de desconcentração urbanoregional que visavam fortalecer cidades de médio porte no sentido de conter os fluxos migratórios e amenizar os problemas tipicamente urbanos, como o problema das moradias, por exemplo. As mudanças políticas e econômicas ocorridas no âmbito nacional tendem a romper a prioridade dada à montagem de uma base econômica que ia lentamente desconcentrando atividades para as regiões periféricas. Esse fenômeno torna-se mais grave quando se verifica a guerra fiscal entre os Estados para consolidar alguns pontos de dinamismo em suas áreas de atuação. As mudanças ocorridas na economia mundial, dentre as quais destacamos o acentuado processo de internacionalização dos fluxos de capital e de mercadorias, com seus consequentes impactos na organização da produção, parecem ter impulsionado novamente o interesse pelas chamadas cidades médias.

De acordo com Amorim

Filho e Serra (2001), as cidades médias continuam a ser valorizadas como fator de equilíbrio para as redes e hierarquias urbanas, bem como por exercer as funções de relação e intermediação com as grandes cidades e com as pequenas cidades e o meio rural. Apesar de muito utilizado, o termo “cidade média”, não possui uma definição teórica precisa, e muito menos consensual. Nos diversos estudos existentes sobre esse tipo de cidade, é comum encontrarmos as expressões “cidade de porte médio”, “cidade de média dimensão”, 454

“cidade intermédia/intermédiária”, “centros regionais e sub-regionais” com o mesmo significado ou com significado similar ao de “cidade média”. Neste artigo nos propomos a discutir alguns conceitos referentes à definição de ‘cidade média’ no contexto atual, bem como sua utilização nos estudos que versam sobre essa temática no Brasil. 2. AS CIDADES MÉDIAS E AS POLÍTICAS DE DESENVOLVIMENTO REGIONAL Os primeiros conceitos de cidade média levavam em conta critérios

estritamente

quantitativos,

em

especial

a

dimensão

populacional, o limite populacional mínimo para uma cidade ser considerada média variava de acordo com os autores e com a realidade de cada país. De acordo com Amorim Filho e Serra (2001), não existia uma idéia consensual do que seriam as cidades médias, e o critério demográfico era capaz apenas de identificar o grupo ou a faixa que pode conter as cidades médias. Para os autores, os temas ligados às cidades médias constituem a grande contribuição da década de 1970 em termos de planejamento urbano-regional, em especial na Europa do pós-guerra “quando se manifesta a necessidade de uma nova planificação: o aménagement du terrtoire.” (AMORIM FILHO e SERRA, 2001, p. 5). De acordo com Ferrão et al (1994), os principais objetivos das políticas de desenvolvimento e ordenamento do território europeu eram garantir a continuidade do crescimento da economia e corrigir eventuais desarranjos na organização do território estimulando assim os mecanismos de desconcentração tanto da população como das atividades econômicas. Foi nesse ambiente que se reconheceu as potencialidades das cidades médias e à sua valorização no domínio das políticas regionais. Calcados

na

teoria

da

localização,

os

teóricos

funcionalistas

acreditavam que as cidades médias eram “as únicas cuja dimensão 455

garantia a ocorrência de economia externas e às quais se associavam hinterlands suficientemente vastos para permitirem a difusão alargada dos benefícios da concentração de atividades.” (FERRÃO et al, 1994, p. 1125) Um segundo critério bastante utilizado pela literatura para classificar as cidades médias é sua funcionalidade, sua centralidade urbana e administrativa, bem como seu papel no desenvolvimento regional. As

principais

funções

dessas

cidades

seria reduzir os

movimentos migratórios através da ampliação da oferta de empregos e serviços à população do meio rural e das cidades menores no seu entorno. El objetivo principal de una política de promoción de las ciudades medias es, primordialmente, el potenciar los empleos, equipamientos y servicios necesarios em su area de influencia com el fin de reducir al minimo los movimientos migratorios campo-ciudad. (ESTEBAN y LÓPEZ, 1989, p. 9)

De acordo com Ferrão et al (1994), privilegiar e favorecer a localização das atividades e da população naqueles centros urbanos significava também evitar a excessiva concentração nas grandes metrópoles. No Brasil, os primeiros estudos realizados sobre cidades médias utilizavam como parâmetros de definição das cidades médias, aspectos quantitativos, relacionados diretamente com a dimensão demográfica associada com uma lógica funcional. Amorim Filho e Serra (2001) sintetizam esses atributos em: interações constantes com seu espaço regional subordinado e aglomerações superiores; tamanho demográfico suficiente para desempenhar o papel de centro de crescimento regional; capacidade de receber e fixar migrantes servindo como pontos de interrupção do movimento migratório na direção das grandes cidades; e diferenciação do espaço intraurbano, com centro funcional e uma periferia dinâmica. Para os autores, esses atributos refletem algumas das razões pelas quais a preocupação com as cidades médias tenham adquirido 456

visibilidade e amplitude nas discussões e na política nos anos 1970, uma vez que, os principais objetivos das políticas urbanas implantadas no período

buscavam:

promover

maior

equilíbrio

interurbano

e

interregional; interromper o fluxo migratório para as grandes cidades; e multiplicar os postos avançados da expansão do sistema capitalista. (AMORIM FILHO; SERRA, 2001, p. 9). O

II

PND

(Plano

Nacional

de

Desenvolvimento)

tratou

explicitamente da importância estratégica das cidades médias. “nas regiões

desenvolvidas,

como

necessário

para

desconcentração

industrial da RMSP, nas regiões menos desenvolvidas, para ocupação territorial e atração de fluxos migratórios”. (AMORIM FILHO e SERRA, 2001, p. 15) De acordo com Steinberger e Bruna (2001), os centros de porte médio

foram

entendidos

como

uma

escala

funcional

urbana

indispensável para apoiar a desconcentração e a interiorização. A política de desconcentração implementadas nos anos 1970 e que resultaram em certo fortalecimento das cidades médias foi interrompida na década de 1980, em grande parte como resultado da crise instalada na economia do país, a partir da qual, a política governamental

passa

a

priorizar

a

estabilidade

monetária

em

detrimento da continuidade do projeto de desenvolvimento econômico regional. A

crise

e

a

instabilidade

econômica

interromperam

as

transformações que vinham ocorrendo na distribuição regional da indústria, fazendo com que o processo fosse de certa forma, revertido; ou seja, o processo de desconcentração foi paralisado, voltando a produção a se reconcentrar nas áreas mais dinâmicas do Centro-Sul do país. Nesse sentido, Araújo (2000) afirma que as mudanças políticas e econômicas ocorridas no âmbito nacional tendem a romper a prioridade dada à montagem de uma base econômica que ia lentamente desconcentrando atividades para as regiões periféricas. “A 457

crise do Estado, principal incentivador das políticas regionais, deixou as decisões dominantes para serem tomadas pelo mercado o que causou interrupção do movimento de desconcentração” (p. 221-22). Esse fenômeno torna-se mais grave quando se verifica a guerra fiscal entre os Estados para consolidar alguns pontos de dinamismo em suas áreas de atuação. As regiões transformam-se em plataformas para atrair investimentos e a ação pública passa a subsidiar custos de implantação. Brandão (2007) vai mais além ao afirmar que Estabelece-se um verdadeiro certame de localização, em uma interminável contenda por estabelecer uma posição máxima na gradação de ofertas tributárias, de terras e infra-estrutura etc. O receptor das benesses (a grande empresa) é quem determina o final do torneio e define o vitorioso da guerra entre lugares. (BRANDÃO, 2007, p. 49)

Entretanto, as mudanças ocorridas na economia mundial, dentre as quais destacamos o acentuado processo de internacionalização dos fluxos de capital e de mercadorias, com seus consequentes impactos na organização da produção, parecem ter impulsionado novamente o interesse pelas chamadas cidades médias, ao mesmo tempo em que impuseram reformulações nos seus papéis. 3. AS CIDADES MÉDIAS NO CONTEXTO ATUAL: ABORDAGENS Pontes (2006), afirma que as cidades médias passaram por várias reformulações nos seus papéis. Na concepção da autora, a cidade média seria um “centro urbano com condições de atuar como suporte às atividades econômicas de sua hinterlândia, bem como ela atualmente pode manter relações com

o mundo globalizado,

construindo uma rede geográfica superposta à que regularmente mantém com suas esferas de influência”. (PONTES, 2006, p. 334) Nesta perspectiva, Amorim Filho e Serra (2001) destacam duas vertentes que emergiram

com

a revolução na economia, na 458

geopolítica e nas comunicações mundiais: na primeira destaca-se o fortalecimento

do

papel

de

articulação

e

intermediação

desempenhado pelas cidades médias como fundamental para a implantação, o desenvolvimento e a expansão de eixos e corredores de transportes e comunicações, de redes de todo tipo e de redes especiais, tais como as das tecnopóles; e na segunda incluem-se características até então não contempladas nos estudos e projetos das cidades médias, como qualidade de vida, questões relativas a patrimônio e identidade, bem como aquelas referentes a valores, motivações

e

preferências

sociais

e

individuais,

fortemente

correlacionadas com o direcionamento de fluxos turísticos de massas humanas cada vez maiores. É nesse novo contexto econômico da globalização e das reconfigurações territoriais provovadas pela reestruturação produtiva que se apresentam, que uma gama de autores tem proposto a utilização do termo cidade intermédia ou cidade intermediária, em cujo escopo está embutido critérios de natureza qualitativa, dentre eles a idéia de um espaço de relações estruturados em nós e fluxos. O conceito de cidade intermédia/intermediária introduzido pelo francês Michel Gault no final dos anos 1980 “valoriza os critérios de natureza qualitativa em detrimento da excessiva rigidez demográfica.” (AVELINO, 1999, p. 466). Para além de uma mudança nominal, Ferrão et. al. destaca que o novo conceito é uma concepção mais rica e alargada que realça os aspetos relacionais. “O duplo sentido de intermédio/intermediário sugere a ideia de um espaço de relações (entre cidades e entre cidades e regiões), estruturados em nós e fluxos, onde a ‘cidade intermédia’ é (ou pode e deve ser) um medianeiro, um ponto de encontro e de passagem obrigatória.” (FERRÃO, et al, 1994, p. 1128).

A cidade intermédia é uma cidade integrada no circuito de relações

que

se

estabelece

nos 459

sistemas

urbanos

nacional

e

internacional. Para alcançar tal integração, a cidade deve possuir boa rede de comunicações, nível de instrução e de capacidade de investigação

superior

à

média,

ambiente

residencial

atrativo,

diversidade de oportunidades de emprego, núcleo urbano central eficiente, forte apoio às atividades culturais e instituições públicas ativas. O grupo espanhol coordenado por Josep Llop Torné e Carme Bellet Sanfeliu, contempla cidades que estão na faixa de 20.000 a 2.000.000 de habitantes. Para Sanfeliu(2000), a definição da ‘cidade intermédia’ deve privilegiar os contextos territoriais e socioeconômicos dos diversos estados e nações em que estas cidades estão localizadas, bem como o papel de intermediação entre as grandes áreas urbanas e amplos espaços rurais que estão em sua área de influencia. En primer lugar debemos apuntar que las situaciones intermedias necesitan referirse a unos contextos territoriales concretos y definidos, necesitan referenciarse a las redes y jerarquías urbanas existentes em diferentes áreas y contextos socioeconómicos, de la misma manera que la definición de ciudad es diferente en los diferentes estados y naciones ya que parte de una realidad socioeconómico y cultural determinada. En segundo lugar debemos apuntar que las ciudades intermedias lo son por el papel de intermediación que cumplen entre las grandes áreas urbanas y amplias áreas rurales de las que son centro de influencia. (SANFELIU, 2000, p. 6)

Nessa mesma linha, Torné y Sanfeliu (2000) destacam as cidades intermédias como centros de

bens e serviços para sua área de

influencia e centros de interação social econômica e cultural. Nas palavras dos autores, essas cidades i) son centros servidores de bienes y servicios más o menos especializados para la población del mismo municipio y de otros municipios (asentamientos urbanos y rurales), más o menos cercanos, sobre los que ejerce cierta influencia; ii) son centros de interacción social, económica y cultural, el corazón económico de amplias áreas rurales en las ciudades del Tercer Mundo; iii) son asentamientos ligados a redes de infraestructuras que conectan las redes locales, regionales y nacionales y algunas, incluso, con fácil acceso a las internacionales (como en el caso de las ciudades medias de las periferias metropolitanas). Son nodos que articulan flujos, puntos nodales, de referencia y de acceso a otros niveles de la red; e, iv) son centros que suelen alojar niveles de la

460

administración de gobierno local, regional y subnacionales a través de los cuales se canalizan las demandas y necesidades de amplias capas de la población. La descentralización administrativa y gubernamental a estos niveles, a estas escalas, lleva consigo una mejor comprensión del medio sobre el cual desarrollar proyectos y medidas más acordes con la realidad y necesidades de dicho medio. (TORNÉ e SANFELIU, 1999, pp.4445).

De acordo com Ferrão et al, as cidades intermédias possuem dois trunfos importantes “a existencia de uma rede densa de de circulação informal

da

informação

e

proximidade

identitária

propícia

à

cooperação empresarial e institucional”. (FERRÃO ET AL, 1994, p. 1136) O autor defende que deve ser pensado para esse tipo de cidade, estratégias de intervenção diferenciada, com grande carga simbólica que possa a vir ciar novas centralidades e, nas manchas urbanas já consolidadas possa promover uma transformação qualitativa das realidades existentes, no sentido de uma integração funcional mais intensa e de uma qualidade de vida mais elevada, por fim, Ferrão et al (1994) propõe que as cidades intermédias sejam pensadas/planejadas levando-se em conta sua função no desenvolvimento regional. No Brasil, autores como Amorim Filho e Serra (2001), Sposito (2001), e Soares (1999), dentre outros, também enfatizam a função de centro intermediário exercida pelas cidades médias. De acordo com Amorim Filho e Serra (2001), as cidades médias continuam a ser valorizadas como fator de equilíbrio para as redes e hierarquias urbanas, bem como por exercer as funções de relação e intermediação com as grandes cidades e com as pequenas cidades e o meio rural. Para os autores, o papel de articulação e intermediação são fundamentais para a implantação, desenvolvimento e a expansão dos corredores de transporte e comunicações. Sposito (2001) destaca que as cidades médias assumem as funções de centros intermediários da economia, polos de produção e distribuição de mercadorias. Para a autora, as cidades médias tornamse “centros importantes nas redes de circulação de bens e serviços, vez 461

que estão localizadas nas posições intermediárias da rede urbana, estabelecendo as relações entre as cidades de maior e menor porte”. (SPOSITO, 2001, p. 631) Nesta mesma perspectiva Soares e Ramires (1997) afirmam que as cidades médias atualmente dispõem de altas taxas de crescimento, geram empregos que absorvem números expressivos de força de trabalho e apresentam altos índices de qualidade de vida, tornando-se “difusoras de inovações e desenvolvimento para as cidades sob sua área de infuencia”. (SOARES e RAMIRES,1997, p. 2) Em termos de identificação das cidades médias, Soares (1999) chama a atenção para a importância de considerar nos estudos das cidades

médias,

além

do

tamanho

demográfico,

da

sua

funcionalidade e dos índices de qualidade de vida, sua localização geográfica, bem como sua formação histórica “podemos dizer que as cidades médias ou intermediárias são definidas pelo lugar que ocupam não apenas na rede urbana, mas também no sistema econômico local” (SOARES, 1999, p. 57). Araujo, Moura e Dias (2011) propõem a necessidade de pensar as cidades médias como unidades articuladas a sistemas de cidades que adensam fluxos de relações materiais e imateriais e que conferem complexidade a funções e papéis específicos, ao mesmo tempo que ampliam a rede de abrangência de sua influência. Para além de núcleos de contenção de demanda e de fluxos migratórios. É necessário que seja fortalecido seu papel de apoio, de polo de serviços para as aglomerações menores, auxiliando na melhoria das condições de vida dos cidadãos que residem em outros nucleos urbanos de menor porte ou mesmo em áreas rurais. [...] sua deistribuição na rede e seus papéis devem ser avaliados como critérios que levem em conta as dinâmicas intrarregionais, sua localização e especificidades funcionais. (ARAUJO, MOURA e DIAS, 2011, p. 74)

As autoras destacam ainda que as cidades médias devem ser qualificadas como ‘espaços em transição’, uma vez que estão em 462

constante transformação e podem mudar de rapidamente de papéis e de posição em diferentes sistemas urbanos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Importante destacar, que no Brasil a rede urbana é desigual e diferenciada, inclusive no que se refere à concentração das metrópoles e das grandes cidades nas regiões Sudeste e Sul do país, o mesmo ocorrendo com as cidades médias. Em estudo recente sobre cidades médias Castello Branco afirma: [...] como em todo estudo sobre a rede urbana brasileira, apresenta grande desigualdade na distribuição espacial das cidades aqui consideradas como de nível médio e também uma grande diversidade interna dos atributos selecionados para análise. (CASTELLO BRANCO, 2006, p. 268).

Nesse sentido Pereira (2007) afirma que os estudos sobre as cidades médias devem estar calcados numa concepção, em rede, da cidade e da região, numa perspectiva que priorize, mais que a dimensão demográfica, a forma como a cidade média se articula com o sistema urbano. Soares & Ramires (1997) ressaltam a importância das pesquisas sobre as cidades médias tendo em vista que os “espaços não metropolitanos” tem sido pouco estudados no Brasil como um todo. Para os autores, existe uma lacuna a ser preenchida principalmente quando levamos em conta “a projeção e a importância de diversas cidades médias localizadas em diversas porções do interior brasileiro” (SOARES e RAMIRES, 1997, p. 5). Diante disso, acreditamos que as análises sobre cidades médias ou intermédias devem levar em conta o modo como vem se reconfigurando essas cidades na hierarquia dos lugares e como essa reconfiguração afeta de modo diferente as relações entre as cidades e 463

entre as cidades e as regiões. Para tanto, propomos uma articulação teórico-metodológica que contribua para a apreensão do que se revela como urbano na dinâmica regional e que possibilite a compreensão das relações interurbanas nela existentes, e que valorize os aspectos qualitativos relacionais e estratégicos, bem como destaque nas ‘cidades médias’ seu papel de intermediação na conformação do desenvolvimento regional. As funções apontadas pelos principais estudos da área são a redução dos movimentos migratórios através da oferta de empregos e serviços à população do seu ‘hinterland’ e sua contribuição para o desenvolvimento regional. Alguns já trazem no seu escopo a questão da qualidade da urbanização. Para Ferrão, uma cidade intermédia deve ser, “uma cidade suficientemente grande, sem o ser, contudo em demasia, acima do limiar crítico do desenvolvimento e com as vantagens de gestão e vivência urbana próprias das pequenas cidades” (FERRÃO ET AL, 1994, p. 1128) Soares e Ramires (1999) também destacam a qualidade da urbanização como uma característica das cidades médias. Para os autores, as cidades médias brasileiras têm passado por intensas transformações com a implantação de novos e sofisticados serviços, particularmente os de informação, os de comunicação, os de transportes, os educacionais e turísticos entre outros, sendo assim, apresentam-se como “lugares confortáveis de se viver, pois os males das grandes metrópoles, tais como congestionamentos no trânsito, alto custo de vida, poluição e violência são menos visíveis na cena urbana” (SOARES e RAMIRES, 1999, p. 61) Entendemos que a inclusão da qualidade da urbanização como critério de análise se coloca fundamental para o estudo das cidades (inter) médias uma vez que muitos dos problemas das metrópoles e das grandes cidades têm sido constatados em outras escalas, inclusive nas “cidades médias”. Podemos citar como exemplo, as drogas, a 464

violência, o alto custo das habitações, deficiências no transporte público, etc.

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466

ASPECTOS RELACIONADOS AO DESENVOLVIMENTO URBANO E AS ENCHENTES NA CIDADE DO CRATO-CE Rebecca Isabelle Herculano Silva 171 Suely Salgueiro Chacon 172 Karla Roxana Lobo173 Jaqueline dos Santos Gonçalves174

Resumo: Uma das metas mais complexas a serem perseguidas pelas cidades, na atualidade, é o desenvolvimento econômico, que por um lado proporciona um melhor nível de bem-estar para a população e, por outro, tem acentuado um fenômeno chamado urbanização. Como cidade de médio porte, o Crato é considerado historicamente como importante centro de produção e consumo, o que tem ocasionado, ao longo do último século, uma crescente concentração de pessoas, edificações e intervenções no ambiente natural da cidade. Recentemente, um grande volume de chuvas destruiu todo o centro da cidade ocasionado por construções irregulares que mudaram o curso de rios na cidade e pelo assoreamento do rio. Os transtornos para a população, para o meio ambiente e para a economia ainda não foram superados, mesmo um ano após o acidente. Diante desse cenário, propõe-se analisar os impactos socioambientais causados por falta de políticas públicas eficazes de urbanização na cidade do Crato(CE). Para o alcance desse objetivo utilizou-se a técnica de pesquisa que emprega a história oral e o estudo de documentos e imagens da cidade. Foram utilizados como instrumento de coleta de dados: memória fotográfica, imagens de satélite e relato de moradores, no intuito de registrar importantes fatos e acontecimentos de um passado próximo, por meio da memória coletiva dos aspectos urbanos. Palavras-chave: Impactos Socioambientais, Políticas Públicas, Urbanização.

171

Graduada em Tecnologia em Gestão Ambiental (IFCE), Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional Sustentável (UFC). Professora Assistente (URCA). [email protected]. 172 Graduada em Ciências Econômicas (UFC), Mestra em Economia Rural (UFC) e Doutora em Desenvolvimento Sustentável (UnB). Professora Adjunta (UFCAL). Professora do Programa de PósGraduação em Desenvolvimento Regional Sustentável (PRODER/UFC). Diretora Executiva da Sociedade Brasileira de Economia Ecológica. Líder do Grupo de Pesquisas Laboratório de Estudos Avançados em Desenvolvimento Regional do Semiárido (LEADERS/UFCA) e Pesquisadora da Rede Clima (MCT-INPE-UnB-UFC). [email protected]. 173 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional Sustentável (UFC). [email protected]. 174 Graduada em Ciências Econômicas (URCA), Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional Sustentável (UFC).

467

INTRODUÇÃO

O presente artigo consiste em um estudo-piloto relativo a minha dissertação de mestrado que vem se desenvolvendo com o objetivo de análisar os impactos socioambientais causados pela falta de políticas públicas eficazes de urbanização na cidade do Crato na região Nordeste do Brasil. Varios fatores contribuem para os impactos na infraestrutura e nos equipamentos urbanos disponíveis que privam os moradores ao acesso de saneamento básico, saúde, educação e transporte publico de qualidade. Contudo, este artigo se deterá na analise dos impactos causados pelas enchentes do rio Grangeiro na cidade. Uma das metas mais complexas a serem perseguidas pelas cidades de médio porte, na atualidade, tem sido o desenvolvimento econômico. Na mais das vezes esse termo é confundido com crescimento econômico. Contudo, há uma sutil demarcação entre um e outro. Enquanto, crescimento econômico refere-se basicamente ao aumento da capacidade produtiva da economia (produção de bens e serviços), desenvolvimento econômico, por sua vez, envolve a ideia de crescimento econômico aliado à melhoria da qualidade de vida da população (ESCOSSIA, 2009). No entanto, se por um lado, o desenvolvimento econômico proporciona um melhor nível de bem-estar para a população, por outro, tem agravado um fenômeno que vem acontecendo nas ultimas décadas, chamado: urbanização. Urbanização é um processo que pode ser caracterizado, segundo UNFPA (2007), pelo acréscimo da porcentagem da população urbana total. Rolim (2006), por sua vez, caracteriza a urbanização como o processo da transição de uma sociedade rural para uma sociedade urbanizada. Observa-se também que nenhum país na era industrial conseguiu atingir crescimento econômico sem a urbanização. 468

Percebe-se então que os processos de transição para as cidades, ou melhor, as migrações têm ocorrido em maiores proporções que as ofertas de emprego, tornando assim o crescimento econômico e a urbanização não planejada os maiores responsáveis pelas altas taxas de desemprego, além da pobreza e de diversos problemas ambientais, que comprometem a qualidade de vida. Nesse caso, apresenta-se com bastante ênfase um contexto em que se faz necessária a promoção de políticas públicas, que atendam às necessidades básicas da população que tende a migrar e concentrar-se nas grandes cidades. Como cidade de médio porte, o Crato, localizado no Sul do Ceará, na região Nordeste do Brasil, tem sido considerado historicamente como importante

centro

de

produção

e

consumo.

Suas

atividades

econômicas, sociais e culturais têm influenciado a região, nestas duas últimas décadas, por uma intensificação na degradação da qualidade de

vida

em

virtude

da

descaracterização

dos

ambientes

urbanos/paisagísticos (Oliveira e Abreu, 2010). Pesquisas do IBGE (1959) apontam que, por volta dos anos 60, tanto Crato como Juazeiro do Norte, de forma conjunta, funcionavam como centros bipolarizados e que o Crato passou a exercer uma grande influência na região do Cariri, recebendo assim o título de “Princesa do Cariri”, devido a sua economia urbana e fortes aspectos ligados à cultura e á educação (Oliveira, 1998). Coelho (1990) também afirma que Crato e Juazeiro do Norte atuaram como centros regionais na hierarquia urbana cearense por influenciarem os contingentes populacionais a saírem do campo e de cidades próximas no intuito de melhoria da qualidade de vida nas cidades. No entanto, os resultados dos planos para desenvolvimento urbano dessas cidades não saíram como o esperado, por não atender às perspectivas de um ordenamento sócio-territorial urbano. Esse fator agravou ainda mais os problemas relacionados à infra-estrutura urbana existentes naquela época. 469

Juazeiro do Norte passa então a dominar hegemonicamente a região, especialmente do ponto de vista político econômico, mesmo havendo certo grau de complementaridade entre as três unidades denominadas Barbalha).

triângulo

Essa

CRAJUBAR

(Crato,

complementaridade

Juazeiro

influencia

do

Norte

e

grandemente

o

processo de urbanização no Crato, uma vez que as três cidades estão inter-relacionadas

quando

se

trata

dos

movimentos

culturais,

educacionais e religiosos. Isso nos permite supor que o crescimento de Juazeiro

do

Norte

e

Barbalha

também

tenha

influenciado

o

crescimento urbano do Crato. Além de tratar-se de um importante centro comercial, o Crato passou a exercer respeitável influência do ponto de vista educacional, principalmente, com a fundação da Universidade Regional do Cariri (URCA) e a Escola Agrotécnica Federal do Crato, que forma técnicos agropecuários oriundos da região do Cariri e sertão vizinho. Tal crescimento, contudo, promoveu altas taxas de desemprego e subemprego, pois o crescimento econômico não gerou emprego e renda suficientes para absorção do grande excedente de força do trabalho, além de aumentar as taxas de emigração, miséria, falta de moradia, educação e saúde precárias (OLIVEIRA, 1998). A partir de tal cenário e considerando pressupostos teóricos a respeito da questão urbana e ambiental, surgem questionamentos e discussões sobre as políticas públicas de desenvolvimento urbano, como as seguintes: Que relações existem entre Desenvolvimento e Meio Ambiente? Existe uma preocupação das políticas urbanas com os desequilíbrios socioambientais? Será que os impactos sofridos por essa transformação e crescimento nas cidades são motivos para repensar o desenvolvimento urbano e as formas de planejar uma cidade, como a cidade do Crato? A preocupação com o crescimento desordenado, dessa cidade, e a necessidade de políticas publicas voltadas para a problemática socioambiental, justificam esse estudo. 470

PARTE EXPERIMENTAL Esse artigo busca encontrar respostas para tais inquietações. Desta forma, propõe-se a investigar a problemática socioambiental na cidade do Crato relacionada às enchentes do rio Granjeiro, utilizando como instrumento de coleta de dados: memória fotográfica, imagens de satélite e relatos de moradores locais, no intuito de registrar importantes fatos e acontecimentos de um passado próximo, por meio da memória coletiva dos aspectos urbanos. Recentemente, em janeiro de 2011, um volume grande de chuvas destruiu todo o centro da cidade. As chuvas, que alcançaram o volume de 162 milímetros no Crato, segundo a Fundação Cearense de Meteorologia (Funceme) causou o transbordamento do Canal do Rio Grangeiro. Alguns bairros ficaram ilhados. Pontes, postes e casas caíram e os moradores ficaram sem condições de transitar pelo Centro, onde comércio e ruas ficaram cobertos de lama. Conforme apresentam as imagens abaixo:

Figura 1: Canal do Rio Granjeiro transborda depois de noite de intensas chuvas

471

Figura 2: Moradores tentam transitar nas ruas alagadas e lamacentas. Fonte: Jaqueline Freitas. Jornal Ceará Agora

Entende-se que tal fato foi ocasionado por construções irregulares que mudaram o curso de alguns rios da cidade. Os transtornos para a população, para o meio ambiente e para a economia ainda não foram superados, mesmo um ano após o acidente. Buscando

compreender

os

impactos

causados

sobre

a

população, investigou-se fontes que expressassem o sentimento dos moradores locais. Na reportagem do jornal “Ceará Agora” do dia 26 de abril de 2012 encontrou-se relatos que expressam a revolta destes, devido a falta de compromisso dos orgão publicos. Faz vinte e sete anos que moro no crato e nunca vi uma destruiçao tão grande como essa, somente pela televisao no Rio de Janeiro e São Paulo. É uma tristeza ver um negócio desses. Cadê o povo que devia cuidar do meio ambiente nas esferas do município, estado e federação. Só discurso falido e não estão preocupados com nada. Os empresários do Crato, agora reclamam, pois sentiram no bolso o prejuízo, agora ninguém olha para a verdadeira causa. A especulação imobiliária que manda em tudo. Todos já sabiam que isso ia acontecer e não fizeram nada... Até quando isso? Solidariedade a quem perdeu com as santas chuvas.

Essas falas expressam a tristeza dos moradores ao presenciarem o desastre ocorrido, não pela natureza, mas pela omissão de uma gestão integra que no momento tem procurado apenas maquiar a cidade

472

reformando praças e pintando o meio fio das ruas. Nota-se ainda certo grau de percepção da população sobre a realidade que afeta o meio ambiente e que conseqüentemente atinge a sociedade urbana. Isso se apresenta na fala desse morador quando se refere à especulação imobiliária que resulta do intenso fluxo migratório. O que gera, contudo, o impacto no ambiente é a ocupação urbana sem a devida orientação dos órgãos públicos que tem sido negligentes e indiferentes à manutenção e desenvolvimento urbano da cidade. Outro ponto a ser ressaltado nesse contexto é a permanente negligencia mesmo após o desastre. Tal fato pode ser percebido na recorrência dos estragos ocasionados pelas chuvas no ano seguinte. Jornais e revistas noticiaram que o Canal do Rio Granjeiro tem obras recentes destruídas com as chuvas de janeiro de 2012. As obras da primeira etapa do Canal do Rio Granjeiro não foram suficientes para suportar a chuva de 92,8 milímetros destruindo áreas próximas ao canal como igrejas, colégios, residências, além de uma área comprometida com rachaduras no asfalto e ruas interditadas com riscos de novos desabamentos, como mostra a figura 3:

Figura 3: Rachaduras no asfalto próximo ao canal. Fonte: Revista Veja Juazeiro

Oliveira e Abreu (2010) ressaltam que geralmente o processo de formação territorial em cidades médias sofre influência das políticas de 473

desenvolvimento do Brasil, e que os programas de desenvolvimento urbano são influenciados por problemas políticos internos e pela carência de um planejamento da cidade. Isso fica claro no caso da cidade do Crato, como expressa a seguinte informação publicada na Revista Veja Juazeiro: “...de acordo com o Departamento Estadual de Rodovias do Ceará (DER), o governo do estado e a prefeitura fizeram obras paliativas em cerca de 40% do canal e abriu concorrência para os outros 60%, mas nenhuma construtora se manifestou para continuar as obras.” Percebe-se, dessa forma, que as obras foram apenas de reconstrução de um cenário de desastre tornando claro que o fato delas estarem inacabadas não resolverá o problema e nem poderá atender as necessidades da população. Carlos (1992) menciona que a deterioração das cidades é fruto das interações sociais no processo de reprodução do espaço urbano que transforma a cidade. Já Pereira (2010) enfatiza que as abordagens referentes ao urbano provocam avanços nas relações existentes entre desenvolvimento e meio ambiente, no sentido de pensar que o desenvolvimento das cidades deveria avançar em direção a um ambiente urbano com melhor qualidade de vida. O

que

se

percebe

a

partir

da

análise

dos

impactos

socioambientais causados pelo processo de urbanização desordenada da cidade do Crato é a falta de preocupação administrativa e a permanente

crise

originada

na

desarticulação

entre

Estado

e

sociedade civil, “desprovida de qualquer força no sentido de lutar em busca de um planejamento na perspectiva ambiental” (OLIVEIRA, 1998, p. 68). A partir da analise das imagens de satélite foi possivel observar que o canal atravessa grande parte da cidade e desagua em um corrego, como demonstrado na parte superior do mapa. Os dados apontam para que a principal razão das inundações seja o assoreamento do leito do canal por troncos de arvores, pedaços de 474

gabiões e outros materiais que são arrancados e arrastados pela chuva, impedindo o escoamento da água que se acumula e alaga exatamente o centro da cidade, como pode ser observado no mapa a seguir:

Imagem de satélite do centro da cidade do Crato Fonte: Google Earth

RESULTADOS E DISCUSSÕES É nesse contexto de discussões que envolvem a atual realidade ambiental da cidade do Crato que faz-se importante ressaltar os aspectos relacionados a urbanização, crescimento populacional, infraestrutura e gestão de politicas. Contrariamente ao que deveria se esperar o processo de urbanização em uma cidade de médio porte não proporciona apenas avanços e beneficios à população, mas trás consigo também aspectos negativos, como constragimentos e precarizações que afetam tanto o ambiente quanto as pessoas, e as estruturas de poder (MOURA, 2004). Logo o aumento da população urbana em relação a rural deve implicar em uma nova dinâmica de organização de espaço e gestão de cidades. Como muitas cidades de médio e grande porte no Brasil, o Crato não teve um plano diretor que direcionasse o processo de ocupação dos espaços da cidade e ela foi construida sem a preocupação com

475

um planejamento de gestão e espaço urbano, o que tem provocado graves conflitos na cidade, tanto de ordem social, como também economica e ambiental(OLIVEIRA, 1998). A cidade o Crato tem sido considerado historicamente como importante centro de produção e consumo, acarretando ao longo do último século uma crescente concentração de pessoas, edificações e intervenções no ambiente natural da cidade, mas, ao mesmo tempo tem sofrido graves conseqüências no âmbito socioambiental. A concentração de pessoas é melhor entendida como fruto do crescimento populacional quando percebemos a intima relação entre industrialização e urbanização. Gonçalves(2011) menciona que essa relação tem sido responsavel pela proletarização das massas que constantemente são levadas a adotar o culto da máquina, da ciencia e do progresso como unico sistema economico. Para o autor

a revolução industrial imergiu a humanidade no

turbilhão da vida urbana, “no esvaziamento do campo, na fuligem das cidades e regiões negras de poluição”(GONÇALVES, 2011, p.58). Essa desterritorialização tem sido uma estrategia usada pelo neoliberalismo para debilitar as resistencias da cultura e da natureza, subjulgando-as dentro da lógica do capital. Diante

desse

contexto

nota-se

que

o

processo

de

desenvolvimento do Crato foi marcado por problemas no meio urbano em função do processo de formação social e territorial da cidade, influenciado por fatores economicos, sociais, ambientais, psicologicos e politicos. Para Oliveira (1998) a situação do Crato não chega a ser proporcional aos grandes centros urbanos, no entando, afirma que “os padrões de desenvolvimento adotados pelos governos municipais não foram capazes de propor formas alternativas de gestão urbana responsáveis pelo desenvolvimento urbano” (OLIVEIRA, 1998, P. 39). Dessa forma, percebe-se que o crescimento populacional e comercial desordenado têm causado impactos nas infra-estruturas e nos equipamentos urbanos disponíveis, privando os moradores 476

do

acesso de saneamento básico, saúde, educação e transporte publico de qualidade. A busca de terras ou lotes para edificação de residências também promove à ocupação irregular, dando margem ao surgimento das favelas. A pobreza, como consequencia da grande demanda por trabalho e a pouca oferta, tem sido resultado da falta de politicas públicas condizentes, dificultando ainda mais a possibilidade de desenvolvimento econômico regional. O conceito de politicas publicas pode ser entendido como “todas as ações do governo e podem ser divididas em atividades diretas de produção de serviços, pelo próprio Estado, e em atividade de regulação que influenciam as realidades econômica, social, ambiental, espacial e cultural” (SILVA, 2010, p.4). Vale ressaltar também que as políticas são concretizadas pelas ações dos sujeitos sociais e das atividades

institucionais

que

as

realizam,

tornando

relevante

o

acompanhamento dos seus processos de implementação. Nesse contexto, cabe refletir sobre o desenvolvimento de politicas publicas municipais direcionadas à condição de vida dos cidadãos, assim como à execução de uma gestão publica que priorize as necessidades da população. Uma gestão que avalie a realidade local e utilize os recursos naturais existentes sem prejudicar o meio, promovendo a saúde e o bem estar, além de evitar problemas ecológicos e sociais, muitas vezes irreverssíveis(SILVA, 2010). A partir dessa discussão Oliveira(1998) afirma que a cidade do Crato teve sua origem semelhante às outras cidades

do interior do

Ceará, passando pelo mesmo processo de desenvolvimento sócioeconomico e politico, que ainda tem gerado grandes desigualdades sociais e serios impactos ao meio ambiente. O desatre ocorrido no Canal do Rio Granjeiro demonstra uma situação de calamidade devido, principalmente, à forma inadequada de ocupação do solo. Percebe-se tambem que se houver uma contínua ocupação da cidade de maneira desordenada e se não existir uma preocupação em amenizar as ações que impermeabilizam o 477

solo e que obstruem os sistemas de escoamento de água, é provavel que maiores tragédias aconteçam. Ausência de saneamento básico, atividades agrícolas com uso de

agrotóxicos,

atividades

industriais,

localização

incorreta

do

cemiterios e outras ações inadequadas tem trazido serios prejuízos aos rios da cidade, principalmente o rio Granjeiro, que corta toda a cidade, passando pelo centro e por bairros circuvizinhos (OLIVEIRA, 1998). Do ponto de vista ambiental o rio Granjeiro encontra-se em elevado processo de poluição das águas devido ao despejo de esgotos, destruição da fauna e da flora das margens, uso indevido do solo ao longo da superficie fluvial e o assoreamento do leito do rio. Oliveira(1998) ressalta que este rio de grande importancia social, economica e ecologica tem perdido seu encanto, e sua degradação tem afetado a vida cotidiana dos moradores da cidade. Retratando ainda a problematica ambiental urbana do Crato outros aspectos também merecem destaque, como a extrema fragmentação do espaço urbano, a acumulação de lixo e sua destinação final, a disseminação de doenças pela incompetencia dos serviços de saneamento básico, além da ineficiência de planejamento e de politicas educacionais dedicadas a preservação do meio ambiente e da qualidade de vida dos moradores. Esse pressuposto demonstra a necessidade de se adotar uma perspectiva de desenvolvimento comprometida com as gerações futuras, de forma que o desenvolvimento sustentável seja aplicado no âmbito do desenvolvimento urbano, tornando-se o balizador de tal planejamento (BEZERRA, 2002). Nota-se que a sustentabilidade é indispensável à população, e o Estado, como entidade responsavel pela representação do povo, deveria ter por obrigação o entendimento do uso dos recursos e dos intrumentos disponiveis para atender esse anseio. Assim, o pensar e o agir estrategicamente seriam suficientes para suprir essa necessidade,

478

partindo da identificação do problema para a elaboração e a implementação de planos, programas, projetos e ações (SILVA, 2010). Assim, vale ressaltar que existe uma grande necessidade de investimentos

em

infra-estrutura

principalmente

devido

às

potencialidades e ao constante crescimento da região. Vale salientar também que a problemática relacionada aos serviços de saneamento, à poluição ambiental e ao crescimento das demandas por moradia e transporte coletivo exigem empenho e comprometimento da gestão de politicas.

CONCLUSÕES No percurso desta artigo pretendeu-se explicar como as políticas de urbanização eficases são necessarias no processo de urbanização e também na melhoria das condições de vida de seus moradores. A partir do entendimento de que a urbanização é um fator inevitavel, torna-se evidente que as políticas públicas voltadas para o crescimento regional são a chave para resolução dos efeitos negativos desse processo, uma vez que as politicas publicas de desenvolvimento urbano devem estar preparadas para a intensificação deste fenômeno nos próximos anos. Também foi argumentado que a problemática urbana tem se constituído em um dos aspectos mais relevantes para análise do contexto social brasileiro, uma vez que a dimensão urbana envolve uma dinâmica de interesses econômicos, políticos e sociais, assim como de atores sociais específicos. No Brasil as cidades de grande e médio porte tem apresentado condições de precariedade na maioria da população, evidenciado a existência de favelas, cortiços, ocupações de risco e loteamento irregulares, onde encontra-se uma concentração problemas nos

479

serviços públicos ligados à educação, à saúde, ao saneamento ambiental, à cultura, ao transportes, entre outros. Em ambientes urbanos normalmente as dimensões de exclusão social determinam os grupos sociais dominantes, o que promove a busca por novas estratégias de sobrevivência, que se materializam-se nos processos de favelização e periferização, onde prevalecem a irregularidade e a ilegalidade do acesso à terra. Dessa forma, nota-se que o Crato, como cidade de médio porte, vêm sendo caracterizado por profundas desigualdades nos padrões de qualidade de vida, cidadania e inclusão social, uma vez que as desigualdades nas condições urbanas de vida se expressam também como desigualdades ambientais. Através

do

presente

estudo

pode-se

obter

uma

melhor

compreensão dos aspectos que influenciaram a inundação da cidade causada pelo transbordamento do Rio Granjeiro. Um dos grandes fatores

que

contribuíram

para

esse

incidente

foi

a

expansão

desenfreada das cidades, que tambem tem provocado a expansão das

desigualdades(ou

da

exclusão

social)

evidenciando

uma

descontinuidade na experiência social da vida cotidiana. A infra-estrutura da cidade do Crato precisa ser estruturada de tal forma que acomode o crescente contigente populacional, e, tambem, venha a proporcionar aos pobres o mínimo de condições para que não se instalem em favelas aumentando o caos urbano. Faz-se necessário um adequado planejamento de urbanização que produza boas condições de crescimento e desenvolvimento econômico sustentavel, através das externalidades positivas geradas nos centros urbanos. Diante de toda a análise discutida vale refletir e materializar possibilidades

e

caminhos

possíveis

para

a

elaboração

e

implementação de políticas que priorizem o desenvolvimento urbano com pretensões sustentáveis.

480

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482

RENOVAÇÃO URBANA E CRIATIVIDADE NA CIDADE TRADICIONAL: O CASO DE VILA NOVA DE GAIA (PORTUGAL) Fernando Manuel Rocha da Cruz175

Resumo: A cidade criativa é um complexo urbano onde as atividades culturais de vários tipos são um elemento integral do funcionamento social e económico da cidade, onde se verifica ainda a prevalência de inovações e conexões, assumindo-se igualmente como o locus onde se desenvolve a economia criativa. Tendo por base pesquisa de campo de cariz etnográfica realizada entre 2007 e 2011, na envolvente do calçadão do Cais de Gaia, na cidade de Vila Nova de Gaia (Portugal), propomos uma análise etnográfica de um espaço público, onde a tradição e a cultura surgem associados à divulgação e comercialização do vinho do Porto, o qual é promovido de forma criativa com um claro recurso à tematização espacial. Palavras-chave: Cidade criativa, cultura, vinho do Porto, Vila Nova de Gaia (Portugal).

1. CONCEPTUALIZAÇÃO DA CIDADE CRIATIVA O entendimento de cidade criativa na literatura científica não é consensual,

existindo

mesmo

inúmeras

abordagens,

todas

elas

embrionárias. Para alguns, como Richard Florida (2011), é uma cidade onde se destacam a elevada concentração da chamada “classe criativa” – pessoas que exercem determinadas profissões com maior carga de criatividade individual – sua efervescência, diversidade cultural, presença tecnológica e grau de tolerância. Há que aproveitar, segundo este autor, todo o talente criativo e não somente de uma pequena elite. Para outros, como Simon Evans (2012), a base da cidade criativa é a participação das indústrias criativas na economia – sua pujança em criar, atrair e abrigar empresas criativas que, por sua vez,

175

Graduado em Direito (Universidade Portucalense Infante D. Henrique), Antropologia (Universidade Fernando Pessoa, UFP, Portugal), Mestre em Ciências Sociais (UFRN) e Doutor em Sociologia (Universidade do Porto, Portugal). Professor Adjunto (UFRN). Professor Permanente no Programa de Pós-graduação em Estudos Urbanos e Regionais. Vice-coordenador do Grupo de Pesquisa sobre as Cidades Contemporâneas.

483

captariam os talentos criativos. Uma alta concentração de indústrias criativas e de clusters criativos será assim indicativa de maior criatividade urbana. Finalmente, outros autores, como Reis e Urani (2011), chamam a atenção para a capacidade dos habitantes das cidades criativas em colocar a criatividade em prática e um ambiente cultural e econômico favorável a isso. Concluem assim que a cidade criativa é sistêmica, integrada e incentiva a eclosão da criatividade de todas as profissões, de forma complementar. A Comissão do Livro Verde da União Europeia define indústrias criativas e culturais como “indústrias que produzem e distribuem bens ou serviços que no momento em que são desenvolvidos são considerados como tendo um atributo específico, uso ou finalidade que incorpora ou transmite expressões culturais, independentemente do valor comercial que possam ter. Além dos setores tradicionais das artes (artes cênicas, artes visuais, patrimônio cultural, incluindo o setor público), que incluem filme, DVD e vídeo, televisão e rádio, jogos, novas mídias, música, livros e imprensa”. Este conceito é definido em relação às expressões culturais no contexto da Convenção UNESCO de 2005 sobre a proteção e promoção da diversidade das expressões culturais. As indústrias criativas são as indústrias que utilizam a cultura como uma entrada e têm uma dimensão cultural, embora as suas saídas sejam essencialmente funcionais. Eles incluem arquitetura e setores como design gráfico, design de moda ou publicidade. A criatividade engloba o processo pelo qual se produzem novas ideias podendo tornar-se uma atividade económica se a produção destas tiver implicações económicas ou se se constituir como produto comercializável. (HOWKINS, 2007) Estamos desta forma perante uma possibilidade de alinhar a economia e o desenvolvimento humano se conseguirmos conceber uma sociedade criativa que possa conduzir a energia da economia criativa desencadeada. Os lugares capazes de a absorver serão aqueles que estiverem abertos à diversidade e sejam capazes de internalizar as externalidades a que a 484

economia criativa dá origem, já que não é suficiente incubar novas indústrias criativas ou gerar mais pessoas criativas. Os lugares de maior sucesso requererão uma capacidade socialmente adaptativa que lhes permita descobrir novos campos e indústrias criativas assim como lidar eficazmente com problemas como rendimentos e desenvolvimento desiguais e subutilização do potencial humano. (FLORIDA, 2007). A criatividade pode manifestar-se, por conseguinte, em cidades das mais diversas escalas. As pequenas cidades, assim como pequenas empresas, podem ser extremamente inovadoras e inspiradoras. Quanto maior for essa sinergia entre grandes e pequenas, cidades e empresas, mais sólidas serão as fibras das redes regionais urbanas, em termos cultural e socioeconômico. (REIS e URANI, 2011) Também Seixas e Costa (2010) referem que as cidades criativas representam uma possibilidade de assumir e desenhar intervenções mais transversais, que permitam ultrapassar velhas dicotomias e conflitos em termos de domínios e formas de atuação (e.g., economia vs. cultura; público vs. privado; efémero vs. permanente; local vs. global). A Economia Criativa ou também chamada Nova Economia é o resultado do exercício da imaginação individual e a exploração do seu valor económico. Nem criatividade, nem economia são novidades, mas o que é novo é a natureza e a extensão da relação entre ambos e o modo como se combinam para criar valor e riqueza extraordinária. Tem-se verificado um aumento incomparável de patentes, direitos de autor e marcas registadas. Assim, eletrónica, software, cuidados médicos, consumo de mercadorias, telecomunicações, meios de comunicação

e

entretenimento

encontram-se

dependentes

da

propriedade intelectual. (HOWKINS, 2007) Cidades como Londres parecem

ter

uma

capacidade

inesgotável

de

auto-renovação

enquanto outras se convertem em cidades fantasmas. (FLORIDA, 2011) A mão de obra formada e com talento é a pedra angular da competitividade económica. O valor, a motivação e o desejo de trabalhar já não são suficientes. A curiosidade e a capacidade de 485

análise, o conhecimento e a inovação são as ferramentas que o mundo moderno precisa. Daí que em termos económicos, sejam fundamentais para canalizar o capital na economia global e favorecer o crescimento das cidades e das regiões, os seguintes setores: financeiro; ciência e tecnologia; arte, ócio e meios de comunicação. (FLORIDA, 2011) Por outro lado, Jane Jacobs foi uma das primeiras autoras a identificar a diversidade das estruturas económicas e sociais como o verdadeiro motor do crescimento. Esta autora deu profundidade e dimensão à conceção de Adam Smith na sua conhecida teoria sobre a distribuição de tarefas e divisão do trabalho em busca da eficiência económica. Aquela autora afirmou que as cidades desempenham uma função crucial na organização e divisão do trabalho, já que a combinação de muitas e diversas profissões e pessoas são fundamentais para criar coisas verdadeiramente novas. É a inovação que a longo prazo faz com que as cidades conservem a vitalidade e a sua importância. (apud FLORIDA, 2011) A cidade criativa é um complexo urbano onde as atividades culturais

de

vários

tipos

são

uma

componente

integral

do

funcionamento social e económico da cidade. Esta tende a ser construída de acordo com uma forte infra-estrutura social e cultural para ter uma relativa alta concentração de empregos criativos e para ser atrativa para investimentos internos devido à existência de equipamentos culturais. A futura competência entre nações, cidades e empresas irá basear-se menos nas riquezas naturais, ou na antiga reputação e mais na capacidade para criar símbolos e imagens atrativos e sabê-los projetar eficazmente. (LANDRY e BIANCHINI, 2000) Para os decisores políticos e pesquisadores, as indústrias culturais são fonte de novas oportunidades de emprego. As cidades começaram a promover o crescimento de conhecimento intensivo em conjugação com políticas culturais destinadas a providenciar um meio criativo para a

atração

e

retenção

desse

conhecimento,

bem

como,

de

especialistas do “simbólico”. Assim, enquanto o setor das indústrias 486

culturais prospera, é a habilidade para alimentar este setor e ligar a sua criatividade para aumentar e desenvolver a inovação económica que se constitui como teste crucial da adaptabilidade das cidades para este

desafio

global.

(O’CONNOR,

1999)

Deste

modo,

independentemente da história, condição socioeconômica e tamanho, verifica-se na cidade criativa a prevalência de três elementos (REIS e URANI, 2011): 1) Inovações. Estas podem ser entendidas como criatividade aplicada à solução de problemas ou à antecipação de oportunidades. Não se limitando à inovação tecnológica, a criatividade urbana é sustentada por inovações de diversa índole. Assim, as inovações tecnológicas, culturais, sociais e ambientais procuram responder às necessidades específicas de cada cidade, incluindo as de cada área urbana. 2) Conexões. As conexões se dão em diversas dimensões: histórica, entre o passado da cidade, que forma sua identidade e sua estratégia de futuro; geográfica, entre bairros e zonas, o que é especialmente

importante

nas

grandes

cidades,

não

raro

fragmentadas; de governança, com a participação dos setores público, privado e da sociedade civil, cada um com seu papel muito claramente definido; de diversidades, aglutinando pessoas com distintos pontos de vista, profissões, culturas, comportamentos; entre local e global, preservando as singularidades da cidade, sem por isso se isolar do mundo. Ora, se o setor privado é que inova, o público é o que dá uma perspetiva de longo prazo e a sociedade civil é o que os liga. Daí a importância da união destes três fatores para que a economia criativa funcione, uma vez as cidades criativas são o locus por excelência da economia criativa. 3) Cultura. Na cidade criativa destacam-se quatro formas de cultura: a) conteúdo cultural per se, compreendendo produtos, serviços, patrimônio (material e imaterial) e manifestações de caráter único; b) indústrias criativas, abrangendo cadeias culturais, da criação à 487

produção, do consumo ao acesso, com impacto econômico na geração de emprego, renda e arrecadação tributária; c) agregação de valor a setores tradicionais, dando-lhes diferenciação e unicidade, em um contexto mais amplo de economia criativa, a exemplo do impacto da moda sobre as indústrias têxtil e de confeções ou da arquitetura sobre a construção civil; d) ambiente criativo pela convivência de diversidades e manifestações, fonte de inspiração para olhares e ideias diferentes, em especial pelas artes. O conceito de Economia Criativa surgiu na década de 1990, na Austrália (1994) e no Reino Unido (1997) em resposta às mudanças originadas pela globalização, aceleração dos meios de comunicação, redução dos ciclos de produção, fenómenos que exigiam

às

economias e às empresas a relocalização de setores por forma a que pudessem oferecer uma maior diferenciação e valor agregado. Face a estas alterações, as empresas assistencialistas não tinham mais para onde ir, por maiores que fossem, uma vez que não iriam suportar a pressão dos investidores. Houve assim necessidade de criar novos modelos para que as empresas pudessem sobreviver a longo prazo. Atualmente, o setor da Economia Criativa, em termos mundiais, movimenta mais de 2,2 trilhões de dólares com um crescimento acima da média da Economia tradicional – cerca de 6,6% frente aos 5%, segundo dados do BNDES. Na América Latina, a estimativa é de um crescimento anual acima de 8,5%. De acordo com dados das Nações Unidas, em 2008, os serviços e os bens da economia criativa cresceram até 14%, enquanto o comércio global baixou em cerca de 12%. Mas, apesar do setor representar 5% do PIB, responder por 5,7% dos empregos formais, 6,2% do número de empresas e 4,4% das despesas médias das famílias, segundo os dados do IBGE, o Brasil ainda está fora da lista dos 20 maiores produtores internacionais. (SILVA, 2012) Segundo dados de 2010 da Firjan (Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro), a participação da indústria criativa no PIB brasileiro aumentou 0,1% entre 2006 e 2010, o que representa cerca de R$ 3,7 bilhões. Como referimos, 488

a economia criativa é atualmente considerada um eixo estratégico de desenvolvimento para os diversos países e continentes, no século XXI. A Secretaria da Economia Criativa (SEC) simboliza o desafio do Ministério da Cultura do Brasil de liderar a formulação, implementação e monitoramento de políticas públicas para um novo desenvolvimento fundado na inclusão social, na sustentabilidade, na inovação e, especialmente, na diversidade cultural brasileira. Por outro lado, ao planejar, através da SEC, um “Brasil Criativo”, procura acentuar o compromisso do Plano Nacional de Cultura com o Plano Brasil sem Miséria, através da inclusão produtiva, e com o Plano Brasil Maior, na busca da competitividade e da inovação dos empreendimentos criativos brasileiros. (SECRETARIA DA ECONOMIA CRIATIVA, 2011) Por útimo, há ainda a ressaltar a possibilidade aberta à “agregação de valor a setores tradicionais”. Finalmente, o espaço público é um bem do domínio público que segundo a sua aceção objetiva consiste no “conjunto das coisas que, pertencendo a uma pessoa colectiva de direito público de população e território, são submetidas por lei, dado o fim de utilidade pública a que

se

encontram

afetadas,

a

um

regime

jurídico

especial

caracterizado fundamentalmente pela sua incomerciabilidade, em ordem a preservar a produção dessa utilidade pública” e que segundo a aceção institucional funda-se no “conjunto de normas que definem e regulam os direitos que se exercem sobre as coisas públicas” (FERNANDES, 1991). Consequentemente, os espaços públicos urbanos como praças, ruas ou jardins incluem-se no domínio público ao pertencerem e ao serem geridos (ou não) pelo Estado e pelos Municipios. O uso privado pode ocorrer embora com caráter precário e revogável, continuando a propriedade a ser pública. Neste caso, a afetação deverá ter como finalidade o uso público ou o serviço público. (MARTINS, 1996)

489

2. O CALÇADÃO DO CAIS DE GAIA Vila Nova de Gaia situa-se na margem sul do rio Douro que o separa dos municípios do Porto e de Gondomar. O concelho confina com os de Santa Maria da Feira e de Espinho, e é formado por vinte e quatro freguesias, com características muito diversas entre si, em termos territoriais, sociais, económicos e culturais. Os limites do concelho foram definidos inicialmente em 1834 com a união de Vila Nova a Gaia às restantes freguesias rurais. Pelo Decreto-lei n.º 12457 foi desanexada a freguesia de Guetim (passando a integrar o concelho de Espinho) e anexada a de Lever. Em 1952, dá-se a última alteração com a constituição da freguesia de S. Pedro da Afurada, povoação que havia sido desanexada da freguesia de Santa Marinha. (Machado, 2004, p. 58; Bastos; Freitas, 2004, p. 106) Vila Nova de Gaia atingiu grande prosperidade no século XVIII, com a fixação de artífices, mercadores e homens de negócios nas casas e armazéns da zona ribeirinha. O vinho novo era então transportado do vale do Douro para os armazéns aí construídos, onde ficava a envelhecer durante alguns anos. Até 1986, todo o vinho destinado à comercialização tinha que ser expedido das caves de Vila Nova de Gaia. (Coutinho, 2011) O programa de reabilitação da zona histórica de Gaia teve como finalidade tornar esta área um pólo de dinâmicas metropolitanas ao nível turístico, cultural e de lazer. As intervenções na área ribeirinha, entre a Ponte D. Luís e o Cais de Gaia foram das primeiras a decorrer. Foi construído um calçadão fluvial de dimensões consideráveis, que passou a permitir a realização de caminhadas com oportunidade de paragem, para contemplação da outra margem do rio (a cidade do Porto)

e

mesmo

para

descanso.

A

construção

do

atual

empreendimento do Cais de Gaia, uma obra do arquiteto Tasso de Sousa, em parceria com Eduardo Cabral dos Santos, visou a renovação e valorização desta zona. A obra do Cais de Gaia foi iniciada em dezembro de 2000 – em paralelo com a instalação do tubo emissário 490

pela Águas de Gaia – e concluída três anos depois. Trata-se de uma estrutura com cerca de 30 estabelecimentos comerciais, inaugurada em maio de 2003, com 27 mil metros quadrados de explanadas, lagos, bares e cafés. (Machado, 2004, p. 62) A necessidade de recolher os esgotos da parte mais antiga da cidade de Gaia (escarpa da serra do Pilar e armazéns de vinho do Porto), levou a que a empresa municipal Águas de Gaia instalasse um tubo emissário por toda a costa, capaz de transportar os resíduos até à estação de tratamento na Madalena. A colocação desse tubo implicou o levantamento dos arruamentos que, juntamente com os passeios públicos, foram reconstruídos ao longo dos cinco quilómetros compreendidos pela obra. (Leandro, 2004) A zona ribeirinha do Cais de Gaia é um espaço público que privilegia a paisagem, seja a natural (rio Douro), seja a humana (cidade do Porto). O conjunto é de uma extraordinária beleza e convida turistas e residentes a desfrutarem da mesma, caminhando, praticando desporto, observando e contemplando a paisagem ou mesmo registando visualmente a mesma. A temática do vinho do Porto é aproveitada em Vila Nova de Gaia para dinamizar este espaço público. Assim, as várias caves de Vinho do Porto para além da comercialização deste tipo de vinho, organizam visitas guiadas às suas caves (Fotografia 3), dando a conhecer a sua história, bem como, as suas caves e o vinho por

si

comercializados.

Porém,

existem

outros

elementos

que

complementam esta recriação museológica como seja os barcos rabelos estacionados na margem do Cais de Gaia (Fotografia 1), a organização da regata deste tipo de barcos (Fotografia 2). Para além disso, a animação que se verifica amiúdas vezes com as danças dos ranchos folclóricos (Fotografia 4) e festivais ajudam a recriar uma certa ambiência e tematização do tradicional. As várias feiras de artesanato (Fotografia 7) e mesmo o apoio do município de Vila Nova de Gaia à eleição das “tripas à moda do Porto” como maravilha gastronómica (Fotografia 6) permitem considerarmos a escolha da tradição como o tema privilegiado deste espaço público. Neste âmbito, não podemos 491

esquecer as festas de S. João e a organização do fogo-de-artifício (Fotografia 5) como uma das tradições a manter neste espaço. Para além de se constituir como espaço de ócio e lazer promove igualmente o espaço familiar e desportivo enquanto valores tradicionais. Por último, há ainda a referir que como espaço turístico procura através da organização de alguns eventos constituir-se como um espaço global, fortemente mediatizado, como aconteceu com a organização da competição Red Bull Air Race ou a instalação do bondinho (teleférico) nesta área (Fotografia 8). Fotografia 1 – Barcos Rabelos (19 de agosto de 2007)

Junto à zona ribeirinha do Cais de Gaia encontram-se vários barcos rabelos em exposição. Era o meio de transporte (tradicional) do vinho do Porto do Alto Douro até Vila Nova de Gaia, onde ficava armazenado vários anos. Fotografia 2 – Regata de Barcos Rabelos (28 de junho de 2009)

A Regata dos Barcos Rabelos ou Regata de S. João é um evento que se realiza na quadra das Festas de S. João, onde participam várias caves (adegas) do Vinho do

492

Porto. É organizado pela Confraria do Vinho do Porto e existe em cada barco participante pelo menos um confrade com a sua toga e chapéu característicos. São alguns milhares de pessoas que nas duas margens assistem à chegada da regata à margem do Cais de Gaia. Fotografia 3 – Visita às Caves Cálem (30 de maio de 2010)

As Caves Cálem têm um programa de visitas em vários idiomas (português, espanhol, francês, inglês), à semelhança das Caves Sandeman. Um guia explica a par e passo, a história do rio Douro e do Vinho do Porto, bem como a sua tipologia, entre outros pormenores. No final são servidos dois cálices de vinho do Porto (branco e tinto) para degustação. Os painéis das Caves Cálem são estilizados, ao contrário das Caves Sandeman. O guia das Caves Sandeman usa uma toga e um largo chapéu negro à semelhança do logótipo da marca.

Fotografia 4 – Rancho Folclórico (24 de junho de 2011)

Na praça Sandeman, o Rancho Folclórico “Lavradeiras de Santa Maria do Arcozelo” actua enquanto decorre a Regata dos Barcos Rabelos. Assistem a este espectáculo não só quem se encontra na esplanada do café, mas também dezenas de pessoas que se concentram ao seu redor. No intervalo da actuação, a Confraria

493

procedeu à divulgação dos resultados da Regata e à entrega dos prémios. No momento em que este acto termina com a fotografia de conjunto de todos os participantes junto ao rio, o Rancho Folclórico retoma a sua actuação.

Fotografia 5 – Fogo-de-artifício na noite de S. João (24 de junho de 2010)

Milhares de pessoas deslocam-se para as duas margens do rio Douro para assistirem ao espectáculo de música e fogo-de-artifício. A ponte D. Luís é encerrada durante o espectáculo pirotécnico. Quando o espectáculo termina, as pessoas deslocam-se para a cidade do Porto. A zona ribeirinha é uma área privilegiada para assistir ao mesmo, possuindo menos barreiras visuais do que do lado do Porto.

Fotografia 6 – Candidatura das “tripas à moda do Porto” às Sete Maravilhas da Gastronomia (30 de julho de 2011)

A Câmara Municipal de Gaia apoiou a candidatura das “Tripas à Moda do Porto” a uma das sete maravilhas da gastronomia portuguesa. Várias personalidades do mundo do desporto, da cultura, da política, entre outras, apoiaram igualmente esta candidatura. A 30 de Julho de 2011, foi organizado um mega-almoço no Cais de Gaia para promover a eleição deste prato típico do Porto. Este evento foi acompanhado por canais de televisão e outros meios de comunicação social.

494

Fotografia 7 – Feira de Artesanato (20 de agosto de 2008)

As cíclicas feiras de artesanato que se realizam no Cais de Gaia permitem dar alguma animação a este espaço e oferecer aos turistas mais um passatempo e a compra de bens característicos e típicos.

Fotografia 8 – Bondinho de Gaia (1 de abril de 2011)

A inauguração do bondinho (Teleférico de Gaia), a 1 de Abril de 2011, veio disponibilizar um meio de transporte de ligação entre a cota alta de Santa Marinha e o Cais de Gaia. Mais que um meio de transporte é sobretudo um equipamento para os turistas poderem contemplar o rio Douro e as zonas históricas de Gaia e Porto. O preço elevado deste meio de transporte leva a que seja essencialmente utilizado como um equipamento de turismo.

Na nossa pesquisa, realizamos quatro entrevistas a representantes de instituições que organizaram ou apoiaram a dinamização da zona ribeirinha

do

Cais

de

Gaia.

As 495

suas

representações

assentam

principalmente na grande procura turística de que a zona ribeirinha é alvo, na existência das caves do Vinho do Porto e na paisagem natural (Rio Douro) e humana (cidade do Porto) observável neste espaço. “temos duas partes, temos a parte comercial que é a parte do Cais de Gaia explorada pelo Douro Cais e temos a parte que fica junto ao rio. Essencialmente essa parte que fica junto ao rio é um dos nossos ex-libris nomeadamente o acesso ao Douro que se faz através daqueles cruzeiros que normalmente ali atracam. Os cruzeiros que ali atracam e aquela zona portanto é uma zona de lazer se assim se pode dizer da zona ribeirinha de Gaia. Aí chegam as pessoas que vão visitar as caves, aí chegam as pessoas que vão fazer aquelas voltas quer sejam as cinco pontes, quer ir à Régua e pernoitar lá, quer sejam aquelas pessoas que vão lá cima fazer elas próprias as vindimas (…) O Vinho do Porto, neste momento, é o grande embaixador não só de Portugal como desta região e essencialmente cada vez mais as empresas de Vinho do Porto optam por cativar as pessoas junto ao Cais de Gaia no sentido de elas visitarem e fazerem uma prova de vinhos do nosso vinho” (Paulo Peres, Adjunto do Vereador do Turismo) “O Cais de Gaia, eu acho que tem vindo a sobreviver muito bem enquanto espaço público. Teve um boom no início, depois as coisas, em meu entender que não conheço tão de perto dentro dos números assim, teve um decréscimo a seguir, mas acho que soube dar a volta e eu acho que neste momento tem um posicionamento muito consistente.” (Isabel Morais, Chefe do Enoturismo na Sogrape Vinhos)

Os pontos fortes identificados na zona ribeirinha do Cais de Gaia assentam, por conseguinte, no elevado número de turistas, na existência das caves do Vinho do Porto, na existência dos barcos rabelos, na localização, nas vistas sobre a cidade do Porto. “o ponto forte do Cais de Gaia terá que ser o turismo. O turismo, neste momento, cerca de 800 mil pessoas visitam o Cais de Gaia, anualmente. Grande parte dessas visitas deve-se à existência das caves lá sediadas e grande parte das pessoas que lá visitam vão às caves.” (Paulo Peres, Adjunto do Vereador do Turismo)

Os pontos fracos reconhecidos à zona ribeirinha do Cais de Gaia fundam-se nas condições climatéricas, no tipo de mercado existente,

496

na acessibilidade e estacionamento, na ausência de uma referência gastronómica e de animação nocturna. “é a acessibilidade e o estacionamento. (…) sendo um espaço maioritariamente de hotelaria deveria ter uma preocupação maior em trabalhar isso, a gastronomia. A gastronomia e vinhos é um produto estratégico (…) e eu acho que ir aos espaços e ter uma gama de… gastronómica interessante é motivo também de diferenciação. Maioritariamente não são bares, são restaurantes. Todos eles fazem coisas diferentes que farão, mas nenhum deles é conhecido por ser uma referência gastronómica e isso poderia ser um ponto forte associado à localização que forçasse as pessoas a vir.” (Isabel Morais, Chefe do Enoturismo na Sogrape Vinhos)

A cidade de Vila Nova de Gaia tem alguns espaços públicos de boa qualidade e estrutura podendo a cidade ser representada pelo centro histórico, Jardim do Morro, Mosteiro da Serra do Pilar e passeio da zona marítima. A estrutura e a qualidade da zona ribeirinha do Cais de Gaia – que se integra no centro histórico – são boas, em virtude deste espaço público possuir uma grande procura turística devido à existência das caves do Vinho do Porto e ao seu contexto paisagístico. Por conseguinte, os seus pontos fortes assentam no elevado número de turistas, na existência das referidas caves e de barcos rabelos, na sua localização e nas vistas sobre a cidade do Porto. Pelo contrário, os seus pontos fracos fundam-se nas condições climatéricas, no mercado municipal, nas acessibilidades, no estacionamento e na diminuta animação nocturna. A sua qualidade poderá, no entanto, melhorar após a requalificação do mercado municipal e das suas lojas, assim como, após a criação de hotéis no centro histórico.

EM CONCLUSÃO A cidade de Vila Nova de Gaia tem na zona ribeirinha do Cais de Gaia, um espaço público que atrai milhares de turistas pela temática do vinho do Porto, desde a visita às próprias caves (ou adegas) do vinho 497

do Porto, de forma a conhecerem as suas histórias, lendas e percursos, bem como para degustarem o próprio vinho, assim como para o adquirirem. O contexto espacial em que as caves se encontram propiciam uma certa musealização do próprio espaço público. neste, podemos presenciar manifestações culturais que passam pela dança tradicional, pela existência das embarcações tradicionais no rio Douro (barcos rabelos) e atividades turísticas como passeios fluviais, visita de exposições e espaços com cariz histórico. Deste modo, consideramos que a tematização da zona ribeirinha transformando-o de alguma forma em parque temático, com atividades econômicas, turísticas e culturais que exploram o carácter tradicional e a comercialização do vinho do Porto preenchem de alguma forma os requisitos para considerarmos

este

espaço

como

espaço

criativo,

dando

por

conseguinte o ensejo para considerar a cidade como criativa, dado se tratar de um espaço representativo da cidade. É pela tradição que se procura vender turisticamente a imagem da cidade de Vila Nova de Gaia, de tal forma que - a título de exemplo - enquanto a cidade do Porto não apoiou institucionalmente a candidatura das “tripas à moda do Porto” ao concurso gastronômico nacional das “Sete maravilhas”, a prefeitura (Câmara Municipal) de Vila Nova de Gaia o fez. Ora, esta feijoada está ligada historicamente ao Porto e ao início do período de expansão ultramarina (1415).

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500

IMPACTOS E LEGADOS DA COPA DO MUNDO DE 2014 EM NATAL/RN: O PROCESSO DAS DESAPROPRIAÇÕES NO BAIRRO DAS QUINTAS Fábio Fonseca Figueiredo176 Marcelo Augusto Pontes de Araújo177 Richardson Camara178

Resumo: Os megaeventos esportivos são requeridos pelos estados já que através deles se vislumbra a promoção de uma cidade ou país, uma ótima oportunidade de mudança na imagética local e no desenvolvimento de atividades econômicas não tradicionais como a economia criativa. Porém, os megaeventos exacerbam a logica do capital global, que se recombina em territórios que se adequam a suas exigências. Existem impactos e legados nefastos fruto da realização dos megaeventos, para além dos esperados pelos gestores públicos. A partir de relatos de moradores que serão desapropriados de uma rua na cidade de Natal/RN, informações veiculadas na imprensa, documentos oficiais e posicionamento de entidades sociais, o presente artigo objetiva tecer considerações sobre os impactos e legados da Copa de 2014 na cidade de Natal/RN. Palavras-chave: Megaeventos esportivos; Impactos e legados da Copa 2014; Economia Criativa; Desapropriações; Natal/RN.

1. INTRODUÇÃO As questões relacionadas aos megaeventos esportivos tomaram uma conotação bastante singular no Brasil após a sua definição como país hospedeiro da Copa do Mundo de Futebol em 2014, bem como a escolha do Rio de Janeiro como cidade sede das Olimpíadas de verão de 2016. A relevância que a sociedade brasileira tem dado a Copa e Olimpíada é porque eventos dessa magnitude pode se materializar em diversas formas de oportunidades para as localidades que os recebem.

176

Graduado em Ciências Econômicas (UFRN), Mestre em Educação Brasileira (UFC), Doutor em Geografia Humana (Universidade de Barcelona/Espanha) e Pós-Doutoramento no Programa de Estudos Urbanos e Regionais (UFRN). Integrante do Grupo de Pesquisa Observatório das Metrópoles. [email protected]. 177 Graduado em Ciências Econômicas (Faculdade de Campinas), Mestre em Economia (UFRN). [email protected]. 178 Graduado em Ciências Sociais (UFRN), Mestre em Estudos Urbanos e Regionais (UFRN) e Doutorando em Ciências Sociais (UFRN). Integrante do Grupo de Pesquisa Observatório das Metrópoles. [email protected].

501

Os megaeventos esportivos são requeridos pelas administrações públicas visto que através deles se vislumbra a promoção de uma cidade ou país, uma ótima oportunidade de mudança na imagética local (SEIXAS, 2010). Hospedar um megaevento é uma possibilidade de destaque no cenário político e por isso o discurso oficial que justifica o esforço ao recebimento desses eventos se relaciona a benefícios tais como econômicos, adquiridos através dos investimentos público e privado, conquistas sociais, normalmente relacionados à geração de emprego e renda, inclusão social das camadas mais pobres da população e aos legados, fruto das construções necessárias à realização dos megaeventos na cidade (HARVEY, 1996). Apesar desse cabedal de possibilidades, os aspectos econômicos têm monopolizado os discursos em prol dos megaeventos, geralmente reduzindo seus impactos e legados a vultosas cifras econômicas. Dessa forma, o que deveria ser um congraçamento de povos através do esporte, os megaeventos se tornam uma encarniçada disputa política entre governos. Para Lima (et. al. 2009), os megaeventos são tradições inventadas com objetivos econômicos, um resgate ao antigo através da repetição de rituais fakes [grifo dos autores] como são os jogos olímpicos da era moderna. Este artigo possui dois objetivos distintos, antagônicos porém complementares entre si. O primeiro deles o de desmistificar a noção de que um megaevento esportivo implica, obrigatoriamente, em impactos econômicos positivos para as nações que os recebem. Em duas secções será analisada a economia política do esporte, seus resultados e possibilidades. A terceira parte do presente texto apresenta os impactos e possíveis legados nefastos da realização da copa do mundo de futebol na cidade de Natal, em 2014, a partir das desapropriações requeridas pelo projeto oficial de mobilidade urbana na cidade. Por fim, as considerações fecham as análises provocadas nesse artigo.

502

2. A ECONOMIA POLÍTICA DOS MEGAEVENTOS ESPORTIVOS A experiência internacional indica que os megaeventos são estratégias de investimento econômico de risco, principalmente para os países em desenvolvimento. As cidades nas últimas décadas têm ocupado o papel de protagonista no desenvolvimento econômico, como reflexo das transformações na economia global. A disputa internacional por capitais produtivos rapidamente se transferiu para as esferas de governos subnacionais, seja em razão da disseminação de novos aportes teóricos, seja pela pressão exercida pelo declínio nos repasses dos governos federais para os demais níveis de administração pública. Assim, a adoção de megaeventos (sejam eles esportivos, de entretenimento ou de qualquer outra espécie) tornou-se um tema central na agenda política dos países, gerando reflexos na política macroeconômica e com interesse especial pelos territórios que serão objetos de vultosos investimentos públicos. Como afirma Saskia Sassen (1996), a crise do sistema de Bretton Woods e as novas configurações da economia mundial pós década de 1970 provocaram não uma desintegração do sistema, mas sua reestruturação

geográfica

e

temporal,

criando

uma

dualidade

complexa, ou seja. enquanto a economia se dispersa no espaço, ela consolida sua integração na escala planetária. Assim, o autor explica que "essa combinação de dispersão geográfica e de integração mundial criou um novo papel estratégico para as grandes cidades" (p: 32). Ainda para Sassen, ao invés de se tornarem obsoletas com a dispersão propiciada pelas tecnologias da informação e comunicação (TIC), as cidades passaram a concentrar funções de comando, tornando-se locais de produção pós-industrial para as empresas de ponta, sejam financeiras e/ou de serviços especializados. Também, mercados transnacionais onde empresas e governos podem se utilizar

503

dos produtos e serviços do mercado financeiro e contratar serviços especializados. A arquitetura desse rearranjo político e econômico é o que Wilson Cano (1995) define por Terceira Revolução Industrial, onde as transformações

na

área

da

informática:

"se

manifestarão,

preferencialmente, em um reduzido número de áreas urbanas mais desenvolvidas, que disponham de redes de serviços modernos complementares à nova indústria, centros de pesquisa, centros formadores de educação e maior dotação de infraestrutura urbana moderna, viária e de telecomunicações compatíveis com os requisitos dessa terceira revolução industrial". (p: 128). O capital requer novos espaços e estes devem ser especializados, e as cidades são o lócus mais eficaz para oferecer tais espaços. Assim, cria-se uma rede mundial de cidades capazes de estabelecer as conexões econômicas demandadas pelos novos fluxos globais. Esse enfoque nos permite conceber a globalização como constituída por uma rede global de lugares estratégicos que emergem como uma nova geografia de centralidade (SASSEN, 1999; CASTELLS, 1999). Para Sassen, esses novos centros estratégicos se caracterizam por seu perfil essencialmente terciário, que lhes daria uma nova importância, em detrimento aquela que tinham as metrópoles industriais fordistas do passado. E, como ressalta Ferreira (2008), aos megaeventos lhes interessa a especialização dos territórios, aportados pelos TIC para que sejam difundidos os novos rearranjos do capital. No plano político, Oliveira (2011) argumenta que o novo paradigma do planejamento urbano e estratégico para os gestores públicos estabeleceu que o crescimento econômico das cidades somente pode ser alcançado através de uma inserção vantajosa na economia globalizada. Com isso: a restruturação urbana transformou-se em uma prioridade da agenda governamental, seja nos países centrais como nos países em desenvolvimento. Os efeitos benéficos de grandes

504

projetos não seriam passageiros mas se desdobrariam com o tempo. Na fase inicial, a valorização resultante de espaços degradados atrairia investimentos, gerando rebatimentos imediatos sobre o emprego e a renda. Superada a fase inicial do projeto, a reconfiguração urbana abriria caminho para o surgimento de novas atividades econômicas, especialmente no terciário moderno (serviços financeiros, design e marketing, etc.) atraindo mão de obra qualificada, realimentando os fluxos monetários e ampliando o mercado consumidor. Os investimentos em grandes projetos urbanos seriam um suporte à atividade econômica (p: 260).

Ainda conforme Oliveira (op. cit.), o mercado das cidades depende da escolha dos consumidores. Para além das vantagens comparativas, através das TIC´s os gestores públicos deverão investir em propaganda para atrair investidores, causando a espetacularização das cidades. A hospedagem de grandes feiras culturais e de negócios, de atividades esportivas ou de qualquer evento de grande visibilidade é fundamental para a promoção de uma cidade. O planejamento estratégico apontaria para o caminho para o crescimento econômico através

da

comparativas

exploração da

cidade.

racional Os

das

vocações

investimentos

e

vantagens

governamentais

em

infraestrutura e marketing, dessa forma, viabilizariam essa proposta. O que se verifica, mesmo em uma época de incerteza econômica global, é que os governos encontram-se cada vez mais tentados à disputa internacional para sediar os megaeventos. Segundo afirma matéria jornalística da BBC Londres sobre a Copa do Mundo de futebol, “para sediar a Copa do Mundo em 2018 e 2022, dez países, agrupados em oito lances, estão lutando para conseguir a desejada vaga. Estão armados com relatórios e projeções de consultores de gestão e todos acreditam que podem colocar um programa a um custo razoável, voltado aos benefícios econômicos que vêm da hospedagem de um megaevento” (BBC, 2010). No entanto a adoção de tal estratégia com fins de crescimento econômico tornou a criatura maior que o criador (OLIVEIRA, 2011). A gigantesca infraestrutura japonesa para receber a Copa do Mundo de 2002, por exemplo, quase não mudou sua economia estagnada. Na 505

olimpíada de verão de Sydney em 2000, argumentava-se, incrementaria o número de visitantes futuros para a cidade, porém não houve variação significativa no número de turistas estrangeiros pós-olimpíadas. Os jogos olímpicos de Atenas orçados inicialmente em USD 1,5 bilhão custaram dez vezes mais ao governo grego. Em Portugal, que construiu 10 estádios de futebol para sediar a Eurocopa de 2004, Augusto Mateus, ex-ministro da Economia daquele país, reportando-se à teria geral do emprego, do lucro e da moeda de John M. Keynes argumentou que “a coisa mais sensata a fazer com muitos destes edifícios seria derrubá-los e começar de novo” (BBC, 2010). A estratégia econômica dos megaeventos, ao contrário do pode parecer, revela similaridades com a estratégia de grandes projetos urbanos seja na: a) a atração de investimentos; b) a alavancagem do turismo; c) as ações urbanas pontuais e d) o acionamento das parcerias público-privadas. E, novamente retornamos a nossa afirmação inicial de que os aspectos econômicos se sobressaem na decisão das administrações públicas em sediar megaeventos esportivos. Portanto, megaeventos são percebidos

como

uma

estratégia

deliberada

de

crescimento

econômico e social, calcada num arcabouço teórico que sustenta que a concentração de investimentos nas cidades produzirá efeitos de transbordamento para o restante do país. Além dos aspectos relacionados a grandes projetos estruturais urbanos, as administrações públicas esperam que os megaeventos esportivos nas cidades possa impulsionar uma nova economia, pautada na inovação, estirpe do capitalismo global da atualidade. Surge, dessa forma, a economia criativa, proposta na qual todas as cidades querem desenvolvê-la para se tornar cidades criativas.

3. ECONOMIA E CIDADE CRIATIVA, CARRO CHEFE DOS MEGAEVENTOS ESPORTIVOS 506

Dois aspectos vêm ganhando destaque nas análises sobre impactos e legados dos megaeventos esportivos: a promoção da economia criativa em uma cidade que se torna – ou tem que se tornar criativa quando hospeda um megaevento esportivo. O fomento a setores

econômicos

ligados

a

cultura,

inovação,

tecnologia

e

potencialização da criatividade da população das localidades sedes enquanto fonte de ativo econômico está no centro do debate sobre as externalidades positivas, que podem surgir a partir da realização desses eventos. São diversas as definições aos termos cidades criativas e economias criativas. Dentre várias, usaremos a conceptualização formulada por Reis (2010) na qual, uma cidade para ser criativa deve possuir traços essenciais tais como: Inovação: entendida como criatividade posta em prática, de maneira original e com vistas a alguns benefícios; As conexões: entre áreas da cidade (setores público, privado e sociedade civil), classes sociais (local regional e global) e entre passado, enquanto a própria identidade urbana, presente e futuro; Cultura; reconhecendo sua contribuição para a economia, qualidade de vida, a autoestima e a participação de quem compõe a cidade, bem como para a formação de um ambiente favorável a suscitar perspectivas alternativas (p: 2324).

Segundo definição da Secretaria de Economia Criativa, da cidade do Rio de Janeiro, uma economia criativa é definida a partir das dinâmicas culturais, sociais e econômicas construídas a partir do ciclo de

criação,

produção,

distribuição/circulação/difusão

e

consumo/fruição de bens e serviços oriundos dos setores criativos, caracterizados pela prevalência de sua dimensão simbólica. Os megaeventos, principalmente aqueles ligados ao setor cultural, possuem relação profunda com a economia criativa. A atração de pessoas para conhecer e assistir determinado tipo de 507

manifestação artístico-esportiva pode gerar divisas criativas (subjetivas e/ou lúdicas) à localidade promotora. Há uma série de questões envolve o real efeito dessas ações: a participação da comunidade local em todas as esferas de organização, principalmente na promoção da sua cultura é fundamental; como podemos colocar o evento a serviço da cidade, e não o contrário, ou, como fomentar a eclosão da criatividade urbana de forma a contribuir a amenizar problemas estruturais? Num ambiente em que as cidades estão se voltando cada vez mais às suas singularidades, diferenciais e sua identidade na tentativa de se autodenominarem criativas, qual a contribuição que tais eventos podem trazer? (REIS, 2010) O sucesso do evento deve ter como principal indicador o bem estar e o desenvolvimento na população local, traduzidos como impactos no momento da candidatura e preparação para receber o megaevento esportivo e legados futuros. David Harvey (1996) levanta algumas considerações sobre os reais resultados desses projetos frente aos custos exigidos. O autor argumenta que uma das facetas do empresariamento urbano é a preparação para se candidatar aos megaeventos esportivos. O autor explica que esse empresariamento tem como principal característica a parceria público privado, que foca sua direção no sentido dos investimentos e crescimento econômico, ligados aos empreendimentos imobiliários pontuais e especulativos: Financiamentos a crédito de shopping centers, estádios esportivos e outras facetas do consumo conspícuo constituem projetos de alto risco que podem facilmente falir em maus tempos e, desta maneira, agravar os problemas de superacumulação e do superinvestimento para os quais tende facilmente o capitalismo (p: 60).

Ao analisar a proposição acima, pode-se entender com mais clareza os problemas que algumas cidades que sediaram eventos desse porte estão passando. Um exemplo é Atenas, sede das olimpíadas de verão de 2004 e que hoje se encontra em profunda crise em virtude,

508

dentre

outras

razões,

do

superendividamento

público

fruto

da

construção da infraestrutura olímpica. De acordo com matérias jornalísticas (OLIVEIRA, 2012) e relatos de gregos, a infraestrutura esportiva construída em Atenas não foi bem utilizada tanto no sentido econômico quanto social, e, no momento seguinte ao evento, têm-se verdadeiros elefantes brancos decadentes, devido ao elevado custo de manutenção dessas infraestruturas e da pouca possibilidade de uso como arenas multiuso ou de uso para o fim específico ao qual estas arenas foram criadas. Os exemplos das últimas sedes de megaeventos parecem seguir a trajetória de que os “legados” econômicos não se confirmam após a realização desses eventos. Reis (2010) destaca que em Londres, sede das últimas olimpíadas de verão e celeiro de políticas públicas na área da economia criativa, o discurso do comitê organizador não foi acompanhado pelas ações na preparação dos jogos. A autora afirma que durante o início das preparações houve um descompasso entre os gestores da área cultural da cidade e o comitê organizador da olimpíada. Além disso, o orçamento inicialmente divulgado a ser gasto na área cultural e criativa como parte da preparação das olimpíadas foi reduzido quase pela metade. Quanto a última Copa do Mundo de futebol na África do Sul, a autora destaca que a falta de preocupação em entender a cultura como eixo de transformação urbana e a preferencia pela dinamização do setor imobiliário e de construção civil prejudicou sobremaneira os legados daqueles jogos. A venda de cidades enquanto receptáculo de atividades depende da criação de um imaginário urbano atraente (SEIXAS, 2010; HARVEY, 1996). É nesse sentido que se encaixa o discurso de cidade criativa, enquanto estratégia de criação de uma ideologia para criar um consenso e assim, a aprovação da população em apoiar determinado projeto, embora o projeto não se alinhe com os interesses sociais e cidadãos.

509

No entanto, há impactos e legados para além da imagética de uma localidade, não relacionados com os incrementos nas atividades econômicas e que se relacionam a como as pessoas sentem os efeitos dos megaeventos na sua localidade. A próxima secção apresenta um caso no qual o discurso oficial se distancia das demandas das pessoas, dos que vivem na cidade.

4. IMPACTOS E LEGADOS DA COPA DE 2014 NA CIDADE DE NATAL/RN Em um interessante estudo que observa os impactos econômicos esperados a partir dos jogos olímpicos de verão de 2016, na cidade do Rio de Janeiro, Marcelo Proni (2010) saliente que os megaeventos podem ser um catalisador de investimentos em infraestrutura urbana e ajudar a dinamizar o turismo local, gerando emprego e renda. Reconhecemos a importância de um megaevento esportivo para uma cidade que, se manejados de acordo com as demandas sociais, as atividades econômicas podem aportar benefícios sociais de diversa ordem. A cidade de Natal, capital do Rio Grande do Norte, foi escolhida em 2009 para ser uma das cidades sede da Copa do Mundo de Futebol de 2014 e irá receber quatro partidas daquele evento. A administração local (Prefeitura e Governo do Estado) vem promovendo uma série de modificações na cidade, projetos que para os seus gestores são necessários e que estão no rol dos legados da copa. Em abril de 2012 estivemos na Rua Compositor José Luiz, localidade que terá 14 casas desapropriadas para que se cumpra um dos

projetos

de

mobilidade

urbana

proposto

pela

Prefeitura.

Mantivemos conversas informais com os moradores das casas que serão desapropriadas e decidimos por apresentar as informações colhidas nessas conversas de forma indireta, visto que esse contato aconteceu por acaso e sem levar em consideração os postulados exigidos a um 510

trabalho acadêmico. A ausência de uma metodologia de manuais de metodologia científica ou uma metodologia do acaso, que pensamos estar relacionada a surpresas do cotidiano, em nada compromete as considerações apresentadas a seguir. A partir de relatos dos moradores da Rua Compositor José Luiz, informações

veiculadas

na

imprensa,

documentos

oficiais

e

posicionamento de entidades sociais que se dedicam a questões da Copa em Natal, tecemos considerações sobre os impactos e legados do megaevento esportivo, para além dos impactos e legados difundidos e esperados pela administração pública local (vinculados a modificações na dinâmica econômica, construção de uma arena esportiva e câmbios na infraestrutura viária da cidade). 4.1 As desapropriações no bairro das Quintas Como uma das sedes da copa do mundo de futebol em 2014, evento promovido pela Federação Internacional de Futebol Associados (FIFA), a cidade de Natal, passa por importantes mudanças estruturais no seu tramo urbano. O símbolo máximo dos legados do megaevento na capital potiguar será o estádio multiuso Arena das Dunas, a ser construído em uma parceria público-privada e orçado inicialmente em R$ 420 milhões (SECOPA, 2012). Outra importante obra que entra no rol dos legados da copa, anunciados exaustivamente pelo Governo do Estado do Rio Grande do Norte e Prefeitura de Natal, são as obras de mobilidade urbana, com custo estimado de R$ 150 milhões e contando com verba do Governo Federal (SEJUV, 2012). Para a concretude do amplo projeto de mobilidade urbana proposto

pela

administração

local

está

sendo

requerida

a

desapropriação de 429 residências, sendo 269 residências, 119 estabelecimentos comercias e 41 terrenos baldios (particulares e públicos)

(COMITEPOPULARDACOPA,

2012).

A

maioria

destas

desapropriações ocorrerá nos bairros das Quintas, Nordeste e Bom 511

Pastor, todos na zona oeste da cidade. Dados da Prefeitura de Natal mostram que ano de 2009 a faixa de renda média de 80% da população residente naquelas localidades foi de até dois salários mínimos, o que caracteriza estes bairros como de comunidade de baixa renda. Uma das ruas afetadas pelo projeto de mobilidade é a Compositor José Luiz, no bairro das Quintas. Das 22 casas daquela localidade, 14 serão demolidas para que sejam alargadas outras ruas adjacentes de forma a desafogar o trânsito no local. A justificativa oficial é que como a rua se localiza na proximidade do corredor de acesso à zona norte de Natal, portanto o alargamento de vias próximas pode facilitar o fluxo de veículos para aquela zona da cidade, onde os engarrafamentos são uma constate. A figura 1 abaixo mostra em destaque a localização da Rua Compositor José Luiz, no bairro das Quintas. Também aparece o lote do conjunto de 14 casas que serão removidas para as obras de ampliação da vias adjacentes que se conectarão a Avenida Felizardo Firmino Moura, via de acesso para a zona norte de Natal Figura 1: Rua Compositor José Luiz, bairro das Quintas e adjacências (2012)

Fonte: Adaptado de Google Earth por Sara Raquel Fernandes Queiroz de Medeiros

512

Os moradores da Rua Compositor José Luiz contestam a justificativa dos técnicos da Prefeitura de que o desaparecimento de parte daquela rua irá melhorar o fluxo de veículos para a zona norte. Os moradores se referenciam nos estudos produzidos pelo Comitê Popular da Copa em Natal (entidade formada por setores da sociedade e que debate as implicações da Copa em Natal e no estado), em parceira com a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Conforme estudos, o alargamento das vias naquela área não resolverá a questão da mobilidade urbana no local. O bairro das Quintas é um corredor dos demais bairros de Natal para a zona norte e, portanto,

os

congestionamentos

verificados

naquela

localidade

ocorrem devido o estreitamento das vias na zona norte. Os impactos esperados pela administração pública local com a realização da Copa em Natal se chocam com o que chamamos de impactos nefastos do megaevento na cidade. A falta de informação sobre como ocorrerá as desapropriações causa revolta, indignação e medos as pessoas que vivem naquela rua. Essa falta de informação implica num artifício usado pelos órgãos públicos com o objetivo de enfraquecer o movimento contra as desapropriações. Os moradores das residências que serão desapropriadas na cidade em conjunto com outros movimentos sociais criaram a Associação Potiguar dos Atingidos pelas Obras da Copa (APAC). A APAC é um canal de comunicação entre aqueles sujeitos e a sociedade potiguar e desvela a forma como as desapropriações vêm sendo tratada pelos gestores públicos de Natal, que no entendimento dos participantes da APAC ocorre de forma impositiva e unilateral e sem diálogo (APAC, 2012). Os moradores da Rua Compositor José Luiz relatam que tiveram dois contatos com representantes da Prefeitura, o primeiro quando houve a medição geométrica do local e o segundo para que fossem informados oficialmente que aquelas casas seriam desapropriadas. Conforme revelado, os sujeitos afirmam que a desapropriação ensejada pela Prefeitura de Natal não leva em consideração a suas demandas. 513

Naquela localidade há pessoas que residem há pelo menos 40 anos e sua relação e pertinência com o local é um aspecto significante para suas vidas. Entretanto, a Prefeitura sequer lhes deu a possibilidade de transferência para uma área próxima ao local da desapropriação, desejo mencionado pelos moradores. Nesse sentido, questionamos a forma como a Prefeitura de Natal utiliza a justificativa da função social da propriedade, principio contido no Estatuto das Cidades, para referendar a desapropriação dos 429 estabelecimentos. Será que a ditadura da maioria deve se sobrepor a minoria de uma rua até pouco tempo escondida entre centenas de outras? Há, portanto, uma indefinição do que seja efetivamente a função social da propriedade. Obvio que uma mobilidade urbana que facilite o acesso à zona norte da cidade é solicitada pela população da cidade, porém o questionamento que se faz é se não existem possibilidades outras de se melhorar o acesso àquela parte da cidade? É perceptível e histórico a ineficiência do sistema de transporte público de Natal e mais ainda naquela porção da cidade, o que incentiva o uso do automóvel particular e logo a cidade colapsa por não ter possibilidade de efetivar um desenvolvimento urbano na mesma proporção da quantidade de automóveis em circulação. No âmbito econômico, a proposta oficial de pagamento pelas casas a ser desapropriadas na Rua Compositor José Luiz é inferior a 50% do seu atual valor de mercado. Uma das moradoras questiona a proposta da Prefeitura, que cobra seus impostos pelo valor de mercado e quer pagar pelas desapropriações pelo valor venal (que leva em conta o valor do metro quadrado do local. Assim

sendo,

os

impactos

e

legados

esperados

pela

administração pública local estão se concretizando, e, conforme apresentado nas primeiras secções desse artigo, os gestores públicos possuem uma proposta objetiva de vender a cidade ao capital. Criar infraestrutura urbana vislumbrada nas mega-construções, apropriar o 514

território de forma a que o capital esteja tentado a investir no local. Todavia, casos como o que ocorre na Rua Compositor José Luiz escancaram os impactos e legados nefastos para a população dessa escolha forma de recebimento dos megaeventos na cidade.

5. CONCLUSÕES E/OU CONSIDERAÇÕES FINAIS O esporte cada vez mais vai perdendo sua essência, qual seja, trabalhar os aspectos lúdicos dos seus competidores. Na sociedade global, os megaeventos surgem travestidos de intensas disputas econômicas e o esporte, transfigurado de espetáculo, muda sua forma e dimensão. Os estados e gestores públicos, refém dos negócios do capital, se adequam as exigências e demandas do capital que quer investir

em

megaeventos

por

haver

identificado

uma

ótima

Natal

tratando

oportunidade de retorno aos investimentos. A

forma

como

a

Prefeitura

de

vem

as

desapropriações na Rua Compositor José Luiz é um caso de em que o direito à cidade da população que reside naquela área não vem se realizando na sua plenitude. As observâncias contratuais firmadas entre gestores públicos locais e empreiteiras causa a retirada compulsória daquela comunidade de seu lugar de origem, iniciando o processo de “expulsão branca”, promovido e patrocinado pelo poder público local. A copa em Natal, que deveria ser uma possibilidade de desenvolvimento da economia criativa e maior possibilidade de justiça social, ocorre nos moldes da economia tradicional, ou seja, forte investimento público em infraestrutura de construção civil e a população é relegada ao segundo plano, estando na periferia das decisões sobre os rumos das ações da copa na cidade

515

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517

DENÚNCIAS AMBIENTAIS REGISTRADAS NA CIDADE DE MOSSORÓ/RN NO PERÍODO DE 2011 A 2012 Francisca Mariana Rufino de Oliveira 179 Ligia Valleria de Oliveira Silva180 Bergson Henrique Nunes Bezerra 181 Geovânia da Silva Toscano (Orientadora) 182 Resumo: No contexto contemporâneo de buscas de soluções para as questões e conflitos ambientais, identificamos como a questão ambiental ganhou importância não só nos ordenamentos jurídicos e políticos, mas também no cotidiano da população que aos poucos vem tornando-se capaz de reconhecer a necessidade de tutela do bem ambiental. Nosso foco neste trabalho é caracterizar as denúncias de crimes ambientais registradas na Gerência de Gestão Ambiental órgão ligado a Prefeitura de Mossoró, estado do Rio Grande do Norte. Os resultados mostram um grupo populacional local com capacidade de reconhecer os danos que a ação de terceiros provocam no ambiente e concebem o reflexo disto em sua qualidade de vida. Entendemos que a ótica do denunciante trata-se de um indicativo bastante confiável para a elaboração de estratégias de ações futuras por parte do poder público municipal desde que gestores ambientais e sociedade civil organizada concebam a denúncia como uma ação em benefício de uma vida coletiva. Palavras-chave: Denúncias ambientais, fiscalização ambiental, Mossoró- RN

INTRODUÇÃO Os cenários atuais de conflitos e de escassez de recursos naturais, a natureza deixou de ser percebida como fonte inesgotável de recursos, fazendo surgir uma nova consciência ambiental preocupada 179

Graduada em Ciências Biológicas (UFC), Especialista em Gestão Ambiental, Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Conservação (UFERSA). Servidora na Prefeitura Municipal de Mossoró onde é fiscal de controle ambiental e urbanístico. [email protected]. 180 Graduada em Ciências Sociais (UERN), Mestrando do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH/UERN). Socióloga e Fiscal ambiental da Prefeitura Municipal de Mossoró. [email protected]. 181 Estudantes de Especialização em andamento em Geografia e Gestão Ambiental (FIP Mossoró) [email protected]. 182 Graduada em Ciências Sociais (UFRN), Mestra em Ciências Sociais (UFRN) e Doutora em Ciências Sociais (UFRN). Professora Adjunta (UFPB), Professora do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH/UERN). Líder do Grupo de Pesquisa Ciências Socais, Cultura e Educação (UFPB) e Pesquisadora dos Seguintes Grupos: Grupo Cultura, Política e Educação (UFRN), Grupo de Estudo em Ensino Superior e Sociedade (UFPB), Grupo de Estudos e Pesquisa do Pensamento Complexo (UERN). [email protected].

518

com o esgotamento e com a degradação ambiental. O marco dessa nova visão remete aos anos 1972, ano da I Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano em Estocolmo na Suécia. Esta foi a primeira grande reunião organizada pelas Nações Unidas a concentrar-se sobre questões de meio ambiente. A partir de então foi sendo gradualmente construída uma visão para a criação de um novo ordenamento das normas jurídicas com leis que regulam a relação do homem com a natureza e seus recursos naturais, baseadas nos princípios da prevenção e do equilíbrio. O surgimento dessas novas ordenações indica um cenário de racionalização da questão ambiental tanto por parte do poder público (com a criação e cumprimento de políticas ambientais) como da sociedade civil (cumprimento de normas, sensibilização e denuncia de irregularidades). Este trabalho está inserido no contexto de reconhecimento, identificação e compreensão das ações causadoras da degradação ambiental reconhecidas pela da população que se pronuncia através das denuncias de infrações ambientais. O objetivo central é o levantamento, a caracterização e o mapeamento das denúncias de crimes ambientais levados a Gerencia de Gestão Ambiental de Mossoró- RN, no período estudado (agosto de 2011 a agosto de 2012), como forma de conhecer os danos ambientais que afetam a qualidade de vida da população .

A FISCALIZAÇÃO AMBIENTAL NO MUNICÍPIO DE MOSSORÓ RN

A Constituição Federal de 1988 foi um marco crucial para a proteção

jurídica

ambiental.

Nela

postularam-se

as

primeiras

concepções das obrigações da sociedade e do Estado brasileiro para com o meio ambiente e proporcionou, ao legislador, instrumentos e diretrizes necessários à criação de normas futuras na busca da proteção 519

ambiental. Observa-se então a mudança no tratamento do meio ambiente, sua proteção agora está acima de qualquer interesse particular de qualquer espécie. O artigo 225 da Constituição Federal de 1988 estabelece o legítimo direito e dever referente ao meio ambiente. Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. (BRASIL, 2012)

Frattolillo e Lima (2010) ressaltam a relevância que este artigo traz ao afirmar que o objeto do direito não é um meio ambiente qualquer, mas sim um meio ambiente “ecologicamente equilibrado”, cujo significado requer a conservação e a salvaguarda dos recursos naturais. Observa-se que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é elemento essencial à sadia qualidade de vida e, portanto, relacionado ao principio da dignidade da pessoa humana e o direito fundamental à vida. A promulgação da Lei Federal nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, que institui uma política nacional do meio ambiente, estabelecendo o Sistema

Nacional

do

Meio

Ambiente

(SISNAMA),

determina

a

articulação entre as esferas dos poder público de modo a fazer cumprir os preceitos evocados pela Constituição no artigo 225. A função fiscalizadora e defensora exercida pelos órgãos que fazem parte do SISNAMA desempenha importante papel no controle das ações danosas e das atividades econômicas que apresentam grande potencial poluidor e degradador ao meio ambiente. Estes órgãos e entidades também promovem a colaboração e participação da população e da comunidade científica na política de conservação e proteção ao meio ambiente. Diversos são os órgãos que contribuem na fiscalização e na aplicação das leis ambientais e que participam diretamente na responsabilização

criminal

ou

administrativa 520

dos

infratores

que

degradam e poluem o meio ambiente. Destes que atuam na área de estudo, podemos destacar: o Instituto do Meio ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA; o Instituto do Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente - IDEMA; a Polícia Militar Ambiental a Gerencia Executiva

de

Gestão

Ambiental-

GGA

e

o

Ministério

Público.

Adicionalmente a lei nº. 9.605/98 e outras legislações aplicáveis a nível estadual e federal os agentes de fiscalização da Gerencia de Gestão Ambiental utilizam a lei municipal n° 026/2008 – Código Municipal do Meio Ambiente para a responsabilização administrativa dos autuados. A atuação da Gerencia de Gestão Ambiental na cidade de Mossoró/RN está circunscrita na atuação direta dos Fiscais de Controle Ambiental e Urbanísticos cujas atribuições estão elencadas na Lei Municipal 2.567 de 14 de dezembro de 2009, entre elas: a) Promover a fiscalização das atividades licenciadas ou em processo de licenciamento e desenvolver tarefas de controle e de monitoramento ambiental e urbanístico; b) Promover a apuração de denúncias e exercer fiscalização sistemática no município e exigir as medidas necessárias para a correção das irregularidades; (...) l) Exercer o poder de polícia ambiental e urbanística e em especial aplicar as sanções previstas nas Leis Complementares n. 26, de 08 de dezembro de 2008 (Código Municipal de Meio Ambiente) e n. 12, de 11 de dezembro de 2006 (Plano Diretor de Mossoró), aplicando subsidiariamente as leis estaduais e federais afetas às questões ambientais e urbanísticas. (MOSSORÓ, 2009)

Haja vista as suas funções e atribuições, fica claro a importância da atuação da Fiscalização Municipal para proteção ambiental no município de Mossoró. Sem descartar a ação das outras entidades diretamente ligadas a questão ambiental. O principal instrumento de ação da fiscalização é por meio do recebimento das denúncias que posteriormente são averiguadas e caso tenham procedência são apurados por rito próprio estabelecido pelo Código Municipal de Meio Ambiente. As demandas vêm por parte da população ou encaminhadas por outras vias como: Ministério Público, Vigilância Sanitária, IDEMA , IBAMA, entre outros. 521

A DENÚNCIA AMBIENTAL Lemos (2005) afirma que a denúncia no direito brasileiro é um termo que define e especifica a peça inicial proposta exclusivamente pelo Ministério Público (MP) nas ações criminais. A autora informa ainda que: Frequentemente, o termo é substituído por “notícia-crime” para significar o “ato verbal ou escrito pelo qual alguém leva ao conhecimento da autoridade competente um fato” (Houaiss, 2003), ou “notícia de fato danoso”, que não caracteriza um crime, mas apenas uma infração administrativa. Da mesma forma, a expressão “queixa”, do ponto de vista jurídico, indica o documento inicial das ações penais privadas. (LEMOS, 2005, p12)

Ao longo desse trabalho a denominação denúncia será constantemente utilizada em detrimento às outras possíveis variações, uma vez que as informações recebidas pela Gerencia de Gestão Ambiental nem sempre se referem a um caso verídico ou puderam ser comprovadas. Ainda que mesmo aferidas como verdadeiras as algumas ações ainda não foram julgadas ainda estando em processo de análise ou aguardando parecer de julgamento ou recurso imposto. Silva (2002 apud BARRETO & BRITO, 2005) explica que “a responsabilidade

administrativa

resulta

de

infração

às

normas

administrativas, sujeitando-se o infrator a uma sanção de natureza também administrativa”. Ao contrário das responsabilidades civil e criminal que são impostas pelo Poder Judiciário, a administrativa é aplicada pelos órgãos da Administração, direta ou indireta dos entes federativos, consistindo na concretização do poder de polícia delegado à Administração Pública. Entretanto, a previsão da sanção não constitui poder discricionário da Administração Pública, já que a Constituição vigente 522

assegura que apenas lei poderá impor sanções referentes à liberdade do indivíduo (BARRETO E BRITO, 2005). As sanções administrativas por dano ambiental estão previstas no Capítulo VI do art.70 da Lei 9.605, onde define infração administrativa ambiental como “toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente”. A regulamentação desse capítulo é feita pelo Decreto nº 6.514/2008. O seguinte esquema exemplifica as partes importantes acerca da denúncia pública no qual intervém quatro tipos de protagonistas: o denunciante (que efetivamente noticia o fato danoso), a vítima (a favor de quem a denúncia é feita), o perseguidor (ou denunciado, suposto autor da injustiça ou dano e contra quem a denúncia é feita) e o juiz (ou receptor, a quem é dirigida a denúncia). A partir deste esquema, os autores relacionaram o êxito ou fracasso da denúncia – que é medido pela capacidade de suscitar uma mobilização ou simplesmente de ser aceita como legítima – à noção de “grandeza”, da qual emerge a seguinte regra gramatical: para que a queixa seja julgada válida é necessário que os quatro atuantes sejam de grandezas equivalentes. (DE BLIC, 2000 apud LEMOS, 2005). Comparativamente ao esquema apresentado apenas o papel do denunciante sofre alteração ao inseri-lo na realidade da fiscalização ambiental de Mossoró. Pois as denúncias são em sua maioria anônimas, exceto as de autoria de órgãos como Vigilância Sanitária, IDEMA ou Ministério Público excluindo quase totalmente a representatividade do denunciante para preservação da integridade da pessoa. No âmbito desse estudo proposto não chegaremos a detalhar tais protagonistas, uma vez que iremos nos concentrar em analisar os tipo de denuncias e a distribuição pelo município.

523

METODOLOGIA Realizamos o estudos bibliográficos sobre questão ambiental e sua problemática na vida da população, recorremos aos livros de registros existentes na Gerência de Gestão Ambiental, autoridade ambiental no âmbito municipal. De posse do levantamento das denuncias ambientais quantificamos e classificamos quanto ao tipo de infração, datas das denuncias, localização e procedência do ato. O período estipulado para a pesquisa representa o primeiro ano da efetiva fiscalização ambiental do município com a nomeação dos fiscais de controle ambiental. Fato importante no processo de construção de um setor de fiscalização ambiental atuante em esfera municipal inserido no contexto do Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA). De posse dos dados de localização das denúncias foi possível gerar um mapa ilustrativo sobre a distribuição dessas na área de abrangência municipal.

RESULTADOS E DISCUSSÕES Foram registradas 423 denúncias pelo setor de fiscalização ambiental entre os meses de agosto de 2011 a julho de 2012. As infrações denunciadas foram organizadas em sete grupos: disposição de resíduos, lançamento de efluentes, danos contra a flora, ausência de licenciamento ambiental, queimadas, poluição sonora e poluição atmosférica. Foram identificados 41 registros que não eram da competência da Gerência da Gestão Ambiental como, por exemplo, as questões referentes a posturas dos domicílios ou empreendimentos (ausência de alvará, ocupação do passeio público, etc) ou a criação e abate de animais domésticos que está na alçada do órgão estadual de defesa animal. Essas denúncias ainda assim foram registradas pela fiscalização ambiental e posteriormente foram encaminhadas para os 524

órgãos competentes. Esses registros foram identificados e ilustrados na tabela 01 juntamente com as denúncias de competência do setor em estudo. Tabela 01: Registros de denúncias ambientais do município de Mossoró/RN

Fonte: Relatório de atividades da Gerencia de Gestão Ambiental, setor Fiscalização Ambiental.

No ano de 2011, foram contabilizadas 159 denúncias no município de Mossoró. Quanto à tipificação as infrações que tiveram maior número foram as referentes a danos contra a flora e poluição sonora, ambos com 28 casos seguidos por disposição de resíduos (22 denúncias). Já em 2012 foram registradas 264 reclamações, onde se destacam as relativas à ausência de licenciamento (60 casos), poluição atmosférica (48 ocorrências) e danos contra a flora (45 denúncias). Na figura 01 segue o quadro representativo do percentual de ocorrência de cada tipo de denúncia. Podemos observar nesse quadro que as quantidades quando avaliadas em relação a todo o período de 525

estudo, são razoavelmente equivalentes. Diferenciam-se alguns valores dentre os quais a quantidade de queimadas e a poluição atmosférica que apresentaram baixa representatividade em relação às aquelas referentes a danos contra a flora e a poluição sonora que se mostraram maior em relação ao número total das denúncias.

Figura 01: Representatividade dos tipos de denúncias durante o período.

Fonte: Relatório de atividades da Gerencia de Gestão Ambiental, setor Fiscalização Ambiental.

A categoria de denúncia “danos contra a flora” reflete duas situações distintas de infrações: o primeiro tipo corresponde a infração de abate ou remoção de árvore (10 casos em 2011 e 08 em 2012), caracterizado no Código Municipal de Meio Ambiente, Lei 026/2008 como infração de natureza grave; o segundo tipo é a poda drástica ou a poda não autorizada pelo órgão competente (14 casos em 2011 e 36 em 2012) caracterizado pelo mesmo Código com uma infração de natureza leve. Em ambos os casos a infração ocorrida independente do tipo de indivíduo que sofreu o dano (nativo ou exótico), o infrator 526

sempre será penalizado. Porém durante o julgamento do ato pela autoridade competente é que serão avaliados estes aspectos para a aplicação da pena. Adicionalmente, foram realizadas 05 vistorias para analisar casos como risco de queda de galhos ou orientação sobre maus tratos de plantas, que apesar de não se caracterizar como uma incumbência direta do setor foi aberta exceções para o atendimento da população. A quantidade de casos de poluição sonora registrados durante o período está associada a atividades de bares e casas noturnas e buffets além de pequenos empreendimentos que funcionam durante o dia como oficinas metalúrgicas, padarias, serrarias. Com a jornada de trabalho da Gerência é restrito ao horário comercial foram realizadas vistorias programadas à noite para suprir as demandas principalmente das denúncias de funcionamento de Buffets. Fato este que gerou uma grande operação para promover o licenciamento ambiental do setor. Essa operação envolveu a Polícia Ambiental, Ministério Público e Gerencia da Gestão Ambiental, deflagrada devido a grande demanda de denúncias e ações contra esses setores decorrentes dos incômodos causados. Observamos que a quantidade de registro de denúncias desse tipo de infração está também associada aos casos de reclamação por poluição atmosférica, onde as principais responsáveis são as padarias. Fato que culminou com outra operação para promover a regularização desse setor. A realização dessas operações para a regularização de setoreschave é explicativo para o grande aumento da quantidade de denúncias referentes à ausência de licenciamento ambiental que observamos em 2012. Saltando de 12 casos em 2011 para 60 no mesmo período em 2012. Uma vez que houve muita divulgação por parte da imprensa sobre o esforço de regularização dos empresários além de algumas ações de embargo e interdição realizados pela GGA.

527

Assim

sendo,

tanto

a

população

como

os

próprios

empreendedores dos setores em questão (padarias, buffets e lava jatos) se encarregaram de realizar denúncias sobre outros profissionais sem licença ambiental. O número de registros de queimadas no território mossoroense se mostra estável, pois a primeira reação da população é contactar os bombeiros. E infelizmente não está instalada uma rede de informação entre essa corporação e a gerencia para poder promover a apuração desse dano ambiental no setor diretamente competente. Quanto à distribuição dos autores dessas denúncias, foi possível perceber que elas tiveram distribuição pouco homogênea. Embora todos os bairros reconhecidos da zona urbana foram alvo de denúncias a discrepância foi significativa: enquanto dois bairros tiveram apenas um registro durante todo o período (Bom Jesus e Lagoa do Mato). Outros bairros como Centro e abolição que figuraram como primeiro e segundo colocados em número de denúncias contabilizaram juntas 114 denúncias. Podemos observar que os bairros de maiores registro são os que possuem uma alta taxa de ocupação, mesmo que seja flutuante como é o caso do centro da cidade. Ficou muito claro que embora existam bairros de grandes extensões, as denuncias mostraram um padrão de maior concentração em áreas próximas ao centro da cidade, com exceção de três bairros mais afastados como Abolição, Santo Antonio e Alto de são Manuel. A Figura 02 representa um quadro de distribuição dos bairros da cidade de Mossoró plotados sobre uma imagem de satélite. As denúncias foram indicadas nas áreas que correspondem os bairros informados, não levando em consideração à localização exata. Embora não constem nas marcações do mapa a zona rural registrou 5 casos durante o ano de 2011 (2 denúncias de abate de árvore, 2 denúncias

sobre

ausências

de

licenciamento

1

de

poluição

atmosférica) e 7 casos durante o ano de 2012 (3 casos e ausência de

528

licenciamento, 3 casos de poluição atmosférica e 1 caso de abate de árvores). Figura 02 – Distribuição esquemática das denúncias registradas nos bairros do município de Mossoró.

Em nosso levantamento não identificamos registros de casos de danos contra a fauna silvestre como o tráfico de animais ou aparecimento de fauna, porque esta é uma competência do órgão federal (IBAMA) e pode ser compartilhada como outros entes públicos como os Bombeiros, Polícia Ambiental. Estas instituições possuem estrutura que os permite realizar a apreensão de animais e a manutenção até a liberação na natureza. Em todo caso, nesse tipo de situação a população já se encarrega de ligar para os órgãos competentes, ocasionando em poucas ligações para a Gerência de Gestão Ambiental que prontamente remete para as entidades qualificadas. Estudos similares realizados em Curitiba, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Espírito Santo revelaram padrões semelhantes no perfil das denúncias. Porém com a ressalva de que alguns desses estudos foram conduzidos através de pesquisas de litígios cíveis e penais, com base em ações civis públicas movidas em Ministério Público Federal.

529

Em Curitiba a maior ocorrência foi poluição sonora (31%), comparando-se com a cidade do Rio de Janeiro, segundo a Secretaria de Meio Ambiente da Cidade, em 1998 foram registrados 66 % de denúncias relacionadas a agressões sonoras, do total de reclamações recebidas (ARAÚJO, 2001). Em Belo Horizonte, os incômodos registrados pela perturbação sonora constituem-se na maioria das queixas junto à Secretaria Municipal de Meio Ambiente, com 53 % do total das reclamações protocoladas. Nota-se a predominância de réus como bares, restaurantes e locais de música ao vivo e de atividades semiindustriais, localizadas nas áreas industriais (ALVARES e SOUZA, 1992). Já na Região Metropolitana da Grande Vitória, destacam-se os crimes contra a Flora com 47% e os crimes contra a Fauna com 41%, para só em seguida aparecerem os crimes de Poluição com 11%, e os crimes contra o Ordenamento Urbano com 1% (FRATTOLILLO E LIMA 2010) O intenso êxodo rural e a carência de empregos nas grandes cidades trouxeram conseqüências socioambientais indesejadas como: crescimento da economia informal e de subempregos, desemprego e a segregação social traduzida na periferização da população mais pobre, decorrente da falta de moradias e de infra-estrutura urbana, expansão de favelas, ocupação irregular e invasões em áreas críticas (mananciais, p.e.), poluição e degradação ambiental. Essa realidade é compartilhada por cidades grandes e médias em crescimento acelerado como Mossoró, que do alto dos seus 254.032 habitantes (IGBE, 2010). O preço desse “crescimento” quem paga geralmente são as camadas mais pobres da população, que ficam sem os benefícios socioambientais associados ao crescimento urbano (LIMA, 2001). Assim, os problemas ambientais não atingem igualmente todo o espaço na cidade, mas principalmente os espaços físicos de ocupação das classes sociais menos favorecidas (ARAÚJO, 2001). Essa distribuição desigual está associada à desvalorização fundiária, pela proximidade 530

dos leitos dos rios, de indústrias, ou seja, de áreas consideradas suscetíveis a impactos ambientais como inundações, desmoronamentos e erosão. Acserald (2004) afirma que a questão ambiental é inseparável da sociedade, uma vez que todos os atos e ações sociais interagem com o meio ambiente, e nele influencia, seja de forma positiva ou negativa. Daí dá-se o fato da natureza, com seus recursos naturais, estar no centro de grandes conflitos sociais em todo o mundo. Com a maior conscientização da população, os movimentos sociais atuantes, com as conquistas de direitos e o avanço da democracia, deu força à sociedade civil que passou a exigir do poder público maior respaldo e pertinência jurídica para mitigação desses conflitos. Isso sucinta um mergulho aprofundado nas engrenagens que culminaram com a realização da denúncia apresenta-nos material rico em questões abertas à ponderação. São questões que diz respeito à transcendência do caráter particular para a esfera coletiva na caracterização do dano que passa a ser percebido e formulado não como injúria pessoal (mesmo que inclua um prejuízo pessoal), mas como dano ambiental e, portanto, relativo a um bem coletivo de uso comum (LEMOS 2005). Rodrigues (2002) traz a seguinte elucidação: O princípio da participação constitui um dos postulados fundamentais do Direito Ambiental. Embora ainda pouco difundido em nosso país, a verdade é que tal postulado se apresenta na atualidade como sendo uma das principais armas, senão a mais eficiente e promissora, na luta por um ambiente ecologicamente equilibrado.

O exercício da participação constitui um princípio cujas diretrizes atuam esperando um resultado em longo prazo, porém com a sólida vantagem de agir diretamente sobre um sério problema ambiental: a consciência ambiental. Isso faz desse postulado algo extremamente 531

sólido e com perspectivas altamente promissoras em relação ao meio ambiente. Nos mecanismos de participação os sujeitos em suas demandas locais passam a interagir a sociedade, criam, recriam, constroem vínculos, dialogam e sentem-se útil a partir de sua ação, respaldada na defesa de um bem público. (TOSCANO, 2006). Destarte percebemos o quanto os aspectos naturais, sociais, culturais, econômico, religiosos, entre outros, influenciam na percepção e na concepção de meio ambiente, como também na forma de interação das pessoas com o meio e seus recursos (SANTOS 1998). Elevando a concepção da pessoa comum a ser um denunciante por crer que ao dar publicidade a um ato errôneo estará contribuindo para a melhoria da qualidade de vida de um grupo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O aumento dos registros de denúncias ambientais procedentes durante o período de agosto de 2011 a agosto de 2012 reflete a participação progressiva da população na cidade de Mossoró/RN, tornando-se parte na construção de uma política ambiental local, avaliando deficiências e auxiliando na aplicabilidade de ferramentas no tocante a gestão ambiental. Consideramos que os resultados dessa nossa pesquisa, como a caracterização

das

denúncias

e

as

conseqüências

das

ações

degradadoras, são essenciais na busca de mecanismos e políticas públicas favoráveis a responsabilização e penalização dos infratores e criminosos ambientais naquela cidade. Observamos como as legislações ambientais, principalmente, a Lei de Crimes Ambientais e o Código Municipal do Meio Ambiente, bem como a atuação dos órgãos ambientais de proteção e de fiscalização, são importantes na política de tutela ambiental. A participação da 532

sociedade é de fundamental importância para a mudança de postura e de consciência perante a necessidade de preservação e proteção dos recursos naturais e do meio ambiente como um todo. Essas

ações

devem

se

afinar

e

ajustar-se

aos

modelos

econômicos, e vice versa, como forma de priorizarmos as riquezas naturais e culturais das nações, objetivando a preservação dos recursos necessários à vida na terra e um desenvolvimento socioambiental sustentável.

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Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, 2006.

535

A NORMATIZAÇÃO DO ESPAÇO/TERRITÓRIO COMO FERRAMENTA DE CONTROLE AMBIENTAL – UM ESTUDO DE CASO DOS BUFFETS DE MOSSORÓ/RN

Ligia Valleria de Oliveira Silva 183 Geovânia da Silva Toscano (Orientadora) 184

RESUMO: Este trabalho propõe o desafio de analisar como a normatização do espaço/território no cenário contemporâneo, contribui com a mitigação de conflitos de interesse público e privado, tendo como ferramenta o uso de políticas públicas aplicadas, no caso a fiscalização ambiental do município de Mossoró/RN. A relação com o meio ambiente é afetada, seja pelo fenômeno de ocupações irregulares do meio ou por questões ligadas à qualidade de vida da população. SANTOS (2004) considera que os espaços são estabelecidos com certas finalidades e que as “... normas são recriadas ao sabor das conjunturas localmente definidas”. (p.232). A ocupação do território e, sua normatização enquanto forma de estabelecer critérios de uso adequado, será o eixo norteador deste trabalho e, como objeto empírico será apresentado estudo de caso sobre a regularização ambiental das casas de festas – buffets – no município de Mossoró/RN. PALAVRAS CHAVE: Meio ambiente – Norma – Espaço/Território – Política Pública

INTRODUÇÃO As questões ambientais nas últimas décadas do século XX e primeira década do século XXI têm sido temas de relevantes debates nas esferas política, econômica, cultural, acadêmica e midiática. Isto demonstra a força do fenômeno ambiental na construção do debate público contemporâneo que envolve o cenário mundial, nacional, estadual e municipal.

183

Graduada em Ciências Sociais (UERN), Mestrando do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH/UERN). Socióloga e Fiscal ambiental da Prefeitura Municipal de Mossoró. [email protected]. 184 Graduada em Ciências Sociais (UFRN), Mestra em Ciências Sociais (UFRN) e Doutora em Ciências Sociais (UFRN). Professora Adjunta (UFPB), Professora do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH/UERN). Líder do Grupo de Pesquisa Ciências Socais, Cultura e Educação (UFPB) e Pesquisadora dos Seguintes Grupos: Grupo Cultura, Política e Educação (UFRN), Grupo de Estudo em Ensino Superior e Sociedade (UFPB), Grupo de Estudos e Pesquisa do Pensamento Complexo (UERN). [email protected].

536

A cidade de Mossoró/RN, localizada no nordeste brasileiro, com cerca de 260 mil habitantes (IBGE)

185

é uma cidade média que

vive o desafio de lhe dar com uma série de problemas sócios estruturais, tais como: o aumento na demanda por serviços de saúde, educação, moradia e segurança pública. Diante deste cenário de transformação urbana é perceptível o aumento da problemática ambiental nesta cidade. Diante do crescimento acelerado dos problemas ambientais, atrelados à falta de estrutura física, da ausência de uma educação ambiental e de políticas atuantes direcionadas para tais questões passamos a presenciar o surgimento e o aumento dos diversos conflitos sócio/ambientais/econômicos na cidade de Mossoró/RN. Esses conflitos passaram a desafiar o poder público a apresentar soluções cabíveis capazes de responder positivamente a todos os segmentos envolvidos. Como embasamento teórico para este artigo, será trabalhado alguns conceitos fundamentais sobre interdisciplinaridade que mostram o caminho percorrido pela ciência tradicional até o momento com a interação de outros saberes, onde se inclui a Geografia. E dentre os conceitos geográficos, Milton Santos será o colaborador para o entendimento de conceitos como o papel das “rugosidades” em determinadas localidades e a normatização do espaço/território como uma nova postura da ordem mundial. A partir destes conceitos será possível compreender porque na conjuntura atual os sujeitos buscam cada vez mais uma melhor relação com meio em que está inserido e, respondendo aos interesses de cada um, o que possivelmente irá provocar desacordo entre as partes – público/privado. Como procedimento metodológico além da bibliografia estudada, buscou-se acesso aos protocolos de denúncias e relatórios circunstanciados, que são documentos públicos, produzidos e existentes no setor de Fiscalização Ambiental da Gerência Executiva da Gestão

185

http://www.ibge.gov.br/cidadesat/painel/painel.php?codmun=240800. Visitado em 20/09/2012.

537

Ambiental



GGA,

órgão

responsável

pela

gestão,

controle,

monitoramente e fiscalização ambiental no município de Mossoró/RN. Esta investigação origina-se das reflexões que estão sendo desenvolvidas no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.

INTERDISCIPLINARIDADE: A GEOGRAFIA COMO RAMIFICAÇÃO DESSE PROCESSO A

interdisciplinaridade

como

proposta

de

uma

nova

avaliação metodológica e cientifica nos convida a pensar como a trajetória do seu surgimento veio a contribuir com a expansão do pensamento acadêmico em relação a este tema. É contemporânea a discussão sobre a interação cientifica e, é clara a linha divisória entre o que é ou não aceitável enquanto ciência. Sendo que esse diálogo permeia pelo conceito do que venha a ser ciência verdadeira e falsa, como se deu sua construção no espaço/tempo

e

a

sua

relevância

para

a

evolução

e

o

desenvolvimento no panorama cientifico. Como bem colocou Santos (2007, p. 01) existe um abismo onde em meio a verdade da ciência metódica não há espaço para a subjetividade do saber popular. Passado o reconhecimento exclusivo das primeiras disciplinas como a Matemática, a Física, a Biologia e a Química, o homem decodificou seu olhar, antes engessado por uma “verdade única” e, passou a reconhecer quão rico poderia ser introduzir os demais saberes em seus trabalhos. Foi através das ciências que o homem superou os limites das suas suposições e, pôde ver literalmente, além dos seus olhos. Construíram ao longo de sua história sistemas de pensamento, as descobertas biológicas, os estudos sobre os planetas e o espaço, o domínio

da

mecânica,

entre

outros 538

artefatos.

Tal

forma

de

compreensão humana e de realidade possibilitou o reconhecimento de que a ciência pode ser feita e pensada de diversas formas e através dos muitos conhecimentos que envolvem não só homem como todo o universo. A

metodologia

compreender explicações

interdisciplinar

historicamente científicas,

a

de

pesquisa

complexidade

apresentam

diante

consiste

que

da

as

em

novas

diversidade

de

fenômenos que foram surgindo com as modificações da humanidade e do meio. Comporta fatores como cultura, sociedade, ambiente, espaço, tempo e demais elementos que fazem parte da conjuntura dos estudos em ciência. Vários são os autores que assumem o desafio de contextualizar em diferentes aspectos a prática da interdisciplinaridade. Para contribuir com este trabalho foram analisados certos aspectos

da

pesquisa

interdisciplinar

desenvolvida

a

partir

do

diagnóstico de Japiassu (1976) o qual defende este caminho para a investigação como um “remédio” para o “mal” da ciência moderna. Esta reconhecida como a “verdadeira”, atravancou durante muito tempo o uso de outros procedimentos e forma de saberes nas produções cientifica. A interdisciplinaridade caminhou pelo tempo e pelo espaço, até chegar a ser reconhecida como método capaz de agregar valor ao mecanismo de aprendizagem, Prigogine (2009) faz a relação entre tempo/espaço/natureza e mostra que a “flecha do tempo” e as transformações causadas por ela implicam que a ciência começa a ser pensada não só pela razão, mas também pela emoção. E, que a negação (Einstein) do tempo enquanto parte constituinte da produção científica deveria ser repensada. A

contribuição

de

Gonçalves-Maia

(2011)

apontando

a

introdução da Filosofia e da História no mundo cientifico tradicional (Grécia

Clássica),

trás

a

tona

as

polêmicas

expostas

pelos

conservadores, assim como, apresenta ao mundo o surgimentos das novas disciplinas (bioquímica à cibernética) que emergiram das 539

disciplinas tradicionais. No entanto, não havia mais como não considerá-las, pois a importância das suas descobertas já proporia um novo olhar para um novo panorama de ciência universal. O

aporte

teórico

dos

autores

referenciados

confirma

a

possibilidade de se explorar diversos conteúdos em um mesmo estudo. Aqui usaremos o meio ambiente como ator principal deste cenário, e a Geografia será a disciplina base para o entendimento de como a ocupação do espaço/território pode desencadear conflito de interesse público/privado, assim como a normatização desses espaços/territórios através de políticas públicas, podem ser mediadoras desses conflitos.

USO DO ESPAÇO/TERRITÓRIO O espaço geográfico poder ser considerado um reflexo da sociedade e, por isso está sempre passível às transformações sofrida pela mesma. O contexto histórico de uma localidade pode contribuir para a compreensão das modificações ocorridas ao longo do tempo e, os espaços podem carregar consigo características preexistentes que se tornaram marco de imponência daquele lugar e, que nem mesmo as modificações advindas das necessidades de mudanças apagam o seu valor. Os valores atribuídos aos espaços originais vão sendo sobrepostos por outros valores ao sabor das intencionalidades culturais, econômicas, sociais... de um povo. São essas características construídas como afirmativas das identidades locais que Milton Santos chama de “rugosidades” do espaço-tempo. “Chamemos rugosidade ao que fica do passado como forma, espaço construído, paisagem, o que resta do processo de supressão, acumulação, superposição, com que as coisas se substituem e acumulam em todos os lugares. (SANTOS 2004 p. 140) Dessa forma, Santos (2004) aponta para o entendimento de que a “paisagem atual”, não pode desprezar o “meio ambiente construído”, 540

pois o primeiro é parte resultante do processo evolutivo do segundo e, sempre carregará consigo dados dos eventos corridos no passado, e, que se não refletem, pelo menos localiza no espaço e no tempo o momento atualmente vivido. As “rugosidades” são os traços que marcam a linha do tempo, que no futuro trará à tona a história que será alicerce da “paisagem atual” contemporânea. O espaço portanto é um testemunho; ele testemunha um momento de um modo de produção pela memória do espaço construído, das coisas fixadas na paisagem criada. Assim o espaço é uma forma, uma forma durável, que não se desfaz paralelamente à mudança de processos; ao contrário, alguns processos se adaptam às formas preexistentes enquanto que outros criam novas formas para se inserir dentro delas. (SANTOS, 1980, p. 138).

Mas enxergar o processo de desenvolvimento em comunhão com nuances já existentes (cultura, sociedade, ambiente, etc.) respeitando e aceitando como integrante deste processo, nem sempre faz parte do entendimento do setor econômico, que por vezes, assume uma postura impositiva sobre o social e o ambiental quando há ausência da norma. Àqueles espaços duráveis que em certo momento respondiam as expectativas de um modo de produção econômica de um determinado setor, pode ter executado suas atividades durante muito tempo sem a interferência da sociedade, tanto pelo desconhecimento da mesma em relação ao seu direito por uma boa qualidade de vida, como pela ausência de normas que regulamentassem determinadas atividades em determinados locais. Assim, uma empresa poderia se instalar em meio a uma área residencial, trazendo consigo todos os impactos ambientais e sociais possíveis, sem a preocupação em mitigar danos àquela comunidade. Transformavam espaços antes “luminosos” por serem minimamente confortáveis aos seus moradores ou pela inexistência de maiores impactos, em espaços “opacos”, pois de alguma forma passou a ofuscar o sossego coletivo daquela localidade. (SANTOS 2004, p.326)

541

Diante de tantos dissabores, pensar a normatização do espaço/território vai além da esfera legal, é necessário compreender que este espaço/território não poder ser visto apenas como esfera geográfica

e

muito

menos

econômica.

Convém

visualizar

a

composição de todos esses segmentos somados a presença humana e ambiental, que também representam memória viva nessa composição tão complexa. NORMATIZAÇÃO DO ESPAÇO/TERRITÓRIO A ocupação do espaço/território e, sua normatização enquanto forma de estabelecer critérios de uso adequado, atualmente é uma tendência intencionalmente elaborada pelo poder público para atender aos dissabores conflitais que permearam por séculos as sociedades e que vem se evidenciando cada vez mais a partir do século XX. Com

a

maior

conscientização

da

população,

com

os

movimentos sociais atuantes, as conquistas de direitos e o avanço da democracia deram força à sociedade civil que passou a exigir do poder público maior respaldo e pertinência jurídica para mitigação desses conflitos. De acordo com SANTOS (2004, p. 229): As próprias exigências do intercâmbio internacional (...) “ao lado dos direitos nacionais e do direito internacional público, os operadores privados - mais ou menos de acordo com o Estado - organizam o seu sistema de normas e progressivamente as impõem". Paralelamente à proliferação de normas jurídicas, no conjunto do campo das relações sociais (Z. Laïdi, 1992, p. 37), impõe-se uma outra tendência, à uniformização, o que se verifica, segundo J. L. Margolin (1991, p. 97) "no campo da gestão, da tecnologia, do consumo e dos modos de vida".

Com isso, cada localidade passou a estabelecer suas normas de

acordo

necessidades

com e

as o

adequações bem

estar

que

melhor

coletivos,

sem

composse

suas

atravancar

o

desenvolvimento econômico, pois este também é um elemento importante para a equidade social de um povo. 542

O município de Mossoró/RN na última década tem passado por um processo de transformação urbanístico e ambiental, de forma bem mais orientada, no que tange à preocupação em fazer uso das legislações que regulam o município no setor das construções (uso e ocupação do solo) assim como área ambiental, que hoje se encontra diretamente atrelada ao primeiro setor. Associadas a outras legislações (federais e estaduais) o município de Mossoró/RN lança mão especificamente de três normas para coordenar os processos urbanísticos e ambientais são: Lei Complementar Nº 012/2006 que dispõe sobre o Plano Diretor do Município de Mossoró/RN que regula em seu: Art. 51. Os usos e atividades deverão atender aos requisitos de instalação definidos em função do nível de impacto decorrentes de sua potencialidade como geradores de: I – incômodo; I – impacto de vizinhança. Parágrafo Único: considera-se impacto o estado de desacordo de uso ou atividade com os condicionantes locais, causando reação adversa sobre a vizinhança, tendo em vista suas estruturas físicas e vivências sociais.

A Lei Complementar Nº 047/2010 que institui o Código de Obras Posturas e Edificações no município de Mossoró/RN e por fim a Lei Complementar Nº 026/2008 que rege o Código Municipal de Meio Ambiente, que irá instrumentalizar todas as normas e adequações ligadas ao controle e gestão ambiental do município, vê art. 2º: Art. 2º. O Código de meio ambiente é o instrumento da Política municipal de meio ambiente, de desenvolvimento sustentável e de expansão urbana, determinante para os agentes públicos e privados que atuam no Município.

De posse de tantos instrumentos normativos, é obrigação do poder público fazer uso destes, para garantir que os espaços/territórios públicos e privados do município possam desempenhar os papeis aos quais estejam destinados, dentro dos padrões estabelecidos, para assim garantirem suas funcionalidades de acordo com as normas.

543

ESTUDO DE CASO: BUFFET’S EM MOSSORÓ/RN Para ilustrar

de maneira concreta

este

trabalho, será

apresentado um estudo de caso realizado na cidade de Mossoró/RN envolvendo um setor privado da economia local, que são as casa de festas chamadas de Buffet’s. Segundo dados colhidos em documentos públicos pertencente à Gerência Executiva da Gestão Ambiental – GGA (setor de Fiscalização) e pela imprensa local186, até meados de 2011 todas as casas do ramo existentes na cidade funcionavam sem o devido Licenciamento Ambiental187. Isto poderia indicar a falta de adequação desses locais para a realização de tal atividade, já que todos eles estavam situados em áreas residenciais e não possuía isolamento acústico, gerando poluição sonora.

Motivos estes que

desencadearam inúmeras denúncias por parte da população atingida pelo incômodo, que passaram a exigir posicionamento do poder público, enquanto órgão regulador do Estado. Em resposta a mobilização civil a Gerência Executiva da Gestão

Ambiental



GGA

realizou

audiência

pública

com

os

empresários do setor, a fim de orientá-los à regularizarem seus espaços de acordo com o que está determinado pelo Código Municipal do Meio Ambiente, Lei Complementar 026/2008, onde segundo o “Art. 35 V – licença de regularização de operação (LRO), concedida aos empreendimentos e atividades que, na data de publicação desta Lei, estejam em operação e ainda não tenham sido licenciados”. A audiência técnica foi realizada no dia 05 de Julho de 2011 onde os empresários e a GGA ajustaram os prazos para cumprimento das determinações do licenciamento, prazo este, estipulado em três 186

http://omossoroense.uol.com.br/cotidiano/15394-nove-buffets-sao-interditados-por-falta-delicenciamento 187 Instrumento de controle e proteção ambiental Lei Complementar 026/2008 – Código Municipal de Meio Ambiente – CMMA.

544

meses para que os responsáveis pelos empreendimentos protocolassem pedido de licença junto ao órgão responsável – GGA. Findado todos os limites dos acordos entre os empresários e a Gerência e diante das contínuas denúncias da vizinhança, foi acionado o setor de Fiscalização Ambiental, iniciando vistorias nas casas de festas e

instaurando

processos

administrativos

para

a

apuração

das

irregularidades ambientais nos locais. Inicialmente os buffets que ainda não tinham iniciado seu processo de regularização foram multados pelo funcionamento sem licença ambiental e, encerrado o prazo administrativo para a resposta e ou recurso do autuado (15 dias), estes locais sofreram interdição de suas atividades até que os mesmos se regularizassem junto ao órgão municipal. Art. 133. A interdição será aplicada quando o estabelecimento, obra ou atividade estiver funcionando sem a devida autorização, ou em desacordo com a concedida, ou com violação de disposição legal ou regulamentar. Lei 026/2008 – CMMA

Quando o poder público dispõe da norma, da técnica e do corpo técnico especializado, ele possui uma importante ferramenta de controle ambiental, capaz de fiscalizar, monitorar, gerir, orientar e punir quando necessário. É relevante frisar, que estabelecer a ordem das coisas não é uma tarefa fácil e, é antes de tudo primar pelos interesses da coletividade, por um bem comum que é direito de todos. Apresentaremos um quadro demonstrativo da situação dos estabelecimentos envolvidos no processo de regularização. Por motivo de descrição profissional ocultaremos a razão social das empresas usando um termo figurativo.

545

STATUS DOS BUFFET’S DE MOSSORÓ/RN Fevereiro 2012

FONTE: Gerencia Executiva da Gestão Ambiental (Setor de Fiscalização)

Fonte: Setor de Fiscalização (GGA) em 28/02/2012.

Tomadas essas medidas, posteriormente todos os locais envolvidos buscaram a regularização e normatização das suas atividades. Segundo informações da GGA, cessaram-se as denúncias contra os buffet’s, o que representa um indicador positivo da eficácia da normatização do espaço/território sobre essa problemática urbana. Neste sentido, corrobora Santos (2004, p. 231), “O território como um todo se torna um dado dessa harmonia forçada entre lugares e agentes 546

neles instalados, em função de uma inteligência maior, situada nos centros motores da informação”. Assim contatamos a emergência de práticas de denúncias e ao mesmo tempo um setor receptor e gestor ambiental para procurar soluções para enfrentamento destes fatores ambientais que envolvem a qualidade de vida dos sujeitos em seus espaços/territórios.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho buscou o debate interativo entre diversos conceitos científicos a fim de divulgar um dos problemas que assolam as cidades brasileiras, que são os conflitos sociais, ambientais e econômicos, que facilmente se cruzam em eventos cotidianos provocando impasses que precisam na maioria das vezes, da interferência do poder público através do uso da norma para fazer a ponte entre os lados. A discussão sobre normatização do espaço/território perpassa pela definição de estratégia de ação que vise à regulamentação dos espaços

público/privados

quando

estes

interferem

ambiental

e

socialmente nos espaços coletivos. Assim gestores locais precisam estar em sintonia com as demandas e buscar efetivar o espaço público de debate propondo a solução coletivamente dos conflitos. Pensar a normatização do espaço/território vai além das regras de conformidade operacional e legislativa. É pensar o ambiente em uma estrutura bem mais complexa, que envolve desde o próprio meio até a relação e interação que as pessoas têm com esse meio. É buscar nas normas o equilíbrio socioambiental e econômico para o desenvolvimento sustentável e saudável, que se expande do local para o todo, proporcionando a interação dos segmentos que compõe a cadeia da vida.

547

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CODIGO MUNICIPAL DE MEIO AMBIENTE. Lei Complementar Nº 026/2008. CODIGO DE OBRAS POSTURAS E EDIFICAÇÕES. Lei Complementar Nº 047/2010. GONÇALVES-MAIA, Raquel. Ciência, pós-Ciência, metaciência: tradição, inovação e renovação. São Paulo: Ed. Livraria da Física, 2011 (Col. Contextos da Ciência). www.omossoroense.uol.com.br/cotidiano/ 15394-nove-buffets-sao-interditados-por-falta-de-licenciamento IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística: Mossoró/RN. http://www.ibge.gov.br/cidadesat/painel/painel.php?codmun=240800 visitado em 20/09/2012 JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976. PLANO DIRETOR DO MUNICÍPIO DE MOSSORO. Lei Complementar Nº 012/2006. PRIGOGINE, Ilya. Ciência, razão e paixão. 2. ed. revis. e ampl. (Org. Edgard de Assis Carvalho e Maria da Conceição de Almeida). São Paulo: Ed. Livraria da Física, 2009 (Col. Contextos da Ciência). SANTOS, Milton. Por Uma Geografia Nova. São Paulo. Ed. HUCITEC, 1980 2ª Ed. SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. São Paulo. Ed. da Universidade de São Paulo, 2004. (Coleção Milton Santos; 1)

548

A AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS COMO INSTRUMENTO DE PRESSÃO SOCIAL: O CASO DO PROGRAMA NACIONAL TRABALHO E EMPREENDEDORISMO DA MULHER EM PERNAMBUCO

Géssika Cecília Carvalho188

Resumo: O presente trabalho (que é parte inicial de tese de doutorado) se propõe a realizar uma análise de política pública, o Programa Nacional Trabalho e Empreendedorismo da Mulher (PNTEM) em Pernambuco, com a finalidade de verificar seu desempenho, eficácia e efetividade. Os resultados preliminarmente obtidos revelam aumento da auto-estima das beneficiárias (considerando, além da autonomia econômica, as discussões sobre direitos e a violência contra a mulher); a possibilidade de empreender para ampliar sua autonomia; aumento da renda das que já empreendiam e estímulo para o início das que não possuíam um empreendimento; e a participação das gestoras através de capacitação e inclusão da problemática de gênero nas políticas públicas. Palavras-chave: Trabalho. Políticas públicas. Avaliação. Empreendedorismo.

1. INTRODUÇÃO A avaliação de políticas públicas é de suma importância para compreensão das ações do Estado, dando visibilidade e transparência a tais ações públicas, podendo, dessa forma, realizar ajustes tanto na fase de formulação, implementação, impactos ou resultados. Esse tipo de avaliação reflete ainda se as demandas sociais estão sendo satisfeitas. Conforme Silva e Silva (2001), a avaliação de políticas e programas sociais no Brasil teve início a partir dos anos 1980, como reivindicação, pelos movimentos sociais, das políticas sociais enquanto um direito de cidadania, numa crítica ao público atendido pelos

188

Graduada em Ciências Sociais (UFPE), Mestra em Sociologia (UFPE) e Doutoranda em Sociologia (UFPB). Professora Substituta (UEPB). [email protected]

549

programas - nem sempre os que mais necessitavam - e à má utilização do dinheiro público. Apesar de num primeiro momento visar à mensuração da eficiência na utilização dos recursos, a avaliação de políticas e programas passou a ser um meio de realimentação das mesmas no seu desenvolvimento, com vistas à correção de distorções, ou mudança de comportamento a partir das informações obtidas. Dessa forma, a avaliação de políticas e programas pode ser observada como um instrumento de pressão social sobre o estado (a partir das informações alcançadas através da avaliação), utilizado por segmentos sociais organizados para a conquista ou fortalecimento dos direitos sociais. Nessa perspectiva, o presente trabalho tem como objetivo realizar uma revisão bibliográfica concernente a políticas públicas e à avaliação das mesmas (destacando as políticas de trabalho e as de gênero), articulando-a ao projeto de tese, que se propõe a realizar uma análise de política pública - o “Programa Nacional Trabalho e Empreendedorismo da Mulher” (PNTEM), com a finalidade de verificar seu desempenho, eficácia e efetividade.

2. O QUE SÃO POLÍTICAS PÚBLICAS? As políticas públicas estão relacionadas à totalidade de decisões e ações do Estado; “são decisões governamentais que geram impacto tangível e mensurável ou substantivo, alterando as condições de vida de um grupo ou população ou produzindo mudanças em atitudes, comportamentos e opiniões” (SILVA E SILVA, 2001, p. 47). Constituem um processo decisório em fluxo, contínuo, de alteração permanente; que tem como aspectos essenciais as pressões e barganhas. Por esse viés, “... toda política pública é uma forma de regulação ou intervenção na sociedade. Trata-se de um processo que articula diferentes sujeitos, que apresentam interesses e expectativas diversas” (SILVA E SILVA, 2008, p. 550

90). Estas ações do Estado - que são na maioria das vezes resultantes de pressões sociais - representam jogos de interesses relacionados aos aspectos econômicos, políticos, culturais e sociais, sendo, portanto uma forma de mudança social e de redistribuição de renda. A formulação (e efetivação) de uma política pública passa por alguns estágios fundamentais: a existência de uma demanda social ou problema; a vontade política de solucionar ou reverter tal problema; a definição

da

própria

política

pública

ou

programa

social;

a

implementação de fato da política; os resultados alcançados; e avaliação durante todas as etapas do processo. Assim, uma política pública surge de um problema, que toma visibilidade a partir da pressão popular, transformando-se em questão social e recebendo espaço na agenda pública. Dessa forma, segundo Silva e Silva (2008), podem-se identificar algumas fases no processo de constituição do problema e da agenda pública: o momento da prédecisão (formulação de alternativas de política); a escolha ou adoção da política; e a execução ou implementação. Existem vários tipos de políticas públicas e nas mais diferentes áreas, contudo para fins deste trabalho nos deteremos nas políticas de trabalho e de gênero.

2.1 Políticas públicas de trabalho Segundo

Silva

e

Silva;

Yazbek

(2006),

o

desenvolvimento

econômico condiciona o grau de estruturação do mercado de trabalho (determinando, assim, o nível de emprego e a remuneração na sociedade). Por esse viés, no Brasil, o papel do Estado é imprescindível na formação do mercado de trabalho, na remuneração do trabalho e na determinação das relações. Além do Estado, as forças sociais organizadas são fundamentais nesse processo.

551

A construção histórica do mercado de trabalho brasileiro passou por três significativos momentos: inicialmente o período anterior à constituição do trabalho livre, da abolição da escravidão à Revolução de Trinta (caracterizado pela exportação de bens primários e mão-deobra excedente nos mercados de trabalho regionais). Posteriormente, tem-se o período de 1930 a 1980, destacado pelo desenvolvimento da industrialização, modernização da economia, regulação das relações de trabalho, excedente de força de trabalho e consequente inserção na informalidade, o Estado como promotor de políticas de proteção social. Mais recentemente, nos anos 1980 e 1990, tem-se uma crise externa do capitalismo, descontrole da inflação, aumento das desigualdades sociais e de renda, desestruturação do trabalho urbano, limitação

da

capacidade

estatal

de

proteção

social

como

conseqüência de sua crise geral, crescimento da informalidade e desocupação, precarização nas relações de trabalho. Nesse contexto, foi constituído um Sistema Público de Emprego como ação de enfrentamento pelo Estado nos anos 1990, permitindo a criação do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Tal Sistema Público de Emprego é composto de políticas de transferência temporária de renda, prestação de serviços e concessão de créditos. No que concerne às ações do governo voltadas para os desempregados a partir dos anos 1990, tem-se o Programa Nacional de Formação Profissional (PLANFOR), o Programa de Geração de Emprego e Renda (PROGER), as iniciativas de empréstimo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). De acordo com Oliveira (mimeo), as políticas de emprego podem ser divididas em ativas (são as que agem sobre a oferta e a demanda por trabalho) ou passivas (são as que agem através de assistência financeira temporária aos que perderam o emprego). Para outros autores, como é o caso de Carneiro (2003), estas políticas voltadas para o mercado de trabalho no Brasil podem ser 552

definidas não em duas, mas em três categorias, a saber, políticas compensatórias, distributivas e estruturais. As políticas compensatórias seriam aquelas que objetivam assegurar um nível de renda mínimo para os desempregados ou trabalhadores com baixa remuneração através de transferências, como é o caso do FGTS e do seguro desemprego. Já as políticas distributivas buscam aumentar os salários dos trabalhadores menos qualificados, sendo um exemplo disso o salário mínimo. Por fim, as políticas estruturais visam reduzir o desemprego e elevar a produtividade do trabalho. Em linhas gerais, as políticas estruturais podem ter como objetivos imediatos a criação de novos empregos, a melhoria na qualidade dos empregos já criados, a melhora da qualificação dos trabalhadores e a combinação ideal entre empregos e trabalhadores. A partir da observação destes objetivos fica constatada a necessidade de políticas específicas para o acesso dos mais necessitados a três meios que são fundamentais para a geração de

renda:

o

crédito,

a

capacitação

dos

trabalhadores

e

a

intermediação de empregos. Nesta categoria encontram-se programas criados pelo Ministério do Trabalho, como é o caso do PLANFOR e do PROGER, já mencionados anteriormente. Estes programas de geração de emprego e renda tomaram impulso a partir de 1994, quando receberam “status” de programa nacional de formação profissional, sob coordenação do FAT, porém, com execução descentralizada pelos Estados. Além destes, em 2003 foi criado o PNQ (em lugar do PLANFOR), e em 2004 o Programa do Primeiro Emprego. Para Oliveira, o CODEFAT teve dificuldades de se afirmar como um espaço de controle social, e as políticas públicas de emprego e renda não superaram sua natureza de programa e nem sua condição histórica fragmentada. Dentre as políticas públicas (estruturais) de geração de emprego e renda, sendo que voltada especificamente para o público feminino, está o Programa Nacional Trabalho e Empreendedorismo da Mulher, objeto de estudo do presente trabalho.

553

2.2 Políticas públicas de gênero No Brasil, as mudanças que se processaram referentes às políticas públicas para mulheres e ações institucionais foram mais visíveis a partir da década de 1970, principalmente no âmbito da legislação brasileira, como por exemplo, a conquista da licença maternidade de 120 dias, o estabelecimento de quotas nos partidos políticos para a participação das mulheres nos processos eleitorais, a Lei Maria da Penha no enfrentamento à violência contra as mulheres e a criação de organismos para cuidar das questões específicas relacionadas à desigualdade entre mulheres e homens, como é o caso da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, da Presidência da República. Já segundo Farah (2004), as primeiras políticas públicas com recorte de gênero datam da década de 1980, como a criação da primeira Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher, do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM). Para a referida autora, existem diferenças significativas nas abordagens das políticas com foco na mulher: um dos âmbitos enfatiza a eficiência, vendo a mulher como um instrumento de desenvolvimento ou ‘potencializadora’ de políticas públicas, a partir da observação do seu papel na família. O outro âmbito destaca o aspecto dos direitos, a mulher constituída como sujeito (democratização). No campo das políticas públicas de gênero, as principais diretrizes estão relacionadas a uma frente ampla de aspectos sobre violência, saúde, de questões relacionadas às meninas e adolescentes, sobre geração de emprego e renda, educação, trabalho, infra-estrutura urbana e habitação, questão agrária, acesso ao poder político e empoderamento, transversalidade (incorporação da perspectiva de gênero em toda política pública). As

políticas

de

trabalho

com

recorte

de

gênero

estão

relacionadas à garantia dos direitos trabalhistas, criação de programas 554

de capacitação profissional e combate à discriminação com a mãode-obra feminina. Já as políticas de geração de emprego e renda (ou combate à pobreza) numa perspectiva de gênero fomentam projetos produtivos organizados por mulheres, capacitação e garantia de acesso ao crédito, numa constante busca de erradicação da divisão sexual do trabalho. É dentro dessa perspectiva que se situa nosso interesse, de analisar uma proposta de fomentar e potencializar oportunidades de trabalho e ocupação para mulheres, considerando que, além da implementação de políticas públicas, faz-se necessário o acompanhamento e a avaliação do andamento das mesmas, como uma forma de ajustar, corrigir ou pressionar o Estado para a transparência e conquista dos direitos sociais.

3. A IMPORTÂNCIA DA AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS A avaliação de políticas públicas refere-se à utilização de técnicas e métodos de pesquisa com a finalidade de estabelecimento de

causalidade

entre

um

programa

e

seus

resultados.

Nessa

perspectiva, em linhas gerais, tal avaliação pode ser realizada nos aspectos de efetividade, eficácia e eficiência. Quanto à efetividade: A avaliação que considera a efetividade da política pública concerne a um indicador de impacto, mostrando se melhorou a qualidade de vida da população ou se trouxe uma mudança efetiva nas condições de vida dos beneficiários da política. Nesse sentido, o maior desafio é demonstrar se os resultados obtidos estão causalmente ligados ao que foi oferecido pela política que está sendo avaliada, fora da interferência das variáveis intervenientes. É uma medida de impacto, relação entre resultados e objetivos. No que se refere à eficácia: Avaliar uma política pública através do critério da eficácia é tratar se os objetivos pretendidos foram alcançados, ou seja, se as metas propostas foram de fato alcançadas. 555

Nesse aspecto de avaliação, o grande desafio reside na forma de obtenção e veracidade das informações adquiridas a respeito do funcionamento do programa. Refere-se ao grau em que os objetivos foram atendidos. Quanto à eficiência: Verificar a eficiência de uma política pública significa analisar o nível de utilização dos recursos, principalmente porque existe uma escassez de recursos públicos, o que supõe uma maior

racionalização

do

gasto,

bem

como

a

proporção

dos

beneficiários atendidos pelas políticas. Trata da relação entre custos e resultados. Para

Faria

(2009),

a

avaliação

envolve

três

dimensões:

metodológica (na comparação entre metas e dados); finalidade (na informação e julgamento); e de seu papel (na correção de distorções na fase de elaboração). Já Silva e Silva (2008) observa a avaliação de políticas e programas sociais na relação entre duas dimensões: a técnica

(através

dos

procedimentos

científicos)

e

a

política

(intencionalidade). Conforme a citada autora, a avaliação é “um possível instrumento que pode ser utilizado por segmentos sociais organizados para fortalecimento da pressão social sobre o Estado no sentido de conquista de direitos sociais” (SILVA E SILVA, 2008, p. 111). A pesquisa avaliativa deve ser planejada e dirigida, para levantar informações confiáveis para emissão de juízo, comprovar resultados. Torna-se um referencial para detectar problemas e corrigi-los no curso de desenvolvimento da política pública. Por esse viés (conforme Silva e Silva, 2008), a pesquisa avaliativa tem função técnica (através do oferecimento de subsídios para a correção de distorções), função política (no fornecimento de informações para subsidiar lutas sociais e controle

das

determinação

políticas) dos

e

função

significados

das

acadêmica políticas

na

(propiciando construção

a do

conhecimento). Ainda na opinião da autora (Silva e Silva, 2008), a avaliação de políticas tem como propósito a resposta aos seguintes questionamentos: 556

quando avaliar (antes, durante ou depois da implementação); onde avaliar (locus geral ou locus específico); para quem avaliar (que são os interessados na avaliação); o que avaliar (objeto ou conteúdo da avaliação); por que avaliar (motivações de ordem moral, política, instrumental, técnica ou econômica); para que avaliar (objetivos da avaliação);

quem

avaliar

(avaliadores

externos

ou

usuários

do

programa); como avaliar (técnicas, procedimentos e métodos). Existem vários tipos de avaliação, chegando a mesma a apontar 45 diferentes classificações, todavia resume a tipologia de avaliação de políticas e programas sociais: - em função do momento de realização da avaliação: ex-ante, durante e ex-post; - em função de quem realiza a avaliação: externa, interna, mista, autoavaliação e avaliação participativa; - em função do destinatário da avaliação: para os dirigentes superiores, para os administradores, para os técnicos (executores) e para os usuários do programa; - em função do objeto da avaliação: monitoramento, avaliação política da política, avaliação de processo e avaliação de resultados/ impactos. Além disso, na avaliação são considerados o processo, os sujeitos, os modelos, os métodos e as técnicas usuais. Quanto aos momentos da avaliação, consideram-se: as atividades preliminares ou preparatórias; a elaboração do plano de pesquisa de avaliação; a implementação da avaliação ou trabalho de campo; o processamento, análise e síntese dos dados e informações; a elaboração e discussão do relatório; e a aplicação dos resultados da avaliação. Avaliar já traz em si a necessidade de envolver julgamento, valor, análise, aprovação ou não. Para Arretche (2009), “não existe possibilidade de que qualquer modalidade de avaliação ou análise de políticas públicas possa ser apenas instrumental, técnica ou neutra” (ARRETCHE, 2009, p. 29). Contudo, deve-se ter cuidado, sugere a autora, 557

na análise através de instrumentos pertinentes, para que os resultados não sejam enviesados por valores pessoais. Silva e Silva também (2008) aponta problemas e controvérsias na avaliação: o confronto entre os paradigmas quantitativo e qualitativo; a medição (relacionada à utilização da abordagem quantitativa); o processo de implementação do próprio programa; e a posição subalterna ocupada pela pesquisa avaliativa (falta de legitimidade, o não-envolvimento de todos os sujeitos na avaliação, a resistência ainda existente quanto à avaliação no sistema de gestão de políticas públicas). A autora ainda observa dois tipos de políticas a serem avaliadas: políticas com propósito de bens e serviços públicos (avaliação de processos), e políticas com propósitos de mudança e avaliação de impactos. Quanto aos

modelos de avaliação, a autora aponta o

monitoramento (atividade de verificação de execução das atividades e funcionamento do programa), a avaliação política da política (atribuição de valor aos resultados obtidos, através da emissão de julgamento), a avaliação de processos (que se refere à aferição da eficácia do programa), e a avaliação de resultados/ impactos (observar as mudanças advindas da implementação de determinado programa). 4. AVALIAÇÃO DE POLÍTICA PÚBLICA DE TRABALHO E GÊNERO: O CASO DO PROGRAMA NACIONAL TRABALHO E EMPREENDEDORISMO DA MULHER Na perspectiva das políticas públicas de gênero e de trabalho e da necessidade/ importância da avaliação das mesmas, está inserido o Programa Nacional Trabalho e Empreendedorismo da Mulher (PNTEM), que busca, em linhas gerais, fomentar o empreendedorismo e potencializar as oportunidades de emprego, trabalho e ocupação para as mulheres. Esta iniciativa partiu da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, da Presidência da República, em 2007, sendo o Rio de 558

Janeiro o primeiro Estado contemplado com as atividades do Programa, através do desenvolvimento de ações capazes de mobilizar, sensibilizar, capacitar e apoiar processos de inserção econômica e social das mulheres no Estado. Considerando o bom andamento da experiência vivenciada no Rio de Janeiro, expandiu-se para Santa Catarina, Distrito Federal, Pernambuco e Pará. Tal Programa tem como objetivo “alterar de modo significativo a inter-relação presente nos processos de desenvolvimento local e as questões de gênero, identificando os fatores de vulnerabilidade que incidem sobre a vida das mulheres em geral, em particular das mulheres pobres e extremamente pobres, no que diz respeito à ambiência produtiva, à autonomia econômica e financeira das mulheres e às posições ocupadas por elas em atividades empreendedoras e no mercado de trabalho” (http://www.pntem.org.br/). Como público prioritário, atende tanto mulheres pobres que queiram criar ou desenvolver negócios já existentes; como mulheres extremamente pobres, participantes ou não dos programas de inclusão social e sua rede familiar. Além disso, na tentativa de integrar esses dois públicos ao processo, o Programa contempla também gestoras e gestores públicos estaduais e municipais, que darão o suporte aos procedimentos adotados, através da possibilidade da transversalidade da perspectiva de gênero nas políticas públicas voltadas para os direitos das mulheres. Dois eixos principais estruturam as ações do PNTEM: Fomento ao Empreendedorismo: proporcionando instrumentos para as mulheres de criação e gestão de negócios, mobilização para empreendimentos iniciados por elas, bem como capacitação de gestores na perspectiva de gênero. Trabalho e Ocupação: atuando a partir da conscientização das mulheres sobre direitos para a conquista da cidadania e inserção no mundo do trabalho,

559

Este Programa é executado pelo IBAM (Instituto Brasileiro de Administração Municipal) e pelas instituições parceiras: no caso de Pernambuco pelo SEBRAE (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), BPW (Federação das Associações de Mulheres de Negócios e Profissionais), e ainda com o apoio do governo estadual (Secretaria Especial da Mulher). O Programa é ofertado em cada Estado pelo período de dois anos, em que são executadas atividades nas áreas geográficas definidas antecipadamente (que podem ser municípios, pólos ou regiões; no caso de Pernambuco em pólos):

Camaragibe/ São Lourenço da Mata; Igarassu/ Abreu e Lima/ Itamaracá/ Itapissuma/ Araçoiaba; Paulista/ Olinda; Jaboatão dos Guararapes/ Moreno; Cabo/ Ipojuca; Recife. As atividades executadas pelo Programa são: - Reuniões de sensibilização para gestores públicos e representantes de entidades que trabalham com a temática gênero; - Seminários sobre Trabalho e Empreendedorismo para os dois públicos prioritários mencionados anteriormente; - Cursos oferecidos pelo SEBRAE (Mulher Empreendedora/ Juntas somos fortes/ Determinação Empreendedora/ Aprender a Empreender); Cursos oferecidos pela BPW (Políticas Públicas e Empreendedorismo da Mulher/ Educação Financeira/ Alfabetização Digital); - Oficinas de Direcionamento Estratégico; Microcrédito Produtivo; Economia Local e Gênero; - Fóruns e Oficinas de Trabalho para Gestores Públicos.

No

entendimento

de

que

o

empreendedorismo

tem

se

apresentado como uma importante estratégia de sobrevivência no 560

âmbito do trabalho, principalmente para as mulheres, faz-se necessário verificar se as políticas públicas de fomento ao trabalho e ao empreendedorismo, implementadas a partir da demanda da própria sociedade, estão de fato sendo eficazes e contribuindo para a autonomia econômica das mulheres e para a igualdade de gênero no mundo do trabalho, uma vez que a dificuldade dessas mulheres muitas vezes não se encontra necessariamente na criação de um negócio, mas na gestão e desenvolvimento do mesmo. Nessa perspectiva, nosso interesse é a avaliação de uma dessas políticas públicas de trabalho e gênero – o Programa Pernambuco Trabalho e Empreendedorismo da Mulher – analisando se esta tem sido de fato uma política pública eficaz e efetiva, alterando (conforme seus objetivos) a inter-relação presente nos processos de desenvolvimento local e as questões de gênero, no que diz respeito à ambiência produtiva, à autonomia econômica e financeira das mulheres e às posições ocupadas por elas em atividades empreendedoras e no mercado de trabalho. Tal política pública apresenta oportunidades de alternativas de geração de renda, de inserção no mercado, e de organização das mulheres em Associações e Cooperativas. Segundo Melo (2012), o perfil das mulheres atendidas aponta que, em sua maioria, estas têm entre 21 e 40 anos, são casadas, e que se autodeclararam pardas. Em média estas beneficiárias têm dois filhos, não participam de grupos ou movimentos sociais, concluíram o ensino fundamental e médio, são autônomas e estão ocupadas nas áreas de culinária, artesanato e estética. Os resultados preliminarmente obtidos revelam aumento da autoestima

das

beneficiárias

(considerando,

além

da

autonomia

econômica, as discussões sobre direitos e a violência contra a mulher); a possibilidade de empreender para ampliar sua autonomia; aumento da renda das que já empreendiam e estímulo para o início das que não possuíam um empreendimento; a participação das gestoras através de

561

capacitação e inclusão da problemática de gênero nas políticas públicas. Quanto às limitações, percebeu-se a dificuldade de organização e fortalecimento das mulheres em grupos ou redes, bem como as dificuldades de deslocamento das mulheres para participar das atividades do referido Programa. Afora isto, não há uma garantia de continuidade do mesmo, sendo necessário o fortalecimento das redes de desenvolvimento local e dos setores públicos visando garantir a sustentabilidade das ações implementadas. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A avaliação de políticas públicas, sejam de quais naturezas forem, possibilita tanto a produção de conhecimentos como a aplicação prática de seus resultados para o aperfeiçoamento do sistema de políticas públicas. A pesquisa de avaliação “tem por base uma metodologia que não se reduz a procedimentos, mas envolve concepção teórica da própria avaliação e de seu objeto e, como pressuposto, o entendimento de que o método não se separa dos procedimentos e que a avaliação é uma exigência e compromisso do Estado em relação aos cidadãos, devendo visar a produção de novos conhecimentos teóricometodológicos, com vista a novas práticas de transformação das políticas e à transparência das ações públicas” (Saul 1999, apud SILVA E SILVA, 2008, p. 118).

Além disso, dentro do viés da cidadania, pode ser vista como um meio de controle social, redução de incertezas, reorientação de atividades e oferecimento de respostas aos beneficiários ou público destinatário. Em linhas gerais, a avaliação tem como finalidade conhecer, medir, julgar. Minayo (2005), citando Worthen & Sanders, faz uma distinção entre a investigação avaliativa e a pesquisa acadêmica, apresentando oposições complementares entre as duas. A pesquisa traz avanços no

562

campo do conhecimento, a avaliação na solução de problemas. A pesquisa busca conclusões, a avaliação decisões. A pesquisa é feita para produção do conhecimento, a avaliação para julgar o valor de uma proposta. Sendo assim, apesar dos objetivos contidos neste trabalho estarem relacionados a uma avaliação de função acadêmica (que, segundo Silva e Silva, propicia a determinação dos significados das políticas na construção do conhecimento), certamente contribuirá também na tomada de decisões e na possível reelaboração pelo poder público, visto que os resultados devem, não somente limitar-se às paredes do locus de produção do conhecimento, mas, além disso, afirmar o compromisso com a comunidade, devolvendo para as beneficiárias e demais atores envolvidos os resultados obtidos ao longo do processo.

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563

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564

POLÍTICAS PÚBLICAS: CONCEPÇÃO, CLASSIFICAÇÃO E REFLEXÕES Ana Lúcia Pascoal Diniz189 Dante Henrique Moura (Orientador)190

Resumo: A arena da política pública tem sediado estudos de diversas naturezas, de modo a contribuir com reflexões acerca do conjunto de ações desenvolvidas pelo Estado, na e para a sociedade. Este estudo consiste em uma pesquisa bibliográfica, de natureza reflexiva que objetiva discutir sobre políticas públicas de Estado, no tocante à concepção e à classificação, buscando as mediações com o contexto brasileiro, de modo a relacioná-las especialmente, ao Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na modalidade de Educação de Jovens e Adultos – PROEJA FIC/FUNDAMENTAL. É imperioso considerar que o Estado desenvolva ações que atendam às reais necessidades sociais, fundadas em ideais democráticos de cidadania e emancipação, com prevalência da qualidade sob a quantidade.

Palavras-chave: Política Pública; Educação de Jovens e Adultos; Qualificação Profissional.

INTRODUÇÃO

Na qualidade de área do conhecimento, a arena da política pública tem sediado estudos de diversas naturezas, no intuito de contribuir com reflexões acerca do conjunto de ações desenvolvidas pelo Estado, na e para a sociedade. Afinal, o que é política pública e quais nuances a caracteriza? Tendo esse questionamento como pressuposto de partida e considerando as abordagens modernas no âmbito desse debate, este estudo abrange reflexões acerca da concepção (sentido, significados e características) e da classificação 189

Graduada em Pedagogia (UFRN), Letra (FFM/PB), Especialista em Psicopedagogia. Pedagoga Técnica (IFRN). [email protected] 190 Técnico em Eletrotécnica (Escola Técnica Federal do RN), Graduado em Engenharia Elétrica (UFRN), Doutor em Educação (Universidade Complutense de Madri). Professor Titular (IFRN), Coordenador do Programa de Pós-Graduação Educação Profissional (PPGEP/IFRN), Integrar o corpo docente do PPGEd/UFRN como professor Colaborador. [email protected]

565

de políticas públicas, notadamente as políticas sociais de cunho inclusivo e compensatório. Compreende parte de uma pesquisa acadêmico-científica em andamento, desenvolvida entre 2011 e 2013, em nível de Mestrado, integrando-se às demais pesquisas atreladas ao grupo de estudos da Linha Política e Práxis da Educação, vinculada ao Programa de Pós-graduação em Educação/UFRN. A relevância dessa abordagem reside no fato de figurar um debate teórico entre autores sobre conceitos e tipos de classificações de política pública, observando as influências e as implicações desses atributos na configuração das políticas sociais de Estado. Em sendo assim, justifica-se por difundir saberes produzidos histórica, sócia e cientificamente acerca do universo das políticas públicas e por buscar as mediações com as políticas sociais de Estado implementadas no âmbito da educação brasileira, subsidiando na compreensão da trajetória dessa práxis social, de seus desdobramentos e de suas perspectivas. Objetiva discutir sobre políticas públicas de Estado, no tocante à concepção e à classificação, buscando as mediações com o contexto brasileiro, de modo a relacioná-las especialmente, ao Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na modalidade de Educação de Jovens e Adultos – PROEJA. Metodologicamente, consiste em uma pesquisa bibliográfica, de natureza reflexiva. A estrutura do texto está organizada de modo a apresentar, inicialmente, um construto teórico acerca da concepção de políticas públicas de Estado, com base na revisão de literatura. Em seguida abordam-se diferentes tipos e classificações de políticas públicas, com suas influências na re(definição) da política pública estatal brasileira. Na sequência procura-se relacionar o arrazoado teórico construído com as possíveis mediações em relação ao PROEJA, no sentido de localizá-lo no escopo da classificação das políticas públicas para, por fim, fazer as devidas ponderações acerca do discutido. Para fundamentar o arranjo das apreensões feitas, recorre-se 566

a referenciais como Lenaura Lobato (2006), Eloísa Hófling (2001), Celina Souza (2006), Curry (2005), Lincoln Souza (2011), Lúcia Neves e Pronko (2010) entre outras contribuições advindas da vasta produção acadêmico-científica subscrita ao âmbito da investigação. Para efeitos desse debate, é importante explicitar que apesar das diferentes possibilidades de desenvolvimento do PROEJA, esta investigação está centrada nos cursos de PROEJA na formação inicial e continuada ou qualificação profissional, na forma integrada ao ensino fundamental, na modalidade de educação de jovens e adultos, ou seja, o PROEJA na forma FIC/FUNDAMENTAL. 1. POR UMA CONCEPÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS A expressão políticas públicas remete-se tanto a uma área do conhecimento como ao conjunto de programas e ações destinados à sociedade. Semanticamente, política pública não é sinônimo exclusivo de política estatal. O

termo

‘pública’

subscrito

à

‘política’,

não

se

reduz,

com

exclusividade, ao contexto do Estado. Trata-se de uma terminologia que tem sua gênese no latim, proclamada como res publica191. Traduzida como coisa de todos, baliza-se pelo caráter público de ser de todos e não por ser estatal (procedente do Estado). Por razões como essa, constitui-se em ações que podem ser desenvolvidas por entes políticos, técnicos, organismos da sociedade civil, entre outros. Logo, política pública não se reduz a ações implementadas, exclusivamente, mas, prioritariamente, pelo Estado. Tampouco se remete a todo o conjunto de ações governamentais. Depreende-se que, muito embora uma política pública implique em decisão política, nem toda decisão política configura política pública. Para ser considerada como tal é preciso atender a algumas exigências, no que concerne à origem, ao destino, 191

Refere-se à forma de organização política referenciada em princípios e valores sociais como interesse comum, na comunidade, na soberania popular e não na hegemonia do grupo da classe dos que governam.

567

ao formato e às características, conforme será abordado nesta seção. Para fins de delimitação deste estudo, aborda-se as políticas públicas na qualidade de ação de natureza estatal. Apropriar-se de uma concepção crítica de Estado é condição sene qua nom para uma melhor compreensão das proximidades entre sociedade, Estado e políticas públicas. Parte-se do entendimento de que “[...] uma das relações consideradas fundamentais é a que se estabelece entre Estado e políticas sociais, ou melhor, entre a concepção de Estado e a(s) política(s) que este implementa, em uma determinada sociedade, em determinado período histórico” (HÖFLING, 2001, p.30). Portanto, para se discutir sobre as estreitas e importantes relações

existentes

entre

Estado

e

políticas

públicas,

torna-se

indispensável trazer à tona reflexões contemporâneas que aludem a concepção de Estado192, a fim de entender os entrecruzamentos entre ambos. A literatura da área confirma que muito se tem discutido e publicado sobre as configurações de Estado. Esta concepção vem se redesenhando, historicamente, passando por mutações e variações, avanços e recuos, a depender das formas de atuação, das funções desempenhadas e do posicionamento assumido e instituído. Nesse sentido, as análises produzidas por Poulantzas (1976, 1978, 1980) são esclarecedoras para entender que antes as tarefas do Estado consistiam, em organizar o espaço político-social da acumulação material,

notadamente

em

razão

do

predomínio

de

funções

estritamente econômicas, repressivas e ideológicas. No contexto hodierno, o conceito de Estado, além das questões referentes à economia, a relações de produção, à divisão social do trabalho, atrelase a questões sociais que coadunam as relações de forças existentes entre classes e frações de classe. Decorrente dessa visão, a análise centrada em políticas públicas de Estado pressupõe que as demandas 192

Incorpora-se, nesse debate, a noção de Estado como “[...] estrutura onde se ‘condensam as contradições entre os diversos níveis de uma formação social. [...] Estado (não o aparelho material, mas a 'região do todo social’) [...] o lugar privilegiado onde também se decifram a unidade e os modos de articulação das estruturas sociais” (CODATO, 2008, p.76).

568

sociais se insiram entre as funções econômicas e político-ideológicas do Estado. O que outrora fora considerado ações marginais por parte das funções do Estado, por restringir-se à confrontação entre administração, governo, deputados e os partidos políticos, passou-se a abarcar qualificação da força de trabalho, educação, urbanismo, à saúde, meio ambiente, transportes, habitação, previdência, entre outros componentes de cunho social na elaboração das políticas de Estado. Para Neves e Pronko (2010), a interferência do Estado na esfera social se justifica pela intervenção com ações rentáveis ou não para o capital, centradas na garantia, na reprodução, na manutenção e na gestão da força de trabalho, de modo a minimizar a dicotomia existente no trato social, retratada em questões relativas ao trabalho versus cidadania. Essa condensação estatal se dá, por vezes, pela tecitura forjada na e para a organização social, revestida de aparelhos que colaboram, sobremaneira, para a manutenção histórica da dominação. Em acréscimo a esse pensamento, “[...] As políticas públicas repercutem na economia e nas sociedades, daí por que qualquer teoria da política pública precisa também explicar as interrelações entre Estado, política, economia e sociedade” (SOUZA, 2006, p. 25). É nos meandros dessas mediações que se consolida a relação conjuntural e estrutural entre Estado e políticas públicas. No bojo de uma sociedade estatal de base capitalista e fundada em ideário neoliberal, a contradição premente consiste, pois, no fato de o Estado dar respostas que atendam aos interesses da classe dominante, representada, em especial, pela fração hegemônica que a integra, ao mesmo tempo em que deve responder às demandas polarizadas no movimento de luta das classes exploradas. E o que são os interesses? Lenaura Lobato (2006) contribui para esse entendimento. Em suas análises a respeito da representação de interesses, a autora afirma. A importância da representação de interesses reside em que essas condições, quando referidas ao processo político que

569

inscreve uma determinada política pública, não estão previamente dadas. [...] Os interesses são, portanto, a representação, no nível político, daquelas condições. A possibilidade de que se perpetuem ou sejam modificadas, é expressa na forma de demandas e através de grupos e/ou movimentos específicos da sociedade. [...] A representação de interesses não pode ser vista como restrita ao acesso de diferentes grupos ao aparelho estatal. Ela deve buscar o processo político que determina a política pública, buscar a política em seu sentido lato. E isso nos parece válido principalmente para aquelas sociedades onde o Estado é amplamente dominado por interesses privados. (LOBATO, 2006, p. 302).

Desse modo, os interesses vão além de manifestos e movimentos reivindicatórios de determinados grupos ou classes. Muito embora esses cenários sejam expressões sociais significativas, nem sempre são condicionantes na definição dessas políticas. Na verdade, os interesses e as relações de poder são sempre os determinantes das demandas em potencial que se materializarão, por meio das agendas de governo, em políticas públicas. Do ponto de vista teórico-conceitual, as diversas vertentes difundidas contribuíram na (re)definição de política pública, conforme se apresenta a seguir. A ideia delineada por Eloisa Höfling (2001) especifica que Políticas públicas são entendidas como o ‘Estado em ação’[...]; é o Estado implantando um projeto de governo, através de programas, de ações voltadas para setores específicos da sociedade. Estado não pode ser reduzido à burocracia pública, aos organismos estatais que conceberiam e implementariam as políticas públicas. As políticas públicas são aqui compreendidas como as de responsabilidade do Estado – quanto à implementação e manutenção a partir de um processo de tomada de decisões que envolve órgãos públicos e diferentes organismos e agentes da sociedade relacionados à política implementada (HÖFLING, 2001, p.31).

Celina Souza (2006), em artigo publicado sobre Políticas Públicas: uma revisão da literatura elabora uma importante síntese, aglutinando algumas das principais ideias de renomados estudiosos da área a respeito dessa definição.

570

Não existe uma única, nem melhor, definição sobre o que seja política pública. Mead (1995) a define como um campo dentro do estudo da política que analisa o governo à luz de grandes questões públicas e Lynn (1980), como um conjunto de ações do governo que irão produzir efeitos específicos. Peters (1986) segue o mesmo veio: política pública é a soma das atividades dos governos, que agem diretamente ou através de delegação, e que influenciam a vida dos cidadãos. Dye (1984) sintetiza a definição de política pública como 'o que o governo escolhe fazer ou não fazer'. A definição mais conhecida continua sendo a de Laswell, ou seja, decisões e análises sobre política pública implicam responder às seguintes questões: quem ganha o quê, por quê e que diferença faz (SOUZA, 2006, p. 24).

Em seguida, a autora apresenta uma análise acerca da definição de políticas públicas.

“[...] como o campo do conhecimento que

busca, ao mesmo tempo, 'colocar o governo em ação' e/ou analisar essa ação (variável independente) e, quando necessário, propor mudanças no rumo ou curso dessas ações (variável dependente) (SOUZA, 2006, p. 25-26).” Para ampliar o escopo conceitual de políticas públicas, Terezinha Moreira Lima (2007) adverte. Arriscando um conceito podemos entender por política pública o conjunto de ações governamentais ou de intervenção estatal, articuladas a interesses coletivos e voltadas para atender as demandas sociais e a garantia do exercício do poder político, configurando um compromisso público que visa dar conta de questões sociais e políticas em diversas áreas. É um processo político onde se dá a negociação de atores institucionais e sujeitos políticos diversos, em momentos e circunstâncias diferentes (LIMA, 2007, p. 4).

Ante o adensamento conceitual exposto, é presumível que a essência da política pública concentre-se no embate em torno das ideias, dos interesses e das preferências. Entretanto, convém explicitar que, no âmbito estatal, nem toda ação governamental é política pública193. Essa consolidação envolve aspectos relevantes próprios da

193

Embora o objeto desse debate seja caracterizar, apenas, política pública, reconhece-se a importância de reportar-se aos conceitos de plano, projeto e programa, a fim de especificar os atributos que diferenciam essas categorias. Carla Cunha (2006, p. 7-8) contribui para esse entendimento, ao elaborar uma síntese que reúne várias definições fundadas no posicionamento de diferentes teóricos. “Plano é o conjunto de programas que buscam objetivos comuns. O plano ordena os objetivos gerais e os desagrega em objetivos

571

caracterização que qualifica e consubstancia ações em políticas públicas. A despeito dessa caracterização, as políticas públicas estatais referem-se

ao

demandadas

estágio dos

em

interesses,

que

as

propostas

ganham

governamentais,

contorno,

estatuto

e

regulamentos, auferindo-se tratamentos formais mínimos e definindo metas, objetivos, recursos e etapas. Diferenciam-se das demais tipologias de políticas, essencialmente pelo caráter imperativo que lhe é atribuído, ao serem instituídas via instrumentos legais, normatizações e deliberações (leis, decretos, normas, resoluções e demais instruções normativas) e a implementação das ações de governo por meio de planos, programas, projetos e atividades. Assim perspectivadas, uma política pública geralmente envolve mais do que uma decisão e requer diversas ações estrategicamente articuladas para a materialização do fluxo de decisões tomadas. Essas políticas transformam-se em programas quando é explicitada a estratégia de implementação e, por meio de mecanismos de autoridade legal que o institui, são criadas as condições iniciais para sua implementação (SILVA E COSTA, 2002). Na concretude de um debate teórico sobre políticas públicas, a título de reflexão, torna-se imperioso questionar: Qual é a função e como são formuladas as políticas públicas? Quais os fundamentos que as sustentam? Quais as alternativas previstas? No conjunto das definições do processo decisório, o que está suposto, predisposto e pressuposto?

De

quem

são

os

interesses

que

estão

sendo

específicos, que serão os objetivos gerais dos programas. O plano organiza as ações programáticas em uma sequência temporal, de acordo com a racionalidade técnica e as prioridades de atendimento. (COHEN e FRANCO, 2004, p.86). Programa é um conjunto de atividades organizadas para serem realizadas dentro de cronograma e orçamento específicos disponíveis para a implementação de políticas, ou para a criação de condições que permitam o alcance de metas políticas desejáveis. (ALA-HARJA E HELGASON, 2000, p.8). Projeto é um instrumento de programação para alcançar os objetivos de um programa, envolvendo um conjunto de operações, limitadas no tempo, das quais resulta um produto final que concorre para a expansão ou aperfeiçoamento da ação do governo. Quando essas operações se realizam de modo contínuo ou permanente, são denominadas de Atividades. (GARCIA, 1997, p. 6).

572

materializados?

Qual

o

arranjo

institucional

imbricado

no

desenvolvimento da ação? Diante do complexo cenário que se impõe, não há respostas prontas. Esses questionamentos remetem à necessidade de virem à tona os mecanismos teórico-metodológicos pelos quais uma política pública é produzida. Interessa, pois, considerar o ciclo processual a ser percorrido na efetivação dessas políticas. Segundo estudiosos da área, esse ciclo associa quatro importantes momentos articulados entre si. Trata-se de um macroplanejamento que prevê os seguintes momentos: agenda (momento em que a percepção de problemas - motivada por interesses e preferências - insere-se na sua agenda de governo); a formulação da política (momento de definir o que fazer, como fazer, quais os fundamentos, quem participa, quantos e quais recursos serão destinados, que resultados se espera); implementação da política (legalização e regulamentação própria da ação - normas e ações); e avaliação da política (momento de verificar resultados e impactos do processo, visando ajustes e correção dos rumos). A principal razão para que esses momentos aconteçam reside no caráter político do processo. À medida que pode possibilitar maior transparência e publicização de todo o percurso (desde a tomada de decisão inicial), também é capaz de permitir que a sociedade tome consciência dos mecanismos de intervenção do Estado junto a vida social, visto se tratar de momentos que visam aproximar dos sentidos, dos significados, dos resultados e dos entrecruzamentos imbuídos na dinâmica das políticas públicas. Nesse movimento, é imprescindível considerar a classificação de política pública, bem como as matrizes teóricas, seus determinantes e suas influências.

573

2. POLÍTICAS PÚBLICAS: CLASSIFICAÇÃO, TIPOLOGIA E INFLUÊNCIAS Apropriar-se de noções teóricas é um fundamento necessário à produção do conhecimento. Os saberes produzidos histórica, sócia e cientificamente acerca do universo dos tipos de classificação de políticas públicas, por exemplo, são essenciais para compreender a trajetória dessa práxis social, seus desdobramentos e suas perspectivas. Após o arrazoado teórico exposto sobre a concepção de políticas públicas, serão objetos de debate desta seção os diferentes tipos de classificações de políticas públicas. Decerto que se trata uma discussão ampla, de base teórica densa. Sem a intenção de abordar a temática com a profundidade que merece e sem a pretensão de esgotar, aqui, todo o debate do conjunto dessa categorização, focaliza-se, nos limites deste texto, um panorama com os principais tipos de políticas e suas classificações, com ênfase nas políticas públicas sociais de natureza inclusiva e compensatória. Na busca por essa aproximação, reporta-se a estudos da área das ciências sociais, em especial, os desenvolvidos por Lincoln Souza (2011), Lenaura Lobato (2006), Celina Souza (2006), Carlos Cury (2005), entre outros que dialogam com as distintas visões teóricas existentes, no intuito de subsidiar estudos e de fomentar debates acerca das relevantes questões que envolvem os meandros das relações que se estabelecem entre Estado e políticas públicas. No bojo das conjeturas que sedimentam reflexões acerca de políticas públicas e seus processos, a concepção de Estado que se revela, a natureza das políticas de governo implementadas e o contexto sóciohistórico da sociedade envolvida são atributos determinantes, quando se trata de construir modelos de análises. Na tipologia de políticas públicas, por exemplo, diferentes matrizes teóricas, como a pluralista, neocorporativista, neoinstutucionalistas e neomarxistas194, pelas quais o 194

Sobre uma leitura mais aprofundada a respeito dessas abordagens, recomenda-se, por exemplo, estudos de Celina Souza (2006) e Lenaura Lobato (2006).

574

ciclo processual das políticas públicas estatais pode ser apreendido, contribuem para a construção e atualização de um referencial teóricometodológico nessa direção. Apesar de reconhecer as influências dessas abordagens e suas contribuições, não se discorre sobre elas neste momento. Interessa, pois, direcionar um olhar sobre os tipos de políticas públicas estatais, de modo a mapear noções introdutórias e a identificar aspectos relevantes, a fim de melhor compreender esse campo, à luz de diversificadas visões.

Considerando o largo espectro dessa tipologia

registrado na literatura, comenta-se sobre políticas públicas estatais distributivas, políticas redistributivas, políticas regulatórias, políticas constitutivas,

políticas

alocativas,

políticas

produtivas,

políticas

conjunturais, políticas estruturais, políticas universais, políticas focalizadas e políticas sociais (compensatórias e inclusivas). As políticas distributivas dizem respeito a ações que visam a distribuição, desconsiderando a limitação dos recursos públicos. Visa privilegiar apenas uma parcela da população. Na visão de Souza (2011, p.167) “somente por acumulação poderiam ser chamadas de políticas. Estaria suposto um impacto mais restrito, grande número de pequenos interesses organizados e a multiplicidade de participantes, recursos desagregados e no curto prazo é como se fossem ilimitados”. As

políticas

redistributivas

buscam

deslocar

algo,

tirando,

hipoteticamente, de quem tem para redistribuir com outra parcela da sociedade que não tem. Consiste, pois, em tomadas de decisões centradas no conflito, haja vista se configurar em um complexo jogo de interesses

antagônicos

cujo

resultado

é

de

perda

(para

um

determinado grupo) e de ganho (para outro grupo). Por essas razões é considerado um tipo de política ineficaz. As

políticas

regulatórias

constituem

o conjunto de ações

governamentais, implementado com o intuito de reger e regulamentar. Vinculam-se a ordens e proibições estabelecidas, em grande parte, por decretos e portarias. 575

As políticas constitutivas têm por finalidade determinar as regras, os procedimentos e as condições de funcionamento para garantir que outros processos entrem em vigor. As políticas alocativas são intervenções estatais de natureza autoritária, impostas com o fito de estabelecer a ordem, estritamente ligadas às áreas econômica e social. Consiste no manejo em que há alocação de recursos, por parte do Estado, e esses seriam “controlados por ele e responderia às demandas vinculadas ao tempo, lugar, grupo etc. As politics (processo político, política no sentido mais geral) estariam congruentes com as policies (em termos de programas de ação e políticas setoriais)” (SOUZA, 2011, p. 177). As políticas produtivas visam, essencialmente, situações de acumulação do capital. Consiste na criação de mecanismos, por parte do Estado, para sustentar a acumulação, dadas a fragilidades e debilidades que ponham em risco o sistema de produção capitalista. As políticas conjunturais se referem à amplitude e eficiência do estado em dar respostas imediatas com vistas a demandas de ordem geral. Assim, “supunha-se que tais demandas e problemas ficariam circunscritos e ligados ao âmbito definido pelo Estado e suas possibilidades

existentes

e

melhoria

contínua

(administração

da

demanda)” (SOUZA, 2011, p. 185). As políticas estruturais visam a garantir estratégias de superação para as crises econômicas e institucionais que se instauram no decorrer do processo. As políticas universais são ações que abrangem direitos e garantias à população e remetem a todo o contingente da sociedade. As políticas focalizadas dizem respeito a ações de natureza assistencialista, destinadas, mais especificamente, a alguns grupos sociais. As políticas sociais, via de regra, podem ser remetidas a tudo aquilo que leva ao assalariamento. Logo, quando uma ação estatal direciona-se para a força do trabalho e para o conjunto das classes 576

sociais, trata-se de uma política social. Porém, essa condição não implica, necessariamente, em melhoria na vida das pessoas. Para Lenaura

Lobato

(2006),

essa

tipologia

de

política

apresenta

características próprias em relação às demais inseridas nessa tipologia: “por princípio, é fornecedora de um bem público. Um bem que é custeado pelo conjunto da sociedade e dirigido a todos aqueles a ela pertencentes;

ou

seja,

são

todos

tanto

responsáveis

quanto

merecedores, mesmo que jamais o requeiram. Assim, a política social inclui a noção do direito e do dever sobre os bens sociais” (LOBATO, 2006, p. 307). Para fins específicos da discussão, discorre-se sobre duas das diversas nuances que pressupõem e caracterizam as políticas públicas sociais: as de cunhos compensatório e inclusivo. 

Políticas públicas sociais compensatórias – têm sua gênese em razão da exploração que sujeito é submetido. Centra-se na ideia de que o sistema mercadológico produz a desigualdade e o Estado precisa fazer as devidas intervenções. Consubstancia-se no fato de que se existem políticas compensatórias é porque existem políticas discriminatórias.



Políticas públicas sociais inclusivas – configuram um legado de ações de intervenção estatal que visam estratégias de atendimento tanto a questões voltadas para a universalização de direitos preconizados legalmente quanto à questões de diferença, com vistas a aspectos de gênero, classe social, etnia, idade, origem, religião, deficiência, entre outras. Elas buscam aproximar os valores formais dos valores reais existentes em situações de desigualdade (CURY, 2005).

3. ENTRECRUZANDO TEORIAS E REALIDADE: O CASO DO PROEJA/FIC FUNDAMENTAL COMO POLÍTICA PÚBLICA EDUCACIONAL A

síntese

conferida

na

seção

anterior

permite

fazer

os

entrecruzamentos entre o referencial teórico construído e a realidade brasileira na esfera das políticas sociais, notadamente no que se refere à educação. Em linhas gerais, comenta-se, a partir da literatura, sobre as influências desses modelos na re(definição) do quadro atual das 577

políticas

sociais

brasileiras

para

poder

localizar

o

PROEJA

FIC/FUNDAMENTAL, um programa instituído como política pública educacional (e ainda em desenvolvimento no âmbito da educação profissional e tecnológica), no interior da classificação das políticas sociais brasileiras. Por razões conjunturais e estruturais advindas de uma sociedade neoliberal e economia retardatária, como é o caso do Brasil, as políticas sociais não se efetivaram a contento desde a sua gênese. Nesse contexto, “a incorporação de demandas sociais se deu de forma alienada, onde a universalização de bens sociais não passou pela cidadania, mas pela extensão de privilégios” (LOBATO, 2006, p. 309). Com referência às políticas educacionais brasileiras, faz-se alusão ao pensamento de Eloísa Höfling (2001, p. 31). No entendimento dessa autora, a educação como uma política pública social, é “de responsabilidade do Estado – mas não pensada somente por seus organismos. As políticas sociais – e a educação – se situam no interior de um tipo particular de Estado. São formas de interferência do Estado, visando a manutenção das relações sociais de determinada formação social.” Em sendo assim, ressalta-se que, historicamente, apesar dos avanços e recuos registrados, a partir dos anos de 1990 no Brasil, em razão das prerrogativas de participação e democratização contidas nos marcos regulatórios constitucionais, o que ainda se percebe, atualmente, é a pulverização de um leque de políticas sociais sendo formuladas pelo Estado. Em conseqüência, dispersam-se, por vezes, o foco do problema para o qual a política pública foi desenhada, os grupos de interesses e preferências, os possíveis conflitos que origina, o percurso traçado para a sua efetivação e o papel dos autores envolvidos em todos os momentos do processo decisório, os quais serão ou deixarão de ser atingidos, entre outros fatores determinantes desse ciclo processual. Deriva, desse modo, o fato de que “as ações empreendidas pelo Estado não se implementam automaticamente, 578

têm movimento, têm contradições e podem gerar resultados diferentes dos esperados (HÖFLING, 2001, p. 35). Em consonância com o que foi postulado na metodologia, ou seja, localizar o PROEJA FIC/FUNDAMENTAL no contexto de classificação das políticas públicas. Para tanto, faz-se necessário entender, em primeiro

lugar,

como

esse

Programa

se

figurou

na

agenda

governamental para se tornar, efetivamente, uma política pública. Nesse entendimento, representa um contexto educacional problemático figurado na agenda de governo, sob forma de iniciativa voltada para o atendimento aos milhões de jovens e adultos (que perfazem altas estatísticas de brasileiros com nenhuma ou com baixa escolaridade) que deixaram de concluir seus estudos dentro de um ciclo normal de escolaridade tanto no ensino fundamental quanto no ensino médio. Representa, portanto, interesses (compensatórios) de uma demanda potencial de pessoas jovens e adultas que tiveram seus direitos constitucionais cerceados ao longo de suas vidas na idade escolar regular, ou seja, o direito à educação, e que também não se inseriram na EJA, como modalidade prevista na LDB (Lei 9.394/1996), pelos mais variadas motivos. O PROEJA se estabelece, assim, como uma política pública de inclusão social emancipatória, Inicialmente foi instituído, no âmbito das instituições

federais

de educação tecnológica,

pelo

Decreto



5.478/05. como Programa de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos. Posteriormente revogado, esse Decreto substituído pelo de nº 5.840/06 que, numa proposta de universalização do acesso à educação e ao trabalho qualificado e de elevação da escolaridade de jovens e adultos,

redimensionou

o

PROEJA

para

Programa

Nacional

de

Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos,

com

abrangência

desde o ensino fundamental, na formação inicial e continuada. Trata-se de uma iniciativa incluída na agenda governamental que objetiva 579

contribuir para a superação das lacunas deixadas pela inconclusão da educação básica, ao possibilitar a elevação da escolaridade de milhões de jovens e adultos, trabalhadores ou não, que deixaram de concluir o ensino fundamental, ao mesmo tempo em que favorece uma formação para a atuação numa atividade profissional. Politicamente, o PROEJA objetiva integrar conhecimentos da educação geral com a formação profissional inicial e continuada através de metodologias adequadas aos tempos e espaços da realidade dos sujeitos sociais que constituem o público beneficiário. Dessa forma, o grande desafio é construir uma proposta pedagógica que contemple, em sua organização curricular, as dimensões trabalho, ciência, tecnologia e cultura e a elevação de escolaridade, tendo como referência o perfil dos estudantes e suas experiências anteriores (BRASIL, 2009). Após a cuidada descrição feita acerca do PROEJA, na forma de PROEJA FIC/FUNDAMENTAL, infere-se que, do ponto de vista da classificação e da tipologia, esse Programa se insere no escopo das políticas públicas sociais, de cunho compensatório. Reportando-se as bases de Estado capitalista, é uma política pública de cunho social, uma vez que comporta “ações que determinam o padrão de proteção social implementado pelo Estado, voltadas, em princípio, para a redistribuição desigualdades

dos

benefícios

estruturais

sociais

visando

produzidas

pelo

a

diminuição

das

desenvolvimento

socioeconômico” (HÖFLING, 2001, p. 31). É de cunho compensatório, uma vez que tem por finalidade compensar déficits sociais de escolaridade, utilizando-se do viés da educação institucionalizada para salvaguardar um direito constitucional suplantado ou perdido. Enunciase que o PROEJA FIC/FUNDAMENTAL é uma política social de educação, ao [...] focalizar a escolaridade não realizada ou interrompida no passado, o paradigma compensatório acabou por enclausurar a escola para jovens e adultos nas rígidas referências

580

curriculares, metodológicas, de tempos e espaços da escola de criança e adolescentes, interpondo obstáculos de flexibilização da organização escolar necessária ao atendimento das necessidades desse grupo sociocultural. [...] a concepção compensatória nutre visões preconceituosas que subestimam os alunos, dificulta que os professores valorizem a cultura popular e reconheçam os conhecimentos adquiridos pelos alunos na vida social e no trabalho (DI PIERRO, 2005, p.118).

Face ao exposto, afirma-se que PROEJA FIC/ FUNDAMENTAL se configura, ainda, em uma política social de natureza inclusiva. Muito embora, conceitualmente, essa tipologia remeta-se a ações voltadas a grupos específicos tidos como minoria (e não é o caso do público da EJA), no caso específico desse Programa, isso se aplica não por fatores ligados a raízes culturais, étnicas religiosas ou mesmo de gênero. O PROEJA FIC/ FUNDAMENTAL se insere no espectro de política pública compensatória e inclusiva, a partir do momento em que tem como meta combater todas e quaisquer formas de discriminação que impeçam o acesso a maior igualdade de oportunidades e de condições. Desse modo, as políticas públicas includentes corrigem as fragilidades de uma universalidade focalizada em todo e cada indivíduo e que, em uma sociedade de classes, apresenta graus consideráveis de desigualdade. Nesse sentido, as políticas inclusivas trabalham com os conceitos de igualdade e de universalização, tendo em vista a redução da desigualdade social (CURY, 2005, p. 4).

Desse modo, não é demais ponderar que, na qualidade de política pública compensatória e inclusiva, o PROEJA FIC/FUNDAMENTAL aponta para possibilidades e limitações. É inegável a necessidade premente e a obrigatoriedade consolidada de o Estado formular políticas públicas voltadas a interesses e a preferências demandadas por esse contingente em potencial. Entretanto, em se tratando de políticas públicas direcionadas à educação, notadamente as que associam elevação de escolaridade com qualificação profissional, a exemplo da política em análise, devem estar orientadas por critérios que assegurem visibilidade social às ações educativas implementadas, fundadas em ideais democráticos, na busca pela melhoria da 581

qualidade do ensino e perspectivadas, prioritariamente, em princípios da formação humana integral, sem que haja uma excessiva vinculação da qualificação profissional ao contexto produtivo. Acredita-se na possibilidade de desenvolver educação profissional, via política pública, alicerçada na perspectiva do trabalho incerto ou imediato, de modo a prevalecer um modelo de formação para toda a vida.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS DE UM DEBATE AINDA INICIAL No decurso das reflexões empreendidas sobre o debate das tipologias e classificações de política pública, reconhece-se as implicações dos embates originados na composição de políticas distributivas,

redistributivas,

regulatórias,

constitutivas,

alocativas,

produtivas, conjunturais, estruturais, universais, focalizadas e sociais (compensatórias e inclusivas), as quais consolidam, em contexto mais amplo, o quadro atual das políticas públicas educacionais brasileiras. Nessa seara, é relevante considerar que, muito embora uma política pública implique em decisão política, nem toda decisão política configura

política

características

pública.

que

Faz-se

qualificam

necessário e

atentar

consubstanciam

para

as

ações

governamentais em políticas públicas, uma vez que as questões envolvem questões bem mais complexas no que concerne à origem, ao destino, ao formato e aos impactos. Sob essa focagem, assevera-se que decidir por uma política pública implica responsabilidade social para escolher entre um leque de alternativas, conforme a hierarquia de preferências e interesses dos atores sociais abrangidos (organismos, pessoas, grupos, etc.), os princípios pautados, os valores humanos e sociais e a expressa sintonia, em maior ou menor intensidade, entre as finalidades almejadas e os meios e recursos disponíveis.

582

Portanto,

é

imperioso

que

o

Estado

desenvolva

ações

configuradas em política públicas que atendam às reais necessidades sociais,

fundadas

em

ideais

democráticos

de

cidadania

e

emancipação, com prevalência da qualidade sob a quantidade. Logo, além dos momentos de agenda, de formulação e de implementação, é preciso perseguir os mecanismos de avaliação, de modo que se possa refletir sobre as reais condições de desenvolvimento, os resultados e os impactos dessas políticas, especialmente, quando se trata do PROEJA FIC/FUNDAMENTAL. Somente assim será possível aproximar-se da eficiência, da eficácia e da efetividade almejada a toda política pública social de natureza estatal.

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583

DI PERRO, M. C. Notas sobre a redefinição da identidade e das políticas públicas de educação de jovens e adultos no Brasil. Educação & Sociedade. Campinas, v. 26, n. 92, p. 115-119, 2005. HOFLING, Eloisa de Mattos. Estado e políticas (públicas) sociais. Cadernos Cedes, Campinas-SP, ano XXI, n. 55, novembro/2001. LIMA, Terezinha Moreira. Concepção e processo de políticas públicas e a perspectiva de gênero: diferentes enfoques de gênero em políticas públicas. Anais. Iii Jornada Internacional de Políticas Públicas. São Luís MA, 2007. Disponível em LOBATO, Lenaura. Algumas considerações sobre a representação de interesses no processo de formulação de políticas públicas. IN: FERRAREZI, E.; Saravia. E. Políticas públicas coletânea 1, Brasília: ENAP, 2006. NEVES, Lúcia Maria Wanderley; PRONKO, Marcela. A atualidade das idéias de Nicos Poulantzas no entendimento das políticas sociais no século XXI. Germinal: Marxismo e Educação em Debate, Londrina, v.1, n.2, jan. 2010. POULANTZAS, Nicos; LACLAU, Ernesto. Debates sobre el Estado capitalista/1: Estado y classe dominante. Buenos Aires: Imago Mundi, 1991. SILVA, Pedro L. B.; COSTA, Nilson R. A Avaliação de Programas Públicos: reflexões sobre a experiência brasileira. Relatório Técnico. Cooperação Técnica BID-IPEA. Brasília, IPEA, 2002. SOUZA, Celina. Políticas públicas: uma revisão da literatura. Sociologias: Porto Alegre, ano 8, nº 16, jul/dez 2006, p. 20-45. SOUZA, Lincoln Moraes de. Comentando a classificação de políticas públicas. Cronos, Natal-RN, v.11, n.1, janeiro/junho 2011.

584

DISCUTINDO AS CONCEPÇÕES DE ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS Melissa Rafaela Costa Pimenta 195 Gersonita Paulino de Sousa Cruz196 Sandra Michelle Bessa de Andrade Fernandes 197 Lincoln de Souza Moraes (Orientador)198 Resumo: O objetivo desse trabalho foi identificar, preliminarmente, o conceito de Estado e suas funções através das políticas públicas, a partir da leitura de algumas das obras dos autores como Miliband, Poulantzas e Claus Offe. A importância dessa pesquisa se dá pela necessidade de conhecer o conceito de Estado, mais geral e distinto de governo, para melhor definir o papel das políticas públicas. Orientou-se no sentido de buscar responder as seguintes questões: O que é o Estado na sociedade capitalista? Como se relaciona Estado e governo? E como as ações do Estado materializam-se através de políticas públicas? Dessa forma a partir das interpretações das leituras, verificamos a necessidade do estudo mais sistemático das concepções de Estado para uma melhor significação de políticas públicas. Palavras-chave: Políticas Públicas; Estado; Governo.

INTRODUÇÃO Nas sociedades em que a atividade econômica é principalmente realizada à base da propriedade e do controle privados, é importante entender como o Estado desempenha suas atividades através do setor público e de sua relação com o setor privado. Este ponto vai se transformando ao longo das discussões, de maneira que passamos a 195

Graduada em Ciências Sociais (UERN), Especialista em Filosofia (UERN) e Gestão Ambiental (UERN). Professora Substituta (UERN). Mestranda em Ciências Sociais (UFRN). Integrante do Grupo de Pesquisa do Pensamento Complexo (GECOM/UERN) [email protected]. 196 Graduada em Pedagogia (UnP), Especialista em Psicopedagogia (UnP), Mestranda em Políticas Públicas e Práxis da Educação (UFRN). Professora do Município de Parnamirim e São José de Mipibu. Líder da Coordenadoria de Desenvolvimento da Educação Infantil na Secretaria Municipal de Educação e Cultura no Município de Parnamirim. [email protected]. 197 Graduada em Enfermagem (UFRN), Mestra em Enfermagem (UFRN), Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (UFRN). Professora Efetiva na Escola de Enfermagem (UFRN). [email protected]. 198 Graduado em Ciências Sociais (UFC), Mestre em Sociologia (UnB), Doutor em Política Social (UNICAMP). Professor Associado (UFRN). Líder do Grupo Interdisciplinar de Estudos e Avaliação de Políticas Públicas (GIAPP/UFRN). [email protected].

585

ter, por um lado, um debate da luta de classes na análise, e outro defendendo a derivação lógico-histórica do Estado. Para Miliband (1972, p. 67), É o fato de que ‘o Estado’ não é um objeto de que ele não existe como tal. O ‘Estado’ significa um número de determinadas instituições que em seu conjunto constituem a sua realidade e que interagem como partes daquilo que pode ser denominado o sistema estatal.

Em princípio a inicial implicação disso é que fica excluída a noção de que o Estado poderia ser uma instituição de tipo específico, cujo central objetivo é defender o predomínio na sociedade de uma determinada classe. Uma vez que nas sociedades ocidentais não existem classes, interesses ou grupos predominantes. Existem apenas blocos de interesses, cuja competição, que é sancionada e garantida pelo próprio Estado, assegura interesse particular consiga pesar demasiadamente sobre o Estado. Na concepção de Miliband (1972) o setor privado se beneficia do consumo, créditos, subsídios e benefícios do próprio Estado. A intervenção do Estado é bem ampla e isso se aplica para a responsabilidade da rede de serviços sociais. O governo e Estado aparecem comumente como sinônimos, isso visto que é o governo que fala em nome do Estado. Na sociedade costuma-se a dizer que prestam obediência não ao governo em exercício, e sim ao Estado; mas é ao governo que devem dar obediência. Cabe ao Estado, em cujo nome só o governo pode falar e por cujas ações devem assumir a responsabilidade final. Com um entendimento de que o Estado e o Governo são diferentes da sociedade civil, um aspecto básico do papel do Estado é que os governos ao agir em seu nome, têm sido de fato obrigados a agir contra alguns direitos de propriedade a desgastar algumas prerrogativas empresariais, para ajudar reparar um pouco o equilíbrio entre o capital e o trabalho. O fato de que os chamados detentores do 586

poder político buscavam atingir inúmeros outros objetivos, não deve encobrir o fato de que, a serviço desses objetivos, eles se tornaram servos das classes dominantes como negocistas e investidoras. Para Miliband (1972) a diversidade de pontos de vista, atitudes, programas e políticas a respeito de uma infinitude de assuntos são realmente surpreendentes, e intensifica o debate e a competição política, no sentido de seu funcionamento e a legitimação. Porque a função do Estado em determinada formação social e os interesses da classe dominante nessa formação coincidem, e isso se deve ao próprio sistema (MILIBAND, 1975). Miliband (1972) mostra que os interesses empresariais e de proprietários dos países capitalistas avançados têm podido em geral confiar na boa vontade e ativa de seus governos e ainda que ali, surgiram governos cujos membros não podiam em virtude do objetivo final e da retórica oficial de seus partidos serem tão confiáveis, reduziu os perigos que tais interesses tiveram que enfrentar. Assim, o Estado é uma espécie de espelho, então não teria autonomia relativa e as suas políticas refletiriam todos os interesses competitivos e fragmentados. Afirma Miliband (1975, p. 44) “o Estado não é manipulado pela ‘classe dominante’ ao fazer aquilo que lhe é ordenado: fá-lo autonomamente, mas totalmente devido às ‘relações objetivas’ que lhe são impostas pelo sistema”. Ou seja, a intervenção, a regulamentação e o controle do Estado na vida econômica, por mais significativos que possam ser não afetaram o mecanismo da empresa capitalista da maneira sugerida pelos teóricos pós-capitalistas. Suas políticas e ações são determinadas pelo contexto capitalista de desigualdade, que é generalizada onde opera o Estado. O autor não

especifica,

exatamente,

o

que

seriam

as

políticas

estatais/governamentais e as diferenças com outras ações do Estado. Assim,

quem

tem

o

poder

econômico

cada

vez

mais

concentrado termina preponderando na determinação das políticas públicas e ações do Estado e no sistema político. É o contexto 587

capitalista de desigualdade que é generalizada, onde opera o Estado, que determina suas políticas e ações. “Interesse público” (aspas do autor) de um lado e os empresários de outros. Miliband não usa a expressão políticas públicas e refere-se a impostos de transmissão e taxação progressiva como medidas criticadas pelos ricos, mas que não mudaram e nem tiveram impacto radical sobre a desigualdade econômica. O autor afirma que mesmo havendo diferenças quanto a intervencionistas ou não intervencionistas, nenhum dos dois quer o fim do sistema capitalista e a política do capitalismo avançado mostra distintas concepções de como dirigir o mesmo sistema e não em mudanças do sistema (MILIBAND, 1972). Para isto, concebemos adequado também apresentar as ideias de Poulantzas, que realiza um estudo referente ao funcionamento do Estado Capitalista, suas instituições quanto à base ideológica que o sustenta, observando sua relação com as classes sociais. Poulantzas (1979) afirma que o Estado consiste em uma relação social, porém rejeitou a visão de que o Estado é uma entidade de direito próprio, seja um instrumento dócil, seja um sujeito racional. De acordo com autor, o Estado tem um papel de organização em relação à burguesia, ou outras frações da classe dominante, e instaura essas classes como classes dominantes. E isso ocorre porque segundo o mesmo, o Estado tem uma autonomia relativa em relação a esses grupos de poder. Poulantzas estabelece como acontece essa política do Estado em benefício do bloco burguês e apresenta o Estado como condensação material e específica de uma relação de forças entre classes e frações de classes. Para Poulantzas (1979, p.1) “como o capital”, ele é uma relação de

forças

ou,

mais

precisamente,

a

condensação

de

tal

relacionamento entre as classes e as frações de classe, da forma como ela é expressão no Estado em uma forma necessariamente específica. 588

As funções sociais do Estado dependem, também diretamente, da intensidade da mobilização popular em um contexto de efeito das lutas, ora como tentativa de desativamento antecipado dessas lutas por parte do Estado. O Estado também tem papel específico na organização das relações ideológicas e da própria ideologia dominante, que invade os aparelhos de Estado e elabora, apregoa e reproduz esta mesma ideologia. Neste sentido, a visão predominante de políticas públicas está igualmente ligada ao Estado e suas variações. Jessop (2009) menciona que Poulantzas, implicitamente, rejeitou uma teoria geral do Estado em benefício de análises históricas. Para ele, o autor reconheceu que a constituição histórica e formal do Estado não é pré-datado, mas resulta de lutas passadas e é também reproduzida em e por meio de lutas. Poulantzas analisa o Estado como estruturante e que responde a demanda de pressão de grupos e que tem a sua autonomia relativa, pois depende dos interesses gerais, coesionando as classes. Se o Estado fosse um mero instrumento das classes dominantes, as políticas, necessariamente, seriam apenas políticas das classes e frações dominantes e não, propriamente, políticas públicas. Assim, se o Estado não é um simples apêndice das classes dominantes, isto significa que há espaço para as políticas públicas não imediata e mecanicamente burguesas. Mas é necessário ir além e vincular o Estado com a dominação política e a luta política, pois as referências não podem se prender somente às relações de produção como sustenta o teoricismo formalista na teoria do Estado, já que as lutas de classe e a dominação política não intervêm somente depois. Este ponto é importante, porque registra a importância da política e, por conseguinte, da atuação política do Estado e das políticas públicas (POULANTZAS, 1979). Neves e Pronko (2010), ao analisar as considerações de Poulantzas (1979) sobre o Estado e as classes dominantes, enfatizam que 589

segundo o autor, o Estado representa e organiza o interesse político de longo prazo do bloco do poder, e isto é possível porque o Estado é detentor de uma autonomia relativa em relação a classes e frações de classes particulares, pois representa o interesse político de longo prazo da burguesia, ou seja, do capitalismo coletivo, mediante direção de uma dessas classes. Apresenta também a contradição fundamental do conjunto da aparelhagem econômica que consiste em dar respostas aos interesses da classe dominante, e responder a demanda das lutas das classes exploradas. Assim apesar de o papel do Estado responder aos interesses do bloco no poder, Poulantzas (1985, p. 213) destaca que as funções sociais do Estado dependem da “intensidade da mobilização popular: ora como efeitos das lutas, ora como tentativa de desativamento antecipado dessas lutas por parte do Estado”. O que Poulantzas chama, dentre outras coisas, de táticas contraditórias e que a ciência política acadêmica denominaria de jogo de poder ou algo do gênero, remete, direta ou indiretamente para a formulação e, principalmente, para a implementação de políticas Se o Estado ampliou bastante seu raio de ação, as políticas públicas fazem parte desta ampliação, e é a partir da autonomia relativa que possibilita o mínimo de raio de ação ao ter um espaço relativo e, portanto, o mínimo de formulação e implementação de políticas públicas. Dessa maneira o Estado não é um simples apêndice das classes dominantes, isto significa que há espaço para as políticas públicas não imediata e mecanicamente burguesas. Claus Offe, sociólogo alemão, já foi considerado um autor moderno dentro da tradição marxista, na medida em que realiza uma análise do Estado a partir de uma perspectiva de classe, onde ocorrem conflitos, considerando que no interior do Estado estão presentes interesses referentes à acumulação do capital e às reinvindicações dos trabalhadores. O autor se insere no debate atual que amplia a

590

dimensão política do Estado para a compreensão de suas funções no capitalismo contemporâneo (HOFLING, 2001). Para Offe, o Estado atua como regulador das relações sociais a serviço da manutenção das relações capitalistas em seu conjunto, e não especificamente a serviço dos interesses do capital. Em momentos de assimetria nas relações entre os proprietários de capital e proprietários da força de trabalho, o Estado atua como regulador a serviço da manutenção das relações capitalistas (HOFLING, 2001). Esta função reguladora do Estado se dá através da política social. Para Lenhardt e Offe (1984) a política social é a forma pela qual o Estado tenta resolver o problema da transformação duradoura de trabalho não assalariado em trabalho assalariado, sem afetar a organização do trabalho capitalista. Ainda segundo os autores: A transformação em massa da força de trabalho despossuída em trabalho assalariado não teria sido nem é possível sem uma política estatal, que não seria, no sentido restrito, ‘política social’, mas que da mesma forma que esta contribui para integrar a força de trabalho no mercado de trabalho (LENHARDT; OFFE, 1984, p.17).

Nesta perspectiva, a política social não é mera reação do Estado aos problemas da classe operária, porém, contribui de forma indispensável para a constituição dessa classe. A função mais importante desta política consiste em regulamentar o processo de proletarização. O Estado capitalista moderno tem como função qualificar permanentemente a força de trabalho para o mercado de trabalho, assim como manter sob controle parcelas da população não inseridas no processo produtivo. Os instrumentos políticos da educação preenchem, neste caso, a função de modelar motivações (e, ao mesmo tempo, de regular quantitativamente o mercado de trabalho. [...] uma função preventiva é preenchida pela legislação protetora relativa aos aspectos técnicos, temporais e sociais do processo de trabalho. [...] o seguro de saúde contribui para que o

591

trabalhador, impedido de recorrer a formas de assistência tradicionais, não seja marginalizado duravelmente por causa de uma doença transitória. [...] o seguro de desemprego tem a função de evitar que os trabalhadores atingidos pelo desemprego se esquivem do controle daqueles que sancionam sua disposição para o trabalho (LENHARDT; OFFE, 1984, p.25 e 26).

O processo de industrialização capitalista é acompanhado de processos de desorganização e mobilização da força de trabalho decorrente da ampliação das relações concorrenciais, crises cíclicas, dissolução das formas agrárias de vida e de trabalho, levando à destruição das condições de utilização da força de trabalho. Os indivíduos atingidos não conseguem mais vender sua força de trabalho para sobreviver, tendo como decorrência a proletarização passiva. Como solução referente à disposição da força de trabalho, considera-se o uso dos aparelhos ideológicos, como a repressão do Estado às formas de atividades alternativas ao trabalho assalariado; assim como as normas e valores organizados e transmitidos pelo Estado. Este problema estrutural de uma constate discrepância, especialmente no que diz respeito a um excedente potencial de oferta, exige mecanismos reguladores dos volumes quantitativos, capazes de estabelecerem o equilíbrio entre a proletarização ‘passiva’ e ‘ativa’. As flutuações ‘anárquicas’ da oferta e da procura no mercado de trabalho, geradas, mas não controladas pela sociedade, impõe um sistema social, fora do processo produtivo, destinado a recolher as parcelas redundantes, de modo a assegurar a reprodução da força de trabalho, mesmo quando não já um impacto direto sobre o processo de produção (BOHLE; SAUER, 1975, apud LENHARDT; OFFE, 1984, p.23).

O sistema de acumulação capitalista apresenta problemas estruturais em seu desenvolvimento, referentes à constituição e reprodução permanente da força de trabalho. O desenvolvimento da política social estatal responde às exigências funcionais do capital e busca preservar a força de trabalho qualificando-a e protegendo-a de uma exploração exagerada, assegurando as condições materiais de reprodução da força de trabalho, buscando também uma adequação 592

quantitativa entre a força de trabalho ativa e a força de trabalho passiva (LENHARDT; OFFE, 1984). Como função última da política social fica a questão de saber como as distintas instituições sócio-políticas e estatais contribuem para a resolução dos problemas, gerando intervenções do Estado que buscam atingir a sociedade como um todo. E quais são os referenciais utilizados para pensar essas ações. Para

responder

à

questão

relativa

às

forças

motrizes

do

desenvolvimento da política social, Lenhardt e Offe (1984) oferecem dentro

da

literatura

da

ciência

política

duas

seqüências

de

argumentação: a) a explicação da gênese da política social baseada na teoria dos interesses e das necessidades, a partir de exigências políticas dos trabalhadores assalariados organizados; b) a explicação da gênese da política social a partir dos imperativos do processo de produção

capitalista,

das

exigências

funcionais

da

produção

capitalista. Os autores ressaltam que: Ao contrário dessas interpretações “harmonicistas” da gênese e da função da política social estatal, defendemos aqui a tese de que para a explicação da trajetória evolutiva da política social, precisam ser levadas em conta como fatores causais concomitantes tanto “exigências” quanto “necessidades”, tanto problemas da “integração social” quanto problemas da “integração sistêmica” (Lockwood), tanto a elaboração política de conflitos de classe quanto a elaboração de crises do processo de acumulação (LENHART; OFFE, 1984, p.36).

Os

autores

desenvolvidas

elaboram

estratégias

a

questão

sócio-políticas

sobre e

como como

podem

ser

podem

ser

modernizadas as instituições existentes, de modo que satisfaçam, simultaneamente, as exigências da classe operária e as necessidades do processo de acumulação capitalista, levando em conta ainda os pré-requisitos

da

economia

do

trabalho

e

as

possibilidades

orçamentárias. Respondem em seguida que a chave da explicação passa pela compatibilidade das estratégias, com as quais o aparelho 593

político de dominação deve reagir tanto às exigências quanto às necessidades, de acordo com as instituições políticas existentes e as relações de força societária canalizadas por elas. Por fim, concordamos com Hofling (2001), quando esta autora ressalta que as ações empreendidas pelo Estado não se implementam automaticamente, elas contam com movimentos, contradições e podem gerar resultados diferentes dos esperados. O impacto das políticas sociais implementadas pelo Estado capitalista, por dizer respeito a grupos diferentes, sofre a influência de interesses diferentes, expressos nas relações sociais de poder. Seguem-se duas afirmações, que segundo Carlos Pio e Mauro Porto (1998), devemos reconhecer como válidas. Em primeiro lugar, é certo que a distribuição do poder material afeta o sistema político, mas o poder material não provém apenas da posse de propriedades, no sentido tradicional. Uma segunda certeza que precisa ser reconhecida é que, em alguma medida, qualquer Estado é autônomo. A partir das interpretações das leituras verificamos a necessidade do estudo mais sistemático das concepções de Estado para uma melhor significação de políticas públicas. Visto que, sem a existência do Estado não haveria políticas públicas e nem medidas que melhorem, por pouco ou muito que seja, a vida das classes populares. Como o Estado tem também um papel ativo ao criar, transformar e realizar supõe-se que, igualmente, teria a iniciativa de gerar políticas, e assim as diferentes políticas seriam materializadas nos distintos e respectivos aparelhos de Estado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS HOFLING, Eloisa de Mattos. Estado e Políticas (públicas) Sociais. Caderno Cedes. Campinas-SP, ano XXI, n.55, novembro/2001.

594

JESSOP, Bob. O Estado, o poder, o socialismo de Poulantzas como um clássico moderno. Revista de Sociologia e Política. Curitiba, v. 17, n. 33, jun. 2009. LENHARDT, Gero; OFFE, Claus. Teoria do Estado e política social.In: OFFE, Claus. Problemas estruturais do Estado Capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. MILIBAND, Ralph. O Estado capitalista: resposta a Nicos Poulantzas. In: POULANTZAS, Nicos; MILIBAND, Ralph. Debate sobre o Estado Capitalista. Critica e Sociedade, 2. Porto: Edições Afrontamento, 1975. MILIBAND, Ralph. O Estado na sociedade capitalista. Rio de Janeiro: Zahar, 1972. NEVES, Lúcia Maria Wanderley; PRONKO, Marcela. A atualidade das idéias de Nicos Poulantzas no entendimento das políticas sociais no século XXI. Germinal: Marxismo e Educação em Debate. Londrina, v.1, n.2, jan. 2010. OFFE, Claus. Problemas estruturais do Estado Capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. PIO, Carlos; PORTO, Mauro. Teoria política contemporânea: política e economia segundo os argumentos elitistas, pluralistas e marxistas. In: RUA, Maria das Graças; CARVALHO, Maria Izabel Valladão de (orgs). O estudo da política: tópicos selecionados. Brasília: Paralelo 15, 1998, p. 291-314. POULANTZAS, Nicos (Org.). A crise do Estado. Braga/Portugal: Moraes Editores, 1979. ________. O Estado, o poder, o socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

595

OS SIGNIFICADOS DA PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL EM CONSELHOS GESTORES DE POLÍTICAS PÚBLICAS - CASO DO CEDEF-CEARÁ

Geovani Jacó de Freitas199 Abelardo Coelho da Silva200

Resumo: Este artigo se propõe a perceber os significados da participação política vividos pelos conselheiros da sociedade civil no Conselho Estadual dos Direitos das Pessoas com Deficiência do estado do Ceará – CEDEF, na gestão de 2010/2012. Para dialogar com esta situação, traz-se aqui reflexões teóricas fundamentadas, na teoria do Estado Ampliado de Gramsci, para quem a sociedade civil possui função estatal, assim como o governo, na gestão de interesses e direitos. Criado em 1988, diante de um contexto nacional de redemocratização do País, esta arena pública é composta por seis conselheiros governamentais, seis conselheiros da sociedade civil e também, por dois conselheiros consultivos. A intenção é de se analisar, por meio das falas dos conselheiros da sociedade civil, suas visões, significados e expectativas da gestão democrática e compartilhada das políticas públicas direcionadas às pessoas com deficiência no Ceará. Palavras-chaves: Participação política, Sociedade Civil, Pessoas com Deficiência, Estado Ampliado.

1. INTRODUÇÃO

Desde os anos 1980/1990, com a luta por uma participação institucionalizada e qualitativa na gestão pública, as reivindicações da sociedade civil pela redemocratização do Brasil focaram-se na criação de conselhos gestores, com ênfase nas políticas públicas. Assim, o

199

Graduada em Letras (URNE), Mestra em Sociologia Rural (UFPB) e Doutora em Sociologia (UFC). Professora Adjunta (UECE). Professora do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Sociedade (MAPPS/UECE). Líder do Laboratório de Estudos da Conflitualidade e da Violência (COVIO/UECE), pesquisador associado do Laboratório de Direitos Humanos, Cidadania e Ética (LABVIDA/UECE) e do Laboratório de Estudos da Violência (LEV/ UFC). [email protected]. 200 Graduação em Letras Portuguesa (UECE), Francesa (UECE), Mestre Políticas Públicas e Sociedade (MAPPS/UECE) e Doutorando em Artes, Estética, Prática e Teorias da Escola Doutoral Sciences de lHomme et de la Société da Universidade dArtois - Arras, França. Professor, Intérprete e Tradutor livre da língua francesa. Professor da Língua Portuguesa. [email protected].

596

espaço institucional foi concretizado com a Carta Magna de 1988, que ratificou a prática participativa em diversos setores das políticas públicas, constituindo nova relação entre o Estado brasileiro e a sociedade. Os conselhos gestores responsáveis em gerir e monitorar políticas públicas - sejam com caráter consultivo para ouvir a população - seja deliberativo – com poder de decisão – são, desde os anos 1990, a arena de participação com objetivo de gerir a coisa pública. Estas estruturas possuem composição paritária, sendo 50% de representantes da sociedade civil e 50% de representantes dos poderes públicos. Existem conselhos nos âmbitos federal, estadual e municipal nas seguintes áreas: habitação, cidades, saúde, educação, pessoas com deficiência, trabalho, assistência social, idoso e muito mais. Este artigo decorre de pesquisa em curso. Fundamenta-se em dados colhidos mediante pesquisa documental sobre o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Deficiente do Estado do Ceará, visando compreender seu funcionamento, finalidades e os significados da participação política percebidos pelos conselheiros da sociedade civil, através da análise dos documentos institucionais, das atas do período 2010 a 2012, leis e regimento interno que definem atuação deles no processo de elaboração das políticas públicas para pessoas com deficiência no Ceará. Esta análise possibilitou sistematizar e interpretar os depoimentos dos conselheiros da sociedade civil sobre sua atuação, seu papel e sobre este espaço de gestão de políticas públicas. 2. A SOCIEDADE CIVIL NO ESTADO AMPLIADO GRAMSCIANO – CONSENSO E HEGEMONIA Utilizou-se nesta pesquisa, o conceito de sociedade civil em Gramsci que a define [...] como o conjunto das organizações ou ‘aparelhos privados de hegemonia’, responsáveis pela elaboração ou difusão das ideologias, abarcando em seu interior os partidos políticos, os

597

sindicatos, os movimentos sociais, as igrejas, o sistema escolar (escolas, universidades) e o sistema de comunicação em geral (jornais, editoras, revistas, radio, televisão). (SIMIONATTO in LUIZ, 2010, p. 48).

Este conjunto de organizações deve exercer sobre a sociedade sua hegemonia201 política e cultural (nível de cultura, independência mental, espírito de iniciativa e de senso de responsabilidade). Este movimento hegemônico reúne as massas em uma só força política que gera partidos políticos, com força eficiente, com dirigentes eficazes, capacitados, de vários graus e com capacidade para ser um intelectual orgânico: aquele que possui organicidade com as massas. Esses partidos têm a missão de criar dirigentes capazes e necessários para que um grupo social definido se articule e transforme-se em exército político organicamente predisposto em

um centralismo

democrático, em movimento, um modo de temperar os impulsos da base com o comando da cúpula, organicidade. “Este trabalho requer uma unidade orgânica entre teoria e prática, entre camadas intelectuais (orgânicos) e massas populares, entre governantes e governados”.(GRAMSCI, 1968, p.84). Assim, privilegiamos o pensamento de Gramsci sobre o Estado Ampliado em que governo e sociedade civil possuem função estatal, já que, O Estado não é um ente, um substantivo, separado, fora e acima ou a serviço da sociedade. É uma função, ou seja, é a gestão de interesses e direitos, gestão que atualmente é feita por representantes governamentais e civis. (SALES, 2003, pág. 69)

Dessa forma, na sociedade civil, espaço do consenso e da hegemonia é essencial a formação de uma vontade coletiva, com uma linha de ação coletiva para resolver problemas que a sociedade impõe e que existem premissas para resolvê-los. Assim, se tem a formação de um movimento histórico coletivo com uma certa 201

Entre vários estudos sobre Gramsci, temos SALES (2003),que define a hegemonia gramsciana como “um modo específico de poder”. É o poder de expressar, organizar e e interpretar um querer coletivo. Esta se legitima pelo consentimento e não pela força. “Quem exerce a Hegemonia é dirigente, quem exerce a dominação é ditador ou algo da mesma ordem”.

598

homogeneidade, mais ou menos ao longo do tempo e não com muitas explosões sintéticas imprevistas. Essa formação é essencial para os partidos em que utopias, racionalismos abstratos têm a mesma importância que as experiências históricas. Com os partidos formados, tem-se a estandardização de grandes massas da população percebido no contexto histórico de Gramsci.

3. A SOCIEDADE CIVIL E O CONSELHO ESTADUAL DOS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA DO CEARÁ – CEDEF – PAPEL E FUNÇÃO INSTITUCIONAL

O Conselho Estadual dos Direitos das Pessoas com Deficiência do Ceará – CEDEF está vinculado à Secretaria de Justiça e Cidadania (SEJUS) do estado do Ceará202, e é composto por vinte e quatro membros, sendo doze titulares e doze suplentes, sendo 50% de conselheiros da sociedade civil e 50% de conselheiros governamentais e 2 conselheiros consultivos. Entre eles, 50% são formados por indivíduos e organizações da sociedade civil. Os representantes da sociedade civil são eleitos em Assembleia Geral convocada para este fim, conforme o Capítulo II – Da Composição, artigo 2º, §2º do Regimento Interno203 do CEDEF: §2º - Os membros (representantes da sociedade civil), a que se refere o inciso II deste artigo serão escolhidos em Assembleia Geral das Entidades da Sociedade Civil convocada para esse fim, através de edital público da Secretaria da Justiça e Cidadania. (CEDEF, 2010).

202

Segundo a lei 13.297 de 07 de março de 2003, artigo 27: “O Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência, criado pela Lei n. 11.491, de 23 de setembro de 1988, e alterado pela Lei n. 12.605, de 15 de julho de 1996, fica vinculado à Secretaria de Justiça e Cidadania”. (Diário Oficial do estado do Ceará, n. 045, p. 06) 203 Resolução n° 001/2010 do CEDEF, aprovado na Reunião Ordinária de 03/03/2010, em conformidade com a lei n. 13.393 de 31/10/2003.

599

Estes conselheiros da sociedade civil representam os seguintes segmentos204: Pessoas com Deficiência Física; Pessoas com Deficiência Visual; Pessoas com Deficiência Auditiva; Pessoas com Deficiência Intelectual205; Pessoas com Deficiência Orgânica206 e Pessoas com Deficiência Múltipla. Percebe-se que cada segmento possui suas especificidades de demandas por políticas, o que deve dificultar a construção do consenso da sociedade civil. O Conselho possui a seguinte estrutura: I – Plenário/Colegiado; II – Presidência e Vice-presidência; III – Comissões Temáticas Permanentes; IV – Comissões Temáticas Temporárias (ou especiais) e V – Secretaria Executiva, que faz parte da estrutura de apoio técnico junto com dois estagiários do ensino médio e dois estagiários do nível superior, todos terceirizados e contratados pela SEJUS. Segundo, ainda o Regimento Interno (CEDEF, 2010), Capítulo V – Do funcionamento e atribuições – Seção III – Dos Conselheiros, art. 13º, temos

as

seguintes

responsabilidades

que

competem

a

esses

representantes da sociedade civil e do poder executivo estadual do Ceará: I – Debater e votar a matéria em discussão; II – Aprovar as atas das reuniões; III – Solicitar informações, providências e esclarecimentos ao Relator, às Comissões Temáticas, à Mesa e à Secretaria Executiva; IV 204

O decreto presidencial n. 5.296 de 02 de dezembro de 2004 determina em seu Capítulo II – Do Atendimento Prioritário; art. 5; § 1º Considera-se, para os efeitos deste Decreto: Deficiência física: alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções. Deficiência auditiva: perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz 3.000Hz. Deficiência visual: cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60º; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores. Deficiência múltipla: associação de duas ou mais deficiências. 205 Deficiência Intelectual: A partir da Declaração de Montreal sobre Deficiência Intelectual aprovada em 06/10/2004 pela Organização Mundial de Saúde, em conjunto com a Organização Pan-americana de Saúde, o termo deficiência mental passou a ser deficiência intelectual. 206 Deficiência Orgânica: Ocasionada por doenças crônicas de tratamento contínuo como: neoplasia maligna, cardiopatia grave, insuficiência renal crônica, hanseníase, portadores do vírus HIV e outros, desde que comprometam a locomoção sem o auxílio de terceiros para freqüentar sessões de tratamento específico.

600

– Apresentar relatórios e pareceres dentro dos prazos fixados; V – Participar de Comissões Temáticas Permanentes e/ou Grupos de Trabalho Temporários; VI – Executar atividades que lhe forem atribuídas pelo Colegiado; VII – Proferir declarações de voto e mencioná-las em ata, incluindo suas posições contrárias, caso julgue necessário; VIII – Apresentar questões de ordem na reunião; IX – Propor a criação e dissolução de Comissões Temáticas; e X – Informar, justificadamente, por escrito, à Secretaria Executiva a impossibilidade de comparecimento. Este Conselho, com sua estrutura e atribuições, estende-se a todo o estado do Ceará, estado que possui

população de 8.450.000

habitantes, com estimativa de existirem 2.340.150 pessoas com deficiência, representando 27,69% da população207. A eleição dos membros do Conselho para a gestão (2010-2012) ocorreu em 23 de setembro de 2010. Nesta reunião, a fala do presidente (representante da sociedade civil) em ata do dia, se refere à importância do colegiado e da participação. Assim, destaca o trabalho do Conselho como um processo em construção e reforça a importância do Conselho e o processo de participação que vem sendo consolidado. Afirmou, ainda, que o presidente deve estar em sintonia com o Colegiado, no entanto, “reconhece que ainda tem muito o que melhorar”. (CEDEF, 2010).

4. SOCIEDADE CIVIL E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NO CEDEF – EXPRESSÕES E IMPRESSÕES Para percebermos os significados da participação da sociedade civil no CEDEF, à luz da teoria do Estado ampliado de Gramsci, partimos da análise das falas de seus conselheiros nas seguintes categorias apreendidas durante a leitura dos dados das 26 atas 208 lidas dessa gestão: 1. O Conselho e os conselheiros: um campo de tensões e 207 208

Censo 2010 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. As datas das atas correspondem de 23/09/2010 a 25/04/2012.

601

conflitos; 2. Conselho: desafio da gestão compartilhada das políticas públicas. 

O Conselho e os conselheiros: um campo de tensões e conflitos O colegiado do CEDEF utilizou grande parte de suas discussões

para tratar de sua gerência, suas fragilidades internas, pois 40,5% dos pontos de pauta registrados nas atas são para este debate. Esses debates levaram o Conselho a não otimizar seu tempo para suas reais finalidades políticas e sociais. O debate administrativo e estrutural acabou levando os conselheiros a serem sujeitos na gestão privada do Conselho do que sujeitos políticos em uma participação na gestão pública. Os pontos mais críticos se deram na questão organizacional interna, no que diz respeito: a) ao funcionamento das Comissões Temáticas Permanentes, responsáveis pelo aprofundamento dos temas debatidos; b) à demanda de criação da Comissão de Ética; c) ao atraso na aprovação de atas, na eleição de 03 vice-presidentes; d) na eleição de 02 presidentes e à troca, por parte da SEJUS, de 05 secretários-executivos e à alteração da lei do CEDEF. Em reunião ordinária do conselho em 26/10/2011, o presidente, representante da sociedade civil, revela a situação do Conselho, no período referido: Existem várias demandas atrasadas, mas a principal demanda seria a própria lei do Cedef e lamenta que o Conselho não esteja funcionando como deveria. Existe um número de denúncias muito grande e que vieram também de outros estados que voltaram por não ter condições de resolver as demandas de outros estados. Próxima demanda: espaço físico: problemas com as cadeiras, pisos, armários. Estrutura para o atendimento externo está comprometida, as pessoas chegam para fazer atendimento e não tem um espaço de atendimento. Os relatórios e os documentos estão atrasados, não estão indo para a análise e têm que ser discutidos com muita calma. Sugere a criação de uma comissão para a reestruturação do conselho ficando esta, por deliberação do conselho criada para este fim. (CEDEF, 2011)209

209

Conforme ata da reunião ordinária de 26/10/11.

602

Embora não fique clara a concretude dessa Comissão na ata, o depoimento do presidente analisa bem a estrutura frágil do Conselho para alcançar seus objetivos. Um

mesmo

depoimento

relacionado

à

sua

estrutura

administrativa e política, foi proferido pela conselheira, representante da deficiência múltipla, em reunião extraordinária de 06/09/2011, ao afirmar que, Há muito tempo o Cedef não cumpre com o seu verdadeiro papel, que é atuar no Controle Social, que há dúvidas sobre o verdadeiro papel do conselho. Cobra pelas ações pendentes relembra que as comissões não estão funcionando e há acúmulo das demandas no Cedef. (CEDEF, 2011).

A falta de autonomia na sua administração aliada a conflitos internos do grupo sobre a atuação dos cargos hierárquicos e, sobretudo, sobre a troca de conselheiros governamentais, fizeram com que a grande porcentagem de discussão do Conselho fosse seus assuntos internos. A autonomia é um valor e, dessa forma, segundo Tatagiba e Teixeira (2006), a autonomia informa os limites que se observa nas relações. A relação entre a SEJUS e o Cedef é assimétrica, pois

o

Conselho

possui

dependência

financeira,

estrutural

e

organizacional desta secretaria para seu bom funcionamento. As relações do CEDEF com outros órgãos são necessárias e importantes para sua finalidade de participar no processo de elaboração de políticas públicas para pessoas com deficiência. Nestes termos, a autonomia “não significa ausência de relação, forma como no geral costuma ser abordada, mas nos informa acerca da qualidade dessa relação, a forma como os atores se colocam nela”. (TATAGIBA; TEIXEIRA, 2006, p.223-240). No caso do CEDEF, a autonomia deveria ser analisada como um requisito capital para a sua funcionalidade e identidade. Outro ponto de análise sob este esta abordagem é, sem dúvida, as definições e conceitos que os conselheiros da sociedade civil possuem de seu papel e função dentro do Conselho e do papel do 603

Conselho. Existem várias falas sobre esse tema o que aparenta a necessidade de se auto-avaliar constantemente, e também avaliar o espaço do qual fazem parte. Daí, tiramos algumas questões: Por que essa necessidade, já que essa apropriação do papel seria garantida a partir do processo de escolha da representação, tanto pela base social do conselheiro, como na eleição interna do Conselho? Por que essa redefinição do Conselho já que este possui sua identidade institucional através de sua Lei e no regimento interno? A percepção sobre a ênfase no trabalho coletivo do CEDEF é demonstrada

no

depoimento

da

conselheira,

representante

do

segmento de deficiência múltipla, na reunião ordinária de 20/12/2010. Para a conselheira, “o CEDEF não pode agir de forma individualizada e sim, deve haver posicionamento coletivo [...] E o trabalho deve ser desenvolvido pelo (governo do) estado, segmento e representações”. (CEDEF,

2010)

Nota-se

a

necessidade

de

se

ter

uma

co-

responsabilização das atividades, responsabilidades e das relações para que o Conselho atinja seus objetivos. Demonstra uma visão ampliada de corresponsabilidades de papéis na gestão dos interesses públicos, como bem analisa Gramsci (op. Cit.). Outra concepção sobre o papel do conselheiro, corrente no colegiado de debates e discussões do Conselho, é sinalizado em depoimento da conselheira Alaíde, representante do segmento da deficiência física, na reunião extraordinária de 15/02/2011, após alguns conflitos internos debatidos: É necessário unir-se para dar continuidade ao trabalho do CEDEF, reconhecendo que cada um tem seu posicionamento e que nem sempre será um consenso, mas que deve ser primado pelo respeito de todos para todos, o pensar diferente também faz parte. (CEDEF, 2011)

A busca do consenso é sempre um desafio, entretanto, o respeito às opiniões e posições diferentes deve ser levado em conta, no momento de uma negociação. Para Gramsci, a sociedade civil faz 604

parte do Estado ampliado e dentro dela se terá a “percepção de diferenças e antagonismos, a negociação de interesses e a produção de consensos possíveis” (SALES, 2003, p.83). A sociedade civil, mesmo com suas diferenças, se propõe a ser o espaço de direção intelectual e moral, proporcionando seu poder hegemônico através do consenso em que as reivindicações e interesses das bases sociais são expressos e assim, a sociedade civil possa absorver a sociedade política (governo) promovendo o Estado ampliado com suas mediações e conflitos. Podem-se perceber, ainda, estratégias de negação desta participação, mesmo tendo instrumentos avançados de gestão das políticas públicas, ao se deparar com as práticas do governo avessas ao reconhecimento do papel do CEDEF, como assinala o conselheiro, representante da deficiência intelectual, na reunião extraordinária de 19/04/2011, em que ele, Reafirma, ainda, que o papel do conselho é o diálogo permanente entre representantes do governo e sociedade civil e não poderá substituir o movimento, entendendo inclusive, que a partir do momento em que o estado reconhece o papel do conselho, tudo flui. (CEDEF, 2011).

Reconhecer o papel do Conselho, enquanto prática de gestão democrática da coisa pública, por parte do poder executivo seria uma contradição na sociedade capitalista em que o governo gerencia, como seu papel e função como agente estatal, os interesses das classes fundamentais. Numa sociedade capitalista, governo gerencia os interesses do capital, ainda que, sob tensão e lutas, crie estratégias e ações voltadas para o interesse comum, supostamente desvinculada dos interesses explícitos da hegemonia capitalista. Interessante perceber que a sociedade civil constitui-se e se fortalece a partir de lutas por justiça social dentro do Estado capitalista, e por isso ela é, também, uma força política importante. Foi o próprio desenvolvimento da forma capitalista de gestão que nascer a função da sociedade civil como agente político na construção das relações 605

mais ampliadas do Estadonas sociedades atuais. (GRAMSCI, 2000, C.6, vol 3, p. 245, Miscelâneo). Desta forma, é no seio da sociedade civilque se engendram os interesses e a voz dos movimentos sociais, espaço em que o Conselho, nessa busca de construção do consenso e de hegemonia, pode se efetivar como agente atuante de gestão compartilhada entre movimentos sociais, grupos sociais específicos

e o governo. São

princípios que objetivam o fim do Estado Restrito210 (contrário ao Ampliado) com a reabsorção da sociedade política pela sociedade civil. Dessa forma, A sociedade sem Estado, que Gramsci chama de “sociedade regulada” resulta assim da ampliação da sociedade civil e, portanto, do momento da hegemonia, até eliminar todo o espaço ocupado pela sociedade política (BOBBIO, 1999, p. 70)

São desafios que são postos à sociedade civil, que nem sempre representa interesses econômicos, de influenciar na gestão das políticas públicas junto com o governo. Este último, aparenta não ceder seu poder de gerir as políticas referentes às pessoas com deficiência. Da mesma forma, ao pensarmos na importância que Gramsci relatava o papel do intelectual no processo de construção da hegemonia, através do conhecimento da cultura local para a concretização de uma vontade coletiva, percebemos que entre os conselheiros da sociedade civil do CEDEF, essa fragilidade de formação e capacitação é relatada de forma até angustiante por ser referida pelos conselheiros como prejudicial à participação mais orgânica no Conselho. De acordo com depoimento da conselheira, representante da deficiência visual, na reunião ordinária de 20/12/2011, Há dificuldades nos esclarecimentos dos assuntos; a deficiência dos debates, das pautas, se sente perdida e insatisfeita na falta de comprometimento dos colegas conselheiros [...] (CEDEF, 2011) 210

O Estado Restrito em Gramsci é aquele em que a gestão pública se realiza, somente, através dos representantes governamentais.

606

Os conselhos gestores são vistos como experiências progressistas no ponto de vista da gestão democrática e paritária. Porém, se há pouca ou nenhuma formação política e técnica dos representantes da sociedade civil para essa vivência, supõe-se que haverá pouca eficácia dessa gestão, contribuindo pouco para a consolidação de uma participação política efetiva. ` Esta mesma demanda de capacitação é solicitada por uma conselheira, representante da deficiência múltipla, na reunião ordinária de 29/09/2011, diante do planejamento de atividades junto com a apresentação dos valores financeiros disponíveis ao Conselho. A conselheira, fala em usar dinheiro para a capacitação para os conselheiros da Sociedade Civil e capacitar os municípios e seus conselheiros sobre a peça orçamentária”. Em regime de votação, o cronograma de atividades é aprovado por unanimidade, com a alteração de que a capacitação dos conselheiros seja extensiva aos conselhos municipais. (CEDEF, 2011).

A necessidade de formação sobre a gerência técnico-política do orçamento público é uma atividade importante para a sociedade civil exercer sua função estatal de gestão junto à sociedade política dentro do Conselho. Nessa visão de Gramsci de perceber a função estatal da sociedade civil no Estado Ampliado, fato importante é o de perceber até que ponto agentes do governo percebem os representantes da sociedade civil como parceiros e protagonista no processo de gestão compartilhada. Para tanto, o que parece decisivo nesta relação é a vivência, ou não, entre como base na co0nfiança mútua desses agentes, conforme analisa Sales: a confiança e os meios materiais e simbólicos de que dispõem para investir forte e firmemente na formação política e técnica da sociedade civil, para que ela interiorize sua importância e se prepare para ser co-gestora competente dos interesses da sociedade. (SALES, 2003, p.78).

607

Na perspectiva gramsciana, o Estado tem com missão educativa e formativa para gerar novos tipos de civilização. Os representantes da sociedade

civil

governamentais, elaboração, deixando,

não diga-se

são

pela

monitoramento

muitas

vezes,

capacitados e

os

pelos

estrutura

dos

avaliação

de

encontros

representantes

conselhos, políticas

desnivelados,

sobre

públicas, tendo

os

conselheiros governamentais o domínio do conhecimento técnico do processo, por conviverem diariamente com a execução das políticas públicas, e por outro lado, os conselheiros da sociedade civil expondo denúncias, reivindicações, caracterizando a disparidade entre o político e o técnico operacional.

5. CONSELHO: DESAFIO DA GESTÃO COMPARTILHADA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

O regimento interno do CEDEF esclarece sua competência na gestão de políticas públicas para pessoas com deficiência. O documento deixa clara a necessidade do Conselho propor e monitorar as políticas públicas do Estado no que respeita ao campo específico destas demandas específicas: Capítulo III – Da Finalidade. Art. 3º - Compete ao Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência CEDEF: I – Elaborar e definir as diretrizes e prioridades da Política Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência objetivando promover, proteger e assegurar o desfrute pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por parte de todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua inerente dignidade; II – Acompanhar e assessorar o planejamento, avaliar a execução das políticas e programas setoriais de educação, saúde, trabalho, assistência social, transporte, cultura, lazer, esporte, justiça e cidadania, política urbana e outros que objetivem a inclusão da pessoa com deficiência [...] (CEDEF, 2010)

608

Através das leituras das atas do CEDEF, constatamos que o CEDEF monitora programas e projetos previamente elaborados pelo governo, do que incide em todo o processo de elaboração de políticas públicas. Segundo, seu regimento interno, o CEDEF elaboraria e definiria as diretrizes e prioridades da Política Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência. No Plano Plurianual211 2008-2011 do governo do estado do Ceará, em sua revisão 2010-2011, consta um Programa de Atenção à Pessoa com Deficiência – Ceará Acessível com as seguintes ações: Capacitação para atendimento de pessoa com deficiência – ESP e Monitoramento e Avaliação das ações multisetoriais. Para os fins desta pesquisa, ficou claro que o estado do Ceará não possui uma Política Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência, e sim programas e projetos governamentais coordenados pela Coordenadoria do Idoso e Pessoa com Deficiência em relação com outras Secretarias, já que são projetos multisetoriais. Assim, o Conselho concretiza apenas, em parte, o inciso II do artigo 3º que determina como uma das finalidades do CEDEF: II – Acompanhar e assessorar o planejamento, avaliar a execução das políticas e programas setoriais de educação, saúde, trabalho, assistência social, transporte, cultura, lazer, esporte, justiça e cidadania, política urbana e outros que objetivem a inclusão da pessoa com deficiência. Na realidade, o CEDEF incide nas políticas públicas, apenas no processo de monitoramento e avaliação de programas e projetos governamentais previamente elaborados de forma unilateral para a efetivação de direitos. De acordo com a reunião ordinária de 28/03/2012, em que houve grande debate sobre a suspensão das pessoas com deficiência auditiva da isenção do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), junto à Secretaria da

211

A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) foi promulgada como Lei Complementar no 101 em 04 de maio de 2000. Esta lei reforçou a integração entre planejamento e o orçamento, levando a vincular o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e Lei Orçamentária Anual (LOA) proporcionando mais transparência da governança. O Plano Plurianual é um planejamento a médio prazo em que estão colocados os objetivos e as metas da administração públicas para 4 anos.

609

Fazenda do Estado, o presidente do CEDEF, representante da deficiência múltipla, fundamentou que, de acordo com a Lei n. 13.393 de 31/10/2003, compete ao Conselho opinar e acompanhar o processo de elaboração da Lei. Logo, o CEDEF deveria ter sua participação legitimada com a sua contribuição no processo de criação da Lei em debate. (CEDEF, 2012)

Isso demonstra a pouca influência do Conselho no processo de elaboração de política distributiva212, dentro do governo do estado do Ceará, para seu público. Os técnicos governamentais parecem desconsiderar a Lei que determina o papel do CEDEF nesse processo, transformando-a praticamente em letra morta.

6. CONCLUSÕES Os significados da participação, expressos pelos conselheiros da sociedade civil do Conselho Estadual dos Direitos das Pessoas com Deficiência do Ceará incidem em várias dimensões. 1.

Dimensão

estrutural.

O

ambiente

físico,

a

fragilidade

administrativa e econômica e a falta de autonomia devido à sua vinculação à Secretaria de Justiça do Estado, prejudica a ação coletiva da participação neste espaço. Participar bem é estar em uma estrutura institucional autônoma, eficaz e efetiva. 2. Dimensão dialógica. Sem construir um espaço coletivo de diálogo, debate, de tolerância e compreensão das diferenças, parece não haver continuidade das ações a que o Conselho se propõe. Pela heterogeneidade existente entre segmentos, entidades e pessoas, torna-se um espaço plural, em que a dialogicidade pretende buscar cotidianamente

um

consenso

desafiante.

212

Práticas

relacionais

e

Segundo LOWI (1964), as políticas distributivas são um tipo de política pública que geram benefícios concentrados para alguns grupos de atores e custos difusos para a toda a coletividade/contribuintes. A grande dificuldade no desenho de políticas distributivas é a delimitação do grupo beneficiário (quem é e quem não é beneficiário).

610

discursivas poderiam ser mais analisadas neste ambiente, o que não foi o objetivo deste estudo. 3. Dimensão política. O reconhecimento do papel do Conselho por parte do governo do estado, como forma de gestão participativa e compartilhada de suas políticas públicas para as pessoas com deficiência, é primordial para a participação dos conselheiros e, consquentemente, para políticas públicas mais realistas. A formação técnica e política da sociedade civil vêm como uma ação capital para os debates mais horizontalizados e eficientes, como também, como forma de buscar uma hegemonia com suas bases sociais. 4. Dimensão Operacional. O respeito ao regimento interno quanto à função do Conselho em participar de todas as fases de elaboração das políticas públicas: desde a construção de uma agenda, a operacionalização, monitoramento e avaliação com instrumentos eficazes, é importante para o reforço da vontade coletiva em contribuir para a gestão compartilhada. A elaboração das políticas de forma unilateral e tecnicista desmotiva a participação. A sociedade civil, como ator importante ao processo da gestão compartilhada deve compreender e reforçar sua função estatal conforme acepção aqui assumida de Estado ampliado, segundo Gramsci, o que não é aprofundado. Analisamos as falas dos conselheiros da sociedade civil em atas no período de 2010/2012 para percebermos que este ator busca, neste espaço de gestão, sua identidade política, seu verdadeiro papel dentro do processo de monitoramento e avaliação de políticas públicas. Longe de ser cogestora de políticas públicas, a sociedade civil se vê como elemento de pressão, de contribuição e, também, carente de informação e capacitação para exercer uma participação mais qualificada.

611

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOBBIO, Norberto. Ensaios sobre Gramsci e o conceito de Sociedade Civil. São Paulo: Paz e Terra, 1999. CEDEF. Regimento Interno. Resolução n. 001/2010. Fortaleza, 2010. ______. Ata da reunião de eleição do colegiado. Fortaleza, 23/10/2010. ______. Ata da reunião ordinária. Fortaleza, 20/12/2010. ______. Ata da reunião extraordinária. Fortaleza, 15/02/2011. ______. Ata da reunião extraordinária. Fortaleza, 19/04/2011. ______. Ata da reunião ordinária. Fortaleza, 26/10/2011. ______. Ata da reunião extraordinária. Fortaleza, 06/09/2011. ______. Ata da reunião ordinária. Fortaleza, 29/09/2011. ______. Ata da reunião ordinária. Fortaleza, 20/12/2011. ______. Ata da reunião ordinária. Fortaleza, 28/03/2012. GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. 5ª edição. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968. ______.Cadernos do Cárcere. volume 3. Edição de Carlos Nelson COUTINHO com Marco Aurélio NOGUEIRA e Luiz Sérgio HENRIQUES. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. LOWI, T.J. American business, public policy, case studies, and political theory. World Politics, v. 16, n.4, 1964 SALES, Ivandro da Costa. Os desafios da Gestão Democrática da sociedade (Em diálogo com Gramsci). Pernambuco, 2003. 161p. Tese (Doutorado em Serviço Social). Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Universidade Federal de Pernambuco, Pernambuco, 2003. SIMIONATTO, Ivete. Razões para continuar utilizando a categoria sociedade civil in Sociedade Civil e Democracia. Expressões Contemporâneas. LUIZ, Danuta E. Cantoia (org.) São Paulo. Veras Editora, 2010.

TATAGIBA, Luciana; TEIXEIRA, Ana Cláudia. Participação e democracia. velhos e novos desafios. Civitas, Revista de Ciências Sociais. v. 6, n. 1, Porto Alegre: 2006, p. 223-240.

612

NEGOCIAÇÃO COLETIVA: UMA POLÍTICA DE DEMOCRATIZAÇÃO DO TRABALHO E DE QUALIDADE DOS SERVIÇOS EM SAÚDE Andriério Lopes Pereira Sobrinho213 Nathalia Hanany Silva de Oliveira214 Janete Lima de Castro215

INTRODUÇÃO A área de recursos humanos, na gestão moderna, tem recebido a missão

de

criar

mecanismos

para

mediar

às

relações

entre

capital/trabalho ou entre empregador/empregado. Nesse contexto, Lopes et, al. (2008) destaca a negociação como uma estratégia para mediar as relações entre esses atores. Dau (2005) afirma que negociar é um mecanismo necessário para o aprofundamento ou apaziguamento de uma crise ou de um conflito. A negociação poucas vezes é considerada de maneira individual, na medida em que sempre se dá em termos de representação de uma dada coletividade ou de grupos. A negociação “tem por substrato promover o envolvimento, a integração e a participação do conjunto dos servidores nos assuntos de interesse comum, por intermédio da participação organizada de suas entidades sindicais” (BRAGA E BRAGA JR, 1988). De acordo com os 213

Graduado em Gestão em Sistema e Serviço de Saúde (UFRN), Bolsista do Observatório de Recursos Humanos do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva (UFRN). Integrante do Grupo de Pesquisa Gestão, Educação, Trabalho e Saúde. Integrante da Coordenação Estadual do Projeto Caminhos do Cuidado (Ministério da Saúde, Fiocruz, e Grupo Hospitalar Conceição) no Rio Grande do Norte. [email protected]. 214 Graduado em Gestão em Sistema e Serviço de Saúde (UFRN), Bolsista do Observatório de Recursos Humanos do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva (UFRN). Integrante do Grupo de Pesquisa Gestão, Educação, Trabalho e Saúde. Integrante da Coordenação Estadual do Projeto Caminhos do Cuidado (Ministério da Saúde, Fiocruz, e Grupo Hospitalar Conceição) no Rio Grande do Norte. [email protected]. 215 Graduada em Enfermagem e Obstetrícia (UFRN), Mestra em Administração (UFRN) e Doutora em Educação (UFRN). Professora Adjunta (UFRN).

613

autores citados o propósito fundamental da negociação coletiva é o desenvolvimento das relações de trabalho e o tratamento dos seus conflitos, utilizando como referencia o objetivo comum de prestar e atender, com qualidade, eficácia e democracia, aos serviços e demandas da cidadania em seu benefício e em benefício da dignidade da pessoa humana. É também, um procedimento bastante disseminado nas sociedades contemporâneas, viabilizando a existência das instituições de representação de interesse entre elas os partidos políticos, os sindicatos e demais formas associadas. A negociação coletiva é uma ferramenta de ação para intervir no campo da resolução de conflitos de interesse. Conflitos não administrados contribuem para a ineficiência, baixa produtividade e má qualidade dos serviços. Juntos, esses elementos provocam a frustração de servidores e a insatisfação dos usuários. Por sua vez, os conflitos no campo da saúde veem sendo motivo de discussões. O acirramento dos conflitos faz emergir a necessidade da criação de um espaço de negociação coletiva, ou seja, um ambiente onde os trabalhadores de uma categoria negociam com a coletividade de empregadores da mesma categoria, buscando a convergência ou consenso dentro dos princípios legais e éticos, promovendo a solução ou atenuação dos conflitos, permitindo uma melhor distribuição de recursos e estabilização de políticas públicas de saúde. Essa proposta, de gestão no trabalho em saúde, contempla os interesses da sociedade, uma vez que viabiliza um espaço de comunicação direta entre os diferentes segmentos de trabalhadores, gestores e usuários. Santana apud Lopes et, al. (2008) diz que a negociação coletiva do trabalho nos serviços de saúde é o estabalecimento de procedimentos que possibilitem o exercício da administração pública participativa não como um fim em si mesma, mas como estratégia de melhor servir o povo. A negociação coletiva configura-se como decorrência da aplicação do princípio participativo, que por sua vez, integra o 614

conceito de democracia participativa, contemplada na Constituição Federal de 1988. O princípio participativo caracteriza-se pela participação direta e pessoal da cidadania na formação dos atos do governo. São diversos os instrumentos disponíveis na administração pública para atuar sobre conflitos nas relações de trabalho, porém estes são poucos flexíveis. Estes instrumentos tendem a induzir ao crescimento do individualismo, o que acarreta consequentemente uma competitividade cada vez maior no ambiente de trabalho. As iniciativas no campo da negociação coletiva em saúde tornaram-se mais presentes no ano de 1993, através da Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) de n° 52. No mesmo ano, a Mesa Nacional de Negociação do Sistema Único de Saúde (MNN/SUS) foi instaurada pelo Plenário do CNS, em sua 24ª reunião, nos dias 5 e 6 de maio, no uso de suas atribuições legais e nas prerrogativas que lhe foram conferidas pelas Leis: 8.080, de 19 de dezembro de 1990, e 8.142, de 28 de dezembro de 1990.

Em 1995, mudanças na gestão do

Governo Federal levaram a desativação da Mesa. No entanto, no ano de 2003, com o governo recém-eleito, o qual propôs o fortalecimento dos espaços de negociação, consolidando a Mesa de Negociação como espaço democrático para resolução de conflitos, a mesa foi reinstalada. A Mesa é um fórum de discussão e pactuação entre gestores, prestadores de serviços e trabalhadores do SUS, além de ser um projeto coletivo onde a democratização nas relações de trabalho na saúde surge como um valor fundamental. Braga e Braga Jr (1988) ressaltam que “a administração, sem a colaboração esforçada do seu corpo funcional e o envolvimento dos demais interessados, não será capaz de viabilizar, com qualidade, eficiência e democracia, os serviços e as demandas da cidadania”. Este artigo tem como objetivo discutir o interesse da Rede de Observatórios de Recursos Humanos do Brasil (ObservaRH) sobre o tema 615

negociação

coletiva,

com

foco

na

Mesa

de

Negociação,

considerando que esta é uma política prioritária para a Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde. A Rede ObservaRH foi criada em 1999 e esta sob a coordenação e regulamentada pela secretaria e constitui um projeto, implantado em diversos países da Região das Américas, coordenado pela Organização Panamericana de Saúde. O propósito geral da supracitada Rede é propiciar o mais amplo acesso a informações e análises sobre recursos humanos de saúde no país, facilitando a melhor formulação, acompanhamento e avaliação de políticas e programas setoriais, bem como regulação social dos sistemas de educação e trabalho no campo da saúde. OBJETIVOS Identificar nos sites da Rede Observatórios de Recursos Humanos em Saúde do Brasil (ObservaRH), artigos que tratem sobre o tema Negociação do Trabalho na Saúde.

METODOLOGIA Trata-se

de

uma

pesquisa

de

natureza

bibliográfica

de

publicações on-line na Rede de Observatório de Recursos Humanos em Saúde do Brasil, que é composta por 21 Observatórios distribuídos por todo o país. Os Observatórios pesquisados foram: 

Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães (CPqAM/Fiocruz)



Escola de Enfermagem de Riberão Preto (EERP/USP)



Escola de Saúde Publica do Rio Grande do Sul (ESP/RS) 616



Escola Nacional de Saúde Publica Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz)



Escola Técnica de Saúde Unimontes (ETS/UNIMONTES)



Estação de Trabalho Historia e Saúde da Casa Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz)



Estação de Trabalho Saúde, Trabalho e Cidadania (UFMT)



Estação

de

Trabalho

Sinais

de

Mercado

em

Saúde

(Nescon/UFMG) 

Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IMS/UERJ)



Instituto Nacional do Câncer (Inca)



Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Recursos Humanos da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (NEPRH/EE/USP)



Observatório de Recursos Humanos em Saúde do Paraná (NESC/UEL)



Observatório de RH do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (NESC/UFRN)



Observatório de RH do SUS da Secretaria de Estado de São Paulo (SES/SP)



Observatório de RH em saúde do Cetrede/UFC/UECE



Observatório de RH em Saúde do Núcleo de Estudos em Saúde Publica da Universidade de Brasília (SES/MG)



Observatório dos Técnicos em Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)



Observatório

de

RH

em

Saúde

Bucal

da

Faculdade

de

Odontologia da USP 

Universidade de Campinas (Unucanp)



Universidade Federal de Goiás (UFG)

Os endereços eletrônicos dos supracitados observatórios estão disponíveis para acesso no site da Organização Pan-Americana de Saúde (http://new.paho.org/bra/).

617

A presente pesquisa levou em consideração artigos publicados no período de 1999 a 2011. Nos quais foram realizados a analise, em busca do tema a ser analisado, qual seja Negociação do Trabalho na Saúde ou que tratassem deste de forma explicita.

RESULTADOS Dentre os 21 sites pesquisados dos Observatórios de Recursos Humanos (ObservaRH) do Brasil, foram encontrados apenas dois artigos. Um deles encontra-se no Observatório de Recursos Humanos do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (NESC-UFRN) e o outro no Observatório de Recursos Humanos em Saúde do Núcleo de Estudos em Saúde Pública da Universidade de Brasília (NESP/CEAM/UnB). O Observatório de Recursos Humanos do NESC-UFRN, criado em 1988, tem como objetivos principais divulgar informações sobre questão de recursos humanos em saúde (RHS), produzir estudos sobre a área, além de dar apoio ao fortalecimento das políticas de desenvolvimento de recursos humanos no Sistema Único de Saúde. Sua missão é promover, através da rede mundial de computadores (internet), a difusão de conhecimento e informações na área de política, gestão e capacitação de pessoal, com intuito de subsidiar as decisões dos dirigentes de recursos humanos e gestores do SUS no estado do Rio Grande do Norte. Tem como público alvo entre outros: secretários estaduais e municipais de saúde, dirigentes de unidades de saúde, de recursos humanos, do sistema educacional, profissionais de saúde, centro e escolas de formação de nível médio, polos de capacitação em saúde da

família

e

pesquisadores

das

demais

estações

de

componentes da Rede de Observatório de Recursos Humanos. 618

trabalho

O Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade de Brasília (NESP) foi instituído em 1986, a partir do convenio com a Universidade, a Secretaria de Saúde do Distrito Federal, o extinto Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Nacional (INAMPS) e o Ministério da Saúde, incluindo a Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) e o extinto Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (INAN). Em sua criação vinculou-se a Faculdade de Ciências da Saúde da qual se desligou após contribuir para a criação do Departamento de Saúde Coletiva no final da década de oitenta. Desde então, encontrase no Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM) onde privilegia a intervenção interdisciplinar para o campo da saúde. Nas décadas de 1980 e 1990 foi protagonista nos processos de assessoria à realização da 8° Conferencia Nacional de Saúde, a criação da Comissão Nacional de apoio a Constituição Federal brasileira de 1988 no capítulo da saúde e seguridade social. Em parceria com outros Núcleos de Estudos em Saúde Publica/Coletiva do Brasil, vem desenvolvendo pesquisa e apoio a instituição ao funcionamento e consolidação do SUS. O NESP tem por missão ser uma unidade acadêmica e de serviços de excelência, dando continuidade aos trabalhos de ensino, pesquisa e extensão, já consolidados na graduação e na pós-graduação do Departamento de Saúde Coletiva, da Faculdade de Ciências da Saúde, promovendo a assessoria, a difusão e o intercambio de conhecimentos na área de saúde coletiva. É composto por uma equipe multiprofissional com formação e

experiência em ensino, serviço e pesquisa são médicos, odontologos, enfermeiros, farmacêuticos, psicólogos, assistentes sociais, sociólogos, antropólogos,

pedagogo,

universitários,

discentes

jornalistas de

e

administradores,

graduação

e

docentes

pós-graduação

e

pesquisadores associados permanentes. Sua equipe básica é formada por

docentes

do

Departamento 619

de

Saúde

Coletiva

e

outros

Departamentos e cursos da UnB, além de outros profissionais do Ministério da Saúde, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (PEA), da Secretaria de Saúde do Distrito Federal e de órgãos não governamentais. O artigo do NESC/UFRN faz uma análise exploratória da efetividade da Mesa de Negociação do Rio Grande do Norte (RN) (CASTRO et. al, 2008), analisando como o contexto institucional e as relações de poder no campo da saúde no Estado do RN explicam o nível de efetividade da Mesa de Negociação Coletiva como instrumento de gestão da Secretaria Estadual de Saúde. Este artigo demonstra com que objetivo a Mesa de Negociação do estado do RN foi instalada e qual seu papel. Observa-se no texto que os membros da Mesa de Negociação do Estado do RN definem seu objetivo como estabelecer um fórum permanente de negociação entre empregadores e trabalhadores do Sistema Único de Saúde sobre todos os pontos pertinentes à força de trabalho em saúde. Seu papel consiste em criar uma instância que busque o consenso entre os diferentes atores que compõem o setor saúde. Para entender a dinâmica do funcionamento da Mesa de Negociação no Estado do RN, relatada neste artigo, temos que compreender que o seu sucesso ou insucesso depende da capacidade técnica e política dos atores envolvidos. Além disso, o texto destaca que a efetividade da Mesa não depende somente de vontade política dos atores envolvidos, mas também dos limites impostos pela estrutura em que ocorrem tais decisões. Outro problema que comprometeu a efetividade da Mesa, referido no texto, foi o seu esvaziamento devido ao afastamento dos participantes em decorrência da perda de motivação e originados pela falta

de consenso para os

impasses colocados na Mesa. De

acordo com Lopes et, al. (2008), o conceito de campo de poder de Bourdieu auxilia no entendimento da dinâmica do funcionamento das Mesas de Negociação. Para os autores, os espaços das Mesas são 620

espaços de disputas, onde os atores podem acumular e perder poder. Se as regras não são fixas e os atores podem reverter posições de poder, abre-se um campo para transformação da realidade. Dentro desse contexto, o atual funcionamento da Mesa de Negociação do Estado do RN é o resultado de um jogo de forças, onde sua fragilidade pode ser explicada pela baixa capacidade de articulação de seus componentes,

não

sendo

estes

capazes

de

fazer

frente

às

determinações externas a ela. O segundo artigo, do NESP/UNB, trata da história da arte da negociação coletiva em saúde e suas características na administração pública no Brasil e em outros países. Este artigo também relata como se iniciou o processo de negociação no Brasil. O artigo de Baraldi (2005) analisa as relações de trabalho na administração publica Latino – Americana; discorre sobre a instalação da Mesa de Negociação Nacional, tanto do governo federal quanto dos estados; faz uma suscita analise da situação de negociações coletivas em países da America e da Europa. Seu objetivo consistiu em abordar a questão da negociação coletiva em saúde do Brasil, destacando alguns elementos de comparabilidade em âmbito internacional, com análise voltada para o setor público. Por fim, a autora conclui que uma coisa em comum nos países que

institucionalizaram

a

prática

da

negociação

coletiva,

principalmente nos setores públicos, é que em todos eles, o que pode vir a ser objeto de real negociação coletiva é limitado. E que a circunscrição do universo das possibilidades de negociação coletiva possui como pano de fundo histórico-político, a incorporação do tema pelo próprio Estado e seus agentes. Conclui também que até então, no caso brasileiro, a negociação coletiva era bandeira de luta do movimento sindical durante o fim da ditadura e o processo de democratização.

621

CONSIDERAÇÕES FINAIS Considera-se inicialmente que os artigos discutem a temática acerca

da

negociação

coletiva,

trazendo

elementos

esclarecedores para uma visualização ampliada das questões que a envolvem como alternativa de democratização das relações de trabalho e da qualidade dos serviços em saúde. Assim, diante do exposto, pode-se dizer que a Mesa de Negociação, se apresenta como uma prática inovadora e democrática de gestão, uma vez que é o espaço onde as partes integrantes de uma situação de conflito,

podem,

democraticamente,

por

meio

do

diálogo,

praticarem o exercício da busca de consensos entre os diversos problemas existentes e sistematizem e troquem informações. Nessa perspectiva, a Mesa de Negociação Coletiva, sendo um projeto coletivo no qual a democratização das relações de trabalho na saúde surge como valor fundamental. Esse projeto vem sendo desenvolvido com a participação de trabalhadores, organizações sindicais, gestores das diversas instâncias da saúde, para soluções de conflitos emergentes das relações laborais. Por fim, faz-se necessário ressaltar que, apesar da relevância do tema para a gestão do trabalho e para a gestão dos serviços de saúde, as publicações são ainda muito poucas, na Rede de Observatórios de Recursos Humanos em Saúde.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARALDI, Solange. Negociação coletiva em saúde: uma visão geral sobre o tema e suas características na Administração Pública no Brasil e em outros países. Brasília, novembro – 2005. Disponível em: < http://www.observarh.org.br/nesp/interna. php?id=275&busca=Solange%20Baraldi>. Acesso em: 21 de junho 2012. 622

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623

O PODER CONSTRUTIVO DA AUTOIMAGEM: O DISCURSO POLÍTICO DE CÁSSIO CUNHA LIMA NO PLEITO ELEITORAL DE 2010 Rodolpho Raphael de Oliveira Santos216

Resumo: A construção da autoimagem está sempre presente em diferentes atos comunicativos e é largamente utilizada por personalidades públicas, principalmente políticas, Este artigo tem por objetivo mostrar que o discurso político de Cássio Cunha Lima, atrelado à propaganda nas redes sociais durante as eleições de 2010, atuaram e continuam a atuar como forte aliado da política para legitimar o poder e suas ações através da construção de imagens de um líder político ou de um governo. Para entender política, acredita-se ser necessário entendermos a forma na qual ela se apresenta para nós. Sujeitos e instituições políticas disputam visibilidade. Assim, os meios de comunicação acabam inaugurando uma nova fase da dramaturgia política. Palavras-chave: Cássio Cunha Lima; Eleições; Redes Sociais; Propaganda;

INTRODUÇÃO

A eleição é um exemplo típico, na qual ocorre um conflito de interesses e a exposição de personagens que se “rivalizam” na tentativa de alcançar o cargo público desejado. Diante da intensa circulação de imagens, símbolos e mensagens, ganham os candidatos que melhor utilizarem dos recursos disponibilizados pela mídia para mobilização dos sentimentos. Essas estratégias de comunicação ganharam força com o processo de urbanização das cidades, industrialização, sofisticação das técnicas de comunicação e tecnologias. Já não cabem mais, nas campanhas políticas, os discursos improvisados. O objetivo é a 216

Graduado em Comunicação Social, Jornalismo (UEPB), Especialista em Mídias Digitais, Comunicação e Mercado pelo Centro de Educação Superior Reinaldo Ramos (CESPEI). Professor (Faculdade Internacional da Paraíba).

624

produção de campanhas eleitorais através da construção de imagens, o uso de retóricas sedutoras e propostas. Percebe-se que essas práticas estão sendo disseminadas não só nos grandes centros urbanos, mas também nas cidades do interior do país. Nestes lugares, as estratégias de marketing são adequadas às particularidades locais. Com a evolução das técnicas de comunicações, a propaganda política passa a articular com maior força e eficácia as ideias e imagens. Assim, consegue-se elaborar propostas e candidatos com carisma, os quais acabam ganhando a preferência do eleitor. A proliferação de símbolos e imagens, quando bem elaborados, ajuda fortificar a imagem do candidato, tornando-se mais fácil alcançar os objetivos pretendidos pela propaganda. O discurso político torna-se mais difuso e inespecífico em uma emissora de rádio ou televisão, pois o político não sabe qual é o público que o ouve ou vê, nem tem uma plateia precisa. O tema, os enfoques do discurso ganham características difusas, não sendo específico para um determinado público, visto que o interesse é atingir o maior número de pessoas possível. Para Baczko, a evolução do suporte tecnológico cultural e, sobretudo a implantação dos meios de comunicação de massa garantem a um único emissor a possibilidade de atingir uma audiência enorme, numa escala até então desconhecida. Isso ganha mais força quando regimes democráticos de representatividade se encontram inseridos em sociedades de massmedia, em que princípios e propostas

devem

ser

levados

ao

conhecimento

de

todos

os

concernidos. Neste sentido, intensificam-se as propagandas políticas, no intuito de se fazer notório o candidato e suas propostas. A política entra em cena, em busca de maior visibilidade e de arregimentar adesões que possam resultar em votos. Partido destas considerações, o objetivo desta pesquisa constitui em identificar os principais “apelos” utilizados pelos candidatos como estratégias de persuasão eleitoral nas eleições de 2010, uma vez que a 625

propaganda política tornou-se essencial para garantia da prática democrática em sociedades de massas, pois possibilita aos cidadãos o conhecimento das possíveis alternativas que lhes são facultadas nas consultas eleitorais.

OBJETIVOS O discurso político é alicerçado numa decisão sobre o futuro, diferente do discurso forense, que tem por finalidade julgar o passado, a partir

disso,

torna-se

um

texto

argumentativo,

profundamente

convincente, com o desígnio de conseguir o bem comum, fazendo com que haja embasamento por pontos de vista do emissor que representa a concepção de um estado ideal (futuro) e contraposto ao real (presente). Por isso, podemos afirmar que a política é a ciência do possível, ou seja, daquilo que pode ser feito a partir das informações compartilhadas que traduzem valores sociais, religiosos e em nosso caso, o valor político. Diante destes Aspectos, este trabalho tem por objetivo mostrar o poder construtivo da autoimagem de acordo com o discurso político de Cássio Cunha Lima no Pleito eleitoral de 2010.

METODOLOGIA Considerando-se o critério de pesquisa classificado por GIL (2002, p.43) quanto aos fins da pesquisa será descritiva, pois visa como objetivo primordial a descrição das características encontradas no discurso político inserido nas redes sociais. Em relação ao meio, a pesquisa será bibliográfica, estudo de caso e de campo, bibliográfica, pois é desenvolvida com base no 626

material que serviram de subsídios para a fundamentação teórica deste artigo. O principal objetivo deste tipo de pesquisa é mensurar e permitir o teste de hipóteses, já que os resultados são mais concretos e, consequentemente, menos passíveis de erros de interpretação GRILLO et al. (2008).

O DISCURSO E A IDEOLOGIA POLÍTICA Os políticos, com o objetivo de atrair a atenção dos ouvintes, que na maior parte são eleitores, valem-se de poder de persuasão e da eloquência, fazendo com que o discurso seja apresentado em fala coletiva

Que

procura

sobrepor-se

em

nome

de

interesses

da

comunidade e constituir norma de futuro. Segundo Charaudeau, o político possui uma dupla identidade discursiva, pois ele tem de convencer a todos da pertinência de seu projeto político e fazer com que o maior número de cidadãos possível adira a seus valores. Diante desta duplicidade, há a diferença entre o conceito político (que é o posicionamento ideológico) e a prática política (que é o lugar das estratégias de gestão do poder, ou seja, o sujeito no processo comunicativo). É neste aspecto que o poder de persuasão ordena os pensamentos, de tal modo, que automaticamente se insere uma dinâmica social que constantemente o altera e ajusta a novas circunstâncias,

fazendo

com

que,

no

período

eleitoral,

a

sua

maleabilidade permita sempre uma resposta, sejam elas que levem os eleitores a aceitar seus pontos de vista de um modo suave, a partir da eloquência deste discurso, que em contra partida exaltam o otimismo por saberem que a mente humana condiciona-se melhor à afetividade, chegando a apelar mais à emoção do que à própria razão. 627

O discurso político implica um espaço de visibilidade para o cidadão, que procura impor as suas ideias, os seus valores e projetos, recorrendo à força persuasiva da palavra, instaurando um processo de sedução, através de recursos estéticos como certas construções, metáforas, imagens e jogos linguísticos. Confirmando o que Koch, p. 87 apresenta em seu trabalho, afirmando o discurso manifesta as intenções e a atitude perante os enunciados que produz através de sucessivos atos ilocucionários de modalização, que se atualizam por meio dos diversos modos de lexicalização que a língua oferece. Essa forma de discurso é, provavelmente, tão antiga quanto à vida do ser humano em sociedade, na Grécia antiga, o político era o cidadão da "pólis" (cidade, vida em sociedade), que, responsável pelos negócios públicos, decidia tudo em diálogo na "agora" (praça onde se realizavam as assembleias dos cidadãos), é a partir disso que Platão descortina-nos novos horizontes para entendermos a essência do discurso político. A busca da verdade a que se empenhou o filósofo fezse distinto dos homens que ficaram na caverna. De posse do conhecimento, sente-se na obrigação de anunciá-lo aos que lá ficaram. Temeroso de que não seja compreendido, cria o mito, isto é, atenua a verdade com o objetivo de ser aceito. Partindo desse ponto, vemos que o discurso político, se origina a partir da ideologia que, segundo Fiorin (1998:28), é o “conjunto de ideias, representações que servem para justificar e explicar a ordem social, as condições de vida do homem e das relações que ele mantém com os outros homens”. Não existem, portanto, ideias fora dos quadros da linguagem, já que para cada formação ideológica temos uma formação discursiva, a qual materializa uma visão de mundo, impondo ou determinando o que deve ser dito. Dessa forma, o discurso exprime a realidade. Além disso, o discurso não é original, ou seja, qualquer enunciado já foi produzido em situações diferentes; alteram-se os interlocutores, ou o tempo, ou até o espaço. Compreendendo o discurso dessa forma, o 628

texto seria, então, a materialização do discurso. Assim, o texto pertence ao plano da expressão, organizando da melhor forma os elementos que veiculam o discurso. Como produto da atividade discursiva, o texto, por sua vez, é objeto empírico da análise do discurso político sugerido nesse trabalho. Por essa razão, vale-nos ressaltar a importância de se apresentar um texto com idéias claras, bem articuladas e coerentes, a fim de alcançar a compreensão de seu interlocutor e atingir o objetivo da persuasão.

A ANÁLISE DO DISCURSO Podemos dizer que a análise do discurso é formada da como uma proposta de promover uma nova metodologia de leitura, estabelecendo um conflito entre as diferentes ideias contidas num texto, e ao mesmo tempo problematizando-as. Essa por sua vez tem como objetivo despertar no leitor ou internauta que é o nosso caso uma capacidade de desvendar as diversas probabilidades de leitura e interpretação num texto. Nisso podemos fazer uma ponte com o que Foucault nos diz que mais importante que o conteúdo dos discursos, é o papel que eles desempenham: Um discurso dominante tem o poder de determinar o que é aceito ou não numa sociedade, independentemente da qualidade do que ele legitima. O discurso dominante não está comprometido com uma verdade absoluta e universal. Pelo contrário, é ele que produz a verdade (logo, esta é arbitrária), que legitima certo campo de enunciados e marginaliza outros num processo que o autor chama de partilha da verdade. (FOUCAULT, 1970)

Em

contrapartida,

para

Orlandi (2005,

p.74), um

discurso

“corresponde ao domínio analítico do ‘texto’, constituído pela relação da língua com a exterioridade”, significando dizer que cada ideia contida num texto se relaciona com tudo que já foi anteriormente produzido numa mesma área de conhecimento. Como consequência 629

disso, os termos e vocábulos utilizados na produção de um texto não têm o seu significado necessariamente explicitados naquele enunciado, uma vez que o léxico ganha significação própria para aquela área em cada novo texto produzido. É através dessa linha de estudo, que a análise do discurso, permeia a mídia e em nosso caso a Social Network mostrando e ao mesmo tempo escondendo um distanciamento do texto que se torna possível, dando liberdade a uma maior interpretação não só daquilo que é dito, como também daquilo que não foi explicitado nesta produção em análise. Contudo, não só um resultado desse processo, mas também um instrumento por ele utilizado, mas a interação entre diversos enunciados que são materializados em um mesmo contexto: [...] é impossível analisar um discurso como um texto, isto é, como uma sequência linguística fechada sobre ela mesma, mas é necessário referi-lo ao conjunto de discursos possíveis a partir de um estado definido das condições de produção [...]. (PÊCHEUX, 1969, p.16 apud ORLANDI, 2005, p.85).

O SISTEMA POLÍTICO E OS CIDADÃOS: RELAÇÕES POR MEIO DA ESFERA PÚBLICA POLÍTICA

Tratando, então, das relações entre o Estado e os cidadãos, trazemos as ideias de Habermas (2003). Para o autor, as elites acabam por comandar o Estado, e este, por sua vez, não se baseia em interesses sociais das grandes massas. Apesar disso, pode desenvolver uma sensibilidade em relação a eles, desde que o sistema político articule as necessidades públicas relevantes com

os trabalhos do sistema

administrativo e legislativo. E como pode ocorrer tal articulação? Aqui entra a comunicação. Habermas (2003) defende que a integração de uma sociedade se dá por meio do poder comunicativo 630

dos cidadãos que a compõem. Para que haja percepção e articulação de medidas importantes para todos, os sistemas se valem de uma linguagem comum, utilizada na esfera pública política e no sistema político. Tal linguagem comum funciona como um meio pelo qual os indivíduos se entendem e agem. O mundo da vida se reproduz, seus componentes se relacionam e os sistemas de ação altamente especializados em reprodução cultural, em socialização ou em integração social atuam, entrando em contato com o sistema político de alguma forma. Através do código comum da linguagem ordinária, eles desempenham também as outras funções, mantendo assim uma relação com a totalidade do mundo da vida. Os núcleos privados do mundo da vida, caracterizados pela intimidade, portanto protegidos da publicidade, estruturam encontros entre parentes, amigos, conhecidos, etc., e entrelaçam as biografias das pessoas conhecidas. A esfera pública mantém uma relação complementar com essa esfera privada, a partir da qual é recrutado o público titular da esfera pública. (HABERMAS, 2003, p. 86).

Ainda de acordo com o autor, esfera ou espaço público é um fenômeno social elementar, que não pode ser compreendida como uma instituição ou organização. A esfera pública não tem estrutura normativa que trate de competências e papéis e nem se configura como um sistema, já que não tem limites, mas sim, horizontes abertos, permeáveis e deslocáveis dinâmicos. A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos. Do mesmo modo que o mundo da vida tomado globalmente, a esfera pública se reproduz através do agir comunicativo, implicando apenas o domínio de uma linguagem natural; ela está em sintonia com a compreensibilidade geral da prática comunicativa cotidiana. (HABERMAS, 2003, p. 86).

POLÍTICA E MÍDIA E AS SUAS RELAÇÕES DE RECIPROCIDADE 631

A partir dessas modificações e transformações na esfera política, observa-se que cada vez mais ela necessita da mídia para se promover, e que de fato a política, nesta etapa atual, passa a ser conteúdo da mídia, que percebe no entretenimento a melhor forma de se conquistar o voto do eleitor. A teatralização de forma espetacular se torna uma característica crescente a partir dessa nova configuração instituída no campo político, até por que como afirma Balandier (1982), a teatrocracia move todas

as

formas

de

arranjos

da

sociedade

contemporânea,

principalmente àquelas em que o poder está em jogo; e no campo político isso ganha uma maior ênfase porque a conquista do poder é o fator de maior interesse entre os agentes envolvidos no processo. Nesse jogo de poder, a persuasão vem atrelada ao espetáculo político por suas diversas maneiras de encantar a grande massa. A mídia por sua vez passa a ser o instrumento mais eficaz, dentro da sociedade, no qual o campo político se insere para que se construa a racionalidade do sistema produtivo. Se utilizando de diversas formas e meios comunicativos, é no palco midiático que a espetacularização política ganha sua maior ênfase e obtém maior proporção. O HGPE (Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral), que é veiculado nas plataformas do rádio e da televisão, se torna o palco principal para a divulgação dos personagens políticos que se candidatam aos seus respectivos cargos, pois como afirma Shwartezemberg (1978, p. 9) “A política, outrora, eram ideias. Hoje são as pessoas, ou melhor, personagens. Pois cada dirigente parece escolher um emprego e desempenhar um papel. Como num espetáculo”. Essa encenação contribui para que o espetáculo obtenha proporções maiores, pelo fato de tais personagens terem uma 632

aceitação maior do público, pois o mesmo se identifica e se encontra nele. Um bom exemplo é a eleição do Tiririca para deputado federal pelo estado de São Paulo, quantos nordestinos não se identificaram com ele pelo fato de terem tido a mesma batalha para conseguir uma vida melhor, migrando de suas cidades para os grandes centros do Sul, e encontram nele uma voz que os representem no congresso nacional (mesmo com tanto preconceito e crítica) pelo simples fato de Tiririca ter tido a mesma experiência de vida deles. Esses meios comunicativos (rádio e televisão) por serem acessíveis a todas as classes da sociedade, estando assim mais presentes no cotidiano, e por passarem mais credibilidade ganham mais atenção do público e têm a possibilidade de serem aceitos como sistemas de informação sobre a política. O HGPE veiculado na televisão tem um maior respaldo por proporcionar mais impacto ao espectador, por estar mais recheado de recursos que captam a sua atenção.

CÁSSIO CUNHA LIMA E A POLÍTICA Cássio Rodrigues da Cunha Lima nasceu no dia 05 de abril de 1963. É natural de Campina Grande, PB. Formado em Direito pela Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade Estadual da Paraíba. Casado com Sílvia Almeida Cunha Lima e pai de três filhos, Diogo Marcela e Pedro. É filho de Ronaldo e Glória Cunha Lima e tem três irmãos, Ronaldo Filho, Savigny e Glauce. Iniciou

a

sua

trajetória

política

como

representante

dos

estudantes secundaristas na luta pela Anistia. Foi diretor do Centro Acadêmico de Direito da UFPB e presidente do Centro Acadêmico de Direito Sobral Pinto, da UEPB. Em 1986, aos 23 anos, foi eleito deputado federal constituinte com 93.236 votos e em 1988, eleito prefeito de Campina Grande com 53.720 votos. 633

Foi vice-líder de Mário Covas na Constituinte onde integrou a Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, as Comissões da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e Comunicação e a Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias e a Comissão da Ordem Social. Como Constituinte, Cássio é o autor de projetos como o que aumentou de meio para um salário mínimo o menor benefício pago pela Previdência Social, o que garante ônibus gratuito para maiores de 65 anos e o que reduziu em cinco anos a idade mínima para a aposentadoria de trabalhadores rurais. É co-autor da emenda que reduziu para 16 anos a idade mínima para votar. Voltou a ser prefeito de Campina Grande em 1996 com 72.185 votos e reeleito em 2000 com 122.718 votos (71,3%). Na prefeitura recebeu diversos prêmios nacionais, entre os quais, o de Gestão e Cidadania da Fundação Getúlio Vargas. Entre as suas prioridades administrativas estão os investimentos em educação e saúde e geração de emprego e renda além da realização de obras de infraestruturas básicas que fez de Campina Grande a cidade com maior índice de saneamento básico do Nordeste e o primeiro município da região a ser 100% eletrificado. Rompeu com o PMDB em 2001, depois que o pai perdeu disputa interna no partida para a candidatura a governador da Paraíba para o próprio José Maranhão, adversário derrotado por Cunha Lima neste ano. Ambos se filiaram ao PSDB, pelo qual se elegeu governador pela primeira vez em 2002, superando Roberto Paulino, apoiado por Maranhão. Em 2002, Cássio Cunha Lima foi eleito governador da Paraíba onde venceu os dois turnos e obtive no segundo, 889.922 votos e reeleito em 2006, com vitórias no segundo turno, obtendo no 2º turno 1.003.102 votos. Entre as suas realizações, universalizou o ensino médio, diminuiu a dívida pública de 16% para 6% das receitas correntes líquidas quando o 634

Estado cumpriu todas as metas fiscais estabelecidas pelo ministério da Fazenda. Expandiu e concedeu histórica autonomia à Universidade Estadual da Paraíba, duplicou o índice de saneamento básico do estado, promoveu 27 concursos públicos e sancionou 37 Planos de Cargos, Carreira e Remuneração para os servidores e a Paraíba alcançou índices de crescimento do PIB acima da média nacional. Ainda no período de governo de Cássio, a Paraíba foi um dos estados do país que mais aumentou o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). A geração de emprego foi recorde histórico a exemplo das exportações estaduais. Mais de 50 mil famílias paraibanas tiveram as suas casas quitadas e outras 20 mil famílias receberam novas moradias. Cassado em 2009, deu posse assim ao segundo colocado nas eleições José Targino Maranhão; no ano de 2010 disputou as eleições para o cargo de Senador da República, mas teve sua votação impugnada devido ao parecer do TSE acerca da Lei Ficha Limpa. Em 2012 após uma reviravolta e o julgamento do Supremo Tribunal Federal Cássio foi considerado Ficha Lima e tomou posse como Senador onde permanece atuando. Ao todo com 4.088.711, Cássio Cunha Lima é, aos 49 anos, o político mais votado da história da Paraíba.

CÁSSIO E AS REDES SOCIAIS

Seja o mais assíduo telespectador ou o mais “antenado” com as novidades virtuais, é certo que o eleitor sofre uma série de influências no caminho que percorre para decidir seu voto. Mesmo quem se julga “desligado” da política ou não considera suas opiniões políticas importantes o suficiente para serem compartilhadas elabora um

635

raciocínio que o leva a escolher um entre tantos candidatos (ou a, simplesmente, anular o voto e não escolher nenhum). Segundo (MOREIRA 2010) As redes sociais são os sites que possibilitam a criação e compartilhamento de informações e conteúdos pelas pessoas e para as pessoas. O consumidor é ao mesmo tempo produtor e consumidor de informações. As redes são consideradas sociais porque são livres e abertas à colaboração e interação de todos, são produzidas e compartilhadas por muito e para muitos, são mídias porque são meios de transmissão de informação e de conteúdos. Segundo

Telles,

Lourenço

e

Storni

(2009),

a

corrente

de

pensamento conhecida como “sociologia eleitoral” atribui ao contexto social no qual se inserem os indivíduos uma influência maior sobre a decisão do voto do que as campanhas eleitorais. Fatores como escolaridade, posição social, religião e gênero seriam, portanto, elementos que ajudariam o eleitor a “filtrar” seus interesses e escolhas políticos. Nessa perspectiva, a exposição a informações políticas oriundas dos meios de comunicação seriam úteis para ativar interesses e preferências latentes ou para reforçar posições previamente adotadas e, por conseguinte, rejeitar informações contrárias. As Redes Sociais nasceram para integrar membros com interesses e ideologias ligados pela relevância de um determinado assunto e para proporcionar integração e interatividade através de comunicação e compartilhamento de conteúdo. Para Recuero (2004), “a análise estrutural das redes sociais procura focar na interação como primado fundamental do estabelecimento das relações sociais entre os agentes humanos, que originarão as redes sociais, tanto no mundo concreto, quanto no mundo virtual”. A afirmação da autora é corroborada por Torres (2010), ao dizer que “as redes sociais resgatam o modelo natural de interação humana”. Com o Surgimento do Twitter concebido pelo programador americano Jack Dorsey há 17 anos. Sua função era rastrear

636

motoristas de táxi, o que por analogia pressupõe o porquê da pergunta no site do Twitter: “O que você está fazendo?”. Contudo, depois de um tempo ele percebeu que esta mesma tecnologia poderia ter outros usos e, com a ajuda dos fundadores do site Blogger, Biz Stone e Evan Williams, a sua ideia ganhou forma. Em setembro de 2006, o site foi lançado, embasado na mobilidade dos celulares, sua concisão de mensagens e instantaneidade de informações. Com isso, o Twittervem sendo considerado um ambiente de liberdade de comunicação, já que se encontra no ciberespaço e, segundo Stockinger, o ciberespaço multiplica e amplia os graus de liberdade e opções alternativas, o que realimenta o conteúdo da própria comunicação. Contudo, podemos dizer também que o Twitter é um espaço de informação, já que é um microblog – também segundo Stockinger, a informação é um evento temporalizado e perecível. O momento pelo qual passamos hoje parece ser intensificado a cada instante que um dispositivo das novas tecnologias aparece no mercado. Dependendo do dispositivo e de sua função, os resultados variam, e muito. (SANTOS 2012)

Apartir do desenvolver-se da web e de todo o conjunto de interatividade que ela nos oferece, os eleitores que por sua vez também são internautas passaram a ser mais exigentes e a partir disso surge à necessidade de interagir com o candidato através de seu ambiente virtual tornando-se assim de extrema importância para o sucesso de uma campanha eleitoral. Com a eclosão das mídias sociais, podemos analisar em contexto que houve a mudança de comportamento do eleitorado que agora passam a opinar, criticar e fazer propaganda.

Foi o que aconteceu com o discurso político de Cássio Cunha Lima, a Social Network tornou-se a sua principal ferramenta entre a sua campanha e os cidadãos comuns, seu principal objetivo era de expandir não somente suas ideias como também mostrar que ele tinha o diferencial de ser um político “Ficha Limpa”.

637

Com isso, aconteceu o que a assessoria previa aproximar Cássio Cunha Lima com os eleitores e internautas, prova disso são os retwitters e as respostas de incentivo, a partir desse contexto vimos que o Twitter se tornou um agente facilitador para o encontro entre eleitor e o postulante ao cargo. Sabemos que não se trata de uma ferramenta que faça ganhar eleição, mas pode ajudar um candidato a perdê-la para um concorrente que esteja mais próximo do seu público, usando a rede de microblogging.

CONCLUSÃO

Embora muitos autores acreditassem que o ser social agregado às redes

sociais

ultrapassa

a

realidade

e

mergulha

num

mundo

pretensiosamente manipulado pelas mídias da informação, o Twitter, baseia-se na sociedade real garantindo maior visibilidade e mobilização para os fenômenos sócio-políticos. O papel da rede é, antes de tudo, viabilizar a exposição de ideias como a televisão ainda não permite. No rádio, jornal ou televisão, o espaço aberto à pluralidade de ideias é limitado. Vamos para a internet para expor pontos de vista e, mais que isso, para buscar conteúdos que fundamentem nossas opiniões prévias. É nesse âmbito que vemos a importância da mídia eletrônica e como ela teve um papel de grande valia e destaque nessa análise, devido ao seu poder, que se tornou de certa forma um poder formador de

opinião,

ao

mesmo

tempo, 638

sua

influência

direta

sobre

o

comportamento da sociedade no pleito eleitoral de 2010 fez com que se formasse uma nova mentalidade a cerca do que é política e com isso uma nova parcela da população fosse atingida, sendo um fator de influência direta nos resultados vistos ao final das eleições. Portanto, podemos notar, enfim, que a internet pode ser incorporada à série de atalhos informacionais que o eleitor comum utiliza para decidir seu voto, mesmo que não de maneira direta. Mesmo para aqueles que não têm acesso à rede, os conteúdos oriundos do meio virtual podem estar contidos no discurso de uma pessoa de confiança, a quem os menos informados podem recorrer para obter informações a baixo custo e de maneira mais fácil.

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UM OLHAR MAUSSIANO ACERCA DA POLÍTICA LOCAL EM BARREIRA-CEARÁ Monalisa Lima Torres217 Hermano Machado Ferreira Lima (Orientador)218

Resumo: Na sociedade brasileira, alguns aspectos característicos do sistema coronelista, tais como os chamados currais eleitorais bem como a desorganização dos serviços públicos persistem e são visíveis no fazer político de hoje. Nesse trabalho examinamos a combinação de práticas tradicionais e modernas na política municipal em Barreira, Ceará, tendo como objeto de estudo os médicos que se elegem prefeitos, utilizando-se dos mesmos meios dos “antigos coronéis”. Para melhor entendimento desse fenômeno, adotamos o sistema de dádivas, de Marcel Mauss, como modelo conceitual capaz de explicar o tipo de organização social em Barreira, as relações médico-paciente e político-eleitor e, ainda, como tais relações atravessam o campo da política. Palavras-chave: dádiva, política local, relação político-eleitor.

INTRODUÇÃO

Voltando o olhar para a realidade política brasileira atual, observamos que, numa sociedade ainda hierarquizada, onde os princípios de igualdade ainda não estão plenamente estabelecidos, não só nas grandes cidades como nos pequenos municípios do interior, figuras políticas, fazendo uso de suas atribuições públicas (ou com recursos privados), estabelecem relações onde se trocam benefícios por voto

e

apoio

político.

Essas

e

outras

práticas

(clientelismo,

patriarcalismo, patrimonialismo), ainda recorrente nos nossos dias, 217

Graduada em Ciências Sociais (UECE), Mestra em Políticas Públicas e Sociedade (UECE) e Doutoranda em Sociologia (UFC). Professora (URCA) [email protected]. 218 Graduado em Sociologia e Política (UFPE), Doutor em Educação (UFRN). Professor Titular (UECE). [email protected].

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poderiam ser perfeitamente identificadas como características do coronelismo. Entretanto, preferimos adotar um modelo conceitual mais amplo, que parte de algo anterior ao coronelismo, qual seja, as relações interpessoais que se estabelecem antes do surgimento do coronel, e o que motiva/movimenta tais relações: o sistema de dádivas. Aqui, entendemos por dom ou dádiva o ato voluntário que, individual ou coletivo, precisa ou não ser solicitado por quem recebe, e que estabelece vínculos de solidariedade e/ou laço social. Nesse caso, basta lembrar a barganha eleitoral, onde tanto político quanto eleitor iniciam tal relação solicitando um dom em troca de outro. Esses dons e contra-dons na política configuram o que alguns de nossos estudiosos denominaram por favor. A partir dessas reflexões cabe nos debruçarmos sobre o fenômeno que motivou esta pesquisa: a coexistência de práticas políticas tradicionais e modernas no contexto da política local em Barreira (Ceará), tendo como sujeito-objeto o médico que se torna prefeito e fazendo uso de práticas políticas tradicionais, se mantem no poder. Ressaltando que, no contexto desta investigação, tradicional e moderno são entendidos da seguinte maneira: ‘Tradicional’ geralmente se refere à ausência de instituições modernas que regulem o poder dos políticos e dos funcionários públicos, ao passo que ‘moderno’ significa predominância de procedimentos legal-racionais na administração pública, um autêntico espírito representativo nas instituições políticas e uma efetiva preocupação com o universalismo e o ‘bem comum’ na cultura política (OTTMANN, 2006. p. 156).

Barreira, emancipado através da Lei Estadual 11.307 de 15 de abril de 1987, é um pequeno município do interior cearense, que teve, em toda sua história, seis chefes do executivo, sendo dois deles médicos – dr. Glicério de Moura Júnior (ou como era mais conhecido, dr. Júnior) e dr. Valderlan Fechine Jamacaru (o dr. Valderlan) – que, juntos, governaram por dez anos. Ambos, em suas campanhas eleitorais, faziam discursos modernizadores e ambos foram afastados do exercício 642

do cargo por improbidade administrativa. O primeiro médico eleito foi Dr. Júnior, em 1992, cassado em 1994, assumindo seu vice, Zé Bernardo (ou professor Bernardo). O segundo, Dr. Valderlan, eleito em 2000 e reeleito em 2004, cassado no último ano do segundo mandato. Este último, ainda interfere na política municipal e se mantem no poder através do apoio ao seu amigo íntimo e atual prefeito, Antônio Peixoto. Neste trabalho daremos ênfase ao Dr. Valderlan. METODOLOGIA Para a apreensão do fenômeno em estudo, como a metodologia weberiana ensina, devemos compreendê-lo a partir das peculiaridades da sociedade da qual faz parte, estando essas peculiaridades historicamente situadas. Desse modo, no que se refere a interpretação das relações médico-paciente e político-eleitor a dádiva nos servirá de guia. Além disso, fez-se uso dos conceitos weberianos de tipo-ideal para a observação dos “doutores-prefeitos”. Lembrando que os tipos-ideais são categorias puramente classificatórias e servem como meio de aproximação com o objeto e, como construções teóricas, funcionam apenas como instrumento de análise da realidade, não significando a própria realidade. Nesse sentido, entendemos por “doutor-prefeito” o médico que se desloca de sua cidade de origem para trabalhar num pequeno município do interior e, a partir do exercício de sua profissão, mantém relações de troca recíproca (sistema de dádivas) e por isso, ganha a confiança do paciente (eleitor em potencial), se transformando num líder carismático. Não tem tradição política, mas foi eleito sem grandes dificuldades. E após eleito, se perpetua no poder, seja direta ou indiretamente. Esta

investigação

fez

uso

da

técnica

de

entrevista

semiestruturada com importantes figuras políticas de Barreira como Zeca Torres, Zé Bernardo e Ernani Jacó (estes dois últimos foram prefeitos 643

de Barreira), alguns servidores públicos que trabalharam em Secretarias Municipais nas gestões dos “doutores-prefeitos”, pessoas próximas (amigos e/ou parentes) de dr. Júnior e dr. Valderlan. Vale ressaltar que, em relação aos entrevistados, todos, exceto as grandes figuras políticas e os “doutores-prefeitos”, ganharam nomes fictícios no intuito de preservar suas identidades. O objeto de estudo é a coexistência entre práticas políticas tradicionais e modernas no contexto da democracia de hoje, e sua figura principal, o “doutor-prefeito”. O campo de pesquisa é Barreira, o momento histórico é o período que compreende as eleições locais de 1992 à 2012. Onde serão observados os vínculos sociais, de intimidade e dependência geradas a partir da relação entre o médico se transferindo para o campo da política e os desdobramentos dessas interações na conjuntura político-social barreirense. O MODELO CONCEITUAL DA DÁDIVA “O melhor de nossa vida / É paz, amor e união / E em cada semelhante / A gente ver um irmão / e apresentar para todos / O papel da gratidão. Quem faz um grande favor / Mesmo desinteressado/Por onde quer que ele ande/leva um tesouro guardado / E um dia sem esperar / Será bem recompensado” (Brosogó, Militão e o Diabo - Patativa do Assaré).

Analisando a tradição política brasileira perceberemos que o coronelismo foi um sistema político que, por muito tempo, organizou o país não só política como socialmente. Entretanto, segundo Victor Nunes Leal, após a década de 1930, o coronelismo teria sido extinto do nosso cenário político. Contudo, outros aspectos, que seriam característicos do sistema coronelista, se perpetuaram no fazer político de hoje. Tais aspectos são, entre outros, o domínio sobre um número considerável de votos de eleitores, a que poderíamos identificar como curral eleitoral, a desorganização dos serviços públicos – e aqui, essa desorganização

644

não



alimenta

como

prolonga o

domínio

de determinadas

pessoas/lideranças políticas sobre o voto de seu eleitorado. Numa crítica a Victor Nunes Leal, Domingos Neto (2010) entende que as categorias coronel e coronelismo são advogadas com fenômenos delimitados, bem definidos. O que contradiz a infinidade empírica de casos que apontam o contrário. Os coronéis se apresentariam de diversas maneiras, carregando as mais diversas características além daquelas estabelecidas por Leal. Coronéis podiam ser ou não donos de terra, rudes senhores guerreiros e empresários arrojados; ricos comerciantes ou fazendeiros remediados, chefes de parentelas ancestrais ou aventureiros recém-chegados; semi-analfabetos ou intelectuais refinados. Coronéis tinham suas autoridades derivadas tanto da força bruta quanto da ascendência moral, da prestação de serviços com recursos privados ou públicos ou de tudo isso combinado em diferentes proporções. Coronéis impunham-se pela virtù e armas próprias ou pela virtù e armas alheias; mandavam em parte do município, no município inteiro, em conjunto de municípios e mesmo em todo o estado; subordinavam o padre ou lhe obedeciam; buscavam a chancela do Estado ou o ignoravam, quando lhes era conveniente e possível (DOMINGOS NETO, 2010. p. 35-36).

Como exemplo ilustrativo, Manuel Domingos Neto, se referindo ao Ceará, nos lembra as eleições estaduais de 1986, que foram vencidas por um grupo de empresários que se colocavam como aqueles que combateriam os “coronéis retrógrados”. Todavia, os ditos “coronéis retrógrados” implementaram políticas muito mais modernizadoras, por exemplo, introduziram o planejamento de políticas públicas no Estado e foram responsáveis pela criação de infraestrutura fundamental para desenvolvimento industrial. Uma das grandes questões defendidas pelo teórico é que a modernização, urbanização e industrialização do Brasil foram realizadas de forma desigual, regionalmente falando, e que a pobreza do sertanejo nordestino foi aprofundada graças à maneira como tais mudanças se processaram, e não como consequência da sobrevivência dos “coronéis” como chefes do poder local.

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Para Maria Isaura Pereira de Queiroz, o poder de mando no âmbito local se apoia/manteve não [exclusivamente] em função da propriedade fundiária como igualmente afirma Domingos Neto, mas também, e aqui encontramos sua dimensão sociológica, na parentela (PEREIRA DE QUEIROZ, 1976). É daí que a pesquisadora percebe que as relações pessoais que constituem o mandonismo local na vida política não são irracionais, mas se perpetuam através dos vínculos íntimos e/ou de cunho familiar. Desse modo, a parentela assegura a durabilidade de posições sociais e de prestígio mesmo quando ocorrem mudanças, inesperadas ou não, de caráter ideológico, político ou econômico: agem com eficiência e rapidez para se acomodar às mudanças e garantir seu poder de mando. Partindo dessas perspectivas entendemos que as categorias coronel e coronelismo não conseguem abarcar toda a complexidade existente na conjuntura político-econômico-social brasileira. Tampouco conseguem explicar a permanências de práticas políticas tradicionais (características do coronelismo), nem o constante aparecimento de figuras políticas que, utilizando-se dos mesmos meios dos “antigos coronéis”, se perpetuam no poder seja direta ou indiretamente. Dessa forma, este trabalho se propõe a interpretar a coexistência de práticas políticas consideradas tradicionais e modernas a partir do modelo conceitual da dádiva (Mauss, 2007). Tal perspectiva nos permite compreender algo muito anterior ao coronelismo (entendido aqui como sistema

que

organizou

nossa

vida

político-econômico-social,

principalmente, na República Velha). Quais sejam, as relações que se estabelecem entre as pessoas, ou ainda, o modelo que engendra tais relações: o sistema de obrigações do dar-receber-retribuir. Muito antes de Marcel Mauss, outros teóricos já haviam observado a importância da troca no que se refere à produção e reprodução das relações sociais. Mas foi em “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas”, publicada inicialmente em 1925, que tal discussão ganhou destaque. Nessa grande obra de Mauss, notamos 646

a influência da sociologia durkheimiana219 e, para muitos de seus comentadores, a superação do mestre. Em

“Ensaio

sobre

a

dádiva”,

Mauss

destaca

que,

independentemente do momento histórico, em todas as sociedades existe uma força que liga as pessoas através de laços sociais fundados em trocas e prestações. Essas trocas se manifestam das mais diversas formas, mas em sua essência comportam três obrigações: o dar, o receber e o retribuir. Os bens trocados, (assim como as pessoas), sejam materiais ou imateriais, são postos em circulação no seio da sociedade e

é

sua

circulação

que

garante

a

produção

e

a

reprodução/manutenção dos laços sociais. De tal maneira que uma dádiva/dom ofertado à alguém sempre retornará ao seu ponto inicial. Para que uma troca seja considerada uma dádiva ela deve ser voluntaria e estabelecer uma relação de caráter pessoal. Entendemos por dádiva um sistema de trocas recíprocas que organizam toda a vida em sociedade. É a partir dela que se estabelecem as relações/vínculos sociais sejam entre indivíduos sejam entre grupos. Nesse sistema de prestações totais tudo é simbólico e recíproco. Vale ressaltar que o sistema da dádiva ou sistema de prestações totais é um fato social total (MAUSS, 2007; DURKHEIM, 2007), ou seja, ele percorre e atravessa os mais diversos aspectos da sociedade. Ainda no que tange a dádiva, o que se troca: (...) não são exclusivamente bens e riquezas, bens móveis e imóveis, coisas uteis economicamente. São, antes de tudo, amabilidades, banquetes, ritos, serviços militares, mulheres, crianças, danças, festas, feiras, dos quais o mercado é apenas um dos termos de um contrato bem mais geral e bem mais permanente. Enfim, essas prestações e contra-prestações se estabelecem de uma forma sobretudo voluntária, por meio de regalos, presentes, embora eles sejam no fundo rigorosamente obrigatórios, sob pena de guerra privada ou pública. Propusemos chamar tudo isso de sistema de prestações totais (MAUSS, 2007. p. 191). 219

Marcel Mauss, sobrinho de Èmile Durkheim, foi o maior e mais importante herdeiro da sociologia durkheimiana.

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Vale ressaltar que as três obrigações da dádiva são igualmente necessárias, muito embora não sejam equivalentes, principalmente no que se refere à importância da circulação de bens. O dar é o ponto por onde se inicia a troca, mas é o retribuir que faz as dádivas circularem, é a gratidão que faz com que o beneficiário restitua o dom que ganhou de alguém. Todo dom/dádiva carrega consigo aspectos do doador. Sendo uma dádiva, comporta valor, e esse valor é estendido ao doador, ou seja, prolonga o próprio doador no momento da troca. Esse é um dos fatores que faz a dádiva ser retribuída, é a restituição do valor do doador. Segundo Mauss, as dádivas possuem “alma” própria, sendo uma parte dessa alma a do doador. Daí os vínculos sociais serem de caráter moral-afetivos, já que são estabelecidos “entre almas”. Toda relação de dom é uma relação pessoal, mesmo quando instituído entre pessoas que, a princípio, não mantenham nenhum vínculo pessoal. Vale notar que há uma significativa diferença entre sistema de prestações totais e a simples troca no sistema mercantil. No primeiro tipo, a troca de dádivas a) gera valor moral e ético, b) o que se troca possui valor simbólico muito maior que valor econômico, c) sendo a qualidade do valor simbólico aquilo que irá determinar a intensidade do d) vínculo que se estabelece entre as pessoas que trocam; e) a troca não precisa ser igual e/ou equitativa – e nem poderia ser, tendo em vista que cada item trocado carrega um valor simbólico próprio – nem imediata. No sistema de dádivas o mais importante é o vínculo socialafetivo que se estabelece. Por isso a obrigação de retribuir com algo de valor maior do que se recebeu220, por isso algumas de suas características marcantes serem a reciprocidade e a dívida, sem elas

220

O sistema de dádivas é constituído pela obrigação de dar, de receber e de retribuir. Mas ao retribuir, a pessoa deve ser mais generosa que o primeiro doador (MAUSS, 2007). E é nesse “retribuir mais do que recebeu” que se garante a perpetuação do vínculo, tendo em vista que na dádiva se está sempre gerando uma nova dívida.

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não haveria circulação de bens, não se estabeleceriam as alianças. Ao contrário, na troca mercantil o que circula deve ter valor econômico equivalente, pouco importando o valor simbólico; não se estabelecem vínculos afetivos, sendo o contato interpessoal concluído no instante da troca. A dívida deliberadamente mantida é uma tendência da dádiva, assim como a busca de equivalência é uma tendência do modelo mercantil. Os parceiros em um sistema de dádivas ficam em situação de dívida, negativa ou positiva. Se for uma situação positiva, significam que consideram muito aos outros. Não é uma noção contábil. É um estado, no qual cada um considera que, em termos gerais, recebe mais do que dá. O sistema de dádiva se situa, assim no polo oposto ao do sistema mercantil. Não porque seja unilateral, o que não é, mas porque o que caracteriza o mercado (...) é a transação pontual, sem dívida, ao passo que a dádiva busca a dívida (GODBOUT, 1998. p. 6).

Cabe destacar que a relação de dádiva é uma relação de solidariedade, já que ao doar se está partilhando com o outro. Ao partilhar criam-se dívidas por parte de quem recebe, por isso é considerada uma relação assimétrica tendo em vista que o donatário fica em dívida com o doador. Dívida essa só “quitada” quando o donatário retribui o presente. No que se refere às relações assimétricas estabelecidas na dádiva, estas geram hierarquia e, segundo Godelier (2001), se a hierarquia já existia antes da troca recíproca é através dela que a diferença de status não só se mostra como se legitima. Daí o autor nos apresenta dois aspectos da dádiva: ao mesmo tempo que o dom aproxima seus participantes (pois se funda numa partilha, numa relação de solidariedade) ele também os afasta, tendo em vista que gera dívidas. O dom é, em sua própria essência, uma prática ambivalente que une ou pode unir paixões e forças contrárias. Ele pode ser, ao mesmo tempo ou sucessivamente, ato de generosidade ou ato de violência, mas nesse caso de violência disfarçada de gestos desinteressados, pois se exerce por meio e sob a forma de uma partilha (GODELIER, 2001. p. 23).

649

Se pensarmos o caso dos candidatos a cargos eletivos que prometem empregos e contratos na prefeitura em troca de apoio político às suas candidaturas, perceberemos que, antes de iniciarem a troca, já existe uma diferença de status. E se levarmos em consideração que o espaço da política (aqui nos referimos ao que está sendo observado em Barreira) é um lugar excludente (o cidadão só se insere na política local por intermédio de outros políticos), a distância entre político e eleitor se torna maior. Além disso, o recebimento do cargo (dom) por parte do eleitor o torna dependente do político. Não só no que tange as dívidas por parte da dádiva que se estabelece, quanto pelo risco de perca do dom caso contrarie o donatário. Nesse caso, o doador tem tanto o poder de presentear quanto de tomar o presente. Assim, o respeito do donatário é constituído não só por valores morais (dádiva) quanto pelo receio de perder a dádiva. A relação assimétrica, no exemplo citado, não só fica clara quanto se legitima e se reproduz, como atesta Godelier: O dom pode se opor à violência direta, à subordinação física, material, social, mas também ser um seu substituto. E são mais que abundantes os exemplos de sociedades em que os indivíduos, incapazes de honrar suas dívidas, se veem obrigados a se colocar, ou a colocar seus filhos, como escravos, acabando por se transformar na propriedade, na ‘coisa’ daqueles que lhes tinham concedidos seus dons (Idem, p. 24).

Entendendo o sistema de dádiva como aquilo que engendra os laços sociais, baseado na espontaneidade, na não equivalência, na dívida, na reciprocidade é possível compreender porque ainda é um dos sistemas que organiza a sociedade. Em resumo, “por que se dá? Se admitirmos o que precede, a resposta é simples: para se ligar, para se conectar à vida, para fazer circular as coisas num sistema vivo, para romper a solidão, sentir que não se está só e que se pertence a algo mais vasto, particularmente a humanidade” (Idem, p. 11). Seguindo essa perspectiva, Godelier defende a tese de que o que faz os bens circulem são, antes do espírito da coisa dada (hau) e do doador na 650

coisa dada, é a vontade dos participantes da troca de manterem laços sociais, sejam de solidariedade, amizade ou dependência. E aqui cabe pensarmos os laços sociais que se estabelecem no domínio da política. Desse modo, o fim não é apenas estabelecer relações de amizade mas também, e nesse caso é um dos nossos objetos de análise, a dependência.

A LÓGICA DA DÁDIVA E AS RELAÇÕES SOCIAIS E POLÍTICAS É esta perspectiva que nos permite voltar o olhar e refletir a respeito da questão do clientelismo e patrimonialismo no Brasil para além dos significados comumente atribuídos a eles. Quais sejam, “um tipo de relação entre atores políticos que envolve concessão de benefícios públicos, na forma de empregos, benefícios fiscais, isenções, em troca de apoio político, sobretudo na forma de voto” (CARVALHO, 1996) e a distribuição/apropriação de bens públicos como se fossem privados. Nesse sentido, recorreremos a uma das maiores obras que buscaram responder à gênese da cultura brasileira, “Raízes do Brasil”. Segundo Sérgio Buarque de Holanda (2004), os colonizadores portugueses não se preocuparam em construir, no Brasil, uma sociedade

organizada.

Nesses

termos,

tal

descomprometimento

favoreceu o surgimento de um tipo de sociabilidade baseada na confusão do público com o privado, além da família como modelo de organização societária. impediram

o

pleno

Para o teórico, foram esses fatores que estabelecimento/funcionamento

das

regras

democráticas no país. Na citada obra, ao se referir ao homem cordial, Sérgio Buarque de Holanda já sinaliza para as manifestações do sistema de dádivas em nossa sociedade. No homem cordial (aquele atua no mundo seguindo princípios morais-afetivos) observamos uma considerável importância

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nas relações sociais de caráter pessoal/intimista, que são estabelecidas a partir de trocas recíprocas de bens materiais e/ou imateriais221. No ‘homem cordial’, a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência. Sua maneira de expansão para com os outros reduz o indivíduo, cada vez mais, à parcela social, periférica, que no brasileiro – como bom americano – tende a ser o que mais importa. Ele é antes um viver nos outros (HOLANDA, 2004. p.147).

Para termos uma ideia, as relações entre os senhores de engenho e os moradores da propriedade, fossem esses escravos ou homens livres (principalmente aqueles destituídos da propriedade dos meios de produção) se pautavam em relações pessoais, de intimidade. Não só os filhos dos escravos conviviam, nas Casas-Grandes, com os filhos do senhor como também aqueles homens livres – embora dependentes social, política e economicamente do grande proprietário –, eram apadrinhados pelo patriarca. Nesse contexto, o batismo é a dádiva da graça divina concedida pelo padrinho ao afilhado. E por carregar um caráter sagrado, o valor simbólico é imenso e, consequentemente, o vínculo que se cria é muito grande, tendo o padrinho poder e autoridade de um pai em relação ao seu afilhado. Isso explica, em parte, a força e importância que o chefe do potentado rural teve (e ainda tem, se considerarmos as regiões mais rurais do país) sobre seus trabalhadores (LANNA, 1995). Uma das consequências que podemos tirar dessas interações sociais baseadas em relações afetivas é que “diminuíam o poder absoluto e o rigor da autoridade do grande proprietário. Mas, de outro lado, elas reforçavam essa mesma autoridade” (GUALBERTO, 1995. p. 31-32). É nesse universo aristocrático, de homens livres, expropriados e dependentes e extensos domínios privados com seus chefes que vemos 221

Lembrando que esses bens imateriais são os mais diversos, podendo ser identificados como amabilidades, cortesia, hospedagem, atenção, carinho, sorrisos, etc. Por isso, afirmamos que nas interações interpessoais entre senhor e escravo havia também, além da exploração do trabalho do segundo, a possibilidade de relações baseadas no sistema de prestações totais.

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emergir uma realidade social bastante desigual, um espaço público vivenciado por poucos e as atividades políticas servindo como meio por onde os grandes proprietários defendiam seus interesses particulares e/ou os interesses de seus amigos/familiares. Para os interesses desta investigação, destacamos a perspectiva buarquiana acerca do cordialismo brasileiro, que reforça a importância das relações de pessoalidade fundadas na dádiva. Para tanto, cabe fazer uma distinção entre pessoa e indivíduo, categorias bastante pertinentes para os objetivos desse trabalho. Indivíduo e pessoa são tidos como contraditórios no que diz respeito ao sentido da ação social que implementam e dos valores que balizam. O indivíduo habitaria um mundo desencantado, marcado pela distinção entre fato e valor. Dilacerado entre um e outro, oscilaria entre uma ação racional segundo fins – fundada no cálculo, tendo como corolário a instrumentalização dos outros indivíduos e o predomínio da relação com os homens – e uma ação orientada por valores. Justamente tais condições assegurar-lhe-iam orientar-se idealmente pelos princípios de autonomia, liberdade, igualdade e – habitualmente de um mundo burguês – propriedade. O lugar da pessoa, ao contrário, seria a sociedade hierárquica, que demandaria sua subordinação à logica relacional e à totalidade por ela representada. Autonomia e independência seriam estranhos ao universo da pessoa, cuja ação tenderia a conformar-se a padrões tradicionais (CHAVES, 1996. p. 1129-130).

Se o indivíduo é aquele que se refugia no espaço privado, ser autônomo e independente que busca revolver seus problemas por si mesmo; a pessoa, ao contrário, responde a tais problemas na medida em que se relaciona com o outro (ou que delega esse poder ao outro) e/ou por intermédio das relações de caráter intimista que cultiva e mantém. É salutar afirmar que o sistema de dádivas é um dos principais modelos

organizadores

constituída,

em

sua

da

sociedade,

maioria,

por

independente indivíduos

dela

ser

(sociedades

democráticas/igualitárias) ou pessoas (sociedades hierárquicas), mas é no segundo tipo societário que a dádiva conquista maior liberdade e importância.

653

Num mundo pautado pela hierarquia, as relações pessoas com figuras políticas assegura àqueles que se situam na base da escala social um tratamento diferenciado, vantagens que sua própria posição não permitiria e/ou em alguns casos, faz valer direitos que, dentro dessa ordem, não seriam possíveis de serem garantidos. É a pessoalidade das relações adentrando nas mais diversas esferas da sociedade brasileira. Relações entre pessoas – em oposição a indivíduos – que, ao mesmo tempo que mascara/eufemiza, sustenta o caráter hierárquico de nossa sociedade. Em outros termos, o dar-receber-retribuir entre político e eleitor, por exemplo, garante a esse último a conquista de direitos (ou a certeza de manter relações pessoais com uma autoridade, a esperança/expectativa de receber um benefício), que são percebidos como benefícios, e por isso, dádivas. Levando em consideração as mudanças ocorridas nas modernas sociedades ocidentais, observamos que a superação das “velhas corporações de ofício” pela dinâmica da produção em larga escala – consequente da lógica da indústria capitalista – foi responsável pela individualização dos homens, pela transformação da pessoa em indivíduo. Segundo Sérgio Buarque de Holanda, foi o “moderno sistema industrial que, separando empregados e empregadores nos processos de manufatura e diferenciando cada vez mais suas funções, suprimiu a atmosfera de intimidade que reinava entre uns e outros e estimulou o antagonismo de classe” (HOLANDA, 2004. p.142). A partir daí, a clara separação entre classe trabalhadora e burguesa, a perda dos vínculos de intimidade que os uniam, a individualização favoreceram o pleno estabelecimento do liberalismo. No Brasil, ao contrário, segundo Maria Sylvia Franco, a estrutura e divisão de nosso território entre grandes potentados, a lógica da produção mercantil voltada para os mercados externos, baseada na monocultura e no trabalho escravo, deu origem a uma classe de homens livres, porém, dependentes do proprietário de terras. Esses homens: 654

(...) não foram plenamente submetidos às pressões econômicas decorrentes dessa condição, dado que o peso da produção, significativa para o sistema como um todo, não recaia sobre seus ombros. Assim, numa sociedade em que há concentração dos meios de produção, onde vagarosamente, mas progressivamente, aumentam os mercados, paralelamente formam-se um conjunto de homens livres e expropriados que não conhecem os rigores do trabalho forçado e não se proletarizam. Formou-se antes uma ‘ralé’ que cresceu e vagou ao longo de quatro séculos: homens a rigor dispensáveis, desvinculados dos processos essenciais à sociedade. A agricultura mercantil baseada na escravidão simultaneamente abria espaços para sua existência e os deixava sem razão de ser (Franco, 1997:14).

Dessa forma, essa “ralé” contribuiu substancialmente não só para a personalização de nossa esfera pública, para a manutenção do homem cordial – já que dependia das relações patriarcais, dos vínculos intimistas com os senhores de terra para se inserirem na vida em sociedade – como para a resistência no que tange a introdução do indivíduo na dinâmica econômico-político-social do país. Daí, mesmo após a crise do açúcar e a ascensão do café, o centro da vida social sendo transferido para as cidades, a industrialização e o advento da democracia – que demandavam outro tipo de homem: o “homemindivíduo” – o brasileiro continuou a resistir à substituição da pessoa pelo indivíduo ou pelo menos, a priorização deste em detrimento daquele. Entendendo a sociedade brasileira como, ainda, hierárquica e pessoal, é possível compreender a permanência do personalismo hoje, na nossa cultura. É através da pessoa pública, e aqui nos referimos ao político profissional e/ou algum tipo de representante de demandas políticas, que a pessoa consegue se inserir nessa sociedade e garantir seus direitos. É interessante perceber que esses “direitos” carregam dois aspectos:

como

algo

inerente

à

cidadania,

e

por

isso

é

responsabilidade do Estado garanti-los a todos de igual maneira; e como “benefícios” – nesse caso, direito confundido com privilégio já que o acesso a eles é exclusivo àqueles que têm vínculos com uma pessoa pública. Muitas vezes o benefício é consentido através de

655

recursos

públicos/estatais,

mas

distribuídos

como

bens privados,

reforçando seu caráter de dádiva.

A DÁDIVA EM BARREIRA (CEARÁ) Em Barreira, os serviços públicos ainda são precários e isso faz com que a população carente busque, nos representantes do poder público, a satisfação de suas necessidades. Essas necessidades são as mais diversas, às vezes de saúde, estruturais como pavimentação, água encanada, saneamento básico, ou mesmo particulares como o pagamento de uma conta de energia vencida, a compra de gás de cozinha, etc. A grande questão é que a pessoa política é vista como distribuidor de benefícios, e não como um funcionário público cumprindo uma obrigação de sua função. O que pode ser observado em entrevista com Paulo, quando este, refletindo sobre a realidade de Barreira aponta a ideia do político-profissional como um distribuidor de benefícios, que ajuda seus eleitores-amigos (ou são procurados) quando estes precisam de favores privados: (...) a maioria do pessoal são pessoas pobres, de zona rural e todas dependem do serviço público. Às vezes, ajuda pra comprar um remédio, pra pagar uma conta de luz, uma corrida, uma mudança, então o povo não (...) tem autonomia, não tem vida própria. Não tem autonomia porque são todos dependentes, alienados ao poder público né?! Quem tem independência não vai nem se prender nisso, mas a maioria do povo que não tem, que depende muito do poder público, não diz nada, não adianta! Porque eles acham que se ofender o prefeito vão perder o direito de andar na ambulância, de fazer uma mudança, de, numa emergência, precisar de um carro e não ter (Paulo, autônomo. Entrevista realizada em 11 de junho de 2012)

Nesse

contexto,

por

exemplo,

se

o

município

não

tem

ambulâncias suficientes para fazer o deslocamento de um doente e o prefeito concede um carro particular para realizar o transporte, o problema não é visto como sendo carências de serviços públicos de 656

saúde e transporte, mas como um favor, uma dádiva da pessoa política. Isso gera vínculos moral-afetivos entre o prefeito e o beneficiado, e este, em dívida, retribui como pode – com o carinho, respeito e fidelidade ao doador da dádiva. Na Barreira já tem pouca ambulância, se não me engano, são três ambulâncias, três ambulância! E se você vê o estado da ambulância! Teve uma vez que uma dessas ambulâncias ficaram presas lá na Polícia Rodoviária... pra você ter uma ideia, essa ambulância, os espelhos eram pregados com fita adesiva. Não sei nem como aquilo ainda roda nessas estradas daqui da Barreira. Aí o que acontece, a pessoa passa mal, consegue um transporte pra ir pro hospital e chega lá o médico manda logo ir pra Fortaleza. Aí a ambulância não tá lá, tá levando outra pessoa ou já tá na Fortaleza. E aí, o que é que faz? Pede pro prefeito, ou pra quem quer que seja, um carro particular. O prefeito, ou um vereador amigo da pessoa vai e arruma um carro, freta um carro de praça e leva o doente pro hospital de Fortaleza. Pronto! A pessoa fica grata pelo resto da vida. Uma colega minha, professora também, aconteceu isso com ela. O pai dela teve um ataque de coração, sei lá o que foi, mandaram pra Fortaleza e não tinha como levar o homem. Foi um vereador amigo dela que pagou o carro. Ele nem era o candidato dela, ela votava em outro, mas no ano seguinte, que era ano de eleição, ela votou nele porque achava que devia muito pra ele. Tudo bem que foi um favorzão que ele prestou pra ela, é claro que ela ia ficar grata, eu também ficaria. Mas a questão aqui é que não tem ambulância no município pra todo mundo. E isso, quem era pra providenciar eram os políticos. Aí como não tem, quem não tem carro, num caso desses, tem que ficar dependendo de boa vontade de prefeito e vereador. Não era pra ser assim (Anita, servidora pública de Barreira. Entrevista realizada em 08 de junho de 2012).

No “tempo da política” que a quantidade e qualidade dessas dádivas se intensificam. Os discursos agora são proferidos aos “meus amigos222”, se fortalecem os laços de confiança e amizade. E embora a relação político-eleitor seja uma relação entre pessoas, e por isso percebida por este último como igualitária, ela esconde seu caráter assimétrico e hierárquico. 222

Durante a realização da pesquisa empírica, tivemos a oportunidade de estar na inauguração da pavimentação de uma rua em Barreira, realizada pela gestão do atual prefeito, Antônio Peixoto, e percebemos que as falas de todas as figuras políticas presentes no palanque, dentre elas o ex-prefeito e sua esposa, dr. Valderlan e dra. Auxiliadora, foram iniciadas pela expressão “meus amigos de Barreira”. E muitos deles falaram o nome de alguns desses amigos presentes, demostrando a familiaridade com eles. Isso reflete o quanto é pessoal a relação político-eleitor.

657

Partindo dessas perspectivas que é possível compreender a importância do médico (ou da relação que se mantém com ele) em Barreira. No que se refere a esse profissional de saúde, as dádivas tem forte peso. A cura, a restituição da saúde é um presente de valor simbólico muito grande, por isso a dívida por parte do paciente é entendida como impagável223 e o laço social que se estabelece, muito forte. O médico escuta, dá atenção, às vezes remédios (já que a distribuição de medicamentos no posto de saúde é limitada tanto quantitativa quanto qualitativamente), consulta, marca exames em hospitais da capital. Levando em consideração que nas trocas mercantis não há a obrigação de se relacionar pessoalmente com aqueles com quem se negocia além do fato da relação se findar no momento da troca; o indivíduo é livre para entrar e sair das negociações bem como de romper o comércio no momento em que desejar. Tal princípio, nas sociedades modernas, regula não só a venda de mercadorias como a prestação de serviços. A partir daí, notamos que em Barreira, por mais que o ato de consultar e medicar seja inerente à profissão de médico, o fato de este, para além de suas obrigações, estabelecer relações mais íntimas, pessoais dão a essa relação um outro aspecto, qual seja: as trocas de dádivas. Nesse caso, o médico não só atende, mas escuta, dá atenção, demonstra familiaridade com o paciente. O que transforma o exercício de sua profissão em trocas de dádivas. Foi o que aconteceu com o dr. Júnior, por exemplo. Ao serem entrevistados, diferentes barreirenses afirmavam que o dr. Júnior (trabalhava além do que era remunerado224) realizava consultas com muita dedicação, ia a

223

Se ao receber um dom, o donatário fica em dívida com seu doador, podemos arriscar a dizer que fica, igualmente em situação de dependência, enquanto não restituir o presente recebido. No caso dos médicos, a cura, por exemplo, é um dom que, na acepção do donatário, não pode ser retribuído, gerando, a partir de nosso entendimento, uma permanente dívida moral e dependência por parte do paciente (donatário). 224 Dona Iolanda, em entrevista, lembra que em um determinado período da história de Barreira, não havia escola de ensino fundamental para seus filhos estudarem. Então, dr Júnior convocou os pais dos alunos prejudicados e propôs que se fizesse uma espécie de fundo para financiar os estudos das crianças. Os pais contribuiriam com uma taxa, fixada em reunião e de igual valor para todos, para pagar o salário

658

casa dos pacientes que não conseguiam/podiam ir ao seu consultório, fazia amizade com seus pacientes, demonstrava preocupação, inclusive, com os familiares daqueles que consultava. Nos consultórios dos postos de saúde e hospitais de pequenas cidades do interior é possível ver os pacientes levarem presentes (castanhas de caju assadas, ovos de galinha caipira, frutas, cajuína, legumes, etc.) para os médicos como forma de retribuir os serviços prestados. E além da dádiva da cura, vale ressaltar o prestígio que os médicos têm, histórica e culturalmente, no Brasil. Considerando as análises tecidas por Sérgio Buarque de Holanda sobre o bacharelismo brasileiro, que consiste na valorização do trabalho intelectual em detrimento do trabalho manual, entendemos o profissional da medicina como aquele que representa o conhecimento científico, aquele cujo saber é indiscutível, inquestionável e respeitado. O “doutor-prefeito”, observado nessa pesquisa comporta não só o imaginário daquele que detém o conhecimento (o homem da ciência), que tem o poder da cura (o que já lhe confere um poder e autoridade transcendentes, basta lembrar a grande obra de Marc Bloch, “Reis Taumaturgos”). Mas que detém também o poder político, o poder de decidir sobre os rumos do município e isso o transforma em uma figura quase heroica, um ídolo, um ícone em que as pessoas confiam, respeitam, amam. As coisas que saem da boca de um médico são sagradas. Se um médico chega numa comunidade e diz, por exemplo, alguma coisa de outra, então aquilo ali é sagrado para aquelas pessoas não informadas, aquilo é uma verdade absoluta (Verônica, servidora pública de Barreira. Entrevista realizada em 08 de junho de 2012).

CONCLUSÃO

dos professores que ministrariam as aulas. Isso demostra que atuava em Barreira para além de suas atribuições como médico.

659

Se a lógica que organiza essa sociedade [aqui nos referimos à Barreira] é o sistema de dádivas, com as dádivas criando e recriando/reforçando os laços sociais e as relações pessoais entre os entes envolvidos, ou seja, regendo nossos modelos de vinculação societária. Daí a continuidade, nos nossos dias, do homem cordial, esse homem que é motor das relações de dádivas. Por isso a permanência de relações paternalistas, personalistas, clientelistas, ora vistas como práticas arcaicas, no sentido pejorativo do termo, ora como práticas comuns, normais ao cotidiano das pessoas. Nesse sentido, a fala de dona Rita, ao ser questionada sobre o papel e as obrigações de um político profissional, atesta tal fenômeno: – Para a senhora, qual a função de um político? – (...) fazer as coisas pro povo, dar atenção pro povo, dar atenção para os eleitores, ajudar o povo, fazer o que prometeu pra melhorar a vida do povo. – Ajudar o povo como? – Ajudar ... a pessoa precisando de uma coisa ele pudendo ajudar ele ajudar. E num tem só a ajuda de dinheiro, (...) até uma conversa é uma ajuda. Às vezes as pessoas [es]tão desorientadas, a pessoa chega e conversa e diz “fulano é assim e assim”, isso aí já é uma ajuda que ele [es]tá dando (dona Rita, aposentada. Entrevista realizada em 10 de abril de 2012)

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660

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661

PFL NO RIO GRANDE DO NORTE: CONSIDERAÇÕES SOBRE ASPECTOS POLÍTICOS E ELEITORAIS.

Andrea Maria Linhares da Costa225 Resumo: O presente trabalho pretende apresentar aspectos associados a trajetória do PFL no Rio Grande do Norte, de sua fundação em 1985 até 2006, antes do partido passar por processo de refundação a partir do qual passou a denominar-se Democratas. O partido atuou como ator político central na dinâmica política nacional e estadual nos moldes do partido cartel, descrito por MAIR e KATZ (1994). Um dos fatores mais relevantes associados ao seu desempenho esteve associado ao fato do partido manter-se na posição de governista ao longo dos diferentes governos que se sucederam de sua fundação até 2002, com a entrada do Partido dos Trabalhadores no comando do executivo federal. A partir daí o partido entra em acentuado processo de redução de suas bases e declínio de poder político. O presente trabalho pretende indicar os fatores associados ao desempenho do partido no Rio Grande do Norte, de 1985 até 2006. Palavras Chave: Partidos Brasileiros – PFL – Partidos Políticos no Rio Grande do Norte

INTRODUÇÃO

O PFL surgiu sob condições privilegiadas no Rio Grande do Norte. O reduzido grupo que viria a liderar o partido, constituído pela família Maia, iniciou o processo de formação de suas bases políticas de apoio a partir de 1975, com a chegada de Tarcísio Maia ao comando do governo estadual na condição de governador biônico. Sob o contexto de transição e retorno à democracia, a família Maia, criteriosamente selecionada pelo General Golbery do Couto e Silva para operar um processo de renovação de quadros políticos no estado, soube desempenhar com competência seu papel de coordenador do processo político de transição, sobretudo, soube capitalizar política e eleitoralmente os dividendos de sua atuação à frente do governo do

225

Graduada em Ciências Sociais/Política (UFRN), Mestra em Ciências Sociais (UFRN) e Doutora em Politica, Desenvolvimento e Sociedade (UFRN). Professor Adjunta (UERN). [email protected].

662

estado ao longo dos dez anos ininterruptos - de 1975 a 1985 – que antecederam o surgimento de PFL no Rio Grande do Norte. Como representante oficial do governismo federal no estado, a família Maia dispôs de privilegiado acesso a recursos materiais e organizacionais e executou de modo satisfatório projetos e programas governamentais que agregariam ao perfil de Tarcísio e Agripino Maia a imagem de capacidade administrativa, modernidade e competência. A família Maia, introduziu uma nova fórmula política226 para legitimação de seu poder político no estado. Ao longo desse período e sob estas condições

o

governismo

comandado

pela

família

Maia

pôde

consolidar sua influência sobre as bases eleitorais municipais e acumular seu capital de lealdade política. Na trajetória de consolidação do poder político do partido, os vínculos de fidelidade familiar representaram um recurso valioso, inicialmente antes da formação do partido, quando em 1978, como governador biônico, Tarcísio Maia indica seu primo Lavoisier Maia para sua sucessão no governo do estado. Em seguida, em 1979 Lavoisier nomeia Agripino Maia prefeito biônico da capital, após três anos de mandato, com o capital político adquirido no comando da prefeitura de Natal, Agripino Maia disputa com êxito a primeira eleição direta para governador do Estado em 1982. Num momento posterior esses vínculos novamente se mostrariam decisivos: No contexto de formação do Colégio Eleitoral, diante da grande incerteza dos desfechos do processo, novamente o triângulo Tarcísio – Lavoisier – Agripino asseguraram que qualquer que fosse o desfecho, algum membro da família permaneceria no poder.

Ainda nos desdobramentos desse

processo, os vínculos familiares asseguraram a proximidade estratégica entre PFL e PDS no estado, com Agripino assumindo o comando da nova agremiação e Lavoisier permanecendo no controle das bases pedessistas no estado.

226

MOSCA, 1968.

663

A herança do PFL em termos de estruturas político-partidárias compreendeu principalmente uma capilarizada rede de lideranças locais, originadas de uma mesma matriz, a ARENA, que pelas “velhas afinidades” se mostrariam sempre propensas a aproximações e alianças, especialmente nos momentos onde o governismo esteve sob o comando do PFL.

Segundo WARE227 tão importante quanto a

competição é a cooperação formal e informal implícita em todo sistema de partidos. Nesse sentido podemos dizer que em grande medida a força política do PFL no estado derivou da possibilidade de apoio eleitoral por parte de partidos menores como o PDS, PL, PTB e PDT228, sendo os dois primeiros, os parceiros mais estáveis nas alianças locais229. Os necessários vínculos do PFL com partidos que se formariam a partir das bases arenistas e pedessistas no estado, parecem confirmar as teses de Madeira (2006). O êxito das alianças do PFL com esses diferentes partidos em diferentes momentos, se deveu ao fato de que elas se mostraram vantajosas a todos os que para ela cooperaram: Ao PFL assegurou a formação de maiorias eleitorais necessárias às disputas majoritárias, aos demais partidos assegurou seu fortalecimento a nível local e estadual, na medida em que o somatório de votos produzidos pelas alianças possibilitaram obtenção dos elevados quocientes eleitorais que asseguraram a esses partidos um progressivo avanço na conquista de vagas na Assembléia Legislativa do Estado e Câmara Federal. A atuação do PFL, dessa forma, ao mesmo tempo em que não prescindiu

do

apoio

de

partidos

menores,

contribuiu

com

o

fortalecimento dos mesmos no Estado.

227

WARE, 2002, p.34. O PDT em sua formação original no estado não pode ser enquadrado entre os partidos originados a partir dos quadros da ARENA. 229 A partir de 1994 PSDB e PSB assumiriam também destacado peso contextual nas alianças travadas pelo partido a nível municipal. 228

664

A experiência governativa consistiu também num fator relevante na explicação do êxito do partido: À herança da gestão de Tarcísio Maia à frente do governo estadual entre 1975 e 1978 e José Agripino na prefeitura da capital entre 1979 e 1981, no papel de executores dos programas definidos pelo II PND no estado, somou-se a experiência de gestão de Rosalba Ciarlini no comando do executivo da segunda maior cidade do Estado. Através da implementação das reformas de descentralização administrativa prescritas na Constituição de 1988, da reforma fiscal e administrativa preconizadas pelo governo FHC, e também implantação dos programas sociais no município, Rosalba Ciarlini, representante do PFL em Mossoró, conseguiu capitalizar dividendos políticos, consolidando não apenas sua liderança local, mas também o poder eleitoral do partido no segundo maior colégio eleitoral do RN. Como Tarcísio e Agripino Maia, à frente do executivo estadual e da capital, a gestão de Rosalba Ciarlini em Mossoró representou o processo de modernização política e administrativa no município. Na cidade, e com efeitos de radiação regional, o PFL se legitimou a partir da implantação de uma nova fórmula política. Se em termos estaduais a vigência da regra de reeleição instituída em 1997 desfavoreceu o PFL no nível estadual pelo fato do partido encontrar-se fora do comando do executivo estadual no período, em Mossoró seus efeitos se mostraram decisivos para o fortalecimento do partido, possibilitando a reeleição da legenda a sua permanência por oito anos consecutivos no comando do partido em Mossoró. Dessa maneira o PFL na cidade cumpriu ainda o papel de neutralizar em termos políticos e eleitorais o precário desempenho do partido verificado nas disputas pelo comando do executivo da capital. Outro aspecto associado à trajetória do PFL no Estado refere-se ao modo como o partido operou de modo altamente centralizado, dado que as principais decisões estiveram concentradas na liderança maior do partido, José Agripino Maia. Ao longo do período analisado, José Agripino operou rupturas estratégicas em diferentes momentos, o 665

que possibilitou seu controle sobre o processo de decisões em torno de obtenção de vantagens que assegurassem suas expectativas de êxito nas disputas. No Rio Grande do Norte, portanto, o PFL não apresentou divisões políticas ou facções internas de maior destaque. José Agripino representou sua liderança maior, única e inconteste entre 1986 e 2006 em todo estado. Dessa forma o perfil altamente centralizado do partido possibilitou a seu líder boas condições de coordenar as ações políticas do partido (decisão de lançar candidatos, definições de quadros para disputas e formação de alianças) em função de seus interesses particulares no processo de disputa política. Em Mossoró, o partido constituiu uma estrutura relativamente autônoma, sob a liderança política do ex-deputado estadual Carlos Augusto Rosado, marido de Rosalba Ciarlini. No município o partido reproduziu em diferente escala, o mesmo padrão de centralização do poder, assumindo caráter de grupo familiar de uma das facções dos Rosado. Agripino Maia em nível estadual e Rosalba Ciarlini no segundo maior colégio eleitoral do estado, controlaram as disputas majoritárias do partido para o senado e executivo municipal, respectivamente. O partido não produziu outros quadros preparados para esse nível de disputa. A fidelidade que assegurou uma aliança estável entre as duas lideranças pode ser explicada pela parceria vantajosa a ambas as partes, na medida em que Agripino Maia e Rosalba Carlini ao longo do período - não disputaram as mesmas bases eleitorais para os mesmos cargos. O peso e a influência política de Agripino em termos de recursos advindos de sua atuação na esfera federal se agregaram aos recursos políticos de poder do grupo mossoroense, e os votos que Rosalba asseguraram a Agripino Maia bem como candidatos vinculados à legenda que ajudou a eleger para a Assembléia e Câmara Federal, favoreceram o PFL do Rio Grande do Norte. A excessiva centralização do poder em torno da disputa majoritária para o governo do Estado mas sobretudo pelas vagas ao 666

senado, Câmara Federal e Assembléia Legislativa enquadrou o partido num perfil de competitivo partido parlamentar mas também gerou conseqüências. Uma das grandes fragilidades do partido consistiu na ausência de quadros competitivos, dotados de preparo político e carisma, necessários às disputas para os executivos da capital e do estado. Em termos mais gerais, outro fator que parece ter exercido efeito fragilizante sobre o PFL do Rio Grande do Norte foi o fato do partido, a nível nacional, ter seguido o caminho da “especialização em apoio político” (MAINWARING, 2000). O fato do partido a nível nacional não ter entrado em disputas presidenciais desde seu surgimento até 2006, implicou na ausência de quadros técnicos e intelectuais estáveis envolvidos com a formulação de projetos, programas e propostas de governo, que embasassem a atuação de seus candidatos em disputa para os cargos executivos, especialmente no plano estadual. Seria essa uma conseqüência geral de seu perfil parlamentar, nos modos descritos por MAIR e KATZ (1994) ou a ausência desses quadros seria fruto da atuação centralizadora de Agripino no controle das vagas majoritárias no estado, ao peso de eliminação de possíveis concorrentes? Sob o ponto de vista mais específico da trajetória eleitoral a análise dos dados mostrou que o encolhimento do partido não pode ser atribuído à sua ida para oposição no plano nacional em 2002. As causas de sua redução progressiva no estado parecem estar primariamente associadas a fatores associados à dinâmica política estadual.

O

processo

de

redução

ganhou

intensidade

mais

precisamente com a impossibilidade do partido dar sequencia ao ciclo de revezamento no controle da máquina estadual. A alternância entre PFL e PMDB de quatro em quatro anos, que vinha estruturando as disputas estaduais desde 1982, foi rompida com a vigência da regra que possibilitava a reeleição. Em 1998 José Agripino sofreria sua primeira derrota em disputas majoritárias. O PMDB permaneceu por dois mandatos consecutivos 667

entre 1994 e 2002 no comando do governo estadual. Paralelo a isso se deu a entrada de Wilma de Faria como “terceira força política” do estado. O longo ciclo de afastamento do partido da máquina estadual debilitou sua capacidade de atração sobre seu “velho e forte parceiro de aliança local”, o PPB-PP (antigo PDS), que movido pela força do governismo, apoiou de modo decisivo o PMDB de 1994 a 2002. A mudança na correlação de forças e partidos ocorridas no plano nacional a partir de 2002, com a entrada do PT no comando do governo federal também foi decisivo para o quadro de redução do poder político e eleitoral do PFL no estado, sobretudo pelo avanço contextual do PSB liderado por Wilma de Faria. O surgimento de uma “terceira força” com capacidade de entrar no seleto nível das disputas majoritárias determinaria a aliança entre o PFL e seu principal adversário no Rio Grande do Norte, o PMDB. Esses fatores, acrescido do processo mais

geral

de

fragmentação

do

sistema

partidário

são

aqui

considerados como determinantes na perda de força eleitoral do PFL no estado verificado no desempenho do partido nas disputas para executivos municipais, Assembléia legislativa e Câmara Federal. Conforme verificamos, o nível em que o partido manteve maior estabilidade foi nas disputas para o Senado. Na dinâmica de disputas para a casa, a trajetória do partido se funde com a de sua maior liderança. O peso adquirido pelo partido em Mossoró e a projeção que Rosalba Ciarlini obteve a partir de sua gestão na cidade possibilitou que em sua última disputa eleitoral em 2006 a ex-prefeita mossoroense assegurasse uma vaga para o Senado. O PFL findava sua trajetória no estado com duas cadeiras na casa. Essa posição ficaria como herança capaz de assegurar a sobrevivência do grupo político à frente do partido a partir de 2006, após o processo de refundação que modificaria o nome da legenda para Democratas em 2007.

668

DIMENSÃO ELEITORAL: BALANÇO ELEITORAL DAS ELEIÇÕES DISPUTADAS PELO PFL NO ESTADO ENTRE 1986 A 2006. A análise do desempenho eleitoral do PFL na disputa pelos executivos municipais no Rio Grande do Norte ao longo das seis eleições ocorridas no período indica uma tendência declinante, em que pese o seu desempenho na eleição de 1992. Em 1991 o PFL assumia o comando do governos estadual de modo que o resultado observado em 1992 reflete o efeito indutor exercido pelo governo estadual sobre as disputas municipais. Num contexto onde a migração partidária não implicava em custos e restrições às lideranças locais, a adesão de prefeitos ao governo no comando do executivo estadual implicava também na mudança de legenda por parte dessas lideranças. A trajetória de declínio após a eleição de 1992 pode ter explicação no fato de que após 1994 o PFL não voltou ao comando do governo estadual. A vigência da regra que possibilitava a reeleição implicou em dois mandatos consecutivos do PMDB, de 1994 a 2002 e após 2003 a entrada do PSB seguiu retraindo a capacidade de atração do partido no plano local, de modo que, somado a outros fatores como a própria fragmentação do sistema, o partido não conseguiu reverter a tendência declinante.

669

O gráfico abaixo, que apresenta o desempenho dos demais partidos nas eleições em questão evidencia o peso do fator governismo estadual para análise dos pleitos municipais no estado. Não apenas o desempenho do PMDB e do PPB (principal partido da coalizão governista) nas eleições de 1996 e 2002 mas sobretudo o desempenho do PSB em 2004, indicam para um reforço do argumento utilizado acima para explicar a trajetória descendente do PFL.

O exame comparado permite constatarmos que embora o partido tenha figurado entre os mais competitivos no estado ao longo do período observado, não poderíamos exatamente afirmar que sua força eleitoral esteve nas disputas municipais. Os dados permitem ainda inferir que a posição do partido no plano nacional não exerceu influência direta sobre seu desempenho no plano municipal. DESEMPENHO DO PFL NAS DISPUTAS PARA DEPUTADO ESTADUAL E FEDERAL NO RIO GRANDE DO NORTE DE 1986 A 2006.

A análise do desempenho do PFL nas disputas para a Câmara Federal e Assembléia Legislativa no Rio Grande do Norte indicam para uma convergência em torno do peso exercido pelo controle da máquina estadual sobre as possibilidades de êxito dos candidatos em disputa pela legenda. Na eleição de 1994 o partido obteve seu melhor desempenho ao longo de sua trajetória. A observação do gráfico referente à disputa para a Assembléia estadual indica que o controle do partido à frente do governo estadual exerceu peso sobre as 670

possibilidades de êxito dos candidatos em disputa pela legenda. Em 1986 José Agripino deixava o governo do estado e em 1987 assumia Geraldo Melo, do PMDB. Com o retorno do PFL ao executivo estadual em 1990, o partido reverteu o declínio apresentado em 1990

e

apresentou então seu melhor desempenho no estado ao longo de sua trajtória. A partir daí a curva declinante não sofre reversão tanto para a escolha de deputados estaduais quanto federais.

A trajetória coincidente do desempenho do partido a partir de 1990 para as duas casas legislativas indica para o possível peso do governismo

estadual

sobre

o

resultado

da

disputa.

O

exame

comparado dos demais partidos permite uma melhor compreensão:

671

O fato do PFL manter-se aliado aos diferentes governos no plano federal ao longo do período que vai de 1986 a 2002, bem como outros eventos relacionados à dinâmica política nacional, não impactou de modo evidente sobre o desempenho do partido nas duas casas. Tomemos como referência o fato de ao fim do primeiro mandato do PSDB em 1998, o governo se encontrar bem avaliado perante a opinião pública e esse bom desempenho não ter impactado sobre o resultado de seu principal aliado no Estado, o PFL. No mesmo sentido poderíamos argumentar que embora ao longo do segundo mandato do governo PSDB (1999-2003) o PFL tenha atingido seu mais alto grau de institucionalização, controlando mais pastas ministeriais que o próprio partido do governo (MENEGUELLO, 1998; CORBELLINI, 2005), esse desempenho na arena governamental não implicou em estabilidade tampouco em reversão do processo de declínio do PFL no estado no que se refere à conquista de cadeiras para Assembléia Legislativa e Câmara dos Deputados. Dessa forma, com relação ao Rio Grande do Norte entre 1986 e 2006, é possível concluir que as variações no desempenho do partido com relação à conquista de cadeiras nas duas casas legislativas estiveram associadas a fatores relacionados à dinâmica política estadual. O partido obteve melhores desempenhos nos períodos em que estava no comando do executivo estadual. Os períodos em que esteve melhor posicionado na esfera federal, especialmente durante o governo Fernando Henrique Cardoso, não impactaram de modo mais evidente no desempenho do 672

partido no estado. Dentre esses fatores podemos indicar o peso do governismo estadual, sobretudo nas disputas pelas cadeiras da Assembléia Legislativa bem como o avanço da fragmentação partidária no subsistema estadual, sobretudo a partir de 1990. Nas disputas pelo governo estadual, conforme vimos nos capítulos anteriores, o PFL obteve êxito apenas em 1990. Em 1986, 1998 e 2002 o partido lançou candidatura própria mas não obteve êxito. Em 1994 e 2006 apoiou candidatos de outros partidos que também não obtiveram êxito. Dessa forma, no Rio Grande do Norte, não foi nas disputas pelo governo do estado onde o PFL evidenciou sua força. O desempenho aqui verificado se enquadra no perfil geral apresentado pelo partido no conjunto dos estados brasileiros, conforme tendência verificada por TAROUCO (1999). A análise do desempenho do partido para as disputas ao Senado, parece revelar onde de fato se situou a força do PFL no estado. Em 1986 José Agripino Maia é eleito pelo partido. Em 1990 o partido não lança candidato pela legenda. Apóia o candidato do PDS que perde para o candidato do PMDB. Em 1994 o partido concorre a uma vaga com José Agripino, que é eleito para seu segundo mandato na casa. Em 1998 o partido não lança candidato pela legenda, novamente apoiando um candidato que não se reelege. Em 2002 Agripino disputa a vaga elegendo novamente Agripino Maia para seu terceiro mandato. Em 2006 o partido concorre com o nome de Rosalba Ciarlini, que eleita assegurou duas cadeiras ao partido na Casa, mesmo com o partido estando na oposição no plano nacional e também no estado. O desempenho do PFL para o Senado apresenta irregularidades dado o fato de que em dois dos pleitos ocorridos o partido não lançou candidatos vinculados à legenda (1986 e 1998). Entretanto em todas as disputas em que lançou candidato, obteve vitória. É importante observarmos que o êxito do partido mostrou independência com relação ao governismo estadual bem como com relação à sua posição de oposição no nível estadual e federal. Importante destacar também 673

que a trajetória de José Agripino Maia se confunde com a trajetória do partido nesse nível de disputa. Dessa forma creio ser possível concluir que foi nas disputas para o Senado onde o partido obteve seu melhor desempenho. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRANCHES, Sergio Henrique. Presidencialismo de Coalizão: dilema institucional brasileiro. In: Dados: revista brasileira de Ciências Sociais nº31, 1998. ABRUCIO Luiz F.; SAMUELS, David. A Nova Política dos Governadores. São Paulo: Lua Nova nº40-41, 1997. ABRUCIO, Luiz F. Os barões da federação. In: Lua Nova: Revista de Cultura e Política, nº 33, 1994. ANDRADE, llza A. Leão de. Políticas e Poder: O Discurso da Participação. São Paulo: AD HOMINEM; Natal: Cooperativa Cultural da UFRN, 1996. ANDRADE, Ilza A. Leão de. Eleições de 1998 no Rio Grande do Norte: O Jogo Estratégico dos Atores Políticos e o Resultado Eleitoral. In: GICO, V. SPINELLI, A. e SOBRINHO, P. V. (orgs.) As Ciências Sociais: Desafios do Milênio. Natal: EDUFRN, 2001, p. 238-257. BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A UDN e o Udenismo, Ambigüidades do Liberalismo Brasileiro (1945-1965). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. BONH, R. Simone; FERREIRA, Denise P. A Volatilidade Eleitoral nos Estados: Sistema Partidário e Democracia no Brasil. RBCS vol. 17, nº 33, 1999. CANTANHÊDE, Eliane. O PFL. São Paulo: Publifolha, 2001. CARVALHO, Orlando de. Ensaios de Sociologia Eleitoral. Belo Horizonte: UFMG.RBCP, 1958. CARVALHO, Giovani Araújo de. Impactos do processo de transição democrática na reengenharia política do Rio Grande do Norte (19841985). (MONOGRAFIA). Natal: CCHLA-UFRN, 2004. CAVALCANTI, Tarcísio. As Eleições Nacionais de 1978. Fundação Milton Campos, Brasília: Ed. Fundação Milton Campos, 1979. CORBELLINI, Juliano. O Poder Como Vocação: o PFL na Política Brasileira (1984-2002). (TESE). Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em Ciência Política/UFRS, 2005. 674

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679

RITUAL POLÍTICO NO INTERIOR DA PARAÍBA: O DISCURSO DO AFETO COMO (DES) CONSTRUTOR DA IMAGEM PÚBLICA Cosma Ribeiro de Almeida230

Resumo: O presente artigo é resultado de uma análise realizada na cidade de Campina Grande – PB sobre a construção das “principais” personagens políticas que disputaram as eleições municipais no ano de 2004 e 2008: Veneziano Vital (PMDB) e Rômulo Gouveia (PSDB). É interessante perceber o discurso da “inovação política”, tal como um “novo governo”, uma “nova política”, uma “nova imagem pública”. Ressaltamos que mesmo que os grupos políticos façam as coligações partidárias com as oligarquias locais, estrategicamente cria-se a imagem do “novo”. Neste sentido, tal espetáculo tornou-se uma prática cultural dos grupos políticos no estado paraibano. Nosso objetivo foi investigar o discurso do “novo” como estratégia histórica e culturalmente construída naquelas campanhas eleitorais, em que utilizou-se o recurso do afeto para (des) construir a imagem pública. Palavras chave: Eleições; Figura Pública; Afeto; Ritual Político.

INTRODUÇÃO Para a realização da pesquisa fez-se necessário uma investigação de abordagem quanti-qualitativa, que segundo Chizzotti (2009) se refere à pesquisa cujos valores culturais de uma sociedade são relevantes para se entender o objeto de estudo. Neste contexto, fez-se um estudo de caso sobre as disputas eleitorais no município através da investigação midiática, ou seja, através do discurso e conteúdo veiculado pelo Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral - HGPE, dos principais candidatos ao pleito municipal nos anos de 2004 e 2008. A

investigação

parte

do

pressuposto

de

uma

política

espetacularizada, intrínseca aos valores culturais locais, tal como a espetacularização do poder. Pela primeira vez na história política recente da cidade, em 2004, o grupo político “Cunha Lima”,

230

Graduada em Comunicação Social (UEPB), Mestra em Sociologia (UFPB). Doutoranda em Ciências Sociais (UFCG). Professora Efetiva (UVA/FIP). Pesquisadora do Grupo de Estudos Antropologia da Política, Cultura Midiática e Práticas Políticas. [email protected]

680

comandado pelo governador do estado na época, Cássio Rodrigues da Cunha Lima (PSDB), perde uma campanha eleitoral no município, depois de 22 anos no poder. O candidato pelo qual apoiava, Rômulo Gouveia (PSDB), perde a disputa para o candidato Veneziano Vital (PMDB), apoiado pelo grupo “Maranhão”, liderado pelo ex-governador do estado na época, José Maranhão, principal adversário do grupo “Cunha Lima”. O discurso de amor à Campina adotado pela campanha de Rômulo Gouveia tentava viabilizar a continuidade do sentimento adotado pelo Grupo Cunha Lima em campanhas anteriores na cidade. O slogan de campanha Prefeito Pra Campina confirma esta assertiva, quando tentava mostrar a experiência e a trajetória do Grupo “Cunha Lima” no governo municipal. Já a campanha de Veneziano Vital tinha como discurso o sentimento da mudança, evocava o sentimento da renovação de um governo municipal. Seu slogan de campanha Prefeito Preparado relacionava-se a justificativa de sua candidatura, uma vez criticado por não ter experiência política quando comparado ao adversário. Pensar o momento eleitoral é pensar a campanha como ritos de representação, pois as campanhas constituem espaços de elaboração da representação política “sendo indutoras de canais de legitimação que aproximam e revalidam a relação entre o campo da política e o campo social” (BARREIRA, 1998, p. 19). A apresentação caracteriza-se, por conseguinte, por uma demanda de significação, em que a ideia de ritual é a conjuntura dos acontecimentos que têm sentido. A prática política, portanto, não acontece por mero acontecimento, mas são ações construídas de significados que constituem marcas de consagração, como a família, o trabalho, o afeto. “As eleições descortinam um conjunto de significados simbólicos, visões de mundo, divisões, que se explicitavam em linguagens, crenças e rituais” (BARREIRA, 1998, p. 21). Os momentos de campanha, no 681

entanto, evocam padrões de comportamento e regras de conduta, percebidos por sua vez na divulgação da biografia dos candidatos, nos gestos, nas imagens, no discurso, no cotidiano, típicos do período eleitoral. Neste contexto, as campanhas eleitorais encerram uma

temporalidade

delineada

como

“tempo

da

política”,

caracterizado como tempo de disputas, oportuno para conflitos de facções, que em circunstâncias do cotidiano ficam submetidos à regras e controles da vida social. (PALMEIRA, 1995) As práticas rituais eleitorais sinalizam conflitos pela luta de uma unidade ideal na sociedade. São, também, “ritos de enfrentamento” (ABÉLES, 1998, p. 35). As práticas políticas, portanto, se apresentam

através

de

grandes

rituais

coletivos.

Estas

práticas

constituem um foco em que a política possa ser entendida em seus mecanismos sociais e culturais, mantendo por sua vez um universo de significados que denunciam a ação política. Este mesmo discurso se repete nas eleições 20081, mesmo com diferentes slogans. Para o candidato2 na época, Rômulo Gouveia, o slogan de campanha eleitoral “Pense grande” cogitava a ideia do povo eleger um candidato de grandes dimensões políticas, trajetórias de experiência política, coligações amplas com vários partidos, e ao lado dos “principais políticos” do estado e do município ao lado dele. Com o candidato adversário, Veneziano Vital, hoje prefeito reeleito de Campina Grande – PB, o slogan era “A mudança continua”, cogitando também o mesmo sentido da campanha eleitoral de 2004, quando propunha a mudança de governo, mas dessa vez seria para permanecer a tal “mudança” prometida na campanha de 2004. Torna-se, na verdade, um discurso continuador da figura que se está no poder: o discurso torna-se personagem e a personagem tornase

o

discurso,

lembrando

o

que

Bourdieu

(2011)

chama

de

transubstanciação, isto é, o poder personificado na figura daquele que representa um grupo. 682

Nesta disputa entre as duas imagens opostas a mídia local exerceu um importante papel na transmissão de suas mensagens e imagens públicas. A relação entre a mídia e a política se intensificou. Os meios tinham a função de “medidor” de candidaturas: ora uma empresa de comunicação afirmava que Veneziano era o novo prefeito, ora outra empresa de comunicação afirmava que Rômulo já era o eleito. A televisão naquele momento constituía-se num dos principais cenários da disputa política, não só veiculando estas imagens, mas produzindo imagem. As imagens de Veneziano e Rômulo fizeram com que a disputa política ganhasse amplitude de tal forma que a sociedade campinense ficou dividida em duas grandes “caravanas”: o “grupo verde” e o “grupo laranja”.

No entanto, cada candidato construiu uma

personagem: Veneziano Vital, o candidato laranja, como ficou conhecido,

foi

caracterizado

pela

sua

juventude,

sinônimo

de

dinamicidade, cujo projeto político refletia um futuro de uma economia em expansão e inovação para a Cidade; Rômulo Gouveia, o candidato verde, foi caracterizado como um homem de experiência política, cujo projeto público refletia um futuro “garantido” para a Cidade. A campanha eleitoral se caracterizou por uma relação de intimidade entre o candidato e o eleitor. Mas, foi Rômulo Gouveia que mais explorou esta estratégia tendo em vista seu lema de campanha “prefeito experiente e que ama Campina”. O candidato tentou convencer o eleitor que a sua candidatura era de sentimento pela cidade e pela população. O “amor à cidade” é uma estratégia tradicional do grupo que o apoiou sendo, no entanto, também explorado na campanha. A campanha dele se desenvolveu sob as categorias de atributos pessoais, políticas passadas, projetos do governo do Estado e a conjuntura da cidade. Mas dentre eles, os projetos do governo foi o método mais utilizado, em que o candidato Rômulo Gouveia intensificava suas declarações sempre relacionadas às 683

obras e trabalhos realizados por Cássio Cunha Lima; depois enfatizava os projetos de políticas passadas, que na realidade é uma categoria intrinsecamente ligada à sua performance enquanto pessoa pública, isto é, as obras que o candidato realizou durante sua trajetória política; além disso, estão os atributos pessoais que objetivaram qualificar o candidato como “trabalhador”, “experiente”. Os apelos simbólicos relacionavam-se à cultura local: exploravase o fato de Rômulo Gouveia ter sido de uma origem popular, filho de taxista que ascendeu na vida; a contribuição de sua pessoa pública como um candidato que ajudou a cidade a crescer qualificando-o como Campina que é “Grande”. Por outro lado, a campanha de Veneziano também utilizou de muitas categorias: políticas públicas futuras, valorização do povo, confiança na Cidade, liberdade, justiça, otimismo, união, valorização, prosperidade. Já o candidato Veneziano, o principal apelo foi a propaganda “negativa” sobre a cidade, neste momento o candidato se referia às carências de políticas públicas, às corrupções políticas, à centralização do poder pertencente a um único grupo político. A estratégia era desmoralizar seu principal adversário e sugerir uma “nova Campina”. O principal apelo de Veneziano Vital era a desconstrução da imagem do adversário e do grupo que o apoiava, neste sentido as políticas futuras do candidato exacerbavam ao mesmo tempo com novos projetos na área de educação, saúde, emprego; em segundo plano, os atributos pessoais como “competência”, “coerência”, “honestidade” ganhavam espaço na campanha eleitoral; já em terceiro plano, a conjuntura da cidade, em que o candidato mostrava as deflagrações políticas na cidade e as necessidades de políticas públicas; e em quarto plano a valorização do eleitor, que por sua vez era convocado a mudar a história da cidade, a se libertar de um grupo

684

político vigente durante muitos anos, como sua campanha afirmava – “a construir uma nova história para Campina Grande”. De acordo com SOARES (1995) os atos retóricos de uma campanha podem ser exercidos através de dois modos: a persuasão e a sedução. A persuasão busca sustentação na opinião convencendo o eleitor através do argumento, já a sedução atrai pelo fascínio, pelos sentidos. Em ambas as campanhas eleitorais os candidatos utilizaram de forma exarcebada a estratégia de seduzir pelos efeitos afetivos. As candidaturas tiveram em comum algumas características, tais como: a própria autopromoção, os projetos políticos e um discurso sobre a cidade. O manejo dos sentimentos não aparece apenas em sua forma disciplinar referente ao controle sobre o “clima de campanha”. Diz respeito também a usos e interesses relacionados à legitimação de candidaturas. Os sentimentos integram uma retórica de conteúdos performáticos com poderes de classificar e induzir novos sentimentos coletivos a balizar o lugar e papel dos concorrentes. A estratégia da busca de ‘fragilidades’ dos concorrentes faz surgir, nesse momento, o espaço das vulnerabilidades, acionando avaliações de personalidade. (BARREIRA, 2004, p. 67).

O significado do humor, por exemplo, na política campinense serve para desqualificar o adversário, já o sentimento íntimo para tornar vulnerável

o

eleitor/telespectador

emocionalmente,

e

consequentemente, ganhar aderência. Neste sentido, o papel da imprensa como veículo difusor da imagem dos candidatos e lugares de registro das concorrências de campanha, se faz norteadora da expressão dos sentimentos no espaço público. Porque são nestes espaços que a exploração emocional acontece tanto em relação ao candidato-eleitor como em relação ao eleitor-candidato. Explora-se a alegria, o choro, o abraço forte, o carinho de “quem já se conhece há anos”,

a

religiosidade,

a

sensibilidade

cumplicidade na campanha eleitoral.

685

humana,

a

revolta,

a

Em “Raízes do Brasil”, Sérgio Buarque de Holanda delineia uma ‘psicologia’ do povo brasileiro, em algumas de suas principais nuances. O autor busca enfatizar uma característica marcante do modo de ser do brasileiro: constrói um panorama histórico no qual ele insere o “homem cordial”, que por sua vez é um “produto” da história brasileira, que vem da colonização portuguesa, de uma estrutura política, econômica e social completamente instável de famílias patriarcais e escravagistas. Esse homem cordial é aquele generoso, de bom trato, que para confiar em alguém precisa conhecê-lo primeiro. A intimidade de tal homem possibilita chamar o outro pelo primeiro nome, além de usar o sufixo “inho”. O rigor praticamente não existe, onde não há distinção entre o público e o privado: todos são amigos em todos os lugares. Para o autor, o Brasil é uma sociedade onde o Estado é apropriado pela família, os homens públicos são formados no círculo doméstico, onde laços sentimentais e familiares são transportados para o ambiente do Estado, é o homem que tem o sentimento como intermédio de suas relações. Portanto, o espetáculo político que existiu em detrimento da disputa das personagens em cena, isto é, a própria campanha eleitoral, foi uma pertença nitidamente cultural, da qual depende para a definição mesma do que se vive e se apresenta como espetacular em sociedades determinadas. A campanha espetacular remete, portanto, à esfera do sensacional, do surpreendente, do excepcional, do extraordinário. Daquilo que se contrapõe e supera o dia-a-dia, o naturalizado. Se as campanhas foram vistas como invenção criativa, essa invenção não operava em um vazio cultural, lidando assim com identidades previamente construídas no imaginário coletivo. (Barreira, 1996). Neste imaginário coletivo devemos pensar o simbólico como via de acesso à expressão dos rituais políticos em comunicação com as forças sociais. 686

Assim, se a dramatização política se apresenta frequentemente nas diversas culturas e em diversos momentos é porque nessas culturas e nesses momentos históricos as necessidades a que ele responde se faz presente e se impõe. Exemplo disso é a aderência que os candidatos Rômulo Gouveia e Veneziano Vital tiveram na sociedade campinense, valendo-se da cultura os dois candidatos seguiram a prática ritual da política campinense para ganhar apoio através de apelos tradicionais, tais como: mostrar serviço, ser bom, ser familiar, mostrar que tem família nuclear – pai, mãe e filho, mostrar que é simpático, carismático, cordial, trabalhador, etc. Constituir e veicular uma mentalidade, um conjunto de valores e significados presentes na sociedade é uma das principais finalidades desta arte polida. As construções de personagens e espaços públicos têm o mesmo objetivo: buscar uma força visual que cause um impacto emocional no eleitor. Nesta situação, a imagem do candidato cristaliza-se pela construção diária de uma imagem positiva das figuras da política. E, além disso, o processo de (des) qualificação da personagem está na proporção da legitimidade das testemunhas, do carisma, da força de agressão, do debate, das nomeações, do direito de resposta. Nesse jogo político, nenhum pormenor é insignificante. Assim, o ritual político é catalisador de valores sociais, uma vez que no espaço da cena são dramatizados os valores importantes da sociedade, aqueles que expressam o centro da vida social. São, portanto, apropriados pelas personagens em uma radicalização de imagens que são o tempo inteiro contrapostas. (BARREIRA, 1996). Uma vez que o espetáculo político ou a dramatização de personagens é fonte de sentido social, é através dos valores sociais que a trama política se expressa como um poder invisível, poder simbólico, equivalente ao que é obtido pela força física ou econômica. (BOURDIEU, 1988) A construção da imagem está, portanto, intimamente relacionada aos sistemas de poder: 687

O poder simbólico é um poder que aquele que lhe está sujeito dá àquele que o exerce um crédito com que ele o credita, que ele confia pondo nele sua confiança. É um poder que existe porque aquele que lhe está sujeito crê que ele existe. (BOURDIEU, 1988, p. 188)

Situar, deste modo, os domínios dos símbolos apropriados pela prática política implica reconhecer que ela é um dos lugares privilegiados de investimento do imaginário. É também espaço de elaboração de estratégias que combinam múltiplas esferas de ação social. É nesse sentido que BOURDIEU (1989) ao discutir o poder simbólico, considera que ele se efetiva a partir de um corpo especializado de produtores, encarregados de produzir discursos e ritos, conforme a especificidade de cada campo da vida social. A representação política, no entanto, pode ser percebida como uma construção simbólica que tem como objetivo instituir a legitimação de processos eletivos de candidatos e ideias e, ao mesmo tempo, a deslegitimação de forças adversárias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Concluímos que o discurso da continuidade de um grupo político constituíra o discurso do adversário, que era a mudança, e este por sua vez, construía o discurso da mesmice, que também era o opositor. A disputa ganhou ares de “guerra”, num repleto conflito de lutas simbólicas e discursivas, propagadas em material impresso, televisivo e som (Músicas de campanha). Pois, a sociedade campinense encontra-se dividida entre dois discursos o “grupo do bem” e o “grupo do mal”, respectivamente relacionados ao “novo” e “velho” governo municipal. O espetáculo da política tem nas suas personagens não apenas um conjunto de imagens, mas “uma relação social entre as pessoas mediada por 688

imagens”. E ainda, um tal discurso “como parte da sociedade e como instrumento de unificação nesta sociedade. (DEBORD, 1997, p.14). A imposição do discurso do “novo” aconteceu em Campina Grande – PB em um momento inédito da política recente, onde pela primeira vez na história do município um grupo detentor do poder político local por mais de 20 anos perde as eleições. Somado a isto, os adversários tentam continuar com os mesmos argumentos para sustentar a ideia de que “tudo” na cidade está realmente “novo”. E neste sentido, grupos opostos, seguem na mesma direção de adotar este argumento. Chega-se a conclusão ao que Irlys Barreira chama de ritual na política, cujos dizeres eivados de significados e valores, que se repetem, revelam um conjunto simbólico relevante para a constituição das personagens e de novos significados na prática política local. O exercício da política não se efetiva pelo uso da força, é o simbólico que a substitui, atuando desta forma como elemento fundamental. O simbólico provoca a presença do poder na vida cotidiana das instituições, funcionando como forma de rememoração. O simbólico não é algo que se acrescenta na prática política, pois o real e o simbólico constituem instâncias articuladas de uma mesma totalidade, evocando uma tradição já construída desde Durkheim, segundo a qual “as crenças são partes constitutivas da vida social”. (BARREIRA, 1998, p. 43). Neste contexto, as práticas das campanhas é uma construção simbólica

dos

acontecimentos,

dos

costumes,

da

tradição

da

sociedade. Por vezes, estes objetivaram instituir a legitimação de processos eletivos dos candidatos e de suas ideias, e, ao mesmo tempo, a deslegitimação de forças adversárias. Os símbolos eleitorais neste contexto foram marcados pela cultura política nas quais estes elementos estão envolvidos. A campanha eleitoral na cidade de Campina Grande, entretanto, revitaliza o significado da política na cidade. Semelhante a uma festa os olhos veem o que não veem em 689

“tempos normais” no cotidiano da sociedade. (PALMEIRA & GOLDMAN, 1996). O espaço urbano onde a festa acontece é o espaço-símbolo de dinamização do momento eleitoral. A representação, portanto, se caracteriza por uma demanda permanente de significados. (BARREIRA, 1998). O ritual acontece sobremaneira sempre com as mesmas estratégias, nenhuma figura política age espontaneamente, uma vez que são indispensáveis e fazem parte do jogo político. O ritual político legitima e ordena as práticas organizando a representação e a encenação, sobretudo do poder.

Notas Na atual campanha eleitoral a médica Tatiana Medeiros (PMDB), apoiada por Veneziano Vital nas eleições 2012, tem como um dos principais discursos e slogans “continuando a mudança” e “Campina Tá melhor”; já o candidato apoiado pelo grupo “Cunha Lima”, Romero Rodrigues (PSDB), tem como discurso e slogan “Por amor à Campina”. 2 Hoje vice governador do estado da Paraíba. Eleito em 2010 com o governador Ricardo Coutinho (PSB). Apoiado também pelo grupo político “Cunha Lima”. 1

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do

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692

ELEIÇÕES, PARTIDOS E COLIGAÇÕES: DESÁFIOS METODOLOGICOS E TEORICOS NA INVESTIGAÇÃO SOCIAL Joice Mara Cesar Bizerro 231 Cleber de Deus Pereira da Silva (orientador)232

Resumo: O presente trabalho é fruto das inquietações metodológicas e teóricas que envolvem o desenvolvimento do arcabouço do objeto da dissertação e formulação de um desenho de pesquisa. Este objeto traz para a discussão a ligação entre as eleições para presidente, governador e prefeito (essa duas últimas referente ao Estado do Ceará) ocorridas no regime de redemocratização. A fim de saber se as eleições municipais (coligações e resultados) são influenciadas pelas eleições para presidente e governador. Assim, tem como objetivo apresentar um debate tanto teórico como metodológicos a cerca das coligações como conceito principal de uma investigação social. Para essa finalidade é esboçado preposições referente à importância da composição de um bom desenho de pesquisa. Palavras-chaves: Desenho de pesquisa;

1. INTRODUÇÃO

Tratar de partidos políticos na sociedade brasileira é muito complicado, principalmente por conta do nosso complexo sistema partidário. Fato esse que se evidencia, sobretudo pelo o enorme número de partidos e uma legislação ineficiente. Nesse contexto, encontra-se no cenário atual um enorme descrédito por parte dos eleitores com relação aos partidos políticos, especialmente por causa dos escândalos de corrupção envolvendo militantes partidários e membros das várias esferas do poder público no que tange o cenário nacional, estadual e municipal. 231

Graduada em Ciências Sociais (URCA), Mestra em Ciência Política (UFPI). Professora de Sociologia e Filosofia na EEEP Lucas Emmanuel Lima Pinheiro. [email protected]. 232 Graduado em Ciências Sociais (UFPI), Mestre em Ciências Políticas (Instituto Universitário de Pesquisas do RJ), Doutor em Ciências Políticas (Instituto Universitário de Pesquisas do RJ). Professor Adjunto (UFPI). Líder do Núcleo de Estudos em Ciências Políticas e Eleitorais (NEPE/UPFI). [email protected]

693

Devido à fragmentação do sistema partidário, impulsionada pela a distorção da representação oriunda do aumento do número de partidos políticos e da pouca força eleitoral de uma parcela destes, estes foram fazendo alianças partidárias para poderem concorrer às eleições e terem reais condições de vitória. Tendo em vista que, essa fragmentação possibilitou eleger representantes com legendas de pouca expressão e tentativa de que só conseguiam ser eleitos provenientes das parcerias com grandes partidos e não através de sua votação. (KRAUSE, 2010) Há uma tendência na ciência política brasileira de estudos envolvendo partidos políticos e coligações em um campo de atuação macro, ou seja, a análises destes num panorama nacional. Estudos em âmbito estadual ainda são escassos, apesar de ter surgidos trabalhos como do Yan Carreirão (2006) que analisa em seus esboços o estado de Santa Catarina. Este trabalho tem como pretensão adentrar neste campo dos estudos que entendem o cenário estadual e municipal como importantes canais para se entenderem o sistema eleitoral brasileiro, e contribuir assim, para minimizar a deficiência de trabalhos neste cenário. O presente trabalho é fruto das inquietações metodológicas e teóricas que envolvem o desenvolvimento do arcabouço do objeto da dissertação. Dessa forma, a proposta de trabalho da dissertação tem como proposta o

estudo das

coligações

eleitorais

no âmbito

presidencial, estadual e municipais, ou seja, uma análise comparada das coligações vitoriosas presidenciais, estadual e municipais. Assim, comparar se a hierarquia nas eleições afetam os resultados destas, ou seja, se as eleições de nível macro afetam as de nível micro? O estado do Ceará foi escolhido como cenário desse estudo por vários motivos, dentre eles, cabe citar: as praticas instituídas de clientelismo; uma alternação e constante manutenção de poder por parte dos Ferreira Gomes e Jereissati; um dos estados do nordeste com grande destaque nacional e por na graduação já ter desenvolvido 694

trabalhos com enfoque tanto no tema aqui proposto como no contexto do estado. Esses elementos tendem a trazer evidências que possam contribuir para o debate sobre temática de nível nacional. No cenário nacional, caber destacar contribuições no que compete aos estudos a respeito das coligações, cabe citar: Lima Jr (1983), Soares (1964), Wanderley Santos (1987), Kinzo (1993), Marcus Figueiredo (1994), Nicolau (1996), Figueiredo e Limongi (1999), Schimitt (1999), Singer (2000), Rodrigues (2002), Krause (2005) Carreirão (2006), Miguel (2007) e Machado (2007). Trabalhos consagrados na ciência política, e de extrema importância para o campo de investigação. É a partir desses autores, que servem de base teórica para o estudo proposto, que se busca contribuir teoricamente e metodologicamente.

2. TEÓRIA E A RELEVÂNCIA POLÍTICA DA PESQUISA

Para que o trabalho tenha cientificidade, há um cuidado com o objeto, no sentido de apresentar um conjunto de procedimentos válidos para descobrir as respostas para as questões postas em estudo. (KING, KEONANE E VERBA, 1994). É com esse pensamento que defino o próprio objeto de estudo, no que consiste seu contexto, sua abrangência, sua temporalidade e sua metodologia. Assim, o estudo proposto apresenta algumas preocupações centrais: 1. Ter como conceito principal e norteador as Coligações. Um conceito que ao mesmo tempo em que despertar interesse, despertar bastantes críticas relacionadas à suas considerações e seus impactos no resultado eleitoral, bem como nos seus métodos. 2. Abordar três esferas diferenciadas de poder político (eleições presidenciais, para governador e prefeito), o que requer um maior 695

cuidado com as articulações e especificidades de cada nível desses, pois a lógica é diferenciada. 3. Um período de tempo relativamente grande (1994-2012), no que concerne a quantidade de eleições que o período dispõe. Mais que a meu ver é necessário para confirmar ou refutar a(s) hipótese(s) que serão descritas no próximo tópico. São a partir dessas preocupações que essa proposta de trabalho tentar supera-las e contribuir para o campo de estudo e para a Ciência Política. Dessa forma, a pesquisa teria implicações políticas relevantes e importantes, pois o tema está diretamente relacionado com o funcionamento do sistema eleitoral brasileiro, no que dizer respeito à representatividade política, a configuração das identidades ideológicas e seu impacto no voto do eleitor. O fato de descrever tais implicações não quer dizer que irei abordar todos esses víeis, mais que podem ser pensados e são pensados por outros autores e podem ser ponto de partida para outros trabalhos. Em resumo, minha pesquisa torna-se importante para o campo de estudo das coligações e de certo modo para o campo da política comparada, por permear três contextos de análise, cada um com suas subjetividades, mais dentro da mesma objetividade. Uma análise comparada que não é entre Nações ou Estados (tipo entre País X e o País Y), mais uma comparação que envolve um contexto macro, um intermediário e um micro. (eleição para presidente, para governador e para prefeito). Entendendo que a análise comparativa fornece elementos para minimizar os riscos e desenvolve padrões que evitam os erros e os preconceitos. (PENNIGS, KERMAN e KLEINNIJENHUIS, 2006) O estudo pretende ultrapassar o caráter meramente descritivo e com propõe King, Keohane e Verba (1994) incorporar na investigação a inferência causal, a fim de oferece evidências confiáveis, maior cientificidade e replicabilidade nas mesmas condições de estudo.

696

3. ARCABOUÇO TEÓRICO: PRINCIPAIS HIPÓTESES E HIPÓTESES ALTERNATIVAS

O desenvolvimento teórico está baseado na literatura a cerca das coligações, do sistema eleitoral brasileiro, dos partidos políticos e das instituições. Serão utilizados trabalhos com caráter mais abrangente e/ou generalizante como também estudo de casos que sejam pertinentes e coerentes com a temática. Mesmo sendo um estudo de caso em um contexto brasileiro, esse não inviabiliza o uso de autores estrangeiros, desde que dentro da linha de pesquisa. Autores como: Lima Jr (1983), Soares (1964), Wanderley Santos (1987), Kinzo (1993), Marcus Figueiredo (1994), Nicolau (1996), Figueiredo e Limongi (1999), Schimitt (1999), Singer (2000), Rodrigues (2002), Krause (2005) Carreirão (2006), Miguel (2007), Machado (2007), Tarouco (2007), Tarouco e Madeira (2012), Melo (2012), Dideus (2006), Mainwaring (2001), Meneguello (2000), Panebianco (2005), Sartori (1982), Berstein (1996),

Dolácio (2006) e Kramer (2004). Autores esses que serão a base teórica para a dissertação, mais que já tem seu grau de importância para a formulação do projeto, pois forneceram insumos fundamentais para o entendimento e como também servirão de ponto de partida para a minha pesquisa. É nessa articulação da base teórica e do projeto de pesquisa que Pennigs, Kerman e Kleinnijenhuis (2006) enfatizam a necessidade de que em a pesquisa empírica seja bem conduzida teoricamente ainda na elaboração do projeto. Onde, nesse o método comparativo relaciona teoria e método com a finalidade de obter uma abordagem viável e factível. Assim, as pesquisas desses autores estão distribuídas nas seguintes abordagens e hipóteses: 1. Coligações e representatividade: as coligações como um elemento de impacto na fragmentação e representatividade no 697

sistema político brasileiro. As coligações contribuem para a distorção da representatividade, aumentando o número de partidos com pouca força eleitoral, dificultando a governabilidade. SANTOS (1987); SOARES (1974, 2001). 2.

Coligações

e

maximização

dos

lucros:

as

coligações

compreende a dinâmica da busca de aliança a partir do princípio geral da economia de esforços e maximização de ganhos. DOWNS (1999); LIMA JR (1983); SANTOS, (1987); NICOLAU, (1994). 3. Racionalidade instrumental: as coligações tende a ter resistência no que tange a ideologia, pois, haveria entre os partidos, além do medo, o risco de perdas futuras. Uma articulação dos partidos no continuum esquerda-direita. SOARES (2001). 4. Ideologia e comportamento eleitoral: surge na literatura uma discursão a cerca do voto por identificação ideológica. SINGER (2000). A hipótese que proponho não tem a finalidade de refutar nenhuma das teorias acima descrita, até porque as situações e a temporalidade são diferenciadas, mas sim de contribuir para as já existentes. A minha hipótese é a de que as coligações num campo macro se repetem no campo micro no que corresponde a maioria dos partidos aliados (maioria dos partidos continua coligado); e que as coligações tem influência de forma hierárquica, ou seja, a composição eleitoral macro determina a composição eleitoral micro. Assim, a coligação vitoriosa no campo macro se repete na maioria dos municípios (campo micro). A composição eleitoral decorrente da eleição para presidente e para governador tem influência na composição eleitoral que decorrerá das eleições para prefeitos que será dois anos depois. É nesse entendimento que se definiu a temporalidade do estudo, pois, no período após a ditadura, um regime democrático e multipartidário, dá para se observar as convergências e formular uma boa teoria. A temporalidade por ser um pouco extensa e por ser uma comparação dentro de um mesmo contexto nacional obrigará o 698

pesquisador a ter mais cuidado com a aquisição dos dados, com a tabulação e com a análise desses. Já que o período conta com cinco eleições para presidente e governadores (1994, 1998, 2002, 2006 e 2010), cinco eleições municipais (1996, 2000, 2004, 2008 e 2012), inúmeras coligações, e no por ser um estudo de caso num Estado composto de 184 municípios.

Eleições para presidente e

2010

2006

2002

1998

1994

governador

Eleições prefeito

para

2012

2008

2004

2000

1996

Figura 1. Relação das eleições na redemocracia e sua influência (hipótese) = influência

4. CONCEITUAÇÃO DAS COLIGAÇÕES

As coligações partidárias entram nesse debate pautado em duas vertentes clássicas da ciência política, a perspectiva de Downs (1999) e a de Soares (2001). Aspectos esses que teceram estudos que estavam interessados em ponderar sobre os mecanismos de motivação das alianças eleitorais. (KRAUSE, 2010) A perspectiva de Downs (1999) compreende a dinâmica da busca de aliança a partir do princípio geral da economia de esforços e maximização de ganhos, e parte do pressuposto de que os partidos políticos avaliam o ambiente em que estão inseridos e procuram se posicionar coma intenção de angariar o maior número possível de votos e vantagens. Nesse sentido a ação coligacionista seria elaborada por um princípio baseado eminentemente em uma racionalidade instrumental. [...] Sendo assim o eixo esquerda-direita não seria o mecanismo

699

fundamental na alavancada da ação coligacionista, dado que na prioridade do cálculo estaria o pragmatismo. (KRAUSE, 2010, P. 42) Contrapondo-se a esta perspectiva, e procurando relativizar a noção de ‘racionalidade instrumental’ motora de ação, Soares (2001:136-137) defende: ‘A racionalidade depende da informação; o que é racional muda com a informação; a escolha racional não é absoluta; o que é racional depende do que é definido como desejável; e o que é desejável depende o que da cultura; a ideologia pode redefinir o que é desejável, a definição do que é racional não é atemporal; definido o que é desejável, a definição do que é racional e do que não o é pode variar no tempo; o que é racional a curto prazo pode não sê-lo no longo prazo.’ O autor desenvolveu a tese da ‘resistência ideológica’” (KRAUSE, 2010, P. 42)

Na

primeira

teoria

a

coligações

partidárias

seriam

uma

ferramenta de acesso à máquina governamental, onde, aproximaria os partidos às tomadas de decisões após as eleições. A segunda aponta para que as coligações tende a ter resistência no que tange a ideologia, pois, haveria entre os partidos, além do medo, o risco de perdas futuras. Essas duas perspectivas norteiam vários estudos a cerca do tema na ciência política, no sentido que, essas guiam a configuração da centralidade que envolve a perspectiva da identidade ideologia que submerge os partidos políticos. Referente a essas teses, há certo consenso na literatura brasileira a cerca da finalidade e da motivação dos partidos se coligarem. Onde, esse fim seria ampliar as chances de vitória com base no cálculo de custos e benefícios. (LIMA JÚNIOR, 1983; SANTOS, 1987; NICOLAU, 1994). A essa prerrogativa Carreirão (2006) acrescenta a ideologia dos partidos com elemento presente no cálculo dos custos e benefícios como fator que influenciaram na composição ou não de coligações. Para se discutir sobre as coligações partidárias é preciso incluir uma série de questões acerca do sistema partidário brasileiro, por isso, faz-se necessário fazer primeiramente uma distinção entre partidos de direita, esquerda e de centro. E adentrar em estudos que utilizam em seus trabalhos o continuum direita-esquerda, tais como, Kinzo (1993), 700

Figueiredo e Limongi (1999), Singer (2000), Rodrigues (2002) e Carreirão (2006). Esses trabalhos mostram-nos, que esse eixo de análise tem desempenhado ótimo rendimento como referencial de análise para mensurar a ação dos partidos políticos, principalmente em coligações partidárias. Assim,

segundo

Figueiredo

e

Limongi

(1999)

podemos

tranquilamente falar em partidos de direita, de centro e de esquerda no Brasil, pois, há “um padrão de coalizões partidárias que é coerente com a disposição dos partidos num continuum ideológico”. Em se tratando dessa relação com o eleitorado, ou seja, do continuum direita-esquerda com os eleitores, Singer (2000) aponta que apesar dos eleitores não tendo uma compreensão nítida das acepções de direita e esquerda, uma boa margem desses eleitores são capazes de localizar os partidos nessa concepção e dessa forma determinar o seu voto. Carreirão adentra nessa discursão com uma diferenciação entre direita, esquerda e centro, pautada na literatura a cerca do tema. Assim, com base em Kinzo (1990), Novaes (1994), Figueiredo e Limongi (1999), Fernandes (1995) e Rodrigues (2002) faz a seguinte distinção: “Direita: PP (PPB; PPR; PDS); PFL; PRN; PDC; PL; PTB; PSC; PSP; PRP; PSL; PSD e PRONA; Centro: PMDB e PSDB; Esquerda: PT; PDT; PPS; PC do B; PSB; PV; PSTU; PCO e PMN”. Com essa demarcação os tipos de coligações são caracterizados ideologicamente em consistente e inconsistente e semi-consistentes. Essa classificação apresenta limites, tais como, o não reconhecimento do tamanho e o número de partidos de cada campo político em que estão inseridas as uniões. A divisão estabelecida de acordo com Carreirão (2006) é a seguinte: a)

Consistentes: são aquelas em que os partidos fazem parte

de uma mesma corrente ideológica, ou seja, partidos situados no mesmo espectro ideológico. Esquerda com Esquerda; Centro com Centro; Direita com Direita. 701

b)

Inconsistentes são aquelas em que os partidos envolvidos

são ideologicamente diferentes. Direita com Esquerda; Direita com Centro com Esquerda. c)

Semi-consistentes são aquelas que os partidos envolvidos

apresentam posicionamento ideológico de centro com esquerda ou de centro com direita Na disputa eleitoral as coligações partidárias quanto às suas chances são de três tipos: fortes, feita por partidos de um mesmo campo, esquerda com esquerda, centro com centro e direita com direita; médio envolvendo partido de centro com partidos de esquerda ou de direita, centro e esquerda, centro e direita; e fraco feito por partidos de campos ideológicos diferentes (pólos extremos), direita e esquerda e vice e versa. (CARREIRÃO, 2006; CARREIRÃO; NASCIMENTO, 2009). Em síntese os partidos fazem coligações para se obter poder político, onde as coligações servem para ampliar as chances eleitorais de vitória de um partido. As coligações não são feitas aleatoriamente. Segundo Carreirão (2006) as coligações são feitas a partir de um cálculo de custos e benefícios eleitorais. Com essa explanação ficam nítidas algumas tramitações partidárias, quando uma coligação é vitoriosa aos partidos da base aliada recebem em troca alguns cargos (secretárias, por exemplo).

5. DESENHO DA PESQUISA E MÉTODOS Na investigação cientifica não tem um método melhor do que o outro, não importa se é qualitativo ou quantitativo, o que importa é se a inferência é realizada de em consonância com procedimentos válidos. 702

E nesse sentido, a inferência é o objetivo da ciência social, não importando se é descritiva ou explicativa, qualitativa ou quantitativa. (KING, KEOHANE E VERBA 1994). Assim, o indispensável para a pesquisa é que ela incorpore a lógica da inferência cientifica. Para King, Keohane e Verba (1994) a inferência é o processo de usar os fatos que sabemos para apreender sobre os fatos que não sabemos. Onde os fatos que não sabemos são a nossa questão de investigação e as hipóteses. Na pesquisa cientifica há necessidade de dois elementos fundamentais: objetividade e natureza empírica. A objetividade assegurar princípios como o da replicabilidade e da comparabilidade. E é nesse sentido um método, um procedimento, uma maneira de dirigir a sua pesquisa. A natureza empírica faz com que o pesquisador obtenha evidências do campo de forma sistemática e controlada. (KERLINGER, 2007) Com esses elementos a pesquisa vai incorporando o status de cientificidade. E é nesse contexto que faz-se necessário a inferência causal. Onde as teorias causais devem estar aparatas em cinco conselhos básicos: (1) teorias falseáveis; (2) coerência interna; (3) variáveis dependentes cuidadosamente selecionadas; (4) ampliação das referências e aplicabilidade das teorias; (5) teorias includentes. (KING, KEOHANE E VERBA, 1994). Dessa forma, para alcançar confiáveis inferências causais sobre as principais teorias sobre coligações explicadas acima, vou seguir o método quantitativo, que enfatiza a descrição dos dados ou com a tabulação desses em formato de gráficos. Dentro desse universo de pesquisa foi pensado inicialmente em três técnicas para a coleta, que obviamente podem ser incorporadas novas no decorrer da pesquisa. Essas são: pesquisa bibliográfica, levantamento de dados e surveys. Pesquisa bibliográfica perpassa todos os momentos da pesquisa. Sendo essa, indispensável ao pesquisador devido ao acesso a uma 703

gama de trabalhos na sua área. Isso facilita o entendimento do fenômeno aqui analisado. As fontes dessa técnica de pesquisa são: livros com temática na área, publicações periódicas (artigos científicos), anais de encontros científicos, relatórios de pesquisas, ensaios, resenhas, teses, dissertações e etc.. Essas fontes de pesquisa representam uma grande fonte de informação, devido o rigor de análise e elaboração, como também a profundidade de discursão do tema. Com o levantamento, pretende-se recolher informações sobre os partidos políticos e suas coligações no arquivo eletrônico do Tribunal Regional

Eleitoral

do

Ceará

(TRE–CE)

para

desenvolver

um

mapeamento a cerca do tema, ou seja, organizar os partidos nas suas respectivas

coligações

e

anos

para

um

desdobramento

do

posicionamento ideológico das coalizões. A pesquisa de surveys apresenta-se nessa análise, como uma alternativa eficaz para responde questões mais abstratas do desenho dessa pesquisa. Assim, serão analisado surveys realizados durante o período de estudo proposto desenvolvido por empresas e/ou órgãos de pesquisas. Considera-se aqui, também o tamanho da amostra que seria necessário para a viabilidade e confiabilidade desse estudo, ou seja, não seria viável ao pesquisador aplicar questionário em todas as cidades cearense para poder refere-se ao todo, bem como se tratar de momento histórico anterior. Dessa forma, surveys realizados anteriormente possibilitam ao pesquisador entender e captar um riquíssimo contingente de informações

brutas

e

aperfeiçoa-la,

bem

como

incorpora-las

interpretações pautadas em lentes de leituras desenvolvidas. O estudo quantitativo nesse caso serve para testar as hipóteses em maior profundidade, principalmente, pelo fato de o estudo de caso refinar a teoria e dá suporte para a obtenção de informações sobre as estruturas causais.

704

5.1 - Operalização da Variável Dependente Uma variável de acordo com Kerlinger (2007) é um conceito com um significado específico construído pelo pesquisador, ou seja, é uma propriedade que assume valores diferentes, como por exemplo, Feminino e Masculino. Assim, a variável dependente é entendida como uma variável de resultado, aquilo que é consequência. Assim, há necessidade de aferir rigorosamente a variável dependente, isto é, definir as coligações vitoriosas nas respectivas eleições. A partir da definição da variável dependente pode-se montar as estratégias para a operalização dessa variável. Esta operalização está dividida em duas estratégias: (1) pautada na literatura que já tem esses dados em sentido macro e até mesmo no micro de algumas eleições e a (2) pautada na aquisição de dados a partir de fontes estabelecidas na metodologia (TRE-CE, TSE e Surveys) das eleições para presidente, para governador e para prefeito apontadas para o estudo. Ambas as estratégias possuem vantagens e desvantagens. Mais no total uma complementa a outra, no sentido de fornecerem elementos e dados para o entendimento do objeto como um todo, facilitando assim a análise e conclusão da dissertação.

5.2 - Análise O teste das teorias e hipóteses expostas acima será realizada a partir da coleta e tabulação dos dados oriundos do acervo do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e Tribunal Regional Eleitoral do Estado do Ceará (TRE-CE), que consta das informações referentes às coligações realizadas no período estudado. Um trabalho que requererá de um método que ao mesmo tempo em que transmite as informações não seja muito desgastante para o pesquisador e para leitor. Nesse sentido, pensou-se no SPSS para a 705

tabulação dos dados e formulação dos gráficos (onde esse fornece gráficos com cruzamentos de variáveis), e como fez Dideus (2006) na sua tese, um mapa da votação (Geografia Eleitoral) que dá uma boa visão da composição eleitoral do Estado do Ceará. Esses métodos ajudaram a dá contorno, sistematização e verificar tendências existentes no objeto de estudo. Além de facilitar a compreensão e entendimento a cerca da pesquisa, devido a sua temporalidade e a quantidade de municípios existentes no estudo de caso. 6. CONCLUSÃO A lógica é ultrapassar a discussão entre qual a melhor abordagem para a pesquisa, seja ela qualitativa ou quantitativa. Entendendo que as duas são de igual importância, desde que utilizadas pelo pesquisador dentro de parâmetros viáveis e confiáveis, com métodos coerentes, sistemáticos e científicos. Considerado que no desenho da pesquisa deve ter as seguintes características: 1) Inferências descritivas; 2) que os procedimentos sejam públicos; 3) que as conclusões sejam incertas; e 4) que o conteúdo seja o método. (KING, KEONANE E VERBA, 1994). Desta forma, a objeto de estudo pode ser melhor analisado se for desenvolvido um desenho de pesquisa pautado em inferências validas pelo uso sistemático de métodos e procedimentos bem estabelecidos na investigação, a fim de se evitar dogmas.

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710

LEI DA FICHA LIMPA VERSUS VIDA PREGRESSA DO CANDIDATO

Larissa Nunes Paiva233 Dijosete Veríssimo da Costa Júnior 234

Resumo: A Constituição Cidadã de 1988 é um marco para o Brasil, no restabelecimento da democracia e para a formação dos cidadãos que passam a se reconhecer como sujeito de deveres e de direitos. Com a democratização do acesso à internet, em que pessoas de diferentes classes sociais e lugares do país podem se comunicar com baixo custo, facilidade e rapidez, surge o denominado de ativismo “on line”, em que blogs, sites, email, redes sociais, são espaços para a mobilização social. Este estudo foi realizado para compreender como uma lei de iniciativa popular que culminou com a aprovação da Lei Complementar nº 135/2010, denominada Lei da Ficha Limpa, passou a determinar as eleições do país, estabelecendo hipóteses que tornam inelegível o candidato com a vida pregressa marcada por crimes, corrupção e pela não aprovação das suas contas. Palavras-chave: Democracia. Eleições. Lei da Ficha Limpa. Vida Pregressa.

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal promulgada em 1988 assinala claramente a defesa da democracia no Brasil, o texto legal prevê a garantia de direitos humanos, sociais, políticos, culturais e entre outros. Essa pesquisa busca compreender a importância da participação popular como mecanismo de controle eleitoral, uma vez que, após a promulgação da denominada Lei da Ficha Limpa, muitos políticos estão sendo processados e até mesmo podem perder seus mandatos, este fato tem influenciado as escolhas e decisões dos políticos, mostrando-se como um instrumento favorável ao processo democrático de escolha dos representantes.

233

Graduada em Direito (UERN), Ciências Socais (UFRN) Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (UFRN). Especialista em Direito Constitucional, Advogada. [email protected]. 234 Professor Mestre/MSc (Master of Science) do Departamento de Direito – FAD/UERN.

711

Apresentando os seguintes questionamentos: a vida pregressa do candidato é um fator impeditivo para a confiança dos eleitores e, sobretudo, como um elemento definidor da escolha ou não dos representantes? A caracterização da vida pregressa do candidato é um meio hábil para inibir a conduta dos políticos, pela não observância do princípio da moralidade e do dever de probidade administrativa? Este estudo tem o objetivo de pesquisar, refletir e analisar os avanços da aplicação da Lei da Ficha Limpa no cenário político nacional, ressaltando a importância atribuída pelo eleitor quanto à escolha do candidato e a sua vida pregressa. Descrevendo a importância da iniciativa popular como instrumento para reivindicação de direitos, refletindo sobre o processo de empoderamento político da população, quanto ao reconhecimento de direitos e a mobilização on line para a sua efetivação. Os direitos políticos estão previstos constitucionalmente e a soberania popular tem destaque em nosso ordenamento: “o poder emana do povo, que o exerce através de seus representantes”. Assim, após vinte anos da atual Constituição de 1988, o Estado Democrático de Direito vêm sendo consolidado, pois a população tem participado com mais intensidade nos debates, em movimentos sociais e até mesmo no dia das eleições. É certo que os cidadãos estão se empoderando de uma nova conscientização política, para assim escolher seus representantes e garantir seus direitos. Esse tema é relevante e atual, pois um novo fenômeno está ocorrendo, denomina-se ativismo on line, pela facilidade do acesso à internet e pelo crescente número de redes sociais, os cidadãos de diferentes estados podem se comunicar e discutir as problemáticas sociais. Neste sentido, sabe-se que a mídia tem um poder de alcance social muito significante tanto para divulgar notícias, como também para direcional, ou melhor, formar opiniões, sendo considerada por muitos estudiosos o “quarto poder”. Assim, a crescente exposição dos escândalos que envolvem os políticos, esta vinculação da mídia 712

nacional culminou para que os cidadãos tomassem um posicionamento e se mobilizassem. A partir desse movimento social, agora eletrônico, foi realizada uma articulação na internet que colaborou para que através da iniciativa popular um projeto de lei fosse aprovado. A Lei da Ficha Limpa representa um avanço para a democracia do país, pois os eleitores podem escolher melhor seus representantes, com mais transparência e informações. Nesse contexto, existem sites e blogs que cadastram candidatos e políticos de carreira, apontando se eles respondem processos e quais as suas iniciativas de projetos e leis, sendo mais um mecanismo de controle social e de incentivo ao eleitorado com grande alcance em todo o território nacional. Assim, a partir da previsão do art. 14, § 9º da Constituição, a vida pregressa do candidato passou a ser, após a aprovação da Lei Complementar de nº 135/2010, um aspecto de suma relevância, determinando critérios para se determinar a inelegibilidade e o prazo de cassação dos direitos políticos. Assim, se pressupõe que a adoção desses critérios que já eram previstos no artigo supracitado e agora estão especificados em Lei Complementar possam punir com mais rigor os que exercem seus mandatos sem ética e não cumprem com seus deveres. Essa pesquisa não é inédita, mas deseja contribuir para o debate social, acadêmico jurídico e para estudos futuros mais aprofundados. A atualidade do tema lhe é conferida pelo alcance social e pelas repercussões, busca-se então, para melhor delimitar o objeto de estudo, ressaltar a influência dos princípios da probidade administrativa e da moralidade, e ainda, como a normalidade e legitimidade das eleições no Brasil pode tornar inelegíveis os candidatos com uma vida pregressa incompatível com o exercício político. O estudo foi realizado utilizando-se metodologicamente a pesquisa bibliográfica, sobressaltando a busca de subsídios com a análise da doutrina que versa sobre a constitucionalidade da Lei da 713

Ficha Limpa nº. 135/10 (Projeto de Lei Complementar nº 518/2009) e também sobre o requisito da vida pregressa do candidato como causa de inelegibilidade. Assim, com o método dedutivo, coletaram-se o material bibliográfico em artigos jurídicos, livros, decisões dos tribunais e textos disponibilizados eletronicamente. Apresenta-se o debate sobre a importância da Lei da Ficha Limpa – LC 135/10; bem como a importância do ativismo judicial (ativismo on line) e os novos desafios das eleições na sociedade brasileira. Por fim, esta pesquisa buscará através de uma análise crítica e científica expor os impactos da Lei da Ficha Limpa no cenário político e de como o princípio da moralidade, o dever de eficiência e a probidade administrativa vem sendo considerada aspectos importantes na escolha do candidato.

1. A LEI DA FICHA LIMPA: UM PROJETO DE LEI DE INICIATIVA POPULAR A Lei da Ficha Limpa, popularmente conhecida, foi um projeto de iniciativa popular de nº 518/2009, que culminou posteriormente, com a promulgação da Lei Complementar de nº 135/2010. Em junho de 2010, num contexto de efervescentes mobilizações sociais e como resposta da opinião pública, após a divulgação de constantes escândalos de corrupção, foi promulgada a Lei Complementar nº 135/2010 – denominada Lei da Ficha Limpa, como é popularmente conhecida, alterou a Lei Complementar nº 64/90, acrescentando novas hipóteses de inelegibilidades, estabelecendo punições mais severas para os candidatos “fichas sujas”. A Lei da Ficha Limpa foi uma das poucas leis de iniciativa popular, que é prevista na Constituição de 1988, sendo aprovada no Congresso Nacional. Historicamente, no Brasil foram quatro leis aprovadas, registrase: a primeira foi à lei de crimes hediondos aprovada em 1990, esta classificou como inafiançáveis os crimes de sequestro, tráfico e estupros 714

e negou aos seus autores os benefícios da progressão da pena, obrigando-os a cumprir pelo menos 2/3 (dois terços) da condenação em regime fechado. Posteriormente, esta Lei foi alterada em 1994, através da lei 8.930/1994, que incluiu na lei o homicídio qualificado. A segunda lei aprovada tornou crime passível de cassação a compra de votos, o projeto foi apresentado em 18 de agosto de 1999 e sancionado no mesmo ano. A terceira lei criou o Fundo Nacional de Habitação, foi protocolada em janeiro de 1992 e, somente foi sancionada no ano 2005. Por último, a Lei da Ficha Limpa, sendo a mais importante de todas para a consolidação da democracia brasileira, com a assinatura de mais de 1,5 milhões de pessoas e teve à frente o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral - MCCE e outros movimentos sociais organizados através das redes sociais, formando o denominado ativismo “on line”. O documento com as assinaturas foi protocolado no Congresso Nacional em setembro de 2009. A Lei foi aprovada na Câmara dos Deputados, contando com 412 votos a favor, 3 abstenções e, por unanimidade, no Senado. Assim, em 4 de junho de 2010, Lei Complementar nº 135/2010 foi sancionada pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mais popularmente conhecida como Lei da Ficha Limpa. A referida Lei Complementar estabelece que são inelegíveis, por um prazo de oito anos - quem tenha condenações em segunda instância ou tribunal superior ou processo transitado em julgado, ou seja, que não se aceita mais recursos. A lei é bastante ampla e não se limita a crimes eleitorais, inclui também, as doações e gastos ilegais de recursos de campanhas. Desta forma, são inelegíveis, os ocupantes de cargos na administração pública que forem condenados por abuso de poder econômico, abuso de autoridade, por crimes contra a economia popular, fé pública, tortura, tráfico de drogas, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e racismo. Um dos debates imediatos após a aprovação da LC nº135/2010, foi quanto à sua validade para as eleições do ano de 2010. Assim, no 715

dia 23 de março de 2011, depois de alguns meses de discussão, o Supremo Tribunal Federal – STF votou por 6 votos a 5 pela invalidade da lei para as eleições de 2010. Ressalta-se que a iniciativa popular é um importante instrumento, previsto no art. 1º, inciso III e no art. 3º e parágrafos seguintes, da Lei de nº 9.709/1998, que regula a execução do disposto nos incisos I, II e III do art. 14 da Constituição Federal, permitindo que um projeto de lei seja apresentado

ao

Congresso

Nacional

desde

que,

entre

outras

condições, apresente as assinaturas de 1% (um por cento) do eleitorado nacional, distribuído em pelo menos cinco Estados do país, assim dispõe: Art. 13. A iniciativa popular consiste na apresentação de projeto de lei à Câmara dos Deputados, subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles. § 1o O projeto de lei de iniciativa popular deverá circunscreverse a um só assunto. § 2o O projeto de lei de iniciativa popular não poderá ser rejeitado por vício de forma, cabendo à Câmara dos Deputados, por seu órgão competente, providenciar a correção de eventuais impropriedades de técnica legislativa ou de redação.

A Lei Complementar de nº 135/2010, denominada popularmente como

Lei

da

Ficha

Limpa,

impede

candidaturas

de

pessoas

condenadas pela Justiça, em decisão proferida por órgão colegiado da Justiça ou em decisão transitada em julgado - quando não pode mais haver recurso. A LC de nº 135/2010 alterou a Lei Complementar nº 64/90, incluindo hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato eletivo. A Lei da Ficha Limpa ampliou os casos e também o período de inelegibilidade, estabelecendo em oito anos o tempo em que o político fica impedido de se candidatar quando for condenado por crimes eleitorais, hediondos, contra o meio ambiente, racismo e outros. Existe 716

outra exigência que também torna o candidato inelegível, quando é condenado e receba pena de mais de dois anos de prisão, devido a situações nas quais houve dolo, ou seja, com a aprovação desta LC nº 135/2010 as sanções se tornaram mais severas e o prazo de inelegibilidade maior. Assim, a partir da previsão do art. 14, § 9º da Constituição, dispõe: Art. 14, § 9º, CF: Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. (Redação dada pela Emenda Constitucional de Revisão nº 4, de 1994).

O artigo acima transcrito assinala que a vida pregressa do candidato passou a ser, após a Lei Complementar nº 135/2010, um aspecto de suma relevância, os critérios para se determinar a inelegibilidade são mais rígidos, ao ser decretada a inelegibilidade o prazo de cassação dos direitos políticos é mais severo. Assim, se pressupõe que a adoção desses critérios que já eram previstos no artigo acima disposto e agora estão especificados em Lei Complementar possam punir com mais rigor os que exercem seus mandatos sem ética e não cumprem com seus deveres. Com a notoriedade dada pela mídia aos escândalos envolvendo desvios de verbas públicas, compras de votos, entre outros atos de corrupção cada vez mais frequentes no cenário político nacional é aprovada a Lei da Ficha Limpa. Esta Lei Complementar pela sua relevância introduziu no ordenamento pátrio, outros critérios para determinar a candidaturas de políticos, a inelegibilidade por “ficha suja” do nacional, não sendo um fator essencial para a condenação o trânsito em julgado da decisão condenatória, bastando tão somente, a condenação

por

órgão

colegiado

para



se

configurar

a

inelegibilidade. Contudo, o posicionamento da jurisprudência e da

717

doutrina ainda não é pacífico quanto a isso, assim aponta o autor (CÂNDIDO, 2003, p. 273): Antes da decisão definitiva da Justiça Eleitoral não se poderá falar em inelegibilidade, tampouco poderá ter o agente qualquer restrição no uso e gozo de seus direitos políticos. Fica afastada, destarte, a possibilidade de, mesmo invocada a gravidade dos fatos ou o risco da quebra da legalidade da ordem jurídica, se pleitear liminarmente a exclusão do representado de alguma eleição.

Assim, a vida pregressa do candidato, é um importante requisito, primeiro a ser analisado pelo eleitor que escolhe o candidato como o seu representante; segundo, após a aprovação da Lei da Ficha Limpa, sendo um fator a ser analisado no registro da candidatura. A legislação eleitoral tem apresentado um importante avanço, bem mais do que o avanço na legislação, a consciência política do eleitor é o fator determinante nas eleições. Com

a

LC

135/2010

a

política

brasileira

foi

de

certo

modo

revolucionada, sendo uma conquista comemorada por todas as classes sociais, pois representa um avanço na consolidação da democracia. Na história política do Brasil, a participação efetiva do cidadão sempre foi limitada, contudo, nas últimas décadas, mais precisamente após a promulgação da Constituição Federal de 1988, o cidadão passou a se reconhecer como um sujeito de direitos e deveres, sendo inserido no processo eleitoral, participando ativamente da política. No Brasil, presenciava-se uma distorção política antes da promulgação da Lei da Ficha Limpa, em que criminosos, acusado por qualquer crime, podiam concorrer ao mandato eletivo. Desta forma, as câmaras municipais, as assembléias estaduais e até mesmo o Congresso Nacional “abrigavam” políticos com uma vida pregressa marcada por crimes. Estes políticos, que cometiam crimes, estavam protegidos pelo instituto da imunidade parlamentar, que originalmente foi criado no século XVII na Inglaterra, no Brasil, este instituto foi usado para defender os 718

indiciados por qualquer crime, como bem destaca (ASSUNÇÃO, 2010, p. 14): “aqui nesta nossa terra, a imunidade parlamentar ganhou ares de “impunidade parlamentar”, contrariando o princípio que consagrou sua criação.” Nesse contexto, que prevalecia a impunidade dos políticos criminosos, qualquer pessoa com poder econômico para realizar uma campanha eleitoral, poderia ser eleito, e usar o Parlamento, para usufruir da imunidade parlamentar como um verdadeiro escudo contra a Justiça. É importante destacar, que mesmo os crimes comuns cometidos ficariam impunes, ou seja, suspensos após a diplomação do candidato eleito.

1.1. O Princípio da Moralidade O Agente Público é o elemento físico da Administração pública, são aqueles que executam uma função pública como pressuposto do Estado. Por isso, estes agentes públicos devem ser orientados pelos princípios administrativos, que inspiram o agir do administrador, dentre eles: o princípio da legalidade, o princípio da impessoalidade, o princípio da moralidade – que será pormenorizadamente descrito; o princípio da publicidade, o princípio da eficiência, o princípio da supremacia do interesse público, o princípio da autotutela, o princípio da indisponibilidade, o princípio da continuidade dos serviços públicos, o princípio da segurança jurídica, o princípio da razoabilidade e o da proporcionalidade. O princípio da moralidade está previsto no art. 14, § 9º da Constituição Federal. Inicialmente se torna imperioso diferenciar conceito de ética e de moral, que são muitas vezes usados como palavras sinônimas, com o mesmo significado, contudo, se diferenciam se analisadas conforme a sua definição originária, senão vejamos (GOMES, 2010, p. 48):

719

A palavra ética é originária da Grécia (ethiké). Foi traduzida par ao latim como moral (mos, plural = mores). Significava, por um lado, o conjunto de princípios e valores orientadores da ação humana em geral. Por outro, designava a dimensão prática das ações individuais, ou seja, a realidade da existência. Ética é a ciência que discute e problematiza o comportamento humano.

O autor quis ressaltar que existem diferenças nas definições de ética e moral, ele acentua que a ética está relacionada ao dever ser da ação humana, que tem padrões estabelecidos socialmente em determinada época, que distingue o que é justo ou injusto, certo e errado, bem e mal, são valores moldados de acordo com os padrões de uma sociedade, que influenciam as condutas, a ética do indivíduo. Já a moral ocupa-se da ação em si mesma, na prática, acrescenta ainda GOMES (2010, p. 49): Mores é o ambiente histórico-cultural construído pelo homem, em um determinado tempo e lugar. Trata-se, pois, das práticas e relações vivenciadas pelas pessoas, que se expressam pó meio de usos, hábitos e costumes. O agir moralmente implica seguir tais costumes, os quais podem não estar em sintonia com os preceitos da ética.

O autor completa seu entendimento afirmando que a moral pressupõe a liberdade de quere e de agir, implica a decisão espontânea da pessoa a aderir a regra moral. O princípio da moralidade administrativa impõe ao administrador público o dever de pautar sua conduta de acordo com os preceitos éticos, assim “de acordo com ele, a Administração Pública e seus agentes têm de atuar na conformidade de princípios

éticos” na definição

do autor

administrativista Celso Antônio Bandeira de Mello (2008, p. 119). O

administrador

público

deve

observar

os

critérios

da

convivência, da oportunidade, da justiça e também distinguir o que é honesto do que é desonesto, respeitar os princípios da razoabilidade e justiça. Esta conduta deve estar presente entre os administrados e o administrador, bem como entre o administrador e os agentes públicos 720

que integram a administração pública, assim afirma (SILVA, 2005, p. 649): “a ideia subjacente ao princípio é a de que moralidade administrativa não é moralidade comum, mas moralidade jurídica. Essa consideração não significa necessariamente que o ato legal seja desonesto”. O Constituinte de 1988 já visava coibir a imoralidade no âmbito administrativo, o art. 37, caput, da CF, preceitua: Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

Então, cabe ao administrador público observar o princípio da moralidade. Convém destacar que este princípio não está diretamente relacionado à ideia do bom administrador, relaciona-se sim, com a noção de administrador que conhece os princípios éticos que são regentes da administração pública e os pratica. Segundo o autor (MELLO, 2008. p. 119): Violá-los implicará violação ao próprio direito, configurando ilicitude que assujeita a conduta viciada a invalidação, porquanto tal princípio assumiu foros de pauta jurídica, na conformidade do art. 37 da Constituição. Compreendem-se em seu âmbito, os chamados princípios da lealdade e da boafé.

O princípio da moralidade se diferencia do princípio da legalidade, enquanto o primeiro relaciona-se com preceitos éticos, os segundo relaciona-se com o que é legal, ou seja, em conformidade com a lei. Assim, esses princípios estão associados pela noção de legalidade. A moralidade é muito importante para a atividade da administração, a sua falta pode afetar muitos aspectos da administração pública. O administrador público pode em determinadas ocasiões realizar a imoralidade, que representa ofensa direta á lei e viola, o princípio da

721

legalidade,

nesta

situação

o

administrador

está

pautado

na

discricionariedade. Os instrumentos para combater as condutas que violam o princípio da moralidade estão disponíveis aos órgãos competentes e as cidadãos, para que os atos dos administradores que desrespeitam o princípio da moralidade sejam anulados e os responsáveis severamente punidos. Contudo

é

importante

registrar

que

não

é

qualquer

ato

do

administrador que será punido, este ato deve ser atentatório ao princípio da legalidade, à boa fé, à lealdade, à coletividade. Quando estes

instrumentos

estiverem

funcionando

perfeitamente,

novos

administradores, especificamente, os políticos se orientados pela moralidade, podem construir uma sociedade mais justa e equânime. 1.2. O dever de probidade administrativa A ideia de probidade (probitate) encontra-se arraigada à de ética e moral. A probidade refere-se à possessão de certas qualidades morais e também, com o agir de acordo com os preceitos éticosmorais. Segundo o José Jairo Gomes (2010, p. 50): Significa integridade de caráter, honradez e pundonor. Probo (probu) qualifica o que é honesto, justo, reto, honrado; é aquele que apresenta caráter íntegro, que cumpre seus deveres e é criterioso ao agir. A improbidade é o contrário, de sorte que a ação ímproba é desvestida de honestidade, de bom caráter, de boa-fé, de justiça, de retidão, enfim, de licitude.

A Constituição Federal em seu art. 14, § 9º, determina que a probidade administrativa seja protegida, o que é feito por intermédio da instituição de hipóteses de inelegibilidades para o agente que se torna ímprobo235. Com efeito, a inelegibilidade proíbe o exercício dos

235

A improbidade é tratada com mais rigor, porque entra no ordenamento constitucional como causa de suspensão dos direitos políticos do ímprobo. (SILVA, 2005, P. 651).

722

direitos políticos

236,

enseja também, a suspensão destes direitos, tudo

em conformidade com os arts. 15, V c/c 37, § 4º da CF, “in verbis”: Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: V - improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º. Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: § 4º - Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.

Assim, a suspensão dos direitos políticos por improbidade administrativa pode ser aplicada independentemente de um processo criminal. Neste sentido, “a probidade administrativa é uma forma de moralidade administrativa que mereceu consideração especial da Constituição, que pune o ímprobo com a suspensão de direitos políticos.” (SILVA, 2005, p. 650). Como mencionado acima, os agentes públicos devem ser orientados pelos princípios da administração pública. A administração pública se organiza conferindo direitos e deveres aos administradores. Citam-se os principais deveres: o de probidade, o de prestar contas e o de eficiência, que devem ser observados pelos candidatos e pelos políticos eleitos. O dever de probidade é um dos primeiros e senão, o principal dever do administrador público, que deve pautar sua atuação nos princípios da honestidade e da moralidade, isso em relação à administração pública e aos administrados. O administrador que cumpre o dever de probidade não comete o favorecimento ao nepotismo, é honesto, opta sempre pelo interesse

236

A suspensão dos direitos políticos, no caso, não constitui simples pensa acessória. O problema é que não poder a suspensão ser aplicada em processo administrativo. Terá que ser em processo judicial, em que se apure a improbidade quer seja criminal ou não. (SILVA, 2005, P. 651).

723

da administração pública, da coletividade, dos seus administrados. Destaca (SILVA, 2005, p. 650): O desrespeito a esse dever é que caracteriza a improbidade administrativa. Cuida-se de uma imoralidade administrativa qualificada. A improbidade administrativa é uma imoralidade qualificada pelo dano ao erário e correspondente ao ímprobo ou a outrem.

Se o administrador não cumprir com o dever de probidade existem várias sanções regularmente previstas, que são: a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, á indisponibilidade de seus bens, pagamento de multa, à obrigação de ressarcir o erário, poderá responder a ação penal, conforme assinala o art. 37, § 4º da CF, supracitado. 1.3. A vida pregressa como requisito de elegibilidade A finalidade do poder político é a realização do bem comum. Assim, como o bem comum pode ser realizado em uma sociedade governada por pessoas que praticam reiteradamente delitos? Na democracia moderna, o exercício do poder político deve está associado com a exigência da vida pregressa, conforme bem preceitua o art. 14, § 9º da CF. No posicionamento de Pinto (2010, p. 241): No caso de recusa em assegurar-se efetividade às exigências desse comando normativo, constatar-se-á a possibilidade de implantação do próprio “governo dos marginais”. Governo sob o comando daqueles que, comprovadamente, já atuaram à revelia da lei, da qual a cleptocracia é a forma mais nociva.

Com esse posicionamento, o autor acentua que a falta de coisa julgada, não retira do governante e do candidato à condição de infrator, quando os atos ilícitos estão regularmente comprovados. São estes fatos delituosos que precisam ser aferidos no processo de 724

impugnação do registro de candidatura, perante a Justiça Eleitoral, garantindo, sobretudo, o contraditório e a ampla defesa, bem como o direito conferido de recorrer as instâncias superiores para apresentar documentos e provas. A presença desses culpados “criminosos” no exercício da representação no Brasil no início do século XXI é possível, pois foi nesse período que ocorreu a transformação em regra jurídica do princípio da presunção de inocência até o trânsito em julgado da decisão penal condenatória. Reconhece-se que a democracia recente do país precisa avançar em muitos aspectos, bem mais no plano da efetivação dos direitos do que na garantia destes, já extensamente previstos. A sociedade brasileira ainda lembra dos resquícios de uma longa ditadura militar, inconformada com os recorrentes escândalos dos políticos vem se

articulando

em

decorrência

da

facilidade

dos

meios

de

comunicação. Hoje, esta sociedade organizada e dividida em setores, denominada sociedade civil, aliou a necessidade de obter respostas e a facilidade dos meios de comunicação, visualiza-se assim a mudança dos movimentos sociais, antes nas ruas, em protestos e reuniões, agora com uma nova mobilização, denominada de ativismo on line, com milhares de seguidores, de diferenças classes sociais, cidades e idades, uma nova roupagem para a mobilização está surgindo. Assim, como todo princípio no ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da presunção da inocência não é absoluto, encontra seus limites no princípio da exigência da vida pregressa compatível com a magnitude da representação popular, prevista no art. 14, § 9º, da CF. Assim, a partir da previsão do art. 14, § 9º da Constituição Federal, a vida pregressa do candidato passou a ser, pela Lei Complementar de nº 135/2010, um aspecto de suma relevância, os critérios para se determinar a inelegibilidade são mais rígidos e uma vez decretada a inelegibilidade o prazo de cassação dos direitos políticos é mais severo. Assim, após as leituras e o posicionamento dos autores se pressupõe que 725

a adoção desses critérios que já eram previstos no artigo supracitado e agora estão especificados em Lei Complementar possam punir com mais rigor os que exercem seus mandatos sem ética e não cumprem com seus deveres, enquanto representantes do povo, eleitos para exercer um cargo público em prol da coletividade. O princípio da moralidade é consagrado no texto constitucional, sendo um importante instrumento para prevalecer à legitimidade nas eleições, das escolhas e dos candidatos eleitos. Ainda quanto assunto o autor afirma (PINTO, 2010, p. 243): É fato público e notório, em muitos municípios, que gestores desviam verba acintosamente da merenda escolar, maltratando crianças já desnutridas pela carência absoluta de bens. Apropriam-se de dinheiro da saúde, e estradas, da escola etc. estando seus ilícitos comprovados nas instâncias administrativas e judiciais. Conquistam, ainda assim, mandato eletivo sob o espantoso argumento de que nenhuma condenação pela prática de seus crimes transitou em julgado. Com dinheiro público desviado, que historicamente não devolvem aos cofres públicos, passam a aliciar eleitores carentes que, pela excessiva dependência de tudo, se transformam em presas fáceis, trocando voto por bens materiais, a saber: tijolo, telha, cesta básica, dinheiro em espécie.

Em síntese, o autor expõe o contexto brasileiro, formado por políticos e candidatos com ficha suja, que usam do poder econômico para continuar na política, sendo em tese representantes legítimos do povo, quando na verdade, muitos políticos protegem o seu direito e de uma pequena minoria, esquecem da finalidade de um representante de concretizar o bem comum dos homens na sociedade. A compra e venda de votos está presente em todas as esferas da sociedade, Djalma Pinto (2010), em seu livro, retratou no parágrafo supracitado a realidade dos menos favorecidos, que pela necessidade premente de sobreviver se vendem facilmente, soma-se a isso a baixa cultura política da população e a distância estabelecida entre os governantes e os governados, o autor faz uma denúncia pública do que ocorre durante as eleições, certamente esta não é a primeira e 726

não será a última vez que estudiosos do tema retratam e se posicionam sobre a péssima conduta dos políticos. Com estas palavras o autor não quer afirmar que o eleitor deixa de ter a sua parcela de colaboração para que este sistema de compra e venda de votos se perpetre, quer sim, ressaltar que cabe ao eleitor, escolher entre os candidatos, o que melhor represente, contudo, a situação social desse cidadão o desautoriza, seja pela carência financeira, pela ausência de escolaridade e até mesmo pelo alto nível de

manipulação

realizada

pelos

candidatos

através

de

seus

marketeiros, o mesmo autor sintetiza (PINTO, 2010, p. 244) “a ousadia de criminosos candidatos sepulta a própria normalidade que se exige da disputa eleitoral”. É um desafio moderno ao Direito Constitucional, que não seja apenas a ciência do dever-ser, protegendo sobremaneira o princípio da presunção de inocência, é necessário também que o direito se imponha, pois a realidade apresentada nas eleições exige a aplicação de princípios, mas desde que se observe a ponderação destes, sob pena de tornar uma verdade como absoluta. A Constituição determina expressamente no art. 14, § 9º, que deve ser considerada a “vida pregressa” daquele que se propõe a exercer um mandato eletivo, mas Pinto (2010, p. 245) ressalta que a aplicação desta disposição ainda precisa ser concretizada em muitas realidades, pois “... o fato é que criminosos, com ilícitos documentados, exercem o poder no Brasil”. No debate da aplicação da regra prevista no art. 14, § 9ª da CF, surgem os que não defendem a sua aplicação, argumentando que exigir a análise da vida pregressa do candidato pó ser perigoso, defendem a tese com base no período da Ditadura Militar, mais especificamente no ano de 1964, advertem que por determinação da Lei Complementar nº 5, era necessário apenas uma denúncia ao Ministério Público para que um cidadão se tornasse inelegível.

727

Em contraponto, os que defendem a aplicação da regra, são favoráveis a análise da vida pregressa do candidato, defendem a tese de que modernamente, com a Constituição de 1988, a garantia do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, pôs fim aos resquícios da ditadura, estabelecendo verdadeiramente a democracia no país, permitindo ao cidadão todos os meios de defesa. Como exemplifica (PINTO, 2010, p. 245): O acusado pela prática de crime, que tem seu pedido de registro impugnado perante o Juiz Eleitoral, pode, no curso do processo de impugnação, exercitar a ampla defesa, demonstrando a inconsistência da acusação, a insignificância do fato que lhe é imputado.

O poder político no Brasil não pode se tornar um meio para que “culpados e criminosos” se escondam, caso contrário, será abrigo dos receptadores, homicidas, estelionatários, corruptos, entre outros, nas palavras do autor (PINTO, 2010, p. 247). Com tudo o que foi exposto, considera-se necessária a efetividade da exigência da vida pregressa como requisito de legibilidade para a investidura na representação popular, tal como exigido no art. 14, § 9º da CF. A moralidade é exigida no exercício do mandato eletivo, é um princípio, conforme o art. 14, § 9ª da CF, contudo, na prática este princípio não é observado por muitos governantes que realizam atos danosos aos bens públicos e ainda invocam o princípio da presunção de inocência para se defenderem. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em suma, compreende-se que o Direito, por si só não é capaz de garantir a efetividade de suas normas, segundo Pinto (2010, p. 386), sendo interessante reafirmar que a moral não se confunde com o Direito, como foi bem exposto nos parágrafos anteriores, mas, a moral tem um papel de relevância, pois em uma sociedade cujas práticas 728

não sejam orientadas pela moral, a efetividade do Direito estará limitada. A moral é um alicerce para o Direito. No Brasil nós termos as normas e os princípios, o que precisa ser urgentemente vivenciado é a moral, para que os que desrespeitam as regras sejam punidos com mais rigor, no âmbito judicial e também no âmbito moral. A Lei Complementar nº 135/2010, denominada Lei da Ficha Limpa, como bem decidiu o supremo Tribunal Federal, é constitucional e válida nas Eleições de 2012, vem para modificar as regras, tornando mais rígida a punição do candidato que tem a vida pregressa marcada por crimes, sujeira e corrupção. É acima de tudo, um importante instrumento para os eleitores decidirem e votarem em candidatos que comprovem perante a Justiça Eleitoral que são “ficha limpa”. A Lei da Ficha Limpa é uma vitória para a consolidação da democracia brasileira. Assim sendo, a Lei da Ficha Limpa, ressalta em seu texto legal muitas inovações e marca a sociedade brasileira por ter sido um projeto de iniciativa popular e ressalta sobretudo, os anseios dos cidadãos em banir da vida política os políticos/candidatos corruptos e criminosos que tentam se esconder nos parlamentos, nas casas legislativas, no Congresso Nacional. Conclui-se que após a Lei Complementar nº 135/2010, a vida pregressa do candidato, é um importante requisito, primeiro a ser analisado pelo eleitor que escolhe o candidato como o seu representante; segundo, após a aprovação da Lei da Ficha Limpa, sendo um fator a ser analisado no registro da candidatura. A legislação eleitoral tem apresentado um importante avanço, bem mais do que o avanço na legislação, a consciência política do eleitor é o fator determinante nas eleições.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

729

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730

UMA IMAGEM VALE MAIS DO QUE MIL COLIGAÇÕES: A REPERCUSSÃO DA FOTOGRAFIA DE LULA, HADDAD E MALUF NO COLUNISMO POLÍTICO DA IMPRENSA ESCRITA Emanuel Freitas da Silva

237

Resumo: O presente texto apresenta uma análise acerca da cobertura da imprensa escrita, por meio de colunistas políticos, da aliança eleitoral entre o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Progressista (PP) na disputa pela prefeitura de São Paulo, com ênfase na repercussão do fato que selou tal aliança: a fotografia de Lula com Paulo Maluf e o candidato petista, Fernando Haddad. Compreendendo as infiltrações do campo jornalístico, que elabora narrativas e comentários como “modos legítimos de exprimir a opinião pública”, no campo político. Cada vez mais o acesso ao universo da política configura-se como algo a ser realizado pela imprensa e por seus enquadramentos, passando ela de uma instância de informação para uma instância de “revelação”, de “formação da opinião”.

Palavras-chave: imprensa; eleições; enquadramentos.

Fonte: Jornal O Globo

1. INTRODUÇÃO O mundo contemporâneo é constituído e configurado, em grande medida, pelas intervenções da mídia, sobretudo o universo da política. Por meio dos noticiários é que as informações e os fatos são apresentados para que, ao menos em tese, o cidadão se posicione. O contato cotidiano com a mídia, e com os elementos da política 237

Graduação em Ciências Sociais (UECE), Mestre em Ciências Sociais (UFRN). Professor Assistente (UFERSA). [email protected].

731

expressos por meio dela, transformam-lhe num importante gestor da realidade que nos cerca, tal como ela nos é apresentada e simbolizada. Em se tratando das formas como a mídia interfere e simboliza as práticas e os atores do campo político, podemos assinalar, de acordo com MIGUEL & BIROLI (2010), quatro dimensões principais das formas como a mídia se faz presente e modificadora das práticas políticas: a mídia tornou-se o “principal instrumento de contato” do cidadão com os políticos; transformou e adaptou o “discurso político” aos padrões publicitários; produz uma “agenda política”, dando as regras do jogo político e determinando o que é “politicamente” pensável; e gerou, entre os políticos, uma competição pela “visibilidade” nos meios de comunicação. Nesse sentido, passa a ser “político” aquilo que como tal é reconhecido pela mídia. Assim sendo, a configuração atual da relação mídia-política apresenta-nos um campo político cujo acesso “é controlado quase completamente pelos jornalistas” (BOURDIEU, 2010, p.211), ao definirem o que é ou não politicamente pensável ou justificável, uma vez que “há uma ideologia profissional do jornalismo segundo a qual os jornalistas proporcionam verdade, informação e crítica” (IDEM, op.cit., p.12). A análise sociológico, contudo, permite-nos uma outra compreensão, um desvelamento dessa ideologia – e é esse nosso intuito no espaço desse texto- dessa crença: exercendo sua influência e determinação no campo político, sob as vestimentas da imparcialidade e da narração da “verdade factual”, os jornalistas “contribuem para a manutenção da fronteira, da censura” dos cidadãos aos universo político, “excluindo as maneiras não conformes á ortodoxia”, às formas tidas como legítimas de expressão política. Logo, ao encetar ações que visam exprimir e mobilizar a “verdadeira” opinião pública, a imprensa desautoriza as vozes dissonantes ao seu léxico. O mundo verdadeiro passa a ser, e a somente ser, aquele expresso por ela.

732

Por profissão, os jornalistas tornar-se-ão influentes “líderes de opinião”: exprimem sua opinião que pensam ser também a opinião de seus leitores e essa opinião pré-ajustada ao público, lida pelos leitores e, por consequência, um importante componente do que é percebido como “opinião pública”. (CHAMPAGNE, 1996, p. 71).

Nesse sentido, apresentamos aqui parte de um estudo mais amplo que realizamos sobre a relação entre mídia e política, com ênfase no colunismo político da imprensa nacional escrita. Para isso, selecionamos blogueiros e colunistas de importantes veículos de comunicação social (O Globo, Folha de São Paulo, O Estadão, Época, Veja, IstoÉ dentre outros) e analisamos suas mobilizações para exprimir a “legítima” opinião pública, através de seus textos, a partir do ato que selou a aliança eleitoral em São Paulo, ou seja, a divulgação da fotografia acima referida. Isso por meio de enquadramentos que não somente comentaram o fato mas, principalmente, utilizaram-no para desacreditar

a

política

partidária

e,

sobretudo,

o

Partido

dos

Trabalhadores.

2. OS MECANISMOS “LEGÍTIMOS” DE EXPRESSÃO DA OPINIÃO PÚBLICA Compreendemos que a opinião pública constrói-se por meio de afetos

e

sentimentos

que

são

racionalmente

mobilizados,

generalizando-se e compartilhando-se entre um grande número de indivíduos. Logo, é ela uma construção que oscila entre uma opinião coletiva e uma opinião relativa. Ao mobilizar sua tomada de posição como uma “opinião pública”, a mídia visa organizar a vida social em torno de si, engajando-se na defesa e no esclarecimento de suas ideias, com o intuito de obter a adesão social bem mais do que simplesmente exprimir seu ponto de vista. Mas, o fazer jornalístico engloba alguém que informa, algo que é informado, a forma pela qual se é informado e os procedimentos e intenções de tal informação. De tal modo que podemos afirmar que o que é apresentado cotidianamente ao público é uma seleção e uma construção de notícias tidas pelos órgãos de 733

imprensa como as mais relevantes, impondo-se tais noticias, e suas formas de expressão, como as verdadeiras. Mas,

Uma vez selecionados os fatos, é preciso hierarquizá-los, descrevê-los, contá-los e explicá-los. Ao problema precedente da seleção dos acontecimentos, associa-se agora o de sua encenação, pois a instância de informação é submissa à lei implacável da captação: é preciso seduzir o público. (CHARAUDEAU, 2006, p. 283).

Para apresentar os fatos selecionados, a mídia opera narrativas que descrevem, comentam e colocam tais fatos em debate, mas sempre nos moldes e com o vocabulário por ela escolhido, reduzindo assim os fatos aos esquemas de explicação por ela estereotipados com aparência de verdade evidente. É o que o autor nomeia como “espetáculo retórico”. A informação é essencialmente uma questão de linguagem, e a linguagem não é transparente ao mundo, ela apresenta sua própria opacidade através da qual constrói uma visão, um sentido particular do mundo. Isso feito, tem-se a construção de uma “público sem opinião”, uma vez que a opinião legítima restringe-se àquela expressa pelo órgão de imprensa. Um outro problema a se considerar é que, ao ser a única instância legítima de expressão dessa opinião, a mídia tende a fazer de seu espaço informativo um lugar onde se “levanta a ponta do véu”, onde se revela o que está oculto e que ela sabe e tem elementos para revelar, para desvelar. Todos esses procedimentos mostram que desde certo tempo o discurso midiático te,-se permitido alguns deslizes: do “veja o que se passa” para o ‘eis o escândalo do mundo”, do “reflita sobre o que é preciso pensar” para o “eis o que é preciso pensar” (...) o dizer das mídias deixou o que deveria ser um discurso da constatação, da informação, do testemunho (o jornalista permanecendo de fora0 e passou a ser uma denúncia generalizada (o jornalista se envolvendo em dizê-lo). (IDEM, op. cit, p.. 294, grifo do autor).

Para o autor, esses deslizes do discurso midiático devem-se a dois fatores: primeiro, a crença de que o jornalista é apenas uma

734

testemunha que reporta o leitor a algo que, de fato, aconteceu, é real, não fazendo ele nada mais do que ‘retratar a realidade”; segundo, a crença de que o jornalista tem uma missão de elucidar, de revelar o que está por trás da ação política. Patrick Champagne também compartilha da mesma ideia ao considerar que [...] a opinião pública é uma ideologia profissional. É a opinião manifestada a respeito da política por grupos sociais restritos cuja profissão é produzir opiniões e que procuram entrar no jogo político modificando-o e transfigurando suas opiniões de elites letradas em opinião universal, intemporal e anônima com valor na política. (CHAMPAGNE, op. cit., p. 48).

A ideologia do “mostrar a qualquer preço”, do “tornar visível o que é invisível” e do “selecionar o que é o mais surpreendente” faz com que se construa uma imagem fragmentada do mundo político, uma visão adequada aos objetivos da mídia, que se comporta como um “espelho deformante” da realidade (IDEM, 2008, p.20). Assim é que na mídia as aparências são apresentadas como informação objetiva, verdade factual, denúncia do mal ou explicação dos fatos. Tal comportamento, pautado pela “missão” e pela “revelação da verdade” faz com que [...] o informador não explicite seu engajamento, a informação é dada como evidente, sem contestação possível. Essa posição de apagamento do sujeito e de aparente neutralidade do engajamento produz efeito de objetivação e de autenticação. O sujeito que fala traz uma informação como se a verdade não pertencesse a ele e só dependesse de si mesma. (IDEM, op.cit., p.54).

Para explicitar-se, o informador midiático necessita de um canal – a televisão, o rádio, o jornal impresso e internet – e de um gênero. Uma vez que vamos tratar aqui de textos de colunistas, faremos menção à imprensa escrita e

o gênero que lhe é próprio. Sabemos que ao

considerarmos a imprensa escrita estamos em um campo em que a atividade discursiva transcorre numa troca comunicativa que é “monolocutiva”, no sentido de que é o jornal quem fala para que um 735

outro – o leitor - leia o que ali está. Isso faz com que a exigência de inteligibilidade, na imprensa escrita, seja mais elevada. Sendo uma atividade discursiva, há a necessidade de se relatar o que aconteceu (notícia/reportagem),

comentá-lo

(editorial)

ou

provocar

um

acontecimento (debate). Assim, “o editorialista e o cronista político têm a liberdade de expressar um ponto de vista partidário”, mas sempre de uma maneira muito bem argumentada e elucidativa, uma vez que seu ponto de vista “implica o engajamento de toda a redação do jornal” (IDEM, op.cit., p. 235). No exercício cotidiano da profissão, os jornalistas apresentam-nos uma realidade por meio de “enquadramentos”, ou seja, selecionando alguns aspectos da realidade percebida e dando a eles um destaque maior no texto, gerando interpretação, avaliação moral etc. Logo, enquadrar significar colocar a realidade em uma certa moldura, numa única moldura pela qual ela deve ser compreendida. Veremos, mais adiante, que enquadramentos foram selecionados pelos jornalistas no objeto em questão aqui nesse texto. 3-A COBERTURA DA IMPRENSA ESCRITA NA ELEIÇÃO DE SÃO PAULO: QUANDO UMA IMAGEM VALE MAIS DO QUE “MIL COLIGAÇÕES” Nesse

tópico

vamos

apresentar

nossa

compreensão

da

cobertura, análise e mobilização da opinião pública por meio da imprensa escrita no enquadramento da aliança eleitoral entre o PT e o PP, na eleição municipal de São Paulo. Antes, porém, urge tecer algumas considerações contextuais. 3.1- O malufismo e a política brasileira Paulo Maluf começou sua carreira política alinhado aos militares que tomaram o poder em 1964, sendo por eles nomeado prefeito de São Paulo em 1969 e secretário estadual de transportes em 1971. Tentou 736

suceder João Figueiredo em 1984 derrotando a emenda pelas “diretas, já”, rachou o PDS e lançou-se candidato a Presidente da República, passando a personificar, a partir de então, a continuidade de um regime político desgastado e rejeitado pela maior parte da população. Perdeu 4 eleições de 1986 a 1990, mas manteve um eleitorado fiel na capital de São Paulo, onde foi eleito prefeito em 1992 e elegeu Celso Pitta em 1996. Em 1998 foi novamente derrotado ao governo estadual e em 2000 volta a disputar a prefeita da capital, mas é derrotado pela petista Marta Suplicy, que recebera o apoio do governador Mario Covas (PSDB), exatamente quem o havia derrotado em 1998. Em 2006 é eleito deputado federal e reeleito em 2010. Disputou a prefeitura de São Paulo em 2008, mas amealhou a quarta posição. Mas, o que seria o malufismo? O malufismo “é uma corrente política conservadora, muito influente em vários meios, cuja base social é formada por pessoas de ‘classe

média’”

(PULS,

2000,

p.9).

Seus

seguidores

sentem-se

ameaçados por “delinquentes, homossexuais, migrantes nordestinos, mulheres liberadas” e exigem do Estado, sobretudo, “a ordem”. É importante ressaltar que o revigoramento do malufismo, em São Paulo, deveu-se ao fato de o crescimento do PT, e da consequente emergência de questões ligadas à classe trabalhadora, gerar uma reação conservadora das camadas sociais mais refratárias ao petismo.

3.2- A imprensa e o Partido dos Trabalhadores: uma conflituosa relação Nosso sistema midiático configurou-se historicamente como politicamente conservador. Isso deve-se, em parte, ao fato de os principais veículos de informação estarem concentrados nas mãos de poucas famílias que detêm a propriedade cruzada dos principais veículos impressos (jornais e revistas) e eletrônicos (rádio e televisão) e 737

digitais (portais). Com isso, a tradição que temos é a de um desenvolvimento arraigado do jornalismo opinativo, fazendo com que o jornalismo mantenha uma forte ênfase na opinião expressa por meio de editoriais e colunas assinadas. Uma hegemonia de jornalistas e articulistas que identificam-se com os valores políticos do centro/direita e com sua agenda política. Nos momentos eleitorais, assim, em que se firmam polarizações evidentes, a tensão entre informação e opinião (enquadramentos) torna-se mais clara, o que leva os veículos de comunicação a manifestarem, velada ou desveladamente, suas preferências eleitorais. Mas, como localizar, nesse cenário de jornalismo opinativo, a situação do PT? Em face dessa configuração do campo jornalístico, a entrada em cena no campo político de um partido de esquerda e de massas como o PT, que em poucos anos de vida se tornou competitivo na arena eleitoral como nenhum outro partido de esquerda no Brasil e polarizou o confronto eleitoral com as forças de centro-direita desde a primeira eleição presidencial direta após a redemocratização do país, desafiou a retórica de independência e apartidarismo de nossa mídia. (AZEVEDO, 2009, p.221).

O autor apresenta-nos uma trajetória política do PT na mídia a partir de três períodos historicamente definidos: a 1ª fase, de 1980-1994, corresponderia a uma cobertura midiática que enquadraria o partido como “socialista”, “radical” e “irresponsável”; a 2ª fase, de 1995-2005, caracterizaria o partido como “socialdemocrata”, “integrado ao sistema”, mas com um “passado que inspira desconfiança”, sempre latente e pronto para manifestar-se; e a 3ª fase, que nos interessa diretamente, apresenta um partido

“clientelista”, “corrupto” e

“integrado a pior parte do sistema”, “igual” ou “pior aos demais”, uma vez ter construído sua história “contra o que havia no sistema”.

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3.3- A análise do material: como enquadrar o enquadramento midiático?

Para a melhor compreensão de nossa análise, operamos um recorte de textos publicados entre 19/06/2012 e 29/07/2012, dividindo-os em duas categorias: Jornalistas políticos: *Josias de Souza: foram selecionados seis textos em seu blog, localizado na página do Jornal Folha de São Paulo. Em “foto que irritou Erundina foi exigência de Maluf”, além de ressaltar o pragmatismo eleitoral do PT, o desejo de Lula em que a foto não fosse publicizada e também sugere um oportunismo de Luiza Erundina: Defronte da casa do ex-inimigo, sob a luz do sol, o aperto de mãos de Lula e Maluf uniu dois velhos guerreiros num armistício firmado sob o signo da conveniência eleitoral.Como queria Maluf, deu-se publicidade a um acordo que o petismo preferia selar à sombra. Consultado, Lula recomendou à assessoria que não veiculasse a imagem no seu site oficial. Para o Instituto Lula, foi como se o encontro não tivesse existido. À sua maneira, o dono do espaço informou à audiência que cedera aos caprichos de Maluf a contragosto. [...]Lula e os operadores da campanha de Haddad enxergaram na explosão da ex-vice um quê de “oportunismo”. Argumentam que, ao incorporar-se à chapa, na sexta-feira (15), Erundina já sabia que a brincadeira incluiria Maluf. Na entrevista coletiva, as perguntas rodopiaram em torno do personagem. Em privado, Erundina responde à inquietação com uma interrogação: precisava tirar as fotos?

Em “guia básico de sobrevivência na selva eleitoral”, o jornalista fala de “coligação” como uma “quadrilha de partidos políticos” e uma “união que faz a farsa”, fazendo com que “quanto maior o bando, maior o arsenal eletrônico”. O PT apresenta-se como “o pudor que abandonou a história pra cair na vida” e Paulo Maluf como “neo-amigo do rei, descobriu-se na Pasárgada que sempre sonhou”. Por sua vez, em “Maluf e o PT: ‘Casamento tem que ser na igreja’”, Josias refere-se à aliança como um “patrimônio”, uma “comunhão total de maus”, e que a foto agora “revelava” os segredos até então escondidos. No texto “Lulocentrismo malufista custou 62% de rejeição”, Josias analisa a 739

divulgação de uma pesquisa de intenção de voto em São Paulo, após a divulgação da foto e conclui: Lula, por genial, não farejou o erro ao posar para fotos ao lado de Maluf. Sorriu para o erro, apertou a mão do erro, empurrou o erro para perto do pupilo Haddad e fechou um acordo eleitoral com o erro. [...] Muitos partidos sofrem de falta de miolos. O PT vive o mesmo drama, mas com uma cabeça só. Por um minuto e pouco de tempo de tevê, o gênio é capaz de entregar a alma ao erro com uma fluorescente aura de genialidade.

Uma certa intenção de afastar a decisão de Lula em fechar a aliança com o PP e de culpabilizá-lo por um eventual esvaziamento na campanha de Haddad são percebidas com os textos “com ‘urticária’ de Maluf, Marta foge de Haddad” e “o duplo não de Marta”. No primeiro, ao noticiar a visita de Marta à Assembleia Legislativa de São Paulo, Josias anota que, ao ser questinada sobre a aliança PT-PP, Marta

Tapou o nariz e protegeu a pele que os cosméticos ajudam a preservar: “Só posso responder por mim. Temos em São Paulo um grupo de pessoas que apoia o Maluf e outras que têm urticária ao ouvir o nome dele.” Mais preocupado com tempo de tevê do que com a urticária da incoerência, o petismo de São Paulo aboliu do seu cardápio o ponto de exclamação. Se Lula lhes serve ensopadinho de pepino com escorpião, os petês engolem gostosamente. Excluída da mesa aos empurrões, Marta faz cara de nojo.

No segundo texto, o autor intenta colocar as ações de lula em lado oposto às “faxinas” éticas feitas por Dilma, abrigando na aliança partidos que a presidente havia “punido” com a exclusão do grupo ministerial. Assim, a “a opção Lula seria mais palatável ao sistema político”, todo ele entregue ao pragmatismo. *Ricardo Noblat: selecionamos um texto em seu blog, localizado na página das Organizações Globo. Em “Maluf venceu!”, Noblat utilizase da ironia para desqualificar a aliança eleitoral selada pela foto e também para “desmistificar” Lula e o PT: Para Maluf, que o exigiu, o gesto foi uma espécie de “mea culpa” dos políticos que sempre fingiram abominá-lo. Em 1985,

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nos estertores da ditadura militar, Maluf encarnou o mal a ser esmagado. [...]Quem mudou de verdade?Os políticos. Esses malufaram em grande estilo.Maluf segue na dele. Está onde sempre esteve. Pensa como pensava. Vale-se das mesmas práticas que lhe asseguraram mandatos.Em resumo: venceu o padrão de política que ninguém melhor do que ele representou tão bem nos anos 80. [...]

*Dora Kramer: selecionamos três textos publicados nos blogs das Organizações Globo e na página do Jornal O Estado de São Paulo. Em “Erundina: Lula deve ter percebido o fora que deu”, Kramer salienta o fato de Luiza Erundina estar, no momento, marcando presença na imprensa para comentar “timtim por timtim” sua desistência de concorrer como vice de Haddad como a

coisa mais “chata”

acontecida ao PT. Além disso, a jornalista enfatiza o fato de Lula de ter “passado todos os limites” e “sacrificado uma história de princípios e de lutas” em nome de um tempo de televisão. Em “mítica do articulador”, a jornalista utiliza todo o corpo do texto para mostrar o “erro” das análises que dão conta da aliança entre PT e PP (na verdade, entre Lula e Maluf) como um “ato político imperfeito” de Lula, quando na verdade a vida dele seria uma série sucedânea de erros: Falta, nessas análises, um exame mais acurado do ambiente político como um todo e do histórico de ações de Lula.Se olharmos direito, não é de hoje que age assim - fez e disse barbaridades enquanto estava na Presidência - nem é o único a atuar de costas para o contraditório como se qualquer ação estivesse a salvo de reações. [...]Lula não é o espetacular articulador que se imagina. Apenas tinha, e agora não tem mais, todos os instrumentos de poder nas mãos, os quais utilizou com ausência total de escrúpulos. Quem age ao arrepio das regras ganha sempre de quem é obrigado a segui-las.

“Maluf tá podendo muito” é um outro texto assinado por Kramer. Nele, Maluf é referenciado como “Dr. Paulo”, alguém capaz de “constranger” Lula e Haddad a fotografarem com ele e a tornarem-se, a partir de então, “o vale-tudo na política”. A conclusão do artigo insere-se como um descrédito geral da política partidária: Maluf não vem sendo cortejado apenas por petistas. Em Minas Gerais, o senador Aécio Neves, que já se move como

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presidenciável, estuda eleger como seu candidato ao Palácio da Liberdade em 2014 o vice-governador Alberto Pinto Coelho, que é também do PP – o atual governador, Antonio Anastasia, não tem direito à reeleição.E até mesmo os comunistas do PC do B têm feito alianças com o PP. [...] Foi reabilitado por Lula e, cada vez mais, tem sido chamado como convidado de honra para os grandes acertos da política. E se tudo isso não bastasse, ele também levou a poderosa Secretaria Nacional de Saneamento do governo Dilma.Resumindo: Maluf tá podendo. E muito.

*Merval Pereira: publicou no período dois textos nos blogs e nos das Organizações Globo. O texto “a foto de Lula com Maluf” apresenta a análise de uma “foto que chocou o país” e que demonstra a “infalibilidade de Lula”. A aliança é compreendida como uma “obsessão” para “ampliar o poder político de Lula” e não para vencer a eleição. Por isso mesmo, Merval defende a ideia de que foto demonstra a “decadência política de Lula”, que teria sido entregue à “crueldade” de Maluf, ao exigir o registro do momento por meio da imagem. Assim, a derrota política e o ocaso de Lula poderiam ser atestados, segundo o autor, por duas “rasteiras”: a saída de Luiza Erundina e o soerguimento político de Maluf. Além disso, A foto de Lula confraternizando com Maluf tem mais um aspecto terrível para a biografia do ex-presidente: ela explicita uma maneira de fazer política que não tem barreiras morais e contagiou toda a política partidária, deteriorando o que já era podre.As alianças políticas entre Lula, José Sarney, Fernando Collor e Maluf colocam no mesmo barco políticos que já estiveram em posições antagônicas fazendo a História do Brasil, e hoje fazem uma farsa histórica.

O outro texto por nós selecionado é “o mito e os fatos”. Analisando a divulgação de pesquisa de intenção de voto em São Paulo, em que Haddad teria caído dois pontos percentuais, Merval chama a atenção para o “peso político” da queda, uma vez que a pesquisa havia sido realizada logo após a divulgação das imagens. Esperavam os petistas que, depois do episódio Maluf, o candidato de Lula atingisse os dois dígitos nas pesquisas, evidenciando a correção da manobra política de seu mentor. Lula reagiu aos críticos ao afirmar que não tinha arrependimento nenhum pela foto. E Maluf fez sua análise particular: Erundina deixara a chapa por ciúmes de seu

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protagonismo, e, diante de Lula no governo, ele, Maluf, considera-se “de esquerda”.O que parece divertir Maluf, e não é para menos, configura-se um problema político de envergadura para o PT paulistano.[...] O diretor do Datafolha, Mauro Paulino, considera que a rejeição ao apoio de Maluf ao PT pode ser determinante na eleição, o que indicaria que não se trata de um efeito passageiro. Nesse caso, Erundina estaria certa quando comentou que 1min e 30s de propaganda eleitoral não justificam fazer uma aliança que renega uma vida inteira. Aparentemente, esse tempo extra que o PT obteve aderindo a Maluf não será suficiente para reduzir o desgaste provocado pelo acordo, considerado espúrio pela larga maioria do eleitorado paulistano e petista

*Guilherme Fiúza: publicou um texto na Revista Época, “Lula e Maluf, por que não?”. A ideia central do texto é desmistificar a publicação da foto como um “divisor de águas” da política brasileira ou mesmo como “uma concessão muito grave”. Tomando partido, utilizando seu espaço na revista para posicionar-se e mobilizar a opinião, Fiuza acaba por concluir que o problema maior não é o PT dobrar-se a Maluf, mas Maluf aceitar o apoio do PT e do “chefe” de quadrilha por Lula representado: [...] no momento em que a Justiça se prepara para julgar o mensalão, maior escândalo de corrupção já visto na República, protagonizado por todos os homens do presidente Lula, o Brasil resolve se escandalizar porque o chefe supremo dos mensaleiros tirou uma foto com Paulo Maluf. É sempre triste deixar a inocência para trás, mas vamos lá. Coragem. Em todo o seu vasto e conhecido currículo, Maluf jamais chegou perto de engendrar um golpe dessa dimensão: o uso do poder central para fazer uma ligação direta dos cofres públicos com a tesouraria do partido do presidente. O malufismo nunca sonhou com um valerioduto. Como se vê, o Brasil, esse distraído, precisa atualizar a legenda do famoso encontro: se quiser continuar dizendo que ali está a esquerda sujando as mãos com a direita, vai ter que inverter a foto. E para concluir o jogo dos sete erros: qual dos dois usou crachá de coitado para vampirizar o Estado? Roubar a boa fé dá quantos anos de cadeia?

*Editorial: Jornal O Globo, “Nada a estranhar em PT+Maluf”. O editorial, antes de tudo, mostra a importância de se guardar, “de forma cuidadosa nos arquivos”, a foto com Lula, Haddad e Maluf. A foto, mais do que o desmascaramento do

“lulopetismo”, representaria

a

“coreografia dos tempos atuais”. Apesar disso, o texto sugere que os 743

problemas de alianças e acordos pragmáticos são obra dos oito anos de governo do PT, conforme o que se percebe no seguinte trecho: Abraçado com o político cujo sobrenome foi transformado em verbo pejorativo e consta de lista mundial de procurados da Interpol, Lula apenas repete alianças de teor idêntico a de tantas outras seladas em oito anos de governo. Não há cacique da velha e baixa política que não tenha sido acolhido na ampla e eclética base parlamentar de Lula.

Nesse sentido é que, segundo o editorial, teria sido instituída de “a norma cara a certa esquerda” que tudo justificaria em nome do poder, servindo como “a compra de apoio parlamentar via mensalão” e “de resto toda a sustentação político-parlamentar de Lula e Dilma”. A foto divulgada, assim como a aliança eleitoral por ela selada, seria “o retrato de um sistema partidário corrompido, no qual de nada vale programa de governo, apenas a capacidade de se obter favores junto aos cofres públicos”.

Colunistas de outras áreas:

*Eliane Brun: publicou o texto “quem está com Lula e Maluf na foto (além de Haddad)?”, na Revista Época. Em forma de um memória de sua infância, a autora vai apresentando os fatos com surpresa e incredulidade: A menina de 7 anos assiste a desenho animado na TV, no quarto dos pais, em sua casa na zona sul de São Paulo. A mãe, tentando aparentar tranquilidade, aparece na porta e diz: “Filha, tem um titio que veio roubar nossas coisas. Mas fica quietinha, que ele não vai fazer nada. Só vai roubar as coisas e depois vai embora”. Pega a menina pela mão e a leva ao corredor. Quando vê o ladrão, um rapaz com uma arma na mão, a menina pergunta: - Mãe, esse que é o Maluf? Até o ladrão riu. A história é verídica. Aconteceu em 1988, nos primeiros anos da redemocratização do Brasil, uma época ultrapassada em que “malufar” era sinônimo de “roubar”. A menina, uma amiga, é hoje uma mulher e tornou-se jornalista. Ao ver a foto de Lula apertando a mão de Maluf, olhei “pelo retrovisor” e lembrei

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desse episódio. [...] Em busca de um minuto e meio a mais na TV, Lula teria esquecido do que o levou a aceitar o inaceitável: o poder da imagem. Ou, em busca de ampliar o poder da imagem, Lula esqueceu-se do poder da imagem. Esqueceu-se daquilo que Maluf lembrou e por isso exigiu, em troca do apoio do PP à candidatura de Haddad: “A foto faz parte do pacote”. A imagem, quando substitui a realidade ou se torna toda a realidade, pode nos cegar. Por isso, quero aqui apenas rememorar o que vemos nesta foto – e o que não vemos. O que vemos é Lula e Maluf – Haddad entre eles, mas sem importar muito (e isso é importante, já que Haddad não importa muito porque é o “novo” sem história). O que vemos é Lula apertar a mão de quem no passado havia chamado de “o símbolo da pouca-vergonha nacional”. E Maluf apertar a mão de quem no passado havia chamado de “ave de rapina”. O que vemos é Lula, que no passado representou a possibilidade de ética na política, apertar a mão de quem no passado – e também hoje, mas agora embaralhado com muitos outros – representou a corrupção na política. O que vemos é Lula, que até alguns anos atrás encarnava um novo jeito de fazer política, consolidando mais uma aliança com o velho jeito de fazer política.

A importância da foto é atestada pela autora como algo inscrito na “realpolitik”, mas nos termos de uma “degradação” da política e não como um seu movimento real, atestando inclusive a conivência de Erundina, o que desacreditaria sua postura de retirar-se da chapa como vice: Nesta imagem histórica, é quem não estava na foto que nos revela o quanto nos deixamos cegar tanto pelo que vemos – quanto pelo que não vemos. É Luiza Erundina, que agora desponta como aquela que disse: “Não aceito” [...] No momento em que a imagem de Lula apertando a mão de Maluf foi imortalizada com um clique, Luiza Erundina estava lá naquela foto. Não estava, mas estava, porque havia aceitado a aliança com o PP de Maluf.

A conclusão do texto é um chamamento mobilizador: E nós? Nós precisamos enxergar além do que nos é dado para ver – e enxergar mesmo quando não há imagem. Ou tudo será permitido desde que ninguém veja, tudo continuará valendo a pena por um minuto e meio a mais de TV. O quanto realmente enxergamos o que estava – e o que não estava – na foto histórica só saberemos mais adiante. [...] Revoltemo-nos. Mas sem esquecer que também estamos naquela foto. Sem eleitores como nós, ela não seria possível.

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*Ruth de Aquino: colunista de “assuntos polêmicos” da revista Época. Seu texto “o fiasco do Lula+90”, merece ser reproduzido na íntegra em alguns trechos: O que se faz por 90 segundos na televisão? Chamam de propaganda gratuita, mas já saiu caro o minuto e meio que Lula ganhou na telinha, em sua luta pragmática pelo poder em São Paulo. O preço alto nada tem a ver com a aliança explícita entre o PT e o PP, mas com a figura do aliado. Haddad o Novo apareceu com sua carinha de lebre entre duas raposas, Lula e Maluf. Saiu amassado da história.

Após essa introdução, Brum procede com um histórico de “farpas políticas’ trocadas por Lula e Maluf, elencadas com o objetivo de demonstrar a quebra de ideais ali operada. A imagem e sua divulgação é analisada em pormenores, num claro intuito de fazer o leitor tomar conhecimento dos “reais movimentos” políticos até então desconhecidos do grande público: A operação abafa foi intensa. O ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria-Geral da Presidência, afirmou que houve apenas “uma troca de cargos” no acordo com o PP de Maluf. “Não houve dinheiro”, disse Carvalho. Ah, bom. O esclarecimento se faz necessário diante do personagem. Por um minuto e meio na TV, Lula esqueceu o homem novo e se aliou ao ferro-velho de Maluf [...] Uma promiscuidade de fazer inveja ao Bataclan da Ilhéus de Nacib e Gabriela. Lula prometeu a Maluf mais do que Serra. Prometeu um cargo no Ministério das Cidades. [...] É vergonhoso que, mesmo fora da Presidência e convalescendo de um câncer agressivo, Lula continue a rasgar todas as bandeiras éticas de um partido que chegou a ser visto como a esperança para renovar a política no Brasil. [...] Maluf diz que Lula não impôs restrição a que ele apareça na propaganda de TV: “O tempo é meu e sou proibido de aparecer?”. Faz sentido. Haddad já chama malufistas de “companheiros”. E assim o PT faz mesuras e ouve calado as lições de Maluf: “Não tem mais no mundo esquerda e direita. O que tem hoje é ‘efficacité’ (eficácia em francês)”. Argh. Se a Rio+20 pecou por falta de ambição, o Lula+90 peca por excesso. A foto já histórica dessa aliança simboliza a política do ferro-velho. Ela polui e contamina mais o ambiente no Brasil do que muitos esgotos a céu aberto. Saneamento já.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZEVEDO, Fernando. O PT, a imprensa e as coberturas das eleições presidenciais (1989-2006) In: VILLA, Marco Antonio (org). O Partido dos 746

Trabalhadores e a política brasileira (1980-2006) uma história revisitada. São Carlos: EdUFSCAR, 2009. BOURDIEU, Pierre. O campo político. Revista Brasileira de Ciência Política. v..5, pp. 193-216, 2010. CHAMPAGNE, Patrick. Formar a opinião: o novo jogo político. Trad: Guilherme João de Freitas. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996. CHARAUDEAU, Patrick. O discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2008. _______________. O discurso político. São Paulo: Contexto, 2006. MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia (orgs). Mídia, representação e democracia. São Paulo: HUCITEC, 2010. PULS, Mauricio. O malufismo. São Paulo: Publifolha, 2000 (coleção Folha explica).

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UM OLHAR SOBRE O DISPOSITIVO: A MÍDIA IMPRESSA

Bruno César Brito Viana238 Maria Érica de Oliveira Lima (Orientadora)239

Resumo: A necessidade de se fazer circular informações em uma dada sociedade sempre existiu, sendo intensificada com os desenvolvimentos políticos, econômicos e sociais. Assim, a mídia impressa surge desenvolvendo um papel fundamental, aliando a produção e difusão de informações, por meio de uma atividade especializada. Nesse contexto, o Jornalismo e a notícia surgem compartilhando uma trajetória de desenvolvimento em comum com a imprensa. O presente artigo tem o intuito de promover uma breve reflexão, teórico-conceitual, sobre a mídia impressa, enquanto dispositivo, abordando ainda a notícia e o processo de mediação. A metodologia utilizada é a da Pesquisa Bibliográfica.

Palavras-Chave: Dispositivo, Jornalismo, Mídia Impressa; Notícia.

INTRODUÇÃO

A mídia impressa surgiu ocupando um papel de fundamental importância: propiciar a difusão de informações e a especialização da tarefa de informar, por meio da escrita. Nessa perspectiva, o jornalismo ocupa papel central e, conseqüentemente, a notícia como seu principal produto. A relação entre a mídia impressa e jornalismo é bastante estreita, compartilhando uma trajetória de desenvolvimento 238

Graduado em Comunicação Social/Jornalismo, Mestre em Estudos da Mídia (PPGEM/UFRN). Professor do Departamento de Comunicação Social (UFRN). Integrante do Grupo de Pesquisa Pragmática da Comunicação e da Mídia: teorias, linguagens, indústrias culturais e cidadania (PRAGMA/UFRN). [email protected]. 239 Graduada em Comunicação Social/Jornalismo (PUC-Campinas), Mestra em Comunicação (UMESP) e Doutora em Comunicação Social (UMESP) com Sandwich na Universidade Fernando Pessoa (UFP), Porto, como bolseira do Programa AlBan. Visiting Scholar and Visiting Researcher The University of Texas at Austin, pelo Teresa Lozano Long Institute Latin America Studies. Professora Adjunta (UFRN), Professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia (UFRN). [email protected].

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em comum. Embora os modos de produção e até difusão da informação, por meio da imprensa, possam ter se modificado, o jornalismo continua a seguir sua essência: definindo-se pela produção de informação factual, por meio de um fazer específico que é realizado pelos jornalistas. Para Braga (2002), as pesquisas no campo da comunicação devem ser realizadas por meio de suas práticas, além de investigar, entre outras questões, os meios de comunicação de massa. O autor esclarece: “[...] é fundamental inscrever a situação e potencializar o problema no espaço de uma questão geral: em que e como isto interessa à comunicação humana, às interações simbólicas entre pessoas, grupos e instâncias em geral do social?” (BRAGA, 2002, p.268). Assim, debruçar-se sobre a mídia impressa, enfocando o jornalismo faz parte de um trabalho reflexivo sobre o papel dessa mídia na nossa sociedade. Portanto, o presente artigo tem um caráter teórico conceitual, com o objetivo de realizar uma breve reflexão sobre a mídia impressa,

enquanto

dispositivo/meio,

enfocando

sua

forma

e

especificidade; abordando ainda a notícia como um dos seus produtos jornalísticos fundamentais. O artigo ainda propõe-se a refletir de forma sucinta sobre alguns conceitos pertinentes ao âmbito da mídia impressa, como o de mediação. A metodologia utilizada é a da Pesquisa Bibliográfica, a partir do levantamento dos textos trabalhados em sala de aula, na disciplina Epistemologia da Comunicação do PPgEM/UFRN, durante o semestre letivo 2012.1, e outros que somam-se na discussão aqui proposta. Segundo Marconi e Lakatos (2001), a finalidade da pesquisa bibliográfica é colocar o pesquisador em contato direto com tudo aquilo que foi escrito sobre determinado assunto, com o intuito de permitir ao cientista o reforço paralelo na análise de suas pesquisas ou manipulação de suas informações.

749

2. MÍDIA IMPRESSA: SUA FORMA Em relação a sua especificidade/forma, a mídia impressa destaca-se, primeiramente, por ser um dispositivo voltado, em grande parte, à materiais jornalísticos e/ou publicitários, impressos em gráficas, por meio de uma tecnologia específica. Tal tecnologia de impressão veio sendo aprimorada, desde a invenção da imprensa de Johannes Gutemberg, no século XV, que tornou possível a impressão em massa. Os jornais impressos, por serem relativamente mais acessíveis e baratos que outras mídias, concentraram em si as principais manifestações jornalísticas

necessárias

ao

incremento

regional

ou

local

das

sociedades. Para Mcluhan (2000) a criação da mídia impressa foi baseada na uniformidade e na continuidade da tipologia, e que ela possui também uma gramática específica, a qual não tem serventia para indivíduos e instituições de uma cultura oral, por exemplo. Já de acordo com Mouillaud (2002), a invenção da informação promovida pela imprensa realizou uma transformação nos textos. Segundo Harry Pross (1990, p.165), há que distinguirem-se na imprensa os produtos que ele chama de “impressos únicos”, como os folhetos, livros, cartazes e os “periódicos”, que são os jornais. Esses, de acordo com Pross (1990) são baseados na regularidade, pois a sua produção se baseia nas necessidades

comunicativas

de

universalidade

e

atualidade,

produzindo assim um relato cronológico por meio do discurso impresso. Trabalhando pela perspectiva das teorias dos signos, Harry Pross classifica o jornal como um “supersímbolo”, que representa o tempo por meio de uma hierarquia de outros símbolos. Desde la perspectiva de la teoria de los signos podría denominarse el periódico um , por presentar gráficamente uma jeraquía de símbolos que debe representar al dentro del ritual de calendário en el modus material de papel e impresión. (PROSS, 1990, p.168, grifos do autor)

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Entende-se que um dos elementos mais importantes, a se considerar no estudo de uma mídia qualquer está nos seus métodos de disseminação de informações numa dada sociedade, pois tal fator irá interferir na sua influência sobre o quadro cultural da sociedade. Mcluhan (2000) também partilha do mesmo pensamento, pois para ele, deve-se estudar a natureza de um meio (dispositivo) para que se possa conceber sua mensagem/conteúdo. Sobre essa questão, Mouillaud (2002) coloca que a forma de uma mídia é na verdade seu modo de estruturação no espaço ou no tempo. As produções impressas são geralmente leves e de fácil transporte, tornando assim a mídia impressa, um dispositivo mais apropriado para a difusão de informações pelo espaço, se comparado com outros que são mais úteis á difusão pelo tempo. Para Innis (2011, p.103), “a relativa ênfase no tempo ou no espaço irá implicar um viés [bias] de significação para a cultura no qual está inserido”. Segundo Debray (2000), a comunicação é um transporte no espaço, enquanto transmitir configura-se como um transporte no tempo. Pross (1990) enfatiza que apesar do jornal seguir a tendência da transmissão, ele se configura na verdade como um meio de difusão pelo espaço. “El periódico sigue la tendência de la transmisión; pero su modus material lo vincula al espacio. En la distribución solo se puede solucionar el primero de todos los problemas del transporte, la superación del espacio [...]” (PROSS, 1900, p.170, grifos do autor). Sobre o fato do jornal, enquanto produto da mídia impressa, não ter monopólio sobre a difusão pelo tempo, Innis (2011) coloca que isso o limitaria no seu poder sobre o espaço, causando instabilidades e crises, devido ao seu caráter regional. Innis (2011) continua a discussão ao afirmar que o uso de uma determinada mídia, ou meio como assim ele trata, por um longo período de tempo acabam por determinar a natureza da informação a ser transmitida, dessa forma moldando a civilização à esse meio específico e as informações por ele difundidas. Civilização essa, que segundo Mcluhan (2005) é fruto da cultura letrada, propiciada pela escrita e a imprensa. Dessa maneira, a chegada de 751

uma nova mídia, com vantagens, resultaria no surgimento de uma nova civilização, devido a dificuldades de entendimento para lidar com mídias diferentes das que estão habituados. Harold Innis contextualiza: “O impacto da escrita e da imprensa na civilização moderna aumenta a dificuldade de entender uma civilização baseada na tradição oral.” (INNIS, 2011, p.112). Marshall Mcluhan vem a complementar o pensamento de Harold Innis quando afirma: “Todo ambiente de serviço novo, como os gerados pelas estradas de ferro, veículos motorizados, telégrafo ou rádio, modifica profundamente a natureza mesma da imagem das pessoas que o utilizam.” (MCLUHAN, 2005, p.339). Maurice Mouillaud (2002) compartilha de pensamento comum sobre como uma civilização se porta frente a uma mídia/dispositivo: “Somos a tal ponto indígenas a nossa maneira (ocidentais) de escrever, achamos tão natural o formato da página que já não percebemos mais a lei do horizontal e do vertical que a regulamenta (fala-se do papel pautado).” (MOUILLAUD, 2002, p.31). Ainda nessa linha de pensamento, somam-se outros estudos de Mcluhan

(2000),

quando

trabalha

os

meios,

enquanto

dispositivos/mídias, como uma extensão de nós mesmos, ou melhor, como uma prótese tecnológica do ser humano. “Todos os artefatos humanos – línguas, leis, idéias, hipóteses, ferramentas, vestuário, computadores – são extensões de nosso corpo físico.” (MCLUHAN, 2005, p.335). Para Marshall Mcluhan, o verdadeiro conteúdo, mensagem, da mídia impressa é a palavra escrita, que por último tem a fala como conteúdo. Para esse autor, o conteúdo de qualquer meio ou veículo, é sempre outro meio ou veículo. Assim o efeito de um meio se torna mais intenso, justamente, porque o seu conteúdo é outro meio. Segundo Mcluhan, o meio é que configura e controla a proporção e a forma das ações e associações humanas. “Pois a mensagem de qualquer meio ou tecnologia é a mudança de escala, cadência ou padrão que esse meio ou tecnologia introduz nas coisas humanas” (MCLUHAN, 2000, 752

p.22). Pode-se relacionar essas idéias com os estudos de Maurice Mouillaud, quando ele traz o conceito de rede de informações, que é descrita pelo autor como um dispositivo geral da informação. Para ele, os dispositivos/meios estão encaixados uns nos outros, formando essa rede. Sobre à mídia impressa, Mouillaud (2002, p.32) afirma que o jornal está imerso nessa rede, sendo ela um fluxo imaterial e em constante modificação. Essa rede de informações não impõe ao mundo apenas uma interpretação hegemônica dos acontecimentos, mas, na verdade, a própria forma dos acontecimentos. “O dispositivo não comanda apenas a ordem dos enunciados, mas a postura do leitor” (MOUILLAUD, 2002, p.32). Complementando as idéias de Maurice Mouillaud, podemos voltar aos estudos de Mcluhan (2000), que para o qual não deixa de ser típico, que o conteúdo de qualquer meio não nos permita ver para a natureza desse mesmo meio; dessa forma, fazendo que uma civilização se “molde” à esse meio, segundo trabalha Innis (2011). “Pois os meios têm o poder de impor seus pressupostos e sua própria adoção aos incautos [...] Em outras palavras, confundimos razão com instrução letrada e racionalismo com uma tecnologia isolada.” (MCLUHAN, 2000, p.30). Abordando as mensagens como o principal produto da mídia impressa, considera-se que cada veículo possui uma mensagem específica, com efeitos de sentido esperados, produzida a partir de parâmetros delimitados e práticas e rotinas jornalísticas bem definidas. Tudo isso com o intuito de melhor suprir o público destinatário daquela mensagem, ou seja, o consumidor de tais mensagens. Sobre o vínculo entre leitor e mídia, nesse caso a impressa, esse pode ser classificado como o contrato de leitura, que é um tipo de vínculo que une ambos no tempo.

Segundo Verón (2004), a mídia deve administrar esse

vínculo, a fim de mantê-lo no tempo, construindo e preservando o consumo, que nesse caso é o das informações/produtos difundidos pela mídia. Sobre a imprensa, Eliseo Verón destaca o contrato enunciativo, que

segundo

ele

é

uma

conseqüência 753

dos

mecanismos

de

concorrência do mercado das mídias. “[...] um contrato enunciativo [...] se cumpre essencialmente não no plano do conteúdo, mas no plano das modalidades do dizer. [..]” (VERÓN, 2004, p.276). Considerando a influência que um meio, enquanto dispositivo, pode ter sobre a sociedade na qual atua e também sobre a informação, ou mensagem, que dissemina, pode-se relacionar as idéias trabalhas por Verón (2004) sobre o vínculo entre a mídia e o público, por meio de sua mensagem e estratégias, com as idéias debatidas por Innis (2011) e as de Mcluhan (2000) quando afirma que o meio, enquanto dispositivo/mídia, é a mensagem. Para Mouillaud (2002), em reflexões sobre a mídia impressa, por meio do jornal, a mensagem (discurso) do jornal

não

está

separada

do

dispositivo,

pelo

contrário,

um

complementa ao outro. Maurice Mouillad esclarece: “[...] o envelope não está indiferente à carta que contém; ele me prepara para esperar um correspondente [...] Em resumo: o dispositivo prepara para o sentido.” (MOUILLAD, 2002, p.30). A relação entre dispositivo e texto existe por meio de um processo de geração mútua, uma relação dinâmica. Utilizando a mídia impressa para exemplificar suas idéias, Mouillaud (2002, p.33) afirma que “se o jornal gerou os títulos, [...] os títulos ‘fazem’ o jornal”. Nessa perspectiva, o jornal contém ele próprio dispositivos que lhe são subordinados, como por exemplo, o sistema de títulos. Vale esclarecer, que para Mouillaud (2002, p.34), o termo “dispositivo” se refere aos “lugares materiais ou imateriais nos quais se inscrevem os textos.” Isso significa que a pressão de textos fora do “padrão” pode causar uma deformação do dispositivo. Nessa discussão sobre mensagens e meio (dispositivo), podemos destacar a posição de Debray (2000, p.16), que afirma: o “conteúdo da mensagem guia-se pelas necessidades de sua difusão, assim como o órgão pela sua função.” O próprio transporte da mensagem, entre o produtor e o destinatário, por meio do médium, faz com que o público receba uma mensagem diferente daquela que foi originalmente concebida. De 754

acordo com Pross (1990), os fins comunicativos buscam os meios adequados, porém a acessibilidade desses meios pode relativizar e modificar os fins. Debray (2000) complementa Harry Pross e argumenta: “O transporte transforma; o transportado é remodelado, metaforizado, metabolizado por seu deslocamento (o destinatário recebe uma carta diferente daquela que o destinador colocou na caixa dos correios)” (DEBRAY, 2000, p.43). É importante esclarecer que Régis Debray (2000) trabalha na perspectiva dos estudos sobre midiologias, na qual a mídia impressa é abordada como um médium, enquanto dispositivo material. Já o termo “meio”, diferentemente de outros pesquisadores que o utilizam como dispositivo, para Régis Debray é utilizado para classificar o ecossistema, a atmosfera onde ocorrem as trocas simbólicas. 3. NOTÍCIAS: PRÁTICAS E CONSTRUÇÃO JORNALÍSTICA A notícia é um dos principais produtos da mídia impressa, produzida por meio de técnicas específicas no âmbito das práticas e rotinas do jornalismo. Essa forma de estruturação de um acontecimento, na verdade, culmina da especialização da tarefa de informar, que é uma das características da mídia impressa. A notícia pode ser sintetizada como uma narrativa, que apresenta informações factuais, sendo uma produção diária, perecível, imediatista, e que segundo Beltrão (2006) preza também pela universalidade, veracidade, além de se preocupar pelo interesse e importância de tal acontecimento para a sociedade onde ela será difundida. Segundo Pross (1990, p.168), as notícias são produções únicas, em um estado de “não terminadas”, ou seja, são atuais, em progresso; sendo reunidas nos jornais que devem representar o tempo, dentro do ritual do calendário vigente na sociedade. Para Robert Park (2002), as notícias são formas de conhecimento preocupadas com o “presente ilusório”. As notícias têm sua verdadeira essência no fato de serem transitórias e perecíveis, fato esse que se relaciona com todas as suas outras características. Park (2002) esclarece que as notícias podem ser classificadas também como 755

um tipo de conhecimento de familiaridade, ou seja, um tipo de conhecimento generalista; entretanto ele reforça que as notícias ocupam um lugar próprio em termos classificatórios. Robert Park esclarece: O que se pretende aqui significar por é sugerido pelo facto de as notícias, como os editores da imprensa comercial bem sabem, serem um bem extremamente perecível. As notícias mantêm esse estatuto apenas até chegarem às pessoas para quem têm . (PARK, 2002, p.40)

Ainda de acordo com Robert Park, as notícias quando publicadas e o seu significado simbólico reconhecido, elas passam à história. Porém, o autor esclarece que as notícias não são e nem configuram a história em si, porque lidam com acontecimentos isolados, sem procurar estabelecer relações entre eles. Assim, as notícias aproximam-se da história, mas não a são. Continuando a discussão sobre notícias, Robert Park afirma que elas funcionam para o público da mesma forma que a percepção atua para o indivíduo. Dessa forma, as notícias fazem mais do que informar, elas orientam o público, transmitindo seja em uma notícia, ou em seu conjunto no jornal, o que está a acontecer. Assim, entende-se a importância que as notícias desempenham nas ações coletivas em uma dada sociedade. Park (2002) explica que o âmbito de circulação de uma notícia em uma comunidade determina o âmbito de participação social de seus membros nos atos políticos. Isso significa o papel fundamental que as notícias exercem na formação da opinião pública e também na economia. Porém, para que uma notícia possa influenciar os indivíduos de uma sociedade, ela precisa antes ser validada pelo público, ou seja, passar pelo exame crítico de à quem ela se dirige e que tem seus interesses relacionados com o que está dito na notícia. É importante destacar que a notícia difundida pelo jornal impresso possui um público que se identifica mais com o jornal que está a consumir. Além dos fatores que constroem o contrato enunciativo, já 756

explicitado acima por Verón (2004), há de se considerar que o leitor identifica-se com o jornal de sua cidade, independentemente da linha editorial, já que é esse veículo que informa o que lhe interessa mais de perto. Desse modo, a preferência dos leitores da cidade pelo jornal local são complementadas pelo fator da proximidade. Entretanto, de acordo com Park (2002, p.43), qualquer público, por mais próximo que possa ser de um veículo, apresenta seus “preconceitos locais e suas próprias limitações”. Isso significa que a opinião pública depende também do grau de instrução e desenvolvimento de uma sociedade. Essa posição é compartilhada por Pross (1990) que afirma que quanto menos desenvolvida é uma cultura, suas técnicas, seu povo, quanto mais limitado for o pensamento vigente, menor será a necessidade de circulação de jornais e matérias impressos em gerais, não sendo, muitas vezes, nem urgente, nem necessária. Park (2002, p.47) complementa Pross (1990), ao afirmar que “a importância das notícias” tem crescido com a expansão dos meios de comunicação e o desenvolvimento científico. Robert Park ainda explica que uma notícia para circular em um dado local, é preciso que haja certo grau de conexão e de tensão, sendo uma de suas funções preservar a sociedade: “A função das notícias é orientar o homem e a sociedade no mundo actual. Se esta função for cumprida, a sanidade dos indivíduos e a permanência da sociedade tendem a ser preservadas”. (PARK, 2002, p.47). Sobre o processo de construção da notícia, pode-se afirmar que ela é feita de maneira periódica, por profissionais, que são os jornalistas, através de práticas jornalísticas bem definidas. Tais práticas configuram um

processo social, constituído por diversas rotinas

jornalísticas

específicas, que compreendem, geralmente de forma implícita, suposições importantes sobre o que é a sociedade e como ela funciona. Sobre o trabalho do jornalista, Debray (2000) o coloca como sendo uma atividade de comunicação, contrapondo-se a do professor que transmite. Segundo o autor, para comunicar basta suscitar o interesse, já para transmitir bem se torna necessário transformar, 757

converter. “A comunicação se distingue pelo fato de resumir, enquanto a transmissão se distingue pela prolongação” (DEBRAY, 2000, p.15). A notícia culmina do processo de construção da realidade do mundo em uma narrativa, entretanto é importante salientar que as práticas jornalísticas são muitas vezes restringidas por pressões como o tempo, formato e hierarquias superiores. Antes de se começar a escrever uma notícia e até mesmo coletar os dados, o jornalista deve ter bem definido os valores-notícia que ele usa ou deve usar para considerar o que é, de fato, noticiável ou não, ou seja, aquilo que irá despertar o interesse do público leitor do jornal. Sobre esse ponto, Park (2002) afirma que não é a importância intrínseca de um acontecimento que lhe confere o seu valor-notícia, mas sim, se ele irá fazer as pessoas falaram, mesmo que não ajam. “É antes o facto de um acontecimento ser tão invulgar que a sua publicação provoque surpresa, divertimento ou excitação nos leitores de a forma a ser recordado e repetido” (PARK, 2002, p.42). Para Pross (1990) é necessário se estudar as práticas jornalísticas, pois essas envolvem a construção da realidade comunicativa. Isso significa que o processo de construção da notícia, na definição dos valores-notícia e na própria coleta de dados e atividades subseqüentes, exige atitudes não somente técnicas, mas principalmente éticas e subjetivas por parte dos jornalistas. Pross (1990) elenca algumas atitudes dos jornalistas, que segundo ele, enganam os leitores quando, por exemplo, noticiam sobre fatos fora do interesse social; quando incorporam fatos não ocorridos nas notícias para preencher o espaço vazio das folhas; ou quando recebem dinheiro para elogiar algo ou alguém nas notícias, entre outros. Para se evitar questões como essas, deve-se haver um controle rigoroso pelos editores e reguladores dos jornais, a fim de permitir que somente o “seja digno de ler” possa ser impresso, segundo afirma Pross (1990, p.169). Sobre essa questão, Debray (2000) afirma que ao se difundir uma mensagem, os dispositivos e seus produtores (jornalistas) devem se preocupar com o excesso de 758

originalidade na mensagem, pois isso prejudica a recepção. Para ele, é importante que os produtores saibam utilizar signos inúteis ou já conhecidos num dado meio circundante para que a transmissão seja compreensível. Soma-se à essa discussão o pensamento de Park (2002) quando afirma que o papel do jornalista é compreender melhor o que se passa no presente, o factual. Robert Park ainda afirma que os acontecimentos que fazem notícia, seja no passado ou no presente são aqueles esperados e ao mesmo tempo inesperados, assuntos simples e de senso comum, como a morte e o nascimento. “Estas são coisas esperadas, mas ao mesmo tempo coisas imprevisíveis. São os incidentes e os acasos que aparecem no jogo da vida” (PARK, 2002, p.43). Dialogando com Robert Park, temos a posição de Pross (1990, p.170) quando afirma que os jornais perdem sua função de “supersímbolo” que representa o tempo, quando apenas reproduzem processos “ritualizados”, esquecendo-se dos acontecimentos factuais e únicos.

4. A IMPRENSA E O PROCESSO DE MEDIAÇÃO Entende-se que numa sociedade de massa, a linguagem da mídia impressa é um espaço de poder, de lutas, e também um espaço onde a linguagem apresenta-se como transparente. Os veículos de comunicação costumam se considerar neutros porque acreditam que refletem os acontecimentos de forma desinteressada. O que ocorre é que há um processo de mediação da realidade que está sendo construída pelas páginas do jornal, entre os produtores da informação e o público. Dessa forma, podemos conceber a mídia, e neste artigo falando especificamente da impressa, como um agente mediador da realidade e da experiência e que assim o faz por meio de suas práticas e representações simbólicas. O conceito de mediação é bastante polêmico, sendo o objeto de diversos estudos com abordagens diversas. Pretende-se, nesse momento, apresentar diferentes conceitos 759

sobre o processo de mediação, destacando as suas singularidades. Segundo Pross (1990), geralmente o termo “mediar” é utilizado em um sentido de comunicar, relacionar, porém ele, particularmente, utiliza “mediar” para designar os sistemas bilaterais de comunicação. se utiliza generalmente en el sentido de comunicar, relacionar; particularmente, se utiliza para designar los sistemas bilaterais de comunicación, como los de los medios primários, por ejemplo, frente al de los medios secundários y terciários (comunicación em dos etapas y comunicación unidirecional). (PROSS, 1990, p.167)

Tratando sobre a mídia impressa, Harry Pross afirma que ela media desde os anúncios publicitários até o editorial, distribuindo as formas simbólicas visualmente, por meio da composição e do ajuste. Sobre o layout do jornal, Pross (1990, p.167) afirma que ele é um mediador de formas simbólicas, atuando como um “simbolismo gráfico” não verbal, no qual as formas simbólicas vem ajustadas de “acima-abaixo”. Todas as formas em um jornal estão estruturadas em um significado que ele deseja transmitir aos seus leitores. É a partir de tais reflexões que Pross (1990) classifica os jornais impressos como “supersímbolos”, conforme já foi tratado acima, apresentando graficamente uma hierarquia de símbolos que devem representar o tempo, dentro do ritual do calendário. Ainda segundo Pross (1990), dentro de suas classificações das mídias entre primárias, secundárias e terciárias, baseada no acondicionamento material das mediações simbólicas, o jornal impresso se configura como um meio secundário; pois necessita de um aparato técnico pelos produtores, porém não para os leitores. Entretanto, o autor ressalta que o jornal também pode ser classificado como um meio terciário, quando se emprega um aparato adicional pelo receptor para que possa ter o jornal em mãos. Nesse sentido, Pross (1990) destaca o jornal como parte de uma rede de mediação telecomunicacional. Continuando a discussão a partir da linha de pensamento de Harry Pross (1990), que trata os jornais como mediadores de formas simbólicas, temos a posição de Muniz Sodré (2006, p.91) que trabalha o 760

ato de mediar através dos estudos dos signos. Segundo ele, a mediação é o ato original de qualquer cognição, pois implica “o trânsito ou a comunicação” da propriedade de um elemento para o outro e isso ocorre por meio de um terceiro elemento: o signo. Sodré (2006) trata o próprio signo como um meio de comunicação, pois torna possível o compartilhamento de uma experiência. “A mediação é, desta maneira, uma complexa operação semiótica – designável também como semiose -, que articula relações de determinação e representação.” (SODRÉ, 2006, p.92, grifos do autor). Para Muniz Sodré, existe uma tríade que articulada movimenta os componentes do signo, através de um processo dinâmico, levando um signo a desdobrar-se em outro e a constituir a ação mediadora da semiose. Nesse sentido, Sodré (2006, p.94) afirma que subjaz à comunicação humana, uma realidade muito mais complexa do que a que é apresentada pelos meios de comunicação, que segundo o autor são vistos como os “mordeníssimos” aparatos, que associam tecnologia e mercado para agilizar o processo de interação dos discursos sociais. Ainda na discussão sobre os diferentes conceitos de mediação, temos a posição de Jesus Martín-Barbero (1995) que defende ser necessária uma mudança nos estudos da mídia, deixando de ser dos meios e passando às mediações. Ou seja, Martín-Barbero (1995) afirma que

é

preciso

repensar

todo

o

processo

comunicativo

de

representação e significação das coisas, mudando o foco dos meios para os processos de mediação e também para a recepção. Para Martin-Barbero (1995, p.40) o público também é um “ator social” produtor de significações e não apenas mero decodificador. Sobre a mídia impressa e o jornal, o autor afirma: “[...] é um processo de negociação do sentido. Não há comunicação se cada um ler no jornal o que lhe der na cabeça.” (MARTÍN-BARBERO, 1995, p.57). Dessa forma, Martin-Barbero (1995) propõe três processos de mediações

fundamentais

que

devem

ser

investigados

pelos

pesquisadores em comunicação. Uma dessas mediações diz respeito às 761

anacronias

e

as

diferentes

relações

com

o

tempo,

com

a

heterogeneidade de temporalidades. Para o autor, não há uma só história uma só verdade, além disso, deve-se atentar para o fato que na sociedade há formações culturais arcaicas, residuais e formações emergentes. A segunda mediação posposta por Martin-Barbero (1995) trata das fragmentações sociais e culturais. Essa segunda mediação encara a comunicação a partir de seu papel na reorganização e divisão social. Segundo essa abordagem, há uma clara divisão entre as informações e cultura dirigidas para aqueles que tomam decisões na sociedade e para as massas, sendo para esses últimos o entretenimento a grande produção. Martín-Barbero (1995) afirma que há nessa segunda mediação um conjunto de fragmentações que reforçam uma velha divisão social, que é a clássica divisão de classes. “E os meios de comunicação trabalham fundamentalmente para essa imensa massa de gente cansada, estressada, enquanto outro tipo de comunicação e informação vai por outro lado [...] (MARTÍN-BARBERO, 1995, p. 46). A terceira mediação proposta pelo autor fala das demandas sociais que passam pela recepção. Sobre essa mediação, MartínBarbero (1995, p.53) argumenta que há um acúmulo de demanda sociais de comunicação e de cultura que se expressam nos modos de “ver, ler e escutar”. O autor encerra essa discussão afirmando que são demandas não formuladas, mas que requerem um esforço para que possam se tornar demandas dirigidas.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após as reflexões empreendidas neste artigo constata-se que a mídia impressa é baseada na regularidade, pois a sua produção se baseia

nas

necessidades

comunicativas

de

universalidade

e

atualidade, produzindo assim um relato cronológico por meio do 762

discurso impresso e através de uma gramática específica. Em relação ao transporte, considera-se que as produções impressas são geralmente leves e de fácil manuseio, tornando assim a mídia impressa, um dispositivo mais apropriado para a difusão de informações pelo espaço. A respeito da notícia, podemos considerar que ela é uma narrativa que apresenta informações factuais, sendo uma produção diária, perecível, imediatista e que também preza também pela universalidade, veracidade; além de se preocupar pelo interesse e importância de tal acontecimento para a sociedade onde ela será difundida. Sobre o processo de mediação, conclui-se que a mídia impressa atua como um agente mediador da realidade e da experiência e assim o faz por meio de suas práticas e representações simbólicas. Em um jornal, há uma mediação desde os anúncios publicitários até o editorial, distribuindo as formas simbólicas visualmente, por meio da composição e do ajuste.

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764

O ETHOS MIDIATIZADO DA PRÁTICA SOCIAL DO JORNALISTA ASSESSOR DE IMPRENSA Juliana Bulhões Alberto Dantas240 Resumo: O artigo trabalha com a problemática que envolve os limites éticos contemporâneos da prática profissional do assessor de imprensa. Apresentamos um apanhado sobre o surgimento da assessoria de imprensa e, em seguida, traçamos as diferenças entre relações públicas, comunicação organizacional, assessoria de comunicação e assessoria de imprensa; em seguida, partimos para a discussão teórica acerca das identidades do jornalista assessor de imprensa; tecemos ideias sobre a assessoria de imprensa vista da perspectiva da esfera pública e teorizamos acerca das suas consequentes implicações éticas. Por fim, apresentamos os percursos da pesquisa e as considerações finais. Consideramos que alguns pesquisadores e profissionais acreditam que o assunto já foi finalizado e o tabu da assessoria já foi “cicatrizado”, porém percebemos que ainda há muito a ser investigado; desta forma, propomos uma contribuição à temática. Palavras-Chave: Comunicação organizacional. Assessoria de imprensa. Ética na comunicação. Identidades.

1. INTRODUÇÃO

Nos últimos cinco anos, a prática da assessoria de imprensa passou por modificações significativas devido ao surgimento e à popularização de tecnologias digitais, como as mídias sociais. Para Bulhões (2011, p. 70), é necessário que o assessor de comunicação avalie sua inserção nesta nova realidade comunicacional. “É certo que as novas ferramentas ainda não estabeleceram seu papel de mudança sociocultural, mas pode ser percebido o avanço tecnológico na área”. Entretanto, ainda resta uma questão mais essencial a ser debatida em função das características da assessoria de imprensa

240

Graduada em Comunicação Social/Radialismo (UFRN), Jornalismo (UFRN), Mestra em Estudos da Mídia (PPGEM/UFRN). Professora do Departamento de Comunicação Social (UFRN). Integrante do Grupo de Pesquisa Pragmática da Comunicação e da Mídia: teorias, linguagens, indústrias culturais e cidadania (PRAGMA/UFRN); do Laboratório de Pesquisa e Estudos em Comunicação Comunitária e Saúde Coletiva (LAPECCOS/UFRN); do Instituto Nacional de Pesquisa em Comunicação Comunitária (INPECC); do Grupo de Estudos Avançados da Comunicação Organizacional (DECOM/UFRN); e sócia da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJOR). [email protected].

765

praticada no Brasil, onde o exercício desta é legítimo do jornalista (FENAJ, 2007b), situação diferente de outros países, como no caso dos que compõem a União Europeia, que proíbem o jornalista de atuar como assessor de imprensa (SOUSA e MOUTINHO, 2011). Esta necessidade primordial reflete no cerne da pesquisa, que consiste em investigar os limites éticos da atuação dos jornalistas que possuem vínculo profissional simultâneo em empresas jornalísticas, como repórteres, editores, etc. e em empresas públicas ou privadas, como assessores de imprensa em Natal-RN. Desta forma, apresentamos como objetivo principal da pesquisa investigar o exercício profissional, as identidades e os aspectos éticos das práticas jornalísticas destes sujeitos, trazendo como recorte a realidade potiguar do jornalista contratado por redes/canais de TV que atua no telejornalismo diário e, simultaneamente, como assessor de imprensa contratado por empresas públicas e privadas, a partir da discussão do estatuto ético do Jornalismo como profissão na prática da assessoria de imprensa. No desenvolvimento do trabalho, elencamos os termos mais pertinentes com relação à assessoria de imprensa e tecemos hierarquias dentre eles. Em seguida, partimos para a discussão teórica acerca das identidades do jornalista assessor de imprensa. Logo em seguida tecemos ideias sobre a assessoria de imprensa vista da perspectiva da esfera pública e teorizamos acerca das suas consequentes implicações éticas. Por fim, apresentamos

os

percursos

da pesquisa e as

considerações finais. A metodologia do artigo foi desenvolvida a partir da pesquisa exploratória (LAKATOS e MARCONI, 1991), porém a pesquisa da qual este artigo é recorte também faz uso do método de estudo da etnometodologia e da perspectiva da etnografia (COULON, 1995).

2. O LUGAR DA ASSESSORIA DE IMPRENSA 766

Consoante com Thompson, "o poder é um fenômeno social penetrante, característico de diferentes tipos de ação e de encontro" (THOMPSON, 1998, p. 21). Para o autor, é possível fazer a distinção entre quatro tipos de poder, mesmo que estes se sobreponham: econômico, político, coercitivo e simbólico. O poder simbólico ou cultural surge da produção, transmissão e recepção do significado das formas simbólicas, a partir do uso dos meios de informação e comunicação. Ele considera que "em todas as sociedades os seres humanos se ocupam da produção e do intercâmbio de informações e de conteúdo simbólico" (THOMPSON, 1998, p. 20). Os processos de comunicação podem ser interpretados como espaços de disputas simbólicas. Para Lopes (2010), os atores envolvidos nas relações de troca de informações, o que inclui os profissionais de assessoria de imprensa, produzem avanços e recuos, acordos e desacordos, hegemonias e contra-hegemonias simbólicas, formando assim o poder simbólico. O poder em jogo na relação entre assessoria e mídia TV é da esfera do simbólico. As empresas jornalísticas e as assessorias negociam, entram em conflito, e estabelecem alianças cotidianamente, com o objetivo de impor ou determinar modos de percepção, classificação e intervenção na sociedade. Ambicionam, pois, o poder simbólico, de construir a realidade e definir, desenhar o mundo social a partir de seus interesses (LOPES, 2010, p. 08).

Dentro

desta

perspectiva,

destacamos

a

necessidade

de

entendermos de que forma a assessoria de imprensa atua nesta busca por poder simbólico. Acreditamos ser necessário compreender o surgimento da assessoria de imprensa e saber qual o lugar da desta prática no campo comunicacional.

767

Os primeiros passos da comunicação organizacional foram dados pelo fundador da escola das relações públicas, o jornalista americano Ivy Lee, que no início do século XX deixou as redações para se dedicar à imagem pública do empresário John Rockefeller. De acordo com Chaparro (2011), ele não se limitou a fazer a ponte de relacionamento com a imprensa, pois era um “homem de comunicação, sabia que a imagem das pessoas, como a das instituições, não se muda com conversa fiada e notas em jornais” (CHAPARRO, 2011, p. 38). No Brasil, a comunicação institucional se fortaleceu entre os anos 1960 e 1970, época da ditadura militar. Alguns aspectos da identidade do assessor de imprensa que observamos hoje são decorrentes desse período, no qual o profissional era visto como oposição aos jornalistas que trabalhavam em redações. A época ficou conhecida como a do “nada a declarar”, máxima evocada pelos assessores (VIVEIROS e EID, 2007). Como a comunicação organizacional da época ainda estava em desenvolvimento, os termos eram empregados sem distinção. Na contemporaneidade, as diferenciações entre os conceitos podem ser feitas com mais facilidade, inclusive é possível tecer uma hierarquização entre eles. Começamos com assessoria de imprensa, o foco da pesquisa. A atividade tem principal função estabelecer contato

com

os

jornalistas,

enviando

informações

acerca

das

atividades de uma organização, além de manter o controle e analisar a informação veiculada na imprensa (SOUSA e MOUTINHO, 2011). De acordo com o Manual de Assessoria de Comunicação da Federação Nacional dos Jornalistas (2007b), assessoria de imprensa é um Serviço prestado a instituições públicas e privadas, que se concentra no envio frequente de informações jornalísticas, dessas organizações, para os veículos de comunicação em geral. Esses veículos são os jornais diários; revistas semanais, revistas mensais, revistas especializadas, emissoras de rádio, agências de notícias, sites, portais de notícias e emissoras de tevê (FENAJ, 2007b, p. 07). 768

Já a assessoria de comunicação é um termo mais abrangente, e surgiu da ampliação das atividades das assessorias de imprensa nos últimos anos, mudanças que tornaram os jornalistas gestores de comunicação, fazendo-os trabalhar com uma equipe multifuncional composta por outros profissionais, tais quais relações públicas e publicitários (FENAJ, 2007b). Seguindo a hierarquia, relações públicas é um conceito mais amplo que assessoria de comunicação, definido por Augras (apud CHAPARRO, 2011) como um “conjunto das técnicas concernentes às comunicações de uma empresa com os grupos aos quais não pode opor-se ou misturar-se, a fim de manter boas relações com os diversos setores da opinião pública” (AUGRAS apud CHAPARRO, 2011, p. 41). Ou seja, as relações públicas têm preocupações que vão além das obrigações das assessorias de comunicação. Segundo Kunsch (1997), países como Colômbia, Peru e México estão adotando o termo comunicação organizacional em substituição a relações públicas, porém os dois nomes não são sinônimos, tendo o primeiro maior abrangência na atualidade. A comunicação organizacional é, para Matos (2004), a relação da empresa com os públicos interno e externo. Envolve vários procedimentos e técnicas destinados à intensificação do processo de comunicação e à difusão de informações. Segundo o autor, a comunicação organizacional divide-se em comunicação interna, comunicação externa e assessoria de imprensa; a interna é direcionada a funcionários e colaboradores da empresa e a assessoria de imprensa funciona de forma integrada ao processo de comunicação externa e cuida do fluxo de notícias para os meios de comunicação social e da relação com os jornalistas. Portanto, é fácil confundir comunicação organizacional com assessoria de comunicação, porém esta última engloba

profissionais

além

da

Comunicação

Social,

administradores e funcionários da área de Recursos Humanos.

769

como

Oliveira (2004) é mais específico ao propor que a comunicação organizacional deve ser entendida como uma mistura de comunicação nas organizações que une várias “frentes de batalha” da comunicação, cujas envolvem a comunicação institucional, a comunicação interna, a comunicação mercadológica, a comunicação administrativa etc. O autor reforça a ideia da abrangência maior do termo comparando-se à assessoria de comunicação, que engloba profissionais apenas da Comunicação. A comunicação organizacional é muito presente nas instituições, porém as nomenclaturas nem sempre são claras e bem definidas. Por vezes, ela é tratada simplesmente como comunicação empresarial, que

tem

menos

características

relacionadas

às

assessorias

de

comunicação. Para Cardoso (2006), a informação e a comunicação têm assumido com intensidade um papel importante na prática de gestão empresarial no mundo globalizado. Segundo o autor, nas últimas décadas o campo de estudo da comunicação empresarial permite às empresas desenvolverem suas estratégias de negócios. Kunsch

(1997) esclarece

que comunicação empresarial

e

comunicação organizacional são termos utilizados sem distinção aqui e em outros países, para designar todo o trabalho de comunicação realizado nas organizações. No Brasil, na França, na Espanha e em Portugal, utiliza-se mais o termo comunicação empresarial, enquanto que nos Estados Unidos, usa-se a segunda expressão mais para a comunicação interna, cabendo à área de relações públicas a comunicação externa, embora outros autores tenham definido como relações públicas todo o gerenciamento da comunicação entre uma organização e seus públicos. É importante destacar que a pesquisa irá restringir-se à assessoria de imprensa, visto que o recorte é necessário para o aprofundamento no assunto. Porém, em alguns momentos, serão usados termos pertencentes

à

comunicação 770

organizacional,

comunicação

empresarial, relações públicas e assessoria de comunicação, pois não é possível desatrelar os conceitos, pois as práticas podem ser confundidas.

3. IDENTIDADES DO JORNALISTA ASSESSOR DE IMPRENSA

As antigas identidades estão em declínio, o que faz com que surjam novas identidades e que seja fragmentado o indivíduo moderno, antes visto como sujeito unificado (HALL, 2004). Esta crise de identidade é vista por Hall (2004) como parte de um processo mais abrangente de mudanças pertinentes à modernidade tardia – termo usado em detrimento a pós-modernidade. Para Viana (2009), no contexto atual é preferível utilizar “modernidade tardia” em vez de “pós-modernidade”, devido à crença em que as transformações científicas, culturais e sociais do século XX não representam uma ruptura da modernidade. Pensamos ser possível aplicar a discussão sobre a complexidade das identidades culturais para compreender a identidade de culturas profissionais como a do jornalista assessor ou assessor jornalista relacionada à ética da profissão. A construção da identidade do sujeito estudado por esta pesquisa é uma das questões principais e também um dos objetivos centrais. Almejamos entender como o profissional

– que atua

simultaneamente em redações e assessorias de imprensa – se vê, se identifica e representa a si mesmo. Se é como um jornalista que também atua como assessor de imprensa, ou se é um assessor de imprensa que também atua como jornalista em redações. Neste caso, a ordem dos fatores altera o resultado, pois o modo como ele se vê primeiramente revela sua identidade e pode ajudar a compreender como ele enfrenta os problemas éticos impostos por essa atuação simultânea.

771

McLuhan (2005) também nos ajuda nesta temática quando relata que, na era eletrônica, a identidade humana sofre alterações pelos novos ambientes de serviços, que deixam as pessoas sem valores pessoais ou comunitários. O autor é enfático ao constatar que “mudanças radicais de identidade, ocorridas em intervalos de tempo breves e súbitos, revelaram-se mais mortíferas e destrutivas para os valores humanos do que as guerras travadas com armas pesadas” (MCLUHAN, 2005, p. 339). Sob outra nuance, Hall (2003, p. 396) explana os códigos, que para ele “são os meios pelos quais o poder e a ideologia são levados a significar em discursos específicos”. Podemos levar este pensamento a uma reflexão acerca da codificação da linguagem do jornalista, a fim de nos aprofundarmos na investigação acerca da identidade. Este pode ser um ponto essencial para entender as diferenças entre o campo de assessoria de imprensa e o campo jornalístico. Para Oliveira (2005, p. 202), na atividade jornalística “há flagrante discrepância entre as imagens construídas em torno da profissão e da realidade operacional”, e este pensamento incide diretamente sobre a questão da identidade à qual nos referimos. Sendo observados os modos de produção de um texto construído por um assessor de imprensa e outro texto feito por um jornalista de redação241, notamos que o resultado final - o texto pronto – dos dois seguiu as mesmas regras jornalísticas, porém o acesso às informações e o modo de trabalho é muito destoante. Sendo assim, esse poderia ser um indício de que as atividades realmente são distintas e que a identidade sofre variações inicialmente devido a esta diferenciação. Chaparro (2011) defende que, no mundo globalizado, as instituições agem pelo que dizem, fazendo uso da eficácia difusora do jornalismo. Consequentemente, isto reverbera para a assessoria de imprensa, pois esta é profundamente vinculada à necessidade de se 241

Usamos “jornalista de redação” para referirmo-nos aos jornalistas que atuam em jornais impressos, TVs, rádios, etc. em funções como repórter, editor, dentre outros.

772

conseguir espaço na mídia – trabalhando, portanto com a imagem institucional na esfera pública.

4. ESFERA PÚBLICA E LIMITES ÉTICOS

A temática das implicações éticas no exercício da assessoria de imprensa pode parecer, para alguns pesquisadores e profissionais, uma discussão já esgotada ou ultrapassada. Porém, percebemos que na atualidade há uma nova configuração midiática, diferente do momento social e político dos anos 80, quando o assunto começou a ser debatido e o exercício da assessoria de imprensa foi legitimado como jornalístico pela FENAJ. Segundo Sant’Anna (2009), os cenários midiático e jornalístico estão passando por transformações com relação à agregação das fontes no processo de produção e difusão das informações, o que ele chama de jornalismo das fontes, extra-redação, uma espécie de jornalismo de influência. Tais transformações se dão em três níveis: na hibridização dos discursos, das estruturas informativas e do espaço profissional, e interferem diretamente na modelagem do espaço público. A teoria de mídia das fontes do autor considera que o Brasil tem uma paisagem midiática única, na qual a sociedade civil organizada se comunica diretamente com a opinião pública, sem passar por intermediação das mídias tradicionais. Fazemos a leitura de que muito desse fenômeno se deve à proliferação das assessorias de imprensa. Para Sant’Anna (2009), o espaço público é um ambiente de comunicação, no qual a população se faz presente e interage entre si e com os meios de comunicação. Neste ínterim, as mídias das fontes – ou atores sociais - disputam um lugar de visibilidade no espaço público. Segundo Habermas (2003), são chamados de públicos os eventos que são acessíveis a qualquer um, diferente do que acontece com as 773

sociedades fechadas. O autor considera que o sujeito da esfera pública é o público, portador da opinião pública, cuja função crítica é chamada de publicidade. “No âmbito dos mídias, a ‘publicidade’ certamente mudou de significado. De uma função da opinião pública tornou-se também um atributo de quem desperta a opinião pública” (HABERMAS, 2003, p. 14). Partindo para outra nuance, Barros Filho (2007) considera que o campo da comunicação brasileira evoluiu quanto à abordagem científica da mídia, porém isso não aconteceu no âmbito da reflexão moral com relação à área. “Essa lacuna da literatura sobre ética na mídia é mais sentida nas esferas da publicidade e das relações públicas” (BARROS FILHO, 2007, p. 09). Zayas (2001) aponta que a publicidade e as imagens dos media estão mais integradas nas práticas culturais e têm ganhado maior importância dentro do crescimento dinâmico do capitalismo. O autor caracteriza a publicidade como uma narrativa que passa pelas tensões da modernidade. Esta perspectiva pode ser empregada no campo da comunicação organizacional, pois os parâmetros se assemelham do ponto de vista das tensões. Uma opinião semelhante foi exprimida pela pesquisadora Cicilia Peruzzo, ao final dos anos 80, quando concluiu que “elas [as relações públicas] não são desveladoras, mas veladoras do real. Visam perpetuar o modo de produção capitalista” (PERUZZO, 1986, p. 134). De acordo com Silva (2011), a crítica de Peruzzo incide no discurso de que existe uma intenção de valorizar os interesses públicos, o que não poderia acontecer, já que o profissional é contratado pela empresa, o que resulta em um conflito de interesses. Para Murolo (2011), o jornalismo sempre esteve em busca de estabelecer e reforçar uma imagem de imparcialidade, seriedade, coerência e objetividade. A partir de uma pesquisa sobre

o

telejornalismo argentino, o autor percebeu que o noticiário não “mente” no sentido máximo da palavra, porém usa mecanismos 774

tecnológicos para recortar, excluir, ocultar e construir em cima das notícias.

“Esencialmente,

definitoriamente:

representan.

Lo

que

muestran y cuentan es producto de uns construcción y no lo dicen. No lo dicen no porque sus televidentes ya lo sepan, sino porque consideran que sólo son intermediarios entra la realidad y su público” (MUROLO, 2011, p. 510). As práticas do assessor de imprensa interferem diretamente no que é veiculado pelos meios de comunicação social, que por sua vez fazem parte do cotidiano das pessoas. Muitas vezes, inclusive, o material produzido nas assessorias chega diretamente ao público, sem nenhuma edição, o que invoca uma responsabilidade social por parte destas.

4.1 - A ética na assessoria de imprensa O artigo 12 do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros (FENAJ, 2007a) torna evidente no parágrafo 1º que há uma diferenciação entre o jornalista e o assessor de imprensa, ao apresentar que o jornalista deve, ressalvadas as especificidades da assessoria de imprensa, ouvir sempre o maior número de pessoas envolvidas em uma cobertura jornalística. Esta representação diferenciada dentro de uma mesma profissão é uma pista para entendermos as implicações éticas da atuação profissional no cotidiano concreto dos jornalistas que se veem na condição de atuar no jornalismo televisivo e como assessor de imprensa, no contexto do Rio Grande do Norte. Silva (2003, p. 147) considera que “a ética, concebida como um auto-olhar, uma inspeção cuidadosa e rigorosa dos ethe (atitudes e usos da conduta humana), deve ser objeto do estudo e da prática da comunicação”. Este pensamente incide diretamente no objetivo da pesquisa, que é investigar a prática social do assessor de imprensa. Consoante com a autora, a palavra ética refere-se ao éthos, que por sua vez significa costume, hábito, comportamento ou uso. 775

Já Sodré (2009, p. 11) propõe o ethos midiatizado. A mídia – entendida como meios e hipermeios - implica em um bios virtual, ou seja, em uma vida regida pela virtualização das relações humanas, que recai no desenvolvimento de uma eticidade (costume, conduta, cognição, sensorialismo) estetizante e vicária. O autor considera que o mercado e a mídia não visam o estabelecimento de uma teoria ética, e sim um método de deliberação que incorpora os bens de consumo. Em sua obra, o autor ainda especula sobre a possibilidade de uma ética plena na contemporaneidade. Barros Filho (2003), por sua vez, trata a ética na comunicação não a partir do comportamento dos profissionais, mas do “produto informativo”. Mesmo assim, sua obra traz uma contribuição à pesquisa ao defender que qualquer normatização do trabalho jornalístico – incluindo padronização quanto à ética – é inútil quando são desconhecidos os efeitos negativos que podem ser evitados com tal prática. Barros Filho e Meucci (2007) comentam que uma expressão comum

nos

debates

epistemológicos

é

“o

mundo

é

minha

representação”, e que a leitura de Schopenhauer, Nietzsche, Husserl, Freud e Sartre, aplicada à comunicação organizacional, nos ajuda a desvendar as estratégias dos discursos morais e identitários deste campo; além disso, desvendar os discursos éticos. Novamente a questão da identidade surge como pista para entender a problemática central da pesquisa. A Diretoria Executiva da FENAJ (2011) entende que os dilemas éticos estão presentes em todos os segmentos que compõem o jornalismo e que a ética tem o mesmo valor para o jornalista que atua em redações e para o que atua em assessorias de imprensa. No entanto, nos interessa menos emitir juízos de valor do que compreender como

esses

profissionais

simultaneamente

nos

dois



que

por

campos

de

diversos

motivos

trabalho



atuam

enfrentam,

representam, interpretam as questões éticas impostas por tal situação. 776

Caldas (2011) tem pensamento semelhante; considera que ambos possuem o interesse comum de divulgar informações, portanto o cultivo da ética deve ser preservado por estes. De acordo com Duarte (2011), a oficialização da assessoria de imprensa como atividade do jornalista se deu em meados dos anos 80, quando o então diretor da FENAJ, Washington Mello – que atuava como jornalista e assessor de imprensa -, suscitou debates que culminaram na realização do I Encontro Nacional dos Jornalistas em Assessoria de Imprensa, em 1984. No ano seguinte, a Federação lançou a primeira versão do Manual de Assessoria de Imprensa, que de acordo com a própria entidade “chegou como única referência baseada nas reflexões dos profissionais atuantes na área”242. A mudança no pensamento da FENAJ acerca da prática da assessoria

de

imprensa

teve

várias

reverberações

que

sofrem

modificações até os dias atuais. Esta legitimação é uma característica da assessoria de imprensa praticada no Brasil. Em diversos países, como acontece com Portugal, o profissional que for atuar no segmento e possuir registro como jornalista tem que optar por uma das duas atividades. Segundo Sousa e Moutinho (2011), na União Europeia a assessoria de imprensa – cujas atividades e funções são idênticas à do Brasil - é uma atividade do profissional de relações públicas e incompatível com o exercício jornalístico. Especificando o caso de Portugal, os autores esclarecem que “para exercerem assessoria de imprensa, os jornalistas portugueses necessitam de suspender temporária ou definitivamente o exercício da profissão, entregando a Carteira Profissional dos Jornalistas” (SOUSA e MOUTINHO, 2011, p. 42); em seguida, os autores chegam ao cerne da questão ao se indagarem: Por exemplo, se um assessor de imprensa assessora de manhã determinada empresa e à tarde, em seu jornal, recebe informações que podem prejudicar essa mesma empresa, será 242

Informação retirada do sítio http://www.fenaj.org.br/public.php.

777

que fará uma notícia lesiva para a empresa onde obtém parte de seus rendimentos? Provavelmente, não.

Esta realidade relatada como sendo portuguesa é totalmente diferente

do

caso

brasileiro,

porém

esta

situação

hipotética

apresentada poderia com facilidade representar a realidade das redações jornalísticas do nosso país. Propomos que a questão seja refletiva a fundo. Uma das prerrogativas que podem ser lançadas diz respeito ao piso salarial do jornalista no Brasil, que historicamente é desvalorizado. No Rio Grande do Norte, o valor fica abaixo de dois salários mínimos243, o que cria a necessidade de se ter mais de um emprego para o jornalista manter-se. Além disso, há uma predileção por parte do assessorado com relação ao assessor de imprensa que trabalha em redações, visto que esse fato supostamente pode trazer benefícios no momento de publicar o material do cliente. Outra realidade que pode ser retratada, até mais próxima ao Brasil que a Europa, é o caso dos Estados Unidos. No berço das relações públicas, segundo Amaral (2011), os assessores são muito valorizados e respeitados como profissional, chegando a ser apontados como colaboradores diretos para o sucesso de assessorados. Um fato que chama atenção é apontado pelo autor, que relata que para os norteamericanos não é obrigatório ter registro e diploma para atuar como relações públicas, assessor de imprensa ou jornalista. 5. PERCURSOS DA PESQUISA A metodologia do artigo consistiu em pesquisa exploratória (LAKATOS e MARCONI, 1991) e revisão bibliográfica. No entanto, a pesquisa de mestrado que originou o recorte deste artigo está com a metodologia mais ampla. No estudo original constatamos que, a partir da metodologia da pesquisa exploratória (LAKATOS e MARCONI, 1991) -

243

Valor consultado em agosto de 2012: R$1.050,00. Fonte: http://www.fenaj.org.br/pisosalarial.php.

778

que dentre outras funções visa esclarecer conceitos, principalmente com temas pouco explorados -, podemos constatar que o campo da assessoria de imprensa possui diversas hipóteses pesquisáveis. O método de estudo da etnometodologia (COULON, 1995) está sendo usado para investigarmos a prática do jornalista-assessor ou assessor-jornalista, pois por meio dele descobriremos a visão do indivíduo acerca de suas próprias práticas nessa situação específica, a partir dos sentidos que lhe dá enquanto fala/descreve/relata o que faz, já que a estratégia considera a linguagem comum como locutora da realidade social. Outro método que poderá contribuir com a pesquisa é a perspectiva da etnografia (COULON, 1995). Uma das estratégias que serão utilizadas é a entrevista em profundidade (DUARTE e BARROS, 2008). A construção da primeira proposta de pesquisa requereu um contato inicial com nosso campo empírico. Recorremos a ele em busca de informações acerca da concentração de jornalistas assessores ou assessores jornalistas na capital potiguar. Por meio de abordagem via Twitter, com mensagens trocadas entre 30 de maio e 05 de junho de 2012, constatamos que a televisão é a mídia tradicional na qual mais facilmente encontramos o profissional com a característica de trabalhar concomitantemente como jornalista e assessor de imprensa em NatalRN. No

levantamento

realizado,

foram

identificados

quatro

profissionais que trabalham na TV Assembleia, três na InterTV Cabugi, um na TV Câmara, um na TV Pontanegra e um na TV Tropical, todos com a experiência de atuar ao mesmo tempo como assessores de imprensa. Nesta etapa da pesquisa, começamos a formar uma rede de contatos com estes profissionais. É possível que no decorrer da pesquisa os sujeitos mapeados como assessores jornalistas ou jornalistas assessores sofram mudanças de trabalhos. Essa mobilidade é comum entre os profissionais da área de Comunicação, porém o que a pesquisa pretende investigar não é 779

afetado por esta realidade empírica da assessoria de imprensa, pois o fenômeno permanece independente da mudança de emprego. Para tanto, faremos diferenciação entre os que têm experiência passada e os que estão atuando nestas condições na atualidade da colaboração com a pesquisa. Um critério adotado para a escolha dos sujeitos da pesquisa é o vínculo empregatício que eles têm com a TV e com a assessoria de imprensa, pois entendemos que não há como comparar um jornalistaassessor ou assessor-jornalista que atue em uma das duas áreas apenas como freelancer (RAINHO, 2008) com um sujeito que trabalha concomitantemente nos dois espaços analisados com conhecimento prévio de seus chefes diretos. Será feita diferenciação entre quem trabalha na TV como repórter, pauteiro ou em outros cargos; como também quem atua em assessorias de imprensa como funcionário público ou privado, proprietário de empresa ou com outros tipos de empregatício. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Percebemos que a assessoria de imprensa não é constantemente investigada

no

âmbito

acadêmico,

no

que

diz

respeito

ao

aprofundamento acerca das implicações éticas da prática do profissional que atua concomitantemente como assessor de imprensa e jornalista televisivo. Notamos também a necessidade de caracterizar a heterogeneidade de práticas que configurariam um mapeamento brasileiro de assessoria de imprensa, o que julgamos necessário para que se entenda o caso específico brasileiro. Trinta anos atrás, a atuação em assessoria de imprensa por jornalistas ainda era um tabu no próprio meio jornalístico, principalmente pelo fato da atividade não ser, à época, reconhecida pela FENAJ. Na atualidade, a atividade evoluiu neste aspecto, porém ainda é possível encontrar registros de um preconceito de classe com relação aos 780

jornalistas que atuam nesse segmento, sob alegação que trata-se de um serviço não regido pela ética. Somente a investigação de práticas empíricas podem nos fazer ir além dessa visão do senso comum, muitas vezes, carregada de prejuízos. Há pesquisadores e profissionais que acreditam que o assunto já foi finalizado e que o tabu da assessoria já foi “cicatrizado”, porém podemos perceber no mercado potiguar que ainda há muito a ser investigado. É evidente que o tema não está próximo de seu esgotamento, porém propomos uma contribuição à temática.

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das

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784

POLÍTICAS PÚBLICAS E AGRICULTURA FAMILIAR: A EXPERIÊNCIA DO PROGRAMA DE AQUISIÇÃO DE ALIMENTOS EM MUNICÍPIOS PARANAENSES

André A. Michelato Ghizelini244 Resumo: Este artigo tem como objetivo apresentar os dados e as análises da pesquisa desenvolvida sobre o Programa de Aquisição de Alimentos, com doação simultânea. Pesquisa que foi desenvolvida no Estado do Paraná, em dois municípios: Fernandes Pinheiro (5.932 habitantes) e Turvo (13.811 habitantes), ambos localizados na região centro-sul do Estado, sendo 11 famílias de agricultores no primeiro município e 34 famílias no município de Turvo, totalizando uma amostra de 45 famílias. Ao final da pesquisa foi possível constatar que os agricultores e as associações pesquisadas conquistaram em função do Programa o reconhecimento social, político e econômico, assim como o Programa permitiu a alteração da organização da produção e dos mecanismos de comercialização até então utilizados pelos agricultores. Palavras Chave: Sociologia Rural, Agricultura Familiar, Comercialização, Programa de Aquisição de Alimentos.

INTRODUÇÃO: O PAA E A PESQUISA

O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), é uma política pública que tem como objetivo a aquisição de alimentos diretamente de

agricultores

familiares

e

sua

disponibilização

para

estoques

reguladores, como também para o abastecimento, através da doação destes

alimentos,

para

instituições

e

famílias

em

situação

de

insegurança alimentar. Segundo informações do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), no período de 2003 a 2010, o PAA investiu mais de R$ 3,5 bilhões na aquisição de 3,1 milhões de toneladas de alimentos, de cerca de 160 mil agricultores/ano, sendo que produtos abastecem anualmente 244

Graduado em Psicologia (UFPA), Mestre em Sociologia (UFPA) e Doutor em Sociologia (UFPA). Professor Universitário (UNIMETRO/UFES). [email protected].

785

25 mil entidades. Para 2011, o orçamento do programa foi de R$ 640 milhões (BRASIL, 2012). Diante de tamanha envergadura e complexidade, pesquisas e estudos tem sido realizados de forma a compreender, desde o formato organizacional, passando pelo impacto na renda dos agricultores familiares, como também na segurança alimentar destes e das populações beneficiadas com a doação dos alimentos. Para tanto, este artigo é resultado de uma pesquisa, realizada entre os anos de 2006 e 2010, que teve teve como objeto de estudo o PAA com doação simultânea, tendo como local para o levantamento dos dados foram coletados no Estado do Paraná, em dois municípios, Fernandes Pinheiro (5.932 habitantes) e no município de Turvo (13.811 habitantes), ambos localizados na região centro-sul do Estado, sendo que no primeiro município o responsável pela operacionalização do PAA era a Associação dos Grupos de Agricultura Ecológica São Francisco de Assis (ASSIS), com um total de 11 famílias de agricultores familiares, e no município de Turvo a responsável pela gestão local do PAA era a Associação dos Grupos de Agricultura Ecológica de Turvo (AGAECO), com um total de 34 famílias de agricultores familiares, totalizando em 45 famílias a amostra da pesquisa. A atividade de campo da pesquisa foram realizadas através de entrevistas estruturadas e semi estruturadas, em 100% das famílias de agricultores

participantes

do

PAA

nestes

municípios.

Além

das

entrevistas com os agricultores, foram realizadas entrevistas com lideranças sociais e políticas, técnicos e representantes das instituições beneficiadas, técnicos das prefeituras municipais e representantes de organizações não governamentais de assessoria rural, com o objetivo de investigar e compreender em que medida o PAA impacta nas relações de reconhecimento e participação social e política destes agricultores no município, assim como compreender de que forma o Programa de Aquisição de Alimentos contribui ou não para a reorganização

das

formas

e 786

estratégias

de

produção

e

comercialização dos agricultores familiares. E desta forma, em que medida esta reorganização, se realmente houve, contribuiu ou não para a articulação e emergência destes agricultores enquanto atores do processo de desenvolvimento, fundado nas relações econômicas, políticas e sociais, e não meramente nas relações econômicas. Assim, mais do que compreender de que forma o PAA tem impactado na vida, ou melhor, na qualidade de vida dos agricultores familiares, seja no aumento da renda ou na qualificação positiva do trabalho e das relações familiares, esta pesquisa buscou investigar em que medida o PAA proporciona condições para que agricultores e suas organizações avancem para a construção de relações locais mais autonômas e de reconhecimento enquanto atores. Para tanto, faz-se necessário e indispensável a compreensão do que vem a ser ator. Este, se produz a partir da efetivação de um projeto de vida, que articulado entre os desejos e anseios coletivos, possam reconhecer no indivíduo condição indispensável para sua efetivação. Para tanto, o indivíduo e suas organizações só se (re)produzem enquanto atores quando resistem à dominação, lutam por liberdade e reconhecem o outro enquanto ator. A resistência à dominação é condição fundante para que o ator não tenha no mercado o ideal de mundo, muito menos tenha na comunidade245 espaço uno de (con)vivência. Pelo contrário, tanto um quanto outro podem se constituir enquanto formas de dominação e homogeneização do indivíduo e das coletividades. A resistência à dominação, da mesma forma que mantém o ator distante dos processos homogeneizadores, propicia que reconheça o

245

A noção de comunidade tem como norte a ideia de massificação, de relações estabelecidas a partir de ideologias e dogmas que impossibilitam o ator de repensar criticamente suas práticas sociais. A noção de comunidade não tem a objetividade da comunidade enquanto locus, mas enquanto noção de comunitarismo, que desconstrói a idéia de que os indivíduos e as organizações possam quebrar as amarras de um sistema social imposto e inquestionável. Mas, ao mesmo tempo, a noção de comunidade traz consigo os princípios de solidariedade, de identidade, de construção coletiva de um projeto, sendo condição fundante para que o ator se constitua enquanto tal, pois a individualização é o atrelamento ao mercado e a racionalidade instrumental. Da mesma forma, a relação unidimensional com a comunidade leva o ator a se instituir enquanto objeto de ideologias e dogmas.

787

outro e este a si mesmo enquanto ator, possibilitando a quebra do isolamento e da individualidade contida anteriormente. Assim, como a resistência à sociedade de mercado (capitalista) e a comunidade (enquanto forças homogeneizadoras) são condicionantes para a produção do ator, é necessário a afirmação de um projeto coletivo perante a organização social. O individuo isolado de processos coletivos de reconhecimento e de autonomia não conquista sua condição de ator. Nesta perspectiva, a organização coletiva é o espaço onde os atores se articulam por um projeto coletivo com o objetivo de reivindicar e lutar por princípios e um projeto (de vida e coletivamente referenciado) contra um poder hegemônico. A ação coletiva é quem subsidia a produção do ator e vice-versa. Assim, os camponeses e suas organizações só se instituem enquanto atores, a partir do momento em que se defendem da sociedade de mercado, ao mesmo tempo em que propõem um projeto e estratégias coletivas (alternativas) a este atual modelo econômico e social, de forma que permitam a estes inserir-se economicamente nos processos sociais, mas preservando sua condição e seus espaços coletivos e individuais que lhes garantam sua reprodução social, sua identidade e sua autonomia, ou seja, seu projeto coletivo. No entanto, com o advento da Revolução Verde e das formas modernas de agricultura, alteraram-se as bases tecnológicas de produção e as relações de mercado. Deve-se frisar que não foi apenas isso. Modificaram-se progressivamente as bases organizativas das comunidades e grupos sociais do campo, além da cultura e da relação homem-natureza, imobilizando o indivíduo e suas organizações numa rede

de

relações

dominadas

pela

razão

e

pelo

capital.

As

consequências deste processo são, em certa medida, uma crise sociocultural, que descaracteriza sua relação com a natureza e a relação com o outro, fragmentando e desconstruindo a dinâmica social 788

e cultural presente nas comunidades, assim como as formas de produção e comercialização existentes nestes espaços sociais. No entanto, não

será a negação da

tecnologia e da

organização da produção para o mercado que manterá ou restituirá a condição de vida camponesa, mas a articulação entre a condição camponesa

(subjetivação,

projeto

de

vida

e

autonomia),

a

organização sócio-política (identidade, reconhecimento e projeto coletivo) e a relação com o mercado (racionalização); são esses elementos que possibilitarão a produção dos camponeses enquanto atores sociais. Estabelecer relações com o mercado, por si só, não são razões para

a

desconstrução

da

condição

camponesa,

mas

o

que

potencializa esta é a forma como os agricultores estabelecem relações com estes mercados. Como exemplo, a integração agroindustrial e a produção de commodities

agrícolas

têm

pressionado

para

que

a

pequena

agricultura estabeleça novas formas de produção, impactando diretamente nas relações familiares, no trabalho, na organização social e política e nas

relações locais e comunitárias, ou

seja, na

reorganização das condições de vida para uma agricultura moderna. Assim, o ator tem a intenção de utilizar-se do progresso técnico desde que esse não o faça objeto, não o torne instrumento, e é por este motivo que o ator luta por sua liberdade, luta para que sua cultura, suas crenças e seu projeto coletivo sejam respeitados e reconhecidos enquanto tal. O acesso dos agricultores ao Programa de Aquisição de Alimentos, tanto do município de Fernandes Pinheiro como do município de Turvo, ocorreu, necessariamente, em função de que havia uma organização formalmente constituída, como é o caso da ASSIS e da AGAECO. No entanto, mais do que a constituição de uma organização formal, o acesso ao PAA implica na organização coletiva da produção, 789

de forma a dar escala à produção familiar, como também estabelecer a organização coletiva em torno do processo de distribuição e logística, mas, fundamentalmente, a partir da construção de um projeto coletivo que estabeleça os pressupostos políticos deste processo organizativo, que permitem o seu reconhecimento para estabelecer o dialogo e operacionalizar o PAA. Assim, a constituição enquanto atores sociais não se dará em função da simples formatação de uma organização burocraticamente constituída e de processos de negociação e comunicação, mas será, também, em função do quanto esta organização de agricultores está mobilizada em torno de um projeto político. As associações pesquisadas tem um projeto coletivo fundado na agroecologia, mas mais do que isto, tem formulado e fundado suas ações

em

processos

de

comercialização

locais,

aproximando

agricultores da população urbana local de forma a promover o reconhecimento do rural pelo urbano e vice versa. Portanto, o projeto coletivo dos agricultores da amostra se constrói

a

partir

agroecologia,

na

de

pressupostos

segurança

de

alimentar

um dos

projeto

fundado

agricultores

e

na dos

consumidores, mas também na aproximação entre a produção e o consumo, retirando os intermediários do processo de comercialização e, assim, possibilitando outras formas de relação entre o rural e o urbano. Vale ressaltar que os agricultores e os representantes das associações pesquisadas afirmam que foi o PAA que permitiu a consolidação deste projeto fundado na agroecologia, pois a garantia da comercialização desta produção tem estimulado e viabilizado a conversão agroecológica numa velocidade muito superior do que verificava-se anteriormente. Desta

forma,

o

PAA

tem

oportunizado

a

visibilidade

e

reconhecimento dos agricultores a partir de motivações objetivas do

790

Programa, como a questão financeira246, mas, fundamentalmente, a partir da possibilidade de serem reconhecidos política e socialmente, sejam nas relações entre agricultores e comunidades rurais, mas também partir do reconhecimento pela sociedade envolvente. Nesse sentido, a afirmação e o reconhecimento enquanto atores não se dará apenas pela valorização do trabalho e da renda, pela valorização política da sociedade e organizações

locais, mas,

fundamentalmente, pela valorização e reconhecimento de um projeto coletivo que se materializa na proposta da agroecologia e da participação em mercados locais. Este projeto está fundado na organização política dos agricultores em torno das associações, na valorização econômica através da participação nas feiras e no PAA, na produção agroecológica e no debate sobre a formação de mercados locais para a agricultura familiar. Como

demonstrado

nos

dados

sobre

as

formas

de

comercialização utilizadas pelos agricultores, antes do PAA, ou seja, em 2003, e “atualmente”, no ano de 2008/09. GRÁFICO 01 - PORCENTAGEM DE AGRICULTORES E OS LOCAIS DE COMERCIALIZAÇÃO DA PRODUÇÃO, ANTES DO PAA (2003) E NO ANO DE 2008. O autor (2008).

E assim como o PAA tem oportunizado uma a alteração das formas de comercialização da produção, houve uma alteração 246

Segundo dados das entrevistas, 87% dos agricultores afirmam terem aumentado a renda a partir da participação no PAA, sendo que 81% dos agricultores relatam que este aumento representa até 300 reais por mês. No que se refere à renda familiar, 64% dos agricultores afirmam que a renda obtida no PAA representa até 50% da renda familiar total.

791

significativa dos produtos produzidos para comercialização pelas famílias de agricultores participantes do Programa, como demonstrado na Tabela 01, que segue abaixo.

TABELA 01 - PRODUÇÃO DESTINADA PARA A COMERCIALIZAÇÃO PELOS AGRICULTORES FAMILIARES DA AMOSTRA, REFERENTE AO PERÍODO ANTERIOR AO PAA, 2003, E NO ANO DE 2008 ANTES DO PAA - 2003

DURANTE O PAA - 2008

N° Agricultores

% de Agricultores

N° Agricultores

Amendoim

02

04

27

60

Arroz

05

11

07

16

Batata doce

01

02

37

82

Bicho da Seda

03

07

00

00

Carvão

02

04

01

02

Derivados de Leite

00

00

06

13

Erva Mate

10

22

16

36

Feijão

30

67

21

47

Frutas

00

00

25

56

Fubá

00

00

01

02

Fumo

02

04

01

02

Geléias e Doces

00

00

06

13

Hortaliças

02

04

44

98

Legumes

01

02

30

67

Leite

05

11

17

38

Mandioca

02

04

37

82

Mel

01

02

05

11

Milho Seco

23

51

00

00

Milho Verde

00

00

27

60

Ovos

01

02

30

67

Panifícios

02

04

17

38

Pequenos Animais

07

16

02

04

Pinhão

02

04

26

58

Soja

07

16

03

07

Sucos

00

00

05

11

Não Comercializava

09

20

00

00

PRODUTOS

Fonte: o autor (2010) 792

% de Agricultores

Para

tanto,

a

noção

de

ator

é

fundamental

para

compreendermos este processo que vem ocorrendo nestes dois municípios, pois os agricultores alteraram de forma significativa a lógica produtiva e os mecanismos de comercialização acessados, como demonstrado nos dados apresentados acima. No entanto, este processo não se deu exclusivamente em função de uma racionalidade econômica, mas também em função de um projeto coletivo que permite aos agricultores fortalecerem sua condição camponesa e, principalmente, serem reconhecidos enquanto atores nos espaços locais. Para tanto, este projeto coletivo passa a ser reconhecido e legitimado pela sociedade envolvente a partir do momento em que as racionalidades interpostas no processo, vão além do econômico. Os agricultores e suas organizações se afirmam enquanto projeto coletivo, a partir da defesa pela agroecologia e pela organização coletiva. No entanto, este projeto não predispõe uma desarticulação com estratégias de mercado, pelo contrário, aproximou os agricultores de processos de comercialização e estes são construídos a partir do projeto coletivo dos agricultores. Assim, mais do que ampliar as formas de relação com o mercado, o PAA possibilitou a afirmação e emergência dos agricultores enquanto atores, a partir do reconhecimento do projeto coletivo, pois o Programa oportunizou: 1) o fortalecimento das relações organizativas dos agricultores em torno das associações e nas redes sociais (Rede Ecovida, relação com ONGs, com governos, com a sociedade envolvente etc); 2) a ampliação dos processos de comercialização que garantam a autonomia fundada numa lógica camponesa; 3) o reconhecimento dos agricultores nos espaços locais e; 4) fortaleceu a organização dos agricultores em torno de um projeto coletivo, agroecológico e de afirmação

econômica e política diante dos

espaços locais (instituições políticas, processos de comercialização e 793

abastecimento alimentar). Portanto, diferentemente de processos organizativos que excluem os agricultores de processos comerciais ou geram uma dependência excessiva para com lógicas econômicas consideradas modernas, o PAA tem demonstrado a capacidade de instrumentalizar estes grupos de agricultores de forma a garantirem a reprodução enquanto camponeses e, fundamentalmente, para conquistarem a condição de atores sociais nos espaços locais a partir da defesa de um projeto coletivo que lhes permitam articular a dimensão econômica com a dimensão política. Assim, as consequências e resultados advindos do processo de participação

dos

agricultores

no

PAA,

não

se

resumem

à

instrumentalidade econômica, mas têm contribuído significativamente para a afirmação e reconhecimento dos agricultores enquanto atores. Este reconhecimento passa, necessariamente, pela afirmação de um projeto coletivo. No entanto, o reconhecimento se dará pela articulação entre projeto coletivo e o reconhecimento do outro enquanto ator. Esta pesquisa identificou, através das entrevistas realizadas com agricultores e com a população urbana, que a partir do PAA foi possível o reconhecimento dos agricultores e das associações enquanto atores no espaço local. Este reconhecimento não se deu exclusivamente em função da entrega de alimentos, mas se deu também a partir de um projeto que se sustenta na defesa da compra governamental de alimentos da agricultura familiar agroecológica, do processo de comercialização local através das feiras, do processo organizativo em torno das associações, assim como a defesa pela co-participação das prefeituras municipais na execução do PAA. Portanto, será a partir da operacionalização do PAA que os agricultores passam a ser reconhecidos enquanto atores sociais, políticos e econômicos. No entanto, este reconhecimento está articulado ao projeto 794

coletivo dos agricultores, que, afirmado e defendido perante a sociedade envolvente, se estabelece enquanto um processo de luta para viabilizar relações de reciprocidade, afirmação e reconhecimento dos agricultores enquanto atores da realidade local. A afirmação e a emergência dos atores no espaço local se dará em função do reconhecimento de que os agricultores são produtores de alimentos, estão organizados coletivamente, são responsáveis pela gestão e operacionalização do PAA e das feiras agroecológicas, mas, principalmente, porque os agricultores passaram a interferir nos espaços locais de maneira a reorganizar a forma como a sociedade envolvente os visualizava e os reconhecia política e economicamente. A organização e o contexto social, político e econômico oportunizado

a

partir

da

participação

dos

agricultores

e

das

associações no PAA, assim como a defesa de um projeto fundado na agroecologia, têm permitido um processo de valorização e afirmação dos agricultores enquanto atores, pois a população urbana, assim como as instituições públicas e privadas (supermercados, cooperativas de crédito, etc.), vem reconhecendo os agricultores como, também, responsáveis pela produção de alimentos, pela dinamização da atividade econômica local, mas, fundamentalmente, pela melhoria da qualidade de vida das pessoas a partir da disponibilização de alimentos saudáveis. Este processo de reconhecimento não se dá apenas em função do

reconhecimento

externo

aos

agricultores,

mas

enquanto

autoreconhecimento. Assim, seja no município de Turvo ou no município de Fernandes Pinheiro, os agricultores afirmam que o reconhecimento da prefeitura municipal e da população urbana, possibilitou o fortalecimento da organização coletiva dos agricultores, seja através do reconhecimento institucional, através do financiamento e subsidio do poder público municipal

para

o

transporte

dos

alimentos,

ou

mesmo

o

reconhecimento da sociedade e das instituições locais, que permitiram 795

aos agricultores se colocarem nos processos de disputa política e de intervenção nos espaços de mercado local. Para tanto, o resgate e a reafirmação de um projeto coletivo que os identifica e possibilita a organização dos agricultores é condição para que se institua um processo de resistência, um movimento de autodefesa contra todas as ameaças. Os agricultores e as associações pesquisadas apresentam e reforçam este projeto coletivo quando reivindicam do poder público municipal

a

sua

co-participação

financeira

e

política

na

operacionalização do PAA, mas também na defesa e abertura de espaços públicos para a organização das feiras. No entanto, estes processos só foram possíveis em função da clareza do projeto que os agricultores possuem, do estabelecimento de relações de negociação e de disputa de espaço político com o poder público municipal. Vale ressaltar que este processo de negociação entre as associações e demais instituições, vem ocorrendo desde 2004, ou seja, é um processo consolidado ou em processo de consolidação, e que se inicia, exatamente, em conjunto com a participação dos agricultores no PAA. Não há como negar que as associações imprimiram um processo

que

avançou

significativamente

na

visibilidade,

no

reconhecimento e no estabelecimento de intersubjetividades com instituições

e

organizações

que

pudessem

contribuir

para

o

desenvolvimento do PAA, das feiras agroecológicas e, portanto, do projeto coletivo dos agricultores. Desta forma, é possível afirmar que o Programa oportunizou, estimulou e, de certo modo, garantiu que os agricultores e as associações pesquisadas afirmassem um projeto coletivo e sua condição enquanto ator, pois, num primeiro momento, foi a visibilidade dos agricultores no espaço urbano, através do PAA, que permitiu, num segundo momento, o reconhecimento dos agricultores enquanto produtores de alimentos e, também, enquanto agricultores que 796

participam social, econômica e politicamente do contexto local. Vale

ressaltar

que

este

reconhecimento

não

existia

anteriormente ao PAA. Os agricultores, mesmo que organizados coletivamente,

não

interferiam

diretamente

nas

estratégias

governamentais locais, no mercado local e nos espaços comunitários, da forma como passaram a intervir a partir do PAA. Desta forma, é possível afirmar que o Programa de Aquisição de Alimentos possibilitou a afirmação dos agricultores e de suas associações enquanto atores sociais, políticos e econômicos destes espaços locais. O reconhecimento e, consequentemente, a emergência dos agricultores enquanto atores sociais ocorreu não apenas em função da visibilidade dos agricultores nos espaços institucionais e sociais, mas, fundamentalmente, em função da afirmação institucional e política das associações através da operacionalização do PAA e da organização das feiras de produtos agroecológicos. A articulação entre o reconhecimento e a emergência enquanto atores se efetiva também na dimensão política, pois a participação e a interferência em processos políticos locais estão imbricadas

na

correlação

entre

a

afirmação

do

ator

e

o

reconhecimento político. No entanto, esta condição passa pela organização coletiva e pela estruturação de processos produtivos que possibilitem condições de autonomia e liberdade, que permitem, assim, o reconhecimento social do trabalho e da condição dos agricultores enquanto atores. Desta forma, o PAA, se de um lado, possibilitou fortalecer um projeto coletivo que já vinha sendo estruturado pelos agricultores, de outro possibilitou as condições para que este projeto ganhasse força e visibilidade para com a sociedade envolvente e, consequentemente, reconhecimento e legitimidade social e política de participação nos espaços locais. Assim, ao final da pesquisa foi possível constatar que os agricultores

e

as

associações 797

pesquisadas

passaram

a

ser

reconhecidos/as no município e região, em função da participação no PAA. Reconhecimento este que caracteriza-se pelo: 1) reconhecimento social, pois a sociedade local passou a legitimar as ações das associações em função de que verificou-se que a alimentação escolar e das entidades sociais beneficiadas pelo PAA, melhorou de forma significativa a alimentação disponibilizada, o que antes eram alimentos enlatados e secos, agora são alimentos frescos, diversificados e agroecológicos; 2) reconhecimento político, pois foi a partir do PAA, que a prefeitura municipal, o governo estadual e federal, passaram a legitimar as associações de agricultores enquanto atores jurídicos e políticos, pois estes passaram a ter a responsabilidade em operar uma política pública, responsabilidade esta que historicamente era do poder público, como também a prefeitura municipal passou a co-financiar a logística e assessoria técnica, em função da legitimidade conquistada socialmente, mas também em função da participação política nas políticas publicas municipais; 3) reconhecimento econômico, pois a sociedade local passou a visualizar na agricultura familiar, um grupo social que, anteriormente invisível, e que a partir do PAA passam a ser reconhecidos como atores do processo de desenvolvimento local. Vale destacar que os agricultores e suas associações, em ambos os municípios, conseguiram montar feiras livres, em função da participação no PAA, pois foi a partir deste momento que a população urbana pode estabelecer relações de reconhecimento e confiança com os agricultores, assim como os agricultores viram na população da cidade, parceiros de primeira ordem para viabilizar seus projetos, seja de ordem econômica, do mundo da vida, ou mesmo da organização social e política. Para tanto, diante da complexidade que é o Programa de Aquisição de Alimentos, é necessário que pesquisas sejam realizadas para que um maior número de famílias de agricultores e de municípios, assim como análises comparativas entre estados, pois os dados finais da 798

pesquisa, demonstram claramente, que nas comunidades e agricultores pesquisados, a produção dos atores se deu em função da participação no PAA. Outra questão fundamental que emerge a partir desta pesquisa, é a questão de que o PAA não pode ser visto ou entendido, exclusivamente

ou

prioritariamente,

enquanto

uma

política

compensatória, ou então, enquanto uma política de melhoria da qualidade de vida, muito menos enquanto uma política de melhoria da renda dos agricultores, este foco fica demonstrado, através desta pesquisa, que é limitador e impede uma compreensão mais ampla das verdadeiras necessidades de investimento que a agricultura familiar necessita para sair da situação de pobreza e invisibilidade que vem convivendo na modernidade brasileira.

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800

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801

PRONAF B, USO ALTERNATIVO E A REVELAÇÃO DE PARTICULARIDADES DA AGRICULTURA FAMILIAR

Márcio Monteiro Maia247 Resumo: Tem por objetivo promover a reflexão sobre a possibilidade de identificar nos “desvios” do Pronaf, não uma dificuldade de adaptação ao mercado, mas sim, a expressão de características particulares de um tipo de agricultura familiar, em contato com a lógica econômica envolvente. Utilizando o diálogo com autores da temática abordada, permite pensar as políticas públicas nesta área, sob a perspectiva da diversidade desta realidade, em detrimento de generalizações, revelando um choque entre uma lógica dominante e as locais. Compreende, portanto, menos um desvio e mais um uso alternativo realizado por determinado tipo de agricultura familiar, distanciando esta categoria de generalizações e expressando a diversidade existente. Palavras-chave: Agricultura familiar; Uso alternativo; Pronaf B; Políticas Pública

CONSIDERAÇÕES INICIAIS O crédito rural no Brasil surge através do Sistema Nacional de Crédito Rural em 1965, por meio da lei nº 4829. Serve como instrumento e atende às especificidades da proposta modernizadora da produção agrícola, notadamente, as práticas econômicas de bens e serviços das esferas públicas e privadas que são orientadas por esta política que assume uma posição de destaque frente às demais. Inicialmente, enfatizando o controle do Estado sobre a produção rural, as metas do governo brasileiro eram de que esse crédito fosse utilizado na industrialização do campo, através da aquisição de máquinas e modernos insumos agrícolas, demandando a maioria das receitas oferecidas às áreas de custeio e investimento, que evidentemente não chegavam à totalidade da grande massa de pequenos produtores.

247

Graduado em Ciências Sociais (UFRN), Mestre em Sociologia (UFRN), Doutorando no Programa de Pós-Graduação Ciências Sociais (UFRN). Professor Efetivo (SENAI).

802

A lógica do aumento da produtividade para atender demandas crescentes de mercado, produz efeitos por parte das políticas públicas (DRAIBE, 2001), que expressam o choque de lógicas existentes na realidade social, entre o particular e o dominante. Como exemplo, a agricultura familiar tem características próprias e igualmente diversas são as formas de adaptação aos sistemas econômicos vigentes, decorrentes das variações ideológicas do capitalismo. Em meio às dificuldades pertinentes do trabalho na terra como meio de retirar os produtos necessários ao consumo interno familiar e a venda para aquisição de bens e serviços considerados de necessidade, as formas de adaptação à realidade ambiental, econômica e social em que as famílias se encontram, provém da busca de diversas soluções, em sua maioria de curto prazo e de evidente fragilidade trabalhista, para complementar a receita familiar. Como a ocupação em

outras

propriedades,

agroindústrias

e

em

outros

casos,

o

deslocamento a área urbana mais próxima para outros serviços a serem prestados. É criado neste contexto, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar em meados dos anos 90, o Pronaf, no intuito de atender a demanda dos movimentos sociais e organizações afins, sobre a problemática do agricultor familiar. Seria a extensão complementar ao rural da produção familiar, das políticas de crédito que perduram desde os anos 70. Oferece crédito a diversas modalidades de agricultura familiar, classificadas menos em relação às suas características particulares e mais quanto a receita familiar com origem na unidade produtiva ou em outros programas governamentais, assim como atividades fora da unidade. Percebe a reaplicação do recurso adquirido no contrato do programa, como desvio de finalidade e aplica medidas restritivas de crédito, como a inclusão do beneficiário em órgãos de proteção ao 803

crédito, considerando geralmente a ocorrência como incapacidade para gerir atividades agrícolas empreendedoras, desconsiderando um possível choque de realidades no momento em que é exposto ao agricultor

familiar

suas

opções

pré-estabelecidas

de

atividades

agrícolas e não agrícolas que poderá contratar. O chamado desvio pode revelar maior riqueza, pois esta reaplicação dos recursos contratados pode ser considerado com maior liberdade de interpretação, um redirecionamento que expressa uma agricultura familiar específica, capaz de adquirir equipamentos que diversifiquem a geração da receita familiar e ainda pagar o valor contratado ao final do prazo. Ou ainda, mesmo que adquira um produto para uso familiar e não gere receita, é o atendimento material considerado essencial para a subsistência da família, extrapolando este conceito

último

como

exclusivo

das

necessidades

ligadas

à

alimentação. As idéias aqui presentes procuram analisar estes desvios ou redirecionamentos ocorridos em alguns contratos do Pronaf, por meio dos conceitos ligados à agricultura familiar e trazer à tona a impossibilidade da generalização desta, como distinção apenas pela receita presente na família, mas o reconhecimento de agriculturas familiares com suas particularidades e sistemas próprios, que se relacionam com a economia envolvente (CHAYANOV, 1985) e que o sucesso ou fracasso de políticas como o Pronaf, dependem desta relação.

1. AGRICULTURA FAMILIAR OU AGRICULTURAS FAMILIARES. Classificar a agricultura familiar como de características de subsistência, pode incorrer ao erro de empobrecer o entendimento sobre essa dinâmica do trabalho familiar no rural, inclusive dentro do próprio termo subsistência. Chayanov traz como contribuição a este 804

termo, que não se restringe somente em nível de alimentação, mas trata de tudo aquilo que a família identifica como necessidade. Este mesmo autor chama atenção para uma lógica econômica própria campesina, diferente da lógica econômica envolvente. Em que podemos enumerar alguns pontos:  A relação entre Trabalho x Consumo é determinada pelo número de pessoas da família para alimentar x número de braços para trabalhar;  Quanto à subsistência, as necessidades da família nascem em seu interior, e são definidas pela cultura histórica;  Necessidade da família em contraposição a do indivíduo. Pode-se analisar alguns destes pontos, retomando o conceito de agricultura familiar, notando em primeiro momento que nem toda agricultura familiar é campesina. Existem grupos completamente inseridos na lógica da economia envolvente e se utilizam de insumos, financiamentos sob a perspectiva desta, ainda assim, com a utilização da força de trabalho familiar denotando um outro tipo a se inserir neste conceito. Como tipificadas

também como

existem

campesinas,

modalidades mas

dotada

únicas de

dificilmente

especificidades

particulares. Mesmo notando a existência de agriculturas familiares em detrimento de um termo singular generalizante, o nível de integração com a economia envolvente não é determinante para tipificar, mas sim, a busca pela compreensão da existência de uma lógica particular que se relaciona com esta economia, podendo inserir modificações em seu

cotidiano,

mas

não

necessariamente

merecendo

uma

desqualificação quanto estrutura organizacional única familiar. Notadamente

quando

nos

estudos

do

campesinato

por

Chayanov, em relação a trabalho x consumo, por exemplo, percebe-se a medida em que a força de trabalho diminui e o número de crianças 805

sem idade para o trabalho aumenta, ou seja, quando sobe o número dos membros da família que ainda não constituem força de trabalho, os insumos assumem um papel “compensador” desta carência temporária, não ligada ao incremento da produtividade para aumento dos lucros, mas sim, para o atendimento de uma demanda específica. Deste exemplo nota-se claramente um tipo de choque entre realidades ou lógicas, impossível de tratar por base em generalizações ou incapacidade de adaptação à lógica envolvente. Com relação à produtividade, o essencial é observar sua natureza própria e particular, reconhecer e mergulhar em um sistema único em constante interação com as realidades ao seu redor, nem sempre tomando suas lógicas, mas procurando atender suas demandas internas, características de sua unidade familiar. Segundo Mendras (1978), são cinco as características das sociedades camponesas:  uma relativa autonomia face à sociedade global;  a importância estrutural dos grupos domésticos,  um sistema econômico de autarcia relativa;  uma sociedade de interconhecimentos;  função decisiva dos mediadores entre a sociedade local e a sociedade global. Partindo deste pressuposto, Wanderley (1996) analisa a agricultura familiar brasileira sob o olhar de sua diversidade, suas características particulares mais em face do processo histórico social do país e menos ao conceito de campesinato clássico. Relaciona ainda o fato do agricultor familiar adaptado ou que procura

adaptar-se

a

novos

contextos

sócio-econômicos,

não

necessariamente produzir uma ruptura com tipologias enraízadas, mas sim, permite um “agricultor de tradição camponesa” capaz de adaptar-se às novas exigências da economia envolvente, enfatizando

806

a existência de agriculturas familiares em detrimento de uma agricultura familiar.

2. PRONAF E AGRICULTURA FAMILIAR. A agricultura familiar é visualizada perante as políticas públicas relacionadas, a partir da ótica econômica rural dos processos de industrialização do campo ocorridos historicamente no Brasil. Somada às políticas de crédito voltadas para diversos setores, a produção rural teve acesso a tais políticas que tinham por objetivo financiar a estrutura necessária para o aumento da produtividade, principalmente por meio dos insumos agrícolas com extensão as demais etapas, como a colheita por exemplo. Assim, o crédito rural surge através do Sistema Nacional de Crédito Rural em 1965, por meio da lei nº 4829. Dentre pequenas, médias e grandes unidades produtivas, tais políticas beneficiaram em grande escala estas últimas, principalmente em razão de sua própria natureza como maior garantia de retorno do investimento, maior facilidade no acesso à burocracia bancária, dentre outros. Na perspectiva de atender a demanda social da chamada agricultura familiar, foco de movimentos sociais e organizações relacionadas, o crédito voltado especificamente para este público surge por meio do Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf. Mais uma vez a política pública exercida por meio do financiamento

da

produção,

é

exercida

como

alternativa

às

problemáticas advindas do processo de industrialização do campo e por conseqüência inicia outro de exclusão de diversos setores do rural, inclusive a agricultura familiar. Exclusão esta, das condições necessárias 807

para a inserção no mercado, embora incluído no interior do sistema capitalista de produção. Como toda política de crédito, o Pronaf tem orientações coercitivas junto ao beneficiário, para que obtenha o máximo de eficácia e eficiência, caracterizando o “sucesso” ou “fracasso” da política. Estas “orientações coercitivas” se expressam em todas as fases de acesso do agricultor familiar ao crédito, desde as orientações quanto à escolha da atividade agrícola ou não-agrícola a ser contratada, passando pela fiscalização do fiel cumprimento por parte do beneficiário dos pré-requisitos, até o pagamento do valor acordado com a instituição bancária. Coercitivas, pois como todo programa baseado no sistema de financiamento por meio do crédito, possui mecanismos que visam coagir, não só o pagamento da parte acertada do financiamento, devido ao abatimento de porcentagem específica, mas o controle por via

econômica

dos

agricultores

familiares

beneficiários,

agora

integrados ao mercado agropecuário. Estas coerções se expressam na inclusão dos nomes e CPF em cadastros públicos de devedores (SPC, SERASA), impossibilidade de outros financiamentos do Pronaf e dificuldades de acesso a outros programas. No momento em que o agricultor, dotado de lógica própria de relação da unidade familiar com a economia envolvente (CHAYANOV, 1985), toma o dinheiro por meio do contrato pelo Pronaf e aplica parte ou todo em atividade não prevista no programa, é identificado como desvio de finalidade. Esta identificação pode ocorrer no momento do acompanhamento de execução da atividade contratada, por órgão designado como o de extensão rural, EMATER local ou próprio banco, por exemplo, o agente ou técnico local do Banco do Nordeste, o Agroamigo.

Ainda

ocorre,

mais

comumente,

no

momento

da

impossibilidade do pagamento do valor estabelecido no contrato, embora muitos, mesmo diante desta situação de reaplicação, paguem 808

em dia devido o sucesso de seu investimento desviado, porém funcional na sua realidade. É possível questionar o discurso institucional do desvio de crédito como incapacidade para empreender atividades que lhe mantenham uma receita familiar sustentável, procurando compreender estas reaplicações como redirecionamentos reveladores de uma lógica própria

de

determinada

agricultura

familiar,

identificando

sua

pluralidade e capacidade de adaptação e diversificação dentro de um contexto específico, que se relaciona com a economia envolvente de modo peculiar (WANDERLEY, 1996). Levando em consideração quais fatores possibilitam agricultores familiares que seguem as orientações pronafianas e atendem as expectativas, em detrimento de outros capazes de gerar receita familiar, mesmo redirecionando os recursos do crédito ou mesmo, adquirindo bens entendidos como parte de sua subsistência, esta, que vai além da alimentar. Não raro, parte da culpa pelo não crescimento econômico dos “beneficiários”,

são

colocados

como

decorrentes

do

pouco

conhecimento para a inserção no mercado. Como conseqüência justifica-se o aumento da extensão rural, e o controle dos desvios de finalidade

por

parte

dos

“assistidos”

sob

o

nome

de

“acompanhamento”, logo medidas são tomadas pelos bancos para combater os mesmos. Forte crescimento dos mecanismos de controle. O Pronaf, portanto, visa transformar o produtor familiar em um empreendedor sustentável, ou rentável, capaz de manter sempre uma “vida financeira” sadia e capaz de acessar novos créditos. O crédito entra como uma forma de inserir a agricultura familiar nas relações do capital, sendo “solução” às problemáticas sociais do meio rural. O Pronaf encontra sua própria alocação enquanto política pública, dissociada do Ministério da Agricultura, onde se encontram a maior parte da confluência do capital relacionado à agropecuária. Ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, compete mediar os programas com um “caráter mais social”, que visam objetivos específicos em 809

propor soluções às problemáticas da população ou trabalhadores mais “vulneráveis” do meio rural, como na agricultura familiar. Refletindo sobre as palavras de Wanderley (1996) a respeito das raízes históricas do campesinato brasileiro, o país promoveu o modelo da

“grande

propriedade”

como

socialmente

reconhecido,

em

detrimento da agricultura familiar em lugar secundário ou subalterno. Este

mesmo

processo

histórico

contribui

para

uma

visão

dominante do redirecionamento por parte do agricultor familiar, como indisciplina ou incapacidade de adaptação, nunca se permitindo observar pela ótica de uma lógica de produção familiar particular. Os chamados institucionalmente desvios, se encontram em maior número no grupo B (renda bruta familiar anual de até R$ 2 mil, excluídos os benefícios sociais e os proventos previdenciários decorrentes da atividade rural), na maior parte dos estudos sobre o tema, enquanto os menores índices estão nos grupos subsequentes. Sem timidez pode-se balizar uma lógica dominante sobrepondo outras

particulares

e

caracterizando

uma

lacuna

quanto

ao

atendimento das demandas de grupos específicos, capazes de ao entrarem em contato com o dinheiro do crédito, lhe abrir perspectivas de utilização alternativa até então desconhecidas, mas que em sua natureza própria de agricultura familiar, ser capaz de enxergar novas possibilidades de uso, estranhas à lógica dominante. Analisando, como exemplo, alguns tipos de agricultura familiar dotadas de lógica própria sob a relação penosidade x trabalho, ainda utilizando Chayanov no que diz respeito ao trabalho a ser empenhado para conseguir objeto ou situação “X”, o desvio do crédito pode ser solução menos penosa que trabalhar o suficiente dentro de um determinado contexto (pois são inúmeros e variáveis quanto ao clima, mercado, etc), para comprar um aparelho de televisão, ou mesmo “aliviar a penosidade” para adquirir um bem gerador de renda alternativa, ou ainda a própria atividade contratada pelo crédito, pode

810

ter penosidade tal, que o desvio em outro tipo de geração de renda complementar é solução. Portanto,

responder

ao

questionamento

sobre

desvio

ou

redirecionamento, passa pela compreensão de visões opostas em relação ao rural, políticas públicas dominantes, além de se permitir mergulhar no universo da diversidade da agricultura familiar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A aferição do sucesso ou fracasso do Pronaf, enquanto programa que visa atender as demandas da agricultura familiar, encontra na variável “desvio”, ressaltando sua origem institucional, técnica e de acompanhamento, importância significativa capaz de revelar nuances deste tipo de agricultura historicamente subordinada no Brasil. Nuances que revelam suas características únicas e sem hesitar, mostram o possível choque entre duas lógicas, uma dominante representada pela economia envolvente, outra, manifestada nas particularidades da produção familiar que nos permite refletir a diversidade desta categoria em detrimento de sua generalização. É essencial o entendimento sobre a lógica dominante do capital, seu processo histórico no rural e suas relações entre trabalhadores, proprietários, produção e insumos. Norteados por uma conjuntura macro-econômica em tentativa globalizante do local. Quando o local se manifesta em essência, capaz de descobrir novas finalidades ao crédito concedido como empréstimo para investimento, e aplicá-las sob formas alternativas de utilização, terá a classificação

institucional

de

incapacidade

de

adaptação

ao

mercado, mesmo que em contrapartida, aquele uso alternativo traduzido em redirecionamento, possibilitasse geração de renda e em clara constatação, uma forma particular de manutenção da unidade 811

familiar e o atendimento de suas necessidades, por ora estranhas à economia envolvente e dominante. Cabe o entendimento destas duas visões sobre o rural e suas relações, para melhor compreensão do mesmo, aproximando a agricultura familiar de seu real contexto, que apesar de constante interação com o restante da sociedade dominante, é capaz de preservar sua essência como “patrimônio sócio-cultural adaptado às exigências e condicionamentos da sociedade brasileira moderna” (WANDERLEI, 1996, p.02).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRAMOVAY, Ricardo. Paradigmas do capitalismo agrário em questão. 2ª edição. São Paulo: ANPOCS: Editora da Unicamp, 1998. BANCO DO NORDESTE. Manual do cadastrador: declaração de aptidão do agricultor familiar ao Pronaf. Fortaleza, 2004. _______. Relatório de Gestão. Fortaleza, 2002. CHAYANOV, Alexander. La organización de la unidad econômica campesina. Buenos Aires: Nueva Visión, 1985. _______. La teoría de la economía campesina. 2º edição. México: Editora . PYP, 1987. DRAIBE, Sônia Mirian. Avaliação de implementação: esboço de uma metodologia de trabalho em políticas públicas. In BARREIRA, Maria Cecília R; Maria do Carmo B de (orgs). Tendências e perspectivas na avaliação de políticas e programas sociais. São Paulo: IEI/PUCSP, 2001. p. 13-41. MENDRAS, Henri. Sociedades camponesas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO. Declaração de aptidão do agricultor familiar ao Pronaf: manual do cadastrador. Secretaria de Agricultura Familiar. 812

SILVA, José Graziano da. O que é questão agrária. 15ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. _______. O novo rural brasileiro. Campinas: UNICAMP, 1999. WANDERLEY, Maria de Nazareth Baudel. Raízes históricas do campesinato brasileiro. Caxambu: XX Encontro Anual da ANPOCS, 1996.

813

AGRICULTURA FAMILIAR NA AMAZÔNIA: ATORES SOCIAIS E PRÁTICAS DE CONSERVAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS ATRAVÉS DA PRODUÇÃO DE ALIMENTOS E CONHECIMENTOS AGROECOLÓGICOS NO NORDESTE PARAENSE Amanda Quaresma248 Kelly Lopes249 Lucélia Leite250

Resumo: Este estudo se propõe a divulgar as experiências agroecológicas de famílias agricultoras no Nordeste Paraense que são inseridas em ações e projetos da Embrapa Amazônia Oriental. A instituição leva o conhecimento de práticas sustentáveis e em diálogo de pesquisadores e agricultores a prática de derrubada e queima passa a ser substituída por práticas que contribuem para a conservação dos recursos naturais, minimizando os efeitos negativos da agricultura e proporciona ainda a oferta de serviços ambientais. É percebido que o desenvolvimento de políticas públicas em nível local, podem proporcionar oportunidades para o comércio e escoamento dos produtos, sendo desta forma de grande valia para o fortalecimento da agricultura familiar.

INTRODUÇÃO A Amazônia Legal inclui nove estados brasileiros da Bacia Amazônica: Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantis e parte dos estados do Mato Grosso e Maranhão, abrangendo uma área de aproximadamente 5.217.423 km², o que corresponde a mais de 60% do território brasileiro. O Pará apresenta uma das economias mais expressivas da Amazônia Legal, sendo o segundo maior estado do país em território (1.247.689,515 km²) e o mais populoso (7.443.904 habitantes), estando

248

Graduada em Engenharia Florestal (UFPA), Mestranda no Programa de Pós-graduação em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Sustentável (UFPA). [email protected]. 249 Graduada em Engenharia Ambiental e Sanitárista (UFPA), Mestranda no Programa de Pós-graduação em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Sustentável (UFPA). [email protected]. 250 Graduada em Pedagogia (UFPA), Mestranda no Programa de Pós-graduação em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Sustentável (UFPA). [email protected].

814

dividido em seis mesorregiões: Baixo Amazonas, Marajó, Metropolitana de Belém, Nordeste Paraense, Sudeste Paraense e Sudoeste Paraense. A Amazônia é o maior bioma brasileiro e compreende 4,2 milhões de quilômetros quadrados com uma rica biodiversidade não menos valiosa que sua diversidade cultural. O presente trabalho traz reflexões a cerca de experiências agroecológicas que acontecem nos municípios de São Domingos do Capim, Marapanim, Igarapé-Açu, Irituia e ToméAçu, de famílias agricultoras no Nordeste Paraense e parte de uma experiência didática da disciplina de Agroecologia e Sistemas Agroflorestais

do

Programa

de

Pós-Graduação

em

Agriculturas

Amazônicas do curso de Mestrado em Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustentável do Núcleo de Ciências Agrárias e Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Pará. A agroecologia pode fornecer as bases científicas, técnicas e metodológicas para uma transformação profunda na estrutura agrária na Amazônia, no Brasil e no mundo. Os sistemas de produção baseados em princípios agroecológicos são biodiversos, resilientes, eficientes do ponto de vista energético, socialmente justos e vinculados à noção de soberania alimentar, pois a proposta central da agroecologia é ir para além das práticas agrícolas alternativas e desenvolver agroecossistemas com dependência mínima ou mesmo nenhuma de agroquímicos e energia externa. Assim, a agroecologia se coloca no cenário como uma ciência em construção, um conjunto de práticas agrícolas e um movimento social. (ALTIERE, 2012) A característica em respeitar a diversidade local tanto ambiental como

social

e

cultural,

é

imprescindível

para

o

manejo

do

agroecossistema, gerando uma multiplicidade de ações e técnicas que valoriza os saberes locais, constituindo uma característica importante nas suas formas de resistência. Essa resistência se dá através de práticas diferenciadas,

plurais,

heterogêneas

815

e

interligadas

que

foram

abordadas, adotadas, inventadas e reinventadas pelos camponeses em suas unidades de produção e consumo. (PLOEG, 2009, p.26). Sabe-se que ainda hoje algumas populações e suas práticas de reprodução social são invisibilizadas frente a uma lógica hegemônica do que pode ser considerado ou não ciência, negando-se assim a importância

de

determinados

papéis

que

essas

comunidades

desempenham, principalmente no que diz respeito ao manejo e conservação de recursos naturais ligados ao ambiente em que vivem. Nesse contexto, a inserção dos agricultores em políticas públicas e o apoio institucional também são diferenciais observados quando se trata de práticas organizacionais e produtivas na agricultura familiar da mesorregião do Nordeste Paraense.

OBJETIVO O presente trabalho objetiva então dar visibilidade a esses sujeitos e seus papéis dentro de um contexto particular que é o dos agricultores familiares

de

alguns

municípios

de

São

Domingos

do

Capim,

Marapanim, Igarapé-Açu, Irituia e Tomé-Açu, no Nordeste Paraense, que trabalham suas terras numa perspectiva de agricultura de base ecológica, portanto sustentável, utilizando os Sistemas Agroflorestais – SAF’s como matriz de produção não só de alimentos como de qualidade de vida e conservação da biodiversidade local. É necessário compreender suas experiências agroecológicas não só no contexto da produção de alimentos e dos conhecimentos técnicos, mas do ponto de vista dos benefícios gerados a partir dessas iniciativas, benefícios esses sentidos dentro e fora das referidas comunidades. Também compreender suas redes de organização, a ajuda mútua e o cooperativismo como princípios para promover o bem estar social e o desenvolvimento rural sustentável a partir experiência dos municípios do Nordeste Paraense. 816

METODOLOGIA Sendo a metodologia o

caminho

ou

um

conjunto de

procedimentos, técnicas e instrumentos que devem ser seguidos com o objetivo de alcançar determinadas metas, este trabalho teve com viés tópicos da antropologia social, partindo do contato direto com os sujeitos imersos na realidade pesquisada. Assim, podendo ser entendida por que toma marco de partida para analise o ponto de vista do outro, não excluindo nenhum elemento, sejam eles históricos, econômicos ou políticos,

na busca de entender a organização social,

a partir da

intermediação do nativo na relação com o pesquisador (DAMATTA , 2000) Para tanto foi realizada visita de campo no período de 28 de maio a 01 de junho de 2012, sendo possível pesquisar 11 propriedades, pertencentes a diferentes famílias de agricultores, localizadas em cinco municípios do Nordeste Paraense, onde a partir do contato com os membros da família realizamos o registro da história oral, “como um conjunto de sistêmico e articulado de depoimentos gravados entorno de um tema” (ALBERTI, 2004 p. 12) elemento para o entendimento da situação observada, haja vista que através dela emerge o que é ignorado. (ALBERTI, 2004). Outro procedimento importante na pesquisa foi a coleta de imagens fotográficas da propriedade, como objetivo de registrar o intercruzamento das histórias relatadas com a atual situação, tendo a função principal de sistematizar o material recolhido para divulgar as experiências acompanhadas pela Embrapa Amazônia Oriental.

817

REFERENCIAL TEÓRICO A agricultura tradicional praticada no Nordeste Paraense, que usa o corte-e-queima da vegetação como principal prática de preparo de área, causa modificações nas propriedades físicas, químicas e biológicas do solo, levando a uma gradual perda de nutrientes do solo com reflexos negativos na produção agrícola e abandono das áreas consideradas “degradadas” (RODRIGUES et al.,2007). Diversas alternativas à prática de corte-e-queima têm sido sugeridas para a região Amazônica, como o corte-e-trituração, que utiliza a capoeira triturada como cobertura morta que, além de suprimir o fogo no preparo de área, permite maior elasticidade na época de plantio, melhora a distribuição do trabalho ao longo do ano e possibilita produzir fora do pico da safra (KATO et al., 2002b). O objetivo da agroecologia de acordo com o Boletim Técnico da APA – Articulação Paulista de Agroecologia é trabalhar com um conjunto de plantas e animais de espécies diferentes, mas que mantêm relações entre si. Essas relações criam as condições favoráveis para a fertilidade do solo, a produtividade e a proteção de cultivos e criações contra pragas e doenças. Com a agroecologia vai ser possível aumentar a diversidade biológica (várias espécies de plantas e animais), restabelecer a vida do solo com a proteção dada pela cobertura vegetal, proteger os riachos e nascentes com matas ciliares, aumentar a capacidade de uso do sítio e das redondezas de muitos modos garantindo a melhor utilização dos recursos locais, permite o controle biológico de pragas, fornecendo um habitat para os inimigos naturais e aumenta a oferta de produtos da região, permitindo atender o mercado local. A agroecologia traz benefícios sociais contribuindo com a sociedade nos seguintes aspectos (BOLETIM TÉCNICO APA, 2006): 818

     

Produção de alimentos saudáveis e nutritivos, Proteção da natureza, com a diminuição de técnicas e práticas agrícolas que perturbam o meio ambiente, Diminuição dos gastos com insumos vindos de fora do sítio, Diversificação da produção e manutenção da produtividade garantindo trabalho e renda para as pessoas do campo, Melhoria da paisagem rural, Utilização dos recursos locais incentivando relações sociais e econômicas entre as pessoas de uma comunidade, alimentando laços de cooperação e solidariedade, fortalecendo a rede de agroecologia. A diversificação e integração dos cultivos e a criação de animais

são extremamente benéficos ao meio ambiente e às condições socioculturais do pequeno agricultor (Sá et al., 2000). Dentro deste mesmo

contexto,

os

mesmos

autores

afirmam

que

muitas

comunidades agrícolas da Amazônia vêm investindo nos SAFs como alternativa econômica. Devido os custos de implantação e manutenção dos SAFs serem mantidos entre os limites aceitáveis para o pequeno agricultor, inicialmente com bastante mão-de-obra e quando já estabelecidos, requerem pouca (VIANA, 1996). Os agricultores familiares ao adotar os SAFs podem aumentar de forma sustentável, a renda familiar e tirar proveito das suas vantagens

potenciais

quanto

à segurança alimentar,

saúde,

qualidade de vida, maior envolvimento dos filhos e a sua própria permanência na propriedade rural (COSTA, E. A. da Jr. 2010).

Imagem 1: Sistema Agroflorestal produtivo

819

Imagem 2: Agricultores que deixaram de usar o sistema de corte-queima

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Nos municípios onde há apoio institucional e organização em associações e cooperativas os agricultores conseguem com mais facilidade driblar o gargalo do escoamento e comercialização dos produtos da agricultura na Amazônia No município de Irituia e Tomé-Açú o governo municipal apóia a agricultura familiar fortalecendo o capital humano, social, econômico e ambiental através de capacitações técnicas e intercâmbios que proporciona vivências e trocas de experiências, além de parcerias com programas do Governo Federal, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar por meio do Programa de Aquisição de alimentos; políticas públicas que incentivam a produção agroecológica e favorecem o escoamento e a comercialização dos excedentes da produção de alimentos. No município de Igarapé-Açu e Marapanim as famílias de agricultores participam do Projeto Raízes da Terra, em parceria com a Embrapa e a Natura, desde o ano de 2004 e em São Domingos do Capim com o trabalho da Associação os moradores da comunidade eliminaram o uso do fogo em todas as propriedades.

820

CONSIDERAÇÕES FINAIS A organização política e o apoio institucional são cruciais para o desenvolvimento rural sustentável e proporcionam o processo de aprendizagem coletiva, através do qual os agricultores se reconhecem como agentes de transformação social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBERTI, Verena. Manual de história oral. 2ed. Ver. E atual. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. ALTIERE, Miguel. Agroecologia: bases científicas para uma agricultura sustentável – 3ª edição revisada e ampliada – São Paulo, Rio de Janeiro: Expressão Popular, AS-PTA, 2012. DAMATTA, Roberto. O Trabalho de campo. In: Relativizando uma introdução à antropologia social. Pp. 143-173. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. KATO, O.R. et al. Época de preparo de área e plantio de milho no sistema de corte-etrituração no município de Igarapé-açu, Pará. Belém: Embrapa Amazônia Oriental, 2002b. 3p. (Comunicado Técnico, 64). PLOEG, J. D. V. Der. Sete teses sobre agricultura camponesa. In: PETERSON, Paulo (org). Agricultura familiar camponesa na construção do futuro. Rio de Janeiro: AS-PTA, 2009. p.17-32 RODRIGUES, M.A.C. M. et al. Estrutura de florestas secundárias após dois diferentes sistemas agrícolas no Nordeste do estado do Pará. Acta Amazônica, v.37, n.4, p.591-598, 2007.

.

821

OS ELEMENTOS DA VULNERABILIDADE DA AGRICULTURA FAMILIAR DO SERIDÓ AO CLIMA SEMIÁRIDO

Anna Jéssica Pinto de Andrade251 Neusiene Medeiros da Silva252 Cimone Rozendo de Souza253

Resumo: O presente estudo buscou analisar a vulnerabilidade da agricultura familiar do Seridó do Rio Grande do Norte aos fatores climáticos e ambientais do Semiárido. Identificou-se que a escassez dos recursos hídricos, aliado à degradação ambiental, fazem do Seridó uma região naturalmente limitada para a agricultura. Outros fatores como o tamanho reduzido das propriedades, a falta de assistência técnica e de recursos e o baixo nível de escolaridade limitam consideravelmente a capacidade de adaptação dos agricultores aos eventos climáticos. Assim, quando há a ocorrência de secas ou estiagens, a produção agrícola é altamente prejudicada. Acredita-se que esse estudo pode colaborar para a compreensão das peculiaridades da vulnerabilidade local, e assim, auxiliar a busca por alternativas que sejam coerentes com as necessidades dos agricultores e as características ambientais da região.

Palavras Chaves: Vulnerabilidade, semiárido, agricultura familiar, Seridó

INTRODUÇÃO

A maior parte das populações rurais das regiões semiáridas dos trópicos vivem uma situação de vulnerabilidade da sua subsistência devido à degradação das terras e às variações climáticas e ainda sofrem com falta de recursos humanos e financeiros para lidar com 251

Graduada em Comunicação Social/Jornalismo (UFRN), Mestra em Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente (UFRN). Possui experiência profissional em comunicação no terceiro setor e em projetos socioambientais. Atuou em projetos de educação ambiental, cultivo de espécies nativas e reflorestamento de áreas degradadas. Durante os últimos anos vem estudando assuntos relacionados à agricultura e às mudanças climáticas com foco na vulnerabilidade, percepção e adaptação dos agricultores familiares. [email protected]. 252 Graduada em Geografia (UFRN), Mestra em Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente (UFRN). [email protected]. 253 Graduada em Ciências Sociais (UFPA), Mestra em Sociologia (UFPA) e Doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento (UFRN). Professora Adjunta (UFRN), atuando nos programas de pós graduação em Desenvolvimento e Meio ambiente (PRODEMA/UFRN) e Ciências Sociais (UFRN). [email protected].

822

esses problemas (RIBOT et al, 2006). Nas regiões semiáridas, a vulnerabilidade às variações climáticas já são um problema grave e, para lidar com as incertezas geradas pelo aquecimento global, faz-se necessário buscar formas de tratar a questão da variabilidade climática atual, e assim, aumentar a resiliência e reduzir a vulnerabilidade às mudanças climáticas futuras (RIBOT et al, 2006). A aridez e/ou semiaridez são condições climáticas e ambientais caracterizadas por uma escassez severa de recursos hídricos causada pela irregularidade sazonal das precipitações e o elevado índice de evaporação, condições muitas vezes agravadas por ações antrópicas (SILVA e ANDRADE, 2003). Por toda a região semiárida brasileira, a aridez do clima, a deficiência hídrica, a ocorrência de chuvas irregulares e esparsas, além de solos pobres em matéria orgânica são fatores que afetam o bioma local (a caatinga) e sua população (SILVA, 2006). Nesse sentido, a ocorrência de secas – que é um evento climático esperado nas terras semiáridas – faz da agricultura uma atividade naturalmente arriscada (RIBOT et al, 2006). O Seridó Potiguar é uma região que encontra-se naturalmente susceptível a aridez do clima, o que acarreta na ocorrência de secas periódicas, chuvas irregulares e esparsas, deficiência hídrica, além de ter suas terras altamente vulneráveis ao processo de desertificação. Acredita-se que os agricultores familiares seridoenses enfrentam uma situação de vulnerabilidade socioeconômica e ambiental, proveniente da construção histórica de exclusão da agricultura familiar no Nordeste brasileiro e na região, associada à condições ambientais naturalmente rigorosas, características do Semiárido. Dessa forma, considera-se que a compreensão dos fatores climáticos e ambientais de vulnerabilidade da agricultura familiar seridoense pode colaborar com as pesquisas sobre os desafios para a agricultura familiar em terras semiáridas.

823

Portanto, no presente artigo, foram

analisados os fatores

climáticos e ambientais da vulnerabilidade familiar à semiaridez através do estudo de 14 comunidades localizadas em quatro municípios da região do Seridó do Estado do Rio Grande do Norte no Brasil. A agricultura familiar foi considerada “aquela em que a família, ao mesmo tempo em que é proprietária dos meios de produção, assume o trabalho no estabelecimento produtivo” (WANDERLEY, 1996).

O ESTUDO DA VULNERABILIDADE NAS RELAÇÕES HOMEM E AMBIENTE

O

estudo

interdisciplinar,

e

da

vulnerabilidade

sendo

assim,

possui

permite

uma

característica

diferentes

abordagens

conceituais e metodológicas para a realização da pesquisa (DERESSA et al, 2008). Turner et al (2003) definem a vulnerabilidade com a susceptibilidade dos sistemas humanos e ambientais de sofrerem danos devido

à

perturbações

ou

estresses.

No

caso

específico

da

vulnerabilidade social, ou seja, de grupos humanos, Adger (1996) a define como “a exposição de grupos ou indivíduos à estresses provenientes de riscos exógenos, [...], e à sua situação social e econômica1” (ADGER, 1996, p. 03). Isso significa que tanto entre agricultores familiares, quando em outros grupos sociais, diferentes fatores socioeconômicos influenciam a vulnerabilidade ao clima e ao ambiente (DERESSA et al, 2008). Se uma determinada população agrícola é vulnerável à riscos climáticos de forma a não conseguir lidar com os eventos adversos – até mesmo por não dispor de mecanismos para isso – o resultado pode ser uma situação de vulnerabilidade que compromete sua base de recursos e impede a sustentabilidade a médio e longo prazo (WEHBE et al, 2005). 824

Para Luers (2003) mesmo os sistemas mais simples são tão complexos que torna difícil realizar a análise de todas as variáveis, processos e distúrbios que caracterizam a vulnerabilidade. Dessa forma, a autora sugere a que a análise da vulnerabilidade foque em variáveis selecionadas de acordo com os elementos de estresse específicos que se deseja estudar (LUERS, 2003). Ainda não existe uma metodologia específica e padrão para se estudar a vulnerabilidade. Na realidade, o objeto de estudo é que define como a pesquisa da vulnerabilidade será abordada. Há um grande número de autores que estudam a vulnerabilidade relacionadas às mudanças climáticas. Esses estudos geralmente visam as pessoas, lugares

e

ecossistemas

considerados

mais

vulneráveis,

como

populações rurais que habitam as regiões áridas ou semiáridas de países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Smit e Wandel (2006) caracterizam dois tipos de pesquisa sobre a vulnerabilidade social ao clima. O primeiro busca realizar uma avaliação baseada em dados quantitativos para comparar a vulnerabilidade de países, regiões e comunidades. Já o segundo tipo busca identificar as variáveis que representam a vulnerabilidade de forma qualitativa, através de informações e dados obtidos nas comunidades, com o objetivo identificar maneiras de fortalecer a capacidade adaptativa e reduzir a sensibilidade e exposição do grupo social estudado (SMIT e WANDEL, 2006). A presente pesquisa foi realizada seguindo o segundo tipo de abordagem descrito por Smit e Wandel (2006), buscando compreender quais são os componentes ambientais e climáticos determinantes da vulnerabilidade da Agricultura Familiar ao semiárido.

METODOLOGIA

825

O presente estudo tem como meta analisar os elementos que compõe a vulnerabilidade da agricultura familiar ao clima semiárido. A metodologia adotada para a busca desses elementos implicou na pesquisa bibliográfica e pesquisa de campo com observação direta, realização de entrevistas semiestruturadas com atores locais (Prefeitos, secretários, membros de sindicatos e associações e agricultores) e aplicação de 241 questionários com agricultores (as) familiares da região do Seridó Potiguar. A pesquisa de campo foi conduzida em 14 comunidades de quatro municípios: Lagoa Nova, Acarí, Caicó, Parelhas, na região do Seridó Potiguar, em duas etapas de uma semana cada, entre os meses de outubro e novembro de 2011. Os municípios e comunidades foram selecionados

buscando

abranger

uma

amostra

representativa,

equilibrada e diversificada das condições socioeconômicas, climáticas e produtivas da região. Admite-se que a vulnerabilidade das populações agrícolas às condições climáticas não podem ser compreendidas somente pela quantificação dos impactos biofísicos, assim, a pesquisa buscou também relacionar os elementos socioeconômicos que influenciam a vulnerabilidade (WEHBE et al, 2005). Os dados empíricos sobre esse elementos socioeconômicos também foram obtidos através dos questionários. Os questionários foram aplicados com o objetivo de reconhecer

os

socioeconômicos

estresses afetam

ambientais a

e

capacidade

como de

os

elementos

enfrentamento

e

adaptação de acordo com a percepção ambiental dos agricultores (KASPERSON e DOW, 2005). A percepção ambiental se refere à forma como as pessoas vivenciam e se relacionam com o ambiente onde estão inseridas – considerando, além dos aspectos físicos, “também os aspectos

psicossociais

(cognição, 826

afeto,

preferencias,

etc.),

socioculturais (significados, valores, estética) e históricos (contextos políticos, economia, etc.)” (KUHNEM e HIGUCHI, 2011, p. 225).

Tabela 1. Sumários, breve descrição e métodos utilizados para examinar os elementos da vulnerabilidade. EAL = Entrevistas com atores locais; QAF = Questionários aplicados com os agricultores familiar; DS = Dados Secundários; Fatores da vulnerabilidade

CLIMA

AMBIENTE

OUTROS FATORES (socioeconômicos)

Elementos da vulnerabilidade

Descrição dos elementos

Métodos

Características climáticas, histórico de ocorrência de secas e enchentes

DS

Danos causados pelo clima e modificações realizadas pelos agricultores

QAF

Recursos Hídricos

Fontes de água para agricultura e uso doméstico e distância da fonte de água

QAF

Qualidade do solo (Desertificação)

Classificação dos solos e dificuldades para a produção causadas pela qualidade do solo

DS e QAF

Vegetação

Características da vegetação e desmatamento

DS e EAL

Fauna

Percepção sobre o aumento ou diminuição de animais silvestres

QAF

Dificuldades citadas pelos agricultores para a produção agrícola

QAF

Acesso ao mercado

Agricultores que comercializam e dificuldades para a comercialização

QAF

Assistência Técnica

Agricultores que recebem assistência técnica e benefícios percebidos

QAF

Educação

Escolaridade dos agricultores

QAF

Temperatura Chuvas (Enchentes) Secas

827

Migração

Se os agricultores possuem filho(as) que migraram para outra região

QAF

Tamanho das propriedade

Número de agricultores com tamanho da propriedade reduzidos

QAF

Acesso à crédito

Número de entrevistados que realizaram empréstimos no últimos 5 anos e principais dificuldades para obtenção de empréstimo

QAF

Renda

Número de agricultores que possuem renda externa e estão envolvidos em outras atividades fora da propriedade

QAF

A estratégia foi combinar dados qualitativos (obtidos através da revisão de literatura, entrevistas e questionários aplicados) com dados quantitativos (dados secundários sobre a produção e aspectos climáticos

e

ambientais),

num

esforço

para

compreender

a

composição da vulnerabilidade através da relação entre os fatores climáticos, ambientais e socioeconômicos (WEHBE et al, 2005). Para o presente estudo, foi adotada a regionalização do Seridó definida por Morais (2005), na qual o recorte regional delimitado corresponde ao Seridó “historicamente construído” através de uma relação

espaço-temporal

“impregnada

de

conteúdo

político,

econômico e cultural” onde se manifestam os sentimentos de pertencimento e identidade da população, sendo o Seridó assim representado por 23 municípios2 (MORAIS, 2005, p. 26-7).

828

Mapa 1. Localização dos municípios e das comunidades rurais pesquisadas no Seridó.

Fonte: Elaborado a partir da regionalização do Seridó definida por Morais (2005. P. 273)

RESULTADOS E DISCUSSÃO O Seridó potiguar é uma região semiárida localizada na porção centro-meridional do Rio Grande do Norte, que, por suas características naturais, encontra-se sujeita a ocorrências de secas periódicas, altas temperaturas e ao processo de desertificação, o que acarreta em danos ambientais, sociais e econômicos. Em sua construção histórica social, a população do Seridó buscou alternativas para conviver com as características ambientais da região. Durante a maior parte do século XX, o plantio de algodão mocó – também chamado de ouro branco – foi o produto agrícola principal da economia seridoense e o seu cultivo foi uma das formas que os agricultores encontraram para conviver com o semiárido (AZEVEDO, 2007). No entanto, a partir da década de 1970 uma grande seca foi o estopim de uma crise, que somada a outros fatores – como as elevadas concentrações de terra e renda, a escassez de recursos hídricos, a praga do bicudo e outros –, culminaram no o colapso do sistema econômico seridoense baseado no complexo algodoeiro e policultorpecuário (AZEVEDO, 2007). Atualmente, no universo da agricultura 829

familiar do Seridó, o cenário mais comum é a produção em sequeiro de milho e feijão, voltada para a subsistência da família, aliada à pecuária leiteira.

Tabela 2. Características dos municípios pesquisados. Os dados sobre o número de comunidades e produção foram obtidos nas entrevistas realizadas com os atores locais. População População Número de Município Produção Total(hab.) Rural(hab.) comunidades Hortifruticultura, 27 bovinocultura de Parelhas 20.354 3.270 comunidades corte/leite e cerâmica 17 comunidades; Hortifruticultura; 4 Acari 11.035 2.133 Bovinocultura de assentamentos; leite; Piscicultura 2 povoados (pescadores) Bovinocultura de 60 Caicó 62.709 5.248 corte e leite; comunidades Fruticultura 23 Lagoa comunidades; 13.983 7.182 Fruticultura Nova 6 assentamentos Fonte: Elaborado com dados do IBGE (Censo Demográfico 2010) e das entrevistas semiestruturadas com atores locais.

CLIMA De

acordo

com

dados

apresentados

pelo

Plano

de

Desenvolvimento Sustentável da região do Seridó do Rio Grande do Norte (2000), a temperatura média anual da região situa-se entra 26 e 28ºC, a insolação é de 3.240 horas/ano, a umidade relativa do ar gira em torno de 64%, e a precipitação pluviométrica média anual varia entre 645 e 750 mm, com uma taxa alta de evapotranspiração. No Seridó a estação chuvosa é curta e concentrada entre os meses de janeiro e maio (87% do total de precipitação total do ano), com chuvas 830

esparsas e irregulares, e a probabilidade de ocorrência de enxurradas (MEDEIROS, 2004, DUQUE, 2004). A região apresenta elevada deficiência hídrica, principalmente nos meses entre junho e dezembro (SANTOS et al, 2010). Segundo Medeiros (2004), foram registradas a ocorrência de 174 secas na região do Seridó, contadas a partir do século XVI, e ainda assim o autor acredita que muitas secas pontuais não foram consideradas. De acordo com os resultados dos questionários aplicados com os (as) agricultores(as) familiares quase 70% responderam que já sofreram algum prejuízo por causa do clima, sendo a perda de lavoura (56,8%), animais (19,1%), e a diminuição da produtividade (16,6%) os prejuízos mais citados. Sobre os eventos que causaram prejuízos, a seca (34%) é o mais recorrente, porém, eventos relacionados com a chuva como excesso de chuvas, tempestades e inundação de rios também causaram prejuízos para 20% dos agricultores. Para enfrentar esses eventos climáticos quase 20% dos agricultores afirmaram já terem realizado alterações na produção. As modificações mais realizadas foram o abandono de alguma cultura (42%), mudança na época de plantio (26%) e diversificação da produção (12%). Em contrapartida, 66,8% não realizaram modificações, sendo as justificativas mais frequentes: por não achar necessário (50%), falta de recursos (19%) e falta de informação (13%).

AMBIENTE Como fonte de água para beber, a maioria dos agricultores utiliza a cisterna (62,7%), e outras fontes comuns são a água encanada (20,3%), poço (10,4%) e açude (19%), alguns ainda dependem de água proveniente de carros-pipa (5,8%), e uma minoria compra água mineral (2%) ou utilizam fontes de amigos e/ou parentes (2%). Já para a irrigação, as fontes de água mais utilizadas são os açudes (16%) e os

831

poços artesianos (16%), e outras fontes são as barragens (11%), rios (10%), adutoras (5%) e cisterna (3%). De acordo com a pesquisa de campo, apenas 16,6% dos agricultores têm a produção irrigada, enquanto 33,2% plantam na vazantes dos rios e riachos e a maior parte (53,5%) desenvolvem a produção em sequeiro, sendo essas duas últimas dependentes das chuvas. Percebe-se assim, que a agricultura irrigada é pouco difundida no Seridó, sendo, dentre os municípios pesquisado, os agricultores de Caicó, os que mais utilizam a irrigação para a produção de capim, feijão e milho. Silva (2006) acredita que a irrigação é uma prática que se for realizada de forma inadequada promove “a destruição do solo pela erosão, a perda da fertilidade e a salinização” (SILVA, 2006, p. 184). Sobre a agricultura irrigada, Malvezzi enfatiza: “É uma agricultura feita de costas para a própria região”, portanto, não pode ser vista como uma solução para os problemas relacionados com a seca (MALVEZZI, 2007, p. 90). De forma geral, o que pode-se constatar de acordo com as respostas dos agricultores é que o acesso à água melhorou nas últimas décadas. Dos agricultores entrevistados 66,8% afirmaram que a fonte de água mudou desde de que chegaram em sua residência atual. Muitos (20,74%) relataram que buscavam água com galões, nas costas ou em lombo de jumentos, de fontes externas, como poços de vizinhos, rios e açudes distantes. Hoje, mais 63% dos agricultores entrevistados possuem alguma fonte de água a menos de 300 metros de suas residências. Para 14,52% dos agricultores a mudança veio com o acesso a água encanada, outros 9,95% responderam que passaram a ter cisterna e 4,56% construíram poços tubulares em suas propriedades. Alguns agricultores que possuem poços tubulares relataram espontaneamente que a água dessa fonte é salobra e serve apenas para oferecer ao gado e na limpeza.

832

As cisternas representam uma tecnologia hídrica “ [...] simples, e com baixo custo para captação e armazenamento de água de chuva para o consumo humano” (SILVA, 2006, p. 226). A maior parte (53%) dos entrevistados possui cisternas a menos de 10 anos, mas mesmo assim a dependência dessa fonte de água é bastante significante, uma vez a maioria dos agricultores (62,7%) a utiliza como fonte de água para beber e cozinhar. Com relação a qualidade dos solos para a agricultura, segundo dados do IBGE (2006), aproximadamente 38% dos estabelecimentos da agricultura familiar seridoense estão localizados em áreas de terras degradadas (erodidas, desertificadas, salinizadas e etc.), ou estão inseridos em terras inaproveitáveis para agricultura ou pecuária (pântanos, areais, pedreiras, etc.). Segundo o IDEMA, a maior parte dos solos do Seridó é classificado como Bruno não cálcico ou bruno não cálcico vértico, considerado apto e restrito à pastagens naturais e para culturas especiais de ciclo longo (algodão arbóreo, caju, sisal), outra grande parte é classificada como Litólicos Eutróficos, inadequados para a agricultura e uma pequena mancha é formada por Latossolos vermelho e amarelo, considerados com aptidão regular para lavoura. Segundo os dados da pesquisa de campo, quase 11% dos agricultores entrevistados responderam que as terras degradadas representam uma das maiores dificuldades para a produção. A Caatinga (mata branca na língua indígena) é o bioma predominante do nordeste semiárido, e portanto do Seridó Potiguar, único exclusivamente brasileiro, de formação vegetal xerófila com a presença de espécies arbóreas, herbáceas e arbustivas (SILVA, 2006). Para Medeiros (2004), o desmatamento da Caatinga é o problema ambiental mais grave da região seridoense, sendo a madeira retirada utilizada como matriz energética para grande parte das atividades industriais, principalmente a indústria ceramista (MEDEIROS, 2004, AZEVEDO, 2005, ADESE, 2007). Desmatar também é uma prática comum 833

na hora de abrir pastos para o rebanho e uso da madeira para o fogão à lenha (MEDEIROS, 2004). A retirada da caatinga é um processo que vem contribuindo para aumentar o espaçamento entre a vegetação, expondo o solo ao sol, ocasionando um superaquecimento da camada superior, que pode chegar a 60°C em dias mais quentes, causando a perda da matéria orgânica e agravando o problema da desertificação (MEDEIROS, 2004). Com relação aos animais silvestres, quase 42% dos agricultores responderam que notaram uma diminuição na quantidade. A maior parte dos agricultores (76%) acredita que a principal ameaça aos animais é a caça, outros 16% atribuem a diminuição ao desmatamento e a perda de habitats e 6% acreditam que houve uma diminuição por causa de doenças. Os animais mais citados pelos agricultores foram o Preá, a raposa, o peba, o tejo, o mocó, a rolinha o lambú, dentre outros.

OUTROS FATORES (SOCIOECONÔMICOS)

Como foi discutido anteriormente, a vulnerabilidade dos grupos sociais aos estresses provenientes do clima e das condições ambientais de

uma

região

é

diretamente

afetada

pelas

condições

socioeconômicas desses grupos. Isso acontece porque as condições socioeconômicas

influenciam

a

capacidade

de

adaptação

e

resiliência das populações aos eventos que causam estresse. Nesse sentido, quando questionados sobre as principais dificuldades para a produção agrícolas, a mais citada foi a falta de recursos e dificuldade de acesso ao crédito (32,4%), seguida do clima (25,3%), falta de assistência técnica (18,7%), comercialização (15,8%), terras fracas ou degradadas (10,8%), estradas (8,7%) e a diminuição da produtividade (8,3%).

834

Ainda de acordo com a pesquisa de campo, dentre as dificuldades para a obtenção de crédito, os agricultores citaram a burocracia (14,9%), a falta de pagamento da dívida anterior (10,4%), o medo de contrair dívidas (8,7%), a falta de garantia pessoal (6,2%) (titularização da terra), e em menor número, outros fatores como a desinformação sobre como acessar o crédito e a falta de avalista. Apesar dessas dificuldades, aproximadamente 32,8% dos entrevistados acessaram uma das linhas do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar PRONAF nos últimos cinco anos. Além da dificuldade de acesso à credito, outro ponto de sensibilidade que contribui para a vulnerabilidade da agricultura familiar é

a

falta

de

assistência

técnica.

Segundo

os

resultados

dos

questionários, 62% dos agricultores declararam que não recebem nenhum tipo de assistência técnica. Dentre os agricultores que recebem assistência técnica, a instituição prestadora mais citada foi o Instituto de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio Grande do Norte - EMATER. Para 21% dos agricultores as orientações recebidas através da assistência técnica contribuíram para a produção agrícola. Eles afirmaram que a assistência técnica os beneficiou com orientações sobre plantio, colheita, alimentação e trato do gado, produção orgânica, desenvolvimento de projetos (inclusive para casas de farinhas), oferta de sementes, compra de material, dentre outros. Outra dificuldade enfrentada pelos agricultores familiares do Seridó é a inserção dos seus produtos no mercado. Dos agricultores que responderam que vendem seus produtos, 56,7% dependem de atravessadores. Alguns atores locais entrevistados responderam que a falta de espírito empreendedor dos agricultores, os baixos preços dos produtos somados ao alto custo da produção, a dificuldade para obtenção de selo de qualidade e para a adequação as condições sanitárias exigidas e a confecção de embalagens são outros fatores limitam a possibilidade de comercialização. 835

O acesso à educação é considerado um dos fatores que contribuem para aumentar a capacidade adaptativa e as alternativas de enfrentamento aos eventos climáticos e ambientais. De acordo com os dados da pesquisa de campo, pode-se verificar que o índice de analfabetismo ainda é alto entre os agricultores adultos do Seridó. Dentre os entrevistados 18,7% são analfabetos e ao todo, 72,6% cursaram até no máximo a quarta série do ensino fundamental, e apenas 23,2% concluíram o ensino médio. Apesar desses índices, também verificou-se que para os mais jovens o acesso a educação melhorou. Dentre os entrevistados nascidos a partir de 1980, nenhum relatou ser analfabeto e a maior parte dos que concluíram o ensino médio estão nessa faixa etária. A elevada densidade demográfica para as condições físicas do semiárido e as dificuldades para obter renda a partir da agricultura, faz com que os jovens prefiram migrar para as cidades em busca de oportunidades de trabalho e/ou estudo. De acordo com dados da pesquisa, há uma taxa de migração de aproximadamente 1,68 pessoa para cada estabelecimento familiar. A grande maioria das pessoas migra em busca de trabalho em outros municípios do Estado como estratégia para sobrevivência, enquanto outra parte, sai da casa dos pais ao casarem. Apenas 6,6% dos agricultores têm como fonte de renda apenas a produção agrícola, a grande maioria (92,8%) dependem também de fontes de renda externa da propriedade. Para 56,4% dos entrevistados, essa renda externa é superior à gerada internamente, e composta por pensões e aposentadorias (45.6%) e pelos recursos obtidos com o Programa Bolsa Família (43.6%). Em primeira análise, esses dados podem significar um enfraquecimento generalizado da agricultura como forma de obtenção de renda, porém para Schneider (2003) a pluriatividade da agricultura familiar, ou seja, o envolvimento dos agricultores em outras atividades não significa que a agricultura perdeu a importância, 836

na verdade essas atividades podem estar colaborando “para que a forma familiar de organização do trabalho e da produção vislumbre novos

mecanismos

de

garantia

de

sua

reprodução

material”

(SCHNEIDER, 2003, p. 29). Por fim, com relação aos tamanhos das propriedades, o que pode-se perceber grande parte dos agricultores entrevistados (38%) produzem em estabelecimentos com área menor que 10 hectares, enquanto 19% disseram ter propriedades maiores que 50 hectares. A maior parte dos agricultores que produzem em estabelecimentos menores que 10 hectares são assentados do INCRA (72,41% dos assentados do INCRA entrevistados) ou proprietários da terra (33.64% dos proprietários entrevistados). De acordo com esses resultados, pode-se verificar que são muitos os fatores que causam a vulnerabilidade dos agricultores familiares do Seridó. A escassez dos recursos hídricos, aliado à própria degradação ambiental, fazem do Seridó uma região naturalmente limitada para a agricultura. Outros fatores como o tamanho reduzido das propriedades, a falta de assistência técnica e de recursos e o baixo nível de escolaridade limitam consideravelmente a capacidade dos agricultores de buscarem alternativas. Assim, quando há a ocorrência de secas ou estiagens, a produção agrícola é altamente prejudicada.

CONCLUSÃO

No Seridó Potiguar fatores climáticos, como a ocorrência de secas, chuvas esparsas e irregulares e enchentes periódicas, em conjunto com outros fatores como o limite de solos agricultáveis, a salinização das águas dos mananciais e do solo, são fatores que prejudicam o desenvolvimento da agricultura familiar. O tamanho reduzido das propriedades, a falta de assistência técnica e/ou de 837

recursos, a dificuldade de inserção dos produtos no mercado, além do baixo nível de escolaridade, limitam consideravelmente a capacidade dos agricultores de buscarem alternativas. Frente à essa situação de vulnerabilidade as soluções encontradas pelos agricultores são: a diminuição da dependência da produção agrícola, a opção pela pecuária e a migração dos jovens, que vão para as cidades em busca de outras alternativas. Nesse cenário, muitos optam por desmatar a Caatinga para vender lenha às indústrias ceramistas, agravando os problemas ambientais e sociais dessa região tão fragilizada. Programas governamentais como o Bolsa Família e o PRONAF beneficiam os agricultores, mas não são suficientes para fortalecer e estruturar a produção agrícola. Acredita-se que os agricultores necessitam que sejam fortalecidas as redes e espaços onde eles possam se capacitar para melhorar a produção,

seja

através

da

assistência

técnica,

dos

sindicatos,

cooperativas ou outros programas e projetos que busquem disseminar tecnologias e experiências que sejam sustentáveis e adequadas à realidade e necessidades da região. Sugere-se, assim,

que os

programas e projetos que visem o desenvolvimento da agricultura familiar seridoense, busquem alternativas nas bases científicas da Agroecologia, de forma a promover uma transição para uma agricultura sustentável (ALTIERI, 2004).

NOTAS 1. Tradução livre 2. Caicó, Acari, Jardim do Seridó, Serra Negra do Norte, Currais Novos, Florânia, Parelhas, Jucurutu, Jardim de Piranhas, São João do Sabugi, Ouro Branco, Cruzeta, Carnaúba dos Dantas, Cerro Corá, São Vicente, São Fernando, Equador, Santana do Seridó, São José do Seridó, Timbaúba dos Batistas, Lagoa Nova, Ipueira e Tenente Laurentino Cruz.

838

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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840

INOVAÇÕES SÓCIO PRODUTIVAS NA AGRICULTURA FAMILIAR DE MACAÍBA: CONTINUIDADES E DESAFIOS Luna Dalla Rosa Carvalho254 Cimone Rozendo (Orientadora)255 Raquel Francisco dos Santos256 Resumo: O presente trabalho visa analisar os processos de inovação sócio-produtiva em dois assentamentos da cidade de Macaíba, analisando as redes, processos e práticas que vêm possibilitando a criação de novas formas de viver e produzir na agricultura familiar. Estamos tratando por inovação a adoção de alguns agricultores desses assentamentos ao modelo de produção agroecológica a partir do Projeto Pais do SEBRAE, sua participação no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e os arranjos que foram necessários a adaptação a essas novas formas de produzir e comercializar. As reflexões feitas até então apontam para a relação entre inovações, redes sócio-técnicas e ambiente institucional como instrumento capaz de explicar algumas dinâmicas das inovações na agricultura familiar e nas possibilidades de desenvolvimento rural no território estudado. Palavras-chave: inovação, agricultura familiar, redes sócio-técnicas

INTRODUÇÃO O presente trabalho é resultado de pesquisas realizadas no âmbito do Projeto: Inovações sócio produtivas e sustentabilidade na região metropolitana de Natal/RN. Este projeto tem por objetivo analisar em que medida as exigências ambientais aliadas aos investimentos em políticas públicas para a agricultura familiar em nível nacional tem permitido o surgimento de práticas sócio produtivas inovadoras na zona rural de Macaíba, cidade da região metropolitana com grande potencial de produção de alimentos tanto por sua configuração 254

Graduada em Ciências Sociais (UFRN). Professora de Sociologia na Rede Municipal de Ensino do RN. [email protected]. 255 Graduada em Ciências Sociais (UFPA), Mestra em Sociologia (UFPA) e Doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento (UFRN). Professora Adjunta (UFRN), atuando nos programas de pós graduação em Desenvolvimento e Meio ambiente (PRODEMA/UFRN) e Ciências Sociais (UFRN). [email protected]. 256 Graduada em Gestão Ambiental (UERN), Técnica em Controle Ambiental (IFRN), Mestra em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA/UFRN). [email protected].

841

geográfica (reserva de recursos hídricos) quanto pela existência de práticas agrícolas diversificadas em seu território, entre elas as de produção agroecológica. A

pesquisa

feita

até

então

enfocou

no

processo

de

implementação do PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) no

município

e na

trajetória

de

entrada

de

agricultores

dos

assentamentos Caracaxá e Quilombo do Palmares II como produtores do programa. Nesses assentamentos existem unidades do Projeto PAIS do Sebrae, hortas agroecológicas fomentadas a partir de capacitação e

doação

de

materiais.

Assim

tornou-se

visível

ao

longo

do

desenvolvimento da pesquisa que o processo de entrada dos agricultores no PNAE, a adoção do modelo agroecológico a partir do projeto PAIS e todos os arranjos necessários à adaptação a uma nova forma

de

comercialização

e

uma

nova

forma

de

produção

constituiriam importantes processos de inovação a serem estudados. Da mesma forma como também se mostraram importantes o processo de organização institucional da prefeitura do município, a constituição de uma

rede

de

produção

agroecológica

e

das

condições

de

continuidade desses processos. Então, pretende-se aqui, como forma de visualizar os resultados parciais do Projeto organizar um quadro que nos permita entender os processos de inovação sócio produtiva, relacionando-os a uma configuração conjunta de ambientes institucionais, redes sócio-técnicas e processos de organização dos agricultores familiares. Elementos esses que apontam para o paradigma de um novo “desenvolvimento rural” nos termos de Ploeg (2008), que se contrapõe ao modelo dominante de modernização agrária ainda presente na maioria das políticas públicas voltadas para o campo no Brasil. Por motivos de necessidade de delimitação do tema, haverá um foco maior sobre o tema da inovação deixando por hora o tema da sustentabilidade um pouco de lado.

842

1. GRAMÁTICA DAS REDES DE INOVAÇÃO SÓCIO-PRODUTIVA NA AGRICULTURA Para iniciar a discussão vamos elaborar um quadro conceitual que nos permita entender os processos em questão. Baseando-se na literatura existente sobre inovação, desenvolvimento e redes na agricultura vemos que há um conjunto de conceitos que podem ser organizados numa espécie de gramática das redes de inovação sócioprodutiva na agricultura. Assim vamos tratar desses conceitos, tentando clarificar seus significados e melhorar seus usos no entendimento dos processos de desenvolvimento rural, nas formas de ação dos agricultores e principalmente na constituição e dinâmica das redes sócio-técnicas.

1.1 - O que estamos chamando de inovação? A literatura mais recente que trata da inovação no mundo rural vem trabalhando com uma definição diferente da utilizada até então. Baseada em conceitos de autores como Hayami e Ruttan (1988) e Schultz (1965), citados por Oliveira (2011), o tema da inovação era condicionado por uma perspectiva linear, tratado basicamente em torno de três características: de que a inovação era sempre algo externo a localidade em que ela se realizava; associado a um produto do campo tecnológico; e que era um fenômeno essencialmente urbano, já que o campo técnico-científico é o seu meio de desenvolvimento por excelência (Carvalho, 2009). Essa perspectiva, baseada

numa

análise

shumpeteriana



o

desenvolvimento

econômico das atividades na zona rural como algo que vem de fora para dentro, onde os atores locais tem o papel de simples executores e não formuladores e planejadores das novidades, capacidades estas

843

que caberiam aos experts, técnicos e especialistas dos grandes centros tecnológicos. Nesse caminho, em que as inovações são criadas pelas ciências agrárias, difundidas pelos técnicos e incorporadas pelos agricultores, os processos tecnológicos dessa modernização levam a formas de organização da produção que conduzem a diferentes graus de processos de mercantilização, cientificação e de integração a complexos agroindustriais (Oliveira, 2011). Ou seja, levam a formas de produção desconectadas do ambiente local em que estão sendo introduzidas conduzindo menos a uma inclusão dos agricultores familiares e mais a uma subordinação, tornando-os dependentes das tecnologias e insumos cujo capital não está nem ligado ao mercado regional e nacional, mas sim a grandes indústrias transnacionais sem nenhum tipo de enraizamento social. É na contracorrente a essa lógica que autores como Jan Dowe Van der Ploeg, Dargan e Shucksmith vão formular uma nova caracterização para o processo de inovação. Para estes, inovação não se restringiria apenas a novos produtos, tecnologias, formas de manejo, etc. Mas também, a novas formas de organização dos fatores da produção,

novas

formas

de

organização

social

(cooperativas,

associações, coletivos), criação de habilidades e de processos educativos, todos com base no conhecimento e nos saberes tradicionais das localidades: são inovações sócio-produtivas. Ploeg chega a criar o termo novidades para se contrapor ao conceito de inovação, no sentido em que uma novidade seria uma inovação que romperia com os padrões do paradigma da modernização agrícola e seria portanto um possível broto ou uma semente de transição para o paradigma de desenvolvimento rural. Estas novidades estariam ainda segundo o autor, presentes em toda historia da agricultura como formas de atualizar e adaptar as formas de produção agrícola às condições econômicas, climáticas e sociais de cada período.

844

Mas isso não quer dizer que há uma negação das inovações criadas em meios urbanos, pelo contrário pensa-se que estas podem acontecer tanto em meios urbanos como em meios rurais. Pode haver interconexão e sinergia entre o que se elabora nas instituições de pesquisa e de tecnologia, em empresas e indústrias com o que se faz pelos atores no meio rural, desde que haja um ambiente favorável a isso, um ambiente onde hajam redes e espaços de compartilhamento de saberes. Assim os autores Dargan e Shucksmith (2006) citados por Carvalho (2008), no âmbito de um programa de desenvolvimento rural realizado na União Européia (Programa LEADER) colocam que: A inovação está ligada à formação de redes de atores locais e/ou de relações locais entre atores sociais e instituições, ou seja, segundo este entendimento uma inovação para ocorrer (“nascer”) prescinde de atores e instituições interligados por algum tipo de relação social, seja ela produtiva, organizacional, de processo, de trabalho, etc. (in Carvalho, 2009, pg.3).

1.2 - As redes sócio técnicas

Essas redes e espaços remetem ao que Eric Sabourin (2001) chamou de redes sócio técnicas e espaços sócio técnicos locais. As primeiras, segundo o autor, se referem a redes formadas por relações entre os agricultores vizinhos e entre estes com agentes externos, em que se compartilham tanto relações pessoais e afetivas quanto profissionais sobre técnica, manejo e novas tecnologias agropecuárias. Essas relações por sua vez acontecem em um espaço ou em vários espaços onde os agricultores e os vários atores (professores, políticos, técnicos-extensionistas, pesquisadores) com os quais eles se relacionam a nível local “mantêm intercâmbios, fluxos de informação e de práticas, mais ou menos estruturados em torno da produção agropecuária” (Sabourin, pg 42). Esse duplo caráter, social e técnico, decorre do fato de que essas redes e espaços se constroem tanto pela proximidade e a 845

familiaridade entre os atores quanto por suas trocas recíprocas no campo da produção e do conhecimento. Como explica Sabourin retomando Marcel Mauss, são relações totais, pois são ao mesmo tempo sociais, culturais e econômicas. Assim Sabourin, analisando uma comunidade rural no Agreste da Paraíba caracteriza três tipos de espaço ligados a funções econômicas: cotidiano-produtivo; comercial e sócio profissional e mais dois espaços socioculturais: um profano, das festas e encontros familiares e outro espiritual, dos rituais e festejos ligados a santidades. Poderíamos falar ainda de espaços de participação política-administrativa, como vai aparecer no caso que estudamos, como conselhos de controle social de políticas públicas, dias de inscrição nas chamadas públicas, reuniões organizadas pela secretaria de agricultura, etc. A sobreposição desses espaços e a diversidade de redes que aí se entrecruzam e que extrapolam

seus

limites

demonstra

a

complexidade

e

a

multidimensionalidade que podem assumir os processos de inovação no desenvolvimento rural. Um rural que não é só agrícola e trabalhadores rurais que não são apenas agricultores. Por isso, algumas questões que parecem importantes de aprofundar e indagar são como se formam as redes, de que maneira elas se mantém e o que lhes dá maior ou menor dinamicidade. Mas, primeiro é necessário entender em que linha do pensamento social a teoria das redes sociais no mundo rural se encaixa.

1.3 - “Os camponeses como atores sociais”

Diferente das perspectivas que analisavam a dinâmica do espaço rural e a atuação dos agricultores familiares apenas a partir de forças estruturais macroeconômicas (acumulação de capital), de processos tecnológicos (modernização e revolução verde) ou com uma 846

concepção geral das forças produtivas, a perspectiva das redes e dos atores sociais se volta para a análise das práticas sociais, sejam elas individuais ou coletivas de reprodução, inovação e gestão, assim como os laços grupais, familiares ou comunitários que se desenvolvem conjuntamente aos processos produtivos. (MENEZES e MALAGODI, 2011) Assim, pensa-se o rural não apenas como o espaço da atividade agropecuária, mas um espaço heterogêneo, permeado por diferentes racionalidades e particularidades históricas e culturais. Essa mudança no foco provém de uma constatação, da qual Ploeg compartilha, do não reconhecimento do campesinato como ator social e como agente nas teorias sociais. Os camponeses estariam sempre em uma situação de dominação política, cultural e econômica que os impediria conseguir agir sobre suas próprias vidas. Essa visão não tornava possível enxergar como esses indivíduos atuavam dentro dessas relações de dominação, como organizavam seu mundo, como resistiam dentro das condições possíveis, como e onde encontravam espaços de autonomia e como afinal se mantiveram até a atualidade. Dessa forma, acompanhando a crítica a essa perspectiva puramente estruturalista e ao mesmo tempo sem negar as condições de

dominação

e

subordinação

externas

por

que

passam

os

camponeses, os autores Long e Ploeg, citados por Menezes e Malagodi (2011) ao se apoiar em outros autores como E.P. Thompson e Hindness apresentam uma perspectiva conciliatória, uma análise em que se apresenta o contexto para emergência das condições que possibilitam a ação social, que possibilitem a emergência de redes de atores e que possibilitem portanto a capacidade de agente dos camponeses. Agência no sentido de ter poder, conhecimento e capacidade de influenciar outros em suas redes de relação provocando a emergência de novas estruturas (Menezes e Malagodi, pg. 53). É uma tentativa de tratar

dos

camponeses

como

sujeitos

concretos,

pessoas

que

experimentam situações, fazem escolhas e trabalham essa experiência 847

em sua consciência e na sua cultura em um contexto histórico determinado. (Thompson, 1978 citado por Menezes e Malagodi, 2011).

1.4 - Meios discursivos, sistemas de conhecimento e capital social

Dito isto, é possível entrarmos nas questões que levantamos anteriormente. Afinal do que se constituem as redes sócio-técnicas no meio rural? Como elas operam na realidade criando e reproduzindo inovações e o que lhes dá forma e movimento? Para tentar responder essas questões nos apoiaremos em alguns autores que trabalham com o tema. A primeira questão é do que se formam as redes sócio-técnicas. Como os sujeitos se agrupam? Por que se agrupam, em resposta a que? Long e Ploeg (1994) citados por Menezes e Malagodi (2011) dirão que a ação social de certa rede de atores se faz na interlocução ou no conflito com outros atores e redes de atores. Assim essa ação se formaria a partir de “meios discursivos”, um tipo de estoque de conhecimentos, recursos e informações que os sujeitos lançam mão para dar significado á certas ações, acontecimentos e idéias presentes no meio em que vivem e se relacionam. Pensa-se então num contexto de lutas e de interação em que as redes e suas ações se manifestam, onde ganham vigência e visibilidade (Menezes e Malagodi, 2011:). Esses discursos disponíveis não viriam do nada, mas sim de um conjunto de tradições e invenções locais que existem devido a sua experiência ao longo de certo período de tempo. Pois quando estamos falando das redes sociais ou sócio-técnicas não estamos falando de uma substância tangível, facilmente visível, as redes são construções abstratas que ganham concretude em suas ações e se modificam a partir delas, mesmo existindo antes e depois dessas ações. 848

Pegando como exemplo o caso da formação de uma rede de produção

agroecológica

em

Macaíba,

hipótese

que

estamos

desenvolvendo. Vemos que ela vem se formando não apenas pelas necessidades que são impostas aos agricultores, mas por uma série de discursos, idéias e visões sobre a realidade rural, a agricultura e seu desenvolvimento tradicional

da

que

se

região,

contrapõe já

que

ao

contém

discurso uma

da

agricultura

perspectiva

de

sustentabilidade, do trabalho coletivo, de alimentação saudável, etc. É então nessa luta pelo estabelecimento de uma agricultura alternativa no meio rural que os atores dessa rede se colocam e atuam, buscando em suas experiências e tradições as bases para significar essa nova forma de produzir. Para responder como as redes sócio-técnicas operam na realidade têm-se como referência Eric Sabourin. Ao tratar dos processos de difusão de inovações na agricultura ele utiliza o conceito de sistemas locais de conhecimento. Ele os define citando Rolling (1992) como: “a articulação de atores e redes de atores e/ou organizações manejados em sinergia, de maneira a promover processos de conhecimento melhorando a relação entre conhecimento e ambiente e/ou a gestão de tecnologias usadas para um dado setor da atividade humana”. Se vê que o conhecimento tem um papel central na relação entre as redes sóciotécnicas e as inovações e a sua aplicação na vida social e produtiva dos atores. Mas esse não é um conhecimento qualquer, Sabourin ainda citando Rolling dirá que esse enfoque considera o conhecimento como uma “aprendizagem coletiva”, criado a partir de ações dos atores ou da organização entre estes, motivado por suas experiências comuns e comportamentos compartilhados. Por isso é importante levar em conta que por se tratar de redes e não de comunidades ou organizações, a formação do conhecimento coletivo e seu acesso acabam sendo mais desiguais e assimétricos.

849

Voltando a Sabourin, ele dirá que por serem relações sociais (criadas em espaços sociais variados como foi dito acima) em que se misturam fatores de amizade, reciprocidade e de trabalho, as informações técnicas compartilhadas entre os agricultores acabam se criando de uma maneira seletiva, o que pode inibir e desacelerar os processos de inovação. Além disso, ele dirá que existe uma certa ordem local da técnica em agricultura em que as mudanças são negociadas, onde o que importa não é tanto o conhecimento do agricultor mas o seu respeito e lugar frente ao grupo. Estes fatores de reciprocidade e confiança se mostram, portanto fundamentais, pois dão forma às redes sócio-técnicas e condicionam a dinâmica dos processos de inovação. Assim entramos em outro conceito importante para entendermos as inovações na agricultura: a noção de capital social. Segundo Robert Putnam (2007) citado por Dias e Piraux (2008), capital social seria um conjunto de características como confiança, reciprocidade, normas, etc.

que

certa

organização

civil

conta

para

realizar

ações

coordenadas. Para ele a noção de capital social estaria diretamente ligada à ideia de comunidade cívica, em que "os estoques de confiança, normas e participação tendem a ser acumulados e a se reforçar mutuamente. Dessa forma são criadas virtudes coletivas que desencadeiam certa eqüidade social, com elementos de cooperação, reciprocidade, civismo e bem estar social". (DIAS & PIRAUX, pgs. 15 e 16). Abramovay (2000) estudando a relação de capital social com o desenvolvimento rural a partir de Putnam afirmará que capital social corresponde a certos recursos (na maioria simbólicos) cujo uso abre caminho para a construção de novas relações em determinada região. Como diz Bourdieu (1979), citado por Abramovay et al (2000): capital social é um conjunto de recursos e poderes efetivamente utilizáveis, cuja distribuição social é necessariamente desigual e dependente da capacidade de apropriação dos diferentes grupos. Assim quando um grupo subalternizado, dependente ou marginalizado economicamente como os agricultores familiares consegue capital social, reforçando 850

laços e adquirindo confiança mútua, podem acontecer mudanças significativas na correlação de forças em plano local. Poderíamos afirmar, respondendo a questão do que dá formas as redes sócio-técnicas que o capital social seria como uma base de sustentação das redes e das formas de transmissão das inovações sócio-produtivas. O que dá contornos, possibilidades e limites para a incorporação de novidades entre os grupos de agricultores familiares. Assim, quanto mais capital social existir em certa comunidade ou rede de atores e quanto mais simétrico ele for, maiores são suas chances de acessar políticas públicas de forma igualitária, acessar políticas de financiamento e de crédito, disputar e negociar politicamente com o poder local, elaborar e participar de projetos públicos ou privados, arriscar-se em novas formas de produção e comercialização. Enfim, conseguir maiores condições de emancipação social de forma coletiva. Pode-se perceber que esses conceitos (meios discursivos, sistema de conhecimento e capital social) isolados não dão conta de responder as questões que levantamos. Observando as redes sociais em movimento se vê que há um entrecruzamento de conhecimentos, discursos,

acontecimentos,

representações

e

comportamentos

permeando as relações entre os sujeitos, dando forma e realidade às redes que se formam daí. A definição desses aspectos é importante, por serem eles as bases imateriais das redes sócio-técnicas. Analisando-os e observando o capital social de cada grupo, os discursos presentes nas falas dos atores e nas formas como o conhecimento é trocado e compartilhado nas redes nos torna possível visualizar em que contextos, condições se formam as redes e de que maneira a agricultura familiar vem criando inovações nas suas práticas.

1.5 - Arranjo e ambiente institucionais

851

Assim entramos no último aspecto do que estamos chamando de gramática das redes de inovação: o papel das instituições. Quando falamos de criação, incorporação e difusão de inovações sócioprodutivas na agricultura é muito importante o papel do Estado. Não como uma entidade abstrata com poderes absolutos, mas sim como um agente especial na organização da sociedade, que não apenas constrange e molda comportamentos, mas que também pode criar oportunidades e promover direitos substantivos (BASTOS, 2006). Pensa-se aí que dentro da democracia para as mudanças sociais se efetivarem elas têm de ser acompanhadas por mudanças institucionais. Para isso são necessários não apenas compromissos e vontade política dos que estão no poder, mas também um arranjo institucional que permita a efetivação de projetos de transformação. Isso quer dizer que é necessário um aparato institucional favorável: um conjunto de leis, portarias, regulamentos, decretos, ajustamentos formais de conduta, apoio de organismos públicos, parcerias privadas que permitam o controle de suas ações e do seu desempenho (BASTOS, 2006). Mas esta é apenas a parte formal, esses instrumentos

formalizados

decorrentes

da

cultura

irão dos

interagir grupos

com

sociais

estruturas e

das

informais,

informações

transmitidas socialmente. Esse espaço de mediação entre diretrizes legais e valores, costumes e objetivos políticos dos atores de uma localidade é chamado de ambiente institucional. E será nele que os resultados das intervenções estatais como as políticas públicas serão condicionados, pois nessa relação poderá haver tanto cooperação e reciprocidade quanto desprezo e resistência aos objetivos propostos (BASTOS, 2006). É nessa perspectiva que estamos observando o Programa Nacional de Alimentação Escolar em Macaíba como uma inovação para os agricultores. Para ela ser implementada e desenvolvida como uma política pública inclusiva e transformadora necessitou de um 852

ambiente institucional favorável, assim como das redes sócio-técnicas e do capital social de seus atores. É isso que vamos observar mais de perto nas próximas páginas: caracterizar os atores e o ambiente em questão, analisando os processos e práticas que estão dando novas formas à agricultura familiar de Macaíba.

2. CARACTERIZAÇÃO E REFLEXÃO DO CAMPO ESTUDADO Macaíba é um município de porte médio com 69.467 habitantes, localizado entre a zona da mata e o agreste do estado do Rio Grande do Norte. Encontra-se integrado a Região Metropolitana de Natal, ficando a 15 km de distância desta. Seu IDH-M é de 0,67 (PNUD 2000) e seu PIB municipal em 2009 era de 709 milhões, sendo o setor de serviços a atividade econômica mais expressiva com 45,8% de participação no PIB, seguido da indústria com 35,5% e da agropecuária com 3,4%. Por se encontrar na região metropolitana, Macaíba vem se configurando na última década como uma “cidade dormitório” e grande parte do crescimento do setor de serviços está vinculada ao crescimento econômico e demográfico da capital (Plano Diretor de Macaíba, 2006). O município possui a segunda maior área rural da região metropolitana, ficando atrás apenas de Ceará-Mirim. Sua população rural corresponde a 38,63% da população total, espalhadas entre trinta e duas comunidades rurais, seis assentamentos e uma comunidade quilombola. Sua estrutura fundiária não é muito concentrada segundo consta no Plano Diretor, e o modo de organização que predomina é a agricultura familiar, existindo poucos empreendimentos agroindustriais e apenas uma cooperativa de produtores. Os principais produtos da agricultura são a castanha de caju (14000 ha) e a mandioca (3400 ha), mas também se produz tradicionalmente coco, manga e laranja (Plano Diretor de Macaíba, 2006), além de milho e feijão para consumo 853

doméstico. Há também um número expressivo de cabeças de gado e de aves sendo criadas segundo o censo agropecuário de 2006. Essa produção tem como maior ponto de comercialização a feira de Macaíba que se realiza todo sábado no centro da cidade. Desde 2009 vem sendo criadas hortas agroecológicas na zona rural do município voltadas para a produção de hortaliças e legumes. As primeiras foram implantadas no assentamento Caracaxá, localizado na comunidade de Lagoa do Lima no oeste do município. E partiu da presidente da associação, dona Fátima, que conheceu o projeto PAIS (Projeto de Agricultura Integrada Sustentável) do SEBRAE numa feira de agricultura na cidade de Mossoró, oeste do estado. Vindo conhecer Macaíba, os técnicos do SEBRAE entraram em contato com Marcos, secretario da agricultura, que por sua vez os levou a outras localidades para

implantar

mais

unidades.

Os

agricultores

que

aceitaram,

curiosamente, foram de outros dois assentamentos: Quilombo dos Palmares II e Margarida Alves. Este é o possivelmente o início do processo que estamos analisando hoje, tendo começado com dona Fátima no assentamento Caracaxá, as hortas agroecológicas vem se constituindo como uma inovação sócio-produtiva, reorganizando tanto a estrutura social e política nesses assentamentos quanto o padrão produtivo o qual os agricultores estão acostumados. Nessa mesma época, em 2009, começou no município a nova configuração do PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) que estabelece que 30% dos alimentos voltados para a merenda escolar devem ser da agricultura familiar local. Esse programa que se coloca como um mercado institucional para os agricultores vem conseguindo preencher uma grande fissura que a agricultura familiar e a agricultura de matriz agroecológica sofrem: a ausência de canais de comercialização. A forma como essas duas iniciativas se integraram, uma com uma nova forma de produção (PAIS) e outra como um novo mercado 854

(PNAE) causaram grande curiosidade para nós, em que questionamos se tratava-se de um certo favoritismo do secretario de agricultura e sua preferência em colocar alimentos agroecológicos na alimentação escolar ou se era a ação dos próprios agricultores que os permitiu participar de dois programas interessantes como esses. Refletindo e analisando as características desses agricultores e dos outros atores em questão percebemos que tratava-se não de pessoas isoladas mas de uma rede que integrava agricultores, técnicos e gestores públicos em o que estava em jogo era muito mais uma história de relações, experiências e conhecimentos aliadas a familiaridade com as políticas públicas do que um jogo sujo de favorecimento e clientelismo, por mais que essas características da política ainda possam ser levadas em conta. Para isso buscamos entender que eram essas pessoas, sujeitos cuja ação vem provocando novas dinâmicas na agricultura familiar do município. Primeiro os agricultores. Além de serem agricultores, eles são assentados. Essa condição lhes confere um história que é anterior ao próprio assentamento, para conseguir a terra em que hoje habitam e trabalham tiveram de batalhar. Pelos relatos de dona Fátima, no assentamento Caracaxá não houve acampamento prévio, eles se cadastraram

junto

ao

INCRA

com

a

ajuda

do

Sindicato

de

Trabalhadores Rurais e conseguiram em 2001 a demarcação do Projeto de Assentamento. Mas sua luta maior veio depois de assentados: ficaram cerca de dois anos pagando por água encanada sem receber uma gota sequer, o que os fez terem de entrar com uma ação judicial contra a CAERN (Companhia de águas e esgotos do RN). Depois de algum tempo nesse pleito com a ajuda de estudantes e advogados de um projeto de assessoria jurídica popular da UFRN, conseguiram a cancelar as dívidas e a liberação da água até o assentamento, o que os permitiu melhorias tanto nas tarefas e usos domésticos quanto na produção. 855

Dona Fátima com quem tivemos mais contato até agora é uma das principais lideranças do assentamento e esteve à frente das “brigas” por que passaram para conseguir a estrutura que tem hoje. Além de estar na presidência da associação do assentamento ela também estava como presidente do Conselho da Alimentação Escolar do município na época em que a conhecemos e parece ser uma pessoa conhecida na cidade. Mas esse papel central que ocupa, mesmo tendo sido importante em alguns momentos da trajetória do assentamento (por suas relações com outros atores importantes como advogados, gestores, estudantes da universidade) nem sempre se mostra positivo. Primeiro porque acaba desvalorizando a participação dos outros assentados na melhoria das condições do assentamento e segundo e mais grave é a reprodução de desigualdades dentro do próprio assentamento e do benefício de alguns em detrimento de outros. Por ela lidar mais diretamente com a linguagem e os instrumentos das políticas públicas, por ter mais acesso a estrutura administrativa da prefeitura e conhecer o contexto político do município acaba se acompanhado

de

diferenciando dos uma

organização

seus

pares,

pouco

assentamento pode criar relações de dominação,

o que se

democrática

no

dependência e

amiguismo. Diferente por exemplo é o caso do Ass. Quilombo dos Palmares II, em que ao invés de uma pessoa no controle, há um grupo de agricultores que mantém, pensa e se organiza para participar tanto do PNAE, como para fazer funcionar as hortas do projeto PAIS. Essa diferença ficou visível no dia da chamada pública do PNAE, espécie de licitação adaptada para a participação de agricultores individuais. Nesse episódio, ocorrido na sede da prefeitura, enquanto do Ass. Caracaxá estava apenas dona Fátima, representando os outros assentados, do Ass. Quilombo estavam todos os agricultores que tem registro na chamada pública e ainda outros que estavam pela primeira 856

vez se inscrevendo. Depois disso, conversando com o secretario de agricultura descobrimos que no Ass. Caracaxá apenas Dona Fátima e uma outra agricultora tem DAP (Declaração de Aptidão ao Pronaf), documento que habilita os agricultores a acessarem uma série de políticas públicas. Essas diferentes adaptações ao PNAE, dizem muito da realidade política e do capital social em cada assentamento. Visitando o assentamento Quilombo, localizado no sul do município, descobrimos que os agricultores deste ao contrário dos agricultores do Caracaxá passaram pelo processo de acampamento por um ano e meio. Nesse período que viveram juntos como integrantes do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra) desenvolveram uma experiência coletiva, participaram de cursos de formação política, aprendendo e discutindo sobre gênero e feminismo, agroecologia, questão agrária etc. Além disso, alguns deles como Márcia, uma das agricultoras mais participativas, visitaram assentamentos em outros estados, conhecendo diferentes experiências na agricultura e formas de desenvolvimento dos assentamentos de reforma agrária. Além disso, outro fator que contribui para a participação mais homogênea dos agricultores do Ass. Quilombo foi o fato de já terem participado do PNAE por uma única vez no município de São José do Mipibu, vizinho a Macaíba. Pelo que nos relataram, em 2008 o marido de Jandicleide, outra das mulheres que participa bastante, foi até o município vizinho e descobriu que a prefeitura estava precisando de agricultores para distribuir alimentos nas escolas. Conseguindo cadastrar alguns dos assentados, eles distribuíram em três meses o percentual referente ao ano todo, pois a prefeitura precisava cumprir a lei 11.947 que estabelece os 30% oriundos da agricultura familiar e não tinha se organizado desde o início do ano. Esses espaços e experiências foram muito importantes para construir aquilo que Sabourin (2001) chama de aprendizagem coletiva. 857

O que contribuiu não apenas para desenvolver novas técnicas e formas de produção agrícolas, mas para a qualidade política de sua participação em espaços coletivos, nas formas de emancipação das mulheres, e nas práticas de resistência e autonomia dos agricultores como um todo. Além disso, o fato de já terem participado do PNAE em outro município, já lhes permitira saber quais adaptações na produção necessitariam ser feitas para cumprir a demanda das escolas, ou seja, já tinham um conhecimento praticado sobre o programa. Do outro lado da rede estão os gestores da prefeitura municipal de Macaíba. Observando o processo de implementação do PNAE no município podemos observar que ele necessitou uma participação qualificada dos gestores, em especial Katiúscia, nutricionista da Casa da Merenda (unidade responsável pelo PNAE em Macaíba), Marco, secretario de agricultura e José Wilson, secretario de administração e planejamento que à época da implementação era secretario de educação.

Pelos

seus

relatos

em

entrevistas

esses

gestores

demonstraram ter uma visão política e uma leitura da realidade similar ao conteúdo valorativo, ideológico e interpretativo que o PNAE enquanto política pública agrega. Além disso, as boas relações entre si e sua comunicação também pareceram ter facilitado a entrada e adaptação do município ás exigências do programa. Isso remete em parte aquilo que chamamos do ambiente institucional favorável para as inovações acontecerem. Facilitou o fato da nutricionista do município compartilhar com a ideia de segurança alimentar

do

programa.

Em

suas

falas

ficava

marcada

sua

preocupação com uma prática sustentável de produção de alimentos, da importância de políticas de redução de desnutrição e do direito a uma alimentação de qualidade que respeite as diferenças culturais e regionais. Assim também o secretario de agricultura demonstrou um entendimento do mundo rural, que resumindo converge menos com as políticas do Ministério da Agricultura, ou seja, mais voltadas ao 858

agronegócio e mais com as do Ministério do Desenvolvimento Agrário, cujo público são agricultores familiares e assentados de reforma agrária. E José Wilson de administração e planejamento demonstrou que os preceitos do programa vão de acordo com as necessidades de Macaíba que como um município eminentemente agrário precisa dar condições de manter os agricultores na zona rural. Esse fazendo uma análise do quadro administrativo da prefeitura resume que em todas as secretarias estão profissionais formados na área em que atuam, dando um caráter mais técnico do que político à execução das políticas públicas.

3. ALGUMAS AVALIAÇÕES

Com cerca de três anos de duração, ambos os projetos, PAIS e PNAE se encontram já numa fase em que é possível avaliar o que vem dando certo e tem condições de progredir e o que vem impedindo seu desenvolvimento. Todos os atores com quem tivemos contato teceram comentários sobre alguns desafios que enfrentam atualmente. Um deles é o tempo de pagamento do PNAE, cuja verba vem do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) e demora de dois a três meses a chegar nas mãos dos agricultores. Isso se dá pelo sistema do PNAE no município ser centralizado: a prefeitura faz toda administração e planejamento do programa e não as escolas como no sistema

descentralizado.

Nesse

tempo

de

processamento

dos

pagamentos, a prefeitura arca com o custo e paga os agricultores, o que ainda não é em tempo suficiente para que os agricultores tenham o capital de giro necessário para manter a produção. Isso fez os agricultores que participam do PAIS organizarem uma horta no centro da cidade, apenas com os produtos agroecológicos. Infelizmente no início do ano de 2012 a prefeitura municipal decretou uma lei que 859

proíbe o comércio em alguns pontos do centro da cidade, o que incluiu o espaço da feira. Quando chegamos à Macaíba, em abril deste ano este impasse estava na ordem do dia, Marco secretario da agricultura estava tentando resolver a situação mudando a feira de lugar, mas não teve sucesso. Esse fato parece ter enfraquecido um pouco as relações na rede, já que trouxe alguns sentimentos de desconfiança entre os agricultores e a secretaria de agricultura. Um outro problema ainda vem sendo uma das exigências do PNAE quanto às cooperativas de produtores. Por Macaíba ser uma cidade com mais de 65 mil habitantes é necessário que os produtores do programa não sejam agricultores familiares individuais, mas que estejam organizados em cooperativas. No entanto nenhum dos assentamentos que participam do programa tem cooperativas e até agora a secretaria de agricultura junto com os agricultores vem conseguindo negociar com o FNDE e o MDA a persistência dos agricultores já cadastrados no programa. Esse problema se revelou no dia da chamada pública de 2012, quando um representante de uma cooperativa de Rio do Fogo, município do litoral norte do estado, chegou para se cadastrar no processo licitatório e ofereceu aos agricultores de Macaíba para eles serem os produtores da sua cooperativa.

Isso

causou

muitos

questionamentos

e

mostrou

a

necessidade da organização para continuar a acessar os programas governamentais. Se vê aí algumas contradições nas ações do governo municipal e nas propostas do PNAE, o Estado se torna ao mesmo tempo aquele que dá e o que tira os benefícios dos agricultores. Pode-se atribuir essas problemáticas a falta de um sistema de informação eficiente e democrático entre os governos locais e os órgãos federais, no caso das cooperativas de produtores e da demora do pagamento. Marco, secretario de agricultura comentou algumas vezes que participa das conferências territoriais, faz sugestões e críticas, mas isso nunca surte 860

efeito nem provoca alguma mudança nas políticas públicas. No caso da feira, foi uma ação um tanto inconsequente da prefeitura que terminou com o único espaço de comercialização de alimentos agroecológicos da cidade, em que já estava se formando um público fixo, além de ser um ponto de encontro entre os agricultores e destes com outros atores da cidade.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS A pesquisa feita até então, tem apontado portanto para conexões que giram em torno de três elementos: inovação – redes sócio-técnicas – ambiente institucional. Tem-se visto que a adoção de inovações e de práticas diferentes na agricultura tem relação direta com as experiências tanto produtivas quanto de organização e mobilização dos agricultores. Isso por sua vez vincula-se às redes das quais eles fazem parte: movimentos sociais, agentes de governo, com técnicos, sindicatos, etc. Essas redes são responsáveis tanto pela configuração de uma malha de confiança e reciprocidade quanto por uma troca de conhecimentos e saberes que dizem respeito tanto a agricultura propriamente dita quanto à outras questões (sociais, políticas, ambientais, econômicas) que se revelam na localidade. Por último esses dois elementos são condicionados por um ambiente institucional (GOMES e BASTOS, 2006) favorável, quer dizer, as redes para conseguirem se ampliar e concretizar novas práticas necessitam de um quadro institucional com comportamentos, compromissos e valores que apontem pelo menos em parte na mesma direção que as inovações e projetos inovadores. Vemos assim que no caso estudado foi uma rede sócio-técnica criada por agricultores assentados, técnicos e gestores que possibilitou a configuração de uma relação de complementariedade entre o Projeto PAIS e o PNAE, o que vem dando condições de permanência para 861

ambas iniciativas. O PAIS como estratégia inovadora de produção sustentável, com poucas possibilidades de comercialização e o PNAE com política pública de segurança alimentar e de criação de renda para a agricultura familiar que não conta com políticas efetivas e órgãos voltados para o incentivo a produção agroecológica. As possibilidades de ampliação dessas inovações e da continuidade das práticas já existentes dependem, portanto, do mantimento e da capacidade de influência das relações dessa rede, cuja dinâmica não se encontra apenas nas diretrizes governamentais e econômicas, mas também na temporalidade, nas diferentes racionalidades e tendências das relações humanas.

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863

ANÁLISE DO SISTEMA DE PRODUÇÃO AGROECOLÓGICA INTEGRADA E SUSTENTÁVEL – PAIS NA REGIÃO METROPOLITANA DE NATAL

Raquel Francisco dos Santos257 Luna Dalla Rosa Carvalho258 Orientadora: Cimone Rozendo de Souza259

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo realizar um pequeno histórico do sistema PAIS no Rio Grande do Norte com foco na região de metropolitana de Natal, tendo por base entrevistas realizadas com a gerência do projeto, a partir do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), buscando entender as relações estabelecidas entre agricultores, SEBRAE e poder público, principalmente na fase de implantação do projeto. Com as entrevistas foi possível refletir também sobre alguns fatores limitantes no desenvolvimento de algumas unidades já implantadas, bem como dos agentes impulsionadores no desenvolvimento de outras. Foram obtidos também dados quantitativos desse sistema em nível de Brasil, Rio Grande do Norte e Natal. PALAVRAS-CHAVE: Agricultores; SEBRAE; PAIS.

INTRODUÇÃO

A utilização de insumos químicos e agrotóxicos vem provocando um alerta na população mundial desde meados dos anos 60, quando o uso intensivo desses compostos chegaram a provocar várias mortes de animais e algumas doenças graves, em pessoas que tiveram um contato mais próximo com esses produtos, como retrata Rachel Carson em seu livro primavera silenciosa: “Eles possuem poder imenso não

257

Graduada em Gestão Ambiental (UERN), Técnica em Controle Ambiental (IFRN), Mestra em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA/UFRN). [email protected]. 258 Graduada em Ciências Sociais (UFRN). Professora de Sociologia na Rede Municipal de Ensino do RN. [email protected]. 259 Graduada em Ciências Sociais (UFPA), Mestra em Sociologia (UFPA) e Doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento (UFRN). Professora Adjunta (UFRN), atuando nos programas de pós graduação em Desenvolvimento e Meio ambiente (PRODEMA/UFRN) e Ciências Sociais (UFRN). [email protected].

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somente de envenenar, mas também de penetrar nos processos mais íntimos e vitais do organismo, modificando-os em sentido sinistro e com frequência, em sentido mortal” (CARSON, 1969 p. 26). Com efeito, esses agrotóxicos não são prejudiciais apenas quando em contato direto com os seres humanos e animais, mas também se torna um perigo quando são consumidos nos alimentos, em virtude de sua própria composição química considerada nociva.Há também o problema do aumento das concentrações dos agrotóxicos nos tecidos dos organismos, ao passo que se eleva o nível trófico ao longo da cadeia alimentar, e como o ser humano é o último consumidor da cadeia, estes são os que absorvem maiores concentrações desses elementos, ocorrendo um fenômeno chamado de biomagnificação (STOPPELLI e MAGALHÃES, 2005). Porém, a consciência da população em relação a tais riscos vem aumentando, e a procura por produtos orgânicos cresce em grandes proporções. Segundo a International Federation of Organic Agriculture Moviments – IFOAM, em 2005 existiam cerca de vinte e seis milhões de hectares com uma produção orgânica certificada, movimentando em média R$ 80 bilhões com um crescimento de 10% ao ano. No Brasil esse crescimento tem um percentual de 30% ao ano. Na verdade, esse é o ramo de mercado em maior crescimento no país (IFOAM, 2005). A agricultura orgânica tem sido apontada na literatura de diversas áreas, como uma alternativa para sanar os problemas dos agrotóxicos. Trata-se do uso de tecnologias aplicadas à produção agrícola, na busca da sustentabilidade ambiental, aliada a produção de alimentos saudáveis, além de ser uma das alternativas para um melhor desenvolvimento da pequena propriedade (ORMOND et al., 2002). De acordo com Castro Neto (2010), as agriculturas de base ecológica fortalecem as raízes do homem no campo, contribuindo para a diminuição do êxodo rural, estabelecendo um modelo alternativo de

865

agricultura familiar e favorecendo a produção de alimentos mais saudáveis. A Produção Agroecológica Integrada e Sustentável, conhecida como tecnologia social PAIS, atua como um desses sistemas de produção sustentável, “sem uso de produtos tóxicos e com a preocupação de preservar o meio ambiente, integrando técnicas simples e já conhecidas por muitas comunidades rurais” (MI, 2012). Consiste em um sistema de produção aplicado em propriedades de pequenos agricultores, onde planta-se uma horta orgânica em formato de mandala e no centro desta horta instala-se um galinheiro contendo dez galinhas e um galo, ao redor da horta faz-se o plantio de diversas culturas como fruteiras, leguminosas e cereais, a irrigação é por gotejamento e em alguns locais a energia usada vem de uma placa solar, o adubo orgânico é produzido a partir dos dejetos das galinhas e resíduos da própria plantação (MDS, 2012). A tecnologia social PAIS é fruto de uma parceria entre o SEBRAE, a Fundação Banco do Brasil e o Ministério da Integração Nacional e foi pensada para ser aplicada com o total envolvimento das famílias produtoras (SEBRAE, 2012). Esse sistema é entendido como uma tecnologia social, por abranger tanto o conhecimento científico quanto o tradicional, na intenção de trazer novas técnicas para o benefício das comunidades rurais, gerando soluções efetivas para a sociedade (MCTI, 2010). Entretanto, existem poucas informações divulgadas sobre o PAIS, tanto no que diz respeito a dados quantitativos em relação ao número de

unidades



implantadas

no

RN,

tempo

de

implantação,

porcentagem do nível de aceitação por parte dos agricultores, quanto questões de cunho qualitativo, se o PAIS tem afetado o cotidiano das populações que o recebem, o histórico do sistema, mapeamento de

866

áreas onde as unidades já foram implantadas e discussão sobre estas áreas.

OBJETIVOS

Construir um panorama sobre o sistema PAIS no RN a partir do seu desenvolvimento histórico, analisando os processos de implementação das unidades; Efetuar um levantamento dos principais dados quantitativos sobre a Produção Agroecológica na região metropolitana de Natal.

METODOLOGIA

Primeiramente, foi realizada uma revisão bibliográfica sobre a temática. Em seguida efetuaram-se entrevistas informais com a Coordenação do Projeto PAIS no SEBRAE-RN e por fim foram feitas visitas à duas comunidades em que foram implementadas unidades do PAIS onde houveram conversas informais e a aplicação de um questionário teste com os agricultores participantes do projeto. Nas entrevistas com a coordenação do PAIS foram feitas perguntas como: a quanto tempo o SEBRAE vem implantando unidades do PAIS no RN? Quais são os resultados que o SEBRAE vem observando? Qual a frequência de visitas às comunidades feitas pelos técnicos? Que tipos de investimentos são feitos a partir do SEBRAE? Como se dá o processo de escolha de uma comunidade para a implantação do PAIS? Como se deu o processo de adesão do SEBRAE ao sistema PAIS? Como é mensurado o custo benefício desse sistema entre as comunidades? O que uma comunidade ou assentamento rural 867

necessita ter para ser escolhida ou escolhido pelo SEBRAE? Quantas unidades estão em processo de implantação atualmente? Quantas unidades continuam sendo desenvolvidas pelos produtores e quantas foram desativadas ou abandonadas? Onde está o maior índice de abandono do projeto?

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Com o levantamento bibliográfico foi possível verificar alguns dados relevantes e, portanto, formulou-se um breve histórico do desenvolvimento do PAIS no Brasil. O PAIS é uma das tecnologias sociais que estão sendo implementadas em diversas regiões do país e foi criada por um agrônomo senegalês de 41 anos chamado Aly Ndiaye, que em meados dos anos 1990 veio estudar no Brasil e construiu pela primeira vez um sistema PAIS em 1999, na região serrana de Petrópolis (RJ), juntamente com uma família de pequenos produtores (SOUZA, 2007). Essa ideia foi aproveitada pela Fundação Banco do Brasil (FBB), o SEBRAE e o Ministério da Integração Nacional (MI), que em 2005 uniramse objetivando o financiamento desse projeto em diversos locais do Brasil. Em dois anos foram implantadas 1.386 unidades do PAIS (SOUZA,2007). Estão previstos pra aos próximos quatro anos um investimento de 30 milhões de reais para implantação de 4,5 mil novas unidades e restauração de 1,5 mil que já existem. Há hoje no Brasil, cerca de dez mil unidades já implantadas através dessa parceria entre banco do Brasil, SEBRAE e MI (EMEDIATO, 2012). As informações a nível regional foram obtidas através de duas entrevistas. A primeira entrevista foi realizada dia 13 de abril de 2012 na 868

sede do SEBRAE-RN, com a coordenação do projeto de implantação do PAIS no RN, onde foram levantadas questões de nível quantitativo, mais

tarde

foi

realizada

outra

entrevista

para

verificação

de

informações de cunho histórico temporal, observando principalmente a forma como se dá as implantações das unidades do PAIS na região metropolitana de Natal. Na primeira entrevista obtiveram-se as seguintes informações: no Rio Grande do Norte, foram implantadas 361 unidades nos municípios de Mossoró, Mato Grande, Assú e região metropolitana de Natal, com previsão de inserção de mais 200 famílias nos próximos dois anos seguintes em outras regiões do Rio Grande do Norte, somente em Macaíba existem 20 unidades do PAIS já implantadas, comtemplando 60 famílias de agricultores como demonstrado na (Figura-1), (ASN, 2012).

Figua-1 Mapa designatório das unidades do PAIS já implantadas no RN e as que irão ser implantadas no ano de 2012. Fonte: SEBRAE, 2012.

A segunda entrevista foi importante para aprofundar o assunto e obter dados mais qualitativos sobre o que está acontecendo com as unidades que já foram implantadas, bem como averiguar os fatores que influenciam na escolha das comunidades para a implantação do PAIS pelo SEBRAE no RN.

869

Em 2006 foi lançado um projeto pelo SEBRAE intitulado: unidade familiar de produção agroecológica sustentável, esse projeto visava implantar as primeiras unidades do PAIS no Rio Grande do Norte como forma de analisar seu desempenho na região, foram instaladas 90 unidades, todas no Vale do Assú, desde então vem outras unidades vem sendo instaladas em diversas localidades do estado. Na região metropolitana de Natal as primeiras unidades chegaram no ano de 2008 e esse processo durou até o final do de 2011, foram 100 unidades implantadas no período de 3 anos. De todas elas, cerca de 70% a 80% continuam com seu funcionamento normal, mas algumas e principalmente as mais antigas estão sendo abandonadas pelos agricultores, de acordo com a coordenação do projeto isso ocorre devido ao desgaste do material que é cedido pelo SEBRAE e as famílias não costumam investir em novos materiais. Outro fator relevante é o constituinte climático, pois, em algumas localidades há o advento de enchentes ou períodos de estiagem intensa, causando assim a desistência por parte dos produtores que ficam a mercê desses contrastes climáticos e não conseguem recuperar suas unidades. O SEBRAE fornece as famílias dois anos de assistência técnica, onde é

disponibilizado

um

agrônomo

da

própria

instituição

para

o

acompanhamento do processo de implantação da unidade e produção dos alimentos, a princípio esse técnico vai ao local uma vez por mês, diminuindo a frequência com o passar do tempo até que haja certa autonomia dos produtores. Na fase de implantação os critérios de escolha usados pelo SEBRAE são em relação à disponibilidade de água, energia elétrica, tipo de solo, se há um terreno disponível e pessoal envolvido com agricultura do local, para tanto são feitas reuniões com os responsáveis vinculados à agricultura no município, geralmente o secretário de agricultura ou 870

outras pessoas que possam fornecer os dados que o SEBRAE considera importantes. Após essa reunião, são feitas visitas individuais aos moradores do local escolhido para a implantação da unidade, essas visitas servem tanto para o SEBRAE conhecer os receptores do projeto quanto para os agricultores conheçam a proposta do PAIS. Depois dessa fase inicial começam as palestras que são ministradas aos receptores do projeto para um melhor entendimento do mesmo por parte dos agricultores que irão desenvolvê-lo. Outro fato observado na fala do entrevistado foi em relação à participação de pessoas ligadas às prefeituras das cidades na escolha da localidade onde irão ser implantadas as unidades, isso acarreta certa desconfiança por parte dos agricultores que chegam a pensar que o PAIS trata-se de mais uma proposta governamental de curto prazo e sem muitos resultados, como corriqueiramente ocorre nesses municípios. Porém foi dito também que as unidades onde há um melhor aproveitamento e maior desenvolvimento são aquelas que participam de programas como o PNAE-Programa Nacional de Alimentação Escolar e/ou feiras na cidade, e essas unidades estão situadas em sua maioria na região metropolitana de Natal, principalmente no município de Macaíba. Onde o PAIS está se tornando cada vez mais conhecido e é responsável pela maior parte do alimento fornecido para as escolas da localidade. Os produtores já apresentam boa articulação e organização com vistas a produção através do PAIS para participação no PENAE, conseguindo um aumentar significativamente a renda familiar.

871

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após o estudo, foi verificado que o sistema de produção agroecológico integrado e sustentável tem tido boa aceitação em todo o território nacional, tanto que, pretende-se estender seu alcance para mais regiões do país, foi possível perceber também que em alguns locais as unidades do PAIS não são bem desenvolvidas, e isso pode ser consequência de fatores climáticos, de organização, políticos, entre outros. No Rio Grande do Norte esse sistema tem envolvido várias famílias de agricultores, abrangendo principalmente a região metropolitana de Natal, onde pequenos produtores interagem com outros programas governamentais como o PNAE. Existe assim, uma relação de complementaridade entre estes programas, demonstrando com isso a importância da comunicação entre agricultores e poder público. Contudo é preciso um estudo mais apurado sobre tais fatores, pois quanto mais unidades existem maior é a quantidade de informação que necessitará ser analisada.

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874

DESAFIOS E NOVIDADES DA FEIRA AGROECOLÓGICA DE MOSSORÓ-RN Joaquim Pinheiro de Araújo260 Danielly Cristina Farias Bezerra261 Sabrina Aiêcha de Oliveira Silva262 Zildenice Matias Guedes Maia263

Resumo: O presente trabalho é fruto da formação de um grupo de pesquisa, constituído por professores e estudantes da UFERSA, que vem acompanhando e analisando a história Feira Agroecológica em Mossoró-RN. A feira foi criada em 2007 e conta com a participação de agricultores/agricultoras de comunidades e Assentamentos. Para entender a dinâmica da feira, realizamos entrevistas semiestruturadas com os agricultores/feirantes e também com os consumidores, bem como visitas aos locais de produção. Durante a pesquisa identificamos que apesar da feira encontrar-se consolidada há aspectos relevantes que tem provocado interrogações, como por exemplo, o hiato entre a produção e a procura por parte dos consumidores. Entendemos nesse sentido, que a feira tem muitas possibilidades de avanço. Palavras-chave: Feira agroecológica. Produção.

INTRODUÇÃO A exemplo de várias experiências no Brasil, a construção de feiras agroecológicas tem se constituído como um instrumento de reflexão e vitalização do processo em curso de fortalecimento da agricultura de base ecológica desenvolvida por agricultores/as experimentadores, e apoiado por entidades de assessoria que buscam contribuir para que essas ações ganhem maior espaço na sociedade.

260

Graduado em Engenharia Agronômica (UFERSA), Mestre em Ciências Sociais (UFRN) e Doutorado em Ciências Sociais (UFRN). Professor Adjunto (UFERSA). Integrante do Núcleo Avançado de Políticas Públicas (NAPP/UFRN). [email protected]. 261 Graduada em Engenharia Agronômica (UFERSA). [email protected]. 262 Graduada em Engenharia Agronômica (UFERSA). [email protected] 263 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente, Tecnologia e Sociedade (UFERSA). [email protected].

875

As feiras agroecológicas se constituem uma iniciativa de cidadania pela sua novidade na forma organizativa em que todo o complexo processo de produção e comercialização é colocado em questão,

gerando

um

movimento

de

produção

e

consumo

desconectados das redes global dos impérios alimentares (PLOEG, 2008). Assim, busca-se romper com a concepção da agricultura, baseada nos pacotes tecnológicos inspirados na Revolução Verde, para uma alternativa centrada nos potenciais endógenos, construindo um

imbricamento

entre

consumo

familiar

e

comercialização,

potencializando uma relação e reconhecimento de produtores e consumidores como parceiros. Para Canuto (1998), as diferentes formas de compra direta de produtos agrícolas no Brasil é um processo recente e promissor, que tem mostrado algumas vantagens para o produtor e o consumidor. Para o primeiro, a supressão dos intermediários, potencializando maior retorno econômico e a possibilidade de ouvir dos consumidores avaliações do que está produzindo; para o segundo, adquirir produtos mais frescos a preços mais baixos, favorecer pequenos e médios produtores, além de obtenção de maior conhecimento sobre a origem e forma de produção dos alimentos que vai consumir. Essas novidades precisam ser analisadas para além da escala quantitativa do que estão produzindo e comercializando. O seu formato tem elementos muito distintos do modelo convencional prevalecente, pois aqui os agricultores são sujeitos do processo. Por isso, vislumbra-se possibilidades de avanço, em comparação ao estágio atual, já que os grupos envolvidos com a produção e organização da feira estão em movimento, empolgados e abertos a novos conhecimentos a partir de suas participações em espaço de formação e intercâmbios, além de mais empoderados, para exigirem políticas públicas que fortaleçam suas opções.

876

A importância de resgatar a cultura camponesa na discussão da proposta da agroecologia é muito útil pelo entendimento de que ela pode servir como uma espécie de ponto de partida para dialogar com outros conhecimentos, inclusive aquele produzido nas universidades e centros de pesquisas. A partir da interação desses conhecimentos, é possível a construção de estratégias, que caminhe no sentido de uma maior

autonomia

em

suas

várias

dimensões

e

uma

maior

sustentabilidade. Na agroecologia, é necessário interpretar a realidade de forma sistêmica e, para isso, a agregação do conhecimento do agricultor torna-se tão importante quanto à base teórica do extensionista (SILVEIRA & BALEM, 2004). Conforme Almeida (1999), a proposição e aspiração de autonomia camponesa, em contraposição ao processo de heteronomização264, não pode ser vista como algo retrógrado, e sim, como uma lógica que se coaduna eficazmente do ponto de vista microeconômico e tecnológico, como dimensão da resistência capaz de frear o processo de marginalização pelo qual está ameaçada a produção camponesa, através da sociedade industrial e da agricultura moderna em particular. A autonomia camponesa é perseguida em, pelo menos, quatro dimensões: na estrutura de produção, quando busca uma maior independência dos insumos externos; no consumo, quando diversifica a produção como estratégia para a subsistência familiar; no domínio do tempo, quando organiza sua dinâmica de trabalho de acordo com as diferentes modalidades, e na relação com o mercado, com formas diferenciadas

de

comercialização,

através

de

mercados

de

proximidades e aproximação dos consumidores. Nesse aspecto, busca-se construir uma proposta de agricultura que respeite os produtores, os consumidores e a natureza, mediante um

264

Almeida (1999) toma emprestado esse conceito de Ivan Illich que significa, em última instância, a perda da capacidade da agricultura camponesa se auto-regular. Seu sentido etimológico é aquele que recebe do exterior as leis que regem a sua conduta.

877

pacto social renovado, conseqüência do desengajamento do Estado com as políticas agrícolas que não estavam inseridas nas cadeias agroalimentares controladas por grandes corporações do setor. Esse vácuo foi ocupado criticamente por “projetos produtivos alternativos”, incentivados por setores da sociedade civil, como ONGs, pastorais e representações dos trabalhadores rurais. A

evolução

do

processo

de

venda

direta

de

produtos

agroecológicos, a exemplo da feira que vem sendo realizada em Mossoró há 05 (cinco) anos, está intimamente vinculada à perspectiva de transição agroecológica que possibilite uma maior e permanente oferta de alimentos, a partir de uma grande quantidade de estabelecimentos de caráter familiar camponês. Nesse sentido, é relevante uma reflexão sobre os desafios na construção para a travessia da agricultura convencional, para uma outra apoiada nos pressupostos da agroecologia. Os parâmetros teóricos a serem utilizados para investigar a Feira agroecológica de Mossoró estão referenciados nas categorias de autonomia, identidade e resistência como pressupostos para o êxito do movimento de transição agroecológica como alternativa à lógica dominante da produção agropecuária que tende a marginalizar tudo aquilo que não está submerso aos impérios alimentares (PLOEG, 2008). A capacidade de sobrevivência da agroecologia, ainda que centrado na autonomia, está relacionada à possibilidade de se relacionar com os outros setores sociais, constituindo-se em movimento social, com o propósito de ressocializar os espaços atualmente dessocializado, pois “autonomia significa respirar um pouco mais aliviado,

mas

é

fundamental

articular

as

microautonomias

às

macroautonomias, a heteronomia às autonomias, o local ao global. Isso ajudará a desenclausurar as experiências pontuais, fazendo um religamento ao global” (ALMEIDA, 1999, p. 179). A proposição agroecológica, além dos desafios tecnológicos e metodológicos, colocado à sua frente, deve ser capaz de ir construindo a autonomia política dos agricultores, tanto em relação ao Estado 878

como dos Impérios Alimentares. Para isso, é fundamental avançar na transição para uma agricultura mais sustentável do ponto de vista ambiental e social, que possa no médio e longo prazo, dar-lhe força política para se consolidar como um movimento social capaz de construir na prática uma nova lógica para a agricultura e o rural. O processo de avanço da comunicação tira o campesinato da incomunicabilidade e da divisão intransponível entre cidade e campo, visto que esses dois espaços encontram-se cada vez mais entrelaçados. Esse novo contexto traz novas possibilidades para esse segmento (e para suas ações, a exemplo das Feiras Agroecológicas), já que, a partir das suas singularidades, pode tornar-se sujeito político em desafios contemporâneos globais, como o combate à pobreza, à defesa da ecologia e produções sustentáveis de alimentos saudáveis em uma perspectiva agroecológica. Pois, como afirma Hardt & Negri (2005), “A figura do camponês que emerge de seu estado passivo e isolado, como uma borboleta saindo da crisálida, descobre que faz parte da multidão, uma das numerosas formas singulares de trabalho e de vida que apesar de suas diferenças, compartilham condições comuns de existência” (HARDT & NEGRI, 2005, p. 169 -170). O objetivo da presente pesquisa consiste em analisar os impactos da Feira Agroecológica de Mossoró para as famílias agricultoras, consumidores e a própria cidade, assim como os impasses que impedem que essa experiência adquira uma maior dimensão e alcance sua consolidação no município de Mossoró. Baseia-se ainda na hipótese que a transição agroecológica dos grupos que constroem essa feira encontra-se em um estágio preliminar, ao mesmo tempo em que já apresenta um significado para os atores envolvidos, produtores e consumidores. Desta feita buscar-se-á investigar o seguinte problema: qual a dimensão desse aspecto contraditório? Isto é, quais os fatores que sustentam a existência da Feira por um período tão longo, assim como, quais são as fragilidades estruturais que limitam a expansão da Feira. 879

METODOLOGIA O presente trabalho é fruto da formação de um grupo de pesquisa, constituído por professores e estudantes da UFERSA, que vem acompanhando e analisando a história dessa iniciativa. Foram feitas visitas para entender toda a dinâmica da feira e entrevistas semiestruturadas com os agricultores/feirantes e também com os consumidores. Junto aos agricultores abordamos o processo de forma sistêmica e incorporando toda a cadeia, desde o processo produtivo e seus

desafios

da

transição

agroecológica,

passando

pelas

possibilidades de processamento dos produtos e diversificação do cardápio familiar, até a concretização da comercialização, momento mais efetivo da relação entre produtor/a e consumidor/a. Além

disso,

foram

feitas

leituras

sobre

as

temáticas

de

agroecologia e soberania alimentar, além de trabalhos científicos que investigaram outras feiras agroecológicas que pudesse subsidiar a investigação e definição das categorias analíticas. Outros recursos metodológicos são a realização de encontros, oficinas com o público envolvido com a feira, assim observações diretas através de constantes visitas à feira de Mossoró e outras existentes no Rio Grande do Norte que der possibilidade de comparação. Nesse sentido a proposta metodológica se baseia na ideia que os agricultores têm assumido sua autonomia em todas as fases, desde o processo produtivo, até o beneficiamento até as relações de comercialização. Portanto a realização da pesquisa têm ocorrido com o devido cuidado em não tolher as relações estabelecidas entre os indivíduos inseridos nesse processo, sejam os produtores/ agricultores (as) feirantes ou consumidores. Esta pesquisa abrangerá os anos de 2012 e 2013, quando no final deste ano será realizado um seminário de análise e divulgação dos seus resultados.

880

RESULTADOS E DISCUSSÃO A feira agroecológica de Mossoró foi criada em 2007. A feira já era acalentada por um conjunto de agricultores e agricultoras e entidades de assessoria, mas só se concretizou em junho do referido ano. Vale frisar que esse processo está no bojo de um amplo movimento estadual de fortalecimento da agroecologia em municípios potiguares. Essa dinâmica vem sendo fomentada por entidades que compõem a Rede Pardal (Rede de Entidades de Assessoria), além de instituições como a Rede Xique-Xique (Rede de Comercialização Solidária), SEBRAE e alguns apoios financeiros advindos do governo federal. O primeiro passo foi a formação de um grupo de vinte famílias que participaram de uma série de cursos financiados pelo SEBRAE no intuito de contribuir para que os agricultores compreendessem o desafio, e, a partir disso, construíssem estratégias da produção até a logística para a concretização da feira. Para tanto, foi constituída uma associação para dar suporte a essa iniciativa. O SEBRAE também disponibilizou parte da infraestrutura como as barracas e o sistema de produção PAIS (Produção Agroecológica Integrada e Sustentável), além de um agrônomo com experiência em agricultura orgânica. A feira se realiza aos sábados e inicia na madrugada com a chegada dos feirantes e dos consumidores. Das vinte famílias que começaram, saíram oito que alegaram dificuldades. As doze restantes, afirmaram estarem conscientes dos desafios, mas animadas com a feira. Elas têm um certificado confirmando que praticam agricultura ecológica. Foi percebido que existe um hiato entre o que está sendo produzido e a procura pelos consumidores. Isto é, logo nos primeiros momentos da feira, a maioria dos produtos, principalmente os in natura (frutas e verduras) acaba, sobrando os beneficiados como o mel e a 881

castanha.

Isso

demonstra,

por

um

lado,

uma

insuficiência

da

capacidade produtiva e, por outro lado, mostra o grande potencial de expansão da feira, tanto para aumentar a produção das famílias já inseridas como uma possibilidade de integração de novas famílias. Percebemos ainda uma série de limites no processo produtivo, o que reflete na quantidade dos produtos oferecidos na feira. As dificuldades vão desde a aquisição das sementes, pois ainda, na sua maioria, continuam tendo que comprá-las no comércio, passando pelo manejo das práticas ecológicas e insuficiente integração entre plantio e criação em que um potencialize o outro, dando alternativas de produtos de origem animal e vegetal. Para seus integrantes, mesmo reconhecendo as dificuldades existentes na produção, a feira tem tido avanços significativos nos seus quatro anos de funcionamento e pode-se dizer que já é uma realidade, tanto para os agricultores envolvidos como para os consumidores e a cidade de Mossoró. Nesse período, conseguiram criar vínculo e cumplicidade produção/consumo, que pode ser comprovado na relação e freqüência continuada no local aos sábados. Uma das perspectivas do grupo é também abranger outros espaços como os Programas Compra Direta e Merenda Escolar. Acreditam que isso daria mais condições para investimento no processo produtivo e beneficiamento de uma parte da produção que agregue valor, visto como estratégico para melhorar a renda dos participantes, além de oferecer uma maior variedade de produtos aos consumidores. Nesse sentido, entendemos que a capacidade de sobrevivência da agroecologia, ainda que centrado na autonomia, está relacionada à possibilidade de se relacionar com os outros setores sociais, constituindo-se em movimento social, com o propósito de ressocializar os espaços atualmente dessocializado, pois “autonomia significa respirar um

pouco

mais

aliviado,

mas

é

fundamental

articular

as

microautonomias às macroautonomias, a heteronomia às autonomias,

882

o local ao global. Isso ajudará a desenclausurar as experiências pontuais, fazendo um religamento ao global” (ALMEIDA, 1999, p. 179). Pode-se considerar que a Feira Agroecológica de Mossoró, já se mostra consolidada, funcionando regularmente, todos os sábados ao longo de cinco anos, demonstrando que sobre alguns aspectos, tem trazido satisfação para os dois sujeitos que viabilizam essa experiência: produtores/feirantes e consumidores. Por outro lado, parece que a mesma não consegue superar seu estágio atual e alcançar outros produtores e consumidores. Corrobora Carvalho (2002), ao afirmar que o segmento da agricultura familiar camponesa tem enfrentado dificuldades para a sua reprodução social. Isso se dá pelo processo de modernização da agricultura e da dinâmica da acumulação do capital na sua fase neoliberal. A sua tese é que, para essas famílias, é melhor continuar buscando mudanças nem sempre fáceis, mas factíveis na unidade familiar, a partir do desenvolvimento de uma consciência crítica, do que vivenciar as incertezas das grandes metrópoles. Para tanto, é necessário que elas readquiram novas esperanças e uma nova utopia, que reafirme sua identidade social camponesa, o que não “significa voltar à comunidade pré-capitalista, mas seguir outros referenciais de resistência ativa à exclusão social e a superação do modelo econômico vigente” (CARVALHO, 2002, p. 04).

CONSIDERAÇÕES FINAIS A presente pesquisa encontra-se em execução. Desde os primeiros contatos com os agricultores/agricultoras no local da Feira, com os consumidores, e até mesmo as visitas realizadas nos locais de produção, percebemos que a Feira está consolidada, há um fluxo 883

contínuo de consumidores, bem como perseverança dos agricultores em manter seu ritmo de produção, embora muitas dificuldades tenham surgido para os mesmos, como falta de água e assistência técnica por exemplo. Porém, muitas indagações têm surgido. Percebemos que tem havido aumento da procura sem haver aumento da oferta. Temos questionado se tal fato não é decorrente da falta de agricultores para se agregar a feira. Ao conversarmos com os agricultores sobre essa percepção, percebemos que alguns aceitam a ideia, porém outros não aceitam essa possibilidade. Destarte, entendemos que falta aprofundar estratégia para ampliar a feira. As novidades dessa feira precisam ser observadas para além da escala quantitativa do que estão produzindo e comercializando. O seu formato tem elementos muito distintos do modelo convencional que prevalece, pois aqui os agricultores são sujeitos do processo. Por isso, têm muitas possibilidades de avanço, em comparação ao estágio atual. Percebeu-se que essas famílias estão empolgadas e abertas aos desafios a partir de suas participações em espaço de formação e intercâmbios. Nesse sentido, Castells (1999), considera que a constituição de sujeitos da transformação social toma um rumo diferente do conhecido durante a modernidade, baseado na sociedade civil e no movimento trabalhista. Na sociedade atual com funcionamento em rede, a identidade de projeto origina-se da resistência comunal. O que articula a Rede não é uma conexão formal como a internet e instituições, mas o sentimento de pertencimento a uma mesma comunidade e movimento social, cimentado por uma identidade de resistência ativa e de superação, que significa a construção da identidade de projeto, do local para o universal contra o capitalismo contemporâneo. Sem desconsiderar os limites, é possível perceber que os brotos da transição para esse grupo já podem ser vistos. Se eles vão vingar dependerão de muitos fatores, tais como, desses sujeitos ganharem mais adeptos para se tornarem também sujeitos. Dessa forma, 884

ganhariam mais força para sensibilizar segmentos da sociedade e capacidade de pressão, para que as variadas políticas públicas para agricultura camponesa saltassem do papel e se efetivassem na vida real.

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885

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886

CAMPONESES E AGRICULTORES FAMILIARES: CATEGORIAS EM DISCUSSÃO

Vilson Cesar Schenato265 Roseilda Maria da Silva266

RESUMO: Neste artigo serão discutidos alguns dos limites relacionados ao paradigma marxista para interpretação do campesinato. As discussões terão como base reflexões de autores como Shanin (1980), que demonstra as complexidades envolvidas no comportamento camponês e Já Abramovay (1998) afirma que o camponês deixou de existir e em seu lugar emergiu uma nova categoria, a do agricultor familiar tecnificado e descolado de suas raízes camponesas. Relativizando tal posição, extrema, diga-se de passagem, Wanderley (2003) demonstra que há tanto continuidades quanto descontinuidades processadas dialeticamente na constituição do campesinato brasileiro, conjugando elementos tradicionais com modernos. Considera-se que as duas categorias de camponês e agricultor familiar apresentam potencialidades e limitações enquanto categorias analíticas e políticas, dependendo da realidade a que se referem, sendo que uma noção não invalida a outra, podendo inclusive ser intercambiáveis.

Palavras-chave: Camponês. Agricultura Familiar. Paradigmas

INTRODUÇÃO

Fazendo um exame detalhado sobre o conceito de camponês Teodor Shanin (1980), analisa a validação do mesmo, questionando sobre sua legitimidade para compreender a realidade social. O autor

265

Graduado em Ciências Sociais (UNIOESTE), Mestre em Ciências Sociais (UNIOESTE) e Doutor em Ciências Sociais (UFCG). Enquanto pesquisador se concentra nos seguintes temas: Teoria sociológica, grupos sociais rurais, Oeste paranaense, construções identitárias e relações sócio-culturais. [email protected]. 266 Graduada em História (UFCG), Serviço Social (UEPB), Mestra em Ciências Sociais (UFCG). Atualmente Assistente Social -CAPS I da Esperança. Possui experiência docente na área de História, Sociologia, Políticas Públicas de Saúde e Assistência Social e Serviço Social. [email protected].

887

recupera o debate que perpassa os teóricos marxistas sobre tal conceito, e não-marxistas que pedem para a anulação do mesmo. Para

isso

ele

faz

um

exercício

avaliativo

de

conceituação/desconceituação em que demonstra algumas críticas pertinentes ao modelo de análise marxista. Sendo que a realidade é rica e infinita, a ciência não pode ficar presa a generalizações que pretendam dar conta da totalidade do real. Os conceitos são instrumentos de aplicabilidade concreta e estão diretamente vinculados às perguntas feitas através da construção de uma problemática ligada a um esquema teórico mais geral. Entendemos aqui que as críticas de Shanin, ao conceito de camponês, em alguma medida podem ser direcionadas da mesma maneira ao conceito de agricultor familiar. Na realização de um estudo cujo teor seja esta discussão, o pesquisador características

deve da

levar

em

unidade

conta

em

camponesa,

sua tanto

investigação interna

as

quanto

externamente, ou seja, as especificidades nas reações, resistências, adaptações que se processam na interação com o contexto social mais amplo. Isso foi uma das negligências marxistas, não perceber a participação dos camponeses na transformação das sociedades na qual estão inseridos. Deste modo, iniciaremos as discussões, aqui propostas, pela crítica à teoria social marxista, que interpretou os camponeses pelas noções de modo de produção e diferenciação social. Veremos como diferentes modelos de análise explicam a “persistência” do camponês em meio ao capitalismo, trazendo o debate entre a legitimidade e validade desta categoria e a de agricultor familiar, tanto em termos analíticos quanto em políticos, na atualidade.

888

2. MODO DE PRODUÇÃO CAMPONÊS?

Teodor Shanin (1980), diz que há um debate estéril em torno dos modos

de

produção,

somente

para

quem

almejaria

prestígio

acadêmico numa época na qual o marxismo era o paradigma predominante. Questionando quais suas potencialidades e limitações para interpretações de nosso tempo. O referido autor salienta que o conceito de modo de produção em Marx é parcial, mutável e não tão sistematizado. É preciso relacionar as unidades de produção camponesa com seu contexto social, evitando-se deduções de uma teoria, ou conceito, geral de camponês que não nota as especificidades concretas. Já em outra abordagem crítica, Abramovay (1998), recuperando Teipicht, coloca o paradoxo em que o conceito de modo de produção camponês, mesmo inspirando-se no materialismo histórico, é uma categoria sem história. Ele permanece igual a si mesmo, sem mudar na sua trajetória secular. Desta noção marxista, desdobra-se outra chamada pequena produção, em que aparece o conceito de “pequeno produtor”267 como representante de um modo de produção menor dentro de um maior, ou seja, um modo de produção de mercadorias secundário, uma subcategoria de algo mais amplo. A categoria de “pequeno produtor”, surgida posteriormente ao conceito de camponês, responsável pela “anulação da política”268 durante o desenvolvimentismo da Ditadura Militar causando custos políticos tremendos para as populações rurais brasileiras. 267

Segundo Medeiros (2002, p. 21) no Brasil o termo pequeno produtor será dominante até os anos 1980, posteriormente passa a ser substituído no debate político e sindical pelo agricultor familiar. Categoria provinda do meio intelectual e difundida por meio de assessorias. 268 Expressão utilizada por Francisco de Oliveira, (1998) onde se percebe a eliminação do dissenso já num contexto de neoliberalismo.

889

A pequena produção familiar, por um lado não foi chamada a participar do novo modelo produtivista desenvolvido a partir da década de 1960, o qual se convencionou chamar de “modernização conservadora”. Por outro, somente se distinguia da grande empresa rural pela produção em menor escala, dando a impressão de igualdade entre essas duas categorias que estiveram em conflito. Neste processo, com a atuação das Ligas Camponesas: Os camponeses passam a fazer parte da cena histórica oficial, não mais pela identidade quase mítica (pela grande força unificadora e de gestação que pressupunha) expressa pelo conceito de camponês, mas agora como produtores de baixa renda ou pequena produção. Dessa forma, a diferença era apenas de tamanho. Todos eram produtores (MORAES, 1998 p.125).

Neste período histórico, houve um recuo no debate político sobre a questão agrária no Brasil. Muito deveu-se à repressão dos militares, colaborando para um esfriamento da luta dos movimentos sociais do campo, que só retornaram com força a partir da década de 1980, mas sob identidades forjadas em torno de demandas específicas269.

2.1 - Diferenciação social que não ocorreu

Além de não se cumprir a profecia contida na tese leninista da diferenciação social, na academia ela foi injusta com o campesinato através de leituras superficiais, dogmáticas e ortodoxas das obras marxianas (bem como as próprias obras de Lênin e Kautsky) que 269

Categorias sociais como pequenos produtores, assentados, sem terras, atingidos por barragens que constroem identidades (mais fragmentadas) em torno de reivindicações específicas, como novos atores coletivos com os novos movimentos sociais gestionados a partir do declínio da ditadura militar.

890

deveriam ser entendias em seu contexto histórico-social e político específicos. Discernindo-se o que era análise científica e o que era a análise político-partidária, ealizadas pelos mesmos no calor dos acontecimentos. Neste ínterim, não havia um conceito consistente de camponês no marxismo clássico, porque esta categoria social não se encaixava na estrutura lógico-teórica da polarização e luta das duas únicas classes (burguesia e proletariado) que faria emergir o socialismo: Na concepção de Marx, é o desenvolvimento da contradição entre o caráter privado e social do trabalho e portanto, a preparação para uma organização social racionalmente disposta e controlada. É na polarização dada pelo duplo caráter da própria socialidade no mundo das mercadorias que se encontra a redução a apenas duas das classes em luta para a formação de um mundo novo (ABRAMOVAY, 1998 p. 34).

Conforme este paradigma270, o camponês iria desaparecer ao se integrar ao mercado, tornando-se capitalista ou proletário. Mas como lembra Abramovay (1998) a agricultura familiar integrada ao mercado não se diferenciou nem desapareceu, porém não se pode afirmar que é a mesma. O “saco de batatas” conseguiu via integração ao capital parar em pé, passando por uma transmutação para o agricultor familiar. Já Shanin, (1980) afirma que o camponês nem sumiu, nem permaneceu como antes e nem se proletarizou, mas que a unidade de produção

familiar

camponesa

passou

por

uma

“metamorfose

estrutural” e não desaparecimento.271

270

Para Thomas S. Khun paradigma é um conjunto de crenças e idéias compartilhadas pela comunidade dos cientistas que de tempos em tempos sofrem rupturas/revoluções científicas – mudanças de paradigmade técnicas, métodos e objetos tidos como válidos em uma determinada época pelos cientistas. 271 E que tem ocorrido justamente o contrário, num aumento dos camponeses como fenômeno por ele caracterizado de “recamponesação”. Frente a transformação capitalista da agricultura camponesa o que isso quer dizer? Na atualidade poderíamos dizer que esse fenômeno se dá tanto pela luta pela terra efetivada principalmente pelo MST (MANÇANO FERNANDES, 2003) como pela diversificação das atividades e aumento da autonomia e diminuição de riscos na relação com o mercado.

891

Nas análises feitas por Kautsky (1986 [1899]) e Lenin (1981[1899]) é pela tragédia da sua aniquilação que se forma uma teoria geral centrada

no

desenvolvimento

do

capitalismo

agrário,

nesta

abordagem marxista não se tem a idéia de economia camponesa tal como apresenta Chayanov (1985). Pois qualquer categoria que não esteja em nenhuma das classes básicas da sociedade capitalista, só pode existir com fragilidade, caminhando para a extinção. Abramovay, (1998) baseando-se nas ideias chayanovianas, realiza uma crítica sobre a visão de que o camponês é visto como um resquício, que ao se integrar ao mercado se extinguirá: Sua definição é necessariamente negativa: ele é alguém que não vende força de trabalho, mas que não vive basicamente da exploração do trabalho alheio. Neste plano, então, no mundo capitalista, o camponês pode ser no máximo um resquício, cuja integração à economia de mercado significará fatalmente a extinção (ABRAMOVAY, 1998 p. 52).

Apesar de momentos antes de falecer, Vladimir Lênin ter aceito os traços camponeses no socialismo pós revolução, o que ficou e foi seguido como verdade absoluta foram suas teses anteriores da inevitável extinção do campesinato. Em que medida sua tese é válida? Não devemos tomá-la como verdade absoluta e incontestável, pode haver diferenciação social em alguma medida, mas o fato é que os camponeses continuam, persistem, pois mesmo nas sociedades modernas (seja capitalista ou socialista) a presença dos mesmos se faz necessária, e isto está cada vez mais evidente com o debate sobre soberania alimentar / crise dos alimentos na atualidade. Em

um

posicionamento

teórico

diferente

encontramos

as

interpretações de Chayanov (1985)272 em que a economia camponesa existe, e não é ocasional e frágil, mas existe para responder uma

272

Este autor foi perseguido pelo Stalinismo por suas teses em favor da economia camponesa. Só nas últimas décadas ele volta a ser lembrado.

892

necessidade social e pode ser visto como um conhecimento positivo e racional, ou seja, a partir da lógica interna da unidade camponesa e das escolhas feitas pela família consegue compreender os processos mais globais que os provocam. Se para Kautsky a indústria destrói a agricultura camponesa, para Chayanov (1985) se dá o contrário: a mesma integra estabelecimentos – se para Lênin se dá diferenciação para Chayanov se dá identidade enquanto categoria sob o mesmo comando da agroindústria deste modo ou em organização da produção cooperativas o “saco de batatas para em pé”. De acordo com Abramovay (1998) “não se pode compreender o campesinato imputando - lhe categorias que não correspondem a suas formas de vida” (ABRAMOVAY, 1998 p. 58). As categorias da economia mais ampla não cabem para a análise da economia camponesa, pois, ao utilizá-las acabamos por concluir que a produção camponesa é inviável. Questionando principalmente a tese de que o campesinato seria transitório e chegaria ao fim, defende que “mais que um setor social, trata-se de um sistema econômico, sobre cuja existência é possível encontrar as leis da reprodução e do desenvolvimento” (ABRAMOVAY, 1998 p. 59). O camponês é um criador de sua própria existência, sendo sua renda um todo indivisível direcionada para suprir as necessidades do grupo familiar. O comportamento e suas decisões se dão internamente, estabelecendo relações com o mercado depois de realizado um balanço entre trabalho e consumo.

2.3 - Nem proletário, nem capitalista: a racionalidade camponesa

893

Dúvidas conceituais de Shanin (1980)273 apontam para as seguintes reflexões: Quando é camponês e quando não é? Por um lado marginalização e pobreza como padrão de mudança e por outro uma unidade familiar rural, com “investimento massivo de capital e lucros” pode ser considerada camponesa? Somente mantendo o trabalho familiar é condição para ser camponês? Reflexões como estas são muito presentes no debate intelectual que tenta precisar a definição

do

camponês/agricultor/trabalhador/proprietário

familiar

rural. Numa visão marxista equivocada o camponês parecia um onintorrinco social, ou seja, um proletário que é seu próprio patrão. O que se constatou é que em sua dinâmica de funcionamento, o planejamento da produção e o cálculo do desempenho diferem substancialmente dos de uma empresa capitalista. A lógica não é capitalista é familiar, já que “pelos padrões de cálculos aceitos, muitos estabelecimentos rurais camponeses, que ‘trabalham com prejuízo’ e deveriam ‘ir à bancarrota’, continuam operando e inclusive investindo” (SHANIN, 1980 p. 47). Diferente do trabalhador assalariado, o camponês cria sua própria existência. Não é o estudo da inserção no mercado e na divisão social de trabalho que vão dizer como é o comportamento camponês, mas pelo estudo deste comportamento é que pode se explicar a maneira como este se insere socialmente, servindo-se dos fatores do mercado, tecnologia, disponíveis para atender a demanda da família e se sobrar investir, mas tudo isto não explica a conduta do agricultor camponês. Balanço entre trabalho e consumo é a lei básica da existência camponesa. Diferente de uma empresa, o uso do trabalho camponês têm o sentido de atender as necessidades da família. A quantidade de 273

Reflexões como a de Shanin (1980) sobre o conceito de camponês re-aparecem em Peçanha Neves (2001) questionando a categoria agricultura familiar enquanto categoria teórica de análise.

894

trabalho será determinada pelo número de bocas (as necessidades de consumo)

que

se

tem

para

alimentar,

e

não

o

número de

trabalhadores. Se aumentar a família, aumenta-se o trabalho. Sendo que, o comportamento camponês é determinado pelas necessidades da família em conjunto, e não dos indivíduos. Para Chayanov (1985) o camponês se auto-explora por que a intensidade de trabalho é determinada pela razão entre a penosidade do trabalho e a satisfação das necessidades. Esta determinação do comportamento camponês através de uma lógica interna, não quer dizer que ele se fecha em si mesmo; interagindo de forma mais ou menos

intensa

com

o

mercado,

bancos,

tecnologias,

etc.

(ABRAMOVAY, 1998 p. 62). Onde Lênin enxergava diferenciação do campesinato, Chayanov (1985) enxergava identidade social. Sobre a base

desta

identidade

desenvolvimento

se

capitalista

tinham de

as

novas

integração

tendências

vertical,

com

do as

agroindústrias. E não horizontal. O camponês não existe para competir com a grande produção, mas é a “existência do campesinato que explicará a maneira como está moldada a estrutura social no campo” (ABRAMOVAY, 1998 p. 65). A economia é a esfera preponderante no comportamento camponês para Chayanov, buscando na existência cotidiana do camponês as informações fundamentais para explicar a vida de uma categoria que não esta prestes a sumir da história. Atentando para a especificidade do camponês nota-se a interdependência de elementos culturais, sociais, econômicos e políticos.

Não

se

reduzindo

a

nenhuma

dessas

esferas,

o

comportamento do camponês parece ser determinado pela “dinâmica do estabelecimento rural familiar, enquanto unidade básica de produção e meio de vida social” (SHANIN, 1980 p. 51). Conforme Shanin, (1980) o conceito de camponês deve percebêlos enquanto sujeitos históricos que detêm uma autonomia relativa 895

frente a pressões externas: criando, resistindo e adaptando-se à sociedade mais ampla. Mais que um tipo econômico, o camponês representa, antes de tudo, um modo de vida. Trabalho, a produção, as trocas comerciais, enfim a economia não existe nas sociedades camponesas desvinculadas da organização social e cultural.

3. DE CAMPONESES PARA AGRICULTORES FAMILIARES MODERNOS? RUPTURAS E CONTINUIDADES

3.1 - Rupturas

Na interpretação de que não existem mais camponeses, mas sim agricultores familiares altamente integrados ao mercado. Temos Abramovay (1998), que logo na introdução de seu livro coloca que a produção familiar nos países capitalistas avançados por ser familiar muitas vezes se pensa em empreendimentos precários e reduzidos. Segundo o autor, esta imagem é herdada de certas interpretações marxistas com base em noções como agricultura camponesa, pequenos produtores, ou produtores de baixa renda que conforme se processava o desenvolvimento do capitalismo no campo estes seriam solapados pela lógica da diferenciação social. Procurando demonstrar que diferente que tais conceituações preconizavam, a unidade de produção familiar é altamente integrada no mercado funcionando como empresas familiares utilizando-se de inovações tecnológicas e realizando

volumes

consideráveis

de

investimentos

nos

países

capitalistas avançados. Contestando o paradigma marxista agrário, Abramovay coloca que não se pode explicar a agricultura familiar como herdeiros de uma história camponesa e nem interpretar essa nova situação como de uma 896

pequena produção, pois se trata de “uma agricultura familiar, altamente integrada ao mercado, capaz de incorporar os principais avanços técnicos e de responder às políticas governamentais não pode ser nem de longe caracterizada como camponesa” (ABRAMOVAY, 1998 p. 22). O autor demonstra claramente uma ruptura entre o campesinato e a moderna agricultura familiar, como dois paradigmas contrapostos um ao outro, sendo o camponês um passado superado do agricultor familiar moderno. Tão logo, o camponês vai sendo incorporado no sistema de relações puramente mercantis, ou capitalistas, ele iria perdendo o caráter camponês da organização social (ABRAMOVAY, 1998). Mas será que esta incorporação se dá por completo? Há um rompimento com o passado camponês de forma definitiva? São reflexões que tentaremos desenvolver adiante.

3.2 Adaptação Hugues internacional

Lamarche sobre

(1993),

que

agricultura

coordenou

familiar,

tenta

uma

pesquisa

mapear

as

lógicas/racionalidades dos estabelecimentos rurais e classificando-os de acordo com principalmente o grau de dependência com relação ao exterior a unidade de produção, como pano de fundo, coloca representações

do

universo

camponês

em

contraposição

a

representações mais utilitaristas de empreendimentos que visão lucros. Como lógica intermediária, estaria a lógica familiar.

Deste modo os

graus de integração ao mercado definiriam a organização da agricultura familiar. Lamarche (1993, p. 62). Mas não só o mercado, as representações sobre a terra, o trabalho, valores tradicionais e limites

897

ambientais moldam as condições da reprodução familiar do agricultor familiar. 274 Concordando em partes com esta análise, Wanderley (2003, p. 47 e 48) que também participou da mesma pesquisa, diz que os agricultores familiares possuem uma tradição (família, modo de vida, formas de produzir), mas devem se adequar à sociedade mais global e à economia de mercado, já que nenhum escapa dessa inserção. O autor fala em adaptações, e não em resistências ao processo de integração com a economia de mercado capitalista. Sua análise parece colocar como “superior” o modelo empresa e o da agricultura familiar moderna deixando o modelo camponês e de subsistência como algo (ou que deve ser) ultrapassado. Apesar de levar em conta contextos específicos, acaba por absolutizar275 as trajetórias em um único futuro eliminando alternativas. Deste modo, o fim último de todos os estabelecimentos seria passar por um processo de desencantamento e racionalização se integrando cada vez mais nas leis da economia de mercado capitalista. A complexidade do camponês está também por ser detentor de uma dupla capacidade de resistência e adaptação, mesmo o agricultor moderno não se reduz a empresa capitalista clássica, pois a lógica familiar não foi exterminada e orienta suas escolhas num contexto de “integração” (WANDERLEY, 2003 p. 48). É a lógica familiar herdada do camponês que persiste nesse agricultor moderno e o impede de se tornar um empresário capitalista.

274

Lamarche (1993) constrói quatro modelos-ideais de acordo com a capacidade de adaptação da unidade camponesa: 1- Modelo Empresa: possui uma lógica pouco familiar; assalariamento externo e dependência maior de tecnologia, do mercado e de financiamentos. Visa lucro. 2- Modelo empresa familiar: há uma forte lógica familiar assim como o apego ao patrimônio familiar, mas também forte dependência do exterior. 3- Modelo Agricultura Camponesa e de subsistência: as lógicas familiares são fortes, sendo fraca a dependência do exterior. Objetiva satisfação das necessidades familiares, caracterizada por técnicas agrícolas tradicionais. 4- Modelo agricultura familiar moderna: concepção original, com pouca lógica familiar e maior autonomia. 275 Shanin (1980) fala com relação ao conceito de camponês e a generalização que sofreu, cabe aqui refletirmos se a mesma crítica em alguma medida não cabe ao conceito de Agricultura Familiar?

898

Autores que defendem uma oposição entre as duas categorias sociais, colocam que a lógica camponesa tradicional não está pautada

na

racionalidade

de

maior

cálculo

e

planejamento baseado numa linguagem contábil.

nem

de

um

Sendo que a

primeira se enquadraria no passado e suas tradições enquanto que a agricultura moderna ao futuro com a noção de “progresso”. À luz interpretativa

da

antropologia

evolucionismo-positivismo,

contemporânea

classificando

como

nota-se

inferior

à

um

tradição

camponesa - como se a razão instrumental burguesa fosse superior e melhor a outras formas de viver, de produzir, de ser, de características de um estilo/modo de vida que ainda permanece. Cabendo aqui a seguinte reflexão: Até que ponto, mesmo no contexto atual as escolhas dos agricultores se pautam em cálculos racionais e com planejamento prévio? “Qual o lugar da subjetividade, da magia, da fantasia, da loucura, da “irracionalidade” desses atores sociais?” (SILVA, 1999 p.166).

3.3 - Continuidades e descontinuidades

Entre camponês “tradicional” e agricultor familiar “moderno”, há que se pensar as duas dimensões como não antagônicas, mas uma imbricada na outra. Novas tecnologias na agricultura modificaram profundamente essa “civilização camponesa”, o saber tradicional foi desafiado e agora o exercício da atividade agrícola exige cada vez mais conhecimento técnico, esta é a visão defendida por Maria Nazareth Wanderley. O camponês que se baseava num modo de vida transformou-se multidimensional

com

a

modernização

(WANDERLEY,

2003).

em

Sendo

um

que

em

profissional situações

concretas vivencia-se tensionamentos entre o modelo baseado em 899

uma lógica familiar (herança do camponês tradicional) e o da lógica empresarial, essa seria uma das características principais do agricultor familiar

moderno

ou

do

camponês

tentando

ser

moderno?

Caracterizando-se por comportamentos heterogêneos que não se enquadram em nenhum modelo abstrato pré-definido, mas em mescla desses modelos276 conforme o contexto socioeconômico e histórico (re) elaborando estratégias de reprodução social que podem aumentar ou diminuir a autonomia relativa da unidade de produção com o contexto exterior. Por esta perspectiva percebe-se que não existe uma oposição entre as duas categorias, mas continuidades e descontinuidades se focarmos nosso olhar na dinâmica interna da unidade familiar levando em consideração os agentes externos. É justamente essa situação de um agricultor familiar, que é um camponês “muito acordado” ao mesmo tempo, que os constituem enquanto protagonistas sociais: detentores e fazedores da história participando da defesa de um projeto societal. (WANDERLEY, 2003 p.47). Ou assim deveria ser? Com referência à um contexto recente, Wanderley (2003) percebe uma valorização do espaço rural e dos seus moradores, como lugar de (qualidade) de vida numa oposição clara à um modelo excludente baseado no latifúndio.

Antes vistos apenas como os pobres do campo, os produtores de baixa renda ou os pequenos produtores, os agricultores familiares são hoje percebidos como portadores de uma outra concepção de agricultura, diferente e alternativa à agricultura latifundiária e patronal dominante no País (WANDERLEY, 2000 p.13).

276

Dependendo do caso concreto, podemos refletir até onde o agricultor joga com diferentes estratégias que vão desde o seu saber camponês mais tradicional e uma lógica racional/calculada de empreendedor.

900

Se o campesinato no Brasil ao longo da história ocupou um lugar não reconhecido enquanto participante do processo sócio-político do país. Apesar de ainda não ter saído completamente desta condição de subordinação perante a sociedade mais ampla, percebe-se que esta havendo uma valorização e positivação da agricultura familiar, que na visão da autora ocupa um novo lugar social. Termos “depreciativos” para denominar essa categoria social não são mais utilizados pelas políticas publicas que se voltam agora para estes atores sociais de uma agricultura familiar reivindicativa de um modelo de desenvolvimento sustentável e agroecológico tomando posição na arena pública e estabelecendo negociações/diálogos com estado. Só que como alerta Neves (2001), esse processo não é tão simples,

pois

envolve

relações

complexas

entre

universos

dos

camponeses e um quadro institucional inseguro e precário que não considera as diversidades in loco, e não consegue garantir a entrada destes na modernidade. Não adianta mudar de nome, chamar de forma

mais

agradável

nas

políticas

públicas

o

campesinato,

escamoteando os velhos problemas tais como: a pobreza rural, a alta concentração de terras nas mãos de poucos, a ausência de cidadania no campo que ainda persistem.

3.3 - Pluriatividade: de volta ao elo nunca perdido?

Na balanço entre trabalho e consumo, tradicionalmente o camponês trabalha para garantir a subsistência de sua família. Esta centralidade familiar permanece, só que nas atuais condições ampliase demonstrando-se maiores capacidades de investimentos, quanto maior for a integração ao mercado.

901

Para Chayanov (1985) a renda familiar é um todo indivisível, e depende de um organismo econômico único. Diferente de uma empresa (em termos clássicos) o trabalho despendido será para atender as necessidades da família (ABRAMOVAY, 1992). Apesar da renda familiar ter destinos diferenciados, internamente permanece os resultados da produção global, pois ainda são percebidos pela unidade familiar como um rendimento indivisível dentro de um projeto conjunto da família. (apesar dos conflitos) Wanderley (2003). Com relação aos agricultores

familiares

pluriativos,

mantém-se

esse

princípio

Chayanoviano da renda indivisível mas nota-se também uma certa individualização dos filhos e da mulher numa “autonomia para fora”, em alguns casos. Schneider (2006, p. 158 e 161) reafirma o exposto acima sobre a importância do projeto familiar para os agricultores pluriativos no RS, mas percebe ali também conflitos com escolhas individuais

principalmente

dos

mais

jovens

que

buscam

maior

independência financeira. Trocas intensas com uma cultura competitiva e individualizante estaria modificando a socialização familiar e ameaçando a reprodução social camponesa? Sérgio Schneider em palestra proferida em 2008 na Universidade Federal de Campina Grande - UFCG, falando sobre a importância das diversificações agrícolas e não-agrícolas (multi-funcionalidade) para se criar novas “sinergias” que ultrapasse o modelo baseado na agricultura convencional, responde-nos a pergunta acima falando da possibilidade de

um

retorno

à

uma

agricultura

de

tipo

camponesa

(recamponeização) com menos custos de produção (autonomia), menos subordinação e ao mesmo tempo mais ligado à comunidade e mercados locais e globais. Complementando a reflexão acima, Carneiro ressalta que “o pluriativo resgataria algo que estaria mais próximo ao estilo de vida camponês na medida em que implementaria um sistema e produção e de relações de trabalho mais diversificado”. (Carneiro, 2006, p.180) 902

Nessa situação moderna e atual o mesmo se constitui em ator social que constrói redes sócio-econômicas que podem desdobrar em novas formas de ação política: Rompendo com o “o individualismo camponês”, o agricultor pluriativo poderia ser reconhecido com um “camponês moderno” na medida em que resgata uma representação da agricultura também como modo de vida e não somente como profissão (CARNEIRO, 2006 p. 180).

No

campo

multifuncionalidade,

das a

possibilidades,

defesa

do

meio

a

diversificação,

ambiente,

de

um

desenvolvimento sustentável e com a qualidade de vida parecem abrir caminhos para agricultor moderno que vão ao reencontro com o seu passado camponês re-elaborado em circunstâncias inteiramente novas, onde não se dispensa novas tecnologias e nem a profunda relação com o mercado mas não aceitando passivamente as condições que lhes são dadas surgem propostas de uma nova ecologia política questionadora do modelo produtivista baseado na monocultura da grande propriedade rural.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considera-se, portanto à partir das discussões aqui estabelecidas, que é possível pensar tanto na validade atual do conceito de camponês, e a agricultura familiar enquanto um projeto a ser atingido. Segundo Jollivet “fechar o camponês – ou o agricultor – na abstração de um tipo ideal é recusar a ele sua historicidade própria, uma vez que se trata sempre de um camponês em situação histórica – ‘paysan-em-historie’ – e que é para este camponês histórico que devemos olhar e compreender” (JOLLIVET apud WANDERLEY, p. 2003 p. 49).

903

Indo nessa mesma linha de raciocínio, Shanin diz que não dá para sacrificar

um

conceito

tornando

menos

complexo,

ou

seja,

simplificando-o em nome de um conceito sem impurezas. Como se isso fosse melhor para entender a realidade igualmente complexa, pois “a realidade não é pura, tampouco pode sê-lo a análise relevante da realidade” (SHANIN, 1980 p. 71). A medida que a ciência avança pode-se invalidar conceitos, como o de camponês. Mas não pode substituí-lo por um conceito sem poder explicativo em nome de uma suposta pureza e clareza. Por outro lado, esta noção deve ser revista, pois na década de 1960 o termo camponês se banalizou-se seguido de um desencantamento com relação ao termo sendo necessário sua desconceituação para uma reconceituação que atenda as especificidades concretas e atuais sem cair na generalidade ou homogeneização dos camponeses (SHANIN, 1980). O perigo da desconceituação esta em perder a reflexão sobre certos aspectos da realidade, pois todo conceito é seletivo e limitado. Portanto, podemos afirmar aqui que ambos os conceitos ligados a dois modelos analíticos possuem limitações pelo simples fato de se constituírem enquanto tipificações idealizadas/abstratas do real. No entanto afirma o autor que não se pode anular um conceito para se adequar em um outro esquema de análise em nome de panelinhas acadêmicas (nós e eles) entre marxistas e não-marxistas, uns devem reconhecer as preocupações e descobertas dos outros, pois é só através do debate que a ciência progride (SHANIN, 1980 p. 74). O conceito de camponês carrega uma complexidade podendo ter diversos significados, somente uma problemática definida pode decidir conceitos e referenciais teóricos de análise legítimos, ou seja, é na confrontação com a realidade que os conceitos devem ser julgados, pois todo conceito em si mesmo é insuficiente ao ficar na abstração, sem aplicabilidade no real concreto. 904

Olhando por este viés nenhum paradigma, teoria ou conceitos estão imunes de críticas às suas limitações, o conceito de agricultura familiar foi construído pelo argumento da insuficiência da noção de camponês e de pequeno produtor enquanto categorias de análise teórica277. A recepção da noção de agricultura familiar nos países latino americanos (língua espanhola) parece não ter sido muito boa, pois os trabalhos publicados em seus círculos acadêmicos utilizam muito mais os termos campesinos ou camponês. No caso do Brasil 278 a noção também não foi adotada de forma unânime e por alguns negada até mesmo

sua

validade

enquanto

categoria

teórica/científica.

Na

contestação desta nova noção surgida à partir dos anos 90, temos como principais expoentes o geógrafo Bernardo Mançano Fernandes e a Antropóloga Delma Pessanha Neves. Para Neves (2001, p. 4) reconhece a categoria agricultura familiar enquanto termo político e jurídico mas não enquanto conceito teórico e analítico. “a categoria agricultura familiar é denotativa da ação política

da

conquista jurídica” Os programas e instituições nascem e somem do dia para noite, sem se formar uma base institucional sólida para o setor que perdure e atravesse governos. Não havendo muitas vezes o acumulo de saberes e experiências. Vendo de uma forma crítica a tal divulgada agricultura familiar, e o consenso que se formou tanto na academia como entre representantes do estado e de certas entidades. Neves a chama de um projeto idealizado (distante da realidade) em que não há ainda um

905

contexto favorável e frutífero ainda, devido a esse quadro institucional duvidoso somados a burocracia estatal e ao desrespeito dos saberes por parte dos mediadores dos universos do camponeses, conclui que: (...) a elaboração de quadros institucionais que viabilizem o projeto político de consolidação da agricultura familiar; e na criação de situações viáveis à interlocução necessária à construção dos sistemas de atitudes dos agricultores familiares, muito distante daquelas (situações) circunscritas a essa unilateral forma de classificação (o familiar) (NEVES, 2001 p. 15).

Para Neves, portanto é uma categoria de ação política com um projeto modernizante de construção de novas identidades baseada na inserção social e na conquista de direitos para o campo, possibilitando a participação destes atores sociais enquanto protagonistas do processo. Está ainda muito distante do ideal sintetizado em torno do termo agricultura familiar. De acordo com Shanin (1980), no campo da ciência as noções de camponês ou mesmo o de agricultor familiar (generalizado teoricamente) podem ser entendidas enquanto simplificações e formalizações seletivas, portanto, não faz sentido perguntar se os camponeses ou agricultores familiares existem, mas perguntar o que o conceito, em sua utilização para entendimento da realidade imediata, esclarece e o que obscurece? Não nos cabe aqui julgar qual é o paradigma de análise mais correto, mas quais seriam as questões e problemas queremos elucidar nas realidades especificas a serem estudas. É a partir da empiria que serão definidos os melhores modelos de interpretação que devemos usar. Não há, portanto, a invalidação do conceito de camponês. Um primeiro ponto que corrobora com essa afirmação é a própria pesquisa coordenada por Hugues Lamarche279 em que constatou em torno de

279

Op. cit.

906

53% dos estabelecimentos brasileiros, pelas amostras realizadas nas regiões nordeste, sudeste e sul, são classificadas na agricultura de tipo camponesa. Um segundo ponto são as continuidades com o seu passado camponês ainda presentes, que trazem descontinuidades, mas não rupturas completas. Um terceiro ponto seria a fragilidade do quadro institucional que faz com que a agricultura familiar estanque somente nas idealizações das políticas públicas. Partindo deste dado, e levando em consideração às críticas que todo conceito sofre, é legítimo e válido pensar em uma noção de camponês moderno, para a realidade brasileira atual. Isso não tira os méritos para entendimento do real em outros aspectos contidos no conceito de agricultor familiar. Numa re-elaboração do conceito de camponês, enquanto camponês

moderno280,

poderíamos

pensar

o

mesmo

enquanto

intercambiável com o de agricultor familiar para a explicação da realidade dos pequenos estabelecimentos, mesmo aqueles com alto grau de integração ao mercado, uma vez que como vimos existem rupturas, mas também elos que os ligam ao seu passado camponês e que o impedem de se tornarem simplesmente profissionais da agricultura. Temos muito presente um modo/estilo de vida que não se limita na divisão social do trabalho de um profissional da agricultura, mas, os aspectos culturais ainda são relevantes para a apreensão do comportamento destes atores sociais que resistem no mundo rural.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

280

Usando a expressão de Carneiro (2006, p. 180) que coloca que o agricultor pluriativo resgata a agricultura enquanto modo de vida e assim como Neves (2001) analisa a agricultura familiar enquanto um projeto político. A Via Campesina e outras organizações sócio-políticas estariam engendrando um novo modelo alternativo ao modelo produtivista - atento para a qualidade de vida, meio ambiente e com a qualidade dos alimentos produzidos.

907

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909

EDUCAÇÃO DO CAMPO: UM ESTUDO SOBRE O DESENVLVIMENTO DO PROGRAMA ESCOLA ATIVA EM COMUNIDADES DE MARCELINO VIEIRA-RN

Mary Carneiro de Paiva Oliveira281 Ivonaldo Neres Leite – Orientador282 Resumo: O presente trabalho objetiva trazer para a discussão uma pesquisa que se encontra em andamento – processo de qualificação no Mestrado em Educação da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Apresenta o processo de construção do objeto de estudo, diante das rupturas ocorridas e as novas construções partindo da revisão bibliográfica, ponto importante para o aprofundamento epistemológico da pesquisa. Pesquisa, que tem como lócus as comunidades do Juazeiro e Panatis, localizadas em Marcelino Vieira/RN, seu tema é a Educação do Campo, estudando o desenvolvimento do Programa Escola Ativa nas escolas dessas comunidades, buscando analisar as contribuições dessa política educacional para a gestão do pedagógico no cotidiano escolar. Este artigo encontra-se estruturado em três tópicos fomentando as discussões. Palavras-Chave: Rupturas. Pesquisa. Educação do Campo. Escola Ativa.

CAMINHOS PERCORRIDOS... Refletir epistemologicamente a respeito da minha pesquisa é uma tarefa que se inicia embrionariamente numa trajetória de rupturas, através de uma vigilância constante na construção do meu objeto, uma vez que há uma relação pessoal muito subjetiva com o mesmo, pois sou sujeito da pesquisa. Pensando assim, reportamo-nos ao anteprojeto construído para a seleção do Mestrado em Educação da UERN, e nessa introspecção do ponto inicial até onde a pesquisa se encontra, observamos que o

281

[email protected]. Graduado em História (CESA-PE), Mestre em História (UFPB), Doutor em Ciências da Educação (Universidade do Porto/Portugal). É Professor da Universidade Federal da Paraíba (no Centro de Ciências Aplicadas e Educação/Departamento de Educação) e pesquisador credenciado no Programa de Pósgraduação em Educação da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). [email protected]. 282

910

objeto de estudo é o mesmo, o Programa Escola Ativa, agora com uma configuração teórica e foco investigativo diferenciado. O primeiro ensaio do projeto trazia como temática a descoberta da transdisciplinaridade com o Programa Escola Ativa nas Escolas Municipais Francisco Tomaz de Aquino, Cícero Rodrigues e Francisco Avelino Sobrinho (campo empírico da pesquisa), onde a questão a ser pesquisada

era:

Como

as

classes

multianuais

descobriram

e

encontraram a transdisciplinaridade com o Programa Escola Ativa? Seu referencial teórico priorizava a discussão transdisciplinar e da complexidade, destacando Morin como principal autor do nosso diálogo, abordava ainda, uma breve discussão da Educação do Campo com as diretrizes do Programa Escola Ativa – sendo que estas sustentavam meu discurso “pró” PEA. A problemática era muito tendenciosa aos instrumentos metodológicos do Programa, no sentido de comprovar que estes instrumentos era a solução que estava faltando nas classes multianuais, já que havia sido feito uma pesquisa anteriormente sobre essa mesma linha de raciocínio, estando cheia de pré-noções. O projeto tinha o título: As classes multianuais das escolas das comunidades do Juazeiro e Panatis: descobrindo a transdisciplinaridade com o Escola Ativa. Os objetivos desenhados nesse contexto foram os seguintes: o geral - investigar o encontro e a descoberta da transdisciplinaridade com Programa Escola Ativa através das estratégias e instrumentos facilitadores do processo de ensino e aprendizagem da e na escola; os específicos – observar as salas multianuais diagnosticando as especificidades presentes no contexto da educação do campo, avaliar e refletir as mudanças que ocorreram com o Programa Escola Ativa,

mediante

os

resultados

qualitativos

na

construção

do

conhecimento nas salas multianuais das escolas campo empírico, e, conhecer e compreender o pensamento dos professores das salas multianuais em relação à transdisciplinaridade na sua prática docente,

911

por último, analisar a existência de atividades transdisciplinares no Programa e na escola. A metodologia não estava muito clara e se encontrava imatura em relação ao caminho que deveria ser percorrido para responder a tantas indagações levantadas no texto escrito do projeto. Apenas o enfoque estava explícito, que era uma pesquisa de cunho qualitativo. Após o início das aulas do mestrado as rupturas iniciaram-se, primeiramente nas discussões da disciplina de Pesquisa em Educação quando questionada sobre a pergunta de partida, e quanto a tendência da pesquisa, que estava voltada para a linha de formação, já que a minha era a de políticas e gestão da educação, embora tratasse de uma política educacional, apresentava particularidades na formação. Os diálogos on-line e presencial com o orientador foram imprescindíveis para novas direções, primeiro a sugestão da leitura de artigos e capítulos de livros que tratavam criticamente meu objeto de estudo e sobre a concepção de Educação do Campo. Nesse contexto, uma nova perspectiva foi desenhada para a questão da pesquisa, que ficou a seguinte: Quais são as diretrizes que a Política Educacional do Programa Escola Ativa propõe para a gestão do conhecimento no cotidiano escolar? Questão mais aceita para linha da pesquisa de políticas e gestão da educação. Partindo desse ponto, o projeto começava a trilhar outro foco investigativo. Os referenciais que orientavam o Programa Escola Ativa, agora seriam analisados criticamente em relação as suas diretrizes operacionais. Com essa nova abordagem na investigação, o objetivo geral ficou o seguinte: analisar as diretrizes que a Política Educacional do Programa Escola Ativa propõe para a gestão do conhecimento no cotidiano escolar. Novos referenciais entraram na discussão, pois iriam fazer parte da análise dos instrumentos metodológicos do PEA. E a abordagem 912

apresentada no II Simpósio, teve o seguinte título: A interface do Programa Escola Ativa nas classes multianuais das escolas das comunidades do Juazeiro e Panatis – Marcelino Vieira/RN. Contudo, ainda não era esse tipo de investigação que saciava minhas indagações, que se ampliavam com o tempo através das novas leituras e novas discussões a respeito do meu objeto. E finalmente, numa orientação presencial e, orientanda e orientador dialogaram sobre os anseios e questionamentos, onde orientador destacou que esse diálogo nos levava a investigar as contribuições do PEA para o campo, no entanto a decisão da mudança de foco partiria do pesquisador, o que aconteceu somente após a leitura dos referenciais sugeridos pelo orientador. Os novos referenciais tinham suas discussões voltadas para a pesquisa em Educação do Campo, já que o pando de fundo teórico da pesquisa seria a educação dos campesinos. Esses referenciais foram tiveram uma conotação decisiva para o amadurecimento científico da pesquisa. Outras leituras acerca dos procedimentos metodológicos foram introduzidas, para a compreensão dos caminhos devíamos trilhar na investigação, fazia-se necessária uma apropriação da metodologia que viabilizasse a pesquisa, que até então estava indefinida.

PORTO ALCANÇADO... Após uma significativa revisão bibliográfica, novos significados e olhares foram despertados para o objeto em construção, “pois a ciência dissolve o objeto para ser compreendido e construído” (PEREIRA, 2012). Dessa forma, temos um caminho traçado que almeja nos orientar em como alcançar nossas metas, porque “instrumentos e técnicas são inseparáveis da construção do objeto” (PEREIRA, 2012).

913

Na reflexão, sobre onde chegamos, apoiamo-nos nas palavras de Pereira (2012) em notas de aula quando este diz: “o pesquisador vai mais longe se souber o que está fazendo. Saber o que se faz e porque se faz é um trunfo fundamental nesta específica atividade – a ciência”; e assim, é onde se encontra esta pesquisa, onde se tem definido o que pesquisar, por que pesquisar e como pesquisar. Como descrevemos: título – Um estudo sobre o desenvolvimento do Programa Escola Ativa em comunidades de Marcelino Vieira – RN; problema da pesquisa – Quais contribuições o Programa Escola Ativa proporcionou para a gestão do conhecimento no cotidiano das escolas da comunidade do Juazeiro e do Panatis, no município de Marcelino Vieira – RN?; objetivo geral – analisar as contribuições que o Programa Escola Ativa proporcionou para a gestão do conhecimento no cotidiano escolar das escolas das comunidades do Juazeiro e do Panatis, no município de Marcelino

Vieira/RN,

implementação

do

específicos Programa



descrever

Escola

Ativa

como nas

ocorreu escolas

a das

comunidades do Juazeiro e do Panatis de Marcelino Vieira-RN, fazer um diagnóstico nas escolas das comunidades do Juazeiro e do Panatis referente ao antes e ao depois da implantação do Programa Escola Ativa e expor as diretrizes do Programa Escola Ativa. Procurando operacionalizar os nossos objetivos e responder a questão norteadora da pesquisa, optamos seguir os caminhos da pesquisa de cunho qualitativo, pois entendemos que essa é a perspectiva mais apropriada para o nosso estudo, e para que tenhamos uma melhor compreensão na eficiência da abordagem da pesquisa que adotamos, apoiamo-nos nas ideias de Chizzotti (1991, p. 79) das quais compartilhamos, pois admitem que “a abordagem qualitativa parte do fundamento de que há uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, uma interdependência viva entre o sujeito e o objeto, um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito”.

914

Assim, utilizaremos os seguintes instrumentos metodológicos na coleta de dados: a observação participante, de onde lançaremos mão do diário de campo, considerando que, conforme Richardson (2011, p. 261), “na observação participante, o observador não é apenas um espectador do fato que está sendo estudado, ele se coloca na posição e ao nível dos outros elementos humanos que compõem o fenômeno a ser estudado.”; a entrevista semi-estruturada com professores e gestores; e a análise documental. A fundamentação teórica da nossa pesquisa parte de um diálogo entre a concepção de Educação do Campo com três áreas que fazem parte

dos

objetivos

do

multisseriadas/multianuais283,

estudo gestão

a

ser do

desenvolvido: pedagógico,

classes e

uma

perspectiva analítica em relação ao Programa Escola Ativa. Diante

desta

proposta

de

construção

teórica,

temos

a

necessidade de iniciá-la com um breve resgate histórico da origem e constituição da concepção da Educação do Campo em nosso país. Para esse resgate, reportamo-nos a década de 1990, quando os movimentos sociais do campo ganharam forças e obrigaram o governo a debater com eles propostas de uma educação que fosse do e não para o campo, uma vez que, até então, havia apenas se pensado na educação dentro do “paradigma urbanocêntrico” (MORAES ET TAL, 2010, p. 402) com vistas na dicotomia entre campo e cidade. Dessa forma, entendemos que o processo de construção da Educação do Campo se traduz numa luta antiga dos sujeitos que vivem nas comunidades rurais do Brasil, na busca pelo direito à terra e a uma educação de qualidade voltada para as especificidades do campo, luta que percebemos desde as revoltas populares existentes na nossa história. Isso porque os setores hegemônicos nunca tiveram uma preocupação com os sujeitos que viviam no campo, que sempre foram vistos como ignorantes, atrasados e de fácil subordinação, e nessa 283

Aqui chamaremos de classes multianuais, devido ao Sistema Municipal de Educação de Marcelino Vieira-RN ser organizado em anos, e não em séries.

915

visão, a educação também reproduz essa ideologia sobre o povo camponês, como bem nos mostra Pereira (2009, p. 178), A ideologia dominante sempre considerou o camponês brasileiro como matuto analfabeto, fraco, atrasado, preguiçoso, ingênuo, incapaz; um Jeca Tatu, que precisa ser redimido pela modernidade [...] As escolas implantadas no campo só contribuíram para reforçar essa imagem. Escolas com pedagogias bancárias, importadas da cidade como um pacote pronto: currículo, calendário, cartilha e professor. Todos oriundos da cidade.

Assim, é possível compreender que a origem da Educação do Campo decorre das demandas dos movimentos camponeses na construção de políticas educacionais para os assentamentos da reforma agrária, mas deve-se entender que a educação na reforma agrária é apenas parte da Educação do Campo, esta compreendida como um processo em movimento e construção, contemplando sua lógica política que pensa a educação como parte essencial para o desenvolvimento do campo (FERNANDES, 2006). A construção da concepção de Educação do Campo nos leva ao caminho percorrido pelas contribuições dos movimentos sociais, especificamente nas suas práticas pedagógicas, pois, como entende Silva (2006), essa contribuição pedagógica dos movimentos sociais para a Educação do Campo resgata práticas educativas gestadas em nosso país que constituíram o arcabouço da educação popular, sendo práticas que desempenharam, e desempenham, um papel importante do ponto de vista ético, político e pedagógico. Dessa forma, fica explícito que a Educação do Campo se construiu e se constrói com as contribuições pedagógicas dos movimentos sociais e nas bases da educação popular284 presentes na história da educação do Brasil. 284

Tomaremos como conceito de Educação Popular o de Brandão (2006), em que ele afirma que essa educação se traduz numa prática de pensar a prática, que se apresenta como uma das mais variadas situações em que estão estruturadas a produção de um conhecimento coletivo popular. É através desta razão que podemos pensar na educação popular como um trabalho coletivo e organizado com povo, a que o educador é chamado a participar para contribuir num trabalho político e analítico que atua no conhecimento e no desenvolvimento popular.

916

Traçar ou definir um conceito fechado para Educação do Campo traz um perigo reducionista para essa definição, haja vista que essa educação é composta por contradições e tensões permanentes, presentes na sua própria estrutura de ver o humano nas suas particularidades. Neste sentido, Caldart (2008) entende que o conceito de Educação do Campo é novo, e está em disputa, exatamente porque o movimento da realidade buscada por ela é marcado por contradições sociais muito fortes, tendo raízes na sua materialidade e no seu desenvolvimento histórico. Buscando um melhor entendimento, continuamos com as ideias de Caldart (2008, p. 69) quando esta diz: (...) uma primeira compreensão necessária para nós é de que se o conceito de Educação do Campo, como parte da construção de um paradigma teórico e político, não é fixo, fechado, também não pode ser aleatório, arbitrário: qualquer um inventado por alguém, por um grupo, por uma instituição, por um governo, por um movimento ou organização social.

Não compreender a Educação do Campo como um conceito em construção, pode nos levar a um reducionismo e concebê-la de forma limitada. Sabemos que a materialidade da concepção de educação do campo nos impõe um pensamento e um trabalho vinculado a seguinte “tríade: Campo – Política Pública – Educação” (CALDART, 2008, p. 70). Seguindo esse raciocínio, entendemos a Educação do Campo como uma nova forma de ver, sentir e aprender num contexto diversificado e multicultural, que é o espaço campestre. Portanto, conceber a educação que respeite a diversidade do povo camponês só é possível considerando o que nos diz Caldart (2002, p. 22), É um projeto de educação que reafirma como grande finalidade da ação educativa ajudar no desenvolvimento mais pleno do ser humano, na sua humanização e inserção crítica na dinâmica da sociedade de que faz parte; que compreende que os sujeitos se humanizam ou se desumanizam sob condições materiais e relações sociais determinadas; que nos mesmos processos em que produzimos nossa existência nos produzimos como seres humanos; que as práticas sociais, e

917

entre elas especialmente as relações de trabalho, conformam (formam ou deformam) os sujeitos. É por isso que afirmamos que não há como verdadeiramente educar os sujeitos do campo sem transformar as circunstâncias sociais desumanizantes, e sem prepará-los para serem os sujeitos destas transformações.

Concebendo a Educação do Campo conforme a abordagem desenvolvida até aqui, trazemos enfim a realidade das escolas que constituem o espaço rurícola do nosso país, realidade composta por escolas multianuais – a grande maioria presentes na região Nordeste, conforme dados do Censo Escolar de 2007. No Brasil, existem 93.884 turmas multianuais, dessas, 55.618 se encontram no Nordeste (INEP, 2007). Em dados mais recentes, percebemos que houve uma diminuição desse tipo de organização escolar, o que não quer dizer que serão extintas, pois são características próprias de alguns espaços rurais brasileiros. Junges (2012, p 01) apresenta dados mais recentes sobre o tema: “(...) em 2009, das 83 mil escolas rurais do país, 39 mil possuem classes multisseriadas, nas quais estudam 1,3 milhões de alunos do ensino fundamental”. As classes multianuais constituem uma realidade concreta na história da educação do Brasil, uma vez que esse tipo de organização escolar se deu desde a expulsão dos Jesuítas285, mas sua oficialização pelo Estado aconteceu somente em 1827, conforme nos mostra Santos e Moura (2010, p. 41) “(...) as classes multisseriadas foram criadas oficialmente pelo governo imperial, pela Lei Geral do Ensino de 1827, que, em seu artigo primeiro, determinava: em todas as cidades, villas e lugares mais populosos, haverão (sic) as escolas de primeiras letras que forem necessárias (ATTA, 2003; NEVES, 2000)”. Ao lado das escolas de primeiras letras, também caminhavam nesse processo educacional histórico do nosso país os mestres – 285

Para compreender o que foi a expulsão dos jesuítas, tomamos como referência o que nos diz Seco e Amaral (2012) quando aborda a reforma educacional pombalina como condutora da expulsão dos jesuítas das colônias portuguesas, reforma que tirou o comando da educação das mãos destes e passando para as mãos do Estado, através do Alvará Régio de 28 de junho de 1759.

918

professores ambulantes que passavam pelas fazendas ensinando a ler, escrever e contar. As características das classes multianuais, em seu início, tinham a sua identidade no ato de ensinar pessoas de diferentes idades e níveis de

aprendizagens

ao

mesmo

tempo;

nesse

contexto

histórico,

chegaram a ser consideradas como uma inovação no meio da educação no século XIX, e ainda incentivada pelo Estado (SANTOS e MOURA,

2010).

Essas

considerações

nos

levam

a

repensar

as

representações negativas atribuídas a essas classes, para isso, nos reportamos a Santos e Moura (2010, p. 39) quando dizem que “as representações negativas sobre as classes multisseriadas (...), não podem ser tomadas como verdades absolutas e merecem ser problematizadas”, uma vez que seria preciso primeiro observar que essas representações são resultados de um determinado momento histórico e de condicionantes variados286. Somente no século XX é que a criação de Grupos Escolares se apresenta com força, esses já organizados em séries, classificados por idade e por níveis de aprendizagens esperadas, onde na maioria das vezes as crianças eram separadas por sexo. Vinculados a essas mudanças estruturais da educação nessa época, os Grupos Escolares ou Escolas Reunidas, trouxeram também duas grandes novidades: sede própria, com fins específicos da escolarização, com base no princípio da racionalização do espaço; e a outra, a instituição da fragmentação e do controle do pedagógico e do tempo nas escolas. Assim, o sistema seriado foi se incorporando à organização das instituições escolares, pois na medida em que a sociedade brasileira se urbanizava a escola também

se

reorganizava

na

seriação,

fragmentando

e

homogeneizando as faixas etárias do ensino (SANTOS E MOURA, 2010). No momento atual, as classes multianuais ganham uma maior visibilidade no meio acadêmico suscitando algumas pesquisas em 286

Essa é uma questão que não está dentro dos propósitos da nossa abordagem aqui.

919

relação ao seu pensar e fazer pedagógico, já que não foi possível extingui-las, como se pensou em alguns momentos da história educacional brasileira, atribuindo-se o fracasso na educação a esse tipo de organização escolar. Mediante a essa nova visibilidade, concordamos quando Arroyo (2010, p. 09) diz:

Quando os povos do campo em sua rica diversidade se mostram vivos, dinâmicos, até incômodos [até incômodos, fecundam - grifo nosso] fecundam e dinamizam mesmo a escola. Obrigam-nos a redefinir olhares e superar visões inferiorizantes, negativas, com que em nosso viciado e preconceituoso olhar classificamos os povos do campo e seus modos de produção, a agricultura familiar e suas instituições, a família, a escola.

É

com

esse

novo

olhar

sobre

as

classes

multianuais,

desmistificando a “concepção urbanocêntrica de mundo” (BARROS ET TAL, 2010, p. 31), que a Educação do Campo deve abarcar e considerar a forma particular de produzir conhecimento nesses espaços heterogêneos existentes no campo. Dessa forma, há a possibilidade de reconhecer, que é possível construir uma nova arena de aprendizagens nas classes multianuais, bastando para tanto superar a representação negativa sobre essas classes, pois, as escolas do campo não podem ser vista apenas por esse tipo de aspecto, mas com a probabilidade diversificada de idades, tempos e aprendizagens diferentes, uma vez que, os educandos nesse tipo de organização escolar, estão em múltiplas idades e temporalidades – éticas, cognitivas, culturais, identitárias. Como afirma Arroyo (2006, p. 113), “é com a diversidade de temporalidades que trabalha a escola do campo. Não é com séries”. O aprofundamento dessa discussão nos redimensiona à necessidade de voltar os olhares para as especificidades presentes na educação do campo, afirmando que é preciso políticas que atendam a essa diversidade, tornando, dessa forma, a Educação do Campo uma educação de qualidade, para que os sujeitos campesinos sejam respeitados e valorizados. Assim, Molina (2006, p. 13) nos diz que, 920

Conceber essas políticas impõe-nos o desafio da produção de novos saberes inter e transdisciplinares, que sejam capazes de articular diferentes dimensões da vida dos sujeitos do campo, aliadas ao seu processo educacional, ou seja, uma escola colada ao chão da vida, ligada aos processos da produção da existência social desses sujeitos.

Considerando o antes afirmado sobre o nosso percurso de fundamentação teórica, trazemos o Programa Escola Ativa para a nossa discussão, que teve seu surgimento como política pública atribuído à necessidade de respeito e valorização dos trabalhadores do campo, por meio de estratégias metodológicas voltadas para a prática pedagógica em classe multianuais, se apresentando como uma possibilidade de educação de qualidade no campo, diante de uma realidade marcada por um ensino urbanizado, como modelo absoluto a ser seguido no espaço camponês. Não nos cabe, aqui, em princípio, como é próprio de uma proposta de pesquisa, exaltar ou diminuir o PEA como política educacional para os espaços rurícolas, se atendeu ou não as expectativas nele depositadas, mas, sim, obter um parâmetro analítico sobre o mesmo e sua implementação. Nesse sentido, apontamos algumas referências analíticas críticas esboçadas pelos movimentos por uma Educação do Campo, que questionam o PEA como perspectiva do Banco Mundial adotada pelo MEC, de “cima para baixo”, sobre o campo brasileiro. Considerando o que Freire, Oliveira e Leitão (2010, p. 234), assinalam sobre as políticas que desconsideram a práxis (relação teoriaprática), “(...) compreendemos que a formulação de uma política focada na adoção de metodologias ativas foi reducionista frente à complexa problemática educacional no contexto do campo brasileiro, marcado pela sua heterogeneidade”, pode-se assinalar que o Programa Escola Ativa tende a assumir uma dimensão focalizada. A propósito afirmam os referidos autores (ibidem, p. 245): 921

Reconhece-se que houve momentos e processos de participação coletiva, mas as reformulações estruturantes do Programa foram verticalizadas pelo poder público na esfera federal, subtraindo a força potencial de consolidar avanços na Política Nacional de Educação do Campo a partir de múltiplas vozes na esfera pública e força dos movimentos sociais. Houve a impermeabilidade a críticas formuladas, o que poderá conduzir a isolamento e/ou confinamento do PEA na estrutura tecnocrática do Estado, ainda que as metas físicas possam se revelar satisfatórias na ótica governamental.

Nessa

perspectiva,

convém

destacar

a

abordagem

de

Gonçalves, Rocha e Ribeiro (2010) quando eles problematizam o Programa como um pacote educacional, visto que, ele mantém as características de uma proposta curricular construída com pouco diálogo com os sujeitos e os contextos para os quais foi elaborado. E mesmo passando por novas reformulações, a partir de 2008, continuou com as referidas características. Com esse ponto de vista crítico referente ao Programa Escola Ativa após sua nova configuração, temos a possibilidade de galgar uma perspectiva analítica com “(...) representação menos linear e estatal-centralizada” (OLIVEIRA, 2009, p. 18), pois é de convir que, para se analisar uma política pública educacional global, será necessário considerar também as vozes internas e externas locais na execução dessas políticas nacionais. Freire, Oliveira e Leitão (2010) apontam ainda duas importantes críticas: primeiro, em relação à ausência de um referencial teórico que apresente clareza e que possa dar sustentação ao projeto político pedagógico do Projeto Base do Programa Escola Ativa (reformulado em 2008), pois continua com uma lacuna, mesmo evidenciando o alinhamento com a abordagem sociocultural de Vygotsky; a segunda, é com referência aos seus aspectos legais, quando se verifica a falta das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, principalmente no que diz respeito à legislação correlata 922

que trata da Educação do Campo e da diversidade, a exemplo a Lei nº 10.639/03287, contribuições que deveriam ser incorporadas no sentido de referenciar as experiências formativas e educativas no cotidiano da escola. Consideremos

agora

as

discussões

sobre

a

gestão

do

pedagógico, ou seja, a forma como o conhecimento é gerido no cotidiano escolar. Para essa discussão, faz-se necessário primeiro entender a que tipo de pedagógico está se falando e a que gestão estamos nos referindo. Dentro das indagações sobre o pedagógico e a gestão, fazemos referência ao que Ferreira (2008, p. 177) diz,

A gestão constitui-se em soma de processos, e, se sabe, no cotidiano, esses processos são conectados e têm nos sujeitos os protagonistas dos rumos da escola. Vale dizer, o pedagógico é a dinâmica da escola, da educação, por isso mesmo, é resultante da colaboração de todos, nos diversos espaços e tempos do ambiente e da convivência escolar.

Então, a gestão do pedagógico são as relações desenvolvidas no cotidiano escolar, através de processos conectados em função da produção de conhecimento. De forma mais consistente, entendemos a gestão do pedagógico como a forma de gerir o conhecimento, relacionada diretamente ao trabalho do docente, é um processo que se materializa na produção e execução da aula. O diálogo da gestão do conhecimento com a Educação do Campo está imbricado na práxis pedagógica concebida por essa concepção de educação. Dessa forma, voltamos nosso discurso ao professor do campo, aquele que trabalha com as classes multianuais, onde o conhecimento também é gerido, pois fazemos a reflexão sobre como isso acontece nesses espaços diferenciados de organização escolar, reflexão que nos encaminha a Ferreira (2008), quando afirma, em seu discurso, que 287

Trata da inclusão no currículo oficial da temática História e Cultura Afro-Brasileira.

923

mesmo aquelas escolas onde suas relações são mais assistemáticas, elas também produzem a gestão do pedagógico, por mais que seu processo de gestão não esteja claro, ou mesmo não possuam caráter democrático. Isso porque, mesmo que não exista nenhuma intenção de ter um projeto de gestão, é possível existir a gestão do pedagógico, pois os professores estão produzindo um trabalho, estão produzindo aula e produzindo conhecimento ou não. A grande maioria das classes multianuais se encontra dentro da reflexão produzida nesse diálogo feito com Ferreira sobre a gestão do pedagógico. Vale ressaltar a relação indissociável entre a gestão do conhecimento e o trabalho do professor, direcionando-nos a entender que a “gestão do pedagógico é, em essência, o trabalho, a profissionalidade dos professores, seus aportes teórico-metodológicos, em suma, todos os aspectos orientadores e determinantes na produção da aula e, em decorrência, na produção do conhecimento” (FERREIRA, 2008, p. 183 e 184). Aonde já chegamos, concerne na afirmativa de que o ponto de vista constrói o objeto, sem ponto de vista teórico não há objeto construído, há apenas uma pré-construção, pois o real científico é o real construído (PEREIRA, 2012). Assim, estamos diante de um ponto de vista teórico real em construção.

CAMINHOS QUE ESTOU PERCORRENDO PARA MEU PROVÁVEL PONTO DE DESTINO... Pensar no presente é algo complexo, uma vez que quando pensamos, na maioria das vezes voltamos ao passado ou nos referimos ao futuro. No entanto, pensando num período maior de tempo, podemos dizer que estamos nos preparando para qualificar nosso projeto de pesquisa, bem como, no processo de elaboração dos instrumentos de coleta de dados. 924

Chegando ao processo da qualificação, e mesmo após esse procedimento da pesquisa concluído, o seu resultado é incerto, vez que tratamos com fenômenos humanos na dinâmica da vida cotidiana, e não com experiência em laboratórios, com testes e comprovações certas ou erradas. Nosso “laboratório” é a vida, e nossos “experimentos” são seres humanos, então, predizer nossas respostas poderá nos levar a uma falsa pesquisa, a um princípio da ilusão da transparência, ou seja, o princípio da não consciência. Entendemos que não iremos mudar o “mundo”, poderemos dar um contorno de ida ao chão das escolas, provocando

possibilidades

para

novos

conhecimentos

sobre

a

Educação do Campo.

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927

ECONOMIA CRIATIVA: POSSIBILIDADES NO ESPAÇO URBANO BRASILEIRO Marcelo Augusto Pontes de Araújo288

Resumo: A ascensão do debate sobre economia criativa trouxe a tona dois conceitos essenciais: criatividade e inovação. A definição desses termos é fundamental para entender os processos em torno dessa nova economia baseada na cultura e tecnologia. A partir desses conceitos buscam-se analisar o uso da criatividade na solução de problemas peculiares às metrópoles brasileiras. A ocupação do solo urbano nacional, reflexo do modelo de industrialização aqui desenvolvido, gerou uma série de externalidades e o uso da criatividade pode ser aproveitado de diferentes maneiras para a reversão de alguns desses processos. O presente trabalho irá analisar duas possibilidades do uso da criatividade no trama urbano nacional fazendo uso de exemplos de projetos em atuação. Palavras-chave: criatividade, inovação, economia criativa, planejamento urbano.

INTRODUÇÃO O termo economia criativa ainda é novo e parece estar em formação. A temática das indústrias criativas apareceu na Austrália em 1994, a partir de um plano do governo daquele país em que a idéia matriz foi orientada pela requalificação do papel do Estado no desenvolvimento cultural do país. Em 1997 no Reino Unido o partido trabalhista inglês identificou os setores criativos como um setor em franco

crescimento

e

que

carecia

de

políticas

públicas

que

estimulassem seu desenvolvimento. Contudo, o primeiro esforço de construção sistemática do tema ocorreu em dezembro de 2002 em Brisbane, Austrália, quando pesquisadores da Queensland University of technology, da London Scholl of Economics, do Massachussetts Institute of Technology e da New York University, se juntaram e organizaram um

288

Graduado em Ciências Econômicas (Faculdade de Campinas), Mestre em Economia (UFRN), Mestrndo em Estudos Urbanos e Regionais (UFRN). [email protected].

928

evento intitulado New Economy, Creative and Consuption Symposium. Desse evento resultaram os primeiros livros e artigos sobre o tema. Em 2005 o Ministério da Cultura brasileiro junto com o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) e a UNCTAD (Conferência das Nações unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) realizaram o Fórum Promovendo a Economia Criativa: Rumo ao Centro Internacional das Indústrias Criativas. Em 2008 a UNCTAD lança seu primeiro estudo a respeito do tema: The Creative Economy Report 2008, lançando a segunda edição dois anos mais tarde. No Brasil a criação da Secretaria da Economia Criativa pode ser considerada um marco. A missão que essa Secretaria terá não é das mais fáceis, levando em consideração, como dito acima, que tratará de um conceito em formação, além de atuar em uma realidade social bastante complexa e diferente daquelas aonde a economia criativa foi inicialmente tratada. Portanto, esse artigo, como parte de uma discussão maior que resultará em uma dissertação, irá discutir as possibilidades do uso da cultura, criatividade e tecnologia como indutores de desenvolvimento nos espaços urbanos brasileiros. O objetivo desse artigo é trabalhar a idéia de inovação e criatividade, entendendo o que são cada uma desses termos e analisar duas possibilidades para o desenvolvimento da economia criativa nas cidades brasileiras. A primeira consiste em fomentar a criatividade do brasileiro de uma forma que esse processo se traduza em inovação agregando valor os produtos aqui desenvolvidos. A segunda, com uma face

mais

humana

e

cidadã,

aborda

as

possibilidades

de

transformação e fortalecimento da auto-estima da população que se encontra fora do mercado de trabalho formal, através do fomento do desenvolvimento local das indústrias criativas, utilizando a cultura local como pilar estruturante. Para construção desse artigo Inicialmente faremos uma distinção entre inovação e criatividade. Posteriormente, iremos percorrer uma bibliografia clássica da economia criativa, principalmente aquelas 929

desenvolvidas nos países anglos saxões, bem como discutir os autores brasileiros. A comparação entre essas duas visões contribuirá para discutirmos as duas possibilidades de uso da economia criativa nas cidades brasileiras. Para ilustrar alguns pontos na nossa discussão iremos elencar e sinteticamente mostrar o perfil de alguns projetos brasileiro que utilizam a economia criativa como plataforma.

CRIATIVIDADE E INOVAÇÃO: TATEANDO CONCEITOS O conceito de inovação e criatividade há muito tempo vem sendo abordado por diversos autores na teoria econômica. () Observase uma nebulosidade entre tais conceitos, muitas vezes se misturando. A recente discussão sobre economia criativa, seu conceito e pressupostos contribui para reforçar esse debate. Mas afinal o que seria inovação? E criatividade? Seriam ambos os conceitos duas facetas daquilo que Schumpter (1984) descreveu como a verdadeira mola propulsora do capitalismo? O objetivo da presente argumentação é buscar uma definição para os conceitos de inovação e criatividade. Para tal tarefa será utilizado a visão de dois autores: Florida (2011) e Schumpeter (1984). O primeiro autor estabelece que o éthos criativo é a grande responsável pela transformação em curso na economia internacional. Para Schumpeter (1984) o processo de desenvolvimento é descrito como a ruptura do equilíbrio previamente existente causado pelas inovações. Pode-se observar que em seus respectivos trabalhos esses autores põem a idéia de inovação e criatividade como essencial para entender o processo de desenvolvimento. Florida advoga que “é o nosso compromisso com a criatividade em suas múltiplas facetas que forja o espírito de nossa era”. Para o autor apesar de ter-se desenvolvido vários mitos e equívocos sobre a criatividade ela ainda é questão fundamental para entender as 930

transformações pelas quais passamos. A criatividade, portanto, para ele, seria um processo social inerente a todos em diferentes graus que requer capacidade de síntese e de assumir riscos, segurança e experiência.

O mesmo ainda destaca que a criatividade é uma

habilidade cognitiva distinta de outras funções neurais agrupadas sob o termo de inteligência. Mesmo admitindo que a inteligência favoreça a capacidade criativa, não podemos igualá-las. Sintetizando seu ponto de vista, Florida afirma que: “conhecimento” e “informação” são ferramentas materiais para a criatividade. A “inovação”, tanto na forma de um novo artefato tecnológico, quanto de um novo modelo de negócios, é seu produto. (FLORIDA, 2011)

Schumpeter analisa a dinâmica capitalista a partir das inovações geradas pelos agentes econômicos, as quais são fomentadas pelo ambiente competitivo. A inovação nesse caso é gerada por um processo denominado destruição criativa, ou seja, mudanças na estrutura econômica a partir de dentro, em que há a destruição das velhas e criação de outra nova estrutura, reorganizando, dessa forma, a atividade econômica. O capitalismo, portanto, seria por essência uma forma de mudança econômica em que nunca está, nem jamais ficará estacionária e a inovação é o grande motor desse movimento. Para o autor, portanto O que chamamos, não cientificamente, de progresso econômico consiste, essencialmente, na alocação de recursos produtivos em uso até agora não experimentados na prática, e na sua retirada daqueles para os quais elas serviram até agora. É a isto que chamamos de “inovação” (SCHUMPETER, 1984)

Observando esses dois autores aferimos para uso nesse trabalho que a criatividade, capacidade cognitiva presente em todo ser humano,

pode

ser

transformada

em

inovações,

sejam

elas

tecnológicas, culturais ou sociais. A criatividade é o recurso essencial para a inovação, sem aquela essa não existe. A inovação, portanto,

931

seria a materialização da criatividade em processos ou produtos detentores de valor econômico e/ou social. Esclarecido a diferença entre os dois principais fatores da economia criativa, se torna crucial sua conceituação para a seqüência do texto. O conceito de economia criativa nasce inicialmente na Austrália e o debate segue para a Inglaterra, aonde é utilizada como plataforma do Governo de Tony Blair. Assim, como dito acima o conceito nasce nos países anglos saxões que acionam um conjunto de medidas para potencializar as políticas públicas para o desenvolvimento das, por eles denominadas, indústrias criativas e conceituadas como: Indústrias que têm sua origem na criatividade, habilidade e talento individuais e que têm um potencial para geração de emprego e riquezas por meio da geração e exploração da propriedade intelectual. Isto inclui propaganda, arquitetura, o mercado de artes e antiguidades, artesanatos, design, design de moda, filme e vídeo, software de lazer interativo, música, artes cênicas, publicações, software e jogos de computador, televisão e rádio. (BRITISH COUNCIL)

Porém, o conceito continua em formação já que as experiências internacionais contêm realidades próprias que diferem de cada país. Dessa forma, é de fundamental para esse trabalho utilizar um conceito condizente com a realidade brasileira e também elencar os setores tidos com criativos no nosso país. Consciente desse problema a Secretária de Economia Criativa vem trabalhando para solucionar essa questão, já que é condição sine qua non para a definição de medidas à pasta formular um conceito para economia criativa e elencar os setores criativos existentes no país. Assim, será através desse conceito e dessa delimitação que vamos nos basear. Para essa Secretaria os setores criativos são: todos aqueles cujas atividades produtivas têm como processo principal um ato criativo gerador de valor simbólico, elemento central da formação do preço, e que resulta em produção de riqueza cultural e econômica.(SECRETARIA DE ECONOMIA CRIATIVA, 2011)

Diante da definição acima, como a criatividade pode ser utilizado no espaço urbano brasileiro de modo a contribuir para o 932

desenvolvimento sócio econômico dessas áreas? Observaremos duas opções que podem responder a pergunta. A primeira corresponde à agregação de valor aos produtos aqui desenvolvidos através da educação e do investimento em pesquisa e desenvolvimento. A segunda, fugindo da teoria da cidade criativa desenvolvida por Florida (2008), relata a geração de inovações a partir de movimento de base, moradores de favelas, ou seja, pessoas “não qualificadas”. CRIATIVIDADE NO ESPAÇO URBANO BRASILEIRO No Brasil, o processo de urbanização teve como catalisador a grande movimentação de pessoas no sentido campo cidade em busca de melhores condições de vida, característica do nosso modelo de industrialização; a esse quadro podemos somar a mecanização da agricultura nacional, disponibilizando, dessa forma, um grande estoque de mão de obra para as grandes cidades brasileiras que se industrializavam. Esse estoque, ou exército industrial de reserva, foi fundamental para o sucesso do processo de industrialização baseados em baixos salários. (FURTADO 1972) Podemos enxergar dois grandes impactos desse processo, o primeiro, reflexo da principal indústria nacional: a automobilística, que modelou o processo de construção das cidades contribuindo de diversas formas para a degradação ambiental - seja através do lançamento de gases efeito estufa ou da degradação de áreas verdes através do espraiamento das cidades - comprometendo a socialização das pessoas no espaço urbano. E a segunda, no que diz respeito à questão da ocupação do solo urbano, que diante do intenso fluxo populacional se mostrou deveras desigual e desordenado, contribuindo para o surgimento das favelas. Esse quadro fez explodir uma gama de problemas no espaço urbanos brasileiro como a violência, o tráfico de droga e sua atratividade para os jovens moradores das favelas. Foi nesse ambiente e 933

no intuito de solucionar problemas dessa ordem que uma das principais inovações brasileira foi gerada. A seguir iremos relatar o caso do Grupo Cultural Afro Reggae (GCAR), movimento nascido dentro da favela a partir de seus moradores que está mudando a realidade da área que tem como base a criatividade e a cultura. Utilizaremos esse caso pelo fato do mesmo ter surgido dentro de uma realidade bastante comum nas metrópoles brasileira: as favelas. Conseqüentemente, o GCAR através das suas iniciativas tentam combater problemas bastante peculiares ao tramo urbano nacional, tais como violência urbana, falta de oportunidades para os jovens que ali vivem e baixa auto-estima dessas pessoas. Essa ONG surgiu a partir de um músico, ex participante de narcotráfico, cujo desejo de criar outras oportunidades para os jovens que viviam na favela Vigário Geral sobrepusessem a atratividade do comércio ilegal de drogas. Os freqüentes “arrastões” no início da década de 1990 contribuiu para estigmatização dos moradores da favela, resultando, através da ação policial, no fechamento dos clubes de funk da favela. Foi nesse ambiente que José Junior junto com outros integrantes do movimento negro começou a organizar bailes reggae para reverte as restrições impostas. Esses bailes foram um sucesso, atraindo a atenção da mídia, partidos políticos, movimento feminista, ecologistas e ativistas dos direitos humanos. Foi dessa forma que José percebeu que essas festas poderiam financiar a GCAR. (YÚDICE, 2004) Contanto com apoio nacional e internacional, o AfroReggae promove ações cívicas concretas nas áreas de saúde, na prevenção da AIDS, direitos humanos e educação, principalmente na qualificação para uma gama de setores de serviços e entretenimento (percussão, dança, capoeira). Os jovens formados pelo grupo compõem projetos musicais, de teatro e circo que já foram apresentados em cidades da Europa e Estados Unidos. O GCAR há seis anos que gera mais de seis milhões de reais por ano, desses um milhão vem da comercialização de produtos de vestuário e eventos e emprega mais de cento e setenta 934

profissionais. Além disso, criou o programa Empregabilidade que só em 2010 contou com 1125 pessoas com carteira assinada, sendo 685 delas ex participantes do narcotráfico. (YÚDICE, 2011) O GCAR, portanto, é um exemplo de criatividade de um morador de favela, que consegui transforma - lá em inovações culturais e sociais, criando oportunidades para os jovens no setor criativo, os afastando da criminalidade, dando, dessa forma, uma grande contribuição para a diminuição da violência urbana, criação de empregos e profissionais criativos e sobretudo na elevação na auto-estima dos moradores. Para eles, a música e a representação são atos de cidadania, mecanismos de combate à imagem estigmatizadas que eles possuem na sociedade brasileira, justamente por mostrar uma outra cara dos jovens da favela, intimamente ligados a cultura e inovação. “De fato, a música e a dança popular se tornaram oportunidades de realizar práticas de participação pública (ou de cidadania), que de outra forma, não são verbalizadas”. (YÚDICE, 2004) Trazendo o debate sobre a criatividade para a seara econômica, podemos enxergar possibilidades deveras para a valorização dos produtos desenvolvidos no Brasil. O país tem uma longa história de exportação de produtos primários e intensivos em recursos naturais e/ou trabalho,

as

chamadas

commodities.

Produtos

dessa

categoria

apresentam baixo valor agregado e estão mais vulneráveis em cenários de crises e incertezas. Uma mudança do padrão produtivo nacional pode ser fomentada pela criatividade e inovação agregando valor a nossa produção, internalizando os processos mais rentáveis que são realizados

fora

de

nossas

fronteiras.

Para

isso

é

fundamental

investimento público em educação e P&D. Ainda temos um quadro negativo em relação aos indicadores educacionais, em 2010 9,6%1 dos brasileiros com mais de 15 anos se enquadraram como analfabetos! A globalização, a enorme velocidade de troca de informações, as tecnologias atualizadas a uma velocidade nunca antes vista nos insere em uma nova realidade em que devemos nos adaptar trazendo 935

temas relativos à cultura e tecnologia ao centro das discussões sobre desenvolvimento, e será nesse novo ambiente – em transição - que a economia criativa se mostra como uma alternativa promissora para o desenvolvimento, principalmente para os países em desenvolvimento como o Brasil (REIS, 2007) Esse cenário, portanto, se mostrou como um terreno fértil para economia criativa. Os setores ligados a tecnologia de informação, direitos autorais e patentes chegaram a níveis nunca antes observados, contudo, há um lado negativo nessa história. A globalização também foi a principal preocupação da primeira iniciativa pública relacionada à economia criativa. O governo da Austrália em 1994, ressaltou os perigos da globalização em destruir a rica diversidade cultural do país, trabalhando no sentido de aproveitar as oportunidades do cenário mundial sem destruir o que eram distintivamente deles. A perda de vitalidade dos modelos industriais tipo fordistas provocaram impactos em áreas urbanas industriais. Bairros industriais e regiões

portuárias

passaram

por

mudanças

que

causaram

a

degradação desses espaços em várias cidades. Os setores criativos aparecem como uma alternativa a esse quadro, principalmente aqueles ligados a cultura, que possuem um alto poder em gerar postos de trabalhos. Contudo, vale destacar a atenção que os gestores públicos devem ter para evitar a gentrificação2, já que os moradores mais antigos e geralmente de renda menor são os responsáveis pela vitalidade e identidade do bairro. (REIS, 2011)

CONCLUSÃO O presente trabalho apresentou os conceitos de criatividade e inovação em dois dos principais autores que debatem esse tema, Florida e Schumpeter. Esse esforço foi fundamental para tornar mais

936

clara a definição de economia criativa. A partir daí procuramos inserir esse debate no trama urbana brasileiro. O modelo de ocupação do solo no país gerou peculiaridades nas nossas

cidades,

externalidades,

principalmente reflexo

do

nas

grandes

modelo

de

metrópoles.

Essas

industrialização

aqui

desenvolvido, impactam no meio ambiente, na economia e na sociabilidade na cidade. A criatividade pode ser capaz de desenvolver algumas possibilidades que ajudem a contornar esse quadro, criando inovações culturais, sociais ou tecnológicas. No texto apresentamos duas visões de como a economia criativa pode ser desenvolvida no espaço

urbano

brasileiro.

Apresentamos

as

possibilidades

da

criatividade gerar inovações que possam agregar valor aos nossos produtos, contribuindo, dessa forma para o crescimento econômico, bem como alternativas para bairros industriais e portuários esquecidos e degradados. Porém o destaque foi dado ao processo criativo vindo de baixo, ou seja, de moradores de favela. Não se acredita que uma inovação possa sair apenas de mentes altamente “qualificada”, como mostrou o exemplo do Afroreggae. Esse grupo é um caso de uso da criatividade na geração de inovações culturais e sociais que tanto geram rendimento para os participantes, como elevação da autoestima e possibilidades para os jovens moradores da favela Vigário Geral, ou seja, foram desenvolvidas várias alternativas para a solução de problemas tipicamente urbanos. Esse tipo de trabalho vindo da base (das

camadas

de

menor

rendimento)

pautado

na

cultura

e

sociabilidade deve ser mais incentivado pelos gestores públicos por se mostrarem como ferramentas férteis em produzir inovações que contribuiriam para combater muito dos problemas das grandes cidades brasileiras.

937

Notas 1

www.todospelaeducacao.org.br Expulsão da população de renda mais baixa do bairro devido a elevação do preço do solo urbano. 2

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRITISH COUNCIL. Mapping the creative industries: the UK context. London, 2005. CARNEIRO, Ricardo (org). Os Clássicos da Economia, Vol. 2. São Paulo: Editora Ática, 1997. FLORIDA, Richard. A Ascensão da Classe Criativa. Porto Alegre, RS: L&PM, 2011. FLORIDA, Richard. Who´s your City?: how the creative economy is making where to live the most important decision of your life. New York: Basic Books, 2008. FURTADO, Celso. Análise do Modelo Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1972. REIS, Ana Carla Fonseca. Cidades Criativas: da teoria à prática. São Paulo: SESI SP Editora, 2011. REIS, Ana Carla Fonseca. Economia da cultura e desenvolvimento sustentável: o caleidoscópio da cultura. Barueri, SP: Editora Manole, 2007. SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 1984. SECRETARIA DE ECONOMIA CRIATIVA (Brasil). Plano da Secretaria de Economia Criativa: política, diretrizes e ações, 2011-2014. Ministério da Cultura. Brasília, 2011. www.todospelaeducacao.org.br YÚDICE, George. A Conveniência da Cultura: Usos da Cultura na Era Global. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. YÚDICE, George. Criatividad para Todos. In: MANITO, Félix (org.). Ciudades Creativas, vol. 3. Zaragoza: Fundación Kreanta, 2011. 938

PRETO E POBRE, DUPLAMENTE MARGINAL: ETNOGRAFANDO HOMENS NO CONTEXTO DA PEGAÇÃO EM JOÃO PESSOA Thiago de Lima Oliveira289 Orientadora: Silvana de Souza Nascimento290 Resumo: O presente trabalho constitui um recorte da pesquisa desenvolvida no período de abril a agosto de 2012 com vistas a mapear os espaços e circuitos de homossociabilidade na cidade de João Pessoa. Nesse panorama, a partir de um complexo roteiro de espaços e locais organizados e acionados por homossexuais de estratos sociais diversos, buscamos abordar as relações estabelecidas entre homens que não necessariamente identificam a si mesmos como homossexuais, mas que todavia estabelecem relações homoeróticas com outros na assim chamada prática de “pegação”, ou seja, relações sexuais não românticas e sem finalidades comerciais. Os resultados apontam para concepções sobre masculinidade e “ser macho” vinculadas à fetichização e reprodução de mecanismos de violência simbólica que criam categorias como “cafuçus” e “negões”, conforme se pretende discutir. Palavras-chave: pegação; territorialidade; sexualidades dissidentes; masculinidades.

INTRODUÇÃO As questões que orientam este artigo correspondem à pesquisa de campo realizada sobre e nos espaços de troca sexual não comercial entre homens, os assim chamados “pontos de pegação”, na cidade de João Pessoa (PB). A

etnografia

aqui

apresentada

desenvolveu-se

como

um

desdobramento de uma pesquisa maior que teve como foco os circuitos de sociabilidade que têm como marcador principal as trocas e interações sexuais entre homens na cidade de João Pessoa. A pesquisa abrangeu um conjunto maior de espaços, tais como saunas, cinemas pornôs, praças e outros espaços públicos. Neste trabalho focaremos as trocas estabelecidas nos banheiros de livre acesso onde se desenvolve 289

Estudante de Graduação em Ciências Sociais (UFPB). [email protected]. Graduada em Comunicação Social/Jornalismo (PUC/SP), Ciências Sociais (USP), Mestra em Antropologia Social (USP) e Doutora em Antropologia Social (USP). Professora Efetiva (USP). Pesquisadora do Laboratório do Núcleo de Antropologia Urbana (NAU-USP). 290

939

aquilo que é chamado de “pegação” ou “caça”, ou seja, trocas eróticas e/ou sexuais fortuitas, não românticas e sem exigência ou esperança de algum pagamento pelos serviços sexuais prestados. Nesse

ínterim,

serão

especialmente

abordadas

as

relações

estabelecidas entre frequentadores destes lugares tomando como marcadores sociais da diferença a raça e o estrato social, na criação dos personagens que no campo são chamados de “negão” e “cafuçu”, explorando e desconstruindo mitos e imagens sobre práticas de dominação que se investem nas trocas sexuais ali desenvolvidas.

AS POLÍTICAS DO SEXO, OU POR QUE FALAR DO MARGINAL? A

condição

por

muito

tempo

marginalizada

da

homossexualidade – por mais que ainda a vivenciamos hoje – condicionou as possibilidades de sociabilidade, romance e sexo entre homens a um espaço marginal da vida em sociedade. Sobre as práticas sexuais, torna-se sumário resgatar as ideias do filósofo francês Michel Foucault; em oposição à ideia que impera no senso comum de que a vida sexual está para o domínio do privado, assim como a política está para o domínio do público, o filósofo aponta como estes domínios há tanto tempo estão conciliados, estabelecendo-se como mecanismos de controle e interdição, verdadeiros dispositivos de disciplinamento dos corpos e dos prazeres (FOUCAULT, 1999). Nesta perspectiva, Foucault vê a homossexualidade como uma categoria que surge no século XIX no contexto da patologização e criminalização das práticas sexuais não reprodutivas. O homossexual é elaborado então como um anormal, anormalidade essa que é estabelecida em torno da heterossexualidade. Para Foucault, a sexualidade revela ser um dispositivo importante na micropolítica cotidiana do mundo ocidental, sendo observada na criação de mecanismos de violência e discriminação. Essa percepção 940

está presente também no pensamento da antropóloga americana Gayle Rubin. Em Thinking Sex (1984), Rubin elabora uma crítica ao essencialismo sexual. Por essencialismo sexual, Rubin refere-se à ideia socialmente difundida do sexo como espaço a-social e transhistórico, perpetuando assim uma visão da sexualidade como alheia às questões políticos e sem história: o sexo como sempre foi. Rubin enxerga a sexualidade como um espaço político e sendo assim, segundo ela uma teoria radical do sexo deve identificar, descrever, explicar e denunciar a injustiça erótica e a opressão sexual. Tal teoria necessita de ferramentas conceituais refinadas com as quais se possa compreender o sujeito e mantê-lo visível. Deve produzir descrições ricas da sexualidade na forma como ela existe na sociedade e na história. Requer uma linguagem crítica convincente que possa transmitir a barbárie da perseguição sexual. (RUBIN, 1984, p149)

Assumindo as trocas sexuais desenvolvidas nos pontos de pegação aqui etnografados como (im)posturas (e) marginais, alheias ao discurso explicitamente político, buscamos aqui observar outros espaços da homossociabilidade, em especial, aqueles onde o caráter furtivo das trocas parece esconder seu real potencial de transgressão e de

desafio

às

políticas

de

visibilidade

e

aceitação

da

homossexualidade quem tem início com a Aids no fim dos anos 80. Inspirando-nos em Michel Agier, acreditamos que Qualquer etnografia dos espaços de fora (hors-lieux) – margens, interstícios, espaços de trânsito, lugares precários, acampamentos e campos – implica necessariamente uma antropologia ban-lieu, lugar de confinamento do banido, cujo afastamento político e territorial permite todas as dominações e exclusões (AGIER, 2011, p41)

As práticas aqui descritas encontram-se no domínio do interdito social e político. Demandam uma interdição por parte do social na medida em que tratam do (suposto) domínio privado, onde o sexo pode ser materializado, e o prazer exercido. A interdição política vincula-se a quebra estabelecida entre as relações estabelecidas e as demandas políticas e lutas pelo reconhecimento da igualdade dos homossexuais. A marginalidade ainda é um terceiro elemento a 941

desenvolver a complexa trama sobre a qual transas e flertes nos locais de pegação se desenvolvem. Apesar dos vertiginosos avanços no campo da militância e luta pela

cidadania

dos

segmentos

LGBT

(lésbicas,

gays

bissexuais,

transexuais e travestis) a deriva homossexual não perdeu espaço no escopo das práticas homoeróticas. Isso porque, todavia a assunção de uma identidade gay tenha sido cada vez mais aceitável e aconselhada para uma vida digna, o mito do gay proud tenha se desenvolvido – e ainda se desenvolve- vertiginosamente na cultura ocidental, a homossexualidade ainda é materializada como um estigma, nos termos de Goffman.

Os clima de desconfiança, medo ou simplesmente

inadequação das possibilidades identitárias às práticas e desejos dos sujeitos tem motivado assim a criação de uma diversidade de categorias e formas de classificar os sujeitos que fogem às rédeas da militância. García (2009) ao analisar o percurso de barebackers como potenciais desafiadores da estabilidade política desenvolvida pelo movimento LGBT sugere que a identidade homossexual, antes forjada pela patologização e pela criminalização tem utilizado-se destas mesmas instituições – sanitária e judiciária – para limpar a imagem deteriorada dos gays frente a sociedade entre a década de 1970 e 1990, quando do auge das políticas de controle da AIDS e combate à violência contra homossexuais. Assim como os barebackers de García, os sujeitos que buscamos estudar aqui desenvolvem práticas dissidentes, que desestabilizam as políticas de identidade e de controle social empreendidas não apenas pelo movimento social organizado, mas pelo próprio Estado brasileiro em suas históricas campanhas policiais de limpeza, a exemplo da operação Richetti em São Paulo na década de 1980. Tomando as margens e as práticas mais baixas, buscamos aqui cartografar espaços e sujeitos, dando especial ênfase às marcações de diferenças 942

A CARTOGRAFIA DO TERRITÓRIO Os assim chamados “pontos de pegação” constituem-se em sua maioria como regiões de escape da norma e controle sociais, onde homens que identificam a si mesmo como homossexuais ou não, dispõem-se a trocas eróticas e sexuais com outros, sem que haja necessariamente envolvimento afetivo ou a cobrança por tais serviços, como é o caso da prostituição ou da “michetagem”. As trocas estão baseadas numa economia de consumo imediato, caracterizadas por corpos parcelados, comunicação precária e limitada ao necessário, e a transas de rápidas e sem envolvimento emocional ou afetivo entre os parceiros. Como analisa Teixeira (2009, p264), os locais de pegação constituem-se essencialmente como espaços planejados ou adaptados de maneira informal por seus frequentadores visando relacionamentos marcadamente furtivos. Não tem muito isso de planejar não. Em geral pode acontecer em qualquer lugar. Você tá na rua, numa lanchonete ou num ponto de ônibus daí passa um cara, olha pra você, você sabe que ele “curte”. Então começa o lance, né? Daí pode ser que role ali mesmo... mas claro, tem os lugares que você sabe que sempre vai ter cara afim, sempre vai ser gente querendo fazer pegação. (O., 27 anos, vendedor)

Assim como Teixeira, neste trabalho locais de pegação serão tratados como territórios, conforme o entendimento do termo para Guattari

(1985),

para

quem

os

territórios

constituem-se

como

apropriações feitas por indivíduos ou grupos sociais de determinados espaços físicos, especialmente na lógica das cidades, inscrevendo sobre estes espaços suas próprias subjetividades. Assim, os territórios são, para Guattari, produtos dessas subjetividades inscritas no espaço. Os pontos

de

pegação

constituem-se

e

são

acionados

por

seus

frequentadores como apropriações e adaptações dos lugares públicos e privados onde as lógicas cotidianas ou habituais são reelaboradas, 943

abrindo brechas para um lugar marcadamente deles, um lugar da transgressão, da procura, da troca e do desejo. Esse

processo de

descaracterização do lugar para sua recaracterização por outros usuários é que Guattari vem a chamar de reterritorialização. De repente a praça que em seu aspecto diário e solar é o lugar de brincadeira das crianças, de encontro familiar ou de descanso para as pessoas no trajeto par ao trabalho ou no horário de almoço, durante a noite é recaracterizada por mulheres, michês e travestis que se prostituem ao inscrever sobre aquele espaço o seu local de trabalho, ou pelos usuários e comerciantes de drogas que podem ver ali um lugar para consumir ou vender o ilícito.

CUIDADO, OCUPADO! Em um levantamento apenas dos pontos de trocas eróticas e sexuais entre homens pudemos identificar os seguintes territórios na cidade de João Pessoa: Quadro 1 – Espaços mapeados e catalogados como “pontos de pegação” em João Pessoa Tipo Banheiros

Cinemas Pornôs (cinemões) Saunas Praias

Ruas e outros

Nome Terminal Rodoviário Biblioteca Central UFPB Ginásio CCS – UFPB Espaço Cultural José Lins do Rêgo Hiper Bompreço – Parque Solón de Lucena Shopping Tambiá Cinema do Papai Cinema Aquarius Cine Sex América Solar do Poente Termas Parahyba Farol do Cabo Branco Tambaú, nas imediações do Tropical Hotel Tambaú Bessa (também conhecido como Mag, é o trecho de mais ou menos 1km que se inicia com o término do calçadão e segue pela areia até as imediações do bar Oca) Peixe Elétrico (entre o antigo bar Peixe Elétrico, no fim da praia do Bessa e a divisa com a praia de Intermares) Entorno do estádio Almeidão

944

Como dito acima por um dos colaboradores da pesquisa, os pontos de pegação são estruturas mais ou menos mutáveis sobre a cartografia da cidade. Muitos deles têm sua sobrevivência atrelada à atuação de mecanismos de controle social, tais como a polícia e a própria vizinhança do local, quando há. Durante a pesquisa, em conversas com os frequentadores mais antigos, era comum a menção a locais onde a pegação já não é mais feita, ou é fraca, como, por exemplo, a região do Mercado Central e da praça 1817 no centro da cidade.

Os

locais

aqui

mencionados

foram

registrados

pelos

colaboradores tanto nas pesquisas de campo quanto no pré-campo, em comunidades virtuais e sites de comunicação instantânea. Pode-se perceber um continuum que se esboça dentre as práticas de rua ou em banheiros até espaços mais elaborados e propícios, que por sua vez, também materializam atores distintos. A vida nos banheiros e na rua é mais dura e os frequentadores envolvidos geralmente pertencem a estratos sociais mais baixos da população. São em geral trabalhadores, estudantes, moradores de rua, usuários de drogas e prostitutos que buscam nesses “espaços do masculino” um alívio rápido para as tensões do dia a dia. Além disso, outras

variáveis

estimagtizadas

também

estão

presentes

na

configuração dos frequentadores destes espaços, em geral tidos como espaços mais precários, quando comparados a boates, saunas e cinemas. Os banheiros geralmente são espaços pequenos, fechados e com pouca ventilação. Em formato geralmente estreitos, há apenas uma espaço em formato de L onde, no sentido vertical se distribuem cabines com portas que levam às privadas e no sentido horizontal alguns mictórios. Frente às cabines geralmente há uma grande pia coletiva e um espelho. Sendo espaços públicos, geralmente carecem de profissionais para manutenção, exceto nos shoppings ou em

945

banheiros pagos, e por isso, é frequente vê-los sujos com lama, dado o grande fluxo de pessoas, ou com papéis e lixo espalhados pelo chão. Numa das visitas a campo a um banheiro público localizado no Espaço Cultural José Lins do Rêgo conhecemos “F”. Filho de vendedores ambulantes, F. tem 24 anos e cursa o ensino médio numa escola pública próxima à região do Espaço Cultural, na comunidade São Rafael, localizada no bairro de Castelo Branco na zona sul da capital paraibana. Também trabalha em um pequeno mercado próximo à escola e à sua casa. F. começou a frequentar os banheiros do Espaço Cultural aos 16 anos, quando um amigo o chamou pra ir lá dizendo que lá tinha “umas bichas que ficavam lá pra fazer curtição”. Depois disso, é um frequentador comum, indo ali pelo menos uma vez por mês, em geral, apesar de em tempos e tempos evitar ir “pra não ficar visado”. Diz que apesar de gostar de lá, porque é perto e sempre tem gente, o banheiro é um espaço perigoso porque “tem muito marginalzinho que leva você pra cabine e pode bater e roubar suas coisas”. A pegação em banheiros, de modo muito específico, manifestase como uma prática onde o marcador da multiterritorialidade torna-se especialmente relevante e importante. Conforme observamos, sendo espaços públicos são geralmente frequentados por uma variável muito grande de pessoas. Nem todos que estão ou passam por lá tem os mesmos propósitos dos nossos colaboradores. Neste sentido, mais que propósitos em comuns, há jogos e códigos, signos partilhados e exercitados que permitem com que um homem reconheça no outro o desejo ou não de participar das trocas, não necessariamente com ele, mas com qualquer outro que também esteja disposto. Nem todo cara que aparece aqui tá afim de curtir. Sei lá, tem gente que só vai no banheiro mesmo pra mijar ou fazer outra coisa. É um banheiro, né? Agora, você sabe quando ele olha pra você, quando pega no pau e fica mexendo. O jeito, a roupa... a gente sabe. Dá pra perceber quando pode rolar ou quando o cara curte. (F.)

946

Ainda assim, constrangimentos são possíveis e acontecem. É F. quem nos conta uma de suas experiências, dessa vez em outro banheiro da cidade, o banheiro localizado nos fundos do mercado Hiper Bompreço, no centro da capital: Tava lá, de boa, e um cara bem macho, mas passivo chegou e tal. Eu tava lavando a mão daí fiquei fazendo pose e mais. O pau já duro na bermuda e ele olhando. Fui pra cabine e coloquei pra fora, mas deixei a porta mais ou menos aberta. Só tinha a gente. Daí o cara entrou e começou a passar a mão no meu pau. Eu ia baixando a calça e ele botando a boca quando entra um cara e por azar abre a cabine que a gente ainda tava. Porra! Acho que ele foi embora na hora. Aí acabou o tesão e a gente foi embora sem fazer nada. Vai que o cara vai chamar alguém, policia, guarda, sei lá...

Como dito anteriormente, esse controle e vigilância a que os espaços estão submetidos é uma tônica presente e constante, fazendo parte do jogo de perversão e prazer no qual a prática da pegação se insere. Sobre a pegação neste contexto opera uma dupla variação. Todavia seja o espaço em que os homens são geralmente de estrato social mais baixo, esse não é um dado completo em si. A depender do status do lugar, o público de rua varia significativamente. É assim que observamos e repetem nossos colaboradores, os banheiros do centro concentram o segmento mais baixo e perigoso dos homens, enquanto na região da Epitácio o estrato social vá subir um pouco mais, aparecendo a figura do homem mais velho, bem sucedido em busca de fetiches por tipos que se repetem bastante por lá, os negros e os “cafuçus”.

VARIÁVEIS EM JOGO Os negros, apesar de maioria nos banheiros, são temidos e estigmatizados pelos frequentadores. Sobre eles recaem a suspeita de

947

um assalto inesperado, da violência. Alguns relatos ouvidos durante as primeiras observações, não apenas nos banheiros, mas nos demais locais

em

que

pudemos

desenvolver

a

pesquisa,

ouvimos

repetidamente a história de pessoas que desistem de ficar ali enquanto um negro suspeito estivesse no banheiro. O negro suspeito geralmente é descrito como aquele mal trajado, em geral com os pés sujos, símbolo de que esteve por muito tempo na rua, talvez sendo morador ou usuário de drogas ou fugitivo. Mesmo quando bem trajados, nos banheiros as transações com os negros costumam ser mais demoradas: “demora a chegar num negão. Tem que sentir firmeza, saber que não é ladrão”. D. um jovem de 21 anos, negro, corpulento e de olhos claros, num tom de verde acetinado nos conta, certa vez, que ao estar no banheiro do Espaço Cultural, depois de quase 15 minutos sem que ninguém se aproximasse dele, apareceu um jovem branco, aparentemente na sua faixa etária e um pouco gordo. Após as trocas de olhares e conferir a “ferramenta” de D., o rapaz o chamou pra que fossem pra outro banheiro, pouco frequentado, mas ainda dentro do Espaço. Chegando lá, todas as cabines vazias, o rapaz entra em uma delas e fecha a porta levemente. D. permanece do lado de fora sem entender. O rapaz diz que está sem as calças e pede pra que nosso colaborador tente arrombar a porta, sem fazer barulho, pra não atrair a atenção de eventuais seguranças ou pessoas próximas. Não entendendo o que estava acontecendo, D. pergunta o que está acontecendo, quando o seu parceiro responde: “sempre tive tezão em ser assaltado e estuprado por um negão”. A história que nos narra D. é um exemplo da estigmatização e simultânea fetichização que o marcador de raça exerce sobre os frequentadores dos locais que estudamos. Para muitos, não ser negro é um critério de garantia de parceiros, daí as inúmeras denominações para os tons de pele que buscam fugir à trágica afirmação de se ser negro. A matiz se esboça de forma dissimulada, estendendo-se desde o moreno escuro, passando pelo claro, latino, moreno jambo, 948

bronzeado até as diversas matizes de branco.

O fluxo ascendente

nesta parábola cor x status está no sentido do branqueamento. O tipo branco, loiro e de olhos claros é absolutamente desejado, sendo disputado entre todos. Ainda assim, esse tipo é pouco comum. Recorrentes são os embustes desse tipo europeu que os nativos chamam de alemão ou americano, em geral com homens de cabelos descoloridos, sejam totalmente loiros, o que é mais raro, seja com a aplicação de mechas claras. Esse recurso, todavia é bem característico das práticas desenvolvidas nos banheiros, onde os sujeitos podem ver uns aos outros por completo com ajuda da iluminação. Ainda sobre os negros, exige-se dele uma postura hipermasculina e em geral que seja bem dotado, ou seja, que tem a genitália avantajada e erétil. Os homossexuais negros efeminados, ou com trejeitos são rechaçados e ridicularizados. São chamados de “viado podre”, “qüem-qüem” e outras nomenclaturas que remetem a uma posição inferior e debochada. O negro desejável passa por um processo de branqueamento. L., 32 anos, casado, pai de 2 filhos, diz que curte ser exclusivamente passivo, mas que nem por isso se reconhece como gay. Também diz que não curte homens, a não ser que... se for aquele tipo, cabelo curtinho, nariz bonito, um preto mais clarinho e tal... meio forte, tipo macho mesmo! E claro, roludo... aí a gente dá. Mas assim é difícil, o que mais aparece são esses viadinhos de escola, que sobem a favela pro Espaço pra fingir que é homem, mas nada... [deboche]

Tal constatação é bem semelhante à observada por Perlongher (2008) sobre os michês negros. Em geral a animalidade e suas possíveis ou imaginadas relações com a potência, virilidade e fertilidade são características comuns nas exotização do corpo negro. Estimagtizado socialmente, fetichizado sexualmente, espera-se do homossexual negro uma disposição ao sexo contínua e inabalável, uma aparente dominação deste, que na verdade, manifesta-se como reprodução dos

949

habituais esquemas de subalternização, onde o negro é um escravo sexual, a mercê dos desejos do seu submisso. O tipo cafuçu representa uma peculiaridade dos locais abertos onde o estrato social dos frequentadores é mais baixo. Verdadeiro fetiche para alguns, reproduz alguns dos estimas dos negros, por vezes sendo a negritude uma das marcas do cafuçu. Em João Pessoa o termo cafuçu faz alusão ao tipo de personalidade normalmente exagerada, que tem sua representação máxima no bloco de pré-carnaval homônimo, onde a vaidade é reelaborada segundo as normas do excesso e do ridículo risível. Cabelos emaranhados, dentes sujos, perfumes baratos, celulares enormes, pentes e espelhos domésticos usados como portáteis, além da irreverência popularesca do falar alto, em um clima de conversa de porta entre vizinhas. Na gramática sexual, o tipo cafuçu é representado em geral por homens pardos ou negros, frequentemente magros com um certo desalinho no código das roupas. A

beleza

masculinidade

não que

é

um

é

em

atributo

exigido,

suma

ao

elaborada

contrário como

da uma

hipermasculinidade. Frequentemente o cafuçu é um trabalhador que tem a pegação como uma distração após as jornadas longas e cansativas. Nos banheiros da região do centro, como o da rodoviária e do supermercado HiperBompreço em geral são engraxates, flanelinhas, pedintes e outro miseráveis que ganham a vida oferecendo seus serviços a usuários das pequenas lanchonetes que se distribuem pelo parque. Assim como na fantasia do negro devorador, selvagem e bem dotado, são estabelecido para o cafuçu as mesmas expectativas quanto ao desempenho sexual. Imagina-se o cafuçu como um homem bruto, truculento, insaciável e que “usa” os homossexuais apenas como fuga

para

as

tensões

familiares,

ou

para

divertir-se.

Alguns

colaboradores repetem “a gente sabe, com cafuçu é só umazinha”. A violência

também

é

um

elemento

a

afastar

a

maioria

dos

frequentadores dos cafuçus, em geral tido como violentos e potenciais marginais. Poucas pessoas aventuram-se e entrar nas cabines ou ficar a 950

sós com um tipo destes nos banheiros. Nos últimos anos, nos conta um informante, com o crescimento da marginalidade juvenil e o surgimento das primeiras grandes gangues delinquentes conhecidas na capital paraibana como a Okaida e Estados Unidos¹, a atenção no contato com os cafuçus tem sido redobrada, afinal, “nunca se sabe quando uma pessoa qualquer é bandido, né?”. Tanto no desejo orientado ao negro quanto ao cafuçu observamos

uma

peculiaridade,

uma

riqueza

simbólica

que

a

diferenciam de outras trocas desenvolvidas nos meios de pegação entre outros tipos frequentantes. A aparente imagem de transgressão, de novas formas de dominação são sublimadas ao olhar atento que revela uma sutileza dessas relações. Apesar do esquema tradicional relacionar o penetrador/dominador como o masculino, o homem, e o penetrado/submisso com o feminino e a mulher (GREGORI, 2008), parece haver um deslocamento, onde ser sexualmente ativo não implica dominação ou violência de gênero nos seus formatos tradicionais. A utilização desse outro fetichizado, ao nosso ver, representaria mais uma forma de dominação, onde os marcadores de raça e estrato social são ativados como forma de objetificação do outro. Assim, negro e cafuçu não seriam dominadores, mas antes, objetos de desejo, aparatos sexuais inferiores submetidos ao desejo dominador, tradicionalmente relacionado ao masculino, branco, de estrato social superior, mas que aqui é colocado como sexualmente passivo, penetrado ou penetrável.

FLERTES E TRANSAS O ritual de paquera, ou cortejo, nos banheiros reproduz muitos esquemas de trocas sexuais furtivas, a exemplo da prostituição. Exige o conhecimento dos signos, a iniciação nos códigos e gestos que compõem a paquera: olhar fixamente o parceiro desejado, comunicar951

se de forma rápida, apalpar a genitália ou expô-la de forma convidativa. Em geral a retribuição é marcada pela aproximação ou pela troca dos mesmos gestos: retribuição de olhares e exposição, que além da transa por si, pode acabar numa masturbação recíproca. De

forma

geral

a

indumentária

desempenha

um

papel

importante no reconhecimento dos parceiros. Por indumentária os nativos entendem não um padrão de roupa, mas a forma de utilizar o corpo no jogo de sedução. Roupas mais ou menos justas em tecidos leves são mais comuns. O código das cores varia de acordo com a prédisposição ao coito. Cores mais chamativas para os sexualmente passivos,

e

neutras

para

os

ativos.

Roupas

que

identifiquem

procedência, como fardas e uniformes, também são evitadas, razão pelas quais muitos chegam aos banheiros como mochilas e sacolas para troca de roupa. Estar limpo também é um marcador importante das trocas. Apesar do aspecto de trocas de baixo nível que se processam nesses lugares em oposição a outros territórios de pegação, ou mesmo banheiros com formatos e públicos diferentes (como os banheiros

localizados

nos

shoppings),

o

aparentar

estar

limpo

(fisicamente mas também moralmente, ou seja, aparentar não está alcoolizado ou sob efeito de drogas) é um elemento que indica a possibilidade de riscos reduzidos, facilitando assim a possibilidade da troca erótica e ou sexual. O jogo de sedução inicia-se com a troca de olhares. É no olhar que são identificáveis não apenas as potencialidades do parceiro, mas também são negociadas as condições para a relação e potenciais riscos que farão com que a transa aconteça ou não. Durante o flerte percebemos que o corpo é visto de forma parcelada: genitálias e abdômen desejável, ou seja, magros e sarados ocupam uma posição de prestígio na hierarquia dos desejos. As nádegas são outra importante mercadoria nas trocas dessa economia do sexo. Todavia, diferente do pênis, que é exposto e negociado como instrumento de prazer tanto quanto maior aparentar ser, às nádegas cabe o jogo do mostrar sem 952

expor. Aos parceiros sexualmente passivos, ou dispostos a serem penetrados é comum um jogo de insinuação, um misto de atrevimento e discrição. Quando a gente sabe que o boy pode entrar na fita a gente mexe pra lá e pra cá, as vezes finge que caiu alguma coisa... só pra ficar atiçando. Mas não pode mostrar. Mostrar é coisa de travesti e viado baixo. Quando mais discreto, quanto mais na sua mais fácil de catar (J., 26 anos).

Consoante a masculinidade é exposta e desejável, outro aparato das

trocas,

seja

nas

relações

presenciais,

sejam

aquelas

que

acontecem por intermédio de plataformas virtuais é o que se chama “ser discreto”. Por ser discreto entendemos a possibilidade de passar-se por não ser gay, a habilidade de não “dar pinta”, ou seja, de investir as práticas sexuais homoeróticas de uma verniz que possibilidade a sua invisibilidade ou ar de segredo. Observamos no campo que essa é uma característica ou competência compensatória tendo em vista a masculinidade ser um atributo constantemente vinculado aos machos, aos “comedores”. A “paquera” homossexual constitui, no fundamental, uma estratégia de procura de parceiro sexual, adaptada às condições históricas de marginalização e clandestinidade dos contatos homossexuais. (PERLONGER: 2008. p.166)

Como aponta Perlongher em seguida, essa necessidade de segredo, de ser (ou estar?) enrustido desempenhará um papel decisivo nas relações estabelecidas. Não raramente vê-se a descrição de uma pessoa

“discreta”

como

aquele

que

mantém

não

apenas

a

“neutralidade” dos seus hábitos e posturas, mas também como aquele que tem um modo de vida tradicional, comumente relacionado à aspectos da heterossexualidade, como o casamento e a paternidade, o desempenho de trabalhos e funções relacionados ao masculino, como cargos de administração ou “trabalho pesado”, ou, no caso dos

953

mais jovens, ter uma namorada e morar na casa dos pais sem que haja “desconfianças”. Nesse aspecto, observamos que há um fluxo bem maior de parceiros sexualmente passivos do que ativos. As carreiras sexuais dos passivos, sejam eles enrustidos, discretos ou pintosos291 são menores. Estar frequentemente nesses lugares implica ter um corpo menos valorizado na economia das trocas. Ser visado é um atributo não só negativo, como também uma maior de exposição ao risco. O ar de novato no pedaço não apenas justifica um maior apreço ao atenção recebido pelos parceiros potenciais, como também faz com que a gente fique ligado. Se aparecer boy, marginal e tal... ou de repente alguém conhecido. É bom ficar perto de casa nas áreas, mas também pode ser perigoso. A gente nunca sabe quem pode aparecer.

A carreira sexual dos ativos, embora também submetida e esse perigo de evitar ser visado no banheiro, aparente ser bem maior. Não raramente pode-se ver no intervalo de duas semanas o mesmo personagem duas ou três vezes, o que é uma frequência considerável. A linguagem se manifesta de forma reduzida e precária, sendo o falar substituído por um jogo de símbolos e sinais de reconhecimento e convite. Por meio dos gestos como um convidativo balançar de cabeça, ou um olhar intimador os parceiros se reconhecem e iniciam o processo de aproximação. Feita a aproximação, os contatos iniciam-se ao mictório ou nas cabinas. Masturbação e o acariciamento das genitálias ou da bunda são práticas comuns e recomendáveis antes do início das trocas. As transas são centradas na genitália, ou seja, esta parte é separada do conjunto do corpo. Pênis e ânus, ou Pênis e boca 291

Por enrustidos entende-se os adeptos de práticas homossexuais, tenham concretizado-as ou não, que não se entendem ou assumem-se enquanto homossexuais. Já o discreto passa pelo homossexual que desenvolve suas práticas sexuais com outros parceiros do mesmo sexo sem tornar sua sexualidade ou assunção da homossexualidade pública; sobre este é possível também que ele passe por heterossexual. O pintoso está num outro extremo dentro do campo das homossexualidades, caracterizado por aquele que se relaciona sexualmente com parceiros do mesmo sexo, e incorpora trejeitos e posturas do sexo oposto como um marcador de sua orientação sexual.

954

parecem compor um conjunto elaborado e suficiente para dar conta das experiências sexuais. Não há espaço para o sentimento, ou melhor dizendo, este não é um pré-requisito ou um fim esperado (e muitas vezes desejado) para as relações. Conforme Hocquenghem (1980), A sexualidade bicha, os encontros nos parques e jardins, as boates, as praias (...) tudo isso não é um substituto, uma busca desesperada que objetiva preencher um vazio. Não somos instáveis, mas móveis. Não temos vontade de lançar âncora. Vamos derivar por aí (HOCQUENGHEM: 1980, p.101)

Este não querer ancorar-se, o anseio pela instabilidade é uma característica

comum

dos

frequentadores

dos

locais

que

aqui

abordamos. Ao contrário do senso comum normatizador e constante na “comunidade gay”, este não é um atributo negativo, uma falta ou vazio de amor romântico. Antes reflete um fluxo contingente do desejo, da libido. Por fim, na economia das trocas, onde o romance é apenas um instrumento externo, alheio ao processo em si, os desfechos das trocas são marcados pela mesma fugacidade que determina seu início. Terminados os despojos é comum a higiene e o afastamento. Eventualmente telefones são trocados, mas nesses ambientes essa é cada vez mais uma prática rara e desaconselhada, tendo em vista a preservação da segurança individual.

FECHANDO A PORTA, ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ANTES DE PARTIR Nas linhas acima buscamos apresentar alguns elementos de práticas de sociabilidade que têm o sexo não romântico e não comercial como meio e fim. Dentro da dinâmica dos assim chamados pontos de pegação, buscamos evidenciar práticas e questões relacionadas à marcadores sociais da diferença e à forma como as trocas são estabelecidas, ativando e negociando categorias no campo do gênero, da condição social e dos corpos. 955

O caráter furtivo e não romântico dessas trocas eróticas e sexuais desafia de forma sínica e pervertida os embates de anos de militância em

prol

da

cidadania

gay,

e

que

por

sua

vez,

acabaram

desenvolvendo uma imagem normatizada da(s) homossexualidade(s) como embuste reverso da heterossexualidade. A

pesquisa

aqui

desenvolvida,

apesar

dos

resultados

apresentados ainda configura-se como um experimento de escrita. Acreditamos haver uma potencialidade de pontos em abertos que precisam ser melhor aprimorados, investigados e descritos na dinâmica que buscamos entender.

Consoante a postura de Geertz (1989),

acreditamos que quanto mais densa a descrição, mais profundos tendem a ser os problemas e assim, mais exigindo do etnógrafo esforço para aproximar-se deles, sem contudo, atingi-los como um todo.

NOTAS Okaida e Estados Unidos são, na micropolítica do tráfico em João Pessoa, gangues rivais que disputam os territórios de vendas de drogas e seus consumidores nas comunidades e cracolândias da cidade. Muitos jovens, mesmo não pertencendo a tais grupos arvoram-se sê-lo, como isso lhes oferecesse algum destaque social entre outros. Nesse ínterim, apropriam-se dos códigos e gestos conhecidos e reconhecíveis como pertencentes a cada uma destes grupos delinquentes, como o uso de presilhas coloridas no prendedor dos bonés, que segundo as cores e posições, representam posições e atribuições dentro da gangue, ou mesmo o código das tatuagens. Os nomes das gangues fazem referência ao grupo terrorista iraquano Al Qaeda e ao governo estadunidense, na moderna guerra ao terror iniciada com o atentado terrorista ao World Trade Center, em setembro de 2001. 1

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGIER, Michel. Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos. São Paulo: Terceiro Nome, 2011. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I – a vontade de saber. 13° ed. Tradução de Maria Theresa da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. São Paulo: Graal, 1999.

956

GARCÍA, Estebán Andrés. Políticas e Prazeres do fluídos masculinos: barebacking, esportes de risco e terrorismo biológico. In DÍAS-BENÍTES, Maria Elvira; FÍGARI, Carlos Eduardo. (Orgs) Prazeres Dissidentes. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. P537-566. GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. São Paulo: LTC, 1989. GUATTARI, Félix. Espaço e poder: a criação do território na cidade. Espaço e Debates, n. 16. São Paulo: 1985 p 109-120. GIDDENS, Anthony. La Transformación de la intimidad: sexualidad, amor y erotismo en las sociedades modernas. 2°ed. Madrid: Catedra/Teorema, 1992. GOFFMAN, Erwin. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Tradução de Mathias Lambert. São Paulo: Zahar, 1980. GREGORI, Maria Filomena. Limites da sexualidade: erotismo, gênero e violência. Revista de Antropologia. Vl. 51, n.2. São Paulo: USP, 2008. P. 576-606. RUBIN, Gayle. Pensando o sexo: notas para uma teoria radical da sexualidade. Tradução de Bruno Martins Fernandes. Disponível em acesso em 24-jul-2012. PERLONGER, Néstor. O Negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo: Perseu Abramo, 2008. TEIXEIRA, Alexandre Eustáquio. Discursos e representações sobre os territórios de “pegação” em Belo Horizonte. DÍAS-BENÍTES, Maria Elvira; FÍGARI, Carlos Eduardo. (Orgs) Prazeres Dissidentes. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. P263-288.

957

DESEJOS POR “MACHOS”, DESDE QUE SEJAM “BRANCOS”PROSTITUIÇÃO, MASCULINIDADE E “RAÇA” NAS SAUNAS DE MICHÊ EM SÃO PAULO Élcio Nogueira dos Santos292

Resumo: Este texto discute a relação entre “raça293”, desejo e masculinidades na prostituição entre homens em espaços fechados na cidade de São Paulo, mais especificamente as saunas de michê. Discute-se a categoria “cor” como produtora de subjetividades e, do desejo ou não, por clientes e michês na prostituição viril. Busca as intersecções entre “cor”, gênero e sexualidades como marcadores sociais. Palavras chave: homossexualidade, gênero, desejo, masculinidades, “cor”.

1. NOITES QUENTES Em noites de intenso movimento, quando olhamos os salões principais das saunas temos a impressão de que as barreiras de classe, gênero e geração foram rompidas. São visíveis os vários casais compostos de homens mais velhos, com mais de 45 anos e rapazes com idades que variam entre 18 e 25 anos. No entanto, um olhar mais atento nos mostra que, se alguns marcadores sociais são superados, ao menos por uma noite, iremos notar que os casais que compõe este espaço são de homens “brancos”, ou de pele mais clara. Em uma destas noites quentes e de intenso movimento notei que havia quatro clientes “negros” sentados em uma mesa, bem em frente a minha. Estes quatro clientes permaneciam sós, sem o assédio de nenhum boy. Cena estranha, especialmente em se tratando da 292

Graduado em Psicologia (PUC/SP), Mestre em Psicologia Social (PUC/SP) e Doutor em Ciências Sociais (PUC/SP). Trabalha com gênero e sexualidade. Especialista em crescimento e desenvolvimento, especialmente no período que compreende a adolescência, com ênfase em corporalidades, sexualidades, gênero.. 293 Seguindo Moutinho (2003,p.31) “cor” e “raça”: “são classificações existentes na sociedade brasileira”. Para ela tanto “cor” como “raça” são categorias classificatórias, portanto “são construções locais, históricas e culturalmente determinadas”. Seguindo Moutinho (2003) também neste texto as categorias “cor” e “raça” serão usadas entre aspas.

958

Apolo294. Nesta sauna, os boys, diferentemente da Rainbow, chegam às mesas onde estão os clientes, buscam o programa, enfim, não esperam o chamado de um cliente. Observei a cena por duas horas e, neste espaço de tempo, nenhum boy chegou até a mesa destes clientes, assim como nenhum destes clientes conseguiram abordar qualquer boy. Tal fato chamou minha atenção para a “cor” como forte marcador social de diferenças nos espaços das saunas.

2. PRETO NO BRANCO Passei a observar nas noites subsequentes a presença de clientes e boys “pretos” comparando com a presença de boys e clientes “brancos”. Na Apolo a presença de clientes “pretos” é minoritária quando comparados aos clientes “brancos”, mas nota-se a presença destes especialmente em dias de festa; já na Rainbow é bastante rara a presença destes clientes, mesmo em noites de intenso movimento. Um cliente “preto” é exceção: ele circula livremente nas duas saunas e, pelas declarações dos boys feitas a mim, é querido por uns, pouco gostado por outros295. Os michês de pele mais escura são frequentes na Apolo, circulam livremente entre os clientes e alguns possuem clientes fixos. No entanto, na Rainbow boys de tons mais escuros de pele são pouco comuns. A maioria dos profissionais do sexo desta sauna possuem peles mais claras. 294

Para a tese de doutorado foram pesquisadas três saunas: A Apolo, Lovelly e Rainbow. Esta escolha se deu por serem as saunas de michê mais frequentadas em São Paulo e pela sua tradição no mercado do sexo. A Lovely, fechada durante a pesquisa, foi inaugurada em 1975, tendo fechado suas portas em 2009, durante a pesquisa. A Apolo foi inaugurada em 1980, estando em franca atividade até o momento da elaboração deste texto. A Rainbow, inaugurada em 1992, também está, até o momento, em franca atividade. Estes nomes, assim como outros que irão surgir ao longo deste texto são fictícios, isto se deve como forma de proteção dos frequentadores das saunas. Para a elaboração deste texto utilizarei apenas os dados da Apolo e Rainbow. Para uma descrição mais detalhada das saunas e suas atividades, ver Santos (2012). 295 Este cliente, apesar de ter sido sempre gentil e ter me dado algumas indicações para entrevistas, entre boys e clientes, não quis gravar nenhuma entrevista e nem permitiu que eu publicasse suas falas fora do gravador.

959

Estas observações apontam para a “cor” da pele de boys e clientes como um forte diferenciador dentro destes espaços do mercado do sexo. A “cor” já havia sido natada como diferenciador social na prostituição feminina e masculina por Bernstein (2007) e Perlongher (2008), ambos apontando para uma forte rejeição entre as/os profissionais do sexo, por clientes de pele mais escura. Ou seja, clientes “pretos” são pouco apreciados por estes profissionais. Tal situação também se repete nas saunas. Clientes com pele escura são rejeitados pelos boys. No entanto, as respostas dos clientes variaram. Alguns afirmaram não se importar com a cor do boy, outros dizem que “preferem um moreno, porque é mais quente na cama”, já outros afirmam

preferirem

michês

brancos

e

alegam

que

não

são

preconceituosos, mas que se trata de: “uma questão de gosto, subjetiva”. É importante vermos algumas falas dos boys sobre este ponto. Roberto, por exemplo, em uma fala contraditória, em que aponta para os lábios “mais carnudos” de pessoas pretas como sedutores, na mesma fala nos diz que tem “fissura” por homens claros, “da sua cor (do pesquisador) para baixo”; e como tentativa de justificar sua preferencia nos diz que tem ascendência “negra”. Marcos, de modo explícito fala que: “‘negro’ humilha”, diz preferir brancos porque sua pele, mais escura, em cima da pele branca do cliente, faz um contraste que para ele é altamente excitante. E Marcos traz à baila outro ponto importante, a sua cor e a relação estabelecida entre a virilidade e membro sexual avantajado. Segundo ele: “Quem não vai querer um mulatão como eu? Corpo todo definido, 20 cm de pau, 11 de grossura, todo duro? Todo mundo quer”. Outros boys dizem que “não tem nada contra, se eu puder evitar eu evito (clientes “pretos”), mas se não der, pagando não faz diferença”. As respostas foram, em sua maioria, preconceituosas, mesmo quando alegavam supostas vantagens sexuais de pessoas 960

“pretas”. Em outras palavras, esta suposta fogosidade e vantagem do tamanho do membro sexual de pessoas “pretas” com relação a pessoas “brancas”, acabam por trazer o estereótipo que atribui a pessoas de pele mais escura um excesso da potência sexual que lhes é outorgado por teorias racistas que aproximam pessoas “pretas” de níveis não humanos, recolocando-os assim em posições inferiores nas relações de poder entre as “raças”. Mas traz também as representações das masculinidades e as relações de poder entre boys e entre boys e clientes, existentes nas saunas. O tamanho do pênis, exibido livremente pelos boys é associado a potencia sexual e virilidade dos profissionais do sexo. Ou seja, o membro “é” potente em função de seu tamanho e diâmetro; esta suposta potência aponta para as relações hierárquicas existentes entre as masculinidades e entre boys e boys e clientes. Vejamos o objeto de desejo e as relações de poder existentes nestes locais do mercado do sexo

entre

seus

frequentadores

através

das

performances

das

masculinidades: o “macho” desejado. Gostaria, neste ponto de afirmar que, também os boys buscam um “macho” em suas relações com os clientes e com outros boys. 3. “MACHOS”: OS BUSCADOS Em seu prefácio ao O negócio do michê Miskolci e Pelúcio (2008) afirmam que, o que mobiliza a prostituição rueira entre homens em São Paulo é o desejo por um “macho” ou pelo que é considerado socialmente como masculino. Pode-se afirmar o mesmo na troca de sexo por dinheiro por dinheiro nas saunas. O desejo pelo masculino, não por qualquer performance de masculinidade, mas sim pelo que pode ser chamado de masculino tradicional, ou seja, discreto em seus trajes, em sua forma de falar e de se comportar.

961

Como descreve Perlongher (2008), nota-se uma mudança significativa do comportamento da população que se intitula como homossexual em São Paulo no fim da década de 1970. Mudam-se os trajes e as performances de homens homossexuais indo de um comportamento

tido

como

afeminado,

para

uma

“hiper-

masculinização” (Braz, 2010), tanto nos trajes, que passam a ser de couro exibindo tórax e bíceps e no corpo surgem bigodes, pelos do peito em destaque, mudam-se maneiras de expressão corporal, incluindo voz e gestual. As agendas pessoais passam a contar com as academias para melhor tornear e moldar estes “novos” corpos masculinos. Enfim, a busca de uma masculinidade socialmente aceita que legitimará

ou,

que

ao

menos

irá

facilitar

a

aceitação

da

homossexualidade masculina dos anos 1980 em diante para a sociedade mais ampla. A partir destas observações, pode-se afirmar que, desde então, uma parcela da população homossexual reforçará e sugiro, ainda reforça os padrões binários de gênero o que acaba por excluir, ou por às margens, outras manifestações da homossexualidade. No centro o “macho”, nas bordas fronteiriças outros homossexuais. Bem, um homem “hiper masculino”, com trajes acentuados ou de couro não é bem visto dentro das saunas. Ao contrário, como me confidenciaram alguns clientes e boys ao longo da etnografia, um cliente ou um michê com roupas de couro, ou outros trajes que possam lembrar uma masculinidade mais acentuada é tido como um “gay que está tentando ser homem” (Fausto, cliente), ou como disse Marcelo, boy: “Ah! Isso é uma bicha que finge que não está dando pinta”. Assim, esse “macho” não é um “macho” “qualquer”; é um homem com roupas tradicionais e que faz a performance do homem com roupas clássicas e discrição nos seus gestos296.

296

Chamo aqui de “trajes tradicionais” ou “discretos” calças jeans, camisetas polo sem estampas chamativas e tênis ou ainda calça de algodão ou linho, camisa sem estampas ou cores mais fortes e sapatos, isto para os clientes.

962

Também para os boys tais trajes não são bem aceitos nas saunas. Os comentários são os mesmos feitos aos clientes. Os trajes que os michês utilizam no interior da sauna, quando não vestem apenas uma toalha em que sobressaia o pênis e as nádegas, são cuecas da marca Red Noses, Lupo, ou bermudas deixando o peito nu. Como disse Carlos, michê, em sua entrevista, “às vezes a bermuda atrai mais o cliente, fica mais misterioso”. Mas a performance também é a de homens que buscam deixar clara a sua masculinidade sem remeter a possíveis identidades ou estilos de vida homossexual. No entanto, mais desvalorizado que um homem tido como “hipermasculino” é um homem que apresente trejeitos tidos socialmente como afeminados. Este cliente ou michê é francamente deixado “de lado” por clientes e profissionais do sexo. São vários os comentários sobre clientes que são “bichinhas demais” ou boys que são “verdadeiras mulherezinhas” (Fausto, cliente) e isto, ainda segundo Fausto: “acaba com o tesão”. Em outras palavras, este tipo de manifestação do homoerotismo é posto às margens do grupo mais amplo. Percebe-se

então

a

hierarquia

existente

entre

as

várias

manifestações das chamadas masculinidades. Conforme Cornwall e Lindisfarne (1996) as masculinidades são históricas, dependentes da cultura, relacionais e discursivamente construídas. Para as autoras, o modelo hegemônico das masculinidades não se aplica como modelo universal, posto que em função das diferentes hierarquias existentes entre as representações das masculinidades, sua localização histórica e social e relacional, cada grupo, pode-se sugerir, teria modelos diferentes de hegemonia. Neste sentido, a masculinidade hegemônica nas saunas de michê em São Paulo é o homem que sabe ser discreto, se veste de modo clássico e, especialmente, não dá “pinta” de homossexual, tanto nos trejeitos corporais como na valorização da hiper- masculinidade. Assim, pode-se afirmar que o cliente e o boy valorizados nas saunas são aqueles

que

fazem

uma

performance 963

(Butler,

2003,2005)

da

masculinidade socialmente aceita. Sem dúvida que, entre os boys, a este modelo deve ser acrescido o tamanho do pênis e sua potência para ereção. É interessante notar neste ponto que, nas saunas, importa pouco o modelo “ativo”/“passivo” como marcador de masculinidades ou ainda de hierarquias entre as masculinidades. Tal situação se dá, segundo o relato dos boys em função do mercado, ou seja, segundo Marcelo, boy, um rapaz que troca sexo por dinheiro nas saunas enquanto for considerado como novidade naquela sauna, escolhe clientes e posições durante o ato sexual, mas na medida em que vai ficando conhecido dos frequentadores da sauna, seu poder de negociação vai diminuindo e ele começa a fazer sexo como “passivo”. Em outras palavras, o mercado dita as posições do ato sexual. Mas não só o mercado. Vários michês me relataram ter prazer como “passivo” durante o ato sexual. Carlos, que se declara heterossexual e ter uma namorada, relata preferir ser “ativo”, mas que tem muito prazer com quatro clientes que ele chama de especiais, como “passivo” durante o ato. Lucas declara preferir ser “passivo” com os clientes e os boys que ele namora. Marcos traz um ponto importante: “não dá pra ficar de pau duro o tempo todo, as vezes tem que fazer ‘passivo’, desde que o cliente seja ‘macho’, fazer ‘passivo’ com uma bichinha não dá”. Entre os clientes alguns optam por serem “passivos” e outros por serem “ativos”, mas seja qual for a preferência o parceiro tem de demonstrar ser masculino. Em uma frase: tem que ser “macho”. No entanto, apesar da relativização do modelo “ativo”/“passivo” o membro ereto, indicador de desejo pelo sexo, segundo os frequentadores

das

saunas

de

michê

é

bastante

importante,

especialmente para os clientes, mas não só para eles. Como me disse Lucas, boy, em seu depoimento, ele e outro boy amigo seu foram contratados para fazer “passivo” com um cliente, no entanto isto não foi possível porque, segundo Lucas: “o cliente não ficava de pau duro de jeito nenhum, tentamos de tudo, mas não deu certo, quando o pau 964

dele ficou durinho, ele não chegou a meter tudo, gozou rápido”. A falta de ereção é então um marcador importante, pois se ela não acontece pode ser um indicador de pouca virilidade de um dos parceiros. Mas esta masculinidade ancorada em performances corporais surgem, como disse em minha tese (SANTOS,2012a), uma masculinidade “protética”. Apoiado nas afirmações de Preciado (2000,2009) sobre a prótese como instrumento necessário para o ato e prazer sexual, sugiro que as representações das masculinidades existentes nas saunas de michê são relacionais, discursivamente construídas e “protéticas”, ou seja, não naturais, não há um corpo biológico que pré- define masculinidades ou feminilidades, não existe um determinante biológico de homens e mulheres, mas sim, corpos que são socialmente construídos, montados e remontados. Nas saunas os boys tomam constantemente uma medicação para ereção, o Pramil297, trabalham seus corpos constantemente em academias da cidade, na Rainbow que possui alguns aparelhos para fisiculturismo é na própria sauna que os rapazes praticam esta atividade. O uso de esteroides e anabolizantes também é constante entre alguns boys para obterem a “barriga tanquinho” e maior massa muscular. A ereção como forma de denotar virilidade é obtida através da masturbação constante dos boys. A depilação, para a maioria dos boys é feita em todos os lugares do corpo, com exceção das pernas, no entanto, estes pelos são constantemente aparados. Em suma, o corpo é pensado e trabalhado para a prática profissional. 4. “COR” E MASCULINIDADE

297

O Pramil é um remédio para disfunção erétil que é fabricado no EUA e importado pelo Paraguai. Não há licença da ANVISA para a fabricação e utilização deste medicamento no Brasil. Ele é comprado pelos boys em diversos camelos espalhados pela cidade por R$5,00, este era o preço até o término da tese.

965

Comecei este texto falando de quatro clientes pretos sentados solitariamente em uma noite quente na Apolo. Tal cena aponta para a desvalorização do corpo negro como objeto do desejo nas saunas de michê em São Paulo, ao menos os corpos dos clientes de pele mais escura para os boys; por outro lado alguns clientes alegam preferir boys pretos e outros não fazem questão da “cor” da pele. Tal preferência, como surge na fala cristalina de Marcos, se deve a suposta potência sexual de homens de pele mais escura. No entanto, como nos falam Marcos e Carlos sobre sua pele ser um ponto favorável a troca de sexo por dinheiro, ou, para Carlos um motivo de orgulho eles levantam outros pontos de tensão nas relações heterocrômicas nas saunas de michê: as relações de poder e o corpo. Marcos: “‘negro’ humilha”, já Carlos, boy, que se declara “negro” diz ter “muito orgulho de sua “raça”, mas que não gosta de transar com “negros”, pois eles têm um “cheiro diferente, um cheiro de suor que não sai nem depois do banho”. Tendo em mente as análises de Moutinho (2003) sobre hierarquias raciais como constructos sociais e históricos atravessadas por valores culturais; sobre o desejo pelo homem “preto” muitas vezes estar oculto nas análises sobre “raça”/“cor” e da erotização do “mulato” nas relações com mulheres “brancas” é possível termos alguns insights para a compreensão do apagamento de pessoas com pele escura, em especial o cliente, nas saunas de michê em São Paulo e das respostas contraditórias dadas a mim durante a pesquisa. Dentro da hierarquia das masculinidades performatizadas nas saunas em que se troca sexo por dinheiro, o boy surge como o detentor da mercadoria cobiçada, desejada: seu corpo, sua masculinidade e sua virilidade/potência sexual. O boy é o vendedor de seus dotes corporais, inclusive a cor, como forma de se valorizar. Assim, é possível sugerir que neste momento o michê é o detentor do poder na relação. Ele pode escolher o cliente e esta escolha se dá em função da cor, de um suposto maior poder financeiro, e outros fatores mais subjetivos. 966

Já o cliente, geralmente “branco”, é o comprador do corpo, o que “necessita” dos serviços do boy para sua satisfação. Claro que é o cliente o detentor do dinheiro, um mediador bastante importante nestas relações, e claro também que cabe ao cliente, ao menos em tese, escolher o boy. No entanto, se o boy o recusa, o dinheiro do cliente passa a ter um significado menor, ou seja, a relação sai da esfera mais comercial e passa a pertencer a uma esfera intersubjetiva em que o cliente mesmo pagando foi recusado por seus dotes pessoais e corporais. Neste sentido, é então possível dizer que cabe ao michê, “branco” ou “preto” um poder maior na relação, independentemente do dinheiro do cliente. Seguindo-se a proposta de análise de Laura Moutinho sobre mobilidade social nas relações heterocromicas, podemos apontar para situações que estão emaranhadas nas relações entre clientes e michês nas saunas. Como aponta Moutinho (2003), se a “cor branca” possui mais prestígio social possibilitando ao parceiro de pele mais escura ascensão social; a “cor preta”, no entanto, leva vantagem quando o tema é desejo, potência e virilidade. Sendo de pele mais escura ou mesmo de pele clara o boy alcança, é bom frisar, entre alguns clientes de “cor branca”, um poder maior de negociação de seu corpo e possibilidades maiores de ascensão social se se tornar um michê fixo para o cliente. Levando-se em conta que, se o cliente for de classes mais favorecidas, caso goste do garoto, irá ajuda-lo em suas necessidades pessoais e, possivelmente pagará seus estudos possibilitando deste modo mobilidade social para o garoto. Mais, para o senso comum é o rapaz de pele escura e no imaginário social é ainda o profissional do sexo, independente da cor da pele, que tem mais potência e virilidade, deste modo o cliente de pele mais clara está submetido ao rapaz de pele escura ou clara, mesmo sendo o cliente o “ativo” na relação. Assim, o poder na relação pende mais para o boy.

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Mas com o cliente “preto” a chance de mobilidade social para o boy de qualquer matiz de cor de pele seria, claro que apenas hipoteticamente, menor. Outra perda para o michê, neste caso de pele escura, na negociação com o cliente é suposta potencia e virilidade, já para o boy de pele mais clara seria se submeter a alguém de pele “escura”, pessoas que são tidas socialmente como “inferiores” e ainda a perda da suposta virilidade e potência, atributos dados aos profissionais do sexo. Encerrando é possível dizer que nas saunas de michê busca-se um “macho” que não desmunheque, que não lembre uma mulher, enfim, que não seja afeminado e de pele clara. O tom de pele, como já havia apontado Moutinho (2003) é entrecruzado por outros marcadores sociais como gênero e classe social. Ser “ativo” ou “passivo”, pouco importa a posição, nestes locais, é coisa de “macho” e “branco”.

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O CASO GENILDO FRANÇA: HONRA E MASCULINIDADES NA CONSTRUÇÃO MIDÍATICA

Mikarla Gomes da Silva298 Resumo: O trabalho versa sobre masculinidade(s), trazendo a categoria honra como fundante no processo de socialização do masculino na tentativa de compreender como esta categoria tem constituído o gênero masculino. Deste modo, como recorte empírico da temática trago o caso Genildo França, comerciante que matou 14 pessoas na comunidade de Santo Antonio do Potengi/RN por ter sido chamado de gay. E decide limpar e mostrar sua masculinidade/honra. Ele mata e morre. Este caso pode ser identificado como modelo de mecanismo de controle social para produzir a identidade masculina. Aliado a categoria honra trabalhamos com o discurso midiático. Este trará uma análise do discurso dentro do discurso, uma vez que, os grandes jornais da época recorreram a outros saberes para legitimar a causa ou as causas da chacina, sendo Genildo taxado como “louco”, “monstro”. Palavras-chave: Honra. Masculinidade. Genildo França. Gênero. Mídia.

“(...) estava difícil viver não aceito na sociedade, pelo simples caboclo que me levantou um falso mais agora está morto (...) Eu não fiz isso por prazer, fiz forçado”. Genildo França.

1. INTRODUÇÃO Ser homem ou ser mulher? Pois bem, esta dicotomia tem marcado o processo de reconhecimento do indivíduo. O corpo traduz o discurso de um verdadeiro sexo como se falasse de uma verdadeira pessoa. O conceito de gênero tem circunscrito o comportamento social e sexual dos indivíduos durante séculos. Sua história é escrita sob a ótica da normalidade. Diga-se normal “nascer” homem ou mulher e conferir a este corpo práticas masculinas e femininas lhes condicionado pelas

298

Graduada em Ciências Sociais (UFRN) com estudo na área de Gênero e Sexualidade. Membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos em Diversidade Sexual, Gênero e Direitos Humanos - TIRÉSIAS. Exbolsista voluntária do PET (Programa de Educação Tutorial). Dedica-se a área de estudo de gênero e sexualidade. [email protected].

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genitálias. Normal é nascer, crescer e morrer homem oferecendo aos olhares da sociedade performace masculina. A postura feminina não se opõe a conduta a ela oferecida. O que observamos durante este longo processo é que o gênero é um conceito vivo e em movimento. O termo convencionado significa a dimensão dos atributos culturais alocados em cada um dos sexos em contraste com a dimensão anatomofisiologica dos seres humanos. A expressão assinala o que vem sendo cunhado como perspectiva construtivista em oposição a uma postura essencialista, que poderia ser imputada, por exemplo, ao termo papéis sexuais. O conceito privilegia a dimensão de escolha cultural, pretendendo descartar alusões a um ativismo biológico para explicar as feições que o feminino e o masculino assumem em múltiplas culturas. (HEILBON, p.19: 2004) Entendendo gênero como um processo construído socialmente, atribuído de valorização cultural trago elementos que dentro do processo histórico mostram como objeto que vai além da investigação, sobretudo como Grossi (2005) uma categoria de análise que ultrapassa mulheres e homens como objeto de análise. Para isto apresento a construção do masculino a partir da categoria honra. A masculinidade ganha notoriedade na década de 80, quando o homem

passa

configurar

dentro

das

perspectivas

de

estudos

acadêmicos neste momento a categoria honra aparece como fundante do corpo masculino. Deste modo, este trabalho tem como finalidade discutir a construção da masculinidade vinculada à categoria honra, tendo como recorte empírico o caso Genildo Ferreira de França, homem que em maio de 1997, assassina 14 pessoas na comunidade de Santo Antônio do Potengi, município de São Gonçalo do Amarante-RN. Segundo

relatos

da

imprensa

norte-rio-grandense

o

crime

foi

desencadeado pelos "boatos" acerca de sua masculinidade, pois Genildo era chamado de gay. Uma vez que se constrói o masculino sob 971

o modelo de hipervirilidade, o caso Genildo pode ser identificado como um modelo de mecanismo de controle social posto para produzir a identidade masculina na comunidade de Santo Antônio do Potengi, uma vez que para recuperar sua masculinidade/honra ele prefere matar e morrer a ser reconhecido como um desviante do padrão social e sexual dito normal. 2. PENSANDO A CONSTRUÇÃO CULTURAL DO MASCULINO E FEMININO: MARCAS DO GÊNERO O gênero é a tipificação que a sociedade encontra para significar a diferença entre os indivíduos e partem da diferença sexual para tal classificação. O Ocidente ao longo dos séculos prima pela categorização dos indivíduos. Partindo de regras e sanções culturais a sociedade impõem valores, obrigações e sanções sobre os corpos, estas funcionam como uniformização de comportamentos, sendo assim atuam de forma coercitiva. Silenciosamente nos comportamentos e praticas sociais são interiorizados de forma a serem produzidos generalizados, como afirma Bento (2010), nossos atos são generificados e interpretados como citações de uma suposta origem. Deste modo, agir como mulher e homem põem em funcionamento verdades fundamentadas na natureza do individuo. A produção das identidades de gênero é um longo e continuo processo histórico social marcado pelo um corpo heterossexual na dicotomia homem e mulher. Ao construir estas identidades constrói se também os espaços destinados a estes. Diante destes espaços as relações de gêneros foram marcadas pela divisão sexual das atividades. Como vimos em Clastres (1988) e Mead (1998) ao homem é legitimo o espaço público,o direito de ser visto – o arco. A mulher destina-se o privado, os cuidados com o lar – o cesto. Pierre Clastres apresenta o feminino e masculino construído sob a égide de uma 972

padronização cultural, onde as oposições apresentadas são adquiridas em um processo de “educação”/socialização, como se estes já nascessem como a imposição e obrigatoriedade de “estar” homem ou mulher (me refiro aqui a condição de estar homem como o arco com elemento de tal masculinidade, assim como a floresta, quando um homem perde esta referencia é “rebaixado” a condição de estar mulher,ou seja, o cesto e o acampamento), ou seja já nascem com suas práticas definidas. Logo podemos dizer que já nascem com suas personalidades e espaço sociais, territoriais, econômicos e sexuais moldados pelos padrões culturais. A construção do masculino e feminino está enraizada na dicotomia da objetividade e subjetividade, onde surge a ideia de um homem que se exprime na “cultura” e a mulher na “natureza” (Ortner,1979) construindo uma complementaridade onde no homem encontra-se características racionais e elementos de força. A mulher acreditasse o oposto, são elas: flexíveis, pacatas, afetuosas e, sobretudo competentes para a reprodução. No que concerne à construção da masculinidade(s) as relações dos homens são pensadas em jogos de performace corporificada. O boxeador (Wacquant, 2000), o lutador de judô (Rial,1995) são homens construídos sob um signo e através de seu comportamento, da hipervirilidade, a honra como característica fundante, a construção do corpo sob o sacrifício da dor exalta a masculinidade. Portanto, a construção do gênero se baseia no principio classificatório, como afirma Almeida (1995) é um instrumento para legitimação de um gênero sob o outro. A masculinidade esta sempre a ser construída e confirmada, ao passo de que a feminilidade é tida como característica permanente ‘natural’ afirmada e refirmada na reprodução, enquanto aos homens nos jogos sociais.

3. O CASO GENILDO FRANÇA: discutindo a categoria honra 973

O caso Genildo Ferreira de França, comerciante, que em 1997 matou 14 pessoas em Santo Antonio do Potengi/RN ganhou dimensão nacional através da mídia impressa e televisiva da época. A chacina segundo estes se deu por Genildo ser chamado de gay. Com a impossibilidade de conviver com o fato de ser chamado de gay Genildo preferiu matar e morrer a ser reconhecido como um desviante do padrão social definido como “normal”. A violência desencadeada parece assinalar que a vergonha foi causada por sua identificação com o feminino, ou seja, ser chamado de gay é uma agressão a sua masculinidade fazendo assim com que esse perca sua honra. A desonra era ser considerado gay e para resgata-la Genildo mata 14 pessoas e se suicida. “(...) estava difícil viver não aceito na sociedade, pelo simples caboclo que me levantou um falso mais agora está morto (...) Eu não fiz isso por prazer, fiz forçado” (Carta deixada por Genildo).

Ser homem é uma perspectiva que se dá no imperativo. O caso Genildo nos traz o ódio de um homem que vê sua masculinidade suja. As características do feminino parecem manchar a honra dos homens e, com a impossibilidade de conviver com esses comentários o autor dos crimes encontra na violência o mecanismo de purificação e resgate de sua masculinidade. A violência escrita neste caso parece assinalar que a vergonha foi motivada por sua identificação com o feminino. A peformace e a comparação com o feminino desmoraliza a condição

masculina.

Deste

modo,

acendendo

algumas

formas

explicativas para percebermos como são produzidos e reproduzidos os valores estruturantes das masculinidades, pois não se trata de um homem que matou uma mulher, mas de um homem que matou várias pessoas.

974

Ser um “afeminado” é está em oposição às normas de gênero, portanto, assumir posições de riscos. A verdadeira masculinidade, a “normal”, continua sendo definida em grande parte contra o feminino e contra o homossexual. O caso Genildo nos consente refletir sobre as implicações da homofobia internalizada com toda tramaticidade. Aqui não se trata de agredir outra pessoa porque ela é homossexual, consequência visível da homofobia, mas de suprimir fisicamente os que atreveram-se duvidar de sua masculinidade e, concomitantemente, retirar a própria vida, pois, seria uma vida impossível, inviável em um meio social que confere masculinidade à negação de qualquer indicante de feminilidade. 3.1 - Dialogando com a categoria honra Os primeiros estudos sobre masculinidades estavam relacionados à honra, ou seja, masculinidade significava se honrado/ter honra. E a partir destes estudos iniciam-se a ideia da masculinidade como construção social. O masculino é tão construído quanto o feminino. A construção de sua trajetória se faz em torno de um imaginário social com relação à masculinidade que está sempre a ser provado com relação ao seu desempenho sexual. Quando se pergunta a um homem: “o que é ser homem?”, as respostas remetem, inicialmente, para a esfera biológica, que funciona como um dado primeiro, classificador: “ser homem é ter pênis”. Saindo do campo biológico, “ser homem é ser trabalhador, honrar os compromissos, ter palavra, ser livre, ser honrado, não ser mulher”. Existe, então, um campo simbólico constitutivo da identidade masculina que cruza as possíveis masculinidades e que tem acesso direto com veiculação honra, pois para cumprir o status de homem tanto no que se refere ao campo biológico e social alia-se a estes a categoria honra. A

975

honra é deste modo, uma categoria social fundamentalmente relacional e está atrelada ao projeto social da heteronormatividade. Como apresenta Claudia Fonseca (1995) os códigos de honra estão atrelados a constituição da masculinidade. A autora expõe no livro “Família, fofoca e honra” a honra familiar entre os homens - para o homem da família dispõe de uma variedade de símbolos para expressar o seu prestigio pessoal. A virilidade ligada a procriação, a bravura para proteger as mulheres da família- os protetores do lar.e a condição de homem que consegue manter a família, pois a mulher que trabalha humilha seu marido, deixando entender publicamente que ele não consegue mantê-la viver com essa derrota solapa um dos fundamentos da identidade social do homem: o provedor da casa. A honra feminina, colocada entre aspas traz a mulher, sua imagem publica projetada em torno das tarefas domesticas, na divisão do trabalho ela deve ser uma mãe devotada e uma dona de casa eficiente. A honra feminina esta em não desonrar o masculino. Embora a honra seja um atributo pessoal ela é colocado no âmbito familiar e, sobretudo social, uma vez que, vemos homens dizerem que defendem sua honra como defesa de sua masculinidade nos lembrando a tradição patriarcalista onde a honra é defendida/lavada com próprio sangue. Podemos exemplificar este processo diante dos crimes passionais, que como aponta Mariza Corrêa (1981) deixam de ser vinculados ao amor e passam a serem visto sob o ponto de vista da honra, ou melhor, da legitima defesa da honra. A representação social dos homens é constituída a partir dos sexos, que se torna um dispositivo norteador para suas ações e interações durante a vida. Diante de uma transição entre uma representação de homem construída pelo modelo patriarcal pensar o nivelamento entre os sexos é pensar em inferiorizar e desonrar o masculino. Pois havia nesta sociedade um medo que o nivelamento provocasse a desvirilização da sociedade, uma vez que, entrassem em contato com as características femininas. Desta maneira, a sociedade 976

patriarcal usa como estratégia de discurso definir o ser feminino como um ser superior ao masculino, que ao se igualar com ele se rebaixaria. Assim como se preocupavam com o legado da masculinidade, preocupavam-se também em manter o modelo feminino de submissão. O nivelamento traria então o embrutecimento das mulheres, perdendo a última reserva de afetividade, sentimentalismo, paciência. “(...) o nivelamento dos sexos aparecia como uma resultante e uma espécie de metáfora de todo o processo em curso. Atingindo a instituição que era célula da ordem social, ameaçando inverter a hierarquia, vista como natural em seu interior, toda a sociedade parecia estar saindo do controle dos homens, que, emasculados em seu poder, viam o feminino sair de suas fronteiras e impregnar toda a ordem social. O refinamento da vida moderna, que levava a uma delicadeza de falas, gestos e atitudes era mais um indício desse processo”. (MUNIZ, Durval, p. 44, 2003)

Portanto, ao referir-se a honra como característica inerente ao corpo masculino esta se dá em detrimento do feminino, pois Genildo afirma sua honra, diga-se, masculinidade matando por ter sido acusado299 de ser homossexual, ou seja, teria ele características femininas. Em Fonseca, a honra masculina esta em proteger as mulheres da família, assim como manter sua esposa em casa, pois se ela trabalhasse desonraria o marido, o provedor do lar. Em Correa, desonrado é aquele homem que é traído pela mulher, e mata para resgatar sua posição na sociedade.

4. O CASO GENILDO FRANÇA: A CONSTRUÇÃO MIDÍATICA O caso Genildo França provocou uma grande profusão de informações da mídia local, esta que trouxe uma análise do discurso dentro do discurso, uma vez que, os jornais da época recorreram a outros saberes para legitimar a causa ou as causas da chacina, sendo 299

Os jornais indicam ter sido Monica, esposa de Genildo, a espalhar o boato. Ela teria encontrado Genildo na cama com outro homem.

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Genildo taxado como “louco”, “monstro”. E o que percebe-se nestes jornais é a profusão de informações contraditórias com o intuito de “vender”

jornais

e

caracterizar

Genildo

como

uma

pessoa

psicopata,monstruosa. Como por exemplo: # JORNAL DE NATAL VÍTIMAS =15 “CHACINA” COMO = TRAGÉDIA,PRAÇA DE GUERRA,ATO DE SELVAGERIA DISCURSO MÉDICO = COMPORTAMENTO HUMANO IDADE = 27 ANOS MOTIVO = EXTERMINAR COM TODOS QUE DUVIDAVAM DE SUA MASCULINIDADE IDADE DE IURE (FILHO DE GENILDO) = 4 ANOS, ATROPELADO HÁ 2 ANOS PERSONALIDADE = INSTINTO MAQUIAVELICO, COMPORTAMENTO AGRESSIVO PÓS-MORTE DO FILHO. EX- SOLDADO VREMIADO PELO EXERCITO MORTE = SUICÍDIO

O documentário “Sangue do barro”, nos mostra como a mídia tipificou Genildo, um dos telejornais, de caráter sensacionalista, acompanhava em tempo o real a chacina. Corpos eram mostrados sem nenhuma restrição. Esta característica era imprimida nos demais jornais impressos, estes que não davam fim ao ocorrido, semana pós semana traziam mais informações com objetivo de desvendar qual o real motivo da chacina e levantavam como importância revelar ou melhor dizendo criar uma personalidade para Genildo que pudesse justificar o acontecido.

978

#TRIBUNA DO NORTE VITIMAS = 15 PERSONALIDADE= COMPORTAMENTO ESTRANHO ( SEGUNDO A SUA MÃE),COMPORTAMENTO DIFERENTE DESDE A MORTE DO FILHO YURE, COMPORTAMENTO HORRIVEL,MONSTRO( TIA DE MÔNICA SUA EX-MLHER),OPERÁRIO MEIGO,ERA CHAMADO DE AMOR( JOÃO BATISTA ,COLEGA DE TRABALHO-CERAMICA SAMBURÁ) MOTIVO PARA A CHACINA = REVOLTA COM BOATOS SOBRE SUA SEXUALIDADE, QUERIA LAVAR A PROPIA HONRA,REVOLTADO COM A MORTE DO FILHO DISCURSO MEDICO = DESVIO PSICOLOGICO , PSICOATA, TRANSTORNO DE PERSONALIDADE,TRANSTORNO DE PERSONALIDADE ANTI SOCIAL, CONCLUSÃO DO ITEP QUE GENILDO ERA PSICOPATA,FATORES PSIOPATOLOGICOS CIDADE = SANTO ANTONIO DOS BARREIROS IDADE = 27 ANOS EX- SOLDADO ORDEM =FRANCISCO-TAXISTA,ELIAS E BALTAZAR APARECEM NO MESMO JORNAL EM MOMENTO DISTINTO COMO SENDO O 2º ,ASSIM EM OUTRO MOMENTO COMO 3ª VITIMA ;JOÃO MARIA,MANOEL BELARMINO,EDILSON,ANTONIO JOSEMBERG,EDMILSON;MONICA APARECE COM 9ª E 1Oª VITIMA, WERNER APARECERA TBM COMO 9ª VITIMA,TEREZA,FRANCISCA NEIDE ,VALDETE,FRANCISCO,FLAVIO,FERNANDO MORTE = SUICIDIO

O que podemos perceber é que a mídia construiu um Genildo. E para esta construção recorreu aos saberes que pareciam significar seus anseios. Psicólogos, médicos, psiquiatras que descreviam um monstro, louco, psicopata. Mídia que proferia verdades inscritas em discursos “verdadeiros”. Verdades produzidas em contradições sejam elas de personalidades, motivo, número de mortos entre outros. Podemos então dizer que no caso Genildo se constrói um homem sob o encalce da masculinidade hegemônica, que dentro dos seus padrões 979

territórios, Nordeste, acaba por “lapidar” ainda mais os cânones da masculinidade, diga-se hiperviril. Dentre estes espaços temos uma mídia que verbaliza verdades absolutas, a procura de causas, consequências e curas, pois Genildo era visto hora como louco, hora como monstro. A mídia neste caso legitima tanto a chacina como estágio de loucura movida pela morte do filho, quanto à ferida cravada na sexualidade, uma vez que seu nome é repercutido na comunidade como gay, ferida na honra masculina. 5. CONSEIDERAÇÕES FINAIS A imposição de uma sexualidade natural, heterossexual e para procriação, é uma construção simbólica própria à cultura Ocidental, cujas bases remontam aos elementos mitológicos constitutivos do imaginário Ocidental. Deste modo, a caso Genildo aparece como exemplo de uma sociedade que não aceita qualquer tipo de “desvio/anormalidade” (uma vez que este era visto como homossexual) e te condena aponto de excluir socialmente. Esta que produz um modelo de homem que prefere matar e morrer a ser visto como desviante do padrão dito normal socialmente e sexualmente. Para o homem ter os afetos fora das trilhas definidas socialmente é sinal que a heterossexualidade não vingou. Percebesse em Genildo que há um esforço feito para provar que é homem, encontrado por este através da morte ,lavando assim sua honra com sangue como forma de resgate da mesma. Os discursos masculinos são construídos com a intenção de subordinar a mulher e desvalorizar a esfera do feminino, logo uma forma de subordinar é situar o outro (homem) na esfera do feminino. A violência desencadeada parece assinalar que a vergonha foi causada por sua identificação com o feminino, ou seja, ser chamado de gay é uma agressão a sua masculinidade fazendo assim com que esse perca sua honra. A desonra era ser considerado gay. A honra entendida aqui 980

como sentimento natural inerente ao homem e cuja ofensa produz um abalo moral, acabando com tudo que já fora construído. Com os “boatos” sobre a sua masculinidade é como se o Genildo tivesse perdido tudo que já construirá, deixou de ser pai, marido, amigo, irmão, Homem, indivíduo para agora ser Gay e para provar que não era homossexual mata e morre. Honra esta que instituiu um mecanismo de aprovação ou reprovação social em que a pretensão dos indivíduos a um dado valor social é um direito em si. Vivemos nossa sexualidade dentro do imaginário da sociedade onde estamos inseridos. Aceitar que o outro possa ser diferente abala nossa verdade, e mostra que a verdade é sempre a verdade de cada um, o que desvela a ilusão da existência de uma identidade única e absoluta. Acredita-se que o que menos importa é se Genildo era de fato homossexual ou não,mas sim como o modelo do padrão social e sexual de nossa sociedade constrói um individuo que faz de tudo para provar ou adequar-se a esse padrão imposto,pois este ao negar ou afirmar a sua sexualidade/masculinidade estar e quer se enquadrar neste modelo. Portanto, no código de honra estruturante desse modelo, o projeto de construção de homens viris está abertamente ligado a negação sistemática do feminino como indicativo para identificação. Estas verdades normatizam a vida e a relação entre os gêneros, para além de orientações sexuais singulares. Neste caso, as antinomias honra/desonra e vida/morte se apresentam como forças reguladoras do social.

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982

BULLYING HOMOFÓBICO: UM ESTUDO ANALÍTICO SOBRE GÊNERO, CORPO E SEXUALIDADE NESTE CONTEXTO DE VIOLÊNCIA

Jairo José dos Santos Junior 300

RESUMO: Discute-se, a partir de uma revisão de literatura pertinente ao tema, como o bullying homofóbico emerge estrategicamente na escola, enquanto violência velada, através de atitudes/comportamentos de preconceito e perseguição àqueles que destoam do modelo heteronormativo amplamente dominante. Dentro deste prisma, tal estudo procede por meio de uma interlocução transversal que abarca quatro dimensões fundamentais: gênero, corpo, diversidade e sexualidade. Conclui-se a partir desta reflexão o quanto é difícil para tais sujeitos construírem suas próprias identidades (tidas como deslocadas ou dissidentes) a margem do padrão hegemônico heterossexual e de suas tecnologias discursivas (especialmente a escola) que classificam, normatizam e definem os padrões de certo ou errado, de normal ou patológico, enfim, que produzem as “verdades” acerca do que somos ou de como devemos ser. Palavras-chave: violência bullying. Gênero. Corpo. Diversidade. Sexualidade

1. INTRODUÇÃO

O acirramento das disputas entre indivíduos no atual mundo globalizado e regido pela doutrina neoliberal reforça sobremaneira o individualismo e a competitividade em todas as dimensões interativas da vida humana. No entorno escolar não é muito diferente: num sistema de ensino-aprendizagem em que a maioria das escolas preza o “bancarismo” (FREIRE, 2010) como base gnosiológica fundamental, e cuja criatividade e a dialogicidade necessárias a boa relação professoraluno são inteiramente deformadas (FREIRE, 2010), conflitos e dilemas irrompem naturalmente nas relações interpessoais educacionais, tais como a troca de ofensas no calor de uma discussão, brincadeiras sem 300

Graduado em Ciências Sociais (UFRN), Atua como tutor/orientador em projetos sociais promovidos por órgãos governamentais estaduais e municipais quando em parceria com a FUNCERN. [email protected].

983

intenção de ferir, “zoações” despretenciosas e outros tipos inusitados de interação muito comuns no cotidiano de alunos e de professores. Todavia, quando estes atos se tornam repetitivos, intencionais e deliberados, com o intuito de promover a intimidação e o sofrimento ao agredido numa relação desigual de poder entre agressor e vítima, estáse diante de um ato de bullying. Este tipo peculiar de violência compromete de maneira onipotente os envolvidos, no que tange o seu direito à educação, ao seu livre desenvolvimento emocional, sua livre expressão, sua saúde, sua integridade físico-psicológica e à sua própria dignidade humana. É um problema crônico, específico, destrutivo e epidêmico, configurando-se como questão de saúde pública, cuja prevenção e combate requerem esforços e investimentos conjuntos por parte de toda comunidade escolar e das autoridades competentes no âmbito da educação, da saúde e da segurança pública, por meio de programas preventivos e assistenciais (FANTE & PEDRA, 2008). Tal modalidade de agressão possui uma característica multiforme: é capaz de irromper-se nos mais diversos contextos sociais, como no trabalho (o assédio moral ou mobbing); na família - o legado agressivo apropriado pelos filhos a partir da imitação das atitudes paternas (COSTANTINI, 2004); nas forças armadas, nos hospitais, enfim, onde haja interlocução de indivíduos num quadro de hierarquização de poder (FANTE, 2005). O bullying homofóbico – objeto de investigação deste artigo consiste num conjunto de agressões estereotipadas e fundamentadas na obrigação do respeito à reiteração dos comportamentos e valores heteronormativos hegemônicos no cotidiano escolar. Consiste numa modalidade diferenciada do bullying clássico por ser instrumento a serviço de uma pedagogia dos gêneros hegemônicos, que ensinam os sujeitos desde a infância a acatar um projeto de vida referenciado na heterossexualidade (BENTO, 2006). E a escola, neste intuito, transfigura-se como uma das tecnologias sociais ou discursivas a serviço da 984

heteronormatividade na medida em que funciona normatizando desde cedo as subjetividades dos discentes a partir do paradigma binário que rege tal sistema. O objetivo do presente trabalho vai mais além do que simplesmente revelar o papel heteronormativo (BUTLER, 1993) do funcionamento escolar e sua conseqüente produção de verdades disparatadas que rechaçam o diferente: Trata-se de, pelo viés analítico de um tipo peculiar de violência (o bullying homofóbico), empreender uma tríplice reflexão interdisciplinar a partir da análise dos conceitos de diversidade, gênero e sexualidade. Neste sentido, o primeiro capítulo busca refletir acerca da questão da diversidade (mais especificamente a sexual), discutindo sua necessária manifestação para a contínua renovação e atualização da vida humana, que “só persevera, só se renova, só resiste às forças que podem destruí-la através da produção contínua e incansável de diferenças, de infinitas variações” (GDE, 2009, p. 15). O segundo capítulo busca problematizar a hegemonia dos “gêneros inteligíveis” (BENTO, 2006) que só conferem humanidade (existência) àqueles sujeitos que obedecem ao padrão linear e binário homem-masculino e mulher-feminino; a violência bullying, neste contexto, irrompe como verdadeira ferramenta que aplaca as tentativas

de dissidências

ou

de deslocamentos

daqueles

que

discordam com esta estrutura axiomática dominante. O último capítulo, por fim, aborda como a profusão de sexualidades

disparatadas

heteronormatividade

vigente,

entra onde

em a

conflito

escola

assume

com a

a

tarefa

institucional de aplainar as condutas discentes no universo do binarismo tradicional, relegando àqueles que fogem dessa regra, se “confinarem” no armário para poderem viver pacificamente e em segredo suas experiências identitárias deslocadas.

985

2. A QUESTÃO DA DIVERSIDADE O conceito clássico de bullying expressa, por si mesmo, o rechaço invariável ao diferente. Trata-se de uma palavra de origem inglesa adotada em muitos países para definir “o desejo consciente e deliberado de maltratar outra pessoa e colocá-la sob tensão” (TATUM, 2000). O bullying “compreende todas as atitudes agressivas, intencionais e repetitivas que ocorrem sem motivação evidente, adotadas por um ou mais estudantes contra outro(s), causando dor e angústia e executadas dentro de uma relação desigual de poder, tomando possível a intimidação da vítima” (NETO & SAAVEDRA, 2003). Aqui surge o primeiro obstáculo conceitual: seria possível agredir alguém sem uma suposta “motivação evidente” tal qual o conceito acima assevera? Fante (2005) rebate de pronto tal afirmação: Os autores mobilizam a opinião dos colegas contra a vítima, através de boatos difamatórios ou apelidos que acentuam alguma física, psicológica ou trejeito considerado negativo, diferente ou esquisito. Outros perseguidos são os estranhos, os nerds, os que têm sotaque, jeito efeminado ou sensível, no caso dos meninos, ou masculinizado e grosseiro, no caso das meninas, ou aqueles que são diferentes da maioria dos alunos. (FANTE, 2005, p.36-37).

E complementa: Os ataques bulying não acontecem em decorrência de uma causa reativa, pois não surgem de uma discussão, conflito ou briga entre dois ou mais indivíduos. Simplesmente, os que praticam bullying elegem um colega que tenha em seu aspecto físico ou psicológico traços que denunciam ser ele uma presa fácil aos ataques. O “bode expiatório” deixa claro em suas atitudes que não revidará, não denunciará e nem conseguirá motivar outros em sua defesa. Portanto o bullying nasce da recusa a uma diferença, da intolerância e do desrespeito ao outro. (FANTE, 2005, p.40).

Se a escola é um dos principais espaços de produção das masculinidades e feminilidades “normais” é obvio que qualquer um que seja discrepante a esta equação irredutível e inexorável está fadado a ser perseguido e rechaçado pelos demais: a marginalização, a 986

insegurança e o medo se apossam de todo aquele que simplesmente decide se desvincular de um destino orientado pela genitália. A heteronormatividade, de acordo com Butler (2003), refere-se ao caráter inexorável, compulsório e determinista de uma composição binária (sexo  gênero) que se predestina a cumprir os “desejos” suscitados pelas respectivas estruturas corpóreas individuais. É, portanto, um conceito

naturalista,

determinista

e

pautado

na

ideologia

da

complementaridade sexual. Neste contexto, gênero e sexualidade se expressam

unidos,

são

coincidentes,

haja

vista

que

o

poder

normatizador só obtém eficácia absoluta quando controla o gênero, visto que as práticas sexuais se dão na esfera do privado.

(BENTO,

2006). Se os indivíduos nascem e são apresentados a uma única possibilidade de construir sentidos identitários para suas sexualidades e gêneros focalizados na genitália, quaisquer tipos de manifestação de dissidência ou de diversidade constituem-se como reais perigos às normas de gênero hegemônicas, na medida em que quebram com o universalismo, com o biologismo e com a naturalização inerentes às condutas e comportamentos tidos como” corretos”. Todavia,

o

universalismo

deste

sistema

classificatório

hegemônico, o qual estabelece que a humanidade deva ser classificada em torno do que são homens e mulheres, tomando como dado

primeiro,

para

processar

tal

taxonomia,

a

diferença

sexual/genitália (BENTO, 2006, p. 18), não obtém consenso absoluto entre os sujeitos e funciona, portanto, precariamente. Trata-se, neste sentido, da desestabilização das normas de gênero através da emergência de práticas sexuais e de gênero dissidentes do modelo legitimado e amplamente praticado. O sistema escolar, enquanto agente institucional que absorve e reproduz em seu cotidiano as afirmações e proibições acatadas no 987

escopo social mais amplo, ainda reverbera as estratégias discursivas heteronormativas que reiteram que os sujeitos são efeitos daquilo que seus corpos determinam. Neste sentido, as subjetividades dos discentes ficam a mercê de um processo de internalização de verdades que lhes instruem a serem de acordo com o projeto social subserviente a fabricação

dos

gêneros

“normais”

e

que

visualizem

a

heterossexualidade como a única forma possível de se viver a sexualidade humana. A homofobia na escola retrata muito bem o universalismo naturalizante a que aspira esta realidade dominante instituída: a recusa e perseguição aos deslocamentos e deslizes, inculcando na mente dos próprios sujeitos dissidentes uma “culpa” pela sua diferenciação. No ataque bullying aos homossexuais, por exemplo, ficam evidentes alguns detalhes fundamentais: o processo de seleção do “bode expiatório” (FANTE & PEDRA, 2008), que é legitimado por uma hostilidade por parte do agressor em relação a uma discordância/desvinculação por parte do

agredido

frente

ao

paradigma

dominante,

universal

e

pretensamente natural. Por meio de um julgamento etnocentrista que produz um nocivo estranhamento, classificando o que é certo e errado, moral e imoral, o agressor personifica em sua vítima um estereótipo duplamente degradante: de um lado, o inferioriza por meio da imputação de valores preconcebidos como depreciativos e específicos de um grupo “anormal” ou “desviado” que subverte o modo de ser correto; e de outro, promove uma sinergia de inferiorização ao sujeito dissidente ao reforçar-lhe o preconceito mediante expressões de repúdio biologizantes que simultaneamente atacam/inferiorizam, por exemplo,

outro

segmento

sexual

com

base

em

premissas

“supostamente” naturais: as mulheres (basta atentar para o uso de terminologias que, ao buscar tripudiar, por exemplo, um homem com características femininas, acabam reforçando o olhar misógino dirigido às mulheres: “Não seja sensível”; “ homem emotivo”, “mulherzinha” etc. 988

Neste sentido, tanto a escola, no seu papel de tecnologia discursiva em prol da hegemonia heterossexual, quanto os sujeitos que a compõem, que reproduzem em suas atitudes e comportamentos todo o conjunto de expectativas e suposições que lhes foram concebidas antes mesmo de seus nascimentos, infelizmente ainda atuam conjuntamente para arquitetar minuciosa e continuamente o projeto social de fabricação dos gêneros normais ou inteligíveis. E o bullying homofóbico, em sua tentativa de marginalizar os dissidentes, configura-se como importante instrumento de manutenção e garantia, através de atitudes de violência física ou simbólica, da hegemonia deste sistema pautado na diferença sexual orientada pela genitália.

3. A QUESTÃO DO GÊNERO E DO CORPO Do ponto de vista biológico, a raça humana é dicotômica: Por ser tal espécie dióica (ou seja, os aparelhos reprodutores estão divididos em dois exemplares – o macho e a fêmea) os sistemas de dominação hegemônicos partidarizaram a existência humana no clássico binarismo – ou se é masculino; ou se é feminino (Butler, 2003). O ser humano, em relação às outras espécies, exibe um dimorfismo sexual relativamente discreto, sendo tais diferenças mais acentuadas nos caracteres sexuais primários

(a

genitália)

e

secundários

(a

presença

de

mamas

desenvolvidas nas fêmeas e sua ausência nos machos). Ademais, exceto pelas diferenças hormonais que marcam homens e mulheres, os corpos humanos intocados, quando comparados, não exprimem uma notória distinção. Neste caso, o signo divisório do “ser” homem e do “ser” mulher, social

e culturalmente construídos mediante suas

experiências de socialização individuais, é apropriado pelo conceito de gênero. A construção sócio-cultural das masculinidades, feminilidades e suas antinomias, como assevera Butler (2003), sobre as anatomias 989

corporais, é prerrogativa do conceito de gênero. E, classicamente, concebeu-se

durante

muito

tempo

um

inflexível

bipartidarismo

relacional e oposicional entre o masculino e o feminino. Todavia, como assevera Bento (2006), os limites dessa concepção binária se tornaram insustentáveis a partir do momento em que se questionou qual seria o “lugar” reservado para os transexuais, as lésbicas, os gays, os transgêneros e tantas outras experiências identitárias quando a questão em voga é a de identidade. Neste sentido, o que de fato seria gênero? Como o colocamos em prática como nossas ações e pensamentos? Existe conformidade entre sexo, gênero e desejo? Butler (2003) tenta discorrer: O gênero só pode denotar uma unidade de experiência, de sexo, gênero e desejo, quando se entende que o sexo, em algum sentido, exige o gênero – sendo o gênero uma designação psíquica e/ou cultural do eu – e um desejo – sendo o desejo heterossexual, e, portanto, diferenciando-se mediante uma relação de oposição ao outro gênero que ele deseja. A coerência ou a unidade internas de qualquer dos gêneros, homem ou mulher, exigem assim uma heterossexualidade estável e oposicional. Esta heterossexualidade institucional exige e produz, a um só tempo, a univocidade de cada um dos termos marcados pelo gênero que constituem o limite das possibilidades de gênero no interior do sistema de gênero binário oposicional. Essa concepção de gênero não só pressupõe uma relação causal entre sexo gênero e desejo, mas sugere igualmente que o desejo reflete ou exprime o gênero, e que o gênero reflete ou exprime o desejo. (BUTLER, 2003, p.45)

Todavia, a desvinculação do natural do conceito de gênero feita pela respectiva autora ao longo de sua obra, visa retirar da própria noção de gênero a idéia de que ele decorreria do sexo e discutir em que medida essa distinção sexo/gênero é arbitrária. Indo mais além: tenta-se, em sua obra desnaturalizar o gênero e apontar sua volatilidade manifestativa de arranjos identitários, longe de processos deterministas entre corpos, gênero e sexualidade. Um exemplo hipotético de arranjo: um indivíduo genitalmente peniano, generificado no universo heterossexista masculino, que rompe com as normas e torna-se “feminino”. Tais deslocamentos (BENTO, 2006) sugerem uma 990

multiplicidade de tipos e de experiências identitárias, tendo em vista que, enquanto lugares distintos (mas não indissociáveis), gênero, sexo e opção sexual podem se combinar (articular) de tal forma que produzem

sujeitos

que

vivam

experiências

extraordinariamente

subversivas e divergentes quando comparadas ao clássico padrão heterossexista homem-masculino/mulher-feminino. A complexidade desta discussão se intensifica ainda mais quando o foco da análise se volta para a escola, mais especificamente para as relações de seu público discente. Por ser predominantemente heteronormativa e heterossexista (reprodução de discursos, práticas e comportamentos que buscam consolidar a heterossexualidade como centro hegemônico margeado pelas experiências “transviadas”) a vigilância sobre aqueles que tentam construir suas identidades de gênero mediante deslocamentos é implacável: masculinidades e feminilidades ficam inexoravelmente bem delimitadas quando a cada um é ensinado mediante o processo de socialização a classificar seus espaços, a adotar expressões corporais e gestuais concordantes com a norma de gênero que se deve respeitar, a realizar atividades culturais ou físicas pertinentes ao seu respectivo grupo identitário etc. É importante perceber, como assevera Grossi (1992), que, muito antes de ensinar e formar cidadãos, a escola e a família funcionam como matrizes reificadoras dos gêneros inteligíveis (aqueles que conferem existência ou humanidade aos seus portadores) no qual a subversão de suas normas rígidas prescreve severas punições aos seus transgressores. O bullying homofóbico reside justamente num mecanismo de estigmatização/violência de todo aquele que não obedeça ao consenso heteronormativo de atitudes, comportamentos, percepções de

mundo

e

convívio

social,

vinculados

diretamente

ao

seu

sexo/genitália. Viver experiências deslocantes na escola (como transitar simbolicamente e corporalmente entre aquilo que é masculino ou feminino) é fatal para todo aquele que busca conviver embaralhando 991

as fronteiras dos gêneros. E o corpo é o principal instrumento de veiculação das insígnias e marcas de gênero, da sua plasticidade transformativa. Tal dicotomia determinista (corpo gênero) não tem sentido, haja vista que o corpo é um produto fabricado por tecnologias precisas de fundamento cultural, não sendo anterior ou exterior aos gêneros (BENTO, 2006). Um retrato da importância que o corpo adquire e de sua funcionalidade atual é bem descrita por Sohn (2006): Nunca, antes do século XX, o corpo sexuado fora objeto de cuidados tão atenciosos. Cada um o exibe, o corpo está onipresente no espaço visual, ocupa igualmente um papel sempre maior nas representações tanto científicas como midiáticas. Chegou mesmo a se tornar um desafio médico e comercial. Seu lugar central no último quarto de século tende assim a fazer olvidar a história subterrânea da libertação do desejo até os anos 1968 em que, pela primeira vez, práticas sexuais e discursos sobre a sexualidade se conjugam publicamente e impõem a irrupção da vida privada nas questões políticas. (SOHN, 2006, p.109).

Em suma, após um longo processo de erosão progressiva do pudor e do conseqüente desvelamento físico – primeiro no âmbito privado e, em seguida, no público – o corpo sexuado foi novamente reabilitado,

dessacralizado,

comercializado,

sofreu

intervenções

médico/estético-sexuais e se tornou um verdadeiro templo para obtenção do prazer em detrimento de sua tosca e usual funcionalidade reprodutiva e marital. E é pelo corpo – a nova vitrine dos sujeitos -, pela sua livre exibição e por seu culto estético, que as representações de gênero o reificam/significam/moldam. A escola, no seu papel simplório de transformar e aperfeiçoar o corpo enquanto algo útil e dócil (portanto, sequaz ao sistema dominante, inclusive o heteronormativo), atua no propósito de perseguir e censurar todo aquele que ameace, ao divergir de seu próprio corpo generificado pelas tecnologias discursivas, desestabilizar as normas

992

hegemônicas

ao

remodelar

sua

performance

agregando

conjuntamente traços de feminilidade e masculinidade. Entre

as

estratégias

de

interdição

aos

iminentes

comportamentos “desviantes” estão a patologização das condutas que se organizam em divergência ao modelo heteronormativo; o deslocamento do papel de protagonismo gerador dos conflitos das relações hegemônicas de poder para os próprios sujeitos, fazendo com que localizem suas dores exclusivamente em sua própria subjetividade; e através de ações de violência física/simbólica que mantenham tais práticas “às margens do considerado humanamente normal” (BENTO, 2006). Enfim

o

bullying

associado

a

atitudes

homofóbicas

desempenha um duplo papel: ao passo que exclui violentamente o diferente mediante atitudes de perseguição e violência, contribui para a manutenção da ordem heteronormativa ao marginalizar as possíveis manifestações de dissidência que impedem que um sujeito transite ou se mova livremente pelos gêneros sem sofrer sanções ou interdições.

4. A QUESTÃO DA SEXUALIDADE O legado humano de idéias, valores e regras sociais (produzidos por homens e mulheres em diferentes contextos históricos) é percebido para muitos como se fossem imposições exteriores ou naturais (e, portanto independentes da ação humana) que não podem ser evitadas, modificadas ou mesmo questionadas sob o risco de por em perigo toda a plataforma de estabilidade sob a qual se assenta a realidade social (SOUZA FILHO, 2007). Este caráter pretensamente universalista, essencialista e eternalizante é profundamente sustentado por um poderoso discurso ideológico que visa ocultar o caráter de coisa construída e em seu lugar apregoar a construção de nossa existência 993

humana como fruto de uma suposta natureza instintiva, do “divino” ou mesmo do “sobrenatural”. Esta talvez seja o primeiro grande equívoco em torno de como se conceber a sexualidade. As seguintes palavras são providenciais para o esclarecimento da questão: Historiadores e cientistas sociais elaboraram a noção de sexualidade como uma construção de corpos, desejos, comportamentos e identidades que todas as pessoas desenvolvem durante suas vidas por meio da apropriação subjetiva das possibilidades oferecidas pela cultura, pela sociedade e pela história. A visão construcionista, assume que é difícil distinguir nos seres humanos o que se deve a biologia, de um lado, e à cultura, à sociedade e à história, de outro. (GDE, 2009, p.117).

A sexualidade se trata, neste caso, de uma construção desvinculada

do

corpo/natureza,

ao

contrário

da

ideologia

hegemônica. Não se tratam de instintos ou de impulsos hormonais no desencadeamento da afetividade sexual, mas sim, de um processo de aprendizado

social

biológico/genitália,

desvinculado tal

como

faz

das

questões

pensar

a

do

corpo

ideologia

da

complementaridade sexual que inspira a heterossexualidade enquanto afetividade “normal”. Outro equívoco que ainda predomina graças do poder/saber médico foi a patologização das sexualidades que se organizam as margens do centro heterossexual, cuja imensa profusão de afetividades produz dissidência e revelam a ineficácia consensual da estratégia heteronormativa, no qual o rompimento da norma/padrão

por tais

“trangressores” os relegam ao reino do absurdo e do despropositado, em suma, à esfera da loucura. (MISKOLCI & SIMÕES, 2011). No

cotidiano

escolar,

a

expressão

da

sexualidade

normalmente é confundida com a expressão dos gêneros, no qual transitar pelo reino do “absurdo” pode custar bem mais do que se imagina. Não só os alunos, mas também professores e profissionais 994

pedagógicos inserem no processo de aprendizagem atos reiterados incansavelmente (sinais exteriores que, postos em ação, estabilizam e dão visibilidade ao corpo através de uma estilística apropriadamente definida a cada sistema sexo/gênero) que põem em funcionamento um conjunto de verdades que se acreditam estarem fundamentadas na natureza (que, por sinal, é um dos pilares irretocáveis da heteronormatividade). Neste sentido, um problema surge de pronto: diversos estudiosos do fenômeno do bullying na escola retratam o enorme descaso de muitos profissionais de educação quanto ao bullying homofóbico por acreditarem e cumprirem o programa heterossexual como verdade inalienável. O despreparo da maioria destes profissionais e a necessidade de controle das subjetividades em custódia acabam por prejudicar ainda mais a questão. Como assevera Fante e Pedra (2008): Alguns (professores e funcionários) reproduzem o preconceito, fazendo piadinhas, imitações, insinuações e brincadeiras dentro e fora da sala de aula. As conseqüências de um ensino omisso ou homofóbico são inúmeras e graves, uma vez que a escola interfere decisivamente na formação do indivíduo. Se os adultos, na família ou na escola, demonstram preconceito e desferem contra os homossexuais as mais variadas formas de maus-tratos, certamente os jovens adotarão os mesmos procedimentos. (Fante e Pedra, 2008, p.43).

Talvez o procedimento imediato a ser adotado por alunos vítimas de homofobia com medo das agressões, ameaças e até perseguições seja o de enrustir sua sexualidade. Este processo complexo é fruto do caráter compulsório de imposição da heterossexualidade, cuja tradição não admite/tolera que um sujeito seja outra coisa que não um “homem-masculino” ou uma mulher-feminino” (BUTLER, 2003). Em suma, amor desejo, prazer e afetividade só são legítimos quando dirigidos de um homem para uma mulher e vice-versa. Portanto, viver o livre homoerotismo e homoafetividade, longe do olhar inquisidor, segregador e punitivo, só é possível na clandestinidade. 995

“Ficar no armário” tem sido a estratégia de muitos indivíduos, funcionando como um instrumento de regulação da vida social de todo aquele que se relaciona com pessoas do mesmo sexo em segredo (temendo as conseqüências na esfera familiar e pública). Ele se baseia na “mentira”, no sigilo e na vida dupla. Além de ser a experiência mais marcante na constituição de suas subjetividades, “estar no armário” também contribui para a manutenção das instituições e valores dos homossexuais. Sedgwick (2011) aponta uma dupla função do armário: ao mesmo tempo em que escamoteia e protege as experiências de sexualidade discrepantes da heteronormatividade, este dispositivo de regulação da vida social reforça do lado de fora o predomínio da ordem heterossexista, de suas instituições e de seus valores. A

construção

desta

dupla

realidade

antípoda,

mas

coexistente, se justifica de uma única forma: o medo da intolerância, de perder o vínculo formal e o compromisso com a realidade dominante que tanto o rejeita e o normatiza. O medo da rejeição, se de um lado escuda valores e comportamentos não heterossexuais, por outro, só reforça ainda mais a supremacia da heterossexualidade compulsória e seu domínio esmagador sobre a esfera pública. Não se deve culpar, no entanto, os grupos que utilizam o dispositivo social do armário para escamotear um conflito latente. Nunca se viu tamanha violência e perseguição àqueles que vivem a margem das normas de gênero e sexualidade através de deslocamentos. A cada ano, assassinatos, agressões e manifestações de violência simbólica e institucional só fazem aumentar as estatísticas que reforçam a homofobia como um problema social que carece de soluções emergenciais para o seu combate. Se a escola vacila no seu papel de educar para paz e pelo respeito e reconhecimento ao diferente, ela também se torna culpada por promover junto aos seus alunos uma pedagogia desengajada do compromisso

com

a

equidade, 996

com

o

necessário

respeito

à

humanidade e com urgente necessidade de uma convivência harmoniosa e pacífica entre os indivíduos humanos sempre a serviço da preservação da diversidade. E o combate à homofobia, quanto mais cedo entre os sujeitos em formação escolar, melhor produzirá indivíduos que tenham compromisso com a vida e com sua variedade existencial.

5. CONCLUSÃO Com este trabalho, percebe-se que o bullying homofóbico, enquanto agressão interpessoal estereotipada e pautada num evidente desequilíbrio de poder entre os personagens é um mecanismo de violência a serviço da manutenção dos padrões hegemônicos e dominantes, e que ser “normal” neste caso específico, é estar sintonizado com os axiomas heterossexistas compulsórios: 

Vagina/mulher/emoção/maternidade/procriação/heterossex ualidade;



Pênis/homem/racionalidade/paternidade/procriação/hetero ssexualidade; A expressão da diversidade em seu sentido amplo fica

completamente comprometida com este tipo de prática agressiva, uma vez que o mote para seleção das vítimas como bode expiatório é justamente algum elemento de discrepância que destoa o vitimizado em relação ao restante do grupo (como exemplo, possuir trejeitos efeminados para homens e masculinizados para mulheres etc.). A recusa ao diferente é o carro chefe da violência bullying. Este tipo de agressão também pode ser revestir em violência de gênero e heteroterrorismo, especialmente através das assimetrias e marginalizações produzidas que criam um sistema centro-periferia que solapa experiências identitárias alternativas ao modelo legitimado. E a

997

escola, em seu projeto pedagógico de formar cidadãos mais críticos e solidários,

acaba

por

escamotear

o

conflito

ao

reproduzir

ideologicamente os fundamentos de um sistema taxonômico que privilegia alguns em detrimento de todos os outros.

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998

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999

AVALIAÇÃO DA ATUAÇÃO DO JUDICIÁRIO NO ESCOPO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE GÊNERO

Anna Christina Freire Barbosa301 Lore Fortes302

Resumo: A consideração do processo de formulação programática da agenda pública, bem como os seus reflexos nos atores sociais, passa necessariamente por uma sistematização dos princípios norteadores da ação dos agentes envolvidos no ciclo das políticas públicas, que serve de base a orientação da cultura burocrática quanto aos problemas de fundo político-cultural vinculados a temática de gênero. Para discutir a questão, o presente trabalho analisa a estrutura discursiva do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres – PNPM, acerca das múltiplas formas de representação social referente a atuação do sistema de justiça quanto as demandas relativas a violência de gênero propostas relativamente às expectativas de avaliação do Judiciário no que se refere a prestação jurisdicional.

Palavras-chave: feminismo.

Políticas públicas; democracia; avaliação; sistema de justiça;

1. INTRODUÇÃO

No atual contexto de democracia participativa propiciado pela Constituição de 1988, novos espaços institucionais de participação, formulação e representação de interesses se associam à disponibilidade de informação para alimentar o debate e a participação política. Tomando

de

empréstimo

o

argumento

de

Amartya

Sen,

“particularmente importante compreender que até mesmo o êxito da 301

Graduada em Ciências Sociais (UFBA), Mestra em Economia (UFC), Mestra em Sociologia (UFPE), Doutoranda em Ciências Sociais (UFRN). Professora assistente da Universidade do Estado da Bahia e da Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina. [email protected]. 302 Graduada em Ciências Sociais (UFPA), Mestra em Planejamento Urbano e Regional (UFRS) e Doutora em Sociologia (UnB). Professora adjunta (UFRN). Membro do Conselho Editorial das Revistas Cronos (PGCS/UFRN). [email protected].

1000

democracia ateniense tinha mais a ver com o clima de discussão pública do que com a mera votação” (SEN, 2011: 363).

A reflexão

sobre os processos que envolvem a esfera pública se coloca como uma necessidade inconteste na produção intelectual, dados os persistentes cenários de desigualdade social, dentre os quais os que afetam as mulheres quanto a participação (TABAK, 2002) nos mecanismos de poder. Nesse contexto,

se insere a discussão de proposições

e

efetividade de políticas públicas. Parte da tarefa de análise de uma política pública está na avaliação, concebida como uma investigação de uma política, programa ou agência, como medida de estimação quantitativa ou qualitativa acerca do que está sendo produzido em determinada instituição (CAIDEN; CAIDEN, 2001). O que possibilita, por um lado, introduzir organização e racionalidade à consecução de objetivos e metas (COHEN; FRANCO, 2008) e, por outro, permite alimentar o debate público, condição fundamental do regime democrático. Ao se considerar os dados do Mapa da Violência (WAISELFISZ, 2012),

no Brasil nos 30 anos decorridos entre 1980 e 2010 foram

assassinadas acima de 92 mil mulheres, 43,7 mil só na última década. Observando-se os dados internacionais é possível

obter uma visão

comparativa dos níveis de violência existentes no país que, com uma taxa de 4,4 homicídios em 100 mil mulheres, o ocupa a sétima posição no contexto dos 84 países do mundo com dados homogêneos da OMS compreendidos entre 2006 e 2010,

que demonstra

que a violência

contra as mulheres não é uma questão privada, mas de políticas públicas, em especial de segurança e saúde pública. Para discutir a questão,

o presente trabalho constitui parte de pesquisa em

andamento acerca das múltiplas formas de representação social referente a atuação do sistema de justiça quanto as demandas

1001

relativas a violência de gênero propostas pelo movimento feminista no cenário brasileiro. Analisa a estrutura discursiva do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres – PNPM com o objetivo de reconstituir a concepção que serve de base a orientação da cultura burocrática brasileira quanto aos problemas de fundo político-cultural vinculados a temática de gênero. Além da presente introdução, o texto está subdividido como segue: na primeira seção trata da formulação da agenda pública do feminismo e modo de estruturação do PNPM; na seguinte analisa como são postas as expectativas de enfrentamento da violência através do sistema de justiça, bem como questões relativas à avaliação da implementação das ações propostas; por fim, tece considerações finais.

2. A AGENDA DO FEMINISMO

As políticas públicas se circunscrevem enquanto proposição de realização do bem comum como produção histórica,

assim como

parte do processo decisório no jogo do poder (HÖFLING, 2001). De um lado as políticas públicas se circunscrevem enquanto proposição de realização de bem comum como produção histórica, mas, por outro, também como processo decisório (LINDBLOM, 1981) no jogo do poder. As questões de fundo ganham relevância, na complexidade da movimentação dos atores sociais (políticos, técnicos, organismos da sociedade civil e outros) com reflexos para a sociedade como um todo, configurando a orientação política de um determinado governo e desempenhando as funções de Estado num determinado contexto. A consideração do processo de formulação programática da agenda pública, bem como os seus reflexos nos atores sociais, passa 1002

necessariamente por uma sistematização dos princípios norteadores da ação dos agentes envolvidos no ciclo das políticas públicas, na medida em que são atores políticos (RODRIGUES, 2010). Dessa maneira é fundamental refletir como são produzidos e inseridos ideais, valores e imagens, tomados como hegemônicos pela difusão de narrativas (MORAES, 2002) que vão ser traduzidas em telos coletivo. A formulação de uma agenda política que coloque de modo apropriado a temática da desigualdade social tem sido um forte motor de impulso das reivindicações por parte dos movimentos sociais, aspecto que não é diferente por parte do movimento feminista na formulação

do

plano

brasileiro

para

enfrentar

as

persistentes

desigualdades de gênero (SCOTT, 1996; INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2011), como é possível verificar na seguinte afirmação da então Ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, Nilcéa Freire, quando da apresentação do II PNPM: “O II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres é a expressão inequívoca do compromisso do governo brasileiro com a igualdade e a justiça social para todos e todas” (II PNPM: 17). Desde os primórdios do Estado moderno o movimento de mulheres traz a marca da discussão acerca das estruturas de poder, como fizeram Olympe de Gouges Mulher

com Declaração dos Direitos da

e

da

Cidadã

em 1791, Mary Wollstonecraft em 1792 com A Vindication of the Rights of Woman (MOTA, 2009) ou Nísia Floresta, que em 1832 publica a obra “Direito das mulheres e injustiça dos homens” (FLORESTA, 1989). O discurso internacional acerca do tema ganha fôlego no século XX a partir de 1975, quando a ONU instituiu pela primeira vez o Dia Internacional da Mulher, criando assim a oportunidade de discussões mais amiúde sobre o tema, como a inclusão pela Comissão de Direitos Humanos em 1993, em Viena (ONU, 1993), de um capítulo acerca de medidas para coibir a violência de gênero. 1003

No Brasil, o tema dos direitos das mulheres no âmbito das políticas públicas passou por várias fases (BLAY, 2003) e entra na agenda de discussões com nova roupagem com a inclusão de atores políticos propiciada pelo processo de redemocratização brasileira a partir da década de 1980, em especial quanto a participação de movimentos sociais relativamente a atuação do Estado para o atendimento de demandas por reconhecimento e redistribuição sob o argumento de mais justiça social, com impactos diretos na forma de concepção tanto da atividade legislativa quanto da sua materialização nos diversos níveis de governo. O espaço de representação política das lutas feministas vem cumprir com o papel de viabilizar a realização da cidadania plena,

num processo de formação de mentalidades para a

democracia representativa (FERREIRA, 2004). No bojo da discussão foram concebidos momentos de intensa discussão e formação de uma pauta de reivindicações como fruto da articulação do movimento feminista em nível mundial, que culminaram na

formulação

de

documentos

contra

a

natureza

sexista

da

formatação do Estado, com manifestação expressa de desagrado quanto ao tratamento legal e institucional dado a questão de direitos humanos, ao trazer à baila questões de fundo quanto a gestão da violência de gênero, como por exemplo a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher

-

"Convenção de Belém do Pará" em 1994, capítulo III artigos 7, 8 e 9. Decorrendo daí a implementação de uma política nacional voltada para o tema através do Plano Nacional de Políticas para Mulheres. No que se refere ao combate à violência contra as mulheres, as ações desenvolvidas incluem o estabelecimento e o cumprimento de normas penais que garantam a punição e a responsabilização dos agressores/autores de violência, bem como a implementação da Lei Maria da Penha, em especial nos seus aspectos processuais penais e no que tange à criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher... Já no que tange à defesa e promoção dos direitos humanos das mulheres, a Política deve cumprir as

1004

recomendações previstas nos tratados... Neste campo, devem ser implementadas iniciativas que promovam o empoderamento das mulheres, o seu resgate como sujeitos de direitos e o acesso à justiça. (II PNPM: 98)

Assim, as questões de gênero relativas às mulheres passaram a necessitar de um tratamento de caráter teórico-metodológico, se inserindo no espaço de investigação das ciências sociais (MIÑOSO, 2011) quando da inserção de fatores condicionados a uma nova concepção de igualdade na estrutura do Estado. O tema passa a ser recorrente, num movimento de inclusão como categoria sócio histórica dentro da análise das relações de poder que decorrem da diferença cultural que lhes dá significação (SCOTT, 1996).

2.1 - O escopo do PNPM

Durkheim (1984), em fins do século XIX, escreveu que sociedade não é simplesmente o produto da ação e da consciência individual. Pelo contrário, as maneiras coletivas de agir e de pensar resultam de uma realidade exterior aos indivíduos que, em cada momento, a elas se conformam. Entre as representações sociais que se colocam como capazes

de

traduzir

a

consciência

coletiva

está

o

direito

institucionalmente estabelecido, e pelo seu tipo, podemos inferir a solidariedade social. Vejamos assim como isso se dá no PNPM. O PNPM partiu um marco legal calcado tanto nos fundamentos constitucionais de 1988 quanto internacionais, quais sejam:

em diversos instrumentos

legais

Declaração e Plataforma de Ação da III

Conferência Mundial sobre Direitos Humanos (Viena, 1993); Declaração e Plataforma de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento

(Cairo,

1994);

Convenção 1005

Interamericana

para

Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará (1994);

Declaração e Plataforma de Ação da IV

Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995); Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW (1979); Protocolo Facultativo à CEDAW (1999); Declaração e Programa de Ação da III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (Durban, 2001); Cúpula do Milênio: Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (2000); Recomendação nº. 90, de 29 de junho de 1951, da Organização Internacional do Trabalho – OIT, sobre a igualdade de remuneração de homens e mulheres trabalhadores por trabalho de igual valor; Recomendação nº. 165, de 23 de junho de 1981, da OIT, sobre Igualdade de oportunidades e de tratamento para homens e mulheres trabalhadores com encargo de família; Convenção nº. 100, de 29 de junho de 1951, da OIT, sobre a igualdade de remuneração de homens e mulheres por trabalho de igual valor;

Convenção nº. 111, de 25 de

junho de 1958, da OIT, sobre Discriminação em Matéria de Emprego; Convenção nº. 111, de 25 de junho de 1958, da OIT, sobre Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação (entrou em vigor, no plano internacional, em 1960); Convenção nº. 156, de 23 de junho de 1981, da OIT, sobre a igualdade de oportunidades e de tratamento para homens e mulheres trabalhadores com encargo de família. O escopo do plano atingiu as esferas do trabalho, educação, saúde

e

enfrentamento

mecanismos

de gestão

a

violência.

Adicionalmente,

e monitoramento

para

o

propôs

plano,

com

fundamento em princípios no sentido de preservar direitos civis e políticos. Observe-se o que se segue no sentido de perceber as bases de concepção do PNPM. Seguem sendo linhas mestras do nosso trabalho: a igualdade; o respeito à diversidade; a equidade; a autonomia das mulheres; a laicidade do Estado; a universalidade das políticas; a justiça

1006

social; a transparência dos atos públicos; a participação; e o controle social. (II PNPM: 17)

Como diretrizes, princípios norteadores da intervenção do Estado no ordenamento da sociedade, as políticas públicas determinam regras e procedimentos para as relações entre poder público e sociedade. Parafraseando Lasswell (1984), pode-se dizer que elaborar uma política pública significa definir quem decide o quê, quando, com que consequências e para quem. Como parte do processo decisório, as políticas públicas integram o argumento social de legitimação da ação do Estado, possuem cunho político e, ato contínuo, valorativo (FREUND, 1965). A ideia subjacente é de uma identidade de gênero vinculada a uma dimensão de pluralidade, como base do enfoque para valores capazes de redirecionar a concepção tecnocrática para um novo contexto de desenho de políticas públicas, propondo uma novo desenho de ação articulada em rede entre as esferas de governo federal, estadual e municipal. Os conceitos

de igualdade, justiça social e equidade, vão

aparecer como recorrentes em todo o texto, e são assim definidos:

Igualdade e respeito à diversidade – mulheres e homens são iguais em seus direitos e sobre este princípio se apoiam as políticas de Estado que se propõem a superar as desigualdades de gênero. A promoção da igualdade requer o respeito e atenção à diversidade cultural, étnica, racial, inserção social, de situação econômica e regional, assim como aos diferentes momentos da vida. Demanda o combate às desigualdades de toda sorte, por meio de políticas de ação afirmativa e consideração das experiências das mulheres na formulação, implementação, monitoramento e avaliação das políticas públicas. (II PNPM: 27) Justiça social – implica no reconhecimento da necessidade de redistribuição dos recursos e riquezas produzidas pela sociedade e na busca de superação da desigualdade social, que atinge de maneira significativa as mulheres. (I PNPM, p. 32; II PNPM: 28).

1007

Equidade - o acesso de todas as pessoas aos direitos universais deve ser garantido com ações de caráter universal, mas também por ações específicas e afirmativas voltadas aos grupos historicamente discriminados. Tratar desigualmente os desiguais, buscando-se a justiça social, requer pleno reconhecimento das necessidades próprias dos diferentes grupos de mulheres. (I PNPM: 33; II PNPM: 27)

Na primeira versão está estruturado na Parte II em quatro capítulos, e traz a seguinte formatação: justificativa, objetivos, metas, prioridades e plano de ação, prevendo e determinando responsáveis, prazos e produtos envolvendo atuação em várias instâncias ministeriais em necessária articulação, com reflexos nos diversos níveis de programas em estados e municípios. Apresenta proposições conforme descrito a seguir. No capítulo 1, intitulado ‘Autonomia, igualdade no mundo do trabalho e cidadania’, trata a questão do trabalho a partir de preceitos emanados da Declaração dos Direitos da Pessoa Humana, convenções da ONU e OIT, focando em questões desde desigualdade de oportunidades de trabalho dada pela condição da maternidade, a raça, a deficiências e doenças como HIV, obesidade, além do assédio moral bem como o acesso limitado a terra e ao crédito agrícola. O capítulo 2, intitulado ‘Educação inclusiva e não sexista’ traz uma análise da situação de escolaridade no Brasil seguida de proposições como: educação inclusiva quanto a perspectiva de gênero, raça, etnia e orientação sexual, inclusive com elaboração de material didático apropriado; redução do analfabetismo; incremento creches

e

pré-escola;

campanhas

de

de vagas em

valorização

da

mulher;

capacitações de professores e profissionais da área da comunicação. No capítulo 3, intitulado ‘Saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos’, aborda questões referentes ao panorama de saúde na população feminina, em especial as causas de mortalidade, incluindose aí o aborto e a AIDS. O

capítulo

4,

intitulado

‘Enfrentamento

à

violência contra as mulheres’ faz uma discussão acerca das formas de 1008

violência, seus custos sociais e econômicos, bem como as dificuldades tanto de

efetividade ações voltadas a prevenção e redução dos

índices. Na versão seguinte, de 2008, o II PNPM é acrescido na segunda parte aos já citados capítulos mais seis, quais sejam: Participação das mulheres nos espaços de poder e decisão; Desenvolvimento sustentável no meio rural, na cidade e na floresta, com garantia de justiça ambiental, soberania e segurança alimentar; Direito à terra, moradia digna e infra-estrutura social nos meios rural e urbano, considerando as comunidades tradicionais; Cultura, Comunicação e Mídia igualitárias, democráticas e não discriminatórias;

Enfrentamento do racismo,

sexismo e lesbofobia; Enfrentamento das desigualdades geracionais que atingem as mulheres, com especial atenção às jovens e idosas. O enfoque acerca da necessidade de implantação de uma Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher com articulação dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário “a partir de um mesmo marco conceitual” (p. 76), terminou por levar a formatação em agosto de 2007 do Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência Contra a Mulher. Na parte III, o plano traz nas duas versões capítulo que prevê a ‘Gestão e monitoramento do plano’, com articulação entre os diversos setores do governo envolvidos nas proposições do Plano, devendo ser acompanhado por um Comitê de Articulação e Monitoramento, com produção de relatório anual para balizar as ações institucionais. Adicionalmente, propôs o estímulo ao incremento de ações de capacitação, qualificação de agentes públicos, assim como a produção e disseminação de base de dados, informações, estudos e pesquisas diversas acerca da temática de gênero. Por fim, propõe a criação e fortalecimento de mecanismos institucionais de direitos e políticas para as mulheres, desde a criação de conselhos nas esferas 1009

estadual e municipal

até a consolidação de calendário para a

realização da Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres. Em especial quanto à consideração dos impactos gerados (DYE, 2011) e sua produção no campo político, percebe-se uma conotação de efeito simbólico, onde se destaca o papel do Estado como agente de implantação de políticas públicas com importantes reflexos, por ações ou omissões, dentro daquilo que é priorizado como meta e traduzido em ações por parte das instâncias formuladoras e executoras de programas.

Dada a abrangência dos fundamentos jurídicos do

PNPM, sendo fontes principais tratados e convenções internacionais, fica perceptível um movimento em que o Estado territorial circunscreve em

se

uma lógica de demandas transnacionais para a

garantia da implementação de políticas públicas para a igualdade de gênero, raça e etnia.

3. EXPECTATIVAS DE ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA ATRAVÉS DO SISTEMA DE JUSTIÇA. Dentro do cenário em que viceja o ideal de civilidade e igualdade,

a divisão social do trabalho historicamente

implica no

desenvolvimento de assimetrias, dadas as relações de dominação, especialmente no que se refere à distribuição dos recursos socialmente produzidos, como se verifica de modo bastante acentuado na realidade brasileira (GACITÚA-MARIÓ, E; WOOLCOCK, M, 2005; SANTOS, 2003; OSÓRIO, 2004). A

reprodução

contínua dentro das estruturas sociais de

desigualdades de poder e prestígio, vivenciadas pela estratificação social

produz reflexos na forma como se dá o comportamento

institucional, em especial quanto ao menor ou maior potencial de representação

nas estruturas política e jurídica (BAUMAN, 1999;

1010

MARTINS, 2002), excluem, de maneira sistemática, o cidadão e

são

potenciais meios de esgarçar o tecido social pois, não existe direito sem autonomia privada das pessoas jurídicas individuais de um modo geral. Portanto, sem os direitos clássicos à liberdade, particularmente sem o direito fundamental às liberdades de ação subjetivas iguais, também não haveria um meio para a institucionalização jurídica daquelas condições sob as quais os cidadãos podem participar na práxis de autodeterminação (HABERMAS, 2001:149).

A construção de um novo modelo de identidade questionador das formas históricas de identificação da mulher nas práticas sociais (PRIORE, 2006), vem na esteira da constituição uma rede de segurança jurídica

e no enfrentamento de questões políticas,

somando-se ao

desenvolvimento de uma rede assistencial focada na identificação, acolhimento e no tratamento da violência como questão de saúde pública. Vejamos o que dizem os extratos a seguir. Reconhecer a violência de gênero, raça e etnia como violência estrutural e histórica que expressa a opressão das mulheres e precisa ser tratada como questão de segurança, justiça e saúde pública. (II PNPM: 34)

Para o caso em questão tem-se como base

o disposto no

Capítulo 4- Enfrentamento à violência contra as mulheres, para o que apresenta-se o quadro a seguir de modo a permitir a visualização dos tipos de ações propostas relativas ao seu respectivo plano de ação. Quadro 1 - Demonstrativo de ações previstas para Enfrentamento à violência contra as mulheres I PNPM Tipo de ação

%

Estrutura física

19,36

Capacitação/educação

41,94

1011

Atendimento especializado

12,90

Ação política

03,22

Produção de dados/avaliação

22,58

Total*

100,0

Sob responsabilidade do MJ

54,83

Fonte: Elaboração própria * Referente a 31 ações

Quadro 2 - Demonstrativo de ações previstas para Enfrentamento à violência contra as mulheres II PNPM Tipo de ação

%

Estrutura física

13,04

Capacitação/educação

37,00

Atendimento especializado

29,00

Ação política

12,00

Produção de dados/avaliação

08,96

Total**

100,0

Sob responsabilidade do MJ

37,68

Fonte: Elaboração própria ** Referente a 69 ações

1012

A

reflexão

cidadania,

acerca

da

liberdade

individual,

igualdade

e

permite a constatação de pelo menos dois fatos:

juridicialização dos conflitos sociais e o surgimento de novos atores políticos construtores de uma nova a lógica discursiva da ordem jurídica (BALANDIER, 1997). No que tange à juridicialização do conflito social, há uma transferência de expectativas quanto à distribuição de riqueza e reconhecimento social,

provocando um aumento do espaço

discricionário dos agentes do direito (leia-se: as instâncias decisórias do Poder Judiciário) (SORJ, 2004). Por outro lado, na tentativa de minorar as oposições frente às desigualdades sociais, emergem atores dentro da sociedade civil, tais como as ONG’s e organismos internacionais, no rumo de consolidar práticas para afirmação da identidade via políticas sociais quanto ao gênero, infância, minorias ou ecologia. Neste sentido, Giddens

(1991)

aponta

para

novas

dimensões

institucionais,

especialmente pela comunicação e consequente extensão da percepção e partilha dos processos sociais em curso. A dificuldade de maior relevância está da equalização do discurso, dado que a concepção de cidadania está vinculada a contextos históricos, portanto intrinsecamente singulares. Basicamente são dois movimentos que se interpolam: criação de identidades coletivas para maior participação política e econômica; e ainda a limitação da capacidade de elaboração de propostas para a transformação do conjunto da sociedade. O entendimento do habitus estabelecido para o enfrentamento das desigualdades de gênero, como “sistema das disposições socialmente constituídas que, enquanto estruturas estruturadas estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias características de um grupo de agentes” (BOURDIEU, 2001), em especial as agendas criadas seja na esfera da segurança pública, seja na esfera da rede assistencial e de saúde.

1013

A concepção de política pública como vetor de mudança social (TINOCO, 2010) requer por parte da tecnocracia a percepção do papel de inserção de matrizes ancoradas em aportes teóricos capazes de atender a abrangência do processo de implementação de estratégias específicas e de estruturar a ação pública, vez que o Estado não é detentor do monopólio de fabricação do território e deve alinhar as suas ações aos stakeholders, em suas aspirações e necessidades, como fica evidenciado no extrato abaixo. A política de enfrentamento à violência contra a mulher tem sido prioridade da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, que tem trabalhado na promoção do atendimento às mulheres, na capacitação e qualificação de profissionais e no acesso à justiça (II PNPM: 75).

Intui-se a existência de limitação na realização do discurso. À promessa da integração se contrapõem múltiplas desigualdades de ordem material e simbólica na sociedade contemporânea. Habermas (2001),

ao tratar do

tema, mostra que a sua compreensão requer considerar a necessidade de legitimação das estruturas da ordem e domínio social no Estado moderno, dependentes de reconhecimento público e de ordens jurídicas pertinentes, de modo a viabilizar compatibilidades capazes de amalgamar de modo aceitável discrepâncias intestinas. Neste contexto, o exercício da cidadania é via da consolidação do discurso dos direitos humanos e pode ser considerada como

uma

esfera

de

comunicação

social

em

pretensamente se reconhecem enquanto agentes.

que

os

indivíduos

A afirmação da

incondicionalidade da igualdade traz estabilidade aos laços de sociabilidade, reforçada pelo aparato legal e institucional do Estado. Ao analisar o marco legal tomado como base para o PNPM, vê-se que o

princípio

norteador

da

nova

institucionalidade

proposta

está

em

consonância com as concepções acerca dos direitos humanos como parte de

uma

ecologia

do

reconhecimento

(SANTOS,

2007)

no

espaço

transnacional. Ao tratar a questão da violência de gênero deslocou o tema da esfera privada para a esfera pública por “se constituir em uma questão que diz respeito aos papéis sociais, às expectativas sociais, que são atribuídos

1014

de forma desigual e arbitrária aos seres humanos do sexo feminino e masculino” (COULOURIS; BOSELLI, 2009: 128). Se por um lado a politização tem permitido um processo de construção afirmativa de identidade, com a viabilização de construção de uma pauta política que busca a proteção jurídica, por outro está vinculada a políticas de saúde e acolhimento desde a atenção às doenças sexualmente transmissíveis até o encaminhamento pelos profissionais da rede assistencial. O fato é que podemos ressaltar nesse cenário uma afirmação direcionada as esferas institucionais federais, a partir da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, de um discurso orientador de segmentos da gestão pública, tanto na captação

quanto na implementação de serviços direcionados às

mulheres vítimas de violência. Dentro do campo do poder (BOURDIEU, 1996) do Estado, com congregação dos diferentes tipos de capital (coercitivo, econômico, cultural) tomou como base para uma nova consolidação de posicionamento quanto a desigualdade de gênero a Convenção Americana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (OEA, Brasil, 1995), que define violência contra a mulher não como qualquer tipo de violência praticada contra a mulher, mas como a violência que é baseada no gênero, assim definida: “entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”. Do ponto de vista dos impactos que causou,

ressalta o efeito simbólico de

despertar para um novo ‘espírito de Estado’ proposto.

3.1 O problema da avaliação

As duas edições do PNPM têm capítulo destinado a gestão e monitoramento, indicando a necessidade de criação de metodologia de acompanhamento para readequações futuras, declarando como prioridade de ação a produção, organização e disseminação de dados, estudos e pesquisas que tratem das temáticas de gênero, raça/etnia, violência contra as 1015

mulheres, orientação sexual, geração e direitos humanos, do que decorreu a criação do grupo de acompanhamento OBSERVE – Observatório de Monitoramento da Lei Maria da Penha. Os dados apresentados pelos diversos relatórios produzidos pelo OBSERVE integram as atividades do Projeto de Construção e Implementação do Observatório de Monitoramento da Lei 11.340/2006 - Lei Maria da Penha, dão conta de levantamentos nacionais acerca do funcionamento nas diversas regiões do país, em especial relativamente

aos elementos de

estruturação de delegacias, juizados e serviços especializados (CFEMEA, 2007; CNJ, 2010) e ao quantitativo de atendimentos, realizando uma cartografia fundamental para conhecer em que bases ocorrem os atendimentos a mulheres vítimas de violência no país, como é o caso do Disque 180, que somente no primeiro semestre de 2012 recebeu 47.555 registros de relatos de violência. A seguir vale a pena considerar um trecho do relatório com uma das conclusões apresentadas relativamente às condições de implementação da Lei Maria da Penha. Um dos grandes problemas que afeta o funcionamento das DEAMS e tem se constituído como obstáculo para a aplicação da Lei 11.340/2006 é a falta de padronização na forma de funcionamento destas instâncias e no atendimento que oferecem às mulheres. (OBSERVE, 2010:31)

Digno de nota é empenho da SPM para a aplicação da Lei Maria da Penha via Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, realizado em parceria com governos estaduais e sistema de justiça, e a realização da campanha ‘Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha – A lei é mais forte’, para responsabilização dos agressores por meio da mobilização do sistema de justiça em julgamentos de crimes de violência contra as mulheres. Entretanto, a despeito de serem apontadas diversas lacunas na atuação do sistema de justiça, fica clara a debilidade

da avaliação no

sentido de se municiar de forma adequada a análise das questões envolvidas. Fica a desejar a formulação de uma metodologia que dê conta dos multivariados problemas vivenciados no cotidiano, tanto pelas destinatárias

1016

das políticas,

quanto pelos demais atores sociais, em especial aqueles

envolvidos na prestação jurisdicional. Questões como eficácia e efetividade do sistema de justiça, e contido nele o Poder Judiciário, carecem de metodologia hermenêutica que rompa com uma perspectiva ética e vá ao encontro de uma perspectiva êmica com a percepção de uma ontologia relativista (GUBA; LINCOLN, 2011)

que

alcance o animus do funcionamento das instituições envolvidas.

4. CONCLUSÕES

O PNPM se caracteriza como uma tentativa de instituir um ponto de inflexão quanto ao espaço de representação na estrutura do Poder Executivo com reflexos tanto no Legislativo quanto no sistema de justiça. Nesse sentido, o Brasil se alinhou ao movimento adotado por outras nações em corroborar convenções internacionais que produziram um novo momento conceitual de percepção para as questões de gênero.

No bojo da discussão foram

concebidos momentos de intensa discussão e formação de uma agenda de políticas públicas como fruto da articulação do movimento feminista em nível mundial, que culminaram na formulação de documentos contra a natureza sexista das relações geridas pelo do Estado. Embora traga no seu design objetivos, metas, prioridades e plano de ação, não permite visualizar de forma clara quais os elementos capazes de dar

vazão

plena

a

sua

consecução,

bem

como

os

níveis

de

operacionalidade para as ações propostas. Por outro lado, trouxe como avanço democrático a absorção de proposições validadas na esfera dos movimentos sociais, propiciando a inserção do movimento feminista numa posição privilegiada quanto a possibilidade de interferência quanto ao desenho do Estado brasileiro, confrontando a cultura estabelecida, que até então não incluía a questão de gênero como critério de justiça material para a formulação das políticas públicas. 1017

Por outro lado, incluir a questão referente à insuficiência das previsões quanto a aplicação da lei penal, em especial com relação ao disposto pela Lei Maria da Penha, não parece responder de forma adequada às necessidades de um controle sobre o tipo de atuação institucional do Poder Judiciário e do sistema de justiça como um todo. Que tipo de avaliação e controle social é possível instituir? O CNJ tem a prerrogativa de fiscalizar, mas em que medida isso tem sido aplicado as questões relativas a gênero? São questões

que permanecem em

aberto.

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1020

Secretaria de Políticas para Mulheres/SPM http://www.sepm.gov.br/

1021

NEM SÓ DE VERMELHO SE PINTA O AMOR: REFLEXÕES SOBRE UNIÃO HOMOAFETIVA Viviana Bezerra de Mesquita303 Orientador: Francisco Paulo da Silva RESUMO: Esse trabalho tem como objetivo refletir questões sobre a união homoafetiva, evidenciando a imposição da heterossexualidade e seus efeitos de sentido sobre os sujeitos homossexuais frente aos novos paradigmas emergentes envolvendo a sexualidade e subjetividades dos sujeitos da sociedade do século XXI. Metodologicamente adotamos a análise discursiva de enunciados do site “jornalfloripa.com.br” de 16 de agosto de 2012 intitulada “Vaticano apoia iniciativa da Igreja francesa contra casamento gay”, dialogando com os pressupostos teóricos da Analise do Discurso de base francesa, apoiando-nos principalmente nos estudos de Michel Foucault sobre o sujeito e o poder e diálogos desse campo com os Estudos Culturais. Palavras chaves: União homoafetiva, família, discurso.

INTRODUÇÃO Neste trabalho utilizaremos a noção de sujeito e poder em Michel Foucault (2010) os pressupostos da noção de identidade na pósmodernidade apresentada por Hall (2011) e ainda a conjugalidade homossexual no Brasil e as novas famílias tratadas por Luiz Melo (2005) com intuito de refletir sobre as normas heterossexuais e os seus impactos na construção das subjetividades dos sujeitos LBGT304. Em dialogo com estes autores faremos uma reflexão sobre os sentidos produzidos em torno do tema união homoafetiva e os discursos que circulam produzindo efeitos de verdade sobre o tema em questão.

303

Graduada em Ciências Sociais (UERN), Mestrando do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH/UERN). Assessoria Técnica no campo da Economia Solidária, agroecologia e feminismo. [email protected]. 304 Graduado em Letras (UERN), Mestre em Letras (UFRN) e Doutor em Linguística e Língua Portuguesa (UNESP). Professor Adjunto do Departamento de Letras Vernáculas, da Faculdade de Letras e Artes da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). É membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Letras - PPGL/ Mestrado em Letras, da UERN e do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais e Humanas (PPCISH/UERN); Coordenador do Grupo de Estudos do Discurso (GEDUERN).

1022

A ideia de identidade na pós-modernidade marcada por Hall (2011) apresenta apontamentos sobre as mudanças e alterações nas subjetividades dos sujeitos da atualidade. Localiza tempo e lugar num cenário onde os sujeitos se deslocam se movimentam e se permitem as alterações e descontinuidades, possível de construção e reconstrução das identidades, incluindo a capacidade de resignificação das subjetividades. A

compreensão

de

novas

famílias

de

Luis

Melo,

inclui

necessariamente a união homoafetiva305. Inclui os aspectos que historicamente foram excluídos da normatividade imposta pelo modelo heterossexual de relacionamento afetivo entre os sujeitos. Inclui os novos modos de convivência, as mudanças variáveis de cunho social, econômico, político e cultural. O modelo das novas famílias rompe com os padrões da moral inspiradora da família tradicional, representada simbolicamente pela presença de um homem e de uma mulher como requisito básico da constituição de família e afetividades. O conceito de novas famílias é constantemente alvo de ataques da moral e da heteronormatividade como principio único de afetividade entre os sujeitos. Com

intuito

de

materializar

as

reflexões

sobre

a

união

homoafetiva, faremos uma análise discursiva dos enunciados do site “jornalfloripa.com.br” de 16 de agosto de 2012 em matéria intitulada “Vaticano apoia iniciativa da Igreja francesa contra casamento gay”. Alicerçado nos pressupostos teóricos da Analise do Discurso de base francesa.

AS MUDANÇAS DA PÓS-MODERNIDADE 1.1 A Constituição dos sujeitos e suas subjetividades 305

Termo cunhado por Maria Berenice Dias na primeira edição da obra: União Homossexual, o preconceito de a Justiça, no ano de 2000.

1023

Para

Stuart

Hall

(2011)

ocorre

na

pós-modernidade

um

descentramento do sujeito em relação a sua identidade. a sociedade não é, como os sociólogos pensaram muitas vezes, um todo unificado e bem delimitado, uma totalidade, produzindo-se através de mudanças evolucionárias a partir de si mesma, como o desenvolvimento de uma flor a partir de seu bulbo. Ela está constantemente sendo “descentrada” ou deslocada por forças fora de si mesma”. (HALL, p.17, 2011)

A partir do conceito de pós-modernidade em Hall (2011) identificamos as mudanças de paradigma referente às identidades dos sujeitos. Compreendemos as alterações nas estruturas sociais, a partir do atravessamento do modelo fixo e estável da modernidade para uma perspectiva de modelo em movimento, descentralizada. As mudanças nas estruturas sociais consequentemente provocaram deslocamentos no modo como os sujeitos se comportam e se relacionam entre si, alterando seus signos representativos e suas identidades, “à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos

confrontados

por

uma

multiplicidade

desconcertante

e

cambiante de identidades possíveis” (HALL, p. 13. 2011) Havendo mudanças

nas

estruturas

do modelo social, há

consequentemente mudanças diretas no modo de se representar nessas estruturas, ou seja, “a identidade, então, costura o sujeito à estrutura” (HALL, 2011). Ao relacionarmos a constituição das identidades e as mudanças paradigmáticas da pós-modernidade percebemos como a formação das identidades estão intimamente ligadas às estruturas. Vejamos: Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Essa perda de um

1024

“sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo. (HALL, p. 9, 2011).

No entanto, de acordo com Hall (2011) temos uma fragmentação das identidades, um descentramento do sujeito e uma ruptura com o modelo onde os indivíduos antes eram fixos e estáveis em relação a sua constituição de ser social com papeis socialmente sólidos, em detrimento de um cenário social possível e favorável a fragmentação e diversificação dos papeis sociais assumidos por cada individuo em lugares específicos. O caráter da diversidade presente nesse novo modelo de estrutura social posto na pós-modernidade, é, um dos principais elementos que contribui para a crise de identidade entre os sujeitos, pois, se “eu” posso ser “muitos” ao mesmo tempo, então como e porque querer ser apenas “um”? Quando na maioria das vezes é impossível ser apenas “um”.

A relação da identidade com a

sexualidade é um campo bastante denso e complexo do ponto de vista onde se coloca em evidência a subjetividade plena do sujeito. Na arena da sexualidade a coisa passa a se complexificar, especialmente pelo fato de existir modelos historicamente fixos e estáveis orientados por uma memória discursiva, da moral, da religião, da medicina e de tantas outras tão fervorosamente arraigadas aos tradicionais tipos sociais de sujeitos, ocorridas na sociedade ao longo do tempo, deixando pouco espaço para o exercício das subjetividades dos sujeitos, quando não muito fortemente objetivam os indivíduos de tal modo a aprisiona-lo aos modos fixos de existência. O modelo heterossexual de afetividade entre os indivíduos é tido como o modelo da regra, da aceitabilidade, da naturalidade, da normatização, se opor a este modelo, significa automaticamente ser

1025

deslocado do que, via de regra, é verdadeiro e correto. É, no entanto, compreendido como marginal às formas de afetividade entre os indivíduos que não estão em acordo com o modelo heterossexual. Ocorre que, o que está em confronto ao modelo heterossexual é a própria forma de vida em sociedade estabelecida na pósmodernidade, ou seja, a sociedade mudou, está mudando, é cíclica sua forma de se estruturar, de modo que, sendo assim, mudam-se também as formas de se representar e se de identificar com o mundo ao redor. A diversidade sexual, assim como a diversidade de todas as coisas, no mundo pós-moderno traz à tona a ideia de que ser diferente é possível, de que está em desacordo com os modelos padrões imposto pela modernidade do século XVII é possível e viável para os sujeitos que assim desejam estar no mundo. O campo da sexualidade passa a ganhar

espaço,

os

sujeitos

e

suas

identidades

sexuais

vivem

possibilidades reais de confrontar os padrões da norma fixa e estável de modelo de sexualidade e afetividade unicamente apoiado na heterossexualidade. No entanto, isso não significa dizer que vivemos uma sociedade de total abertura a diversidade sexual, estamos nesse campo, atravessando grandes debates e grandiosos desafios temáticos e práticos estão sendo travados até que se chegue a um cenário de maior tolerância em relação à diversidade sexual dos sujeitos na contemporaneidade e de maior abertura para o exercício das subjetividades dos indivíduos. Hall (2011) citando Laclau nos afirma que as sociedades pósmodernas, “são caracterizadas pela ‘diferença’; elas são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem variedade de diferentes ‘posições de sujeitos’ – isto é, de identidades – para os indivíduos”. Essas diferenças citadas são as brechas para a construção 1026

de novas perceptivas de vida dos indivíduos e suas sexualidades, é partindo do sentido da diferença que se acha o caminho para o espaço de constituição do ‘ser’ diferente, da possibilidade de sendo diferente existir no mundo. A aceitação e a existência das diferenças é a

brecha

para

provocar

a

impossibilidade

da

imposição

da

heterossexualidade sobre os sujeitos e suas identidades sexuais.

1.2. Novas Famílias e novas perspectivas

Para Melo (2005) a literatura das ciências sociais tem mostrado a crescente diversidade na formação e configuração das estruturas familiares atravessando o século XX. Embora se reconheça um modelo estável e universal acerca da família ideal, se aponta teoricamente e epistemologicamente para múltiplas possibilidades de organização das esferas familiares na contemporaneidade. Alguns autores acreditam que algumas das contribuições que mais influenciaram as mudanças no modelo de família, passou pela revolução sexual, as conquistas do movimento feminista, e a própria revolução industrial, forçando a ocorrência de alterações nas práticas e papeis sociais assumidos por homens e mulheres no decorrer do século XIX e meados do século XX. Segue-se um turbilhão de complexidades acerca do tema casamento e família. O sentido histórico da ideia de família, segundo Melo (2005) foi um “fenômeno originalmente restrito ao universo da aristocracia e da burguesia”, fundado nos parâmetros de continuidade das linhagens entre as famílias e garantia da integridade do patrimônio. Para Melo (2005) estamos vivemos atualmente outro cenário, com o surgimento de novas famílias que é pontualmente:

1027

marcada por duas características fundamentais: a afirmação da individualidade dos sujeitos na escolha de seus conjugues, a partir dos ideais do amor romântico; e a maior independência dos novos casais em relação a suas famílias de origem. (MELO, p. 26, 2005)

Desse modo percebemos o foco na subjetividade dos sujeitos presente na mudança de paradigma que envolve o sentido de família e de casamento e a maneira como a identidade e a subjetividade dos indivíduos vão aos poucos contribuindo com a caracterização de determinadas instituições como o modelo de família no decorrer do tempo. Parte-se de um modelo onde os valores do casamento eram baseados tão somente num contrato intrafamiliar visando à garantia de seus patrimônios e a “sobrevivência de grandes grupos sociofamiliares”, para assumir “basicamente a formação de uma aliança entre dois indivíduos que dizem se amar e não mais, entre dois grupos sociais ou linhagens” (MELO, p. 26, 2005) O surgimento de novas famílias no cenário social traduz as mudanças ocorridas com o advento da pós-modernidade da qual nos aponta Hall (2011). Deparamo-nos com grandes alterações de cunho sociais, econômicas, éticas, políticas e ambientais, que despontam como esferas da prática social que emerge sempre deslocando coisas e fazendo surgir outras. Com a fragmentação dos sujeitos temos a fragmentação das identidades e das relações sociais, assim, as subjetividades tendem a ficar dispersas. Deparar-se ao longo do século XX com um cenário onde os sujeitos LGBT se encontram organizados, ganhando gradativamente espaço no convívio social, é no mínimo assustador para os discursos da “vontade de verdade” (FOUCALT, 2010) e os efeitos de sentido desse discurso,

contrários

homossexuais,

ao

exercício

especialmente

da

quando

sexualidade esses

sujeitos

dos

sujeitos

passam

a

sugerir/reivindicar a garantia do Estado para formalizar, institucionalizar a união afetiva entre pessoas do mesmo sexo.

1028

Michel Foucault (1995) nos aponta três tipos de lutas existentes, uma delas diz respeito à “luta contra aquilo que liga o individuo a si mesmo e o submete, deste modo, aos outros (lutas contra a sujeição, contra as formas de subjetivação e submissão)” (FOUCAULT, p. 235, 1995). Podemos tranquilamente incluir as reivindicações dos sujeitos LGBT frente ao Estado visando à formalização legal da união afetiva entre pessoas do mesmo sexo na luta contra a subjetivação desses sujeitos, que embora fragmentados, moveis e flexíveis, têm suas identidades presas e submissas aos efeitos de poder e de sentido desprendidos pelo modelo ainda presente de ideal de família heterossexual através do discurso que fortalece essa memória e essa ideia. O que ocorre é que a luta pelo reconhecimento civil da união homoafetiva é muito maior do que o próprio sentido do casamento, ela ultrapassa o ideal de família e aproxima-se da luta mesmo pela subjetividade,

pelo

direito

de

ser,

sem

distinção,

longe

da

desvalorização do sujeito atrelado e definido apenas segundo o seu exercício de sexualidade. Para Foucault (1995) o objetivo filosófico da atualidade deva ser “não descobrir o que somos, mas recusar o que somos... temos que promover novas formas de subjetividades através da recusa deste tipo de individualidade que nos foi imposto há vários séculos” (FOUCAULT, P.239, 1995). Paradoxalmente nos deparamos com as mudanças de modelo social posto pela pós-modernidade, que permite o aparecimento do ‘diferente’ como aceitável, mais que ainda aprisiona a maneira como deve circular os discursos desse ‘diferente’, ocorre à existência de uma diversidade, uma multiplicidade de situações envolvendo os sujeitos, mais em meio a tudo isso, ocorre também à distribuição do poder que atravessa as relações sociais. As relações heterossexuais como modelo padrão de relações afetivas são modos impositivos de objetivar os 1029

sujeitos, tratando-os como inferior as outras formas de se relacionar afetivamente.

2. O DISCURSO RELIGIOSO E SEUS EFEITOS DE SENTIDO 2.1. Análise do corpus No portal de noticias virtual através do site “jornalfloripa.com.br” foi veiculado em 16 de agosto de 2012 uma matéria intitulada “Vaticano apoia iniciativa da Igreja francesa contra casamento gay”, na qual o jornal em questão comenta a atitude do vaticano em apoiar a igreja francesa contraria ao casamento gay. Esse fato será analisado com intuito de perceber, localizar e revelar os pontos onde se encontram os efeitos de sentido e de poder, formação discursiva e interdiscurso presente no corpus.

Fonte: jornalfloripa.com.br em 16 de agosto de 2012.

Ao analisar o corpus encontramos duas vozes enunciativas, uma emitida pelo representante do vaticano, e outra, expressa pelo próprio locutor/escritor

do

jornal.

No

entanto, 1030

faremos

um

recorte

e

analisaremos apenas a voz do representante do vaticano como forma de evidenciar o discurso religioso acerca do seu posicionamento em relação à união homoafetiva. E1- “ninguém quer negar os direitos individuais, absolutamente não” E2 – “o casamento é outra coisa; a família nasce justamente do casamento. Acho que é preciso defender esse principio cultural, que, para nós, é religioso. É um grande desafio que devemos enfrentar em tosos os cantos do planeta” O primeiro enunciado coloca em destaque o termo “direitos individuais” numa referência aos direitos universais e aos direitos humanos. Por meio deste enunciado observamos sujeitos em confrontos, posicionados

em

formação

discursiva

oposta.

O

sujeito

desse

enunciado se marca institucionalmente na figura representativa do vaticano, emblema máximo da igreja católica. Os outros sujeitos em formação discursiva oposta são os favoráveis e dispostos à realização da união homoafetiva, implícito como os supostos sujeitos dos ‘direitos individuais’. O termo ‘direitos individuais’ demarca o saber sobre o direito e a ideia de respeito dessa instituição aos indivíduos em relação às escolhas individuais de cada um, a instituição católica, na verdade, quer se resguardar de uma possível acusação de homofobia, para isso antecipa a posição de que não nega os direitos individuais, tanto é verdade a antecipação de uma defesa que finaliza o enunciado reforçando a posição irônica de não negar os direitos individuais, absolutamente não. No segundo enunciado temos a confirmação da formação discursiva em confronto, com destaque para o discurso da igreja católica. A posição da igreja demarca suas formações discursivas antagônicas a dos sujeitos favoráveis ao casamento gay, sua posição possui um conjunto de saberes que tecem seu interdiscurso sustentado na memória que historicamente construiu. Para o discurso da Igreja Católica o casamento é tomado como uma instituição provinda da 1031

união entre um sujeito de sexo masculino e outro de sexo feminino, ou seja, o casamento simbolicamente se construiu como sinônimo de uma relação entre homem e mulher que deve culminar na ideia de família. Com isso estabelece uma relação de poder ao desqualificar a possibilidade do casamento homossexual, utilizando-se da ideia construída por essa instituição acerca do casamento, visando reforçar sua permanência. Logo, uma relação que contrarie a visão binária de gênero é, para o discurso religioso, um fato que foge a norma, foge a regra

e

por

isso

é

desqualificado,

conjurado,

enquadrado

e

violentamente reduzido. O termo casamento é especialmente enfatizado utilizando-se do conceito de família tradicional como interdiscurso para fortalecer o argumento de que o casamento, termo central no enunciado, deve ser tomado como algo a ser resguardado, protegido, e defendido como principio cultural, explicitamente, colocado como um princípio religioso, desqualificando outros tipos de valores e princípios, evidenciando e privilegiando um olhar a partir do seu lugar de fala, em detrimento de outros. O uso do termo ‘desafio’ marca claramente um alerta feito pela instituição católica quanto aos perigos de se defender do casamento gay, ou união homoafetiva. A base dessa posição centra-se na defesa de que, “o casamento é outra coisa” deixando vislumbrar que o casamento

deve

ser

tratado

como

um

direito

de

poucos,

especialmente aos heterossexuais com o intuito da constituição de uma família tradicional. Os efeitos de sentido impressos nesses enunciados deixa entrever o discurso da igreja como “vontade de verdade” (FOUCAULT, 2010) estabelecendo a exclusão e demarcando o discurso de verdade através da enunciação dos princípios da moral baseado nos saberes da religião em detrimento de outros saberes e outros valores.

1032

A formação discursiva expressa pela posição do sujeito do enunciado, em relação direta com os interdiscursos usados pela voz da igreja católica envolvendo o conceito de memória discursiva do ideal de casamento tradicional, como sinônimo de constituição da base familiar, com pai, mãe e filhos, e os efeitos de sentido instituídos pela ‘vontade de verdade’ do discurso religioso ao afirmar que devem prevalecer os princípios religiosos como princípios culturais, foram os grandes destaques observados na análise realizada. O fato é que em confronto com o discurso religioso analisado nos deparamos com a realidade social e a formação dos sujeitos e suas subjetividades frente ao contexto, histórico e social da atualidade. Embora o discurso dos sujeitos LGBT não apareça na analise de forma evidente, se apreende que existe um discurso favorável ao casamento gay, e é consequentemente porque existe uma formação discursiva que vai de encontro, ao discurso da igreja, contrario ao casamento gay que se apreende diferentes formações discursiva em jogo presente no enunciado analisado. Daí que se coloca o conceito de discursos em confronto e da formação discursiva antagônica. O discurso silenciado dos sujeitos LGBT, simplesmente, visibiliza e anuncia, defende e reivindica o direito individual de ir e vir, direito a viver o exercício da sexualidade sem perseguição, sem violência e de forma justa e igualitária assim como deve ser entre todos dos sujeitos. Para o discurso da igreja católica não há nenhum problema, absolutamente nenhum problema em reconhecer os direitos individuais dos sujeitos, cada um deve ser livre para o exercício de suas subjetividades, desde que, não interfira nas normas estabelecidas pelos princípios da moral religiosa, da função social, cultural e religiosa do casamento, este privilegio dos incluídos no projeto de unificação, padronização e normatividade imposta pelo modelo heterossexual, apoiado fortemente pelos princípios da instituição católica dever ser

1033

apenas relegados aos que se pintam unicamente de uma cor, os que não ousam os que permanecem fixos, e deixam se objetivar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Tratou-se aqui de refletir sobre as práticas discursivas em torno da união homoafetiva e da imposição do modelo heterossexual como norma vigente, do exercício da sexualidade em cenários diversificados e em tempos de pós-modernidade. Buscou-se realizar uma breve análise de discursos circulados na mídia sobre o casamento e união homoafetiva, empreendendo especialmente o discurso da igreja católica. Percebeu-se que admitir a existência do casamento gay para os efeitos de sentido do discurso religioso é muito mais grave do que apreender a existência destes sujeitos a qual se põem em foco. Paradoxalmente admitir o fato do casamento gay como algo possível é admitir a existência destes sujeitos. No entanto, admitir a existência dos homossexuais não é a mesma coisa que admitir que estes possam “usufruir” de praticas e papeis sociais, conferidos historicamente ao grupo dos heterossexuais. É caro, em outras palavras, admitir que a sociedade esta mudando, e agora, a sociedade heteronormativa se depara com o questionamento de que “nem só de vermelho se pinta o amor” nem só do amor de homens e mulheres se vive a humanidade, e que as formas básicas já estabelecidas pelo binarismo (homem - mulher) como modos “normais” de exercício da sexualidade e afetividade não responde mais a todos os anseios de um mundo pós-moderno, fragmentado em suas relações sociais (HALL, 2011). Concluímos que o casamento heterossexual como ordem simbólica de família apoiados nos argumentos sociais da reprodução 1034

biológica, da moral e da garantia do prosseguimento da existência da espécie humana no mundo, tem exercido e continua a exercer efeitos de sentido e poder sobre os sujeitos homossexuais, mas, no entanto vive uma crise de identidade (HALL, 2011) visível entre outros elementos, pela crescente presença e afirmação ao mundo público das identidades e subjetividades dos sujeitos LGBT. A ideia da união homoafetiva passa a ganhar visibilidade enquanto representação simbólica de família, rompendo com o modelo hierarquizado de reprodução biológica, e assumindo de maneira mais evidente o exercício do amor e de cooperação mutua entre os sujeitos e suas subjetivação na pósmodernidade (MELO 2005).

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ADOÇÃO HOMOAFETIVA: ROMPENDO BARREIRAS EM BUSCA DE DIREITOS Marta Simone Vital Barreto306

RESUMO: A família e as relações afetivas vêm sofrendo profundas transformações societárias ao longo dos séculos. A ideia de família monogâmica e heterossexual se fragmentou e a luta dos pares homoafetivos por direitos sociais e pela composição de família por via da adoção entrou em debate. O presente artigo objetiva analisar a adoção homoafetiva no âmbito da cidade do Natal, sistematizar as informações obtidas na 2ª Vara da Infância e Juventude de Natal, bem como apresentar algumas dificuldades e limites encontrados na abordagem desta temática perpassada de preconceito. Palavras-chave: Adoção. Homoafetividade. Direito à parentalidade. Família.

1. INTRODUÇÃO

A adoção está presente em toda a história da humanidade, tendo funções e regulamentações diferentes a depender do período histórico e país a qual está inserida. No Brasil, a mesma se configura como a terceira medida de colocação de crianças ou adolescentes em família substituta, para além da guarda e da tutela, instituindo os mesmos direitos e deveres familiares, inclusive sucessórios. Nos diversos estados do país tem sido crescente a demanda de pares e pessoas homoafetivas1 pela formação de família por via de adoção e é urgente que se discuta a questão, pois à medida que famílias homoafetivas, com ou sem filhos, passam a figurar como elemento presente, autêntico e legal na nossa sociedade, tende a abrir caminho para a construção de outras possibilidades de relações interpessoais, afetivas e familiares. O presente artigo versa sobre adoção de crianças ou adolescentes

por

pares

ou

pessoas

306

homoafetivas

e

ganhou

Graduada em Serviço Social (UFRN), Mestra em Serviço Social (UFRN). Professora Substituta (UFRN). [email protected].

1036

materialidade com pesquisa realizada na cidade de Natal/RN no ano de 2011, cujos resultados foram explicitados em trabalho de conclusão de curso, no curso de graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. O objetivo aqui proposto se dá no sentido de suscitar reflexões acerca da luta por direitos sociais e parentais, num contexto de desmonte de direitos pela ofensiva capitalista, analisar a adoção homoafetiva no âmbito da cidade do Natal/RN, bem como sistematizar parte dos dados colhidos na referida pesquisa. A temática aqui analisada se trata de um tema “polêmico”, uma

temática

duplamente

perpassada

de

estigmas,

tabus

e

preconceitos, que merece e carece de análises críticas, visto que a liberdade de orientação e expressão sexual e a questão da adoção revelam situações concretas de violação de direitos. Compreendemos que diferenciar negativamente, depreciar, negar ou obstaculizar direitos, tais como a adoção legal, aos pares homoafetivos, além de ferir preceitos legais, significa violação dos direitos humanos. A abordagem deste tema se mostra importante porque na sociedade vigente, onde se tem um discurso democrático e de igualdade entre os sujeitos, o que se verifica como tendência é a luta por direitos “frágeis” num contexto de desmonte de direitos sociais e exacerbação da atomização dos sujeitos sociais, da individualização e do imediatismo, o que nas palavras de Tonet (2002 apud SANTOS 2005, p. 95) “trata-se da fratura, cada vez maior, que se está abrindo no mundo de hoje, entre a realidade objetiva e os valores éticos proclamados”. A opção por essa temática de pesquisa tem suas raízes na graduação em Serviço Social, em observações e análise da realidade social

acerca

metodológico quantitativa

da da

e

temática referida

qualitativa,

da

homoafetividade.

pesquisa tendo

seguiu

em

vista

uma que

O

percurso

abordagem ambas

se

complementam e possibilitam uma apreensão mais qualificada do 1037

objeto de estudo. A princípio a pesquisa seria desenvolvida em fases sucessivas

e/ou

concomitantes

de

análise

bibliográfica,

análise

documental, entrevistas semiestruturadas, realização de rodas de conversa para discussão da temática entre os sujeitos envolvidos na pesquisa e análise dos dados coletados. Entretanto, a análise documental (processos de adoção da 2ª Vara da Infância e Juventude de Natal – 2VIJ - Natal) não foi permitida pelo juiz da referida Vara. Com isso, as fases posteriores de entrevistas, rodas de conversa ou contato com as pessoas que realizaram adoções homoafetivas

em

Natal

foram

suprimidas

e

os

procedimentos

metodológicos tiveram que ser revistos e redefinidos. Nesse sentido, foram coletados dados divulgados pela mídia (revistas, jornais, internet, entre outros), dados demográficos no IBGE e dados quantitativos2 a respeito das adoções realizadas em Natal, fornecidos pela secretaria da 2ª VIJ – Natal e pelo Cadastro Nacional de Adoção (CNA), além de terem sido realizadas entrevistas com uma das assistentes sociais da Vara da Infância e Juventude anteriormente mencionada, além de revisão da literatura sobre a temática. O presente estudo teve como um dos pressupostos apreender que os problemas que se colocam às famílias homoafetivas são de ordem social, política e jurídica, mostrando assim, que tais questões ultrapassam o real significado da adoção, que é garantir o direito de crianças e adolescentes de possuírem uma família.

2. FAMÍLIA E ADOÇÃO NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO: MUDANÇAS E DESAFIOS Na contemporaneidade para falarmos de família como uma instituição heterogênea é preciso compreendê-la no âmbito das relações sociais que determinam as condições objetivas e subjetivas de sua existência. Tradicionalmente, de acordo com Uziel (2007), a família 1038

tem como função proporcionar um primeiro contato com as regras sociais, inculcar hábitos, produzir e reproduzir padrões culturais para os indivíduos, ser um agente socializador. Entretanto, numa perspectiva de totalidade na análise da vida social, a família deve ser entendida como um complexo parcial um espaço de contradição, uma instituição dinâmica,

multifacetada

e

conectada

às

determinações

socioeconômicas e culturais de cada período histórico. No decurso do século XXI, vivenciamos uma realidade de famílias com diversas formas de organização, parentalidades3 e afetividades que recebem pouca proteção do Estado e não são legitimadas socialmente. Dentre essas formas de família destacamos a família homoafetiva com filhos adotivos, que devido à complexidade que a envolve, apresenta-se como terreno fértil para se constituir em alvo de preconceito e violação de direitos, considerando a homofobia institucional e social prevalecente na sociedade capitalista, conforme Santos (2005). No início do século XX até a década de 1940 pensadores tratavam a família como local de interação. De acordo com Costa (1999), a psiquiatria, em função da medicalização da família e da moral, impunha, até o final da primeira metade do século XX, padrões culturais para além do tratamento da patologia individual. No cenário mundial, nos anos 1970, críticas à família surgiam em meio ao movimento de contracultura - gay, hippie, feminista, dentre outros - que apresentavam propostas para alargar conceitos então vigentes. Com isso, a família foi “transformada” em local privilegiado da afetividade e a “novidade” do século XX passou a ser a priorização do sentimento, a exigência afetiva. Em fins do século XX, no contexto brasileiro, após a queda do regime militar, a promulgação da Constituição de 1988 ou Constituição Cidadã deu os primeiros passos para a democracia e diversos valores e direitos foram anunciados, visando assegurá-los aos cidadãos. Na Constituição Federal (CF), a família passa a figurar como instância 1039

básica que apresenta pluralidade de relações pessoais e culturais devendo ser reconhecida e respeitada (SIMÕES, 2008). Deste modo, a família está representada na Carta Constituinte como a base da sociedade e detentora de especial proteção do Estado, sendo entendida não somente como originada do casamento, como também da união estável e da comunidade formada por um dos cônjuges ou companheiros, com os seus filhos (BRASIL, CF. art 226). Ainda que seja a mais comum na realidade brasileira, a família monogâmica, heterossexual e com finalidade procriativa não é a única na sociedade ocidental. A organização familiar homoafetiva é uma realidade que possibilita a reorganização da estrutura familiar, que traz implicações na vida dos indivíduos, bem como para o Estado, notadamente por meio das políticas sociais que são provocadas a incorporar novas demandas. A luta pelo direito à livre expressão e orientação sexual tem tornado obrigatório e urgente o enfrentamento das demandas pertinentes ao reconhecimento e valorização da diversidade sexual e a desconstrução de velhas certezas arraigadas no preconceito. As lutas dos movimentos sociais, tais como o movimento feminista e o movimento LGBT, foram cruciais na disseminação de formas afetivo-sexuais diferentes das relações heterossexuais e na luta por participação e visibilidade na esfera pública e no enfrentamento à discriminação e opressão. Após incessantes lutas, debates e projetos de Lei que objetivavam assegurar direitos sociais e sexuais, combate à violência e respeito à diversidade de orientação sexual, um passo significativo foi dado no tocante à constituição e regularização das uniões homoafetivas e à ampliação do conceito de família em 05 de maio de 2011 quando foi aprovado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. A mídia4 veiculou o posicionamento de alguns ministros do STF a favor de tal decisão. De acordo com Santos (2011), o ministro Luiz Fux, 1040

afirmou que “não há razões que permitam impedir a união entre pessoas do mesmo sexo no país”. Seu argumento remete ao entendimento que “a união estável foi criada para reconhecer ‘famílias espontâneas’, independente da necessidade de aprovação por um juiz ou padre”5. Em concordância, a ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha corroborou o pensamento ao afirmar que: Aqueles que fazem a opção pela união homoafetiva não podem ser desigualados da maioria. As escolhas pessoais livres e legítimas são plurais na sociedade e assim terão de ser entendidas como válidas. (...) O direito existe para a vida não é a vida que existe para o direito. Contra todas as formas de preconceitos há a Constituição Federal.6

Ademais, novas legislações e avanços oportunizam outros acessos à formação de família e à parentalidade, tais como fertilização in vittro, reprodução assistida, barriga solidária7, dentre outros. Além da via biológica, a família e o exercício da parentalidade pode se dar por recomposição

e

por

adoção.

Esta

última

“[...]

conduz

ao

estabelecimento de um vínculo de filiação irrevogável, unindo o adulto adotante a uma ou mais crianças ou adolescentes adotados, com os direitos e deveres daí decorrentes” (ZAMBRANO, 2006). Nesse sentido, compreendemos que o “modelo” de família heterossexual, branca, composta por um pai, uma mãe e um casal de filhos é retratado e difundido na sociedade atual como o modelo ideal que deve ser reproduzido. Porém, a partir de uma análise crítica desta família “ideal” podemos apreender que não existe uma família “perfeita” ou um modelo concreto e universal a ser seguido. A família é diversa por ser composta por pessoas que possuem diferenças, sentimentos, desejos, conflitos, pensamentos, escolhas diversas. De acordo com Zambrano, (2006), recusar a chamar de família essas organizações familiares divergentes do “modelo ideal”, negar a existência de um vínculo intrafamiliar entre os seus membros, ainda que 1041

esses vínculos possam ter um aspecto extremamente polimorfo e variado, e impedir que tenham um estatuto legal, significa “fixar” a família dentro de um formato único, que não corresponde à diversidade de expressões existentes na vida cotidiana. Assim, tomar a família como algo homogêneo e universal, é desconsiderar as condições sociais e culturais de sua existência.

2.1 - Adoção Como um Direito de Todos e Todas No Brasil, vigora uma Lei própria (Lei 12.010/09) que estabelece e regula o instituto jurídico da adoção, garantindo direitos e deveres àqueles/as que se propõem a constituir família por esta via legal. Para requerer o pedido de adoção, de acordo com a referida Lei é necessário ter dezoito anos, ter uma diferença mínima de idade de dezesseis anos entre o adotando e adotante, oferecer condições afetivas sociais e econômicas para criação e sustentabilidade do adotado. Partindo do princípio de proteção do Estado para com as famílias, e do princípio de igualdade perante a lei, não se pode negar aos pares homoafetivos ou às pessoas que se relacionam afetiva e sexualmente com outras do mesmo sexo, o direito de adotar crianças ou mesmo de construir laços e relações afetivas e familiares. A adoção, quando preenchidos os requisitos, pode ser realizada por qualquer cidadão/ã que esteja dentro dos critérios estabelecidos em lei, independente de sua cor, etnia, estado civil ou orientação sexual. A adoção deve atender aos superiores interesses das crianças e adolescentes e, enfim, ir ao encontro dos anseios dos segmentos envolvidos. Nesse sentido, se uma criança e/ou adolescente sofre maus tratos no seio de sua família biológica, abusos de toda espécie, ou se é abandonada à própria sorte, vivendo nas ruas, com um conjunto de direitos sociais e humanos violados, é evidente que sua adoção, quer 1042

seja por heterossexual, por pessoa solteira ou por pares ou pessoas homoafetivas, desde que revele a formação de um lar, onde haja respeito, lealdade e assistência, só apresenta vantagens. O primordial para a criança e o adolescente é ter uma família, independente da orientação sexual dos membros que a constituem. Entretanto, apesar dos importantes avanços na legislação, é preciso que os mitos que rondam o processo de adoção sejam enfrentados e as verdades e os benefícios trazidos pela mesma sejam compreendidos da melhor forma possível por toda sociedade. A associação feita entre a sexualidade dos pais/mães e o cuidado com as/os filhas/os obstaculiza o entendimento de que homens e mulheres homoafetivos/as possam ser ou não pais e mães. Ainda prevalece o receio, num grande número de pessoas, de que crianças, cujos pais sejam homossexuais, no futuro, apresentem alguma

identificação

com

a

homossexualidade,

como

se

a

convivência da criança com dois pais ou duas mães tivesse o poder de determinar a orientação sexual desta ou mesmo como se esta convivência

gerasse

uma

consequência

mecânica:

mães/pais

homossexuais, filhas/os homossexuais. Quando a sociedade afirma e reproduz a falsa ideia de que homens e mulheres homossexuais não podem ter e/ou criar filhos/as, passa a condicionar a pessoa que se relaciona, afetiva e sexualmente, com outra do mesmo sexo apenas como sendo um sujeito que prioriza a sexualidade e o prazer sexual, em detrimento de outros sentimentos. Nesse pensamento, “[...] a ‘sexualidade’ para o ‘heterossexual’ é, no mais das vezes diluída em outras dimensões da pessoa; o ‘homossexual’, ao contrário, sendo contido por ela, foi historicamente sendo excluído da esfera da reprodução/filiação.” (TARNOVSKI, 2004, p. 49).

Denotarmos exclusivamente o caráter sexual das relações homoafetivas

é

cristalizar

uma 1043

identidade

discriminatória,

é

desconsiderar

a

totalidade

e

a

complexidade

dos

sujeitos,

é

condicionar a pessoa homoafetiva a uma condição de sujeito “sem sentimentos”, é negar-lhe o direito de expressão afetiva e o livre exercício da liberdade, a que todo sujeito, sem distinção, tem direito de desfrutar. Levando-se em consideração que a adoção é uma experiência nova na vida de mães/pais e filhos/as adotivos/as, deve certamente causar certa insegurança. É preciso que eles/as se sintam apoiados e livres de preconceitos, para que possam desfrutar de toda a afetividade presente nesta nova família. Assim, concordamos em afirmar que: Adotar é um desafio porque relacionar-se é sempre um desafio. Temos que acolher, aceitar o outro em sua integridade, com sua beleza e originalidade, mas, também com suas dificuldades e limitações. [...] O diferente, muitas vezes, assusta, mas, sempre nos enriquece. Construir um vínculo de filiação exige esforço, dedicação, trabalho e sobretudo tempo. (CAMPOS, [2000?], p.1).

O sexo, a orientação sexual e a identidade de gênero não deve ser fator determinante quando pensarmos em parentalidade seja esta biológica ou social – no caso da adoção. Cabe aos homens e às mulheres o pleno exercício de suas parentalidades, sem distinção ou depreciação. A todos os cidadãos brasileiros deve ser garantidas condições de oportunidades e, aqui não se exclui a oportunidade de exercer seu papel de mãe/pai, com todas as garantias e proteções do Estado. Desta forma, concordamos que negar ou subjugar o direito que homens e mulheres possuem de construir sua família é negar-lhe não apenas o direito à paternidade ou maternidade, é negar-lhes também oportunidades e a condição de ser humano, visto que sendo sujeitos afetivos e, ao decidirem por oferecer afeto e cuidados parentais a filhos/as, estes exercem seu direito e condição de humano/a.

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3. ADOÇÃO HOMOAFETIVA NA REALIDADE DA CIDADE DO NATAL/RN 3.1 - Buscando Dados

De acordo com o censo demográfico, realizado pelo IBGE em 2010, o estado do Rio Grande do Norte (RN) possui uma população de 3.168.027 pessoas. A sua capital, Natal, possui uma população em número de 803.739 pessoas. Esses números são referentes ao conjunto da população, sem distinção de cor, sexo, idade ou orientação sexual. Embora não haja dados que revelem o contingente de indivíduos homo, bi ou heterossexuais, um dado, atrelado à orientação sexual, merece destaque: do número total da população do RN, 982 pessoas residem com companheiros(as) do mesmo sexo. Constatada a falta de informações sobre orientação sexual dos/as brasileiros/as no senso demográfico 2010, na publicação da Síntese de Indicadores Sociais, ou mesmo na página eletrônica do referido órgão, buscamos a Unidade Estadual do IBGE no RN na tentativa de obter dados que levassem a uma melhor apreensão destas informações, porém não obtivemos êxito na pesquisa8. Na ocasião, foi questionado a um dos funcionários do órgão se o censo realizado abordava

questões

relativas

à

orientação

sexual

das

pessoas

pesquisadas, e de acordo com ele, a pesquisa (censo) tem como núcleo central o domicílio e por isso “as informações individuais não são tão relevantes”9. De acordo com o referido funcionário, o tema escolhido para a pesquisa é muito difícil de ser discutido, “porque as pessoas não dizem isso e muitas mentem, até porque para você sair perguntando se os homens são gays... acho que eles não iam gostar”10. Essa fala nos leva a questionamentos e nos desperta para a reflexão. Por que os dados se mantêm restritos às organizações não governamentais (ONGs), às Universidades, aos grupos militantes do movimento LGBT, aos estudiosos da temática? Por que a sexualidade ou 1045

mesmo a orientação sexual não é discutida ou merecedora de conhecimento no âmbito de uma instituição de pesquisa como o IBGE? É importante ressaltarmos que a opinião de um funcionário não foi tomada como sendo geral, nem afirmando que a sua postura reflete a filosofia de toda a instituição, mas entendemos que assim como muitos dos operadores do Estado se manifestam contrários à questão, muitas das instituições estatais também e isso tem explicações no fato de que tais instituições se fundam em uma ideologia histórica e socialmente construída de discriminação, preconceito e opressão. Nesse sentido, afirmamos

que o preconceito colabora e

produz/reproduz formas de opressão e de subalternidade, além da violação e negação de direitos. O enfrentamento dessas questões exige um alargamento das discussões. As condições desumanas, vivenciadas

pelo

segmento

LGBT,

não

podem

ser

tratadas,

prioritariamente, como uma questão de princípios, ainda que estes sejam extremamente edificantes, “o enfrentamento dessa situação agudizada de desigualdade passa, obrigatoriamente, pela mudança radical das condições materiais, subjetivas e institucionais dominantes”. (SANTOS, 2005, p. 90). Na

perspectiva

de

obter

dados

referentes

às

famílias

homoafetivas, que decidiram por adotar filho(s) em Natal, buscamos a 2ª VIJ – Natal11, tendo em vista que esta Vara é responsável pelos processos de adoção requeridos nesta capital. Em meio aos casos de adoção realizadas na cidade no período de 2009 a 2011, foram poucos os casos de adoções realizadas por pares homoafetivos, casos em que os sujeitos se autodeclararam homossexuais - apenas três processos de adoção foram concretizados na cidade até o mês de abril do ano de 2011. Entretanto, é importante frisar que este número não contempla a totalidade de homossexuais que adotaram crianças e/ou adolescentes na capital do estado do RN, visto que as adoções realizadas de forma individual, onde a homossexualidade é omitida e a adoção direta, que

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a partir da vigência da Lei 12.010/09 passa a ser uma prática ilegal, não compõem esse número. As dificuldades encontradas reforçam a ideia de que a adoção homoafetiva ainda é algo muito velado na cidade, inclusive pela própria justiça. Na fala do juiz da 2ª VIJ - Natal, as pessoas não querem falar sobre isso, podem não gostar de saber que seus processos estão sendo analisados. Será que realmente os sujeitos preferem manter-se silenciados?

Será que querem manter-se “invisíveis”? Pensamos que,

para além do cuidado em resguardar as informações, há aí, também, uma tentativa de omissão, uma tentativa de mascaramento de uma crescente realidade que ganha fôlego a cada dia.

3.2 - Dados Colhidos

Após o percurso percorrido em busca de características que revelassem, minimamente, a “face” da adoção na cidade do Natal, e mais

especificamente,

a

adoção

homoafetiva,

chegamos

às

informações que serviram de lastro para a pesquisa. Em entrevista à assistente social da 2ª VIJ – Natal, e com os dados fornecidos por esta em consulta ao Cadastro Nacional de Adoção (CNA)12, foi possível traçar um perfil médio dos pretendentes à adoção do RN - a maioria deles é casada, sem filho(s) biológico(s), heterossexual, com nível superior de escolaridade e uma faixa salarial composta de 3 a 5 salários mínimos. Com relação às crianças e adolescentes à espera de adoção, a maioria é menino, possui idade acima dos 10 anos, é negra ou parda e possui irmãos que também estão em instituições de acolhimento à espera de adoção. De acordo com a Lei 12.010/09, os grupos de irmãos devem permanecer juntos, sendo concedida a adoção em separado apenas em casos excepcionais, quando cessadas as possibilidades de adoção

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de todos os irmãos juntos ou mesmo quando não há perspectiva de adoção em função dessa condição. § 4o Os grupos de irmãos serão colocados sob adoção, tutela ou guarda da mesma família substituta, ressalvada a comprovada existência de risco de abuso ou outra situação que justifique plenamente a excepcionalidade de solução diversa, procurando-se, em qualquer caso, evitar o rompimento definitivo dos vínculos fraternais. (BRASIL, LEI 12.010, 2009).

Verificamos que no RN, assim como em Natal e no restante do Brasil, há uma “tendência” dos pretendentes em declarar no CNA “critérios” que diminuem as possibilidades de adoção, pois prevalece ainda nos pretendentes o desejo de adotar menina, branca e recémnascida. Porém, quando observamos os dados das crianças e adolescentes que se encontram em instituições de acolhimento, sob tutela do Estado, constatamos que a realidade é bem diferente. Essas disparidades entre o desejo dos pretendentes e a realidade das crianças e adolescentes nos colocam a pensar sobre o futuro destes. O que acontece com estes sujeitos; permanecem na tutela do Estado até completar a maioridade, e depois? Para onde vão? Se os pretendentes não querem essas crianças e adolescentes como filhos/as, que futuro está reservado para eles(as)? Por que, para um/a filho/a adotivo/a, se colocam tantos “critérios”?

É preferível

manter estas crianças e adolescentes em instituições de acolhimento a inseri-las em uma família homoafetiva? O desejo normativo que impera na sociedade capitalista, interfere e impede que homens e mulheres ofereçam amor, carinho, proteção, convivência familiar e comunitária a possíveis filhos/as, pelo fato de estarem “fora do padrão” instituído. Enfatizamos que na Lei 12.010 não há qualquer proibição aos homossexuais de adotarem crianças e/ou adolescentes. O que existe concretamente, no âmbito social da realidade brasileira, é o preconceito e a dificuldade de aceitar e respeitar a constituição da família por pares homoafetivos. 1048

Assim, fica evidente a contradição existente no discurso de igualdade, pois se todos são iguais perante a lei, a igualdade permanece só na lei, porque na realidade vivida constatamos que a desigualdade “mora ao lado” e se apresenta cotidianamente. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegamos

à

conclusão

do

nosso

trabalho,

porém

a

complexidade das temáticas aqui abordadas exige de nós um pensamento não conclusivo. A realidade do objeto de estudo é complexa e repleta de questões, as mais diversas, que “gritam” para serem mostradas, debatidas, pesquisadas. No escopo da nossa pesquisa vimos que a família é uma instituição dinâmica, multifacetada e conectada às determinações socioeconômicas e culturais de cada período histórico. No decurso do século XXI, vivenciamos uma realidade de famílias com diversas formas de organização, parentalidade e afetividade que, assim como aqueles modelos

mais

tradicionais,

merecem

proteção

do

Estado

e

reconhecimento da sociedade. Reconhecer a existência de famílias homoafetivas com filhos/as adotivos/as é garantir a diversidade com reconhecimento da liberdade de orientação e expressão sexual; é possibilitar o usufruto de elementos essenciais ao ser humano, tais como relações interpessoais, afetivas e familiares. Ainda é cedo afirmamos que a família homoafetiva ganhou reconhecimento social e político, mesmo que avanços tenham se verificado com a decisão do Supremo Tribunal Federal, que reconhece a união homoafetiva como família. Conforme demonstramos neste trabalho, a realidade da adoção na cidade do Natal/RN não difere das demais cidades do Brasil. A adoção e a família homoafetiva ainda encontram limites e dificuldades de efetivação diante do preconceito social e institucional 1049

que se camufla em ações e discursos conservadores. Diante destas posturas conservadoras fica evidente que os problemas que se colocam às famílias homoafetivas são de ordem política, jurídica e social, mostrando assim que tais questões ultrapassam o real significado da adoção, que é garantir o direito de crianças e adolescentes de possuírem uma família. É preciso que haja visibilidade para a adoção homoafetiva, mas esta visibilidade não deve ser encerrada em si mesma. A sociabilidade capitalista nos priva de direitos e nos coloca na condição de sujeitos atomizados, idênticos, “desumanizados” e, neste sentido, entendemos que a luta pela garantia de direitos deva se dar no sentido da emancipação humana, de forma que haja respeito à diversidade e à diferença dos sujeitos.

NOTAS 1. O termo homossexualidade vem sendo substituído, a passos curtos na sociedade, pelo termo homoafetividade, devido aquele soar muito restrito à prática sexual física propriamente dita. O uso do termo homoafetividade sugere uma relação muito mais ampla. 2. É importante destacarmos que, apesar da utilização majoritária de dados quantitativos, buscamos não perder de vista o caráter qualitativo da pesquisa, visto que de acordo com Minayo (2009), esta modalidade de pesquisa responde a questões muito particulares, servindo para trabalhar com o universo dos significados, dos motivos, das atitudes e dos valores. Em nossa pesquisa a dimensão quantitativa não se opõe e nem elimina a dimensão qualitativa. Temos o entendimento de que para apreender o objeto de estudo em sua densidade histórica foi necessário articular estas dimensões. 3. O termo parentalidade foi proposto por Paul Claude Racamier em 1961 e foi utilizado por vários autores a partir da década de 80, para se referir aos papéis e funções parentais. Cf. http://www.palavraescuta.com.br/textos/parentalidade. Acesso em 09 set. 2012. 4.

G1 – O portal de notícias da Globo. Acesso em: 17 mai. 2011.

5. Fragmento de discurso na sessão do STF no dia 05 maio de 2012. Cf.. Acesso em: 17 mai. 2011. 6.

Idem.

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7. No Brasil, o Conselho Federal de Medicina (CFM) recomenda que as doadoras temporárias do útero devam pertencer à família da doadora genética, num parentesco de até segundo grau, sendo os demais casos sujeitos à autorização do Conselho Regional de Medicina (CRM). Assim, a utilização do termo barriga de aluguel vem sendo substituída paulatinamente pelo termo “barriga solidária”. 8.

Visita realizada em 15 de abril de 2011.

9. Fragmento de discurso verbal colhido na visita à Unidade Estadual do IBGE, na cidade do Natal em 15 de abril de 2011. 10. Idem. 11. Visita realizada em 07/10/2010. O contato com a 2ª VIJ – Natal foi retomado alguns meses depois, sendo realizada uma nova visita em 29 de Abril 2011. 12. De acordo com a assistente social que nos prestou auxílio neste levantamento de dados, o Cadastro é nacional porque é interligado, mas cada estado, cada comarca, tem o seu cadastro. É importante destacarmos aqui que os dados fornecidos pelo Cadastro são referentes a todo o estado do Rio Grande do Norte, não tendo sido filtrados na ocasião da consulta os dados da comarca de Natal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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PERCEPÇÕES E PRÁTICAS DE EDUCADORES/AS SERRANOS/AS SOBRE RELAÇÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE

Izabel Cristina de Souza Nunes307 Amanda Patrícia Dias308 Sheila Mikaele Valério da Costa309 Maria Euzimar Berenice Rego Silva310

RESUMO: O presente trabalho parte das discussões desenvolvidas no Projeto de Extensão “DIÁLOGOS AUTOBIOGRÁFICOS: TRILHAS DA FORMAÇÃO DOS/AS EDUCADORES/AS SERRANOS/AS” e procura investigar as percepções sobre relações de gênero e sexualidade de docentes da Educação Básica, refletindo sobre as práticas desenvolvidas frente às manifestações de relações de gênero e sexualidade no cotidiano escolar. Utilizamos como materiais de análise informações coletadas, vídeos e desenhos produzidos pelos docentes da Educação Infantil participantes dessa ação extensionista no município de Portalegre, RN. À luz de autores/as que desenvolvem discussões de cunho social e de autores/as que debatem relações de gênero e sexualidade no âmbito escolar desenvolvemos nosso trabalho. PALAVRAS-CHAVE: Percepções. Relações de gênero. Sexualidade.

PRIMEIRAS IMPRESSÕES Estamos envoltos em constantes avanços sociais, tecnológicos e científicos, que influenciam de forma determinante na maneira como as pessoas pensam e agem em sociedade. Contudo, ainda percebemos como nossa cultura está repleta de limites, tabus e preconceitos referente às temáticas sexualidade e relações de gênero. O meio social onde estamos inseridos nos impõe constantemente valores, deveres, 307

Estudante de Graduação em Pedagogia (UERN). Voluntaria no Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Cientifica - PIBIC da UERN. Sou professora de Inglês no Centro de Ensino FISK, unidade de Pau dos Ferros/RN. Amanda Patrícia Dias [email protected]. 308 Estudante de Graduação em Pedagogia (UERN). Integrante do núcleo de estudos em educação NEED e bolsista no programa institucional de bolsas de iniciação a docência - PIBID do subprojeto de pedagogia (CAMEAM/UERN) [email protected].. 309 Graduada em Pedagogia (UERN), Mestra em Ciências Sociais (UFRN). Professora Adjunta (UERN) [email protected]. 310 Professora orientadora/DE/CAMEAM/UERN. [email protected], [email protected]

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regras e preceitos a serem seguidos, que influenciam na nossa maneira de agir, falar e até mesmo de pensar. Através de nossas atitudes somos rotulados socialmente, quando expomos o que pensamos e somos. Refletiremos aqui sobre o que pensam os/as educadores/as a respeito do polêmico tema da sexualidade infantil e suas manifestações no contexto escolar. Adentraremos também na temática sobre as relações de gênero quando manifestadas por crianças da Educação Infantil e as percepções e ações dos/as docentes. Ao discutirmos sobre isso observamos quão grande é a influência que o meio exerce sobre os seres sociais, pois estamos cercados de regras impostas pela sociedade e cultura na qual estamos inseridos que servem como elemento para distinguir o que tarefa e atitude típica de homens e de mulheres. A abordagem das relações de gênero e da sexualidade dentro do ambiente escolar, no Brasil, compreendida enquanto um tema transversal, é fruto também de muitas lutas e reinvindicações de educadores/as, como apontam Nunes e Silva (2000): Desde os anos de 1930, com iniciativas singulares, passando pela luta ampla travada em muitos Estados e municípios durante a década de 1980, o tema da Educação Sexual estivera sempre presente como reinvindicação de educadores esclarecidos e pais sensibilizados com a importância que a sociedade assumia na sociedade contemporânea e na cultura e realidade brasileira a presença temática da sexualidade como tema transversal é uma conquista e um desafio. (NUNES; SILVA, 2000, p. 2).

Trabalhar a sexualidade no espaço escolar é verdadeiramente desafiador e complexo o bastante para instigar nossas investigações a respeito. Quando o assunto é sexualidade há uma grande carência de informação. Uma das ações desenvolvidas pelo Projeto de Extensão “DIÁLOGOS AUTOBIOGRÁFICOS: TRILHAS DA FORMAÇÃO DOS/AS EDUCADORES/AS SERRANOS/As” foi oferecer um curso de formação para educadores/as e discentes de licenciatura e da pós-graduação dos seguintes municípios serranos do Alto-Oeste do Rio Grande do Norte 1054

(RN): Doutor Severiano, Luiz Gomes, Portalegre e São Miguel. Destes municípios, foram concluídas turmas em Doutor Severiano e Portalegre, correspondendo a 100 horas aulas e 180 horas, respectivamente. As ações do projeto produziram um arsenal de materiais para análise, tais como: imagens (fotografias, vídeos e desenhos), assim como dados quantitativos e qualitativos, presentes nos questionário aplicado e nas narrativas (orais e escritas) produzidas pelos/as participantes do curso ao longo de sua duração. Dentre os temas debatidos no Projeto, destacam-se os estudos e discussões acerca das temáticas relações de gênero e sexualidade. Por isso investigamos aqui, as percepções dos/as docentes da Educação Infantil de Portalegre, participantes do Projeto de Extensão, a respeito de gênero e sexualidade e sua articulação com o contexto escolar, presentes nas imagens, dinâmicas e narrativas produzidas.

SEXUALIDADE: TABUS E PRECONCEITOS ENRRAIZADOS NOS PENSAMENTOS DAS DOCENTES DA EDUCAÇÃO INFANTIL Ainda predominam muitos preconceitos envoltos a sexualidade, mesmo que atualmente se discuta e sejam desenvolvidos estudos e pesquisas acerca do assunto é notável que falar de sexo não é natural e nada fácil. São preceitos religiosos, morais, culturais exercendo forças coercitivas sob os indivíduos. Estes segmentos sociais agem de modo a vigiar nossas atitudes, nossa maneira de falar e até mesmo a forma como pensamos a respeito de sexo. A sociedade e toda sua carga de preconceitos e tabus acerca da nossa temática exerce o papel do panóptico sob o ser social. Foucault (2009) faz em seu livro Vigiar e punir alusão ao projeto de Bentham desenvolvido para a constante vigilância em presídios, hospitais e fábricas, de modo que os próprios condenados, doentes e operários se vigiem, assim, por não terem certeza de que estão sendo 1055

vigiados eles são induzidos a se disciplinarem constantemente. É uma estrutura arquitetada com o objetivo de controlar, de modificar comportamentos, por outro lado é um instrumento para omitir pensamentos, desejos e, consequentemente ações. “O panóptico é uma máquina maravilhosa que, a partir dos desejos mais diversos, fabrica efeitos homogêneos de poder.” (FOUCAULT, 2009, p. 192). Estabelecendo relação com nossa problemática, os “detidos” seriamos nós, na condição de cidadãos inseridos numa civilização onde nossos sentidos, desejos e identidades são caçados, são retidos. Estamos sob a fiel vigilância das regras morais, religiosas e culturais. Freud nos fala do mal estar existente na sociedade moderna, através das angústias causadas pelas privações dos nossos desejos e pela repressão aos instintos sexuais, Se a civilização impõe sacrifícios tão grandes, não apenas à sexualidade do homem, mas também à sua agressividade, podemos compreender melhor porque lhe é difícil ser feliz nessa civilização. Na realidade, o homem primitivo se achava em situação melhor, sem conhecer restrições de instinto. (FREUD, 2010, p. 31).

O autor nos compara com o homem primitivo, o qual é feliz em relação a nós por não estar à mercê de regras. Ainda com as contribuições de Freud podemos entender como se dá este processo de coerção. Do ponto de vista da psicanálise temos o superego que assume o papel de controlador de nossos desejos nos fazendo lembrar nossos valores morais e aqueles estabelecidos socialmente, nos punindo através do remorso. Se a sexualidade humana ainda é tão marcada pelo silêncio, cercada por limites e restrições como discutir a sexualidade da criança? Se para nós, adultos/as, o assunto é tão complexo e as discussões a respeito costumam ser circundadas de censuras, como trabalhar e ampliar nossos conhecimentos fazendo-os chegar àqueles/as que lidam diretamente com a educação? Após mais de um século da exposição de Freud (2002) sobre sua pesquisa a respeito da sexualidade infantil 1056

ainda predominam nas pessoas falta de informação e, por conseguinte, preconceitos e falta de aceitação aos debates. Corroborando a abordagem freudiana, compreendemos que a criança possui fases de desenvolvimento em sua vida sexual, daí partimos para a discussão principal do nosso trabalho: Nossos/as docentes, mais especificamente os/as que atuam na Educação Infantil, estão preparados/as para lidar com estas fases e suas respectivas manifestações? Devido estas problemáticas já colocadas anteriormente, é natural que a criança seja repreendida por sua família ao manifestar sua sexualidade. Daí surge a necessidade da escola que ele/ela frequenta ter abertura para trabalhar o tema e, o mais importante, como menciona Sayão (1997) ao debater acerca do arsenal de informações que as crianças têm e o montante destas que lhes faltam, para ela “[...] as informações sobre a sexualidade só serão educativas quando tiverem o endereço postado corretamente. E com o remetente identificado e devidamente qualificado.” (SAYÃO, 1997, p. 100) Todavia sabemos que a maioria das escolas ainda desconhece a necessidade de ter inseridas em suas ações tais temas, além disso muitos/as educadores/as se sentem inseguros/as para tratar desse assunto numa perspectiva transversal no âmbito escolar. Por meio das análises dos vídeos do curso oferecido pelo Projeto de Extensão para formação de professores/as, conseguimos detectar algumas falas que corroboram ainda esta afirmação. Banho de Riacho (Pseudônimo escolhido por uma professora da Educação Infantil de Portalegre, durante as dinâmicas do Projeto de Extensão), por exemplo, diz: A gente trabalha com um grupo de mães que é muito ignorante [...], a gente teme as mães porque é muito difícil falar de sexualidade na escola.

Ela também coloca a repressão que pode sofrer o/a professor/a por parte da direção da escola, o que autentica a afirmação de Camargo e Ribeiro (1999) com relação à Educação Sexual na 1057

Educação Infantil que para elas “deveria considerar as crianças, as educadoras e as famílias.” (CAMARGO; RIBEIRO, 1999, p. 75). Já Hortelã (Pseudônimo escolhido por uma professora da Educação Infantil de Portalegre, durante as dinâmicas do Projeto de Extensão) teceu o seguinte comentário: Tudo é muito bonito, correto, mas no determinado lugar com a pessoa, com tudo perfeito; agora em público e com palavrão simplesmente fica vulgar, fica ridículo, ai desmorona tudo, né? Então, vamos deixar o sexo resguardado.

Quando Hortelã menciona: “com palavrão” ela se se refere aos nomes de nossas partes genitais (vagina, pênis), ou seja, ela os considera palavrões e quando esta faz uma ressalva com relação a discutir sexualidade “em público” ela quer dizer na escola. Sua fala confirma a dificuldade que temos em falar de sexualidade na condição de pais/mães e como educadores/as.

De fato, ainda possuímos

amarras que nos impedem de tratar o tema com naturalidade, por exemplo, observamos que 100% das educadoras apelidam os órgãos sexuais, dão nomes diversificados ao ato sexual ao invés de usar os termos e nomes científicos, não somos educados a isso o que reflete diretamente em nossa maneira de atuar como educador/a. Por este motivo o local onde ainda poderia se ter uma educação/orientação sexual não a oferece e se torna o espaço onde a sexualidade é ainda mais inibida, o que vai construindo na criança, segundo Freud (2002), sentimentos de vergonha, remorso, diques com relação ao tema. E o que temos de fato, na maioria das escolas, são professores/as despreparados/as

para

lidar

com

as

temáticas

envolvendo

a

sexualidade, por motivos de fragilidade em sua formação, que fingem não ver, não ouvir e se omitem diante das manifestações de sexualidade da criança e/ou professores/as que repreendem essas manifestações. Dentre os/as autores/as que discutem esta realidade, Nunes e Silva (2000), na obra A Educação sexual da criança nos fala que: 1058

Se quiséssemos representar duas atitudes comuns de pais e educadores sobre a sexualidade da criança em duas tipologias metafóricas dominantes poderíamos elencar a chamada “pedagogia do bombeiro”, entendendo como aquela intervenção unilateral de supostamente “apagar focos de incêndios” no tocante às manifestações da curiosidade sexual infantil, inibidora e pacificadora contrapondo-se à “pedagogia da avestruz”, entendendo como aquela atitude de “fingir que não vê”, enterrando a cabeça na areia do diaa-dia, para não enfocar a questão. Trata-se de limites de nossa formação e impedimentos de nossa cultura e informação sobre o tema. (NUNES; SILVA, 2000, p. 3, grifos no original).

Em consequência disto, muitas crianças passam por esta fase sem ter a liberdade de dialogar com seus pais e/ou educadores/as com relação às suas curiosidades sexuais e daí o fato de serem adultos/as que não sabem conversar sobre o assunto, em alguns casos, tornandose pessoas psicóticas, com distúrbios sexuais. Como vimos, a grande dificuldade e a debilidade estão na formação dos/as professores/as, as licenciaturas, em sua maioria não ofertam disciplinas para se debater a sexualidade na escola, o que está na prática como uma problemática não está sendo discutido nas salas de aulas dos cursos de licenciatura. Daí, a solução seria desenvolver projetos de extensão e pesquisa na área, permitindo a inserção do discente mesmo que este não participe ativamente e efetivamente do grupo. Dando continuidade nas análises dos vídeos dos/as docentes do município

de

Portalegre,

percebemos

esta

fragilidade

em

sua

formação, como já foi exposto anteriormente focamos nosso olhar sob os/as professores/as da Educação Infantil na tentativa de trazer à tona e nos fazer conhecer suas ideias acerca do tema sexualidade. Durante a escolha de textos para se trabalhar sexualidade e relações de gênero, percebemos, em quantidade esmagadora, algumas docentes com certo constrangimento até mesmo ao questionar a respeito do título de algumas obras. Outro teceu o seguinte comentário com relação a um dos livros:

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há muito ‘enxerimento’ nesse livro professora.

O que nos instiga a uma indagação: porque a palavra ‘sexo’ foi substituída por um termo tão pejorativo? O que constatamos, na realidade, foi certa rejeição ao tema em discussão e que ainda permeia em sua mente a ideia de que sexualidade é o sexo propriamente dito, o próprio ato sexual. O que não é um caso isolado dentre os/as sujeitos pesquisados. Banho de Riacho, por exemplo, relatou o fato da filha dela chegar em casa dizendo que tinha aprendido a recitar um poema, ela pedindo para a criança recitar e se surpreendeu ao ouvir: Transar é arte, gozar faz parte, engravidar é moda, assumir é foda.

Diante da situação a professora, na condição de mãe, a advertiu da seguinte maneira: Minha filha, não diga isso não, que não pode, isso é imoral.

É nítida aqui a falta de diálogo a respeito do tema, ao invés de conversar com a criança explicando do que se tratavam seus versos, Banho de Riacho resolveu repreendê-la, sem lhe dar nenhuma explicação o que resultou na criança continuar a recitar seu versinho, segundo a mãe, para quem chegasse a sua casa. Levantada uma discussão a respeito da homossexualidade Banho de Riacho se manifestou com a seguinte fala: Acho que é uma doença.

O que nos dá abertura para analisar como a heterossexualidade obrigatória, que é imposta socialmente, é reproduzida na fala das educadoras. O grande desafio é tratar da sexualidade na sua dimensão social, já que a questão da homossexualidade é abordada ainda com muita restrição e repressão, tanto pelos/as educadores/as 1060

quanto pelos pais. No contexto educacional ainda é um tabu, e os agentes que atuam junto às crianças, a escola e a família, estão perdidas e sem direção para abordar o tema, corroborando a afirmação da fragilidade da formação dos/as docentes. Talvez tenha sido desta concepção enraizada historicamente que tenham surgido os homofóbicos, personagens que mais têm ocupado as manchetes dos noticiários.

RELAÇÕES DE GÊNERO NO AMBITO ESCOLAR: IMPOSIÇÕES SOCIAIS

Estudar relações de gênero na sociedade contemporânea implica em lidar com uma intrigante e instigante questão social. O estudo de gênero no campo educacional vem ganhando força, e já é nítida a necessidade de investigar as práticas adotadas pelos/as educadores/as frente às manifestações de relação de gênero, já que a escola e seus/suas colaboradores/as atuam como poderosos/as agentes socializadores/as, que produzem e reproduzem visões de ser e atuar no mundos. O destaque para os estudos de relações de gênero ocorre paralelamente ao desenvolvimento dos movimentos feministas, que nos anos 1970 tiveram a necessidade de entender como se constituem, como se apoiam e como se modificam as desigualdades entre homens e mulheres na nossa sociedade. Esse conceito surgiu após muitos anos de luta dos movimentos feministas para explicar e entender a origem da opressão das mulheres. Gênero diz respeito às noções construídas socialmente em torno da masculinidade e da feminilidade. “Por isso, gênero, um termo emprestado da gramática, foi a palavra escolhida para diferenciar a construção social do masculino e feminino do sexo biológico.” (FARIA, NOBRE, 1997, p. 30). É preciso fazer uma separação entre o gênero biológico e o gênero social. O primeiro nasce com a 1061

criança, e o segundo é construído ao longo de sua vida. Assim, gênero não é um produto diretamente ligado ao sexo biológico, é socialmente construído. “[...] as diferenças de gênero não são biologicamente determinadas, são culturalmente produzidas” (GIDDENS, 2005, p. 105). Partindo da ideia de que relação de gênero consiste nas diferenças e desigualdades entre homens e mulheres na sociedade, é justificável o fato do presente trabalho enfocar as manifestações de relações de gênero no contexto educacional, uma vez que vemos as crianças como aprendizes dessas identidades de gênero. Essas diferenças existentes na sociedade entre homens e mulheres, e que são observadas no ambiente escolar, estão completamente relacionadas com as relações de poder e a divisão sexual do trabalho, contidas na sociedade. As relações de poder existentes na sociedade, nas quais a mulher é submissa ao homem, são plantadas, crescem e se reproduzem na escola. Gênero é um conceito socialmente criado e que impõe papéis sociais aos homens e as mulheres. Segundo Louro (1997), esses: Papeis seriam, basicamente, padrões ou regras arbitrárias que uma sociedade estabelece para seus membros e que definem seus comportamentos, suas roupas, seus modos de se relacionar ou de se portar [...] Através do aprendizado de papéis, cada um/a deveria conhecer o que é considerado adequado (e inadequado) para um homem e para uma mulher numa determinada sociedade, e responder a essas expectativas. (LOURO, 1997, p. 24)

Ao homem é dado o papel de trabalhar fora, pertencendo ao espaço público, e a mulher cuidar da casa e dos filhos, por exemplo, como ações pertencentes ao espaço privado. A relação de poder então mencionada começa a surgir já nas brincadeiras que ensinamos as crianças. As meninas cuidando de suas bonecas, atribuindo o trabalho doméstico e assim firmando seu papel de mãe, e os meninos exibindo seus belos carrinhos, desde cedo provando da liberdade que os homens adultos de nossa sociedade “têm direito”. Sem querer, ou querendo, nós, enquanto pais e educadores/as, vamos firmando nas 1062

crianças seus papéis dentro da sociedade. Neles é dada a mulher uma condição de mera ajudante e de inferioridade quando comparada ao homem. Além de servir de subsídio para as relações de poder, essas atribuições de papéis sociais segundo o gênero, infelizmente também produzidas nas escolas, contribuem para reproduzir a desigualdade social. Já que as mulheres não têm os mesmos direitos e nem as mesmas oportunidades que os homens. E isso ficou nítido nas nossas análises com as docentes já interiormente citadas. Durante o curso foi pedido que as educadoras colocassem no papel as tarefas de seus contextos familiares e escolares que são executadas mais por mulheres, as tarefas que os homens executam e as tarefas feitas por ambos. O resultado demonstra uma divisão sexual do trabalho, que reforça a submissão da mulher, quando as próprias educadoras reconhecem que os homens executam menos trabalho do que elas, e ainda assim são mais valorizados. Vejamos no

Quadro 1 algumas das tarefas que mais

apareceram na dinâmica e suas respectivas porcentagens: Quadro 1 – Divisão de tarefas domésticas e escolares, segundo o sexo. Portalegre, 2010 Atividades Domésticas % Homens Mulheres Homens e Mulheres

Trabalho fora de casa %

Dirigir %

33,3% 100%

84% 50%

57,1% 42,8%

83,4%

0%

33,3%

Fonte: Arquivos do Projeto de Extensão “DIÁLOGOS AUTOBIOGRÁFICOS: TRILHAS DA FORMAÇÃO DOS/AS EDUCADORES/AS SERRANOS/AS”.

Diante das afirmações e conceitos firmados, fica clara a necessidade de investigar as práticas dos/as educadores/as frente às manifestações de relações de gênero no ambiente escolar. A escola é um espaço onde percebemos que as manifestações de relações de gênero são muito fortes. Levando em conta que é nela onde

1063

aprendemos desde cedo a falar, se comportar, agir, através dos valores, modelos, preconceitos e estereótipos sociais veiculados, que influenciam nossas ações. Aos poucos são induzidos aos nossos corpos gestos e movimentos que vão contribuir para a construção da identidade de gênero. A escola e suas práticas educativas são produtoras e reprodutoras das separações entre meninos e meninas, o que configura as relações de gênero. “Diferenças, distinções e desigualdades... A escola entende disso. Na verdade a escola produz isso” (LOURO, 1997, p. 57). Como afirma Louro, a escola, na sua dimensão de agente socializador, produz e reproduz as diferenças entre meninos e meninas. Essa reprodução pode ser vista nos livros didáticos. Na maioria dos livros de ciências o menino é quem sempre está fazendo a experiência, a menina sempre aparece como ajudante. Confirmando assim a submissão e a desvalorização da mulher. Há ainda diversos pontos onde nossas escolas pecam, como afirmam Faria e Nobre (1997): Tradicionalmente a escola tem reforçado a desigualdade entre mulheres e homens. Isso ocorre, por exemplo, na forma como se lida com meninos e meninas: a divisão nas filas, a divisão de tarefas (meninas como ajudantes da professora), o que a escola reforça em um e no outro (“isso não é coisa de menina” ou “está até parecendo uma menina”, “comporte-se como um menino”). (FARIA; NOBRE, 1997, p. 21, grifos no original).

Além da escola, percebemos nos/as educadores/as uma enorme carência quando confrontados/as com o tema. Eles/as internalizaram em si uma “naturalização” em relação aos comportamentos, gestos, movimentos e ações dos meninos e das meninas considerados “normais”, ou seja, aqueles que estão de acordo com os padrões femininos e masculinos impostos pela sociedade. Nos vídeos já citados observamos diversas dificuldades para lidar com o tema relações de gênero, por parte das educadoras envolvidas. Elas ainda internalizam muitos papeis e estereótipos sociais. A própria associação de cores tipicamente femininas e/ou masculinas nos leva a esse raciocínio. 1064

Para introduzir os estudos sobre relações de gênero numa dinâmica do Projeto de Extensão foi pedido para cada participante desenhar alguma coisa utilizando somente a cor azul e depois somente a cor rosa. O resultado foi que as educadoras relacionam o rosa ao cuidado, à delicadeza, ao meigo, características associadas ao feminino. Rosa é cor de menina. Essa foi a fala de Abacate (Pseudônimo de uma professora participante do Projeto): Toda menina gosta de rosa.

Mas qual é o real significado das cores? Está intimamente ligado com as relações de gênero, ao se atribuir a cor da delicadeza, do cuidado e da calma, o rosa, à mulher. E atribuir a cor do universo, da segurança e da liberdade, o azul, ao homem. Percebemos mais ainda essa atribuição no desenho feito por Uva (Pseudônimo de uma professora participante do Projeto), que desenhou um corpo humano com as cores azul e rosa, e disse: Eu desenhei um menino parecido com uma menina. Mas está de rosa, então é uma menina.

Desenho 1 – Dinâmica realizada nas ações do Projeto de Extensão por Uva

Verificamos, então, que as manifestações das desigualdades entre os gêneros também permeiam as percepções dos/as próprios/as educadores/as, contribuindo para reproduzir essas desigualdades no espaço escolar. Das educadoras que trabalham na Educação Infantil, 1065

observadas nas análises dos vídeos, apenas 37,5% mostraram interesse em participar de estudos sobre relações de gênero, 12,5% mencionou não ter interesse algum em se aprofundar na área e os 50% restantes não responderam. O ideal seria uma maior curiosidade e interesse, uma vez que afirmamos desde o início do presente trabalho a necessidade do/a educador/a ter uma preparação para lidar com as relações de gênero na escola. Como idealizar um/a educador/a preparado/a se este/a nem ao menos desperta interesse pela problemática? A análise dos vídeos mostrou que o primeiro passo é despertar no/a educador/a esse interesse para podermos começar a pensar na formação e preparação. O fato do/a educador/a já possuir valores, preconceitos e convicções irá refletir diretamente na sua prática em sala de aula. Portanto, a discussão mais adiante se centra no modo como suas concepções podem interferir em suas ações, mostrando também as dificuldades enfrentadas para lidar com essas manifestações no contexto escolar.

REAÇÕES DAS DOCENTES FRENTE ÀS MANIFESTAÇÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE DA CRIANÇA Diante de tudo posto acima, das percepções e análises feitas, é visível

a

carência,

incapacidade

e

dificuldade

de

nossos/as

educadores/as quando confrontados/as com as manifestações de sexualidade e relações de gênero no espaço escolar. Essa carência de base e segurança para tratar do assunto acarreta na reprodução de visões preconceituosas, que conotam desrespeito a si mesmo e aos demais sujeitos da ação escolar, especialmente os/as alunos/as. De quem será a culpa? Dos pais, da sociedade ou dos/as professores/as? Pode-se dizer que é um conjunto de várias instituições e grupos sociais que influenciam no processo educativo, que reforçam a cultura 1066

patriarcal, prevalecente ainda em nossa sociedade, na qual o homem é superior à mulher. O que precisamos é que nossas práticas enquanto educadores/as e pais se voltem tenham maior abertura e contribuam para o esclarecimento em torno da sexualidade e das relações de gênero. A escola e seus/suas colaboradores/as, como mediadores de conhecimento, devem contribuir para amenizar a situação, no entanto, percebemos que ela educa para a desigualdade e para a repressão, na media em que, muitas vezes, seus agentes se recusam a abordar tais assuntos, o que contribuem para o aumento das desigualdades já discutidas. Confirmamos também que é no ambiente escolar onde se manifestam diversas dúvidas das crianças a respeito dos temas expostos, e é lá, na escola, quando em contato com outras crianças, que nossos/as pequenos/as começam a se questionar e a procurar respostas. O grande erro está aí, pois a criança tem dúvida e espera na escola as respostas, quando esta não está preparada para respondê-la. O/a professor/a que se recusa a aceitar que seus/seus alunos/as tidos como homens, tenham características consideradas femininas e vise e versa, chega a intimidar a criança na frente dos/as colegas e pede para que se comportem como homens ou mesmo que as meninas não ajam do mesmo modo que agem os meninos, pode contribuir para acarretar sérios problemas psicológicos na criança, uma vez que ela se sente humilhada, rejeitada e coagida tanto pelos/as colegas quanto pelo/a educador/a. A situação descrita infelizmente é vista na sua grande maioria, nas salas de aula dos nossos municípios. Estereótipos fixados nos meninos e nas meninas sem o menor cabimento. Como Louro (1997) nos coloca que “Desde seus inícios, a instituição escolar exerceu uma ação distintiva. Ela se incumbiu de separar os sujeitos.” (LOURO, 1997, p. 57). A escola foi e ainda é a principal mediadora das diferenças sociais, especialmente as existentes em relação às relações de gênero e à sexualidade, uma vez que ela 1067

separa homens de mulheres, adultos/as de crianças, católicos/as de protestante, e ricos/as de pobre. Consideramos que o trabalho, quando se refere à sexualidade infantil, por parte de nossas educadoras deve ser bastante difícil, o primeiro limite que percebemos foi o fato destas verem sexualidade como o ato sexual propriamente dito. Daí, já se pode imaginar quais suas reações diante de uma amostra da sexualidade infantil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O/a profissional da educação precisa parar de “naturalizar” os estereótipos que a sociedade impõe e que são dotados de preconceito e geram desigualdade. Por outro lado, é necessário que os/as docentes tratem a sexualidade como um fenômeno natural da vida humana. Diante disto, concluímos que as educadoras estudadas apresentam uma fragilidade imensa para o tratamento de temas referentes à sexualidade e as relações de gênero no cotidiano escolar. Em primeiro lugar, isto tem haver com as dificuldades enfrentadas na vivência de sua própria sexualidade e na falta de um autoconhecimento sobre a questão. Em segundo lugar, estas estão num espaço que a qualquer momento pode aparecer situações em que elas precisaram agir com muita responsabilidade e estas não se sentem preparadas e, desse modo a educação de nossas crianças vai sendo negligenciada. Se assim continuar, prosseguiremos nosso caminho formando homens e mulheres

machistas,

preconceituosos/as,

traumatizados/as,

depressivos/as. Nossas escolas continuarão educando para a desigualdade enquanto a educação não estiver ocupando seu verdadeiro papel na sociedade. É urgente a necessidade de investimentos para a realização de estudos, pesquisas e formação continuada de professores/as, assim como da criação de programas de pós-graduação e da inserção de 1068

componentes curriculares nas licenciaturas envolvendo essas temáticas, que possibilitem aos/as educadores/as refletir de forma crítica sobre suas concepções e práticas diante das manifestações da sexualidade e das relações de gênero. Das professoras observadas, não sabemos se, de fato, as discussões levantas durante o curso refletiram em suas práticas ao ponto de modificá-las. Mas pudemos perceber mudanças efetivas na maneira como estas tratavam da sexualidade, no final dos debates elas já conversavam e expressavam suas opiniões quase naturalmente, isso, sem dúvida, já nos é infinitamente gratificante. Por fim, dos assuntos abordados e das conclusões tiradas vale uma ressalva, apesar de sabermos quão débil é a formação e, por conseguinte a atuação dos/as professores/as, não há culpados neste jogo. O que existe são preceitos, regras e normas constituídas socialmente que minam nossos pensamentos e ações, sabemos que não é fácil estarmos inseridas num determinado contexto social e não sermos influenciadas pelos valores dominantes. Como diria Freud (2010) vivemos numa civilização que sofre de um mal-estar, o qual nós mesmos muitas vezes somos contribuintes. Desta forma, como nos fala Maturana e Verden-Zoller (2004), entre outros/as autores/as, articulando o amor e o brincar, consideramos a educação um dos meios capazes de contribuir para nossa formação numa perspectiva humanizadora, permitindo-nos

rever

e

mudar

nossas

concepções

e

práticas,

especialmente no tocante existência de uma atuação sistemática e problematizadora de educação sexual.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CAMARGO, Ana Maria Faccioli; RIBEIRO, Cláudia. Sexualidade(s) e infância(s): a sexualidade como um tema transversal. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 1999. 1069

EGYPTO. Antonio Carlos (Org.). Orientação sexual na escola: um projeto apaixonante. São Paulo: Cortez, 2003. FARIA, Nalu; NOBRE, Miriam. Gênero e desigualdade. São Paulo: SOF, 1997. (Cadernos Sempreviva, Série Gênero, políticas públicas e cidadania, 1). FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 36. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. FREUD, Sigmund. A Sexualidade Infantil. In: _____. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Rio de Janeiro: Imago, 2002. ______. O Mal estar na civilização. Texto copiado integralmente da edição eletrônica das obras de Freud, versão 2.0 por TupyKurumin. Disponível em: . Acesso em: 28 set. 2010. GIDDENS, Anthony. Gênero e Sexualidade. In: ______. Sociologia. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2005. LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva pós-estruturalista. 2. ed. Brasília, DF: CNTE; Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. MATURANA, Humberto; VERDEN-ZOLLER, Gerda. Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano. São Paulo: Palas Athena, 2004. NUNES, César; SILVA, Edna. A Educação sexual da criança polêmicas do nosso tempo. Campinas, SP: Autores Associados, 2000. (Polêmicas do nosso tempo, 72). SAYÃO, Rosely. Saber o Sexo? Os problemas da informação sexual e o papel da escola. In: Aquino, Julio Groppa (Org.). Sexualidade na escola: Alternativas teóricas e práticas. 5. ed. São Paulo: Summus, 1997.

1070

ANÁLISE HISTÓRICA DA TRANSEXUALIDADE E SUA PATOLOGIZAÇÃO

Cristina Diógenes S. Bezerra311

O poder dos elementos que nos cercam deve ser bem utilizado, para que possamos usá-los sem desperdiçá-los. Sem fazer um uso abusivo da força que aquele instrumento tem em potencial. Esse é um cuidado que desde a criação do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. DSM. não teve desde sua criação, em 1952. Produzido pela Associação de Psiquiatria Americana já foi escrito com o intuito de orientar esse ramo dentro de um dos principais documentos da Organização Mundial de Saúde, a Classificação Internacional de Doenças. Este trabalho, que ainda está em andamento, tem a intenção de abordar os percursos e discursos utilizados para introduzir o diagnóstico de “transexualidade” no DSM. Para tanto acredito na importância de trabalharmos a história do Manual em si para compreendermos a manipulação

da

sexualidade

e

a

construção

de

limiares

de

normalidade e patologia. O Manual então foi criado a partir dos boletins médicos da Segunda Guerra Mundial e nesse início, do DSM I tinha um viés psicossocial (RUSSO, 2006) para justificar as doenças mentais, a noção de reação era utilizada para a compreensão das doenças, como se elas fossem reações, respostas às situações da vida. Segundo também Jane Russo o pós-guerra viveu um processo de psicanalização ou psicologização da psiquiatria. Presente também na escrita do DSM II, que pensava em níveis de desorganização psicológica do indivíduo.

311

Estudante de Graduação em Ciências Sociais (UFRN).

1071

Para a autora, começou a haver uma hegemonia psicanalítica que apenas na década de 1970 enfraqueceu. Creio ser válido ressaltar que a década de 60 e 70 foi marcada por protestos e reivindicações em diversos âmbitos da sociedade, o movimento negro, as feministas, o movimento hippie. Dentro desse contexto o movimento gay dos Estados Unidos insatisfeito com a classificação de doença mental se organizou e lutou pela retirada dessa classificação. Alguns profissionais das ciências psi apoiaram e militaram pelo movimento, Judd Marmor e de uma maneira bem singular, Robert Spitzer. A conquista da retirada ocorreu em 1973. Contudo, houve uma mudança significativa no manual seguinte. A sexualidade foi focada e cerceada. O termo “homossexualismo” foi retirado e a quantidade de classificações e terminações para as sexualidades divergentes do padrão heteronormativo estouraram. Segundo Russo, o manual se apropriou de termos como “identidade de gênero” utilizado no movimento feminista, homossexual e nos estudos de gênero das ciências sociais. Podando e classificando cada vez mais experiências e multiplicidade de vivências de maneira disfarçada por meio de mudanças lingüísticas. Para tornar mais palpável a apreensão de tais alterações, a quantidade de doenças listadas passou de 180 para 295 diagnósticos. Esse processo de inchaço teve a colaboração da indústria farmacêutica que por meio da venda de uma ideologia de maior valorização

do

empirismo,

financiou

as

pesquisas

experimentais

localizadas na população estadunidense. Formando assim diagnósticos específicos, pois se encontravam numa única cultura e extremamente tendenciosos, pois quanto mais havia doenças diagnosticadas e legitimadas pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais mais os médicos receitariam drogas, e a indústria teria o retorno de seus investimentos em pesquisas. Sabendo disso o que Jane Russo ressaltou em relação à uma perda da hegemonia da psicanálise e psicologia na década de 1970 faz todo sentido, pois nesse período a psiquiatria com 1072

a lógica de receitar remédios/drogas aos pacientes faria o ciclo funcionar e gerar lucro. A revisão do DSM II para a construção do DSM III é então colocada como uma revolução terminológica que rompeu com a abordagem psicanalítica, entrou num mérito classificatório, concebeu e ampliou as noções de normal e patológico, ao mesmo tempo em que possibilitou a formação de grupos identitários, na medida em que os recortou, costurou e carimbou. Conforme apontou Russo (2006): “O DSM III foi proclamado um manual a-teórico [...] Sob a radical ruptura terminológica, portanto, encontrava-se a ruptura também radical com uma certa teoria sobre os transtornos mentais. [..] O pressuposto empiricista implicado em uma posição “a-teórica”, e por isso objetiva, tem afinidades evidentes com uma visão fisicalista da perturbação mental. É assim que, o surgimento e a difusão da nova nomenclatura presente no DSM IIIcorresponde à paulatina ascensão da psiquiatriabiológica como vertente dominante no panorama psiquiátrico mundial”

A medicalização se mostra clara. É um momento em que os personagens sociais estavam sendo forjados. A prática não é mais da sodomia, como dizia a igreja, mas você passa a se constituir enquanto sujeito homossexual. E é nesse contexto que o “Transexualismo” é incluso, no DSM III em 1980. As

discussões

sobre

performances

de

gênero

e

outras

sexualidades já estavam sendo escritas desde 1889, um dos primeiros registros foi feito por Krafft-Ebing que com o livro Psycopathia Sexualis difundiu a noção de uma sexualidade normal e outras que são patológicas. Seus escritos colaboraram para a noção atual da ciência que coloca a palavra “transexual” geralmente atribuída àquelas pessoas que apresentam uma não correspondência entre seus órgãos genitais e gênero - que lhe foi atribuído pela relação com tais órgãos demandando a modificação do seu corpo por meio de hormonização e cirurgia, essa noção também é atravessada no manual por um desconforto e angústia nessa experiência. Então faz-se claro como a ciência psi realmente deixou de lado o fator social em seus 1073

diagnósticos, pois quando esse sofrimento existe - e não podemos generalizá-lo – está intrinsecamente ligado à convivência que os e as transexuais têm com seus parentes, amigos, com os desconhecidos, que muitas vezes é permeada de preconceito e violência. Gostaria de abordar mais esses aspectos da experiência transexual ao final do trabalho, na medida em que a medicalização dessas performances gera grandes conflitos no cotidiano dessas pessoas. Retomando, citarei aqui outros pesquisadores que colaboraram para a constituição da noção de transexualidade atual: Magnus

Hirschfeld

(1868-1935): médico homossexual

judeu-

alemão e publicou em 1910 o livro Die Transvestien, este foi o primeiro a descrever pessoas que têm a necessidade de se vestir com roupas do sexo oposto chamando-as de travestis, referindo-se também, a um de seus pacientes como transexual psíquico. David O. Cauldwell em 1949 usa o termo “psicopatia transexual” e depois “transexualismo” para falar sobre o que ele considerava o mais extremo desconforto de gênero. Em 1952 é divulgado num jornal norte-americano o caso de Christine Jorgensen,

que

nascida

George

Jorgensen,

fez

a

cirurgia

de

modificação corporal e teve sua experiência publicada, a partir daí as discussões sobre identidade sexual e de gênero ganham conhecimento público. O lançamento do livro “The Transsexual Phenomenon” foi um marco nos estudos sobre transexualidade. A medicalização das experiências de gênero foi influenciada pelo endocrinologista alemão, Harry Benjamin, que analisando a transexualidade como uma patologia colaborou com a instrumentalização e realização dos processos transexualizadores. significativamente

Seu para

livro a

lançado

compreensão

em da

1953

colaborou

necessidade

da

modificação corporal. Ela passou a ser vista como uma forma de possibilitar a associação do corpo com o gênero desejado. Legitimado pelas pesquisas já citadas, ele partiu da perspectiva de que a 1074

desordem necessitava de um tratamento. Assim, começou a realizar hormonização em seus pacientes, e em conjunto com outros profissionais, cirurgias de modificação corporal. Essas cirurgias tiveram o respaldo e a instrumentalização facilitada pelo John Hopkins Hospital que fundou uma Clínica de Identidade de Gênero com a colaboração de John Money, médico que fez diversas cirurgias do processo transexualizador. Na década de 60, o psicanalista anteriormente citado, Robert Stoller atribuiu sexo ao biológico e o gênero uma definição sóciobiológica. Vemos então uma modificação dentro da ciência psi na compreensão do que é sexo e do que é gênero, que inclusive, colaborou para a formação de mais classificações no DSM III. Como

últimos

dados

temporais

para

nos

orientarmos

da

efervescência vivida durante esse período, em 1973 foi criado o termo “disforia de gênero” para incluir indivíduos que sofrem algum tipo de desconforto de gênero, e em 1977 foi criado pelo Harry Benjamin International Gender Dysphoria Association, HBIGDA o Standards of Care ou Normas de Tratamento, SOC, um código e estatuto de tratamento para os “transexuais verdadeiros” que acabavam de ser inventados, recortados e medicalizados. A HBIGDA citada acima é conhecida hoje como a WPATH (em português,

Associação

Profissional

Mundial

para

Saúde

dos

Transgêneros) ela é uma organização que continua a se empenhar no “tratamento” dos e das transexuais, ajustando a experiência transexual com as Normas de Tratamento. O SOC se tornou uma referência internacional nos procedimentos de cuidados com as identidades trans, que, contudo, implica uma tríade de submissão e tratamento: psicoterapia, hormonização, teste de vida real, para então chegar às cirurgias como, neofaloplastia, mastectomia, neocolvulvoplastia. Todo esse processo coloca nas mãos dos psicólogos, assistentes sociais, endocrinologistas a autorização dos procedimentos, deixando as pessoas trans subordinadas aos julgamentos de valor desses profissionais 1075

que muitas vezes, arbitrariamente, não dão um laudo positivo, postergando o sofrimento dos indivíduos. As referências atualmente utilizadas para a legitimação do processo transexualizador, é vista nos documentos produzidos pela, OMS, Organização Mundial de Saúde e a APA, Associação Americana de Psiquiatria. Segue

abaixo

trechos

da última revisão desses

documentos: Fragmento da décima revisão da Classificação Internacional de Doenças312, Capítulo V, F64, seção de Transtornos de Identidade Sexual:

“F64.0 - TRANSEXUALISMO Trata-se de um desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto. Este desejo se acompanha em geral de um sentimento de mal estar ou de inadaptação por referência a seu próprio sexo anatômico e do desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento hormonal a fim de tornar seu corpo tão conforme quanto possível ao sexo desejado. [...] F64.2 - TRANSTORNO DE IDENTIDADE SEXUAL NA INFÂNCIA Transtorno que usualmente primeiro se manifesta no início da infância (e sempre bem antes da puberdade), caracterizado por um persistente em intenso sofrimento com relação a pertencer a um dado sexo, junto com o desejo de ser (ou a insistência de que se é) do outro sexo. Há uma preocupação persistente com a roupa e as atividades do sexo oposto e repúdio do próprio sexo. O diagnóstico requer uma profunda perturbação de identidade sexual normal; não é suficiente

312

http://www.datasus.gov.br/cid10/v2008/webhelp/cid10.htm

1076

que uma menina seja levada ou traquinas ou que o menino tenha uma atitude afeminada. Os transtornos da identidade sexual nos indivíduos púberes ou pré-púberes não devem ser classificados aqui mas sob a rubrica F66. Exclui: orientação sexual egodistônica (F66.1) transtorno da maturação sexual (F66.0) F64.8 Outros transtornos da identidade sexual F64.9 Transtorno não especificado da identidade sexual Transtorno do papel sexual SOE” Vemos, então, um quadro de ações e desejos baseados num padrão que direciona a não identificação com o gênero atribuído à cirurgia, além disso, há também uma busca por controle da sexualidade infantil que passa a ser diagnosticada como transtornada, mesmo quando ainda está em processo de formação da sua sexualidade e identidade de gênero, sendo também uma forma de tentar podar quem poderia vir a ter uma “sexualidade desviante“. A submissão posta nessa medicalização das identidades trans está evidente nesse quadro e o ativismo transexual por meio da campanha “Pare a Patologização!” se mobiliza para modificar o DSM e o CID, que serão revisados respectivamente em 2013 e 2015 e retirar no CID da categoria de Transtorno de Identidade, no Capítulo V e colocá-la na mesma categoria da Gravidez, como uma situação que precisa de cuidado, mas não é uma doença. Abaixo estão expostos fragmentos do DSM IV313, na seção Transtornos da Identidade Sexual,. F64.x – Transtorno da Identidade de Gênero. “CARACTERÍSTICAS DIAGNÓSTICAS:

313

http://virtualpsy.locaweb.com.br/dsm_janela.php?cod=118

1077

Há dois componentes no Transtorno da Identidade de Gênero, sendo que ambos devem estar presentes para fazer o diagnóstico. Deve haver evidências de uma forte e persistente identificação com o gênero oposto, que consiste do desejo de ser, ou a insistência do indivíduo

de

que

ele

é

do

sexo

oposto

(Critério

A).

Esta identificação com o gênero oposto não deve refletir um mero desejo de quaisquer vantagens culturais percebidas por ser do outro sexo. Também deve haver evidências de um desconforto persistente com o próprio sexo atribuído ou uma sensação de inadequação

no

papel

de

gênero

deste

sexo

(Critério

B).

[...] O diagnóstico não é feito se o indivíduo tem uma condição intersexual física concomitante (por ex., síndrome de insensibilidade aos andrógenos ou hiperplasia adrenal congênita) (Critério C). Para que este diagnóstico seja feito, deve haver evidências de sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo (Critério D). [...] Existe uma forte atração pelos jogos e passatempos estereotípicos de meninas. Pode ser observada uma preferência particular por brincar de casinha, desenhar meninas bonitas e princesas e assistir televisão ou vídeos

de

suas

personagens

femininas

favoritas.

Bonecas

estereotipicamente femininas, tais como Barbie, com freqüência são seus brinquedos favoritos, e as meninas são suas companhias preferidas. [...] Pode haver, também, uma insistência em urinar sentados e em fingir que não possuem pênis, escondendo-o entre as pernas. “Mais raramente, os meninos com Transtorno da Identidade de Gênero podem afirmar que têm aversão por seu pênis ou testículos, que desejam removê-los ou que têm, ou desejam ter, uma vagina.”

1078

Assim como no CID vemos no DSM a formação do estereótipo do transexual e a confusão do Manual do sexo com o gênero, colaborando com a noção psicoterapia e cirurgia para o tratamento. Conforme nos lembrou Fernando Seffner (2011) uma iniciativa importante é retirar o gênero da alçada do poder médico. A idéia de cura

das

experiências

é

ainda

hoje

pautada

nos

ambientes

hospitalares, além do essencialismo biológico da homossexualidade, por exemplo, presente nas pesquisas, comparando-nos a animais, fazendo relação com os genes, regiões do cérebro que são estimuladas nos transexuais etc. Numa busca por apagar o caráter social dessas vivências, justificando por meio de uma naturalização biológica as ações sociais. Sendo perceptível nessas linhas, então, a contextualização histórica que fiz do Manual, que ao longo do tempo foi perdendo todo o caráter psicossocial e com isso muito de uma boa compreensão da experiência com a qual eles estão trabalhando. Para tanto, ressalto a importância do movimento que toma caráter internacional, o Pare a Patologização, para que não haja mais esse domínio sobre vidas e corpos. É preciso entender a transexualidade enquanto

uma

experiência

identitária

recente

(BENTO,

2008),

estimulada pelo crescimento das tecnologias da saúde e que muitas vezes é homogeneizada pelo discurso heteronormativo que nos diz como deve ser o e a transexual, o que deve repudiar e o que deve gostar em seu corpo e gênero. Deixa-se de lado toda a pluralidade que há nas identidades, forçando a reproduzir o padrão de feminilidade e masculinidade impostas pela sociedade É

interessante

pensar

que

muitas

vezes

ao

discutirmos

sexualidades e gêneros não legitimados por nossa sociedade ocidental contemporânea tratamos como identidade de gênero, e quando falamos em homem e mulher falamos em seus gêneros. Teriam eles então gênero e os dissidentes identidades de gênero? (BENTO, 2011) Ao longo do trabalho de pesquisa tem se tornado claro como a biologia 1079

da mulher e do homem se constrói numa ficção do gênero. Como que ele todo está forjado e se busca um ideal falso. É fácil perceber que há um modelo socialmente aceito, constituído pela norma hetero, por um modo de se relacionar, que vai além do âmbito da sexualidade hetero, o que poderíamos chamar de heteronormatividade, pensamento straight, conforme apontou Bento (2006): “A mente (cor)reta, segundo, Wittig, universaliza todas as suas idéias e é incapaz de conceber uma cultura que não ordene todos os seus conceitos a base da heterossexualidade. Ainda segundo Wittig, a matriz do poder ou da dominação não é a dominação de classes, nem mesmo as raças, mas a heterossexualidade.”

Sendo desde esse ponto que o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais comunica seus diagnósticos, permeado por uma lógica hetero, com o intuito de sua normalização e normatização. Contudo, este trabalho tem a intenção de problematizar tais normas por meio da compreensão dos processos que levaram a colocar as performances de gênero no âmbito da psicopatologia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BENTO, Berenice. A Reinvenção do Corpo. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. ________. O que é transexualidade. São Paulo: Brasiliense, 2008. ________. Política da diferença: feminismos e transexualidades. In: Colling, L.(org.). Stonewall 40 + o que no Brasil? Salvador: EDUFBA, 2011. RUSSO, Jane; VENÂNCIO, Ana Teresa A.Classificando as pessoas e suas perturbações: a “revolução terminológica” do DSM III. São Paulo: Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 2006. RUSSO, Jane. A sexualidade no DSM III. Rio de Janeiro: Centro Latino1080

Americano em Sexualidade e Direitos Humanos. SEFFNER, Fernando. Comprosições (com) e resistências (à) norma: pensando ocorpo, saúde, políticas e direitos LGBT. Stonewall 40 + o que no Brasil? Salvador: EDUFBA, p.79-110, 2011. PÁGINAS ELETRÔNICAS: http://www.dsm5.org/Pages/Default.aspx> http://www.datasus.gov.br/cid10/v2008/webhelp/cid10.htm> http://www.stp2012.info/old/pt> http://www.wpath.org/documents2/socv6.pdf>

1081

GÊNERO E FAMÍLIA: INVESTIGAÇÃO SOBRE RELAÇÕES DE PODER INTRAFAMILIARES COM PESSOAS TRANS Marcos Mariano Viana da Silva314

RESUMO: Este trabalho analisa como as relações de poder intrafamiliares afetam a construção identitária de travestis e transexuais em Natal-RN. O referencial teórico está ancorado nos estudos queer. A pesquisa etnográfica abrange observação direta e entrevistas face a face e on line (através do programa de mensagens instantâneas pela internet MSN Messenger e pela rede social Facebook). O estudo foca a análise de narrativas de vida abordando temas que vão desde a infância à idade adulta, o convívio familiar, a criação do “eu” e a construção dos corpos das travestis e transexuais. O estudo atenta para como as experiências corporais e subjetivas das pessoas trans são produzidas, negociadas e rejeitadas no espaço da família. Palavras-chave: Travestis, transexuais, família, teoria queer, narrativas de vida.

INTRODUÇÃO:

Este trabalho visa realizar uma investigação sócio-antropológica sobre como as relações de poder intrafamiliares (FOUCAULT, 2007) afetam a construção identitária de pessoas trans 315. Em alguns estudos sobre o tema como Benedetti (2005), Kulick (2008) e Pelúcio (2007), vemos exemplos de casos de trans que sofreram algum tipo de violência por parte dos familiares ao longo da vida, entretanto esse recorte não é o centro desses estudos. Para fazer desse tema o cerne do trabalho, o artigo foca a análise de narrativas de vida de sete pessoas trans. O

presente

trabalho

objetiva

identificar

a

variedade

de

mudanças de constrangimentos das pessoas trans ao longo das suas 314

Graduado em Ciências Sociais (UFRN) Bolsista de Iniciação Científica (PROPESQ-REUNI-UFRN). Vinculado ao Núcleo Interdisciplinar de Estudos em Diversidade Sexual, Gênero e Direitos Humanos TIRÉSIAS. Atualmente, desenvolve estudos sobre questões de gênero e sexualidade, teoria queer, relações familiares, travestilidade e transexualidade. [email protected]. 315 O termo “pessoas trans” foi usado nesse trabalho para referir-se as travestis e transexuais que foram ouvidas na pesquisa.

1082

experiências de vida, a partir da análise de relatos mnemônicos adquiridos em entrevistas feitas durante o processo de realização da pesquisa, assim como, investigar quais os efeitos das relações de repressão social no desenvolvimento do comportamento das travestis e transexuais, como também observar e descrever como se caracteriza a rede de relações familiares das trans entrevistadas, ou seja, analisar os conflitos, os mecanismos de controle e casos de homofobia familiar. O referencial teórico está ancorado nos estudos queer. Para o desenvolvimento da pesquisa, a metodologia empregada para conseguir informações foi o da entrevista por indicação, esse método vem sendo aplicado aliado à leitura e reflexão de textos teóricos e etnográficos sobre o tema. Já, a pesquisa etnográfica abrange observação direta, entrevistas face a face e online (através do programa de mensagens instantâneas pela internet MSN Messenger e pela rede social Facebook).

SOBRE A PESQUISA: A pesquisa se iniciou no mês de junho de 2010, fruto de uma reflexão para um trabalho da disciplina de Teoria Sociológica II do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. No primeiro momento, foram abordados temas que caminhavam entre a construção dos corpos e a prostituição das travestis em Natal-RN, mas devido a leituras etnográficas sobre o tema como os já citados, Benedetti (2005), Kulick (2008), Pelúcio (2007) e também trabalhos de Hélio Silva (1993), Damásio (2009) e Duque (2009), percebemos um campo sempre mencionado, mas nunca com profundidade analítica investigado, esse espaço era o núcleo familiar das pessoas trans. A primeira travesti a ser entrevistada foi Sheila, que por morar a poucas ruas de distância do pesquisador e ter um irmão que é amigo

1083

de infância do mesmo, teve o processo de aproximação bastante facilitado, além disso, Sheila foi a única travesti que teve como colaboradores da pesquisa o irmão e a mãe. O pesquisador também investiu em aproximações via internet e após algumas buscas, encontramos um blog de uma travesti que oferecia serviços de acompanhante de luxo em Natal, fizemos contato através do endereço de e-mail e iniciamos conversas por meio do programa virtual de trocas de mensagens instantâneas MSN Messenger. Com o depoimento dessas duas travestis, foi feito o primeiro trabalho do pesquisador sobre o tema da construção dos corpos e da prostituição. Após esse trabalho, a pesquisa teve uma pausa e no segundo semestre de 2011, os contatos no campo foram reestabelecidos mais uma vez com Sheila. Depois o método de aproximação utilizado pelo pesquisador foi o da indicação. Sheila indicou para participar da pesquisa, sua amiga Raquel e o pesquisador fez contato com Raquel via internet, através da rede social Facebook. Raquel indicou uma amiga travesti chamada Júlia e depois de algumas conversas no Facebook e vários encontros marcados e desmarcados em cima da hora, o pesquisador foi convidado por elas duas para participar do I Encontro Estadual de Travestis e Transexuais do Rio Grande do Norte. Nesse encontro, Raquel indicou Bruna e Júlia indicou Luana (ambas travestis) para participarem da pesquisa. Além disso, na faculdade o pesquisador fez amizade com uma transexual (Patrícia) que depois de assistir uma apresentação do pesquisador sobre o seu trabalho etnográfico, se ofereceu para participar da pesquisa. Assim identificamos a nossa rede de colaboradoras de pesquisa, cinco travestis (Sheila, Júlia, Luana, Bianca e Priscila) e duas transexuais (Raquel e Patrícia), além da mãe e do irmão de Sheila.

1084

A FAMÍLIA E AS RELAÇÕES DE PODER: Em seu texto, A Sociedade dos Indivíduos, Norbert Elias (1994) apresenta a indagação se todos nós sabemos realmente do que estamos falando quando nos referimos ao o que é sociedade. Ele elucida que a sociedade é composta de indivíduos que estão interligados por meio de relações e funções diversas. Segundo o autor, para entender a sociedade, não basta olhar isoladamente somente para o todo ou então somente para a parte, mas sim para as relações que se dão entre o todo e a parte. É o conjunto dessas relações que permitem que os indivíduos formem a sociedade e a sociedade forme os indivíduos. O ser aprende a ser humano a partir da convivência em grupo, dos valores que lhe são colocados como fundamentais e das normas e regras sociais que lhe são assentadas como imprescindíveis. Pode-se dizer que os valores mais originais da existência humana são: a moral, os costumes e as convenções, esses valores formam um sistema que segundo Peter Berger (1997) exerce uma função dominante de controle social. Aqueles que rompem com a estrutura desse sistema ficam sujeitos a punições, a estranhamentos e rejeições da sociedade. A família é a célula mais rígida desse sistema, é o núcleo formador da hierarquia das relações de poder que são colocadas pela primeira vez para o ser humano dentro do espaço da casa. Michel Foucault (2007) afirma que a forma de se exercer o poder é agir sobre um campo de possibilidades possíveis de ações, o poder: Incita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil, amplia ou limita, torna mais ou menos provável; no limite, ele coage ou impede absolutamente, mas é sempre uma maneira de agir sobre um ou vários sujeitos ativos. E coloca que: Aquilo que define uma relação de poder é um modo de ação que não age direta e imediatamente sobre os outros, mas que age sobre sua própria ação. Uma ação sobre a ação, sobre ações eventuais, ou atuais, futuras ou presentes.

1085

O exercício e essa relação de poder estão presentes em vários lugares, como por exemplo, na relação médico – paciente, na relação do governo sobre os modos de vida das pessoas e na relação entre pais e filhos. É nessa perspectiva que o tema em questão se encaixa: as relações familiares e de poder das travestis e transexuais. No relato das trans entrevistadas é possível perceber a constituição dessas relações de poder dentro da família, desde pequenas as travestis e as transexuais descrevem os seus desejos de se assumirem como homossexuais, assim como também relembram a repressão que sofreram de seus familiares. Construímos o trabalho assim como era desenvolvida a entrevista, em etapas: a infância, a adolescência, a transformação e o convívio familiar atual.

A INFÂNCIA: O referencial teórico utilizado para a construção desse trabalho está ancorado nos estudos queer. A teoria queer é uma corrente teórica que tem como objeto de análise a dinâmica da sexualidade e do desejo na organização das relações sociais, além de compreender a sexualidade como uma construção social e histórica (MISKOLCI, 2009). Mesmo assim, é importante ressaltar que as entrevistadas se viam como pessoas que carregavam o seu gênero no nascimento. Sheila: — Eu tenho pra mim que eu já nasci assim. Luana: — Eu acho que a gente já nasce assim, desde criança... A gente tem alma de mulher, acho que toda travesti tem alma de mulher, quer ser igual a elas. Raquel: — Sempre fui assim. Eu quando eu era pequena, eu me recordo muito da minha infância, dois, três anos, quatro, por incrível que pareça eu lembro, eu não sabia o que era sexualidade, eu via na TV a Globeleza, então eu queria butar a minha cueca como ela, fio dental e ficar sambando, queria ser uma menina.

Em todos os casos, assim como aponta (DAMÁSIO, 2009), autora de uma tese de doutorado sobre travestis e drag queens em Natal-RN, 1086

as entrevistadas sempre recorriam a imagens e brincadeiras da infância para reforçarem a idéia da naturalização do gênero e assim justificar que desde os primeiros anos de vida, graças aos seus trejeitos e preferências já se percebia uma tendência para a aplicação de signos femininos no corpo. Luana: — Eu lembro quando eu brincava com as meninas de boneca, era tão bom... (risos) Quando eu brincava com as meninas de boneca, brincava de casinha, essas coisas assim... Pesquisador: — Mas tinha resistência dos seus pais? No sentido de você ter que jogar bola... Luana: — É, sempre, porque assim, o pai da gente nunca vai aceitar. O que ele queria era que a gente desse o quê? Netos a ele, cassasse com uma mulher, como a minha irmã, minha irmã deu netos a ele e o que ele queria, né?Meu pai e minha mãe...

Nesse trecho retirado do início da entrevista com a travesti Luana, podemos refletir sobre os investimentos que os pais engendram para a constituição do gênero dos seus filhos, não seria ousado pensar que a brincadeira de boneca, de casinha entre as meninas e o jogar bola, brincar de carrinho entre os garotos, são uma amostra similar do arco e o do cesto de Pierre Clastres (2008). Foi uma maneira que a sociedade ocidental encontrou ao longo da história de domesticar/adestrar as suas crianças e posicionar os indivíduos numa apontada função social determinada pelos seus sexos. Entretanto, como apresenta Berenice Bento (2006), o investimento dos pais nos primeiros anos de vida dos filhos para a construção de um gênero que coincida com a ordem dominante que determina que o sujeito seja heterossexual poderia ser classificado como enunciados que marcam o estabelecimento do heteroterrorismo316 nas relações sociais. Com isso, talvez a esperança de correção de uma falha, levam os pais a cometerem atitudes extremadas com seus filhos. Vejamos o exemplo de outra travesti entrevistada:

316

Para saber mais especificamente sobre heteroterrorismo, consultar uma entrevista da autora disponível em: http://www.clam.org.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=1558&sid=43

1087

Júlia: — Eu não tive uma boa infância não. Meu pai, né? Era muito conservador e crítico, eu apanhei muito, o primeiro sinal de homofobia em relação à questão da homossexualidade, eu tinha o quê? Uns sete anos de idade, só porque eu coloquei uma pranchetazinha no braço, colocada assim, né? Nessa posição... (Faz um gesto simulando de que segurou a prancheta na frente do tórax com os braços) Meu pai quebrou meus dois braços, né? O braço direito e o esquerdo e eu tive que ir pra o colégio com o braço engessado e nem eu sabia por que eu tinha apanhado.

A violência da ação do pai sobre Júlia poderia ser comparada a um bisturi cirúrgico que tem como função corrigir organismos que se encontram falhos. Na visão do pai, Júlia tinha que se comportar como homem e se não fizesse isso, estaria passível de punição. Júlia: — Já uma segunda vez, quando ele me atirou, pegou pelo meu pé, eu tava sentada de perna fechada e pra ele homem tinha que sentar de perna aberta, né? Eu tava sentada de perna fechada, meu pai me pegou pelo pé e ia me jogar num poço... Pesquisador: — Isso criança ainda? Júlia: — Isso! Como criança, eu tinha o quê? Uns sete anos e meio, foi logo em seguida a isso e só por esse fato, meu pai me pegou e ia me jogar num poço e quem me salvou foi minha tia, né? Que na época minha tia morava comigo, que é irmã dele.

No texto de Margareth Mead, Sexo e Temperamento (2000), a autora aponta a existência nas sociedades estudadas por ela: Arapesh, Mundugumor e Tchambuli, dos inadaptados, ou seja, indivíduos que não se encaixavam nos ideais de comportamento e função social dessas sociedades. Essa noção de inadaptados também é encontrada no texto de Pierre Clastres, O arco e o cesto (2008), em dois exemplos entre os guaiaquis, um homem que é “rebaixado” por não conseguir caçar e começa a fazer mesmo a contragosto e sob muita zombaria, o trabalho assumido pelas mulheres do grupo e um sodomita que se disponibiliza em assumir o papel social de mulher e é aceito por todo o grupo, mas seria a travesti e/ou a transexual um inadaptado da sociedade ocidental?

1088

Sobre essa pergunta podemos recorrer a Zygmunt Bauman que no seu livro O Mal-Estar da Pós-Modernidade nos fala sobre a criação e a anulação dos estranhos. Todas as sociedades produzem estranhos. Mas cada espécie de sociedade produz sua própria espécie de estranhos e os produz de sua própria maneira, inimitável. Se os estranhos são as pessoas que não se encaixam no mapa cognitivo, moral ou estético do mundo – num desses mapas, em dois ou em todos três; se eles, portanto, por sua simples presença, deixam turvo o que deve ser transparente, confuso, o que deve ser uma coerente receita para a ação, e impedem a satisfação de ser totalmente satisfatória; se eles poluem a alegria com a angústia, ao mesmo tempo que fazem o atraente o fruto proibido; se, em outras palavras, eles obscurecem e tornam tênues as linhas de fronteira que devem ser claramente vistas; se, tendo feito tudo isso, geram a incerteza, que por sua vez dá origem ao mal-estar de se sentir perdido – então cada sociedade produz esses estranhos. (BAUMAN, 1998).

Com isso, podemos vislumbrar as travestis e as transexuais nesse processo de criação e anulação dos estranhos, assim como também no conceito de inadaptado social. As pessoas trans na sociedade ocidental pós-moderna estão aonde Bauman afirma que se encontram os sujeitos que tornam obscuras e tênues as linhas de divisas que deveriam ser nitidamente observadas e como para a maioria, as travestis e transexuais são um corpo estranho que entra em conflito com as normas de gênero heteronormativas, as pessoas trans são anuladas socialmente, mas essa anulação não ocorre num espaço vazio, longe de obrigações e de reposicionamentos sociais, mas em trânsito para a marginalidade, para a bizarrice e para aquilo que é cognitivamente inaceitável.

ADOLESCÊNCIA: Refletindo sobre aquilo que Bauman e Mead afirmam podemos encaixar na narrativa de vida das travestis e transexuais o momento quando elas se entendem como um inadaptado, ou seja, quando tomam consciência de que não se enquadram no binarismo de gênero: 1089

sexo masculino = homem; sexo feminino = mulher. A fase onde na maioria das vezes isso ocorreu entre as entrevistadas foi a adolescência. Nesse período vieram às descobertas sexuais acompanhadas pelos gostos e preferências de cada uma, aqui nós podemos observar mais alguns enunciados heteroterroristas como conta o irmão de uma travesti que relata quando aconteceu o período de descobertas sexuais para ele e para a irmã. Irmão de Sheila: — Eu só fui percebendo mais assim, acho que com doze anos, treze. Porque tinha muita gente assim na rua e tudo, tinha muito menino aí ficavam lá naquelas “putaria”, né, que sempre rola, mas como eu era o mais jovem, era o mais jovem da turma, tinha quatro anos a menos do que eles, então rolava uns movimentos, né? Eu não sabia o que era, mas certamente... Mas eu só comecei a entender mais acho que depois dos dez anos, assim né? Dez, onze anos, começava a entender, até no verão, né, assim, a gente ia lá pra casa da tia da gente na praia e tudo assim, ali sim rolava assim, né? Colocava a prova lá... Pesquisador: — Mas você fala isso com você ou com ela? Irmão de Sheila: — Comigo e com “ele”, aí ao mesmo tempo na casa da minha tia tinha um preconceito muito forte assim, a gente num podia pegar nem numa xuxinha de cabelo, senão ia virar gay, não podia lavar louça, homem não era pra fazer isso, em casa que tem mulher, homem não trabalha!

Eve K. Sedgwick, na sua obra, A Epistemologia do Armário (2007), faz uma reflexão sobre a saída do armário na vida de gays e lésbicas e coloca esse ato como pertencente dos domínios pessoal e político de um sujeito. Bruna: — Primeiro eu passei por aquela fase, fui gay, né? Fui um menino frustrado no armário, me pegaram, trancaram, me deixaram lá dentro, deu cupim aí eu tive que sair, mas demorou um pouquinho pra sair porque minha família era muito preconceituosa, muito religiosa...

No caso de outra travesti ouvida sobre o mesmo momento da adolescência podemos ver uma passagem que mostra a reação da família ao ato de sair do armário gay. Pesquisador: — Qual foi a reação dela (a mãe)?

1090

Luana: — Ficou em pânico, em choque! Pesquisador: — E aí ela disse o quê? Luana: — Que não aceitava que queria que eu fosse outra coisa, vou ser bem realista pra você, que preferia que eu fosse bandido do que eu fosse travesti ou gay pra ela.

Assim como aponta Sedgwick, o armário funciona como um dispositivo de segredo e em algumas vezes permanece velado por muito, o ato de se assumir gay é por si só um ato político, mas quando terceiros elevam a condição de segredo para verdade sem passar pela atitude de autonomia do sujeito de se assumir homossexual, essa passagem torna-se mais encharcada ainda de constrangimentos. Júlia aos quinze anos era evangélica, junto com a mãe e os seus irmãos, eles moravam numa casa cedida pela Igreja ao lado do templo, ela cantava no coral e relata esse caso como sendo o mais violento de todos já vividos por ela, mais violentos do que ter os dois braços quebrados e quase ser jogada num poço pelo pai quando criança. Júlia: — A minha violência maior que eu sofri até hoje, já aos quinze anos de idade... Eu sempre fui evangélica, minha família sempre foi evangélica e eu dentro de uma igreja com quinze anos de idade, o pastor recebe uma carta anônima de um rapaz que dizia apaixonado por mim mandando uma carta pra mim e eu não tive acesso a essa carta, eles se sentiram no direito de me expor, né? Meu pai não era evangélico, minha mãe era evangélica, mas meu pai era muito rígido como eu falei pra você, só que num culto de domingo, eu tava morando em João Pessoa nessa época e o pastor passou e me convidou pra ir até o púlpito, eu pensei que era pra cantar porque eu cantava no coral na época e sempre me destaquei, né, na igreja e ele pediu que os irmãos ficassem de costas, voltassem pra frente da igreja e ficassem de costas pra o púlpito onde eu estava e até eu achei estranho, estranhei, né? Minha mãe sentada assim foi quando o pastor mandou eu me retirar da igreja, fez um corredor, mandou eu me retirar da igreja que eu não era digno de estar ali por ser homossexual, me expôs, né? Minha vida que até então nem eu sabia o que era a homossexualidade. Minha mãe caiu no choro, tentou me agarrar, me proteger, mas foi impedida pelos irmãos e eu tive que sair e dali eu fui pra rua, sem roupa, só com a roupa do corpo e até hoje nunca voltei pra casa.

Júlia está hoje com 47 anos. Sedgwick assinala que mesmo quando o sujeito se assume homossexual, faz isso devido a uma série de constrangimentos, ou seja, 1091

a espontaneidade aqui é sinônimo de ser forçado a confessar a verdade

em

seus

círculos

sociais.

E

mesmo

quando

essa

espontaneidade mascarada de constrangimento não existe, como é no caso de Júlia, as marcas de gênero tomam formas de feridas de gênero e deixam cicatrizes traumáticas na subjetividade do indivíduo. Vejamos um exemplo disso na narrativa que a mãe de Sheila faz sobre o momento que a filha se assumiu gay: Mãe de Sheila: — Nessa vida eu nunca tive muito problema assim de tá com preconceito porque era, mas num era como é agora, assumida, né? Porque quando começa tem aquela coisa encubada que é pra família não saber, tem medo da discriminação da família, tem medo do pai, tem medo da mãe, mas eu como sempre fui uma mãe muito aberta porque eu gosto de conversar, quando ele chegou aos 16 anos que ele veio falar pra mim, foi muito nervoso, muito estresse da parte dele, ele achando que ia ter algum problema, aí uma demora pra falar, aí eu disse, ele disse: “mãinha eu queria falar uma coisa pra você”. Eu disse: “o que foi?” aí, “mas eu num sei como é que eu vou dizer”, “você num sabe como é que você vai dizer? Apois então quem vai lhe dizer sou eu, que você é homossexual? Meu filho, desde quando você nasceu que eu sabia, porque se for isso, seu nervoso todinho pra dizer a mim, não precisa”.

Já a transexual Raquel, conta o que aconteceu no seu caso: Raquel: — Em casa meu relacionamento foi um pouco conturbado, quer dizer, a família já espera você ser gay, já sabe que vai ser um choque, imagina tu querer se vestir de mulher? Então quando realmente eu virei transexual, eu passei um bom tempo sem falar com minha mãe, meu irmão mais velho era evangélico, não quis conversa comigo...

A TRANSFORMAÇÃO Entre as travestis e transexuais, a noção do estar gay se impõe sobre a do ser gay. No texto de Sérgio Carrara e Júlio Assis Simões (2007), Sexualidade, cultura e política: a trajetória da identidade homossexual masculina na antropologia brasileira, os autores fazem uma reflexão sobre a instabilidade/fluidez das identidades sexuais. Ser

1092

gay para uma travesti é uma passagem, uma ponte por onde se pode chegar a outro lugar. Mãe de Sheila: — Eu sempre avisava assim, já era o gay, mas num precisava ser tanto, porque eu já sabia o que ela podia sofrer, porque não arranja emprego, num entra num colégio sem gracinha e quando é o gay meio encubado ou então aquele gay que é, mas não se monta não se traveste nem nada, dá pra você entrar em qualquer lugar, mas quando começa a se transformar como ela quis, eu digo muito a ela, às vezes a gente conversa, eu digo: “você escolheu, então o que acontecer de preconceito, disso ou daquilo, você vai ter que se assumir, porque a escolha foi sua, num podia tá como era antigamente? Mas não, você queria se transformar...”.

É somente nesse trecho da entrevista que nós percebemos certo momento de tensão entre mãe e filha. A mãe deixa claro em suas palavras que preferiria que a filha não tivesse se transformado para não sofrer todos esses constrangimentos citados acima. Na visão da mãe seria muito mais fácil ser somente gay do que uma travesti, porém, não houve rejeição por parte da mãe quando a filha começou a mudar seu corpo, essas palavras serviram apenas de alertas e de conselhos. A decisão de ser travesti é como uma segunda saída do armário, mas também pode ser metaforizada como uma passagem por uma ponte, como se o adolescente gay estivesse numa ilha coberta de espinhos e o único caminho para se livrar desse constrangimento é atravessar uma ponte que têm como destino outra ilha, nessa travessia o adolescente gay vai mudando, se transformando e ao chegar ao outro lado da ponte, encontra outra ilha também coberta de espinhos. Os espinhos na primeira ilha têm a ver com a frustração do indivíduo, da tomada de consciência de que não é gay, que somente está gay, mas pode ser outra coisa muito mais satisfatória para si mesmo. Já, os espinhos da segunda ilha, revelam que nem tudo são flores, que o sujeito pode se libertar dos constrangimentos individuais, mas que há também constrangimentos sociais e são esses os espinhos citados pela mãe de Sheila e que marcam a vida de quem decide se transformar e atravessar a ponte. 1093

Sheila: — Porque assim, no momento que você começa a tomar ou injetar alguma coisa que transforme seu corpo do masculino para o feminino, você já é considerada uma travesti, você tá transformando seu corpo.

Para se transformar, as travestis precisam de orientação, pois fazem uso de terapia hormonal, de injeção de silicone, saltos altos, blusinhas e minissaias. A maioria das entrevistadas relataram a existência da figura da mãe travesti, que em geral é sempre mais velha, mais experiente e que a orienta nessa nova etapa da vida. Luana: — A gente morava na mesma rua, aí ela tinha um salão, eu sempre tava no salão dela, aí eu vi ela montada, eu queria... Eu disse:“eu quero ser igual a você, você vai ser minha mãe”, até hoje eu chamo ela de mamãe.

É nessa etapa da narrativa de vida que o gênero como algo instável, flexível fica mais evidente, é quando o sujeito percebe que a genitália que tem no corpo não corresponde com a sua identidade de gênero (BENTO, 2006) que se entende que o gênero não pode ser definido no nascimento e é preciso outros procedimentos para se satisfazer e localizar no lugar adequado a sua imagem com a sua identidade. Já o caso da transexual Patrícia é ímpar e é na sua narrativa que as negociações e produções da identidade no ambiente familiar são mais evidentes, ela conta que a aceitação familiar variava de acordo com as conquistas que ela conseguia ao longo da vida. No ano em que ela passou no vestibular, a mãe dela preparou uma festa de aniversário e isso também se repetiu quando ela passou na seleção do mestrado, a mãe novamente preparou uma festa de aniversário onde ela foi bastante elogiada com orgulho pela família, mas nos meses antes da aprovação no vestibular e no mestrado ou nos meses onde ela estava sem emprego, a família não fazia esforços em apoia-la.

CONVÍVIO FAMILIAR ATUAL 1094

De todas as entrevistadas, apenas Sheila sempre foi bem acolhida no seu núcleo familiar. A família de Bruna, que é originalmente do interior do Rio Grande do Norte, cortou contato com ela durante três meses logo após começar a sua transformação, mas devido a um boato de que Bruna tinha falecido fazendo programa em Natal, os pais voltaram

atrás

e

a

acolheram

como

filha

e

hoje

têm

um

relacionamento familiar saudável, assim como Raquel que num primeiro momento foi rejeitada, mas hoje mora com a avó e convive bem com os pais e irmãos. Na etnografia de Duque (2009), podemos observar a mesma coisa, ou seja, essa mudança na aceitação da família da travesti ou transexual que vem aumentando com o passar das gerações, pois no estudo de Duque nem todas as travestis tiveram os laços rompidos com seus familiares, como acontecia na geração anterior, como por exemplo, as travestis abordadas por Pelúcio (2007) que descreve que quando as travestis se assumiam a convivência familiar no espaço da casa era insuportável e acabava sendo dissolvida. Entretanto o caso de Sheila e Bruna não se aplica a todas as travestis entrevistadas. Luana saiu da casa da mãe aos quinze anos quando decidiu tornar-se travesti, mas a mãe nunca chegou a vê-la como tal, as duas moram em Natal, mas em bairros diferentes e se falam apenas quando é necessário e somente por telefone, hoje com 28 anos de idade, ela mantêm contato frequente com a avó. Já, Júlia depois que foi impedida de voltar para casa aos quinze anos de idade por ser taxada de homossexual, no episódio na igreja, ingressou na marinha e nunca mais viu sua mãe, a mesma morreu quando ela tinha 21 anos de idade, quando estava morando em outra cidade, mesmo assim Júlia viajou para o enterro, mas quando chegou ao local, o caixão da mãe já tinha sido fechado e enterrado. Aos 27 anos, ela sofreu um acidente e se aposentou pela marinha, só depois disso que ela resolveu transformar o seu corpo e ser travesti. Como travesti, 1095

encontrou o pai uma vez, num episódio tenso, mas sem traumas, atualmente se relaciona bem com seus irmãos e suas sobrinhas. Já Patrícia mora sozinha e cortou os laços com a mãe devido a um caso de evitação, fenômeno descrito por Sara Schulman no livro Ties that blind: familial homofobia and its consequences que teve a introdução traduzida e publicada no numero cinco da Revista Bagoas (jan./jun. 2010). A evitação, segundo Schulman diz respeito a uma estratégia de invisibilização do outro de um modo não explícito. Como por exemplo, o que conta Patrícia que afirma que cortou as relações com a mãe devido não ter sido convidada a um casamento de um sobrinho muito próximo dela e o fato da mãe e do resto da família terem se comportado como se não tivesse acontecido nada, isso a revoltou profundamente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: Esse trabalho teve a finalidade de analisar as relações de poder que se dão no espaço da casa, no convívio familiar. Vimos trechos muito recortados da história de vida de quatro travestis e duas transexuais onde foram apresentados exemplos de produção e negociação da identidade, como também casos de homofobia familiar. A pergunta inicial: seria a travesti e/ou a transexual um inadaptado da sociedade contemporânea ocidental? Pelo que enxergamos aqui, podemos dizer que sim, que a sociedade cria e anula a travesti e/ou a transexual como se fosse uma estranha (BAUMAN, 1998). É grave a maneira de como as pessoas trans são anuladas em certos momentos no convívio familiar, em etnografias como a de Don Kulick (2008), percebemos que algumas travestis têm nas suas lembranças, registros de uma expulsão de casa pela família. Isso nos faz pensar que a trans só é uma inadaptada porque existem valores morais e sociais que a estigmatizam e a excluem. A 1096

máxima judaico-cristã do “crescei-vos e multiplicai-vos” alimenta muitas impressões negativas sobre as pessoas trans. A travesti e/ ou transexual tem no seu corpo, as marcas da coragem de ser aquilo que quer ser, mas a sociedade, a família, só vê o outro lado da moeda da passagem bíblica acima citada, que diz que se o homem e a mulher foram feitos para reproduzir, então o prazer é algo imoral e que deve ser negado. Seguindo os passos dessa visão, existe algo mais imoral do que o corpo de uma travesti ou transexual? O problema está no binarismo de gênero que se localiza na moral que por sua vez se encontra na subjetividade dos indivíduos e que passa pela família e pela sociedade. A luta do movimento LGBT’s e da própria travesti e transexual que por si só já é um instrumento político de ruptura com esse sistema de exclusão, não pode ser entendido somente pelo fato de tentar tornar o inadaptado em adaptado, mas é a de convencer a sociedade que as diferenças podem ser respeitadas e que podem conviver num mesmo espaço. A mudança vem do íntimo e não existe nenhuma instituição mais íntima ao indivíduo ocidental do que a família. Na família podemos perceber todas as relações de poder (FOUCAULT, 2007) que cercam e formam o individuo na sua socialização primária (BERGER, 1987). Com isso esperamos ter nesse trabalho não só uma contribuição de conhecimento

de

pesquisa

acadêmica,

mas

também

uma

contribuição política em prol de uma sociedade mais sensível às diferenças.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BAUMAN, Zygmunt. “O mal estar da pós-modernidade”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. BERGER, PETER. Perspectivas Humanística. Petrópolis: Vozes, 1997.

1097

Sociológicas:

Uma

Visão

_______________ & LUCKMAN, Thomas. A Construção Social da Realidade. Tratado de Sociologia do Conhecimento. Petrópolis, Ed. Vozes, 1987. BENTO, Berenice. “A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual”. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. CARRARA, Sérgio & SIMÕES, Júlio Assis. Sexualidade, cultura e política: a trajetória da identidade homossexual masculina na antropologia brasileira. Cadernos Pagu (28), Janeiro-Junho de 2007:65-99. CLASTRES, Pierre. A Sociedade Contra o Estado. V. O arco e o cesto. Livraria Francisco Alves Editora S.A. Rio de Janeiro, 2008. DAMÁSIO, Anne Christhine. Botando corpo (re)fazendo gêneros: uma pesquisa etnográfica entre travestis e drag queens. Tese de doutorado, Natal, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, 2009. DUQUE, TIAGO. Montagens e desmontagens: vergonha, estigma e desejo na construção das travestilidades na adolescência. Tese de Doutorado. São Carlos, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, 2009. ELIAS, Norbert. “A sociedade dos indivíduos”. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. FOUCAULT, Michel. “História da Sexualidade, vol. 1 – A vontade de saber”. 18ª edição, Rio de Janeiro, Graal, 2007. KULICK, Don. Travesti- prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2008. MEAD, Margareth. Sexo e Temperamento. Editora Perspectiva S. A. São Paulo, 2000. MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização. Sociologias, Porto Alegre, ano 11, n° 21, jan./jun. 2009, p, 150-182. PELÚCO, Larissa. Nos nervos, na carne, na pelo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de Aids. Tese de doutorado. São Carlos, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, 2007. SCHULMAN, Sarah. Ties that blind: familial homofobia and its consequences. Tradução: Felipe Breno Martins Fernandes. Introdução publicada na Revista Bagoas (v. 4, n. 5, jan./jun. 2010).

1098

SEDGWICK, Eve Kosofsky. A Epistemologia do Armário. In: cadernos pagu. Tradução de Plinio Dentzien. Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, 2007.

1099

O AMBIENTE VIRTUAL NA CONSTRUÇÃO E COMPARTILHAMENTO DA MASCULINIDADE TRANSEXUAL Luarna Relva Felix Cortez 317 Mónica Franch (Orientadora)318 RESUMO: Partindo das trajetórias vivenciadas pelos sujeitos transexuais que se identificam com o gênero masculino, este trabalho busca captar as formatações, adaptações e estratégias dos processos de construção de suas masculinidades. A utilização do método de análise de situações, discurso e aplicação de questionário simples e estruturado se sobressaiu por que é a forma que o ambiente virtual nos permite utilizar, graças ao mecanismo de supressão de distâncias físicas e geográficas possibilitada pelo uso de meios eletrônicos. Pressupondo que as masculinidades transexuais são compartilhadas através principalmente do contato com outros comuns e este contato é feito, sobretudo, pela internet, buscamos através do grupo FTM Brasil perceber como se concretizam estes contatos e de que maneira os homens trans utilizam esta ferramenta na sua construção enquanto homem; ora negando valores tidos como parte do padrão hegemônico de masculinidade, ora legitimandoos e reafirmando-os através dos discursos empreendidos no espaço virtual que, de forma geral, são reflexos subjetivos de práticas sociais. Palavras-chave: Transexualidade. Masculinidade. virtual.

INTRODUÇÃO As normas que regem o funcionamento do mundo social são, em geral, excludentes e insuficientes no sentido de representação da multiplicidade do real. É o perfil másculo impossível de alcançar, são os padrões estéticos impostos às mulheres, as expectativas sob a juventude etc. Entre tais normas, destacaremos as normas de gênero e sexualidade para analisar a construção das masculinidades entre homens trans¹ em contexto virtual. Neste quadro, a transexualidade surge como dupla potencialidade de subversão das normas de gênero e sexualidade. 317

Estudante de Graduação em Ciências Sociais (UFPB). Integrante do Grupo de Pesquisa em Saúde, Sociedade e Cultura. Bolsista de iniciação científica (CNPq/UFPB). [email protected]. 318 Graduado em Geografia (Universidade de Barcelona/Espanha) História (Universidade de Barcelona/Espanha), Mestra em Antropologia (UFPE) e Doutora em Antropologia (UFRJ). Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (UFRN), Programa de Pós-Graduação em Sociologia (UFPB).

1100

A duplicidade na capacidade de subversão das normas advém da quebra dos padrões esperados socialmente, tanto na “coerência” entre

corpo/mente/ações

quanto

no

possível

rompimento

da

heteronormatização. A quebra das formas idealizadas de gênero que Bento (2011) denuncia como geradoras de hierarquia e exclusão torna tudo que não corresponde a ela passível de marginalização. As normas se convertem nas mais diversas formas de violência e opressão; sobretudo quando a lógica “vagina-mulher-feminilidade versus pênis-homem-masculinidade” são quebrados de alguma maneira (Bento, 2011, p.553). Essa lógica pressupõe que ambos são complementares e interdependentes, conferindo a eles a naturalização que legitima os mais diversos tipos de opressão, violência e eliminação de dualismos ou possíveis dúvidas. São essas mesmas normas que definiram a disforia de gênero como Transtorno de Identidade de Gênero – TIG – patologizando a liberdade humana de transitar entre o masculino, o feminino ou qualquer outra formatação de identidade de gênero; ou como Butler prefere tratar, as performatividades de gênero (apud Piscitelli, 1998). Anne Fausto-Sterling (2001, p.48), diz que há um movimento agindo em função de expandir o que ela chama de “guarda-chuva da normalidade”, ou seja, tornando as identidades sexuais e de gênero “normais”, cabíveis; embora a dinamicidade da vida social e também das subjetividades existentes aponte cada vez mais para a necessidade de extinguir esse tipo de “caixinha”, deixando os seres humanos livres para viver com seus corpos da forma que lhes convém. O padrão hegemônico de homem-másculo-viril-ativo é uma miragem até mesmo para os homens nascidos com pênis, bem como aos homens trans. Entretanto, alguns valores desse padrão perpassam a construção das identidades subjetivas dos homens trans, mostrando mais adesão em alguns casos, provavelmente por motivos subjetivos, e maior negação em tantos outros.

1101

MAPEANDO O ESPAÇO O grupo FTM Brasil, campo de pesquisa escolhido, tem hoje 184 membros². É um espaço diverso, múltiplo e quase sempre coeso, embora cada membro tenha sua particularidade em relação a sua identidade de gênero transitória. Os membros têm idades entre 15 e 62 anos e estão localizados fisicamente nas mais diversas regiões do Brasil. O espaço é utilizado como fonte de informações sobre o “mundo trans”³, canal de comunicação entre a Associação Nacional de Homens Trans (ABHT) e também para compartilhar vivências no intuito de reconhecer as próprias situações na experiência de outros homens trans, pois, em geral, as publicações são finalizadas com questões que remetam à resposta dos demais membros. A minha presença no grupo se deu primeiramente através de uma fonte que me permitia ser invisível; estava lá o tempo todo, observando as colocações, discussões etc., mas ninguém me percebia, pois estava camuflada em um “perfil autorizado” pelos acordos estabelecidos entre os membros. Só tem autorização de estar ali quem é FTM ou faz parte de alguma equipe médica que lida com a questão da transexualidade (cirurgiões, psicólogos etc.). Após alguns dias na marginalidade da marginalidade – pois estava secretamente escondida dentro de um grupo que já é secreto – me dei conta de que existia a possibilidade de me inserir no grupo por meio da permissão que há com relação à presença de pesquisadores. Percebi a presença de uma pedagoga que estava ali por que estuda questões de gênero e, sentindo a necessidade de ter informações mais detalhadas e específicas sobre o que os meninos entendem sobre suas masculinidades, resolvi solicitar minha presença no grupo. A partir disso, fui reconhecida como “a menina que vai escrever um artigo sobre

1102

trans”, tal como fui apresentada por um dos administradores aos demais.

UM AMBIENTE BIFURCADO Dentro de um espaço de comum convívio, é absolutamente habitual que haja conflitos – até positivo que haja –, entretanto, os conflitos existentes no grupo FTM Brasil tem uma peculiaridade. Os membros se dividem em grandes grupos que se opõem, em uma estratégia que, segundo o entrevistado Paulo, é de “autoafirmação”, isto é, os homens trans são facilmente caracterizados por seus extremismos. Como foi percebido por Paulo, a maioria dos FTMs tem tendência a ser machistas ao extremo ou pró-feministas ao extremo. Reconhece-se entre os que defendem ideais feministas um maior contato com as teorias queer, os estudos feministas, ou seja, maior “nível de instrução”, enquanto os machistas se recusam publicamente a sequer conhecer tais estudos, pois acreditam que teoria nenhuma pode ser comparada às vivências próprias. Ficou perceptível também que as discussões postas no grupo acerca dos tratamentos biomédicos e estratégias de intervenção no corpo, tais como musculação ou consumo de suplementos alimentares para aumento de massa, etc., não contemplam a maioria dos homens trans

pró-feministas.

É

provável

que

o

nível

de

discussão

e

empoderamento dessa parcela dos homens trans os tranquilizem quanto à pressão social de corresponder ao ideal masculino-forte-viril. Enquanto os demais estão preocupados demasiadamente em mostrarse homem “por completo”, isto é, sentir-se homem, exibir-se homem e ser entendido como tal, e, para tanto, reforçam valores que fazem parte do padrão de masculinidade hegemônica.

1103

Foi possível perceber a existência de alguns tipos de relação entre o próprio corpo da maneira como ele está – isto é, anterior às intervenções cirúrgicas – e com o resultado das alterações feitas nele; enquanto alguns homens trans sentem orgulho de seus corpos diferenciados, exibem as marcas e cicatrizes com certo orgulho, outros tantos pretendem camuflar-se, esquecer o passado transitório e viver padrões heteronormativos. Estes últimos exibem no grupo apenas os resultados positivos, tais como os pelos nascendo, o crescimento do clitóris, que a partir disso já é visto como pênis, embora de tamanho pequeno, etc. É comum a gravação de vídeos de caráter comparativo, ou seja, a cada aplicação de testosterona, grava-se um vídeo para observar as mudanças, consideradas como avanços entre um e outro. Esta masculinidade, assim como tantas outras, depende da aprovação dos demais que compartilham o mesmo conjunto de valores e práticas, que envolve, sobretudo, recusar qualquer caractere feminino como forma de negar toda assimilação que poderia ser feita entre o indivíduo e o gênero feminino; e, como afirma Giffin (2004, p.51), “nesta dinâmica, o medo leva à vergonha, ao silêncio, e à violenta afirmação da masculinidade”. Então,

a

masculinidade

trans

não

é

necessariamente

a

masculinidade hegemônica, embora reproduza alguns valores dela; é preferível que seja levado em consideração a masculinidade própria dos homens transexuais, pois ela é essencialmente subversiva em relação aos sistemas dualísticos masculino/feminino; garantindo, dessa forma, as performances expressivas dos homens trans. O problema da absorção de valores que estão presentes na masculinidade padrão é que, como aponta Bento (2011), os valores hegemônicos em geral dialogam igualitariamente apenas com quem se adequa a eles, o que subentende uma parcela muito pequena da humanidade.

1104

“É NORMAL?!” Imbuídos dos discursos médicos, os homens trans utilizam o grupo para sanar dúvidas e resolver questões referentes ao processo de transição do corpo. Hormônios e suas consequências4, suplementos, cirurgias, etc. Exercem a autonomia sobre seus corpos através da automedicação, isto é, o uso de hormônios sem a permissão médica. Embora isso aconteça pela quase inexistência de médicos dispostos a tratar os pacientes disfóricos, acontece de um homem trans iniciar seu tratamento hormonal sozinho e depois procurar um médico a fim de realizar

um

acompanhamento,

geralmente

pelo

receio

de

consequências na saúde. Este receio é quase imposto pelos meios de dominação numa tentativa de extinguir o uso dos hormônios sintéticos, pois estudos realizados com 293 pacientes FTMs que utilizam hormônios sintéticos não detectaram aumento nos níveis de mortalidade5. Percebe-se certa comodidade em pautar-se no discurso médico, já que a hormonização e os processos cirúrgicos garantiriam para 11 entre os 18 entrevistados a realização enquanto homens que são. Os demais entrevistados não fazem menção direta às intervenções médicas/cirúrgicas, mas, em geral, falam que a satisfação com o próprio corpo virá quando “for reconhecido como sou”, “quando os outros me perceberem como homem”. Pode-se supor que é uma masculinidade

estética

baseada

no

discurso

médico,

pois

a

hormonoterapia e as cirurgias, em geral, são (serão) suficientes para realiza-los enquanto homens que são. “Assim, o projeto terapêutico de modificação corporal de sexo deve levar em conta a diversidade e a singularidade das narrativas trans, nem todas as pessoas desejam e necessitam os mesmo procedimentos de cuidado” (Arán & Murta, 2009, p.24), embora a tendência dos discursos médicos possa levar a uma pretensa padronização dos procedimentos. E essa padronização reflete na maneira como os homens trans se veem e cobram os sinais uns dos 1105

outros, buscando um padrão de homens trans que deve se encaixar em critérios como “ter postura”, “querer mudar o nome”, “fazer as cirurgias”, “tomar os hormônios”6. Ao sentir os primeiros sintomas de mudanças em seus corpos, os homens trans posicionam seus questionamentos no grupo de forma a encontrar nos demais algo semelhante. Acontece quase diariamente; “estou com a libido muito alta é normal?”, “sinto dores de cabeça na hora do orgasmo, é normal?”, “meu cabelo começou a cair, é normal?”, “hoje tomei a minha primeira dose. Vi coisinhas brilhando e fiquei meio enjoado, é normal?”. As perguntas se multiplicam e às vezes se repetem, mas sempre tem alguém para responder se “é normal”. O processo de transição traz uma série de questionamentos que podem ser sanados pela ida ao médico, mas o são principalmente pelo reconhecimento de outrem que já passou pelo mesmo momento e que tem sempre a disposição em auxiliar aos demais; como mestres e aprendizes, onde todos desenvolvem ambos os papéis. Até quando acontece alguma coisa de errado, as primeiras informações são tiradas daquele espaço; se for algo considerado grave pelos mais experientes, há a indicação de procurar um médico. Foi o caso do Luiz, que aplicou o hormônio e sentiu febre, fortes dores no local e até ficou sem conseguir

andar

por

ter

feito

aplicação

na

perna

de

forma

inadequada. Ao reclamar sua situação no grupo, houve a mobilização de vários membros para que ele procurasse ajuda médica caso os sintomas

não

desaparecessem

em

dois

dias;

o

caso

é

que

desapareceram e ele já teve outro questionamento na dose de hormônio seguinte; “apliquei e voltou um pouco de líquido na hora de tirar a seringa, é normal? Devo aplicar a próxima dose mais cedo? Antes dos 21 dias?”, a atenção dada não foi tanto quanto quando ele esteve mal, mas alguns o aconselharam a ter a paciência necessária, que é convertida em 21 dias7. A supervalorização das características físicas masculinas em detrimento de qualquer traço feminino é latente. E com a ajuda dos 1106

hormônios

essas

características

começam

a

aparecer

e,

consequentemente, a serem expostas incansavelmente no grupo. O que mais se pode ver nas fotos publicadas no grupo é a exaltação de corpos malhados8, a exposição resultados que vão sendo obtidos e até mesmo a venda de serviços que alteram as fotos de quem se propor, criando uma barba fictícia por meio de programas de computação gráfica.

QUESTIONÁRIO O questionário foi construído como forma de captar mais informações específicas sobre o que os homens trans entendem por masculinidade, as relações com seus corpos, para ter um panorama geral da idade dos membros e em média com qual idade iniciou-se o processo de transição corporal. Essa questão do início da transição foi difícil de lidar, pois as diversas narrativas deixaram claro que não há consenso quando se fala do que se trata o início da transição; as opções são inúmeras, pois cada homem trans pode ter formado subjetivamente o que significa para ele este início. Alguns podem considerar

a

partir

do momento

que

se

entendem

enquanto

transexuais; outros podem levar em conta somente a partir da primeira dose de hormônio; outros podem contar o início desde o momento que procurou informações sobre o assunto, cortou o cabelo em modelo tido como masculino, começou a usar roupas de modelo masculino, etc. As possibilidades podem ser equivalentes ao número de homens trans existentes tanto no grupo, como de maneira global, assim como podem existir também homens trans que simplesmente não se sentem transitórios, e sim pertencentes desde sempre ao gênero masculino. Mas estamos tratando aqui de transições de corpos e não encontrei nenhum relato que fosse contrário a esse processo.

1107

As perguntas foram construídas baseadas nas intenções deste trabalho;

captar

tanto

quanto

fosse

possível

dados

sobre

masculinidades trans, suas construções e a relação disso com o ambiente virtual. O questionário em si foi formado de sete perguntas que tinham espaço livre para as respostas, possibilitando que o colaborador expusesse suas opiniões livremente. A primeira delas serviu basicamente para situar os indivíduos; perguntei suas idades, com quantos anos se “descobriram” trans9, se já havia iniciado sua transição, com qual idade e quantos homens trans conhecem pessoalmente. Obtive os dados necessários para perceber que participaram do questionário homens trans com idades entre 15 e 45 anos e 14 entre os 18 entrevistados já iniciaram sua transição – seja qual for a definição que eles tenham sobre o início. Há 6 homens trans que não conhecem nenhum outro homem trans pessoalmente, o que reforça a importância do grupo para manutenção dessas conexões importantíssimas. 8 homens trans conhecem menos de 5 outros homens trans e apenas 2 conhecem mais de 10, provavelmente pelo encontro possibilitado na fundação da Associação Brasileira de Homens Trans, que reuniu mais de 20 homens trans em São Paulo. Questionei os colaboradores sobre o que eles entendiam por masculinidade e o que é necessário para ser homem; obtive as respostas mais variadas, desde Alisson, 23 anos, que reconhece a masculinidade como construção social pela qual ele se identifica, porém deixando de reproduzir os valores machistas, até Roberto, 24 anos, que reconhece os valores de um homem como “gostar de ser chamado no masculino, ter orgulho de ser homem, ser cavalheiro, trabalhar e dividir as funções com a parceira (...) tomar a frente como um chefe de família, proteger a parceira e etc...” (sic). As respostas demonstram

a

existência

de

diversas

narrativas

que,

ora

são

complementares, ora se distanciam. Paulo detectou a masculinidade como “ser homem é simplesmente sê-lo”, trazendo o padrão normativo

1108

para a naturalização. Entre todos, 4 homens trans nunca haviam pensado no assunto. Em seguida questionei se há alguma diferença em utilizar os termos “homens trans” ou “transhomens” e apenas 1 explicou o que achava dessa diferenciação; 2 simplesmente renegaram as duas formas afirmando que (sic) “sou homem e ponto final” e os demais simplesmente disseram que as duas formas refletem uma mesma realidade, portanto, não veem diferenças. A próxima pergunta fez referência à importância do ambiente virtual e do grupo em si na transexperiências de cada um; 4 sujeitos afirmaram que o grupo é só uma ferramenta, enquanto 14 afirmaram que são importantes por diferentes motivos que vão desde fonte de informações até o fato de os grupos ter ajudado nas suas descobertas, ao perceber que “não estou sozinho”, como relatou Vinícius. Nessas respostas foi possível perceber uma carga emocional muito forte, pois a sensação de estar sozinho geralmente é tida como sofrimento e solidão, sentimentos que deixam de existir a partir do encontro com outros homens trans que passam por situações bastante parecidas. A pergunta seguinte foi sobre as atitudes tomadas por eles a partir do momento em que se perceberam trans para que o seu círculo de convívio social se habituasse à nova realidade. Os dois pontos que gostaria de destacar aqui é a questão da “postura” e uma visível “fuga”.

Algumas

respostas

colocaram

a

“postura”

como

uma

necessidade para que as outras pessoas o enxerguem como você é. Essa postura, muito provavelmente, é a assunção de um jeito mais incisivo de ser e lidar com demais ao redor, caracterizando uma postura mais máscula e claramente diferente da forma como as pessoas o viam anteriormente. Entre os colaboradores, 4 relataram que mudaram de cidade ou saíram da casa dos pais, como forma de tornar mais fácil esse momento de transição, acreditando que se distanciando da realidade pré-existente, a necessidade de explicação diminuiria e consequentemente o sofrimento e constrangimento também. 1109

Questionados sobre um possível padrão na masculinidade trans, 13

negam

a

comportamento

existência trans.

2

de

um

modelo

reconhecem

a

na

masculinidade

presença

de

e

uma

“masculinidade forçada”, principalmente pelos medos e receios que existem em não ser reconhecidos como homens, reforçando, assim, ideais machistas e homofóbicos. Por último, lhes pedi que completasse a sentença: “estarei satisfeito com meu corpo quando...”; apenas 1 homens trans relatou já ser satisfeito com o seu corpo, pois já passou pelas cirurgias necessárias ao reconhecimento social enquanto homem e pelos processos jurídicos para retificação do registro, tanto na questão do nome quanto do gênero. Bruno respondeu que estará satisfeito quando “poder olhar no espelho e dizer... ‘SOU EU’”, demonstrando que a importância em adequar o corpo não é puramente social, mas diz respeito à questão de bem-estar físico e mental. Natan fez questão de destacar que as mudanças totais como “cirurgias feitas, [quando] estiver me hormonizando há bastante tempo... com a voz mudada, o rosto mudado.” Representa para ele “vida nova”. Renato, disse, ainda, que estará satisfeito quando “olharem para mim sem a menor dúvida de a qual gênero eu pertenço”, mostrando preocupação com a eliminação de qualquer dúvida que possa existir.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Por todas essas questões pertinentes ao universo FTM, torna-se importante destacar a existência das peculiaridades decorrentes da absorção de valores pertencentes à masculinidade padrão e da experiência anterior ao processo de construção do ser transexual. As suas masculinidades são postas à prova da mesma maneira que são também postas as masculinidades dos homens cisgêneros10, mas com a particularidade de, enquanto corpos em alteração, serem traídos pelos

1110

mesmos e reconhecidos no meio social como pertencentes ao gênero com o qual não se identificam, gerando mal-estar e constrangimento. Esta pesquisa passa longe de captar as realidades vivenciadas por todos os FTM membros do grupo, tampouco este é o nosso objetivo, mas buscamos compreender a dimensão virtual das transexperiências masculinas, que coloca perto quem está geograficamente longe e ajuda na diminuição do sofrimento individual, a partir do momento em que reúne em um espaço único homens transexuais das mais diversas trajetórias e vivências.

NOTAS 1. Os termos transhomens ou homens trans não significam, para os membros do grupo que responderam ao questionário proposto, diferenças práticas. Portanto, poderia utilizar ao longo do trabalho os dois termos; entretanto, escolhi usar homens trans por razão de adequação ao termo usado na fundação da Associação Brasileira de Homens Trans (ABHT) enquanto primeira organização de homens transexuais a nível nacional. 2. Último acesso em 23 de setembro de 2012. A sigla FTM representa, em inglês, a transição Female to Male, podendo ser traduzido como feminino para masculino. Geralmente é a forma mais comum que eles usam para se identificar, é tanto que a sigla faz parte do grupo que é o mais popular entre homens trans e também do portal que tem informações bastante significativas em relação à transexualidade de maneira geral. 3. “mundo trans” foi uma expressão usada no questionário por Vitor ao responder sobre a importância do ambiente virtual para a sua vivência trans: “sempre é uma excelente ferramenta (e até mesmo uma necessidade para se manter informado quanto ao mundo trans” (sic). 4. Tais como o crescimento de pelos, o engrossar da voz, enfim, o aparecimento das tão esperadas características secundárias masculinas. 5. Informações retiradas do Portal FTM Brasil (ftmbrasil.org) 6. Essas características foram citadas por Roberto, 24 anos, que gentilmente respondeu ao questionário e selecionou esses critérios ao responder se existe um padrão no comportamento/masculinidade entre os homens trans. 7. 21 dias é o tempo de intervalo entre as doses de testosterona. É o tempo recomendado na bula do hormônio mais tomado entre os homens trans, Durateston. Há também uma pequena parcela que prefere usar Deposteron, um similar que deve ser consumido em intervalos de 15 dias e tem efeitos colaterais mais brandos, como também precisa de mais tempo no organismo para tornar visíveis os efeitos. 8. Entre esses corpos há FTMs estrangeiros, homens trans que são membros do grupo e fazem treinamento físico constante na intenção de obter o corpo ideal e até os que iniciaram seus tratamentos hormonais e estão percebendo as mudanças no corpo, essas mudanças podem ser pequenas, como alguns pelos nascendo ou

1111

maiores como os músculos sendo definidos através da combinação testosterona/exercício/alimentação balanceada/suplemento alimentar. 9. Essa questão é bastante pertinente; não consegui encontrar uma palavra certa para definir o início na vivência trans, isto é, descobrir-se, assumir-se, externar-se, identificar-se, perceber-se, etc. Acredito que cada narrativa merece ter a particularidade e a possibilidade de utilizar qualquer um desses verbos, embora um possa fazer mais sentido do que outros para determinada pessoa. 10. Cisgêneros é o termo utilizado para designar indivíduos que tem sua identidade e expressões de gênero adequadas, segundo as normas de gênero, ao seu gênero atribuído. (informação retirada de http://www http://www.leticialanz.org/cisgenero/.leticialanz.org/cisgenero/).

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1112

VALE DE ALMEIDA, Miguel. 1995. Senhores de Si. Uma Interpretação Antropológica da Masculinidade. Lisboa: Fim de Século. 264 pp.

1113

OS DESAFIOS METODOLÓGICOS E OS DIÁLOGOS SOBRE QUESTÕES RACIAIS NO UNIVERSO INFANTIL

Teresa Cristina Furtado Matos319 Nady Jakelle Queiroz Dias320 Marinalda Pereira de Araújo321 Susi Anny Veloso Resende322 Resumo: O problema das questões raciais no Brasil está presente em nosso cotidiano e atinge vários campos da vida social. Dessa forma, pesquisas no campo escolar revelam como a escola influencia direta ou indiretamente na percepção das crianças sobre várias questões, entre elas estão os problemas raciais. Por esse escopo, o objetivo deste artigo é analisar e interpretar a partir de estratégias metodológicas como as crianças veem possibilidades de mobilidade social para “brancos” e “não brancos”. Fizemos uso de técnicas diversas com a finalidade de nos aproximarmos do universo infantil e estabelecer uma relação de confiança, para isso utilizamos procedimentos que envolve materiais lúdicos: bonecas, desenhos, cartões (com figuras de profissões, transportes, moradias) e histórias foram utilizados durante o processo da coleta de dados. Palavras chave: Escola, Crianças, Técnicas metodológicas.

INTRODUÇÃO As pesquisas sobre a questão racial no Brasil evidenciam que os problemas raciais estão presentes em distintos campos da vida social. Entre esses campos, existe a escola que como um espaço de saberes não só escolares, mas de construções de saberes culturais, de visões e sensibilidades para o mundo, valores e preconceitos interferem ativamente e cotidianamente na produção cultural das crianças que 319

Graduada em Ciências Sociais (UECE), Mestra em Sociologia (UFPB). Programa de Formação de Quadros do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento-CEBRAP. Desde 2008 é professora do Curso de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba. É membro do Núcleo e Estudos Afrobrasileiros e Indígenas (NEABI/UFPB) e é uma das editoras da Revista Política & Trabalho. [email protected]. 320 Estudante de Graduação em Ciências Sociais (UFPB). [email protected]. 321 Estudante de Graduação em Ciências Sociais (UFPB). [email protected]. 322 Estudante de Graduação em Ciências Sociais (UFPB). [email protected].

1114

seriam as atividades baseadas no ato de brincar, na imaginação e na forma

de

interpretar

a

realidade

(DELGADO,

2005).

Essa

interdependência resulta do peso que a cultura escolar exerce no processo de construção das identidades sociais, do que decorre o que podemos vislumbrar como humanização. As vivências tidas no âmbito escolar e até mesmo o Projeto Político Pedagógico de cada escola, que vai dar o tom de todos os processos pedagógicos, influenciam ativamente na percepção das crianças sobre várias questões que as rodeiam, entre elas está a questão racial. Desse modo, A escola impõe padrões de currículo, de conhecimento, de comportamentos e também de estética. Para estar dentro da escola é preciso apresentar-se fisicamente dentro de um padrão, uniformizar-se. A exigência de cuidar da aparência é reiterada, e os argumentos para tal nem sempre apresentam um conteúdo racial explícito. Muitas vezes esse conteúdo é mascarado pelo apelo às normas e aos preceitos higienistas. (GOMES, 2002). Tendo em vista a influência do contexto social no modelamento das representações e aspirações, este trabalho apresenta uma discussão sobre os desafios metodológicos da pesquisa com crianças a partir de uma investigação realizada sobre as percepções que essas elaboram relativas às possibilidades sociais (especialmente educação, emprego e status) de brancos e não-brancos. Perceber a especificidade da criança como sujeito da pesquisa nos faz atentar para os desafios metodológicos implicados na tarefa. Kramer (2002) concebe as crianças como sujeitos produtores de cultura. Além disso, a autora mostra que acreditar em uma natureza infantil esconde na verdade a condição em que as crianças são colocadas, sendo essas vistas mais como passivas do que ativas em produções culturais e históricas. Assim, levamos em conta que a criança na verdade está envolvida por relações sociais que as designam o papel de passiva e dependente do adulto, sendo vista como incapaz para 1115

muitas atividades tidas como exclusivas para o mundo dos adultos. O que aqui defendemos é a visão do universo infantil como ativo, criativo e produtor de significados importantes para o próprio mundo infantil, como também para o mundo adulto. A forma de dialogar e interagir com os adultos são traços culturais socialmente construídos que levam em consideração a subordinação da criança ao adulto. Neste trabalho, entretanto, levamos em consideração a criança como sujeito, no sentido de que como um adulto ela tece significados sobre a realidade em que vive e sobre as relações sociais em que estão inseridas. Neste contexto, devemos levar em consideração que o universo infantil possui suas diferenças quando comparadas ao universo adulto tendo a produção cultural vinda da infância suas especificidades, ou seja, as crianças criam atividades baseadas no ato de brincar, na imaginação e na interpretação da realidade de uma forma própria dos grupos infantis (DELGADO, 2005). As fantasias e brincadeiras são traços culturais infantis que devem ser levados em consideração na hora da pesquisa.

As

metodologias

utilizadas

fogem

muitas

vezes

das

comumente utilizadas com os adultos. James e Christensen (2000), em um livro sobre a questão metodológica no estudo com as crianças, afirmam que estudar crianças não requer métodos especiais. De acordo com eles, de modo geral, os métodos de pesquisa devem ser adaptados ao contexto pesquisado. O mesmo vale para o contexto infantil. Não justificaria assim, segundo os autores, desenvolver novos métodos de pesquisa destinados especialmente ao público infantil (PIRES, 2007, p.252). Assim, as pesquisas, a coleta de dados, e a observação de campo são mais contextualizadas de acordo com o que o campo e os sujeitos da pesquisa nos davam durante a nossa vivência em campo, do que simplesmente uma criação de novas formas de se pesquisar. No contexto dos adultos temos a objetividade, as perguntas diretas, as opiniões formadas, etc. Utilizamo-nos de gravadores, roteiro 1116

de entrevista, câmera filmadora, perguntas mais diretas e específicas sobre algum determinado assunto. No contexto infantil o que predomina são as histórias, as brincadeiras, desenhos, cores; o mundo lúdico enfim é o que predomina e é nesse meio social que as crianças estão inseridas que devemos adaptar nosso arcabouço metodológico a fim de conseguir os dados almejados na pesquisa. Na pesquisa ouvimos alunos do primeiro, segundo e terceiro anos do ensino fundamental I em uma escola pública da cidade de João Pessoa-PB. Foram aplicadas estratégias metodológicas diversas, com ênfase para os materiais lúdicos, tendo por intuito, como já referido, abordar a percepção das crianças sobre a questão racial e seu lugar na vida social. Nessa busca, fizemos uso de técnicas variadas, as quais serviram para estabelecer uma relação de confiança com o mundo infantil, ou seja, utilizamos bonecas, cartões, desenhos de profissões, transportes, moradias e histórias. Esses elementos foram apreendidos no processo da coleta de dados. É a partir do uso dessas metodologias que vamos discutir a relação dos nossos materiais metodológicos com nossos sujeitos da pesquisa.

A CRIANÇA COMO SUJEITO NA ESCOLA A escola em que foram aplicadas as metodologias chama-se Aruanda, a qual faz parte da rede municipal de ensino. A mesma foi inaugurada em 2000 e é considerada uma das escolas modelos do município. O colégio abarca turmas do 1º ano do ensino infantil até o 9º ano do ensino fundamental sendo nosso referencial da pesquisa apenas as crianças do 1º ao 3º ano do ensino infantil. A ida a campo realizou-se em dias intercalados, em que se utilizava a sala de aula, bem como a hora do intervalo para a aproximação com as crianças. Nesse percurso, começamos a ir a escola em abril de 2012, quando tivemos a permissão da diretora para circular livremente pela 1117

escola, bem como dialogar com as professoras sobre nossas futuras atividades com as crianças. Foi importante para que a diretora nos apresentasse ás professoras das respectivas séries pertinentes à pesquisa, para que pudéssemos dessa forma negociar os horários disponíveis para aplicação das metodologias em sala de aula. Como já foi colocado acima, nosso trabalho se propôs a estudar em uma escola de João Pessoa a percepção das crianças quanto às possibilidades sociais – profissão, moradia, meios de transporte, ascensão social, etc- de brancos e não brancos. Por esse viés, nosso enfoque neste artigo são as especificidades metodológicas que existem ao se trabalhar com as crianças, pois a escola, como mais uma instituição em nossa sociedade, molda percepções e ações das crianças dentro e fora dela, e como isso pode vir a interferir nas metodologias a serem utilizadas no momento da pesquisa (FAZZI, 2006). Autores como Valente (2005) que estuda o fenômeno escolar, aponta para a influência da escola na criação do universo infantil. Assim, as relações existentes entre as crianças e entre essas e os professores, além dos funcionários, interferem diretamente na formação cultural daqueles sujeitos sociais. O espaço institucionalizado por si só já pode influenciar ativamente as crianças, ou seja, através das metodologias utilizadas nas aulas, a forma de diálogo construída e exercitada entre adultos e crianças, o “lugar” das crianças e dos adultos fora e dentro da sala de aula, o que evidencia quem é a criança para a escola. Durante toda a pesquisa ficava evidente que a criança como sujeito para escola era mais no sentido de criança sujeitada e não de sujeito no sentido autônomo produtor de sentidos e vivências próprias. Quando falamos da criança como sujeito na escola, entretanto, levamos em consideração as construções realizadas por aquele universo infantil apresentado pelas crianças naquele colégio. Todas as influências das brincadeiras, das aulas e das falas dos professores repercutiam fortemente nas vivências infantis. Exemplo disso 1118

foram as divisões entre os gêneros. Meninos contra meninas era algo comum tanto para as crianças como para os próprios adultos. Era comum muitas vezes, escutar professores e funcionários reforçarem a divisão de “coisas” de meninos e “coisas” de meninas. Assim, roupas, cabelos, comportamentos e brincadeiras eram muitas vezes moldados por uma divisão de gênero e isso era vivenciado fortemente pelas crianças. Isso mostra pertinentemente o papel ativo das crianças dentro do seu mundo social. Era comum nas falas das crianças a divisão entre meninos e meninas; eles se apropriavam dessas distinções e moldavam todas as situações travadas na sala de aula, na hora do intervalo, etc. Não poderíamos nos esquecer, no entanto, que as crianças recriam o mundo, mas o fazem a partir do mundo que lhes é apresentado, um mundo de adultos. São agentes da mudança, mas também da continuidade. A dinâmica que se passa com o adulto entre ser um indivíduo ímpar ou reproduzir padrões recebidos também acontece com as crianças. Aliás, essa batalha é travada de maneira intensa entre as crianças e os adolescentes e, por isso, estudá-las pode esclarecer não apenas diversos aspectos da sociedade abrangente, a sociedade dos adultos, e do cotidiano das crianças, mas, talvez mais relevante para o argumento aqui desenvolvido, do viver em sociedade. (PIRES, 2010, pag.153). É importante frisar que essa intensa divisão de gênero afetou no resultado da pesquisa, bem como na aplicação das metodologias, sendo

necessário

que

pensássemos

em

estratégias

para

que

pudéssemos ter uma coleta mais abrangente de todas as crianças pertinentes à pesquisa. Assim entender as crianças não só como reprodutoras, mas também como produtoras de novos significados através do que é vivenciado em seu cotidiano, deve ser levado em consideração durante nossas construções teóricas e metodológicas. Tanto adultos como crianças recebem influencias do meio em que vivem e apenas as formas de apropriação e de externar são diferenciadas. 1119

METODOLOGIAS, UMA QUESTÃO DE CONTEXTO Várias estratégias foram utilizadas durante a pesquisa para uma melhor captação dos dados. Trabalhar com crianças exige cuidados metodológicos, (FAZZI, 2006) atenta para que o pesquisador se atenha de forma cuidados com as crianças e principalmente para a “fala” delas, sendo o elemento primordial para analise. No entanto de acordo com (PEREIRA, SALGADO e SOUZA, 2009) o resultado das “conversas”323 não é a fala da criança tomada isoladamente, mas é o diálogo que é estabelecido entre o pesquisador e a criança que produz sentidos. Além dos cuidados metodológicos é importante que o adulto pesquisador assuma uma forma de olhar para a criança, pois elas são seres sociais dotados de agência histórica, social e cultural. (PIRES, 2010). Assim, de acordo com (DELGADO, 2005) o maior desafio é construir uma dinâmica de estranhamento e proximidade com as crianças. Tal aspecto foi discutido também por outros autores, onde se percebe esta sendo uma dos desafios que se enfrenta em pesquisas quando o sujeito pesquisado é semelhante, sendo que a preocupação aumenta quando esse sujeito é a criança. Outro aspecto já ressaltado por outros autores é sobre a importância de romper com as representações hegemônicas, pois as crianças se distinguem umas das outras nos “tempos, espaços, nas diversas formas de socialização, no tempo de escolarização, nos trabalhos, tipos de brincadeiras, gostos, nas vestimentas, enfim, nos modos de ser e estar no mundo” (DELGADO 2005). O aspecto de maior interesse é a respeito dos traços distintivos das culturas da infância que são: “a ludicidade, a fantasia do real, interatividade e a reiteração”. É preciso levar em consideração os traços das culturas infantis, quando na elaboração das estratégias

323

O termo utilizado pelos autores (PEREIRA, SALGADO e SOUZA, 2009) é entrevista, em nossa pesquisa preferimos utilizar o termo “conversas”.

1120

metodológicas, Delgado ainda nos sugere estudar outros espaços educativos que são bastante frequentados pelas crianças ( TV, vídeo game) entre outros: As crianças criam atividades baseadas no ato de brincar, na imaginação e na interpretação da realidade de uma forma própria dos grupos infantis. A constante atividade das crianças, as apropriações de elementos do meio sociocultural de origem só confirmam o que os/as sociólogos/as da infância enfatizam, principalmente, no que diz respeito à lógica peculiar das crianças, a qual é diferente da lógica dos adultos e que caracteriza suas culturas de pares. (DELGADO, 2005) Assim adequamos nossas bases metodológicas ao contexto em que nos inseríamos na pesquisa, sem deixar de levar em conta a importância do sujeito infantil como produtores de suas próprias opiniões ante as relações que tecem com os adultos e com as crianças sendo estas interpretações alcançadas através de metodologias que especificam. Fazzi (2006) trata da importância dos usos metodológicos (teste das bonecas, cartões e fotografias) em sua pesquisa bem como o envolvimento e o processo de aproximação com as crianças. Apresenta a preocupação na interpretação das falas e ações das crianças, pois não deve ser analisada a partir da lógica dos adultos, essa ressalva também é direcionada para o pesquisador. O discurso da criança é primordial no seu estudo sendo que a partir dele a autora pretende descobrir e traduzir em termos sociológicos, a teoria do preconceito racial, e a forma como as crianças estão elaborando suas próprias experiências raciais (FAZZI, 2006). Discutir o fator como ambiente sociológico e psicológica, e como esses elementos afeta a atitude das crianças em torno de várias questões, entre elas a questão racial. As questões de gênero, por exemplo, envolviam uma separação, muitas vezes radical, entre meninos e meninas. Nas atividades realizadas tivemos dificuldade para fazer com que os meninos participassem da brincadeira, o que dificultava também nossa aproximação com os 1121

mesmos. A participação das meninas era sempre majoritária e, tendo em vista a pouca participação dos meninos, algumas atividades tiveram de ser pensadas e direcionadas para estes. As diferenças de idade e também das sérias foram levadas em consideração quanto às conversas, os tipos de brincadeiras, as perguntas e a forma de aproximação. Essas variações apresentaram-se como desafios de pesquisa relativos as formas de abordagem do universo infantil. Muitas questões nos apareceram no processo. Aspectos como o tempo limitado pela dinâmica da escola, a própria disponibilidade e o interesse das crianças, bem como a própria aceitação das crianças com as metodologias proposta. Além disso, as metodologias utilizadas apresentavam limitações, levantando questões sobre o condicionamento, algumas vezes, das fala das crianças. As estratégicas metodológicas aplicadas tiveram base no livro de Rita de Cássia Fazzi como principal referencial teórico para o desenvolvimento de nossa vivência no campo pesquisado.

Que

buscou analisar as formas de preconceito manifestado pelas crianças em seu âmbito escolar sobre a questão racial. A forma de como chegar até as crianças foi baseada nos textos de Pires e Fazzi, que tem como objetivo se aproximar da criança como um adulto diferente, para poder adquirir uma relação de confiança. A primeira metodologia feita em sala de aula, em foi pedido para cada criança desenhar sua família, qual a profissão e o que faz durante o dia. Afim de saber aproximadamente seu status, o desenho e as conversas posteriormente estava relacionada com cada desenhos elaborados pelas crianças das três séries pertinentes a pesquisa. A segunda metodologia das bonecas, realizada na sala de aula de cada série foram formados grupos de alunos e depois entregou-se as bonecas. Nesta metodologia notou-se uma maior socialização entre o gênero feminino, mesmo assim não teve um bom resultado sobre a questão racial.

1122

Nas metodologias de cartões confeccionadas de materiais lúdicos, foi realizada na hora do intervalo das crianças, em que elas formavam

histórias

de

vida

e

relacionavam

as

imagens

que

correspondiam as possibilidades de moradia, transporte, profissões, status e afetividade entre pessoas brancas e não-brancas. A ideia da metodologia foi com base na idade das crianças, nas cores dos cartões, e nas diversidades de itens para formar histórias imaginárias do mundo infantil, que também deixavam exposto seu preconceito racial, quando relacionavam as imagens. Essa metodologia teve ênfase com relação as percepções e as falas das crianças e na medida que mudava as salas era perceptível que nas conversas as respostas e explicações eram mais bem elaboradas de acordo com a idade. Aplicamos em seguida a metodologia dos cartazes, em que as crianças colavam figuras de diversas profissões de acordo com a gravura de homem branco e não-branco que estava desenhado no cartaz, e falava o porque que deveria trabalhar na profissão escolhida pela criança. Notamos que essa metodologia não foi eficaz porque as crianças não levavam à sério as figuras, fazendo piadas com os desenhos dos cartazes. Depois de notarmos que o gênero feminino participava mais das metodologias, optamos por um diálogo em que os meninos das três séries pertinentes a pesquisa participassem de alguma forma. Nas primeiras conversas houve dificuldade de como iniciar o assunto sobre questões raciais, buscamos saber primeiramente de que eles gostavam de brincar e se gostaram de alguma brincadeira aplicada.

AS RESPOSTAS DO CAMPO O livro de Rita de Cássia Fazzi “Preconceito racial em escolas públicas: interpretando posições sociais na perceptiva de crianças e adolescentes” foi um arcabouço teórico de base para a pesquisa, 1123

assim como os artigos citados. Utilizamos algumas metodologias empregadas na pesquisa de Fazzi, e alguns procedimentos tais como aproximação cuidadosa com as crianças. Observamos brevemente o comportamento das crianças em sala de aula e nas aulas educação de física. As primeiras visitas tiveram o objetivo de aproximação, conhecer a escola as professoras das series pertinentes a pesquisa -as três primeiras séries do ensino fundamental, primeiro, segundo e terceiro ano- em que conseqüentemente manteríamos maior contato durante a pesquisa. Nessas primeiras reuniões procuramos fazer o que Pires (2007) sugere:

que o pesquisador procure sair da posição de um tipo de

adulto que geralmente é presente no cotidiano da criança – que hierarquiza as relações entre crianças e adultos-, assumindo uma postura de “adultos diferentes”, ou seja, estabelecendo uma posição de igualdade (PIRES, 2007). Foi através das atividades mais lúdicas, das brincadeiras e dos tipos de diálogos que tínhamos com as crianças que mudamos gradativamente a visão de sermos mais um adulto que estaria no colégio para ser um instrutor. Em muitas visitas a sala de aula as crianças nos confundiam com suas “tias” que davam aula e a todo o momento houve uma preocupação de nossa parte em deixar claro para as crianças que éramos “tias” diferentes, éramos “tias” iguais a eles, passíveis de aproximação e contato nos termos delas. Queríamos a toda hora estabelecer uma relação de igual. Claro que eles sabiam que não éramos crianças, mas sempre tentamos estabelecer relações de não autoridade. Muitas crianças às vezes chegavam a nós na esperança de resolver algum problema que teria surgido entre elas, nos colocando na posição de autoridade. Nesses momentos tentávamos não nos envolver tanto, criando assim uma relação adulto-criança, diferente da que eles vivenciavam no meio escolar. O uso das brincadeiras também ajudou na percepção deles quanto ao nosso papel no colégio, as atividades/brincadeiras aplicadas 1124

foram, os bonecos, jogo de cartas, uso das cartolinas. No entanto, é preciso frisar que nem todas as técnicas metodológicas deram certo, umas funcionaram mais que outras, por exemplo, as bonecas e o uso da cartolina forram menos aceitas pelas crianças, enquanto através do jogo de cartas foi possível ter maior participação das crianças. Porem todas as “brincadeiras” utilizadas eram fundamentais para analisar e interpretar como as crianças enxergam possibilidades sócias de “brancos” e “não brancos”. É importante ressaltar que a partir das “brincadeiras” aplicadas foi possível perceber a forte divisão de gênero, em determinadas brincadeiras, tínhamos menor participação dos meninos, isso por que quando estávamos brincando ou conversando com meninas os garotos não se aproximavam, e vice versa. Através da metodologia do jogo de cartas, foi possível perceber que a associação entre “classe social” e “cor da pele” muda de acordo com as séries das crianças324. Dessa forma associaram as (pessoas da figura negra) geralmente as condições de moradia e profissões menos favoráveis. Quando indagado sobre a “possibilidade de amizade” e “possibilidades profissionais” para crianças “brancas” e “não-brancas” as crianças mais velhas do (5º e 6º ano) disseram que não existiria a possibilidade de amizade por causa do preconceito325 justificando que “rico não gostava de pobre” e que não frequentaria a mesma escola. Elas também, fizeram a associação das (crianças brancas da figura) como sendo as que possuem maior poder aquisitivo, e (as negras das figuras) sendo as pobres. 324

Apesar de nossa pesquisa ser voltada para as crianças de primeiro, segundo e terceiro ano, devido a interação na hora do intervalo, quando fazíamos atividades, muitas crianças de outras séria (4 ° e 5° anos) se aproximavam quando se interessavam pela brincadeira. Dessa forma não nos preocupamos em afastar ou proibir as crianças mais velhas, pois poderia ser mal visto pelas próprias crianças prejudicando a coleta dos dados. 325 As crianças menores – a maioria do primeiro ano - não sabiam a definição de “preconceito”, ao contrario das do quinto e sexto ano, que falaram que já foram vitimas associando que foram xingadas por outros colegas por causa do cabelo ou tipo físico. Ou seja, o estereótipo marginalizada da característica negra. Isso já se mostra como um dado importante para se atentar nas formas de diálogo com as crianças mais novas, pois cada conversa – termos utilizados, tom das conversas, formas de aproximação com as crianças, etc- devem ser levados em consideração nessas situações. Fica-se claro assim as especificidades metodologias que mudam mesmo de acordo com a idade.

1125

Nessas situações ficava clara a diferença de idade quanto à explicação da escolha dos cartões. Apesar de modo geral as crianças escolherem as (figuras pessoas brancas) como sendo as de maior possibilidade profissional e poder aquisitivo, as que moram na casa luxuosa as que serão médicos advogados, e as (figuras pessoas negras) seriam criminosas, ladrões ou ate mesmo “ladrão viajantes” expressão de uma criança do segundo ano, as crianças mais novas – as do primeiro ano – muitas vezes não sabiam explicar o porquê daquela decisão, apontando apenas sua preferência como auto-explicativa para a decisão. Aplicamos em seguida a metodologia dos cartazes, em que as crianças colavam figuras de diversas profissões de acordo com a gravura de homem branco e não-branco que estava colado no cartaz, e falava o porque que deveria trabalhar na profissão escolhida pela criança. A metodologia foi aplicada em cada série separadamente abordada pela pesquisa. Nas séries do segundo e terceiro ano não houve maior participação da turma, diferente do primeiro em que sobretudo as meninas participaram, no entanto todas as turmas preferiram o cartaz da (figura branca). Na colagem os cartazes das figuras brancas havia maior numero de “figuras de profissões”, brevemente se percebe que as profissões mais prestigiadas são para os brancos, no geral as crianças pareciam colar apenas para participar da brincadeira. Parece não ter havido uma reflexão por parte das crianças ao colarem as figuras nos cartazes, a colagem parecia ser mais dispersa, o que não resultou em boas respostas. No terceiro ano a justificativa pela escolha da figura “branca” se dá pelos traços físicos, onde o não branco é mais feio porque tem nariz, sobrancelhas e cabelos feios e grandes em relação a figura “branca”, bem como também houve uma preferência pelo cartaz da figura “não branca”sendo

justificado

a

preferência

pelo

estereótipo.

As

metodologias, apesar de terem sido feitas em todas as sérias almejadas nos traziam respostas diferentes de tratar do preconceito racial de 1126

acordo com a idade. O gênero, como já foi relatado acima, influenciou muito em nossa coleta de dados. Muitas brincadeiras com bonecas foram utilizadas e apenas em algumas poucas ocorreu uma participação mais ativa dos meninos. Muitas vezes os meninos, apesar de participarem das brincadeiras sempre nos diziam depois que não gostavam de brincar com bonecas, pois era uma brincadeira para meninas. A divisão de gênero era tão perceptível que o diálogo com as meninas era muito mais fácil e recorrente do que com os meninos. As próprias

brincadeiras realizadas durante o recreio nos

possibilitava um maior contato com as meninas do que com os meninos. As meninas gostavam mais de brincadeiras mais “paradas”: se maquiar, jogar cartas, conversar, pular corda, jogar voley ou apenas ficar conversando, era algumas das brincadeiras que poucas vezes tinha o envolvimento dos meninos. Para os meninos as brincadeiras estavam mais em torno do futebol e do pega-pega; achar um menino sentado era muitas vezes difícil e durava pouco tempo. Meninos não brincam com meninas e vice-versa, o que trazia dificuldades no diálogo com as crianças em geral. As meninas por outro lado, quando viam a nossa busca pelos meninos, nos questionava e ficavam meio chateadas.

CONCLUSÃO O trabalho de campo revelou que o acesso ao ponto de vista das crianças (PIRES, 2007) impunha o uso de estratégias diversas ao universo infantil e o reconhecimento dos limites e possibilidades que uso de cada uma delas, criando uma via de abertura as percepções que elas elaboram sobre as possibilidades sociais de brancos e não brancos. A comunicação com as crianças, a forma de aproximação e mesmo as preferências de certas atividades em detrimentos de outras,

1127

nos fizeram perceber como o universo infantil tem suas especificidades e deve ser levada em consideração no contexto em que está inserido. Assim como no universo adulto, o universo infantil tem suas singularidades quanto às formas de entender, aceitar e refletir sobre determinados

aspectos

que por

sua

vez

são

influenciadas pelo

cotidiano envolvente das crianças. Como já foi colocado, as diferenças entre as idades, a separação de gênero vivenciada e reafirmada dentro e fora da escola, além de outros aspectos que não temos conhecimento

como

o

ambiente

familiar,

vizinhança

e outros

ambientes que cercam as crianças influenciam nas atividades e na recepção destas pelas crianças. Além disso, como já foi colocado por (PIRES, 2007), o diálogo com nosso sujeito da pesquisa deve ser pensando de acordo com o contexto.

Nossa

posição

como adulto,

em

que

se supõe

uma

hierarquia para com nossa relação com as crianças pode ser pensada também numa comparação da nossa posição como pesquisador com os adultos a serem pesquisados. Assim como nas pesquisas com adultos, na pesquisa com as crianças as possíveis hierarquias ou relações de poder devem ser refletidas e minimizadas, o que fortifica mais uma vez a idéia de se pensar as metodologias utilizadas para as crianças não como "diferentes", mas como adequadas ao seu contexto. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CARVALHO, Marília. Quem é negro, quem é branco: desempenho escolar e classificação racial de alunos. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, n. 28, abr. 2005. Disponível em . Acessos em 26 de abril de 2011. doi: 10.1590/S1413-24782005000100007 DELGADO, Ana Cristina Coll; MULLER, Fernanda. Em busca de metodologias investigativas com as crianças e suas culturas. Cad. Pesqui., São Paulo, v. 35, n. 125, maio 2005 . Disponível em . Acessos em 26 de abril de 2011. doi: 10.1590/ S0100-15742005000200009. 1128

FLEURI, Reinaldo Matias. Políticas da diferença: para além dos estereótipos na prática educacional. Educ. Soc., Campinas, v. 27, n. 95, ago. 2006. Disponível em . acessos em 26 abr. 2011. doi: 10.1590/S0101-73302006000200009. FAZZI, Rita de Cássia. O drama racial das crianças brasileiras: socialização entre pares e preconceito. Belo Horizonte, Autêntica, 2006 GOMES, Nilma Lino. Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural?. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, n. 21, dez. 2002 . Disponível em . Acessos em 26 de abril de 2011. doi: 10.1590/S141324782002000300004 OLIVEIRA, Fabiana de; ABRAMOWICZ, Anete. Infância, raça e "paparicação". Educ. rev., Belo Horizonte, v. 26, n. 2, ago. 2010. Disponível em . Acessos em 26 abr. 2011. doi: 10.1590/S0102-46982010000200010. KRAMER, Sonia. Autoria e autorização: questões éticas na pesquisa com crianças. Cad. Pesqui., São Paulo, n. 116, jul. 2002 . Disponível em . Acessos em 26 de abril de 2011. doi: 10.1590/S0100-15742002000200003. PEREIRA, Rita Marisa Ribes; SALGADO, Raquel Gonçalves; SOUZA, Solange Jobim e. Pesquisador e criança: dialogismo e alteridade na produção da infância contemporânea. Cad. Pesqui., São Paulo, v. 39, n. 138, dez. 2009 . Disponível em . Acessos em 26 abr. 2011. doi: 10.1590/S0100-15742009000300016. PIRES, Flávia. O que as crianças podem fazer pela antropologia?. Horiz. antropol., Porto Alegre, v. 16, n. 34, dez. 2010 . Disponível em . acessos em 26 abr. 2011. doi: 10.1590/ S0104-71832010000200007. VALENTE, Ana Lúcia. Ação afirmativa, relações raciais e educação básica. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, n. 28, abr. 2005. Disponível em . acessos em 26 abr. 2011. doi: 10.1590/S1413-24782005000100006.

1129

AVALIAÇÃO DO PROGRAMA SAÚDE DA FAMÍLIA EM MOSSORÓ: UMA ANÁLISE DA EFETIVIDADE

Paula Fernanda Brandão Batista dos Santos326 Talita de Figueiredo327 Lincoln Moraes De Souza328 Resumo: Num momento em que o Ministério da Saúde lança o Índice do Desempenho do SUS como uma ferramenta para avaliar o acesso e a qualidade dos serviços de saúde no país torna-se necessário ampliarmos as discussões e experiências sobre a avaliação de políticas públicas em saúde. Nesta perspectiva, o objetivo principal deste trabalho foi avaliar a efetividade do Programa Saúde da Família (PSF) no município de Mossoró-RN. Trata-se de parte de um estudo ampliado sobre a avaliação do impacto do PSF no Rio Grande do Norte, desenvolvido a partir do estudo de casos múltiplos com abordagem quanti-qualitativa. A efetividade evidenciada esteve relacionada, sobretudo, ao recebimento de medicações e maior oferta e acesso a serviços médicos e odontológicos. Palavras-chave: avaliação de políticas públicas, efetividade, programa saúde da família.

INTRODUÇÃO Num momento em que o Ministério da Saúde lança o Índice do Desempenho do SUS como uma ferramenta para avaliar o acesso e a qualidade dos serviços de saúde no país e implementa a Avaliação para Melhoria da Qualidade da Atenção Básica, reabre a necessidade de ampliarmos as discussões e experiências sobre a avaliação de políticas públicas em saúde. Considerando o contexto político dos últimos 30 anos no Brasil, observamos importantes processos de reformas no sistema de saúde brasileiro, o que tem contribuído para uma nova lógica de organização 326

Graduada em Enfermagem e Obstetrícia (UEPB), Mestra em Enfermagem (UFPB) e Doutora em Ciência Sociais (UFRN). Professora Adjunta (UFRN). [email protected]. 327 [email protected]. 328 Graduado em Ciências Sociais (UFC), Mestre em Sociologia (UnB), Doutor em Política Social (UNICAMP). Professor Associado (UFRN). Líder do Grupo Interdisciplinar de Estudos e Avaliação de Políticas Públicas (GIAPP/UFRN). [email protected]

1130

dos serviços e modelos de assistência à população. De uma medicina baseada numa prática curativista e privatista, onde apenas pequenas parcelas da população tinham acesso aos serviços de saúde, passamos a ter algum avanço com a introdução da saúde como direito na legislação brasileira, e uma assistência voltada aos aspectos não só curativistas, mas que se propõe a buscar, prioritariamente, a prevenção e

a

promoção

da

saúde.

Essas

mudanças

vêm

se

dando,

principalmente, a partir do início do movimento de reforma sanitária ocorrido em meados da década de 1980, logo após a criação do Sistema Único de Saúde, que teve como marco regulatório a Constituição Federal de 1988, e, principalmente com a implementação do Programa Saúde da Família (PSF) nos municípios brasileiros. O PSF surge em 1994, como um modelo de atenção proposto para implementar as conquistas derivadas do processo de reforma sanitária e do SUS. Inicialmente desenhado para ser uma proposta de ampliação do acesso e garantia dos serviços básicos de saúde para as famílias, logo

o

Programa

começou

a

apresentar

significativos

resultados nos indicadores de saúde, na alteração da lógica de financiamento e controle dos gastos em saúde, na mudança de desenho do processo de trabalho e na incorporação de novas filosofias para o cuidar. Estes elementos contribuíram para a disseminação do programa em todo o território brasileiro e para pensá-lo como uma Estratégia de reorganização do SUS a partir da atenção básica. De acordo com Andrade, Barreto e Bezerra (2008, p.802) A decisão política de reorganizar a rede de assistência à saúde mediante uma política que apontasse para a universalização do acesso da população brasileira à atenção básica e consolidasse o recente processo de descentralização, inaugurado com o advento do Sistema Único de Saúde (SUS), foi o norte inspirador da implementação da ESF nos mais diversos municípios brasileiros.

Nos documentos do Ministério da Saúde, o PSF está inserido num contexto de decisão política e institucional de fortalecimento da atenção básica, no âmbito do SUS. Representa um movimento de 1131

“reforma da reforma”, no contexto de reforma do setor saúde no Brasil. Considerado como estratégia estruturante dos sistemas municipais de saúde, o PSF tem demonstrado potencial para provocar um importante movimento de reordenamento do modelo vigente de atenção. Suas diretrizes apontam para uma nova dinâmica na forma de organização dos serviços e ações de saúde, possibilitando maior racionalidade na utilização dos níveis de maior complexidade assistencial e resultados favoráveis nos indicadores de saúde da população assistida (BRASIL, 2002). O potencial de ser um elemento importante no movimento de reorganização do sistema de saúde brasileiro, dá-se pela constatação da sua acelerada expansão, e das mudanças provocadas no campo financeiro (investimento do Ministério da Saúde), acadêmico (formação profissional voltado para a ESF) e da intensa adesão da grande maioria dos municípios brasileiro. Nesse sentido, alguns dados são elucidativos: o Programa atualmente encontra-se implantado em 5.250 municípios brasileiros, com uma estimativa de cobertura populacional em torno de 96.388.303 pessoas. No Nordeste são 1.775 municípios com o Programa Saúde da Família, com 12.406 equipes de saúde da família, com uma estimativa de cobertura populacional em torno de 37.740.344 pessoas, ou 71,08% da população do nordeste brasileiro. Quando analisamos os dados do Rio Grande do Norte percebemos que todos os municípios têm implantado o PSF, com 864 equipes em todo o estado oferecendo serviços a uma população estimada em 2.410.835 pessoas. (BRASIL, 2010). Ao mesmo tempo, podemos verificar que a consolidação e as transformações decorrentes do PSF não estão ocorrendo como um processo uniforme e linear. Ao contrário, tem-se mostrado como um processo diverso, complexo e muito vulnerável às mudanças de governo. Desde a sua implantação o programa tem sido alvo constante de pesquisas que quase sempre procuram verificar como se dá o processo de trabalho da equipe, os reflexos desse processo nos dados 1132

epidemiológicos

e

na

saúde

das

populações,

e

ainda

as

representações dos sujeitos envolvidos com a proposta. Porém, ainda não possuímos evidências, ou mesmo pesquisas direcionadas para assegurar que o PSF tenha contribuído de fato para mudanças mais significativas no âmbito dos serviços de saúde oferecidos à população, sendo estas suposições sustentadas muito mais por concepções, princípios do que “pode ser” ou mesmo impressões do que por investigações científicas acuradas sobre os resultados do programa. É nesse contexto, que a realização de avaliações cientificas das políticas e programas de saúde no Brasil ganham importância no sentido de contribuir com o estudo dos resultados de um programa que representa uma estratégia de reforma da atenção à saúde dentro do Sistema Único de Saúde, que tem expandido suas ações em todo o território nacional, que tem construído sua legitimação institucional e que, hoje, é a experiência mais promissora de alcance dos resultados buscados com as reformas no setor saúde. Buscando compreender esse cenário, os avanços, dificuldades e desafios do Programa Saúde da Família para continuar a provocar mudanças e efetivamente reordenar os sistemas de saúde é que alguns estudos têm sido empreendidos no sub-campo da avaliação. E é nessa perspectiva que a temática da avaliação de programas e políticas públicas adquire centralidade no debate sobre os resultados do PSF, buscando responder questões fundamentais para avaliar em que medida essa estratégia tem contribuído para uma mudança no atendimento aos usuários e a reversão da forma de organização da atenção à saúde. Nesta perspectiva o objetivo principal deste trabalho foi avaliar a efetividade do Programa Saúde da Família no município de Mossoró-RN.

AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS E PROGRAMAS EM SAÚDE

1133

Na área da saúde, as atividades de avaliação tiveram seu início antes da avaliação de programas e políticas surgir como uma necessidade premente. Marcados pelos estudos epidemiológicos e de avaliação de tecnologias em saúde, as avaliações eram empreendidas com o intuito de melhorar as condições de saúde e investigar os elementos que afetavam a saúde das populações. É certo que estes estudos

eram

predominantemente

de

natureza

quantitativa,

e

embasados pelo paradigma positivista. No que tange à avaliação aplicada aos programas ou políticas de saúde, é apenas na década de 1980 que, no Brasil, ela começa a se desenvolver e ganha relevância política com as mudanças advindas da efetivação do Sistema Único de Saúde nos anos 1990. Estas avaliações “tem como foco de análise os programas (tomados aqui no sentido em que é utilizado na literatura americana), como processos complexos de organização de práticas voltadas para objetivos especificados”. (NOVAES, 2000, p.552). Para Silva (2005), a avaliação de políticas, programas e projetos pode recortar todos os níveis do sistema, sendo estes: ações (relacionada às ações de promoção,

prevenção

individualmente);

e

serviços

cura

desenvolvidas

(corresponde

a

um

pelos grau

agentes maior

de

complexidade de organização das ações onde diversos agentes se articulam

para

(correspondendo

desenvolver a

unidades

atividades);

sanitárias

de

estabelecimentos

diferentes

níveis

de

complexidade tais como centros de saúde, hospitais e policlínicas); sistemas (o nível mais complexo de organização das práticas que envolveria todos os outros e sua coordenação). Assim, a avaliação de programas e políticas incluiria desde análises sobre a natureza do Estado e do poder político envolvidos na sua formulação até estudos sobre os programas relacionados a sua operacionalização (SILVA, 2005). Nos últimos anos

a área da avaliação em

saúde vem

apresentando intenso crescimento no Brasil e no mundo, impulsionados, dentre outros, pelos mais diversos estudos sobre os programas e serviços. 1134

Tendo como pano de fundo a importância da informação em saúde para a gestão e a busca pela melhoria dos programas, a avaliação é percebida como parte do processo dentro do ciclo da política pública. Com o intuito de servir de instrumento para subsidiar as decisões acerca do desenvolvimento dos processos em saúde, seja nas políticas ou serviços, ou mesmo para pensar novas estratégias, a avaliação pode trazer consigo a ampliação das perspectivas de que as políticas, programas ou serviços sejam implementados visando a garantia dos direitos constitucionais e melhoria das condições de vida e saúde das populações.

O PROGRAMA SAÚDE DA FAMÍLIA Sob a égide da Promoção da Saúde, o Programa/Estratégia Saúde da Família surge no Brasil em 1994, e torna-se, no discurso governamental, o elemento essencial da Política de Atenção Básica, tendo como eixos transversais das suas ações: a universalidade, a integralidade

e

a

equidade,

num

contexto

de

tentativas

de

descentralização e participação social. Um dos pressupostos deste programa é que a atenção à saúde esteja centrada na família, entendida e percebida a partir do seu ambiente físico e social, permitindo aos profissionais uma compreensão ampliada do processo saúde-doença. A concepção de saúde presente no Programa supera a antiga proposição de caráter exclusivamente centrado na doença, propondo o seu desenvolvimento por meio de práticas gerenciais e sanitárias, democráticas e participativas, tendo a saúde como um processo social diretamente relacionado aos contextos sociais, econômicos, políticos e familiares aos quais os indivíduos estão inseridos. Seu processo de trabalho, deve pautar-se no trabalho em equipe multiprofissional sob a égide da Promoção da Saúde, dirigidos a populações delimitadas 1135

através da adscrição (princípio operacional do PSF) de clientela e da delimitação territorial, pelos quais a equipe assume as responsabilidades do cuidado e da assistência de saúde. Às equipes compete ainda a articulação e vinculação com a comunidade a fim de estabelecerem laços de co-responsabilidade entre usuários e equipe pela saúde da população. A Unidade Básica de Saúde da Família (UBSF) deve integrar o sistema local de saúde, devendo para tanto ser a porta de entrada e o primeiro nível de atenção, e ainda estar integrada em uma rede de serviços dos diversos níveis de complexidade, estabelecendo um sistema de referência e contra-referência que garanta resolutividade e possibilite o acompanhamento dos pacientes (BRASIL, 2002). O programa é constituído por uma equipe mínima de saúde composta por um médico generalista, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e de 4 a 6 agentes comunitários de saúde. Já ocorreu uma expansão dessa equipe mínima com a incorporação das Equipes de Saúde Bucal compostas por um cirurgião-dentista, um atendente de consultório dentário (ACD) ou um técnico em higiene dental (THD).

PERCURSO METODOLÓGICO Este trabalho é parte de um estudo ampliado sobre a avaliação do impacto do Programa Saúde da Família no Rio Grande do Norte, que está sendo desenvolvido a partir do estudo de casos múltiplos com abordagem quanti-qualitativa. Neste trabalho, em especial, nos propomos a avaliar o Programa Saúde da Família no Município de Mossoró. A pesquisa que deu origem a este trabalho parte da avaliação dos resultados do programa (resultados estritos, efeitos e impacto). Ela está

sendo

desenvolvida

nos

1136

municípios

de

Acari,

Taipu,

Canguaretama, Santa Cruz, Mossoró e Natal no Estado do Rio Grande do Norte. Os critérios para a seleção dos municípios para a participação neste estudo esteve relacionado ao seu grau de cobertura e ao ano de implantação do programa no Estado. Mossoró foi selecionado por ser um município de grande porte, e um dos primeiros a implantar o programa. Considerando os resultados de um programa a partir dos seus níveis de realização, tais como: resultados estritos, efeitos e impactos (DRAIBE, 2001), trabalharemos com o impacto do programa, e utilizaremos como critério de aferição, a análise da efetividade do mesmo (FIGUEIREDO, FIGUEIREDO, 1986). Desenvolvendo e relativizando estes conceitos citados poderíamos dizer que os resultados estritos referem-se ao produto direto dos serviços oferecidos pelo PSF à população beneficiária. Os efeitos, por sua vez, remetem aos resultados derivados dos produtos (resultados estritos) e que tem uma relação causal com o PSF. São mudanças que afetam a população e a equipe de saúde, mas limitam-se ao alcance do programa, e podem ter curta duração. Os impactos são conjuntos de efeitos do programa que extrapolam os limites do mesmo e da comunidade beneficiária (SOUZA, 2012), provocando mudanças de caráter permanente ou significativa na vida das pessoas (ROCHE, 2002). São mudanças mais duradouras e que se refletem em outras áreas ou setores da sociedade. Para identificarmos o impacto, principalmente relacionado à efetividade do programa, partimos deste como as mudanças derivadas dos

três

princípios/diretrizes:

universalização,

integralidade

e

participação social, onde aponte para além das mudanças locais e sobre

a

população

adscrita,

para

tanto

partimos

de

três

questionamentos: (1) o que melhorou na sua vida com o PSF? ; (2) Que mudanças você sugere para melhorar o PSF? e, (3) como você avalia o PSF? A efetividade é um conceito que trata da relação entre os resultados obtidos e os objetivos traçados. Neste trabalho utilizaremos a 1137

efetividade com base na classificação de Figueiredo e Figueiredo, sendo esta: subjetiva (refere-se as mudanças psicológicas, nos sistemas de crenças e valores, e tem a função de aferir a percepção da população sobre a adequação dos resultados objetivos dos programas aos seus desejos, aspirações e demandas) e substantiva (mudanças qualitativa nas condições sociais de vida da população-alvo). (FIGUEIREDO, FIGUEIREDO, 1986, p.116-117). Os sujeitos da pesquisa foram os beneficiários do programa saúde da família em Mossoró. O critério para delimitação da amostra foi a amostragem teórica. Esta trata-se de uma estratégia gradual de construção da amostra a partir do processo de coleta e interpretação dos dados. Os sujeitos escolhidos, considerados representativos para participar do estudo são os usuários/ beneficiários do programa e estes foram selecionados de forma aleatória a partir dos prontuários existentes das unidades de saúde. A delimitação do total de entrevistas deu-se a partir do estudo piloto e de um número que aproximasse da saturação teórica dos dados. (FLICK, 2009, p.58). Foi delimitado um total de 15 questionários por equipe no município de Mossoró, num total de 15 equipes participantes do programa. Como nas unidades de saúde da família temos os prontuários numerados a partir da área e microárea onde a residência situa-se fizemos o sorteio baseado nas informações disponíveis nos prontuários de cada equipe. Os critérios de inclusão na amostra foram: aceitar participar do estudo através da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido; ser membro da família sorteada e ter mais de 18 anos. Os dados foram coletados junto aos usuários a partir de um questionário estruturado, contento perguntas abertas e fechadas. A entrevista com o usuário foi gravada, o que permitiu acrescentar informações importantes que foram colocadas no momento da entrevista. Os dados quantitativos foram tabulados e serão apresentados através de gráficos do programa Excel versão 2010 e analisados sob a 1138

luz da estatística descritiva. Os dados qualitativos foram categorizados e serão apresentados nas seguintes categorias: conhecimento sobre o programa;

mudanças

provocadas

pelo

programa;

e,

por

fim,

mudanças sugeridas para o programa. Estas informações foram analisadas utilizando como suporte teórico o modelo lógico do programa saúde da família. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte em setembro de 2011, sob parecer número 371/2011.

APRESENTAÇÃO E INTERPRETAÇÃO DOS RESULTADOS: O município de Mossoró encontra-se localizado na mesorregião do Oeste Potiguar, sendo a segunda cidade do Estado em população e distante da capital 285Km à noroeste. O município possui uma área de 2.110,21 km², equivalente a 4% da superfície estadual. Possui um índice de desenvolvimento humano de 0,735, sendo o quarto do Estado, e com uma esperança de vida ao nascer de 69,318 anos. A população estimada pelo último Censo do IBGE revelou um total de 259.815 habitantes. A rede de serviços de saúde em Mossoró é composta por 4 estabelecimentos Estaduais, 43 municipais e 68 privados. (IBGE, 2012, IDEMA, 2008). O município iniciou a implantação do PSF no ano de 1998 e em 2011 contava com um total de 61 equipes do programa. As unidades de saúde de Mossoró apresenta uma particularidade comuns aos municípios grandes: a presença de mais de uma equipe numa mesma unidade de saúde. A maioria das unidades localizam-se em sede próprias, com uma estrutura física bastante semelhante, ainda que seja limitada para o número de equipes que a ocupam. Geralmente são duas equipes por unidades, mas chegamos a encontrar 3 ou 4 equipes na mesma unidade. A limitação do número de salas e os demais 1139

espaços físicos são perceptíveis, além da carência de materiais e equipamentos mínimos, assim como a oferta limitada e sempre insuficiente de medicamentos. As unidades não possuem estrutura adequada para o desenvolvimento de atividades em grupo, o que leva os profissionais a buscarem realizar estas ações em equipamentos sociais do bairro, como é o caso das escolas e igrejas. Nas visitas realizadas observamos poucos profissionais nas unidades, carência de médicos em algumas equipes e um trabalho bastante desarticulado dentro das equipes, muitas vezes relatado pelos próprios profissionais. O quantitativo de famílias por equipe é em média de 889,24 famílias/equipe, com o menor percentual de famílias nos PSF da área rural, a exemplo da Unidade Móvel Pux Boi 150 com 246 famílias, e o maior percentual para as equipes da zona urbana a exemplo do PSF Dr. Cid Sal. 115 que possui 1526 famílias. O período de coleta de dados foi de outubro de 2011 a fevereiro de 2012. Em Mossoró foram sorteados 225 prontuários em 15 equipes de saúde visitadas, foram encontrados 185 usuários que compuseram a amostra dos participantes aqui analisados. Deste total obtivemos um perfil onde 93% dos entrevistados foram do sexo feminino, com uma prevalência de idade na faixa etária dos 36 aos 45 anos (21%), seguidos diretamente por aqueles na faixa etária de 46 e 55 anos (18%) e entre 56 e 65 anos (18%). Em sua maioria com ensino fundamental incompleto (47%), seguido daqueles com ensino médio completo (16%). Quanto ao estado civil, 55% dos entrevistados são pessoas casadas e 17% são solteiros. Dos entrevistados 77% residem em casa própria e apenas 20% de aluguel. Destas famílias observamos que apenas 33% recebem ajuda do governo federal e destes 66% recebem acima de 100 reais por mês. A renda média mensal destas famílias gira em torno de 1 salário mínimo na maioria das famílias (54%), as demais perfazem dois salários mínimos (30%), menos de 1 salário mínimo (9%), 3 salários mínimos (6%) e apenas (1%) acima de 4 salários mínimos. Na composição familiar dos participantes observamos que em 61% destas 1140

residências existem crianças e adolescentes na faixa etária de 0 a 14 anos, em 93% existem adultos na faixa etária de 15 a 59 anos e em 35% delas existem idosos ( pessoas acima de 60 anos). Quanto ao tempo de moradia observamos que 68% residem no bairro há mais de 10 anos e 56% utilizam o programa desde que ele foi implantado. A frequência com que eles comparecem ao programa demonstrou que 49% vão raramente e que 43% vão mensalmente. Das famílias entrevistadas observamos que em 50% destas existem pessoas com hipertensão e/ou diabetes, em 14,44% existem crianças menores de 2 anos e em 2,77 existem mulheres grávidas. Dentre os serviços mais procurados estão: consultas (93,88%), vacinação (41,66%), para receber medicamentos (41,11%), e apenas 1,66% para participar de atividades educativas. O grau de cobertura do Programa no município hoje ainda não contempla toda a população, mas já cobre 80% da mesma, o que para um município de mais de 100.000 habitantes é uma realidade aceitável.

Quando analisamos as questões pertinentes ao impacto do programa, observamos que, relativo o grau de satisfação da população para com as equipes do programa é alto, apenas 34% relataram que trocariam sua equipe de saúde por outra. Destes que relataram que trocariam suas equipes, os principais motivos colocados foram: insatisfação com o atendimento médico e/ou insatisfação com o atendimento de outros profissionais e funcionários da Unidade de Saúde. As falas são ilustrativas: O mal atendimento é só do médico, você vai se consultar ele não olha nem procê. Ele passa e não dá nem um bom dia, nem olha pra gente. Já o Dr. Da outra área ele atende super bem. Se a gente vai pedi uma coisa ele faz. Ele atende de uma área e de outra, eu acho que tem que ser assim. (Q.03.123) Horrível o atendimento daí. Você chega pra pegar informação dos dias de atendimento do médico, essas coisas, os agentes de saúde não sabem de nada, o povo da recepção também não. Pra pegar ficha você tem que sair de duas da madrugada pra ser atendido de sete. É horrível. Só são quinze fichas, às vezes você não pega. A ficha pra o dentista é uma

1141

vez por mês dez criança e dez adulto. Você chega lá pra pegar a ficha, você tem qu chegar lá duas da manhã,e às vezes, quando cheguei lá ainda não tinha mais vaga. É horrível essas coisas. Exame é do mesmo jeito, tem que ir bem cedinho de três, quatro horas, aí você marca. É de hoje um mês ai quando você vai crente e achando pra fazer o exame não tem material pra fazer o exame. (Q.03.128)

A principal questão colocada pelos usuários refere-se ao próprio atendimento, seja do médico, seja de outros profissionais/funcionários. A falta de clareza nas informações, a falta de acolhimento nas unidades, a falta simplesmente de educação para atender ao público são as questões mais citadas pelos usuários. No que se refere ao médico a reclamação gira em torno da consulta médica, pelas limitações desta, pelas poucas fichas oferecidas, pelas dificuldades de consegui-las, pela falta de um trabalho mais atencioso e que se volte mais para ouvir o usuário, examiná-lo e conversar. Quando pedimos para que eles avaliassem o programa, observamos que a maior percentagem refere-se ao conceito REGULAR (48%), seguidos do conceito BOM (33%). A referência a ótimo e excelente é muito pequena. Isso sugere que apesar de não querer trocar sua equipe de saúde, muitos encontram dificuldades para atender suas necessidades junto ao programa o que refletem num avaliação não tão boa do mesmo. Gráfico 09 – Avaliação do Programa Saúde da Família pelos usuários em Mossoró-RN Avaliação do PSF pelo usuário - Mossoró/RN 7%

4% 8% Ruim/Péssima Regular

33%

Bom 48%

Ótimo Excelente

Fonte: Dados da pesquisa, 2011.

1142

Em seguida, buscamos compreender os aspectos referentes à efetividade do programa a partir das mudanças observadas pelos usuários na sua vida advindas com o programa. Ainda que alguns reconheçam que a existência de postos de saúde onde antes não tinha melhorou alguma coisa, eles também afirmam que não dá para melhorar a saúde só com estrutura de concreto, é preciso ter pessoas que atendam e que satisfaça as necessidades dos usuários, e isso o município ainda não está conseguindo resolver. Como mudanças advindas pelo programa e que melhoraram a vida dos usuários eles citaram: oferta de serviços para as populações mais carentes e desprovidas dos mesmos, tais como consultas médicas e odontológicas, assim como a presença de postos de saúde mais próximo da residência. Outro ponto também destacado refere-se ao recebimento

de

medicamentos

gratuitos.

Considerando

que

a

população tem uma situação econômica limitada, e as despesas médicas e com medicamentos representam a maior parte do orçamento daqueles que perfazem até dois salários mínimos, o recebimento gratuito e o acesso à consulta ao médico através do sistema

público,

são

melhorias

que

impactam

diretamente

na

qualidade de vida dos indivíduos. Então para os grupos mais idosos, esse tem sido de fato o maior impacto evidenciado. Algumas falas ilustram as situações colocadas anteriormente: Melhorou muito, porque tudo que a gente precisava tinha que ir pra um lugar mais distante. Era mais difícil, eu acho mais fácil. É bem melhor. (Q.03.165) Hoje em dia a pessoa tem mais chance de se consultar, é vacina, é visita do médico. Antigamente era muito difícil pra dar vacina no filho só em campanha de ano em ano, hoje só não vacina quem não quer. Eu vejo aí hoje, eu vejo quando tive meus filhos pequenos, eu ia consultar lá no hospital infantil a pé. Porque as coisas estão mais fáceis. Hoje em dia a mãe só não consulta seu filho, só não é vacinado se ela não quiser. È muito perto. É por isso que eu dou um dez! ”. (Q.03.127) É difícil conseguir uma consulta, mas por mais difícil que seja, a gente consegue. O atendimento não é cem por cento, mas se ele sair daí não vai ser muito bom não”.(Q.03.119) “Pra mim melhorou assim...porque sem posto que nós temos num preciso comprar remédio, tá faltando agora, mas quando

1143

chega eles distribuem pra mim que sou hipertensa. É bom porque é de graça! A gente não pode passar muito tempo sem receber, porque tende a crescer a doença. ”.(Q.03.75)

O que percebemos é que o acesso, por si só melhorou a vida da população, mas existem situações limitantes do atendimento que geram insatisfação e que implicam em pouca efetividade nos resultados do programa. Quando perguntados sobre quais as mudanças eles sugerem para o PSF a fala dos usuários segue no sentido da própria gestão investir mais em recurso materiais e humanos, e nesta última situação ampliando a oferta de médicos. Copiando a experiência, por eles exitosa, das AMEs eles sugerem para o programa um maior aporte de médicos especialistas, maior número de fichas para atendimento e melhoria, principalmente, na consulta destes profissional. Seguem algumas falas: Melhorar o atendimento e os remédios que vem pra dar aos pobres que eu nunca vou lá pra ter, a não ser os de diabetes e os de pressão. (Q.03.144) Queria que atendessem as pessoas (o médico), atendesse mais melhor, desse mais atenção as pessoas, que escutasse melhor os problema. Eu tava ruim aí antes deu terminar de contar o que eu tinha, o médico já passou a receita e pediu pra eu tomar um remédio, antes deu terminar de contar o que eu tinha .(Q.03.75) Mais presença de médico. Pronto, tem a equipe né? Cada um tem sua área né? Aí se a gente vier de outra área eles não querem atender de outra área. Às vezes eu vou pra minha área, mas acontece quando é urgência, passou do horário e não tem médico aí vou pra outro posto que tem dois médicos, mas aí eles num quer atender a gente porque não é dele. (Q.03.61). Primeiro atender as pessoa bem, acho que é tudo que a gente quer, chegar num canto e ser bem atendida e ser respeitado né? Você já sai dali mais animado. (Q.03.177) Era bom que tivesse médico pra cada coisa. Um médico pra tudo eu não boto fé não. E que eles atendam bem a gente, respeite. (Q.03.140)

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Essas falas demonstram onde estão os entraves do programa: seja na oferta limitada de medicamentos, seja no atendimento médico insatisfatório para a população, seja na oferta limitada de consultas médicas e/ou odontológicas. Ou seja, uma vez com o programa implantado naquela região muitas são as condições necessárias para que a efetividade do mesmo aconteça, principalmente, no que tange aos serviços oferecidos. Uma vez que possuir a equipe ou o programa no bairro e no município, por si só, não são suficientes para garantir melhorias efetivas na situação de vida e saúde das populações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS É possível perceber com este trabalho que o impacto mais evidenciado pela população atendida pelo Programa Saúde da Família em Mossoró-RN encontra-se relacionado, sobretudo, a um aumento do acesso ao programa, decorrente da diminuição da barreira geográfica para estes serviços, uma vez que os mesmos são oferecidos em cada bairro, próximo as residências dos usuários. Outro impacto evidenciado refere-se a melhoria nas condições financeiras das famílias a partir da diminuição de despesas do orçamento doméstico com a compra de medicamentos, uma vez que alguns medicamentos de uso contínuo ou esporádico são distribuídos gratuitamente pela rede de serviços através do programa saúde da família. No que tange ao grau de satisfação com o programa de um modo geral os participantes evidenciaram um grau elevado de insatisfação, uma vez que o programa não consegue atender as necessidades de atendimento médico, odontológico e outros serviços que a comunidade necessita, nem consegue ofertar medicamentos em quantidade suficiente para atender a demanda. Ou seja, ainda que tenhamos um programa mais perto da comunidade, a mesma não 1145

consegue disponibilizar estes serviços quando dele necessita, e ainda que tenha uma oferta gratuita de medicamentos, isso também não atinge a todos aqueles que necessitam. Neste sentido, podemos concluir que a efetividade do programa saúde da família deu-se no sentido da ampliação do acesso, ainda que apresente limitações na acessibilidade ao mesmo, porém em outros aspectos como na integralidade e na participação comunitária, a população não identificou mudanças efetivas. Sendo estes aspectos, por sua vez, merecedores de maior atenção por parte da gestão e das equipes do programa a fim de consolidar o programa enquanto estratégia e como porta de entrada para o sistema de saúde municipal.

REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS: ANDRADE, L.O.M.; BARRETO, I.C.H.C.; BEZERRA, R.C. Atenção Primária à Saúde e Estratégia Saúde da Família. In: CAMPOS, G.W.S, et.al (org). Tratado de Saúde Coletiva. 2ª ed. São Paulo-Rio de Janeiro: Hucitec – Fiocruz, 2008. BRASIL, Ministério da Saúde. Avaliação da implementação do programa saúde da família em dez grandes centros urbanos: síntese dos principais resultados. Secretaria de Políticas Públicas de Saúde, Departamento de Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde, 2002, 228 p. BRASIL. Ministério da Saúde. Site oficial: www.saude.gov.br. Acesso em: Setembro de 2010. DRAIBE, S.M. Avaliação de implementação: esboço de uma metodologia de trabalho em políticas públicas. In: BARREIRA, M.C.R.N.; CARVALHO, M.C.B. (orgs) Tendências e perspectivas na avaliação de políticas e programas sociais. São Paulo: IEE/PUC-SP, 2001. IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1. Acesso em: 19 de Maio de 2011. IDEMA. Instituto e Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente do Rio Grande do Norte. Secretaria de Estado e do Meio-ambiente e dos recursos hídricos (SEMARH). Perfil do seu município – MOSSORÓ. V.10, p124, 2008. 1146

FIGUEIREDO, M. F.; FIGUEIREDO, A. C. Avaliação política e avaliação de políticas: um quadro de referência teórica. São Paulo: Instituto de Estudos Econômicos e Políticas de São Paulo – Idesp, n.15, 1986. FLICK, U. Introdução à Pesquisa Qualitativa. 3 ed. Porto Alegre: Artmed, 2006. NOVAES, H.M. Avaliação de programas, serviços e tecnologias em saúde. In: Revista de Saúde Pública. Vol. 34, n. 5, p.547-59, 2000. ROCHE, C. A avaliação de impacto dos trabalhos de OGNs – aprendendo a valorizar as mudanças. 2ª ed. São Paulo: Cortez: ABONG; Oxford, Inglaterra: Oxfam, 2002. SILVA, L. M. V. Conceito,abordagens e estratégias para a avaliação em saúde. In: HARTZ, Z.M.A.; SILVA, L.M.V. (org). Avaliação em saúde – dos modelos teóricos à prática na avaliação de programas e sistemas de saúde. 2ª reimpressão. Salvador/ Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005. SOUZA, L.M. De resultados, efeitos e impacto em avaliação de políticas públicas. Texto apresentado no GIAPP (Grupo Interdisciplinar de Análise e Avaliação em Políticas Públicas), 2012.

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“PORQUE O NOSSO OBJETIVO É A PADRONIZAÇÃO...”: RECONSTITUIÇÃO DO PROCESSO DE ESCOLHA DO LIVRO DE SOCIOLOGIA NA PARAÍBA

Ana Olívia Costa Andrade329 Vinícius Gabriel da Silva330 Dra. Simone Brito Magalhães(Orientador) 331 Dr. Ivan B. Fontes (Orientador) 332

Resumo: A partir da análise dos documentos fundamentais relacionados a implantação da Sociologia no Ensino Médio e do debate em torno da função do livro didático (Orientações Curriculares para o Ensino Médio-Sociologia, Programa Nacional do Livro Didático e o Guia de Livros Didáticos), procuramos comparar os ‘ideais’ presentes nesses documentos com a realidade dos professores de Sociologia nas escolas paraibanas e como se dá o processo de escolha do livro didático de Sociologia, buscando perceber essa escolha como um processo de interação onde emergem e se confrontam diversas concepções da disciplina e percepções sobre sua prática e ensino. Com isso tentaremos compreender a visão que os agentes participantes do processo de escolha têm sobre a Sociologia, suas peculiaridades e dificuldades em sala de aula. Palavras-Chave: Sociologia; PNLD; Livro Didático.

INTRODUÇÃO

A disciplina de Sociologia entrou no currículo do Ensino Médio em caráter obrigatório no ano de 2008, decorrente da Lei n. 11.684/08. Com a referida lei, passou a ser contemplada, em 2011, no Programa 329

Estudante de Graduação em Ciências Sociais (UFPB). [email protected]. Estudante de Graduação em Ciências Sociais (UFPB). Atualmente participa do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação a Docência (PIBID) na área de Sociologia. [email protected]. 331 Graduada em Ciências Sociais (UFPE), Mestra em Sociologia (UFPE) e Phd em Sociologia (Lancaster University). Professora Adjunta (UFPB). Tem experiência na área de Sociologia da Moralidade e Teoria Crítica. Atualmente coordena a área de Sociologia do Prodocência e do PIBID (Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência-CAPES) na UFPB. [email protected]. 332 Graduado em Ciências Sociais (UFS), Mestre em Sociologia (UFS), Doutor em Sociologia (UFPE). Professor Efetivo (UFPB). 330

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Nacional de Livro Didático (PNLD). Neste contexto ocorreu, pela primeira vez, um processo de escolha de Livros Didáticos de Sociologia que, com recurso do Fundo Nacional de Desenvolvimento de Educação (FNDE), o livro escolhido será comprado e distribuído gratuitamente para todos os estudantes da rede pública de ensino (cujas escolas tenham firmado a adesão no Programa com o FNDE para receber o livro no ano de 2012). A distribuição gratuita dos livros didáticos nas escolas públicas, o PNLD, se dá por uma política social do Ministério da Educação (MEC) que visa entre seus objetivos fornecer subsídios materiais ao trabalho pedagógicos dos professores e garantir aos estudantes da rede pública de ensino ao menos um contato com um livro. Segundo as justificativas de implementação deste programa, o livro didático distribuído nas escolas públicas talvez seja o único contato que alguns alunos têm com o mundo dos livros, devido a uma série de problemas de acesso à experiência da leitura. Uma vez que a Sociologia se consolidou como obrigatória no currículo do Ensino Médio, os problemas relacionados ao livro didático passam a ser fundamentais também para esta disciplina. Agora, os debates sobre a existência e elaboração de material didático para auxiliar os professores e alunos em sala de aula precisam também incluir as especificidades do olhar sociológico. Para analisar o caso contemporâneo, esse artigo vai tratar especificamente da escolha do livro didático de Sociologia nas escolas estaduais da Paraíba, destarte que os professores responsáveis pela disciplina, também são responsáveis pela avaliação e escolha do livro. Pretendemos no presente artigo reconstituir como se deu esse processo de escolha do livro didático de Sociologia no citado estado, analisando os fatores determinantes para que essa escolha se concretizasse. Observaremos como os atores envolvidos nesse processo se relacionam e por meio dessa análise, iremos elencar alguns desafios e dificuldades encontrados ao longo desse processo, levando em 1149

consideração as particularidades inerentes à escolha do livro de Sociologia no estado da Paraíba.

REFLEXÃO A RESPEITO DO LIVRO DIDÁTICO DE SOCIOLOGIA

No ano de 2011, foram inscritas quatorze obras de Sociologia no Programa Nacional do Livro Didático para participar da seleção realizada pelo MEC, mas nessa seleção feita pela comissão avaliadora do programa, apenas dois desses livros foram aprovados, ainda que com ressalvas. As maiores críticas referentes a não aprovação dos doze livros descartados pelo programa, consistiam em problemas que decorriam das produções antigas, pois algumas dessas antigas produções foram reformuladas ou reutilizadas nesse processo de avaliação. O Guia de Livros Didáticos de Sociologia 2012 (2011) apontam os seguintes problemas para justificar a não aprovação dessas doze obras: qualidade das referências teóricas conceituais; mediação didática; precariedade do manual de professor e editoração do livro. Com o exposto, percebemos que a formulação de um livro didático de Sociologia, capaz de cumprir o papel estipulado pelos parâmetros curriculares para o ensino de Sociologia no Ensino Médio, as OCEM-Sociologia, o qual indica que a principal função do material didático de Sociologia é despertar nos alunos uma visão de estranhamento e desnaturalização dos fenômenos sociais, através de um pensar sociológico articulado entre conteúdos, temas e conceitos das Ciências Sociais, jamais foi cumprido. A formulação de um livro didático de Sociologia ideal aos parâmetros curriculares e critérios de avaliação do MEC, ainda não foi totalmente alcançada. Em entrevista ao grupo de pesquisa sobre material didático de Sociologia em Outubro de 2011, um dos membros da equipe avaliadora dos livros didáticos de Sociologia inscritos no PNLD, afirmou que: 1150

Não vou me eximir de dizer para vocês, que em alguns momentos a equipe quase que não aprovaria nenhum livro. Depois a gente reviu os livros, e de fato, os dois que foram aprovados com a chancela do programa, depois vocês vão analisá-los, “um contém uma proposta pedagógica ousada, e o outro tem uma estrutura que abrange um conjunto de temas clássicos da sociologia e que tem um cuidado com os conceitos” (grifo nosso). Falta a discussão sobre os negros, sobre gênero, tem uma série de lacunas nos livros, mas também nunca teremos um livro que contemple tudo, isso a gente não pode esperar mesmo. (Membro da equipe avaliadora dos livros didático, 2011)

Percebe-se nessa fala que formular um livro didático para a Sociologia que contenha todos os fundamentos referente a disciplina é uma tarefa inalcançável, além disso, os livros precisam acatar os critérios estipulados pelo MEC, que corroboram as OCEM - Sociologia. Segundo o Guia de Livros Didáticos de Sociologia 2012 (2011) os livros podem agir em três esferas nas escolas públicas: na esfera didáticopedagógica, política e social. Na esfera didática pedagógica, o livro poderá impulsionar os alunos a estranhar e desnaturalizar o mundo em que vivem. Na esfera social o livro didático garante, para uma parte significativa dos estudantes da rede pública de ensino, ao menos um contato com um bem cultural. Na esfera política, o livro sendo distribuído gratuitamente nas escolas públicas, pode contribuir para a melhoria da qualidade na rede pública de ensino do país. O livro didático de Sociologia também precisa garantir: a presença das três áreas das Ciências Sociais (Ciência Política, Sociologia e Antropologia); rigor científico, temático e metodológico dos estudos clássicos e recentes das Ciências Sociais; uma didática eficiente, para que o aluno seja capaz de analisar e refletir sociologicamente o mundo social; e que o professor seja auxiliado pelo livro em suas aulas, porém, que tenha sua autonomia resguardada. Então mais uma vez é válido ressaltar que, pensar um livro didático de Sociologia que corresponda a todos os critérios expostos acima não é algo simples e que, mesmo com uma produção de livros didáticos de 1151

Sociologia remanescentes de décadas passadas até os dias atuais, não podemos afirmar que exista um livro perfeitamente adequado e que contemple todos os fundamentos da disciplina em si, correspondendo a todas as exigências das diretrizes curriculares, tampouco poderíamos afirmar que ainda que este livro didático completo que correspondesse a todas essas exigências existisse, poderia ser considerado como um Livro Didático Ideal de Sociologia que seria capaz de suprir a pluralidade das perspectivas sociológicas. ELEMENTOS QUE DETERMINARAM A ESCOLHA DO LIVRO DIDÁTICO DE SOCIOLOGIA NA PARAÍBA Não há intenção neste artigo de apontar qual é o livro mais adequado para ser utilizados pelos docentes e quais as editoras que se beneficiam, ou não, diante do processo. Sendo assim utilizaremos nas análises e nos relatos, os códigos: para editoras “A” e “B”; autores “X” e “Y” e demais letras para outros agentes, quando mencionarmos as relações mantidas pelo MEC, Secretaria da Educação, editoras, professores e escolas. Além disso, é importante ressaltar que as editoras não podem utilizar o espaço escolar para fazer a divulgação de suas obras no período que se inicia o processo de escolha, que vai de 21 de Março de 2011 até 12 de Junho do mesmo ano segundo o próprio Guia de Livros Didáticos, na parte referente aos compromissos da escola, conforme a portaria normativa Nº 7, de 5 de Abril de 2007. Porém, as editores podem divulgar seus livros em outros locais, sem ser no espaço escolar. Um dos problemas apontados pelos professores (as) durante o processo de escolha do livro de Sociologia foi o atraso para ter o acesso às obras selecionadas e aprovadas pelo MEC, tal atraso fez com que os mesmos tivessem dificuldades para realizar uma leitura comparativa dos livros indicados pelo Guia de Livros Didáticos, em tempo hábil. Os docentes entrevistados apontam para o favorecimento da editora “A”, 1152

quando se é perguntado como foi o processo de escolha, por ter pouco contato com o livro da editora “B”, como é mostrado a seguir: Professor (a) “M”: Esse processo se deu assim: só uma editora entregou o livro, foi uma semana para poder escolher. A editora do autor “X”, que eu esqueci qual é, enviou. Foi à coordenadora pedagógica que já chegou com o livro e já me deu. Foi àquela correria de começo de ano, então ela chegou com o livro. Eu nem conversei com editora nem nada. Três dias depois chega o livro da editora “B”, se eu não me engano. Acho que foi coisa de dois dias antes de entregar a resposta do livro, e a isso somamse várias coisas ocorrendo, ver carga horária e tudo mais. Resultado: tive mais tempo de ver o do autor “X”. Então tinha ligado para três colegas professores de Sociologia, eu perguntei se tinha chegado algum livro de Sociologia. E eles disseram: Não, só o “X” mesmo, e é excelente. Então eu já tava determinada... Dois dias antes de dar o resultado chega o representante da editora “B” com o livro e com o guia didático, e só me entrega. A coordenadora diz: “dê uma olhada com carinho, porque esse livro é muito bom”. Eu dei uma olhada e tem imagens de Charles Chaplin [...] Então eu liguei pros meus colegas e disseram não! É o autor “X”! Porque o nosso objetivo é a padronização, então vamos fechar com o autor “X” [...] Liguei para minha outra colega e ela disse: “mas aqui não chegou, por sinal ele só chegou à escola “F” depois da solicitação, porque essas coisas têm prazos né?” [SIC] Então ficou só “X”, mas eu gostei muito de “Y”. Teoricamente foi uma semana, mas como o livro do “X” chegou antes, não teve uma escolha. Então essa questão do livro didático deveria ter mais atenção na parte pedagógica, mas a educação, vocês sabem que não tem nada de prioridade, não é? E continua... O maior problema é a questão dos prazos. É muito fria e burocrática, porque você tem que escolher o livro no prazo certo. Como você vai dar uma estudada? Pêra aí [sic] deixa ver o que esse livro tem para oferecer. O problema são os prazos que a secretaria impõe, e que você tem que entregar. Então isso prejudica demais, se eles entregam em cima da hora como você tem tempo de estudar?(Professor (a) “M”)

É perceptível na fala do (a) entrevistado (a), que os livros chegam muito tardiamente nas mãos dos professores, impedindo-os assim, de fazer uma escolha pautada no projeto que cada livro representa de fato. Tendo em vista que possíveis problemas externos possam atrapalhar o momento da escolha, acaba-se tendo um tempo reduzido 1153

na hora em que o professor opta pelo Livro “A” ou “B”. Percebe-se também, que há uma crítica relativa ao trabalho da secretaria da educação, responsável por coordenar esse processo de escolha. O entrevistado (a) alega que o tempo imposto pela Secretaria de Educação é muito curto, o que nós remete a entender que há uma falha de comunicação entre a escola e esse órgão, pois assim que se inicia o processo (de 21 de Março de 2011 até 12 de Junho do mesmo ano), o Guia de Livros Didáticos fica disponível na internet no portal do FNDE e, também é entregue nas escolas pela Empresa de Correios e Telégrafos – CORREIOS. Com isso, vemos que os docentes entendem que têm apenas uma semana para avaliar o material e concretizar a escolha, percebemos então uma falha de comunicação com a Secretaria, que é responsável por assessorar as escolas nesse processo. Sobre o contato com os livros em si, fica a cargo das editoras promoverem a divulgação do material, mas essas não podem ter contato direto com o ambiente escolar durante o processo. Torna-se claro na fala acima, que as editoras estiveram na escola, torna-se claro também, que o (a) entrevistado (a) desconhece que segundo o PNLD, não se deve ter contato com as editoras na escola, se deve usar o Guia, que porta as resenhas e análises dos dois livros, como respaldo para a escolha. O (a) entrevistado (a) aponta a chegada de um livro antes do outro como fundamental para a sua escolha, alegando que de fato não existiu uma escolha, pois foi restringido (a) a ficar com o material que ele (a) teve acesso mais cedo (de forma divergente do que normatiza a portaria Nº 7, de 5 de Abril de 2007), além de se pautar nas escolhas de outros colegas, com o intuito de padronizar o mesmo livro em algumas escolas. Quando é indagado (a) sobre a política do livro didático e seus desafios, o (a) mesmo (a) aponta: “O maior problema é a questão dos prazos. É muito fria e burocrática...”. Entendemos o processo de escolha, além de uma maneira técnica de se concretizar uma política social vigente, como no caso do PNLD. Vemos o livro, sobretudo o de 1154

Sociologia, como mais uma forma de auxílio para o trabalho dos professores e para aprendizagem dos alunos, não apenas como uma ferramenta obrigatória devido a uma política do Governo, que requer a realização dessa escolha de forma, como mencionado pelo (a) entrevistado (a), burocrática e fria, que precisa responder ao tempo, de maneira técnica, deixando para segundo plano a averiguação referente a qualidade didático-pedagógico e dos fundamentos da área de referência. A mesma problemática pode ser vista com o (a) professor (a) “J” que alega ter sua escolha reduzida pelos atrasos das editoras na entrega dos livros. A princípio teve contato com a obra da editora “A” quando menciona o nome do autor diversas vezes,

333

e tentou solicitar a vinda

da outra, porém, só entrou em contato com o livro da editora “B” após o fim do processo de escolha, tudo isso somada a falta de acesso ao Guia de Livros Didáticos de Sociologia, que como já foi explicitado anteriormente, é tido como a principal ferramenta que possibilita ao docente conhecer o processo de avaliação dos livros de Sociologia e, em certa medida, tomar contato com parte das obras, tendo em vista que o Guia de Livros Didáticos contém as resenhas dos livros aprovados. Podemos perceber a partir do depoimento do (a) professor (a) “J”: Então, eu já conhecia o livro de “X”. Um colega meu aqui da escola “L” me apresentou o livro e eu passei a utilizá-lo. Em vez de utilizar o livro de outro autor, eu já usava os textos do livro de “X”; tirava cópias e passava os textos para os alunos. Havia esse outro livro aqui (apontado para o livro que estava em cima da mesa), da editora “B”, que eu também gostei bastante. No entanto, quando vieram me apresentar disseram que iam mandar o material, mas não chegou a tempo da escolha e o guia não chegou aqui na escola “L” [...] Então houve de fato um privilégio do livro de “X”, por conta do atraso desse outro livro da “B”. Basicamente foi isso, uma falha da editora, por que eu gostei das questões, dos textos, da forma de trabalhar. Mas eles, por falta de organização mesmo não me enviaram o material, e eu não conhecia o livro [...] E aí, infelizmente não pude fazer essa escolha! (Professor (a) “J”)

333

O nome do autor “X” foi lembrado demasiadamente pela maioria dos entrevistados.

1155

Ficou perceptível na fala da maioria dos (as) entrevistados (as) que o tempo em que os mesmos entram em contato com o guia ou livros, quando entram, para fazer a escolha não é suficiente para fazer uma análise mais ampla do material, divergindo assim da proposta do MEC, na tomada de decisão relacionada à escolha do livro didático democraticamente. Além dos problemas analisados anteriormente, os professores que lecionam Sociologia, possuem em sua maioria, formação em outras áreas, – grande parte em História ou Geografia – e também lecionam as mesmas. Com isso, além desses terem que analisar e fazer a escolha do livro de Sociologia, também fazem a escolha dos livros referentes as suas áreas de formação. No caso da Sociologia, a escolha se deu entre duas obras, já que a disciplina foi contemplada pela primeira vez pelo PNLD em 2011, as outras disciplinas que fazem parte do programa há mais tempo, possuem vários livros de várias editoras para que os professores avaliem e escolham. O grande impasse neste processo é que os professores ficam sobrecarregados para analisar a quantidade de livros que lhes compete, fazem escolhas em um curto período de tempo e, de acordo com a maioria dos entrevistados nesta pesquisa, tiveram apenas uma semana para fazer a análise dos livros de Sociologia, juntamente com os livros de outras disciplinas que lecionam. Além dos contratempos que ocorreram em muitos casos, a exemplo, que determinado livro chega às mãos dos professores cerca de pouco menos de três, ou até mesmo dois dias antes de se fazer a escolha formalmente. Essa sobrecarga de livros para serem avaliados nesse período demasiadamente curto implica na análise e escolha. Como pode ser constatado na fala a seguir: Professor “R”:

1156

Em relação ao tempo pra escolher o livro, é muito pouco. Pelo volume de livros que a gente recebe, o tempo é muito pouco para escolher e agora que não tem volume único, são livros dos três anos, tirando a Sociologia que é volume único, mas no meu caso que sou professor de historia também, foram dez volumes de livros para avaliar de cada ano: primeiro; segundo e terceiro ano. Se você fizer as contas é cerca de trinta livros só de História, fora os dois de Sociologia, como é que eu vou ter tempo para avaliar?

Tendo em vista que o livro didático, no caso da educação brasileira, é usado como principal ferramenta para orientar o trabalho do professor em sala de aula, a escolha do mesmo torna-se importantíssima. Essa escolha não pode ser feita de maneira apressada, pois no final desse processo, os critérios que se tornam decisivos para sua escolha (segundo o professor “R”) são basicamente os conteúdos dos livros, o que faz com que outros pontos como critérios de caráter didático-pedagógico, fundamentos das áreas de referências, passem despercebidos. Como pode ser visto na citação abaixo: Professor “R”: Como o tempo para avaliação do livro é pouco, a gente acaba avaliando mais o conteúdo, porque toda vez que se avalia um livro se vê o aspecto dos conteúdos e outros aspectos como de metodologia, mas como o tempo acaba sendo curto o “lado pedagógico” acaba ficando prejudicado e o que é analisado é só a parte dos conteúdos.

Podemos pontuar nessas falas uma questão que julgamos importante, no que diz respeito à formação do professor responsável pela escolha dos livros. Temos dificuldades em compreender como um profissional, sem formação na área de Ciências Sociais, conseguirá atentar para os critérios necessários a disciplina. Não entendemos como alguém que não passou por um processo de formação na área de Ciências Sociais, pode julgar os conteúdos dos livros de Sociologia, os aspectos metodológico, a didática, a forma de abordagem dos autores aos temas, os diversos fundamentos da Sociologia e ainda a proposta das OCEM-Sociologia para o Ensino Médio. A maioria dos 1157

professores que fazem a escolha do livro didático de Sociologia não é formada na área e atuam em outras disciplinas, o que implica além de certa ineficiência relacionada ao conhecimento das particularidades da Sociologia para escolha do livro, que eles também têm que escolher os livros das outras matérias que lecionam, fazendo isso em pouco tempo e consequentemente prejudicando a qualidade da escolha. Além do que já foi mencionado, percebemos nas falas dos docentes outras justificativas que foram utilizadas para a escolha do livro didático. Tais justificativas despertou nossa atenção, pois, vemos a escolha do livro didático como um processo que requer critérios minimamente rígidos, já que a distribuição de livros é uma política social do Governo, que além de envolver uma quantia significativa em recursos financeiros, propõe um aumento de qualidade na educação pública do país. Ao entrevistar alguns professores (as), nos deparamos com uma série de razões distantes dos critérios necessários para a escolha do material, critérios esses, que já mencionamos anteriormente. Deparamonos com as seguintes razões para escolha: editora mais conhecida no mercado; autor renomado; opiniões de colegas de profissão e houve caso que o professor não lembrou que critério usou para escolher o material, afirmando ter escolhido um livro de capa branca, que a proposito não existe entre os dois livros aprovados para o processo. Vejamos nos relatos a seguir: O próprio autor me explicou como tinha sistematizado o livro dele [...] além do próprio autor ter me mostrado, ter colocado, e eu ter participado com este autor de vários congressos (Professor (a) “P”, referente ao autor do livro da editora “A”).334 Vários amigos meus escolheram o autor “X”, aí eu escolhi também. (Professor “I”, referente ao autor do livro da editora “A”).

2

Para fins de esclarecimento, não vemos problemas em os professores interagirem com autores dos livros, participarem de eventos, ou coisas afins. Isso até denota certo interesse em relação à discussão. Porém, é perceptível nessa fala que o nome do autor, a pessoa do autor e a relação do (a) entrevistado (a) com o autor foi determinante para a escolha, podendo até ter resultado, em certo distanciamento, ou até mesmo, desinteresse de ter contato com a outra obra.

1158

Não me lembro muito bem qual o livro eu escolhi, acho que foi um que tinha a capa branca (Professor “S”). Eu escolhi a editora “A” porque ela está no auge, eu a escolhi também na disciplina de História (professor “D”).

Vemos então nas falas, que algumas escolhas não consideraram o auxílio do Guia de Livros Didáticos, ou por não ter acesso, ou por não ler, pois, em algumas entrevistas pudemos presenciar Guias ainda lacrados nas estantes. Percebe-se então, em certa medida, que não houve da parte de alguns docentes, certo comprometimento e seriedade com o processo de escolha do livro. Ainda que alguns professores responsáveis pela escolha do material, não tenham formação na área de Sociologia, existe o Guia para orientar a escolha, que tem critérios mais consistentes do que as razões que esses professores usaram para escolher o livro, critérios esses pautados nos documentos que normatizam a disciplina no Ensino Médio. Não recorreram ao Guia, tampouco o problematizaram, utilizaram de justificativas que consideramos insólitas e sem teor crítico para tal escolha. Isso nos mostra, que os citados docentes podem não compreender como esse processo de escolha de livro é importante, principalmente no momento atual, onde está se discutindo a importância do material didático, sobretudo de Sociologia, que entrou recentemente no PNLD. Os professores são os principais agentes que podem vim a contribuir com esse processo, seja criticando ou dando sugestões para possíveis melhorias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo da pesquisa notamos lacunas existentes entre o que sugere o Programa Nacional de Livros Didáticos e a implementação dessa política nas instituições educacionais públicas da Paraíba. Vejamos: a política sugere que o professor se paute nos Guias, que 1159

muitas vezes não chegam pelos correios e alguns que chegam não são lidos – ainda que o Guia se encontre disponível no portal do FNDE, vimos nas falas dos professores a ausência do conhecimento desse fator, também é válido lembrar que o acesso a internet não é amplamente inclusivo –; os professores procuram conhecer as obras, mas só a editora mais renomada, que produziu o livro do autor mais conhecido no mercado consegue distribuir os livros com maior facilidade; a Secretaria que teria o papel de coordenar o processo, assim como assessorar e monitorar, tem uma participação mínima conforme as falas dos (as) entrevistados (as), participação apenas de informar prazos (porém, havendo disparidades entre os prazos que a Secretaria dispõe e os prazos que os professores entendem que têm para a escolha, o que sugere falhas de comunicação), podendo comparecer mais se receber algum tipo de denúncia a respeito do mau andamento do processo nas escolas. Como vimos nas entrevistas, houve quem nem se lembrasse do motivo que levou a escolha do livro. O MEC não problematiza e nem conhece os determinantes para a escolha do livro, tornando um processo mecânico, técnico, desprovido de reflexão e sujeito a falhas. Especificamente no caso da Sociologia a política nos parece um paliativo, pois a recente incorporação da disciplina no Ensino Médio traz problemas que vão além da discussão do material didático, a exemplo, o problema de falta de formação da maioria dos docentes de Sociologia na área de Ciências Sociais, o que tem um peso considerável no processo de escolha do material didático de Sociologia, que requer um conhecimento específico da área de referência. A falta de uma maior interação entre as instâncias envolvidas no processo de escolha do livro didático de Sociologia põe em xeque o funcionamento desta política educacional, dificultando possíveis melhorias na educação brasileira.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS COSTA, R.C. R. da e OLIVEIRA, L.F. de. “Material didático, novas tecnologias e ensino de sociologia”. In. A sociologia vai à escola. HANDRAS, A. e OLIVEIRA, L.F. de.(Orgs.).Rio de Janeiro: Quartet: FAPERJ, 2009. PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS (ENSINO MÉDIO),“ Parte IV Ciências Humanas e suas Tecnologias” Disponível em http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/cienciah..pdfhttp://portal.m ec.gov.br/seb/arquivos/pdf/cienciah.pdf. MEUCCI, S. . Institucionalização da sociologia no Brasil: primeiros manuais e cursos. 1. ed. São Paulo: Hucitec: Fapesp, 2011. MORAES, A. C. “Parecer sobre o ensino de filosofia e de sociologia”. In. Mediações, Londrina, v. 12, n. 1, p. 239-248, jan/jun. 2007. SILVA, Luciana F. S. “Fundamentos e metodologias do ensino de sociologia na educação básica”. In. A sociologia vai à escola. HANDRAS, A. e OLIVEIRA, L.F. de.(Orgs.). Rio de Janeiro: Quartet: FAPERJ, 2009. SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do Trabalho Científico. São Paulo: Cortez, 2007.

1161

A REPRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA SOCIOLOGIA NA VISÃO DOS DISCENTES DA ESCOLA ESTADUAL DE ENSINO MÉDIO ESCRITOR JOSÉ LINS DO RÊGO, JOÃO PESSOA - PARAÍBA

Emannuella Santana Vieira 335 Rigel Marinho Pimenta336 Profª Drª Simone Magalhães Brito337

Resumo: A presente pesquisa surgiu das observações em sala de aula realizadas enquanto bolsistas do Projeto PIBID de Sociologia na Esc Est Esc José Lins do Rêgo, João Pessoa- PB no período entre 2010 e 2011 com o objetivo de compreender as representações da disciplina Sociologia para os discentes do ensino médio. A partir do entendimento das representações sociais e dos questionamentos levantados quando da implantação da disciplina no currículo escolar e com o auxílio da técnica do grupo focal podemos verificar como se organiza as representações da disciplina para os discentes das turmas do 2º e 3º ano do ensino médio. Encontramos a corroboração do que observamos ao longo do projeto, ou seja: uma grande falta de interesse dos discentes pela disciplina Sociologia, do que ela pode oferecer para suas formações e de que forma ela contribui para suas futuras vidas profissionais. Palavras-Chave: Ensino de Sociologia; Representação Social; Ensino médio

INTRODUÇÃO No ano de 2009 teve início a implementação da disciplina Sociologia nos currículos das escolas regulares brasileiras e a partir de então foram estabelecidas suas normas, diretrizes e as especificações legais próprias ao desenvolvimento da disciplina. O processo de inserção da Sociologia no currículo do ensino médio se deu a partir da Resolução nº 01 de 15 de Maio de 2009 e da Lei nº 11.684 / 2008, que, dentre outras determinações, sugere em seu Art. 3º que os [...] sistemas 335

Graduada em Ciências Sociais (UFPB), Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia (UFPE). [email protected]. 336 Estudante de Graduação em Ciências Sociais (UFPB) [email protected]. 337 Graduada em Ciências Sociais (UFPE), Mestra em Sociologia (UFPE) e Phd em Sociologia (Lancaster University). Professora Adjunta (UFPB). Tem experiência na área de Sociologia da Moralidade e Teoria Crítica. Atualmente coordena a área de Sociologia do Prodocência e do PIBID (Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência-CAPES) na UFPB. [email protected].

1162

de ensino devem zelar para que haja eficácia na inclusão dos referidos componentes,

garantindo-se,

além

de

outras

condições,

aulas

suficientes em cada ano e professores qualificados para o seu adequado desenvolvimento. Foi somente com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 que as reflexões da Sociologia finalmente passam a compor o rol dos conhecimentos integrantes do currículo do ensino médio. Em seu artigo 36, § 1º, Inciso III há a determinação de que ao fim do ensino médio, o educando deverá apresentar domínio de conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania. A mesma LDB indica os quatro objetivos do ensino médio: prosseguimento de estudos, preparação para o trabalho, aprimoramento da pessoa humana (formação

ética,

autonomia

intelectual,

pensamento

crítico)

e

compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos (teoria e prática). Há algum tempo a Sociologia vem sendo reintroduzida como disciplina nas escolas de ensino médio brasileiras. Uma “nova” disciplina tanto para alguns professores como para a maioria dos alunos. Nesse sentido, professores e, principalmente, os alunos estão sentindo dificuldades com a metodologia de ensino apresentada para essa disciplina. Os professores têm dificuldade de identificar estratégias de ensino e como os alunos irão entender os processos sociológicos. Se deparam então com a estigmatização da representação dessa disciplina para os alunos. Os alunos, como estão, em sua grande maioria, se confrontando com algo novo, querem entender para que serve a Sociologia. Com o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) originário do Programa da CAPES e desenvolvido pela Universidade Federal da Paraíba, participamos, durante os anos de 2010 a 2011, do Projeto PIBID Sociologia. No transcurso de nossas observações das aulas minstradas na Escola Estadual de Ensino Médio Escritor José Lins do Rêgo, surgiu o interesse de estudarmos as representações sociais 1163

acerca desta disciplina, que neste moemento encontra-se ainda em fase de implantação nas escolas brasileiras de ensino médio. A preocupação com estas representações da Sociologia surgiu devido à percepção do desinteresse dos discentes pela disciplina. Buscamos entender como a falta de professores da área nas escolas, a falta de planos de curso e planejamento, além do tempo exíguo das aulas de Sociologia, possibilitaram a construção de representações da disciplina que estariam interferindo no seu processo de compreensão. A partir das observações realizadas na Escola Estadual Escritor José Lins do Rêgo e das leis estabelecidas pelo Governo Federal para a disciplina Sociologia, o presente artigo foi em busca de compreender a representação da disciplina Sociologia para os discentes das turmas do 2º e 3º anos do ensino médio que estão assistindo as aulas da disciplina há dois e três anos consecutivos. A pesquisa se justifica pelo fato da Sociologia está sendo reimplantada nas escolas de ensino médio brasileiras, surgindo com uma nova perspectiva da política educacional voltada para a formação da cidadania. O molde que orienta esta implantação assume um caráter de política pública, onde decreta-se a obrigação de sua implantação sem que haja subsídio físico e humano que garantam a qualidade do desenvolvimento das aulas pelas escolas, principalmente, da rede pública de ensino que se encontram em defasagem perante as de ensino privado. Para pensarmos a representação que a Sociologia possui atualmente nas escolas de ensino médio, nos voltamos para alguns autores que procuraram entender o papel da escola, a forma como sua representação contribui para a visão de mundo dos indivíduos, a internalização e incorporação de símbolos ou valores que a escola e a educação impõem sobre os indivíduos. Como coloca Berger e Luckmann (1998) a compreensão de uma realidade que constitui a matéria da ciência empírica da Sociologia, a saber, o mundo da vida cotidiana, apresenta-se como uma realidade 1164

interpretada pelos homens e subjetivamente dotada de sentido para eles na medida em que forma um mundo coerente. A partir do entendimento que os discentes fazem de seu mundo cotidiano podemos verificar as representações que possuem sobre a Sociologia, a escola, o mundo do trabalho e os concursos vestibulares (PSS) e exame nacional do ensino médio (ENEM). Para compreendermos as representações da disciplina Sociologia nesta escola, adotamos a técnica do grupo focal onde podemos verificar empiricamente o que os discentes compreendem a respeito da matéria. A partir da coleta dessas informações identificamos e compreendemos o grau de percepção adquirido pelos discentes sobre a disciplina. Foram escolhidas as turmas do 2º e 3º anos do ensino médio, discentes de ambos os sexos, convidados aleatoriamente para participar da pesquisa. Consoante Maria Gomes e Eduardo Barbosa (1999, p.01)

um

grupo focal é um grupo de discussão informal e de tamanho reduzido, com o propósito de obter informações de caráter qualitativo em profundidade. É uma técnica rápida e de baixo custo para avaliação e obtenção de dados e informações qualitativas cujo objetivo principal é revelar as

percepções

dos

participantes

sobre

os

tópicos

em

discussão,no nosso caso, verificar as representações sobre a Sociologia, a escola, o vestibular e o mundo do trabalho. O grupo deve ser composto de 7 a 12 pessoas. As pessoas são convidadas para participar da

discussão

sobre

determinado

assunto

e

normalmente,

os

participantes possuem alguma característica em comum, nesta pesquisa, são todos estudantes do ensno médio que cursam a matéria Sociologia a pelo menos dois anos consecutivos.

A REPRESENTAÇÃO SOCIAL

1165

De acordo com Leontiev (1978) apud Franco e Novais (2001, p.173) as representações sociais são comportamentos em miniatura que apresentam um caráter preditivo, ou seja, permitem, a partir do que o indivíduo diz, inferir suas concepções de mundo e, também, deduzir sua orientação para a ação. Diante disto, pensar a representação da Sociologia nas escolas é pensar além do contexto do interior dos “muros” da escola. As questões que implicam a sua atual representação são indagações que ultrapassam o ambiente da “sala de aula” e que envolvem não só diversas relações sociais, como também as interpretações da vida social e seus problemas. Assim, a partir das observações realizadas no âmbito do Projeto PIBID de Sociologia nas escolas participantes na cidade de João Pessoa, nos questionamos sobre como a representação da disciplina era construída e de que forma poderíamos verificar empiricamente esta construção. O estudo da representação social proporciona uma visão geral sobre o que os indivíduos pensam e sabem sobre os mais diversos objetos da vida cotidiana. Conforme Maria Franco e Glaucia Novais (2001, p.172):

Sabe-se que as representações sociais são elementos simbólicos que as pessoas expressam mediante o uso de palavras e gestos. No caso do uso de palavras, utilizando-se da linguagem oral ou escrita, as pessoas explicitam o que pensam, como percebem esta ou aquela situação, que opinião formulam acerca de determinado fato ou objeto, que expectativas desenvolvem a respeito disto ou daquilo e assim por diante.

A definição de representação social apresentada por Denise Jodelet (2001, p. 22) reforçam essas opiniões. Segundo a autora: …é uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social. Igualmente designada como saber de senso comum, ou ainda, saber ingênuo, natural, esta forma de conhecimento é diferenciada, entre outras, do conhecimento científico.

1166

O conceito de representação social encontra na Psicologia Social uma definição apresentada por Serge Moscovici (1978, p. 49) onde …a representação social é uma preparação para a ação, ela não o é somente na medida em que guia o comportamento, mas sobretudo na medida em que remodela e reconstitui os elementos do meio ambiente em que o comportamento deve ter lugar. Ela consegue incutir um sentido de comportamento, integrá-lo numa rede de relações em que está vinculado ao seu objeto, fornecendo ao mesmo tempo as noções, as teorias e os fundos de observação que tornam essas relações estáveis e eficazes.

Mary Spink (1995, p. 08) relata que as representações são essencialmente dinâmicas; são produtos de determinações tanto históricas como do aqui-e-agora e construções que têm uma função de orientação; conhecimentos sociais que situam o indivíduo no mundo e, situando-o, definem sua identidade social – o seu modo de ser particular – produto de seu ser social. A experiência vivida pelos discentes em sala de aula com a disciplina Sociologia organiza seu entendimento em relação ao seu uso social e estabelece as ligações futuras que seus conceitos poderão ser utilizados em sua vida cotidiana.

GRUPO FOCAL E OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE NO PROCESSO DE IDENTIFICAÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS A partir do grupo focal encontramos algumas as respostas para os questionamentos levantados em nossa hipótese. Realizamos quatro grupos focais onde podemos observar as relações e visões sobre a Sociologia, bem como, sobre a educação como um todo. Encontramos a corroboração do que observamos ao longo da execução do projeto, ou seja, uma grande falta de interesse dos discentes pela disciplina Sociologia, do que ela pode oferecer para suas formações, do que realmente possa contribuir para suas vidas profissionais. 1167

As representações altamente estruturadas que Moscovici nos chama atenção, pois podem ser observadas em escolas de ensino médio, como foi apresentado na Escola Estadual Escritor José Lins do Rêgo no ano de 2010 e 2011. Um exemplo dessas representações partilhadas pelo grupo foi o maior interesse dos alunos por uma capacitação profissional no qual o retorno econômico maior fosse atingido com maior facilidade, ou seja, a representação neste caso se caracteriza como um guia para este grupo de alunos. A desvalorização dos diplomas, na medida em que diminui a sua rentabilidade no mercado de trabalho, aumenta os níveis de frustação de uma maioria social que mantém com a escola uma relação fundada na “utilidade” dos estudos, em termos da obtenção de um estatuto social e rendimentos elevados (CANÁRIO, 2005, p. 84).

Organizamos a análise tendo como base quatro parâmetros onde estabelecemos ligações com as falas dos discentes obtidos nos grupos focais. Parâmetro 1 – Expectativas dos discentes sobre a Escola

Qual o objetivo da escola?

53% - Preparação para o vestibular 39% - Preparação para o mercado de trabalho 8% - Formação de cidadania

Quando perguntados para que serve a escola as respostas obtidas da grande maioria foi a de que ela servia para preparação para o vestibular. E logo depois a afirmação que também servia para o 1168

ingresso no mercado de trabalho. E por último a escola teria a função de preparar os indivíduos para o exercício da cidadania.

Esta

preparação para o vestibular não exclui o mercado de trabalho, porém eles entendem que a formação superior é o caminho para um melhor posto empregatício, ou seja, eles entendem que a formação de ensino médio não é suficiente para dar-lhes uma autonomia financeira, assim a escola sob seus olhares não deixa de preparar para o mercado de trabalho, mas prioriza uma formação que lhes dêem uma oportunidade de terem um curso superior e futuramente empregos melhores, esta é para eles a principal função da escola. Vejamos suas falas: Discente M- a educação é necessária né?! Por que qual a profissão hoje que não precisa de educação? A pessoa que não teve a oportunidade de estudar geralmente são as que não tem onde morar, que “tá” na rua, isso foi o que? A falta de educação. A gente precisa ter uma boa educação pra ter um futuro melhor. Discente L - ela (educação) é o caminho pra entrar num curso superior e ter a sua profissão. Discente V– eu acho que a sociedade impõe mais pra formar por etapa tipo: a escola, a faculdade aí você arruma uma profissão é assim por etapas.

O resultado do gráfico acima mostra que 53% entendem que a escola tem a prioridade de preparação para o exame vestibular, ou seja, existe para eles um distinção entre formação para o mercado pósensino médio e formação pós ensino superior. Poucos discentes discordam sobre o papel da escola na preparação para o trabalho e acreditam que ela forma o aluno para o vestibular ou Enem. Quando perguntados se a escola prepara para o mundo do mercado do trabalho, assim responderam: Discente P - Eu acho que a escola não ta preparando a gente pra isso não, a escola ta preparando a agente pra entrar na universidade e fazer um curso. Discente A -Preparação para o ensino superior.

Podemos perceber que existe um preocupação dos discentes com o futuro profissional deles, o qual está ligado à escola, embora eles mesmo entendam em parte que a formação final de suas capacidades 1169

profissionais irá se dar no ensino superior. Assim eles entendem que a escola prepara para o mercado de trabalho mas que prioriza este via ensino superior, ou seja, deixa esta responsabilidade para as instituições de formação superior. Parâmetro 2 – Grau de importância das disciplinas

Disciplinas mais importantes sob o olhar dos discentes 67% - Português 28% - Matemática 5% - Sociologia

Diante dos objetivos que este discentes possuem, as disciplinas que são ministradas na escola são de certa maneira “hierarquizadas” com grau de importância. Esta hierarquização é realizada de acordo com as necessidades que eles terão ao saírem da escola, necessidades estas que passam pela questão vestibular e trabalho. No Estado da Paraíba a disciplina sociologia não é exigida no vestibular, logo, como os objetivos dos discentes passam por este exame esta disciplina recebe sob os olhares deles uma importância menor em relação a outras, como por exemplo, português e matemática. Estas duas disciplinas são colocadas no topo visto que elas também são exigidas em outros concursos públicos, o que aumenta o grau de importância para estes alunos. No gráfico acima, podemos perceber o grau de representação que as três disciplinas possuem naquele ambiente escolar. Esta representação está ligada a visão de utilidade de cada disciplina. A representação da sociologia em comparação com as demais é vista por estes discentes como inferior, sendo português e matemática as que mais contribuem em sua vida cotidiana. Desta maneira podemos

1170

entender que os objetivos traçados com a implantação da disciplina não vêm sendo atingidos, vistos que os discentes não enxergam uma utilidade pra esta disciplina em seus cotidianos. Discente V - até na hora de fazer um curriculum mesmo você vai precisar, tipo assim você vai ter que saber fazer um curriculum. Discente P - …a matemática é mais importante porque cai mais em concurso, cai mais no mercado de trabalho. Discente B -…eu acho que é por causa do valor, matemática e português influência muito (…) Eu acho que as matérias que exigem mais no vestibular, e em outros concursos também...não adianta estudar uma disciplina que não vai ser exigida... Discente P - As (disciplinas) menos importantes são as que não caem no vestibular: Sociologia, Filosofia, Artes (risos). Todos: (Sociologia) tem importância nenhuma. Não tem utilidade como matemática e português.

Diante do gráfico acima e também das falas dos discentes, percebemos

que não

existe

somente

uma

hierarquização

das

disciplinas em relação as demandas (vestibular, concursos, usos técnicos de conhecimento como fazer um currículo) que estes alunos terão ao saírem da escola, mas que esta lógica de educação para o vestibular cobre com uma espécie de “véu” as disciplinas que não são exigidas nele, ou seja, o grau de importância das disciplinas soa medidos para os alunos de acordo com uma lógica instrumental, se elas serão úteis para atingir seus objetivos ou não, logo eles entendem que a sociologia não é. Parâmetro 3 – A importância da disciplina para o Mundo do Trabalho

1171

Quando perguntamos como eles utilizariam os conhecimentos apreendidos na escola, suas respostas estavam sempre voltadas para o mundo

do

trabalho,

não

para

seu

cotidiano,

assim

quando

perguntamos quais disciplinas podem ajudá-los nesta relação de trabalho, as respostas obtidas são referenciadas no gráfico acima, onde eles não conseguem enxergar a sociologia como um disciplina capaz de dar alguma função em suas relações de trabalho. Assim, quando fazendo uma relação entre mercado de trabalho e a disicplina Sociologia, verificamos que a maioria dos discentes coloca o papel preponderante que o mercado exerce sobre a forma como os discentes vêem a disciplina e a escola como um todo. Onde a Sociologia não se enquadra nas necessidades exigidas pelo mundo do trabalho. Quando perguntados sobre o futuro e a utilização da dos conhecimentos sociológicos as respostas foram as seguintes: Discente A - Ah Sociologia, o mercado de trabalho não está preocupado com isso. O mercado de trabalho é a base da sociedade, assim, a Sociologia fica mais pra trás (…) o mercado vai ser mais importante, querendo ou não ninguém quer passar fome (risos) ninguém quer viver mal. Discente B - eu acho que esse negócio de sociologia pelo amor de Deus, que é isso (risos) eu acho que é a que tem menos importância (…) jogava ela no lixo e tocava fogo, pra mim sociologia é só pra gastar papel... É uma tristeza. Discente M - eu coloco a sociologia em ultimo (risos), não que ela não seja importante porque assim né! Se a gente for olhar o meu objetivo mais próximo é o ENEM, então se a gente for olhar tem o que? Duas questões de filosofia e uma de sociologia, então pela logica pra mim, pra estudo não tem lógica ficar me matando de estudar, ela seria a ultima. Discente P - ah! A sociologia não tem nem no vestibular, tem? (risos) se a sociologia fosse uma matéria como matemática e português todo mundo só queria estudar sociologia, por que ia ter que estudar sociologia. […] se fosse mais cobrado mais exigido. É uma matéria importante sim, mas não é tao cobrada tao exigida, aí o que acontece?

Diante das falas e dos resultados obtidos, percebemos que estes discentes possuem um olhar instrumental sob a educação, onde a sociologia não está inserida na visão deles. Esta necessidade

1172

instrumental aparece em forma de utilidade no mercado de trabalho e exigência no vestibular. È um resultado que contraria os objetivos da LDB para a disciplina sociologia, visto que sob ela existe a preocupação de uma disciplina que forme estes discentes não somente de uma forma crítica e autônoma, mas também que lhes dêem suporte para o mundo do trabalho, suporte este que estes não conseguem enxergar nesta disciplina. Parâmetro 4 – A Relação Sociologia e a Instituição Escolar 30 25 20 15 10 5 0 Profissional

Cidadão

Pessoal

5%

Profissional

17%

Pessoal

78%

Cidadão

Estabelecendo a relação da disciplina Sociologia e a escola, observamos que para os discentes a representação da disciplina Sociologia possue um valor instrumental menor que as demais disciplinas. Observamos que a disciplina Sociologia não faz sentido para muitos discentes na grade da escola, pois eles não conseguem estabelecer a sua função escolar, social e tão pouco sua utilidade no mundo do trabalho. Conseguimos

obter

falas

que

podem

caracterizar

essa

representação distorcida do que é a Sociologia e de como ela pode ser encaixada em suas vidas cotidianas.

1173

Discente A - …eu acho que a Sociologia chegou na escola por obrigação. Discente B -…acho que a própria escola não dá espaço pra Sociologia (…) o valor da Sociologia, o valor que a escola não “tá” dando. A Sociologia os alunos já ficam “ah, Sociologia (negação)”. Discente R -…é uma coisa que tipo a gente vê mais “tá” distante ainda. É uma matéria que está distante, a gente não sabe muita coisa… Discente P -porque ela tipo assim, não fala muito da atualidade, fala de coisas que já passou e quase não interesa muito pra gente jovem (…) A gente vê sociologia desde criança, mas a gente não sabe da influência que ela têm em nossa vida...muita gente não valoriza (a sociologia) pelo fato de não conhecer.

Observamos que a quantidade de aulas por semana também contribui para a desvalorização da disciplina por parte dos discentes. Muitos questionaram que uma aula por semana não é o suficiente para que possam compreender, entender e desenvolver os conteúdos da disicplina. Unindo a esta situação a falta de professores com formação em Ciências Sociais dificulta para o alunado o aprendizado dos conceitos sociológicos. Daí a fala do Discente P, onde ele não entende em momento algum os objetivos desta disciplina.

CONCLUSÃO Constatamos que para os discentes que foram submetidos a nossa pesquisa, que a sociologia da forma como está estruturada no currículo, não possui características técnicas como as demais, a exemplo da matemática e da própria língua portuguesa. Desta maneira, orientados sob esta lógica instrumental da educação, estes discentes não conseguem desenvolver um olhar crítico para as realidades ao qual estão submetidos e em conseqüência não conseguem desenvolver um olhar diferente do instrumental sob a disciplina sociologia. 1174

Como Adorno teoriza não é fácil sair de um olhar profissional se está é a demanda exigida em nossos cotidianos, ficando difícil em relação a sociologia a existência de outro olhar, outra medida por parte dos discentes, principalmente na realidade escolar a qual encontramos, onde a representação de educação é um guia totalmente instrumental para o vestibular que não exige conhecimentos sociológicos. Desta maneira entendemos que esta relação econômica é um dos principais pilares que contribuem hoje para a sua atual representação nas escolas. A partir das duas principais representações (vestibular e mercado de trabalho) corroboram diretamente na construção da representação da disciplina sociologia. Assim, pensar a representação que a sociologia possui ou está construindo, é pensar na finalidade e de como é percebida a utilidade da educação. Para nós, diante dos dados colhidos e das observações feitas neste período, não é possível compreender a representação da sociologia sem compreender a visão dos discentes quanto á educação e escola sendo assim, a relação entre o mundo do trabalho diretamente ligada com o mundo da escola, de modo que a formação escolar, segundo as preocupações da LDB, deve preparar os discentes de modo que eles possuam capacidades profissionais e também intelectuais na percepção de sua cidadania. Esta

preocupação

parece

ir

ao

mesmo

sentido

das

preocupações de Adorno, não no sentido que a solução desta escola pesquisada seja a teoria de Adorno, mas que ela não está atingindo os objetivos da LDB e ao mesmo tempo está construindo uma ideologia instrumental em seus discentes. Adorno então entende que uma formação técnica não é suficiente para dar autonomia aos indivíduos, assim o elo entre o tecnicismo e a criticidade se torna algo fundamental na formação do discente. Esta compreensão e a ideia de escola adorniana talvez não fosse a ideal, mas não produziria apenas este instrumentalismo presente nesta escola pesquisada. 1175

Desta maneira, esclarecemos que as formas como os discentes hierarquizam as disciplinas é conseqüência das representações que elas possuem. Tais representações estas que são relacionadas com distinções de valores que observamos na hierarquização das disciplinas de acordo com a teorização de Bourdieu. A representação que a disciplina sociologia possui na escola pesquisada é classificada como indiferente ou desprezível sob o olhar dos discentes, posto atingido pela maneira como ela está configurada na escola, que é uma disciplina que não corrobora para os objetivos destes indivíduos.

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1178

SABER POPULAR E ESCOLARIZAÇÃO: UMA JUNÇÃO NECESSÁRIA NO SEMIÁRIDO PARAIBANO Izabel Cristina Martins338 Edineide Jezine (Orientadora)339

RESUMO: Analisa-se do processo de escolarização de crianças e jovens que vivem nas zonas rurais na região do semiárido paraibano, o entendimento do processo de exclusão escolar no qual estão emersos, da continuidade do processo educacional e a importância do saber popular nessas trajetórias. Apropriamo-nos do referencial teórico-metodológico do materialismo dialético e procedimentos metodológicos como entrevistas semiestruturadas. Os resultados da pesquisa apontam que o/a agricultor/a se preocupa com a escolarização e deseja ter acesso a ela. Todavia, em muitos casos, ela é deixada em segundo plano, por causa da necessidade que tem de trabalhar na roça, da distância entre sua casa e a escola e do trabalho assalariado que os homens e as mulheres são obrigados a se submeterem. Este trabalho constitui em fragmentos da dissertação de Mestrado, realizada na UFPB. Palavras-chaves: Exclusão, Saber Popular, Semiárido paraibano.

1. INTRODUÇÃO: Repensando a escolarização de crianças e jovens que vivem na zona rural do semiárido paraibano e observando a prática escolar presente, constata-se que o processo de exclusão ocorre ante as inúmeras dificuldades, que vão desde as imposições naturais, por ser uma área em que, periodicamente, ocorrem longos períodos de estiagem, às contradições econômicas e político-sociais que lhes dificultam o acesso ao saber escolar. Devido a tantos obstáculos, muitas crianças e jovens param o processo de escolarização, e a família passa a ser a instituição, por excelência, responsável pela transmissão do saber necessário à sua vida concreta, seja no campo, na cidade ou no 338

Grudada em Pedagogia (UFPB), Secretária da Educação da Paraíba. UFPB/SEC/PB. [email protected]. 339 Graduada em Pedagogia (UFAM), Mestra em Educação (UFPB), Doutora em Sociologia (UFPE) e Pós-Doutorado em Sociologia (Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias - Lisboa/PT (CAPES/FCT). Professora Associada (UFPB). Faz parte da Rede Ibero Americana de Investigação em Políticas de Educação (RIAIPE/CYTED). [email protected].

1179

interior, como condição mínima para o exercício da cidadania. Nesse contexto de dificuldades naturais, sociais e econômicas, reside a tentativa de compreender como os agricultores e as agricultoras que vivem no semiárido paraibano utilizam o saber popular para superar as dificuldades de escolarização existentes na área. Diante do exposto, passei a fazer os seguintes questionamentos: Como os sujeitos - criança/adulto - que vivem nas áreas rurais dos municípios localizados no sertão do Estado da Paraíba conseguem continuar o processo de escolarização? Qual é a influência do saber popular na superação dos problemas enfrentados pela população? Quais são as formas de luta ou mobilizações sociais usadas para reverter a situação de exclusão educacional? Qual é a importância que o poder público dos municípios dão à escolarização das suas crianças, dos seus filhos? Para tentar responder a essas perguntas, adotei a abordagem da pesquisa qualitativa, que coloca desafios para se compreender uma dada realidade. Porém, é preciso reconhecer que esse não é um processo linear, mas descontínuo e, por isso, exige sensibilidade para se perceberem as nuances que vão se descortinando e estar atento às estratégias surgidas diante dos desafios impostos. Assim, ao dar início a essa pesquisa, com a intenção de refletir acerca

dos

questionamentos

feitos

anteriormente,

colhemos

informações sobre o desenvolvimento do processo de escolarização de crianças, jovens e velhos que vivem ou viveram nas áreas onde realizamos a pesquisa e sobre o processo de construção e aquisição de saberes populares e como são utilizados na superação dos problemas educacionais, naturais e econômicos enfrentados pelos moradores. No início do estudo, buscamos opções teóricas nas origens das experiências vivenciadas no cotidiano e na vida profissional. Nessa etapa da pesquisa, percebemos a necessidade de discutir o papel da educação, ao longo da história para, a partir daí definir os caminhos metodológicos para a produção de um trabalho de pesquisa. 1180

Através das observações sistematizadas e da participação no contexto rural, podemos registrar no caderno os momentos de interação

entre

os

sujeitos

entrevistados

e

o

pesquisador,

proporcionados por essa forma de expressão dialógica que sustenta o enfoque principal da pesquisa. Em cada encontro, todas as falas e expressões

eram

anotadas

fielmente

no

caderno,

em

que

procurávamos compreender os saberes do cotidiano presentes nas experiências dos sujeitos. Os dados obtidos através das entrevistas foram analisados com base nos procedimentos de análise de conteúdo descritos por Bardin (1977) apud Triviños (1987, p. 159), que cita exemplos de profissionais que fazem uso da análise de conteúdo para investigar seus objetos de estudo, e define esse método como Um conjunto de técnicas de análise das comunicações, visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens (BARDIN, 1977, p.42).

A análise de conteúdo configura-se em torno do que Bardin (1977) denominou de organização da análise, a qual corresponde à pré-análise, à exploração do material e ao tratamento dos resultados. Vale ressaltar que tais etapas não são estanques, ou seja, elas se fazem presentes durante todo o processo de análise, sendo possível a transição entre elas, o retorno e o avanço, dependendo das características do processo. O nome ‘materialismo dialético’, que serve à metodologia marxista, não é nem um pouco arbitrário. Nele se encontram as duas posições filosóficas que identificam o pensamento marxista: o trabalho, como atividade fundante da humanidade, e os homens, como seres históricos e sociais. Portanto, as relações de produção e sociais que os homens

mantêm

fundamentam

o

processo

de

formação

da

humanidade. É a partir dessa concepção de homen (sujeito) que Marx 1181

irá identificar a alienação do trabalho como a alienação fundante das demais. As relações entre a realidade se fundam na práxis, que é o grande eixo do pensamento de Marx. A dialética do materialismo considera a matéria como a única realidade contraditória, mas a contradição se supera na síntese, que é a "verdade" dos momentos superados.

Marx

apresentava

uma

filosofia

revolucionária,

que

procurava demonstrar as contradições internas da sociedade de classes e as exigências de superação. Postula que as leis do pensamento correspondem às leis da realidade. Então, a dialética não é só pensamento: é pensamento e realidade a um só tempo. Mas a matéria e seu conteúdo histórico ditam a dialética do marxismo - a realidade é contraditória com o pensamento dialético. A realidade e o pensamento dialético não são apenas uma contradição externa, podem ser concretamente idênticos, como passam um pelo outro, mostrando também porque a razão não deve tomar essas contradições como coisas mortas, petrificadas, mas como coisas vivas, móveis, lutando umas contra as outras em e através de sua luta. Por sua vez, consiste em compreender os opostos em sua unidade (MORENO, 2007, p.98). O primeiro exemplo de relação dialética é o debate. Nele, uma afirmação (tese) enfrenta sua negação (antítese). Esse enfrentamento dinâmico é repleto de tensões, e são justamente as oposições internas que mantêm o debate aquecido. Eventualmente, a relação dialética é superada, e o debate encerra produzindo uma síntese – que não deve ser entendida como o resumo do confronto, mas como seu resultado. Para que seja produzida uma teoria realmente dialética, é preciso que se adote uma unidade de análise ampla o suficiente para comportar processos em competição. Somente assim, a estrutura da unidade de análise poderá ser caracterizada pelo conflito entre as partes antagônicas que ela mesma encerra. Para um dialético, “a

1182

construção deve ter como resultado um todo ou uma totalidade de relações, e não, uma unidade simples” (MORENO, 2007, p.96). Movidas por essa postura teórico-metodológica, fomos à busca de dados que nos colocassem em contato direto com o fenômeno a ser pesquisado: o saber popular construído em coletividade no espaço rural se constitui como estratégia para a superação de um processo excludente de escolarização. Percebe-se então, um campo de pesquisa aberto, com novos elementos se revelando naquele espaço.

2. EXCLUSÕES DA ESCOLARIZAÇÃO: UMA REALIDADE No que se refere à educação, o momento atual é propício para esta reflexão: Qual é a educação que vem sendo oferecida aos que estão nas áreas rurais do semiárido paraibano? Quais são os seus conceitos, os métodos utilizados e abrangência de ofertas? Em suas bases legais, as Diretrizes Operacionais estabelecem a educação do campo firmada no princípio da identificação de um modo próprio de vida social e de utilização do espaço do campo, em que as pessoas se inscrevam na condição de sujeitos, e no reconhecimento da importância da especificidade do campo para a constituíção da identidade da população, sua inserção cidadã e definição dos rumos da sociedade. Para redefinir a qualidade da relação entre o campo e a cidade, é preciso resguardar as especificidades que se manifestam no plano das identificações e reivindicações na vida cotidiana e desenhar uma

rede

de

relações

recíprocas

que

reitera

e

viabiliza

as

particularidades das duas dimensões: campo e cidade. Assim sendo, a fixação do campo, como um espaço específico e, ao mesmo tempo, integrado no conjunto da sociedade, exige da política educacional a definição de diretrizes que contemplem a diversidade sociocultural no

1183

âmbito do direito à igualdade e do respeito às diferenças, assim descrita: Art. 2º Essas Diretrizes, com base na legislação educacional, constituem um conjunto de princípios e de procedimentos que visam adequar o projeto institucional das escolas do campo às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e Médio, a Educação de Jovens e Adultos, a Educação Especial, a Educação Indígena, a Educação Profissional de Nível Técnico e a Formação de Professores em Nível Médio na modalidade Normal. Parágrafo único. A identidade da escola do campo é definida pela sua vinculação às questões inerentes à sua realidade, ancorando-se na temporalidade e saberes próprios dos estudantes, na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciência e tecnologia disponível na sociedade e nos movimentos sociais em defesa de projetos que associem as soluções exigidas por essas questões à qualidade social da vida coletiva no país.

Na lógica educacional de muitos gestores do poder público, para quem vive nas áreas rurais, a escolarização é dispensável, pois o seu o trabalho será sempre com o ‘cabo da enxada’ e, para tal função, não é necessário o letramento. Se fizermos um balanço histórico da educação destinada aos camponeses rurais, claramente veremos os aspectos de uma educação reduzida à marginalização. Pode-se falar, então, da existência de um processo eficaz de escolarização em uma escola rural? O que se dirá desses milhares de paraibanos excluídos da escolarização, a maior parte deles em idade de pleno labor, espoliados no direito primário de continuar a estudar? Essa realidade mostra sua face mais cruel na zona rural. Voltando aos números da educação no Nordeste, especificamente na Paraíba, divulgados no relatório do INEP-2007, temos o retrato da carência educacional das crianças da área rural. Apenas 77% delas frequentam a escola e estão em plena idade escolar obrigatória, entre sete e 14 anos. Acrescida ao problema da falta de escolas na zona rural, temos a questão cultural e econômica, que leva crianças e jovens a cuidarem da lavoura.

1184

É comum, nos períodos em que o trabalho na roça é intensivo, as crianças se ausentarem dos bancos escolares para ajudar na plantação. Abandonam a caneta e pegam na enxada. Nas horas em que deveriam estar estudando e aprendendo, estão empregando sua força de trabalho para ajudar o sustento da família. Cabe ressaltar que a educação é um dos direitos garantidos na Convenção sobre os Direitos das Crianças, aprovada pela Assembleia da ONU, em 1989, e transformada em lei internacional a partir do dia 2 de setembro de 1990 (UNICEF,

1999).

Assim,

estavam

criadas

as

condições

para

a

Conferência Mundial sobre Educação para Todos, cuja meta primordial é a revitalização do compromisso mundial de educar todos os cidadãos do planeta. A

educação

possibilidades

de

desenvolvida

nesse

consolidação

de

contexto processos

é

uma

das

democráticos,

participativos, igualitários e fraternos. Afinal, a sociedade aprendente não pode ser aquela que oprime, exclui, humilha, mas que acolhe, que inclui, sem excluir, que liberta e que contribui - especialmente em relação à educação de pessoas jovens - para que essas pessoas compartilhem saberes, desenvolvam processos coletivos na construção do conhecimento. É preciso oportunizar espaços e tempos para que, de fato, a participação e o envolvimento sejam práticas concretas, e não, discursos vazios, que não superam os desafios. O que podemos constatar, em muitas áreas que abrangem o semiárido paraibano, é um quadro de abandono e de descaso com a escolarização de crianças e de jovens que vivem nas zonas rurais. São homens e mulheres que estiveram, durante muito tempo, em total abandono educacional, compondo hoje os quadros dos analfabetos.

1185

3. SABER POPULAR: ESTRATÉGIAS DE SUPERAÇÃO DAS DIFICULDADES Na busca de alternativas para a superação das dificuldades opostas à promoção da escolarização, no meio rural, salienta-se uma nova educação, que deve se pautar no exercício democrático, em que predominam o saber popular e o diálogo como elementos fundamentais. Neles se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado. Por isso, defende que a conquista implícita no diálogo é a conquista do mundo pelos sujeitos dialógicos, não a de um pelos outros, mas a conquista do mundo para a libertação dos homens. Para melhor compreender o processo do saber popular e a escolarização de crianças, jovens e adultos das áreas rurais do semiárido paraibano, apoiamo-nos nos pressupostos teóricos do educador Paulo Freire, que pensa a educação como um ato político, de conhecimento e criador, já que o grande desafio é iniciar e continuar o processo de escolarização, fazendo valerem os seus direitos de cidadãos, para lhes assegurar a igualdade, a competência profissional e, principalmente, a permanência no campo. Esses são elementos que estão na pauta das lutas enfrentadas no cotidiano local. Desse modo, temos refletido a exclusão do processo de escolarização à luz do pensamento freiriano, pois esse autor afirma que a exclusão educacional acontece a partir da negação do direito do outro. É envoltos nesta realidade que estão crianças e jovens que vivem nas zonas rurais do semiárido paraibano: visivelmente impedidos de continuar o seu processo de escolarização. Ao propor uma educação fundamentada no diálogo, Freire (1992) afirma que “a educação é comunicação, é diálogo, na medida em que não é a transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados”. Assim sendo,

1186

A educação popular, pelo diálogo, caminha para a superação das formas existentes de opressão, uma pedagogia emancipatória, presa a um juízo existencial, onde se faz necessária a liberdade da prisão da ignorância e da inconsciência. Sua tarefa educativa tem como ponto de partida o assumir a liberdade e a crítica como modo de ser homem. Uma pedagogia orientada pela interpretação do mundo, considerando que todos se educam pelo diálogo, intersubjetivamente. Diálogo que está presente na obra de Paulo Freire, tomando forma na sua visão de liberdade e de educação. A sua pedagogia não enaltece aquele que ensina (o professor), mas aquele que coordena as atividades de docência, promovendo a prática do diálogo. O diálogo é a condição essencial de sua tarefa de coordenador que se afirma sem imposição e cuja condição de aprendizagem associa-se à tomada de consciência da situação vivida pelo educando. Essa situação se concretiza à medida que se desenvolve o diálogo do homem com o homem. Assim se constrói a liberdade como um modo de ser e define o seu próprio destino, só podendo ser sentido na história dele mesmo (MELO NETO, p. 100-101).

O diálogo é a estratégia metodológica freiriana por excelência, pois, por meio dele, concebe-se a possibilidade da comunicação entre dois indivíduos, nomeadamente em contexto educativo, para que o conhecimento se constitua como parte integrante deles, para ser um elemento significativo da sua existência e, dessa forma, edificar uma intervenção consciente e crítica na sociedade. A reflexão acerca da educação dos filhos dos agricultores rurais e a superação da exclusão educacional, no contexto das relações de saberes, fazem emergir processos históricos da vida de sujeitos que se entrelaçam e se transformam em uma nova leitura sobre a temática - a escolarização no contexto rural e os saberes populares. Adentrando nesses espaços, sentimo-nos instigados e provocados a refletir sobre a relação do sujeito com o objeto, considerando o saber popular como “aquele que o povo produz” através das experiências vivenciadas no seu dia-a-dia, pois se verifica, na essência dessa concepção, a exigência de uma participação efetiva da coletividade e de uma ação educativa voltada para a ação/reflexão. O saber popular produzido pela coletividade faz parte de um movimento de mobilização, cooperação, solidariedade e de uma 1187

constante prática de ação/reflexão/ação, que desencadeará o saber fazer. A educação nos moldes do saber popular conduz o educando, como sujeito social, ao reconhecimento de sua identidade e autonomia, posto que sua ação está voltada para a sua realidade, que deverá determinar o ponto inicial do processo educativo. Esses feitos nos permitiram compreender os saberes populares de homens e mulheres do campo, observando a práxis cotidiana desenvolvida no meio camponês do semiárido paraibano, tendo como pressuposto que o saber popular construído no cotidiano desses sujeitos, além de orientar as suas práticas sociais e educativas, ajuda a resolver problemas práticos e imediatos relacionados à escolarização e à utilização dos recursos naturais, garantindo, de maneira sistemática, a sua reprodução social, cultural e de seu grupo familiar. E, ainda que de forma incipiente, orienta a construção de postura políticas, de resistência, por meio de organizações sociais mais coesas. Nesse sentido, Melo Neto (2004, p. 13) apresenta a importância da educação para se superar a exclusão, que é promovida pela sociedade capitalista.

Em processos educativos das classes trabalhadoras, tais princípios tornam-se uma necessidade, considerando ao longo caminho a ser percorrido na perspectiva da aprendizagem de outras formas de gerenciamento de seu trabalho, de seus empreendimentos e de sua vida. A educação se constitui como componente necessário nessa busca de superação dos padrões estabelecidos pelo modo de viver do sistema capitalista.

Essa perspectiva de Educação fundamenta-se no pensamento marxista, pois esse teórico faz uma crítica à unilateralização do sistema educacional burguês e concebe a educação como um instrumento de transformação social e necessidade de uma Educação Popular promovida pelo Estado. O trabalhador teria acesso ao conhecimento do sistema produtivo na sua totalidade e aos bens espirituais e materiais dos quais 1188

tem

sido

excluído

unilateralidade,

o

em

função

homem

da

divisão

apropriar-se-ia

de

do

trabalho.

suas

Pela

capacidades

humanas de forma total, deixando de ser objetivado e alienado para tornar-se um ser de práxis e sujeito de sua própria história. O saber popular, ou seja, aquele que é construído na comunidade, vincula-se, principalmente, ao senso comum que trazem os setores populares em sua prática cotidiana. Esse senso comum está atrelado ao fazer. O homem intelectual é também filósofo porque participa de uma concepção de mundo. Essa filosofia peculiar aos homens estaria contida na própria linguagem, no senso comum, no bom-senso e na religião popular, significando que a formação do pensamento humano é coletiva e cultural. Pela linguagem se expressa uma forma de se conceber o mundo, e essa concepção é produzida nas relações sociais e culturais. O pensar crítico, a conscientização do homem sobre o processo de massificação que sofre no seio da sociedade e da cultura torna-se, em Gramsci, o pressuposto de uma ação política. Esse pensador (1991, p. 16-17) enfatiza a importância da reflexão, da tomada de consciência sobre o que acontece na realidade, como um processo de superação de uma concepção fragmentária de mundo para uma concepção unitária e coerente. Assim, não se separa a filosofia científica da filosofia popular, considerada como um conjunto desagregado de ideias e opiniões. Nesse aspecto, Gramsci chama a atenção para o fato de a filosofia ou concepção de mundo adquirir a dimensão de um movimento cultural ideológico, conservando a unidade ideológica de todo o bloco social. Ele nos mostra que A necessidade da unidade entre intelectuais e os simplórios, para que ocorra a organicidade do pensamento e da cultura, isto é, que os intelectuais fossem organicamente os intelectuais daquela massa, se tivesse elaborado e tornado coerentes os princípios e os problemas que as massas colocavam com sua atividade prática, constituindo assim um bloco cultural e social (GRAMSCI, 1991. p. 18).

1189

A dialética intelectual

- massa, conservação, inovação -

apresenta-se em Gramsci como o suporte de um projeto de revolução sociopolítico-cultural, na medida em que considera que o novo conserva o passado ao superá-lo, estabelecendo um vínculo dialético entre o senso comum e o saber crítico coerente. O ponto de partida para um novo conhecimento e uma nova prática social são o saber do senso comum e o contexto social, econômico e político-cultural existente. No trabalho livre, educação e cidadania conjugam-se. Não há antinomias, pelo contrário, constituemse elementos dialeticamente unidos. Se o trabalho é considerado uma mercadoria, que se universaliza no mercado, os homens passam a ser concorrentes. A autoridade adquire uma força impositiva, fornecendo obrigatoriedade à ação de ouvir, com base numa determinada estrutura de poder. Surgem, então, um mundo, a compulsão, a submissão e a ausência de liberdade. Podemos, então, afirmar que Gramsci (1982, p.31), ao analisar “a tomada de consciência” dos interesses de classes populares, pretende analisar as condições que implicam na existência de uma consciência coletiva, como acha imprescindível não se deixar de lado o fato de que as disposições de classes só podem se constituir nas consciências individuais, ainda que sejam os produtos de condições coletivas. O diálogo emerge como uma forma de ruptura do processo de exclusão educacional, que ocorre, principalmente, nas camadas sociais que estão

em

contextos

rurais

distintos,

organizados

em

pequenas

coletividades, onde a educação popular desempenha um papel importante na busca de conhecimentos e de soluções para os problemas. Nessa perspectiva, a exclusão é um processo múltiplo de apartação de grupos de sujeitos, presente e combinado nas relações econômicas, sociais, culturais e políticas, cujo resultado é a pobreza, a discriminação, a não acessibilidade ao mundo do trabalho e do 1190

consumo, e a não representação social e pública (MINAYO 2000). Vista sob diferentes prismas, a exclusão pode ser caracterizada por situações em que grupos sociais sofrem restrições ou impossibilidade total de desenvolver suas potencialidades. Sob o ângulo econômico, a questão pode ser vista através da existência de grupos considerados supérfluos e desnecessários para o processo produtivo. Na dimensão social, a exclusão se expressa na marginalização ou na manipulação de grupos aos quais é negada a cidadania plena.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Muitos/as agricultores/as vivem em contextos rurais do semiárido paraibano

sem

condições

reais

de

continuar

o

processo

de

escolarização. Essa é uma das razões pelas quais é preciso analisar criticamente o processo de exclusão educacional nos quais muitas crianças, jovens e adultos estão submersos. Essa problemática se relaciona diretamente a fatores que vão desde a ausência de implementações de políticas educacionais para a área rural, até a falta de compromisso de gestores públicos, a sustentabilidade dos projetos educacionais e o desenvolvimento rural, que não são acompanhados e/ou avaliados em seus resultados. Em muitos casos, as ações públicas direcionadas à educação de crianças, jovens e adultos que vivem nas áreas rurais não visam ao atendimento das necessidades existentes das comunidades rurais e não se voltam para o suprimento das deficiências educacionais detectadas. Portanto, é imprescindível a conscientização de que a responsabilidade social dos gestores municipais vai além do processo de escolarização, que deve estar relacionada diretamente com o ser, a vida de homens e mulheres que almejam um futuro próspero, dentro de suas expectativas. Isso requer a elaboração e o planejamento de ações que atendam às necessidades educacionais existentes na área. 1191

Os resultados da análise de dados indicaram que existe uma considerável defasagem educacional na área rural do semiárido, que está relacionada aos mais diversos e variados aspectos. As atuais propostas

de

ações

educacionais

voltadas

para

a

área

são

insuficientes, considerando-se as irregularidades que existem. Além disso, não há um acompanhamento nas ações, quando elas acontecem. Assim, o processo de escolarização de muitos sujeitos que hoje vivem nas áreas rurais está relacionado às incertezas de iniciar, continuar e prosseguir em busca de uma formação profissional, ou de ter garantidas, por direito, aptidões e habilidades profissionais que já desenvolvem. O saber popular e a escolarização se consolidam numa estratégia própria do agricultor sertanejo, que procura, através da educação coletiva e familiar, subsidiar a carência da educação formal no seu contexto, suprimindo a exclusão educacional de que são vítimas. Compreendemos que, na busca de solução para o problema evidenciado, é primordial que se proceda a um diagnóstico preliminar da situação detectada em toda a área do semiárido que forneça dados quantitativos sobre os índices de evasão escolar e a desistência nos últimos anos. Só assim, as gestões educacionais dos municípios se apropriarão das informações concretas, e ações emergenciais poderão ser acionadas nas áreas, para suprir a deficiência de escolarização que existe há muito tempo. Nessa perspectiva, é preciso se desenvolverem ações, por meio das quais seja possível solucionar o problema da escolarização de crianças, jovens e adultos, para que tenham garantido um processo de escolarização contínuo no campo, para que seu direito de cidadão seja assegurado, no que concerne ao direito educacional.

1192

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70 LDA, 1977.BRASIL. Congresso Nacional. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº9394/96. ______. Leis, etc. Lei Nº 9394/96, de 20/12/1996 (Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional). _______. Congresso Nacional. Plano Nacional de Educação. Lei nº. 10.172/2001 ______. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo. Brasília, DF, 2001. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação. São Paulo: Editora da UNESP, 2000. ______. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1988. ______. Pedagogia do oprimido. 18 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. ______.Conscientização: teoria e prática da libertação. 3ª ed. São Paulo: Editora Moraes, 1980. ______Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 22ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. _____. Pedagogia do oprimido. 40ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização cultural. Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: 1982. MINAYO, M.C.S. Ciências, técnica e arte: o desafio da pesquisa social. In: MINAYO, M.C.S. (org), Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 2000. MORENO, N. Lógica marxista e ciências modernas. São Paulo: Sundermann, 2007. NETO, Melo; SCOCUGLIA, Afonso (Organizadores). Educação popular: outros caminhos. João Pessoa: Editora Universitária/ UFPB, 1999. WCEFA - CONFERÊNCIA MUNDIAL DE EDUCAÇÃO PARA TODOS. Declaração mundial sobre educação para todos e Plano de ação para 1193

satisfazer às necessidades básicas de aprendizagem. Jomtien, Tailândia: março de 1990.

1194

EDUCAÇÃO, CULTURA E COMUNIDADE: REFLEXÕES SOBRE O CONEXÃO FELIPE CAMARÃO

Lúcia de Fátima Vieira da Costa340

Resumo: O Conexão Felipe Camarão é um projeto de educação integral realizado no bairro de Felipe Camarão – Natal/RN. Tendo como base a cultura de tradição oral local, suas ações promovem um processo de preservação, valorização e difusão dos patrimônios imateriais do bairro, envolvendo crianças, adolescentes e jovens, seus familiares, mestres de tradição oral e educadores das escolas públicas locais. Para compreensão da atuação do projeto, propõe-se uma reflexão considerando três aspectos: a) a relação com a cultura de tradição oral; b) a relação com o ensino formal, o diálogo com as escolas; e c) a viabilidade das ações nos últimos anos através das políticas públicas do Ministério da Cultura. Trata-se de uma reflexão com base na experiência profissional e na vivência do projeto, não sendo, portanto, um estudo acadêmico. Palavras-chaves: educação integral; cultura; tradição oral; comunidade.

“Na chegada dessa casa, levantamos a bandeira, viva a honra dessa casa e a cultura brasileira”. Mestre Manoel Marinheiro

INTRODUÇÃO: O QUE É O CONEXÃO FELIPE CAMARÃO O Conexão Felipe Camarão nasceu em 2003, promovido pela Associação Companhia Terramar – Organização não-governamental que atua nas áreas de educação, cultura e comunicação e tem seu trabalho firmado no bairro de Felipe Camarão – Natal/RN, espaço de contradições sociais e um dos berços da cultura potiguar. O Conexão Felipe Camarão – que no texto será referido apenas como Conexão – nasceu de uma ação anterior, o projeto Canta Meu Boi – registro fonográfico do Auto do Boi de Reis do Mestre Manoel Marinheiro. 340

Graduada em Ciências Sociais (UFRN), Mestra em Ciências Sociais (UFRN). Professora Efetiva (Faculdade Particulares do RN) e (IFRN). [email protected].

1195

Desde o início o Conexão foi concebido como um processo de valorização, preservação e difusão da cultura de tradição oral do bairro, tendo como referenciais os patrimônios imateriais locais: o Auto do Boi de Reis do Mestre Manoel Marinheiro (in memorian), o teatro de bonecos João Redondo do Mestre Chico de Daniel (in memorian), a musicalidade do Mestre Cícero da Rabeca (in memorian) e a Capoeira do Mestre Marcos. Os referidos mestres, em vida, atuaram diretamente nas ações do projeto e o Mestre Marcos integra a equipe, atuando diretamente na concepção e direção do trabalho. São referenciais também do Conexão pensadores brasileiros como Darcy Ribeiro, Paulo Freire, Milton Santos, Amir Haddad, que compõem

os

fundamentos

teórico-metodológicos

do

que

é

desenvolvido na comunidade, integrando crianças, jovens, seus familiares, Mestres de Tradição e educadores das escolas públicas parceiras.

CONEXÃO FELIPE CAMARÃO: AÇÕES E DESDOBRAMENTOS As ações do Conexão, fundamentadas na cultura de tradição oral do bairro de Felipe Camarão, voltam-se atualmente para a formação integral de crianças e jovens, qualificação profissional de jovens e adultos e formação e qualificação musical do grupo musical Orquestrim Conexão Felipe Camarão. A formação integral de crianças e jovens se dá através de ações de educação integral agregadas às escolas públicas parceiras. São oficinas de arte e cultura de Boi de Reis, João Redondo, Capoeira, Flauta, Rabeca e ações que envolvem a comunidade em geral como as Rodas de Prosa – fóruns de discussão sobre temas de interesse coletivo: meio ambiente, educação integral, direitos humanos, cidadania, entre outros. A

qualificação

profissional

de

jovens

e

adultos

vem

se

fortalecendo nos últimos anos através de ações destinadas aos 1196

familiares das crianças e jovens que já integram o projeto. O Núcleo de Moda tem contribuído com o aprimoramento e qualificação na confecção de artigos de moda, produção de figurinos e adereços, na utilização de técnicas artesanais como bordado, bilro, patchwork, labirinto, entre outros. A Lutheria de Rabeca – outra ação de qualificação – constitui-se um espaço de produção artesanal de instrumentos, sendo a rabeca o principal referencial. Através de cursos e oficinas, o Conexão tem contribuído com a preservação da tradição que envolve a rabeca e sua musicalidade. A atuação musical do projeto baseia-se na cultura musical de tradição oral brasileira, através da qual a formação musical de crianças e jovens vem sendo promovida. A história da formação do povo brasileiro é a base para a compreensão da música do Brasil, partindo dos referenciais mais remotos às expressões mais atuais, tendo sempre como linha de condução, a tradição oral. Oficinas de musicalização de rabeca, flauta, percussão e metais compõem as ações de formação musical. Como resultados das oficinas de música e de arte e cultura de Boi de Reis e Capoeira, surgiu no projeto o Orquestrim Conexão Felipe Camarão – grupo musical composto por flautistas, percussionistas, capoeiristas, rabequeiros, metais e sopros, brincantes do Boi de Reis que difundem a cultura musical de tradição oral pelo Brasil, participando de eventos de educação e cultura, e fortalecendo a cultura da comunidade de Felipe Camarão.

EDUCAÇÃO, CULTURA E COMUNIDADE: reflexões sobre o Conexão Para compreender a atuação do Conexão Felipe Camarão em quase uma década de existência, o presente texto propõe uma reflexão sobre suas ações, considerando três aspectos que constituem os pilares que tornaram possíveis, a nosso ver, a consolidação do trabalho e o fortalecimento da cultura local. São eles: a) a relação com 1197

a cultura de tradição oral; b) a relação com o ensino formal, o diálogo com as escolas; e c) a viabilidade das ações nos últimos anos através das políticas públicas do Ministério da Cultura. Vale observar que a presente reflexão se isenta de uma análise acadêmica ou um estudo de caso, mas é fruto da nossa atuação de 2006 a 2012 na coordenação de projetos da Associação Companhia Terramar e assessoria ao Conexão Felipe Camarão, através da qual tivemos a oportunidade de atuar diretamente junto a coordenação geral do projeto, contribuindo no processo de desenvolvimento do projeto, além de acompanhar as ações e seus desdobramentos. Como conseqüência do trabalho atuamos no manuseio e produção dos documentos de fundamentação teórico-metodológica, o que nos permitiu e nos instigou a desenvolver a presente reflexão. No que se refere a atuação do projeto na comunidade, vamos nos deter separadamente a cada aspecto acima observados, considerando as dimensões que cada um deles apresenta. É importante identificar que embora sejam apontados separadamente, a relação entre eles, no contexto do Conexão Felipe Camarão, é clara e evidente. Insistimos mais vez em observar que se trata de uma breve reflexão, fruto de uma experiência profissional. O primeiro aspecto, a relação com a cultura de tradição oral, é a base sobre a qual o Conexão se desenvolve. A valorização, a preservação e a difusão da cultura de tradição tem sido um processo que o projeto tem promovido na comunidade; seja através da permanência das oficinas que ensinam essas tradições; seja no fortalecimento dos patrimônios imateriais por meio do conhecimento e reconhecimento dos moradores de sua existência e importância; seja na difusão dessa cultura, tendo como protagonistas os próprios moradores do bairro, através do Orquestrim Conexão Felipe Camarão. A relação direta dos Mestres de Tradição e os aprendizes é um dos fundamentos da metodologia do projeto, promovendo uma convivência entre as gerações. A Capoeira é um exemplo claro dessa 1198

vivência, quando é característica da dança o envolvimento entre os mais velhos e os mais novos, de modo que todos participam da roda, seja dançando, tocando, cantando, batendo palmas; todos interagem e viabilizam o contato direto com a tradição, tornando-a atual e contemporânea. É nesse processo de atualização das tradições, ou seja, a vivência coletiva e efetiva de uma dança, de uma expressão, que torna possível, no âmbito do projeto, relacionar passado e presente. Nesse processo, a convivência entre as gerações se faz como consequência do que é proposto. Para saber o que é o Boi de Reis, tem-se que recorrer ao Mestre do Boi de Reis, a Guardiã do Boi de Reis, a quem viveu com o Mestre, a quem dançou com ele, a quem aprendeu com ele. Ainda nesse aspecto é possível identificar os desafios de valorizar a cultura de tradição oral quando o mundo, o contexto globalizado e as novas tecnologias apontam para a era da chamada cultura digital. Neste sentido, o Conexão Felipe Camarão optou por promover o diálogo com entre a cultura digital e a cultura de tradição oral, abrindo espaços de interação entre as ferramentas digitais e as possíveis interferências dessas ferramentas no contexto da tradição. Nasceu, em 2006, o Ponto de Cultura Conexão Felipe Camarão. O Ponto de Cultura – ação que integrou o Programa Cultura Viva do Ministério da Cultura e que será abordado no terceiro aspecto – concedeu ao Conexão Felipe Camarão a estrutura necessária para adquirir instrumentos e assistência para ações de cultura digital, viabilizando a formação de uma ilha de edição. As ações do Ponto de Cultura promoveram o registro das atividades do projeto, oficinas sobre o uso das ferramentas, discussões sobre a cultura digital e o uso das novas tecnologias no contexto da comunidade. Para o desenvolvimento das ações o Conexão conta com a valorização da rede social comunitária, que se fortalece pela relação entre os sujeitos sociais e as instituições do bairro. Nesse processo a participação dos Mestres é fundamental, além do respeito as formas de 1199

comunicação existentes. A relação com as escolas públicas, a ocupação dos espaços sociais e atuação junto aos Mestres favorece o fortalecimento dos laços entre projeto e comunidade. O Largo da Cruz da Cabocla, as escolas, a Casa de Cultura do Mestre Manoel Marinheiro, a rua e os espaços públicos em geral são os espaços de ocupação do projeto, que nessa relação com as tradições, procura ultrapassar os limites da sede e interagir vivências e sujeitos. O segundo aspecto volta-se para a relação entre o Conexão e o ensino formal. Desde o início, o Conexão Felipe Camarão segue uma proposta de educação integral que se fundamenta na relação com a escola, sem a qual não há reconhecimento social de valor educativo. Antes da existência da sede do projeto, somente possível em 2006, denominada Escola de Saberes, o projeto desenvolvia suas ações apenas nas escolas públicas com as quais conseguiu um diálogo e no Largo da Cruz da Cabocla. A construção do diálogo com as escolas públicas locais tem sido pertinente e desafiador, pela própria dinâmica da realidade escolar e pela proposta que o Conexão Felipe Camarão almeja. Uma educação fundamentada na cultura local. A cultura como base para o conhecimento formal. Os saberes da tradição, do cotidiano e da vivência como ponto de partida para o saber formal. Um diálogo mais efetivo para o desenvolvimento conjunto de ações educativas exigiria flexibilidades no contexto da realidade das escolas em função dos calendários escolares, da formação do currículo e dos conteúdos e da própria formação e atuação dos educadores. Neste sentido, a parceria do Conexão com as escolas públicas do bairro de Felipe Camarão tem se dado de forma direta, conseguindo estreitar o diálogo mais especificamente com três delas, nos últimos anos. Embora tenha sempre realizado ações integradas às escolas, como a realização de oficinas no espaço escolar, apresentações em atividades festivas e debates chamados Rodas de Prosa que discutem temas de interesse coletivo, o projeto objetiva dialogar com o processo 1200

de ensino aprendizagem, buscando ocupar para além do espaço físico e contribuir no desenvolvimento das ações educativas, possibilitando o diálogo entre os conteúdos do ensino formal e a cultura existente no bairro. Integrando nas oficinas de arte e cultura e de tradição os alunos das escolas públicas é possível identificar que o conteúdo cultural existente no bairro pode constituir o ponto de partida para o processo de ensino-aprendizagem. O que se observa, no entanto, é a contradição de crianças que não assimilam o conteúdo escolar, mas que tem ótimo desempenho na criação musical ou mesmo no entendimento da cultura local. Como possibilitar a superação dessa contradição? É com base nas possibilidades de interação entre escola e projeto, educação e cultura, cotidiano e aprendizagem que o Conexão Felipe Camarão vem desenvolvendo ações integradas às escolas, buscando com elas alternativas para um processo educativo que se aproxime da cultura local. A permanência das oficinas nas escolas é uma dessas ações, como acontece na Escola Estadual Clara Camarão, Escola Municipal Prof. Veríssimo de Melo e na Escola Municipal Djalma Maranhão. Mas, ao longo do tempo, o Conexão teve a oportunidade de desenvolver outras ações, quando as oportunidades de um contexto mais amplo favoreceram as iniciativas. Com a ampliação de ações junto ao Ministério da Cultura como o Ponto de Cultura e o Programa Ação Griô Nacional, em 2006 e 2007 foi possível progredir ainda mais na proposta de educação integral. Em 2007 foi desenvolvida uma experiência efetiva nesse sentido, em convênio com o Ministério da Educação, através da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – SECAD. Em parceria com a Escola Estadual Clara Camarão a proposta conjunta priorizou a discussão da escola como espaço social de aprendizagem e diálogo de saberes, numa perspectiva de integrar conteúdo e

1201

cotidiano, a partir das experiências vivenciadas entre a Escola e o Conexão Felipe Camarão. A ação teve como objetivo inserir no processo de ensinoaprendizagem escolar, ou seja, no conteúdo trabalhado em sala de aula o cotidiano cultural da comunidade, as expressões vivenciadas coletivamente, como mecanismos de aprendizagem, instrumentos de reflexão e aplicação de conhecimentos formais. Para isso a condução do trabalho precisou contar com a adesão dos professores, a abertura do espaço físico e pedagógico, a discussão sobre educação e cultura. Mais atualmente, em 2012, em parceria com a Escola Municipal Djalma Maranhão tem se dado uma ação do Núcleo de Moda e as turmas de Educação de Jovens e Adultos - EJA, resultando numa experiência rica de troca de saberes, promovendo a relação entre o conteúdo e a vivência coletiva. A partir dos temas abordados em sala de aula os

alunos

desenvolvem

atividades

práticas

nas

quais

apresentam o que aprenderam em forma de um produto manual, utilizando técnicas artesanais. Nesta perspectiva o projeto tem efetivado o diálogo com as escolas, ampliando sua forma de participação, buscando colaborar diretamente com o processo de aprendizagem, abrindo espaços de discussão sobre temas de interesse comum, como as chamadas Rodas de Prosa. Com essas ações tem sido possível promover vivências que buscam sensibilizar os educadores para identificar as potencialidades educativas da cultura do bairro, considerando inclusive a própria iconografia local, suas características: relação com o mangue, as dunas, o contexto socioeconômico, a existência de patrimônios imateriais, a musicalidade, entre outros aspectos. É importante observar que o diálogo do projeto com as escolas é resultado de um esforço coletivo entre os sujeitos dos referidos espaços. O papel dos gestores é fundamental para a promoção de um ambiente favorável para as discussões e a abertura de espaço para a vivência coletiva das experiências. Fácil não é. Mas é possível. 1202

Na relação com as escolas, ainda, é importante observar que estabelecer afinidade com os programas do Ministério da Educação como o Programa Mais Educação e o Escola Aberta tem sido um processo significativo, além de possibilitar o desenvolvimento de ações integradas com caráter mais efetivo, legitimado. O terceiro aspecto da reflexão volta-se para o reconhecimento das políticas públicas do Ministério da Cultura, especialmente a política cultural do ministro Gilberto Gil, como uma contribuição efetiva para o estabelecimento

das

condições

necessárias

e

favoráveis

ao

desenvolvimento e fortalecimento das ações do Conexão Felipe Camarão. Entre essas políticas, destacamos o Programa Cultura Viva que viabilizou ações de preservação e valorização da cultura brasileira em suas mais variadas formas, em suas mais diferentes expressões, estabelecendo o diálogo entre a cultura de tradição e a cultura digital. Mesmo se tratando de uma breve reflexão é possível identificar que o Conexão Felipe Camarão – assim como vários projetos com os quais dialoga – passou a vivenciar um contexto nacional favorável, configurado pela ampliação de interesses coletivos, pela valorização da cultura do Brasil pelas próprias políticas do Ministério e pelo fomento a iniciativas e ações de cunho cultural. Nesse contexto, destacamos dois programas, dentro da proposta do Programa Cultura Viva: a Rede Nacional dos Pontos de Cultura e o Programa Ação Griô Nacional. O Conexão Felipe Camarão, em 2006, inaugurou a sede do projeto, espaço denominado Escola de Saberes, dando ênfase a pluralidade e as múltiplas formas de saber. A constituição de uma escola que se firma na tradição, no diálogo de saberes. Em 2006 também passou a integrar a Rede Nacional dos Pontos de Cultura, o que viabilizou ligar-se a vários outros “pontos” do Brasil, dando início a ações como o diálogo sobre a cultura digital, o acesso a instrumentos dessa cultura e a promoção de inúmeras formas de interação. Através do Ponto de Cultura foi possível a aquisição de equipamentos de uma ilha de edição, a realização de oficinas de produção de vídeo e o 1203

registro das ações do projeto, integrando jovens e adolescentes na discussão sobre a cultura digital, o uso de suas ferramentas na comunicação e a relação com a cultura de tradição. Através do Programa Ação Griô Nacional

foi possível

o

reconhecimento dos Mestres de Tradição Oral pelo Ministério da Cultura, viabilizando não apenas o reconhecimento simbólico, mas também material, contribuindo com a qualidade de vida dessas pessoas e a valorização de seu trabalho. D. Iza de Pontes Galvão – Guardiã do Auto do Boi de Reis e viúva do Mestre Manoel Marinheiro, Mestre Cicero da Rabeca, Josivan de Chico de Daniel – o Mestre Chico de Daniel faleceu durante o processo de inscrição no Programa assumindo em seu lugar o filho que continua a arte do pai, e Neidinha de Pontes Galvão foram Griôs pelo Ministério da Cultura e contribuíram, efetivamente, com a valorização da cultura de tradição oral de Felipe Camarão através dos seus saberes e fazeres e de suas histórias de vida. É, portanto, fundamental na reflexão sobre o Conexão Felipe Camarão reconhecer a importância das políticas públicas para o desenvolvimento e fortalecimento do projeto, favorecendo a ideia de que para mudanças efetivas na base da sociedade se faz necessário um conjunto de elementos que vão da vontade política de cada pessoa envolvida à composição de forças de interesse num projeto maior de transformação social. No caso em questão, as políticas do Ministério da Cultura na última década, especialmente de 2002 a 2008, favoreceram a um contexto viável para as ações de valorização, preservação e difusão da cultura, seja através de uma política de ampliação de editais, seja através de uma visão ampliada da diversidade da cultura brasileira, considerando inclusive o contexto contemporâneo da “era digital”. Vale observar, ainda, que o Conexão Felipe Camarão é aprovado pela Lei Federal de Incentivo à Cultura e por isso tem patrocínio da Petrobras – Programa Petrobras Cultural, copatrocínio do Instituto

Votorantim

e

ações

patrocinadas 1204

pela

Companhia

Hidroelétrica do São Francisco - CHESF e pelo Banco do Nordeste do Brasil - BNB.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A presente reflexão se voltou para uma visão da atuação do Conexão Felipe Camarão na comunidade de Felipe Camarão, ressaltando a importância de três aspectos fundamentais para o seu fortalecimento. A relação com a cultura de tradição oral – fundamento e referencial de toda a ação educativa do projeto; a relação direta com as escolas públicas do bairro e por fim a relação com o Ministério da Cultura nos últimos anos, com a promoção de políticas favoráveis à valorização da cultura brasileira e sua diversidade e ao fomento de ações e iniciativas. Para justificar a presente reflexão, contudo, acreditamos ser importante falar sobre os resultados alcançados pelo Conexão, mesmo na conclusão de nosso texto, por ser uma forma de apontar as consequências, no caso aqui nos limitamos aos aspectos positivos – porque

problematizar

essas

consequências

exigiria

ainda

mais

elementos aqui não abordados – dos aspectos analisados durante a reflexão. Ao

nosso

ver,

o

Conexão

Felipe

Camarão

aponta

dois

movimentos paralelos. Um deles para fora, considerando a projeção do projeto no meio cultural e educacional, como uma iniciativa de educação e cultura consolidada e uma experiência que se fortalece ao longo dos anos. A participação do Conexão nos fóruns de educação e cultura pelo Brasil, seja no contexto governamental, seja no diálogo com

as

instituições

não-governamentais,

é possível

identificar o reconhecimento do trabalho realizado. O reconhecimento se dá também pela difusão da cultura de tradição oral, tendo o Orquestrim Conexão Felipe Camarão atuado em 1205

eventos de cultura pelo Brasil, tendo se apresentado na TEIA – Encontro Nacional dos Pontos de Cultura em várias edições (Fortaleza/CE, Belo Horizonte/MG, São Paulo/SP), na Mostra Brasil Juventude Transformando com Arte (Rio de Janeiro/RJ), Encontro de Culturas Tradicionais (Goiânia/GO), entre outros. A relação com o Ministério da Cultura, o diálogo com o Ministério da Educação e a relação com outras instituições como o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária – CENPEC/SP, o Projeto Villa-Lobos e as Crianças/RJ, o Coletivo Fora do Eixo, contribuem com esse movimento para fora, para além da comunidade de Felipe Camarão. O outro movimento observado é para dentro. Ou seja, o processo de intervenção sobre a realidade da própria comunidade. É possível identificar, através dos integrantes do projeto, que a participação nas ações cotidianas promovidas pelo Conexão contribui com a formação integral

de

crianças

e

jovens,

especialmente

por

atuar

no

desenvolvimento de habilidades, individuais e coletivas, seja pelo desempenho na música, na dança e canto do Auto do Boi de Reis, seja na Capoeira. O processo de valorização da cultura local e mesmo o reconhecimento dos patrimônios imateriais é outro importante ponto, identificado pela própria dinâmica de convívio entre as gerações. Esse reconhecimento tem chegado aos moradores da comunidade e da cidade de Natal, também devido a difusão promovida pela mídia e imprensa, favorecendo a entrada e permanência de Felipe Camarão nos cadernos de cultura e educação, evidenciando uma comunidade que, apesar dos problemas sociais, possui também cultura e tradição. De um modo geral, é importante observar que os resultados apontados estão diretamente ligados a um conjunto de elementos que misturam-se aos aspectos abordados: a relação forte com a cultura de tradição oral local, a relação direta com as escolas, buscando novas formas de interação com a comunidade e, por fim, o conjunto de 1206

políticas favoráveis que, gerando um contexto de oportunidades, viabiliza o fortalecimento das iniciativas e o fomento das ações de valorização, preservação e difusão da cultura do Brasil. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Associação Companhia Terramar. Projeto Político-pedagógico. Natal, 2009. Associação Companhia Terramar. Plano de Execução Anual 2011. Natal, 2010. Associação Companhia Terramar. Plano de Execução Anual 2012. Natal, 2011.

1207

CURRÍCULOS ESCOLARES E DIVERSIDADE ÉTNICO-CULTURAL: UMA ANÁLISE SOBRE O EMPREGO DA LEI 11.645/08 NOS COLÉGIOS DE BELÉM-PA Guilherme Bemerguy Chêne Neto341 Lorena Alves Mendes342 Manoel Cláudio Mendes Gonçalves da Rocha343

Resumo: Analisa-se os currículos escolares e o material didático da rede pública e privada de ensino em Belém e a partir desta análise, reflete-se sobre a inclusão da temática referente à história e cultura indígena nos currículos, de acordo com as exigências da lei 11.645/08. A análise foi realizada através de pesquisa bibliográfica e documental, entrevistas não-estruturadas com gestoras e professores de duas escolas da educação básica, além da análise do material didático e conteúdo programático de outras duas escolas. A importância deste trabalho reside na possibilidade de proporcionar um olhar geral sobre as escolas de Belém e de que modo estas lidam com essa lei, o que nos permite analisar os possíveis avanços e as dificuldades da educação belenense em implementar um ensino pluriétnico. Foi possível constatar que a temática indígena ainda não se faz presente de forma plena no cotidiano escolar em Belém, e que ainda há muito que caminhar no sentido de garantir a efetiva aplicação da lei 11.645/08. Palavras Chave: Educação. Currículos escolares. Temática indígena. Lei 11.645/08.

INTRODUÇÃO

A educação foi fundamental no processo de formação histórica, política e cultural da sociedade brasileira. Os processos educacionais e sistemas de ensino-aprendizagem acompanham a história do povo brasileiro desde o período cabralino, a partir do século XVI com os jesuítas e a escolarização colonial, passando pela fase joanina do início 341

Graduado em Ciências Sociais (UFPA), Mestre em Ciências Sociais (UFRN) Pesquisador Associado ao Laboratório de Antropologia dos Meios Aquáticos (LAMAq) do Museu Paraense Emílio Goeldi/MPEG-MCTI. [email protected]. 342 Graduada em Ciências Sociais (UFPA), Mestra em Preservação do Patrimonio Cultural (PEP/MP/PHAN). Pesquisadora Associada no Grupo de Pesquisa Dinâmicas Sociais, Gestão de Territórios e Relações (RENAS) [email protected]. 343 Graduado em Ciências Sociais (UFPA), Mestre em Antropologia (UFPA). [email protected].

1208

do século XIX, pelas políticas educacionais do fim do mesmo século e posteriormente as políticas educacionais do Estado Novo na primeira metade do século XX (RIBEIRO, 2007), as reformas nas diretrizes da educação durante o período da ditadura militar, chegando à redemocratização da política educacional sob a égide da nova Constituição, promulgada em 1988, e posteriormente a criação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) em 1996. Ao longo do processo de formação da sociedade brasileira, a educação andou de mãos dadas com o poder público. Durante o período colonial, a educação serviu como um mecanismo fundamental para o domínio social, político e cultural do colonizador, uma ferramenta de controle das populações indígenas nativas e das populações negras escravizadas de origem africana. A política educacional no intervalo de 1931 a 1961 se caracterizou por sua dimensão dualista, tendo em vista que a educação tinha, nesse contexto, dois objetivos distintos: de um lado formar as elites condutoras e do outro formar o povo conduzido (SAVIANI, 2005). O processo educacional contribuiu para a formação da sociedade brasileira e da própria identidade nacional, configurando os atores sociais, as relações de poder e as hierarquias sociais na medida em que direcionava o que educar, de que modo educar e para quem educar. O resultado desse processo foi uma educação pautada em um discurso discriminatório que primava por um ideal de “raça brasileira”, uma identidade nacional imposta que nega a contribuição histórica e cultural das populações negras e das diversas etnias que construíram seus conhecimentos sobre o mundo, suas formas de sociabilidade, de praticar o viver, muito antes que aqui chegassem os europeus (VIEIRA; SILVÉRIO, 2010); uma educação direcionada para a constituição de uma memória oficial e a concepção de uma nação construída de forma “harmônica”, forjada exclusivamente pela ação das elites dominantes, negando o passado de homens e mulheres que

1209

contribuíram com seu sangue e suor para a formação da sociedade brasileira. É só a partir da Constituição de 1988 e posteriormente a promulgação da LDB de 1996, que as políticas públicas educacionais no Brasil iniciaram um processo de importantes reformulações. Dentre elas, a criação das leis 10.639/03, que tornou obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira nas séries do Ensino Fundamental e Médio da rede pública e privada, e, posteriormente, a lei 11.645/08 que altera a anterior, incluindo também a temática indígena. Esta lei exige a inclusão destes conteúdos no âmbito de todo o currículo escolar da Educação Básica. O presente artigo propõe uma reflexão a respeito da inclusão dos conteúdos referentes à temática da história e cultura indígena nos currículos escolares da educação básica em Belém, em escolas da rede pública e privada, a fim de saber se a temática indígena já faz ou não parte dos conteúdos programáticos destas escolas, se já são abordados em sala de aula e de que forma são ministrados, isto é, de que forma estes conteúdos estão sendo apresentados e discutidos na educação. Em termos gerais, este trabalho tem o propósito de verificar de que forma a Lei 11.645/08 vem sendo garantida nestas escolas de Belém, no sentido de proporcionar uma perspectiva sobre a realidade brasileira que contemple a diversidade cultural e étnica do nosso país. Para isso foi realizada pesquisa bibliográfica com o intuito de fundamentar teoricamente as discussões acerca do tema. Além disso, foi realizada pesquisa documental, fazendo uso dos textos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996, da Lei 11.645 de 2008, bem como do documento oficial Política de Educação Básica do Estado do Pará (SEDUC, 2008). Duas escolas de Belém foram visitadas, uma da rede pública – uma das escolas mais conhecidas da cidade – e uma da rede privada – uma escola de tradição religiosa344 –, e através das 344

Esta escola segue a doutrina adventista, ressaltando o fato de que o conteúdo programático da escola está de acordo com tal doutrina.

1210

visitações foram entrevistadas as gestoras das respectivas instituições e alguns professores345, por meio de entrevistas não focalizadas, onde os pesquisadores incentivaram o informante a falar livremente sobre o tema, através de perguntas que permitiram ao entrevistado expressar suas opiniões e sentimentos (MARCONI; LAKATOS, 2002); além de conversas informais com professores da rede pública e privada de Belém. Foram consultados também o conteúdo e material didático de uma escola da rede privada disponível na internet, bem como os livros didáticos de um colégio de tradição religiosa346. A

importância

deste

trabalho

reside

na

possibilidade

de

proporcionar um olhar geral sobre as escolas de Belém e de que modo estas lidam com a lei 11.645/08, o que nos permite apresentar os primeiros passos da educação brasileira no sentido de avançar no processo de democratização dos saberes e construção de uma concepção de nação que contemple a diversidade étnico-cultural do nosso país, bem como nos permite denunciar a pouca efetividade das redes pública e privada de ensino em seguir as novas diretrizes da educação

e

insistir

em

um

modelo

educacional

autoritário

e

discriminatório. Na primeira parte deste trabalho será discutida a formação da identidade nacional brasileira, a problemática referente aos currículos escolares e em seguida, o que de fato diz a lei 11.645/08, quais as suas exigências e direcionamentos. Na segunda parte será abordado o contexto das escolas visitadas, a fim de verificar se já estão sendo atendidas as exigências da lei e em que condições estão situadas as escolas de Belém, no sentido de garantir tais exigências. Por fim, a terceira parte trata da importância em garantir as reivindicações dessa lei, no sentido de contribuir para o reconhecimento e respeito das

345

Foi interessante analisar as entrevistas de modo a contrapor o discurso das gestoras às falas dos professores. 346 Tivemos acesso aos livros por meio de um aluno da 6ª série do Ensino Fundamental. Esta escola, também de tradição religiosa, porém de orientação católica.

1211

populações indígenas, enquanto agentes construtores da história e cultura brasileira.

IDENTIDADE NACIONAL, CURRÍCULOS ESCOLARES E A LEI 11.645/2008 O processo histórico de formação da identidade social brasileira está pautada na fábula ou mito das três raças, onde estão presentes: o branco colonizador, o índio e o negro (DAMATTA, 1987). É inegável a presença desses atores sociais na formação da sociedade brasileira, entretanto, o modo ressignificado como suas participações se deram nesse processo é tomado como base de recursos ideológicos para a construção de uma identidade nacional. Que os três elementos sociais - branco, negro e indígena tenham sido importantes entre nós é óbvio, constituindo-se sua afirmativa ou descoberta quase que numa banalidade empírica. É claro que foram! Mas há uma distância significativa entre a presença empírica dos elementos e seu uso como recursos ideológicos na construção da identidade social, como foi o caso brasileiro (DAMATTA, 1987, p. 62-63).

A construção de uma nação, aos moldes dominantes, precisa estar respaldada, entre outras, pela idéia de um mito fundador, que para ser absorvido pela coletividade necessita de confirmações e reafirmações cotidianas, difundidas nos mais variados espaços pelos mais diversos agentes (DAMATTA, 1987). A

educação

brasileira,

neste

sentido

assume

um

papel

fundamental para a promoção das verdades construídas no processo de formação da sociedade nacional, fato este que pode se apresentar como um grande problema dependendo de como e por quem foram construídos e, a partir destes, de que forma essas verdades e conhecimentos são repassados. Segundo Tomaz Tadeu da Silva, “o componente mais óbvio de uma teoria do currículo tem a ver com a questão do conhecimento e 1212

da verdade” (2003, p.37), a partir de conteúdos apresentados nos currículos

escolares

verdades

são

propagadas,

produzindo

e

reproduzindo efeitos múltiplos na vida dos estudantes. A elaboração de um currículo e, portanto, a matéria abordada em seu interior é carregada de subjetividades, implicando diretamente em visões de mundo acerca da realidade social vivida pelos sujeitos e na manutenção de modelos sociais, políticos e culturais reconhecidos e valorizados socialmente nos espaços de poder, retratados neste caso a partir dos conteúdos (SILVA, 2003). Nesse sentido é inevitável deixar as relações de poder afastadas da discussão dos currículos escolares, sendo a produção dos currículos a vontade de potência de determinados grupos sobre outros (NIETZSCHE, 2005) significando eleger qual verdade será repassada como conhecimento. É importante ressaltar que para o âmbito deste trabalho estão sendo levados em consideração os conteúdos escolares pertinentes à educação básica. No intuito de tornar os currículos escolares mais diversos e assim contemplar a diversidade étnico-cultural da sociedade brasileira, em 2008 a lei 10.639/03 foi revogada e em seu lugar passou a vigorar a lei 11.645/08, através da qual se exige que seja trabalhada nos ensinos médio e fundamental, além da cultura africana e afro-brasileira, a temática indígena. A alteração da lei se fez necessária para que os currículos escolares possam abarcar, de fato, as várias histórias, ou como afirma Walter Benjamin (1980), uma história possível entre outras. A história oficial, nesse sentido, seria questionada de forma que o conformismo dessa história vigente fosse substituído pela reflexão crítica e a partir dela fosse possível ler e escrever uma história outra, a história dos vencidos que “exige a aquisição de uma memória que não consta nos livros da história oficial” (GAGNEBIN, 1982, p. 67). Apesar de a lei enfatizar as dimensões histórica, artística e literária, propõe que a temática indígena seja contemplada pelo currículo 1213

escolar como um todo. O texto da lei, entretanto, não sugere os encaminhamentos necessários para a aplicabilidade da mesma, no sentido de definir especificamente os conteúdos a serem incluídos e de que forma estes serão trabalhados, como também não propõe um modelo para garantir de maneira efetiva as suas exigências. A lei 11.645/08 representa mais uma vitória dentre a série de conquistas da sociedade brasileira, fruto das ações dos novos movimentos sociais (GOHN, 2000) na medida em que propõe trazer à tona a história e cultura das sociedades indígenas.

A ABORDAGEM DA DIVERSIDADE ÉTNICO CULTURAL NAS ESCOLAS DE BELÉM Não obstante o caráter emancipatório da lei 11.645/08, esta ainda não está garantida em termos efetivos de sua aplicabilidade em Belém, o que foi constatado a partir das visitações nas duas escolas; do acesso aos conteúdos de uma terceira escola, disponíveis na internet; e da análise dos livros didáticos de um quarto colégio – trataremos a partir daqui como escola A, escola B, escola C e escola D, respectivamente. Através dos relatos das gestoras e dos professores, verificou-se que os conteúdos referentes à temática indígena ainda não fazem parte de forma plena da proposta pedagógica das escolas. Na visita a escola A, foi possível perceber uma divergência entre os discursos da gestora e dos professores – no caso, os professores de história e sociologia. A temática indígena, segundo a gestora, já está em pauta nos conteúdos programáticos da escola – contudo, não nos foi permitido ter acesso a tais conteúdos. Entretanto, os professores revelaram que a temática de fato ainda não é abordada, haja vista que o corpo docente e o corpo técnico carecem de capacitação pertinente à temática, além do fato de que na disciplina de sociologia não existem livros didáticos como suporte para o processo de ensino1214

aprendizagem, e em história estes livros correspondem, segundo o professor de história, a pesquisas historiográficas de 10 anos atrás. Em termos gerais, foram apontadas pelos professores, duas dificuldades no processo de inclusão desta temática no conteúdo programático das escolas, que seriam a formação e capacitação dos professores e o material didático disponibilizado. Ao visitarmos a escola B, constatamos um quadro semelhante. Da mesma forma, a temática indígena ainda não está incluída no conteúdo programático. E mais, a coordenadora pedagógica da escola revelou em sua fala que desconhece o fato da lei já estar em vigor. Em contrapartida, ao consultarmos a professora de sociologia da instituição, averiguou-se que há uma iniciativa própria por parte desta em conjunto com o professor de história, no intuito de trabalhar a temática indígena. Porém, o material didático utilizado na escola, mesmo

que

recentemente

reformulado,

ainda

não

inclui

tal

abordagem. A partir da análise do conteúdo programático e do material didático da escola C disponíveis na internet, foi verificado que esta escola ainda segue um modelo de currículo padronizado, orientado pelas diretrizes educacionais que antecedem a promulgação das leis 10.639/03 e 11.645/08, o que implica em um material didático que ainda aborda as populações indígenas brasileiras como sujeitos cristalizados em uma história que ficou no passado. Como foi dito anteriormente, uma das principais dificuldades para aplicação da lei é a carência no sentido da formação e capacitação dos professores e profissionais da educação referente à história e cultura das sociedades indígenas. Segundo Lima, a formação dos docentes do 1º e 2º grau é pautada na concepção de unidade social homogênea, o que implica em uma perspectiva que compreende a identidade nacional a partir de “processos historicamente apreensíveis de invenção” (1995, p. 410). Em outros termos, esta formação é orientada por parâmetros de uma educação formal que prima por uma história 1215

oficial hegemônica em detrimento da história de sujeitos sociais também formadores desta identidade nacional, dentre outros, as populações indígenas brasileiras. Os professores do 1º e 2º graus têm, portanto, a tarefa de desconstruir a leitura hegemônica da formação cultural, histórica e social brasileira, e proporcionar um olhar que compreenda a sociedade brasileira em sua diversidade, em sua dimensão plural e conflituosa. Os docentes têm pela frente o desafio de: (…) gerar a inquietação por um saber menos totalizante em sua aparência e mais libertário em seus efeitos do que o encimado pelo Estado nacional, permitir o crescimento do desejo da diferença e a descrença nas verdades oficiais, conquanto sabendo-se que temos de lidar com elas, produzir elementos para consciências questionadoras (LIMA, 1995, p. 418).

O livro didático, segundo Telles (1987 apud GRUPIONI, 1995, p. 486), é fundamental no processo de formação da imagem que temos do Outro, constituindo-se enquanto um importante instrumento, quando não o único, no processo de formação dos referenciais básicos do indivíduo acerca de sua sociedade, apresentando-se em muitos momentos como o único material didático impresso cristalizador dos conhecimentos, tanto para o aluno quanto para o professor (TELLES, 1987 apud GRUPIONI, 1995, p. 486). Nessas considerações, pode-se dizer que o livro didático é um instrumento formador de opinião, de formas de sentir, pensar e construir conhecimentos

sobre

o

mundo,

sempre

orientado

por

uma

intencionalidade. A exemplo disso, é possível observar a imagem do índio construída neste instrumento, uma imagem contraditória e fragmentada, onde os livros didáticos produzem a mágica de fazer aparecer e desaparecer os índios na história do Brasil (GRUPIONI,1995). Assim sendo, a história e a cultura das populações indígenas acabam por cair no esquecimento e no silêncio, e as novas gerações

1216

assimilam uma ideia de memória e identidade nacional da qual tais populações não fazem parte. O que parece mais grave neste procedimento é que, ao jogar os índios no passado, os livros didáticos não preparam os alunos para entenderem a presença dos índios no presente e no futuro (…) Deste modo, elas não são preparadas para enfrentar uma sociedade pluriétnica. (GRUPIONI, 1995, p. 489)

Analisando o material didático da escola D, foi possível identificar a inclusão dos conteúdos pertinentes à temática indígena nos livros didáticos de geografia e história da 6ª série do ensino fundamental. No primeiro livro, é discutida a problemática referente à diversidade étnica do país, abordando brevemente a temática indígena (GARCIA; GARAVELLO, 2007). O segundo livro aplica em maior grau o estudo sobre a história e cultura das sociedades indígenas brasileiras, colocando em pauta a presença dos povos indígenas na América, a diversidade de etnias e troncos lingüísticos, e a demarcação das reservas indígenas (CABRINI; CATELLI; MONTELLATO, 2004). Em termos gerais, ainda é pouco significativo o percurso trilhado pela educação em Belém no sentido de garantir de forma efetiva a lei 11.645/08, considerando a realidade de três das escolas observadas – é necessário levar em conta que estas são instituições relativamente bem estruturadas, se comparadas ao quadro geral de escolas da cidade. Contudo, pode-se dizer que na escola D já foram dados os primeiros passos no intuito de cumprir as exigências da lei, o que foi verificado na discussão em torno da temática indígena presente nos livros didáticos da 6ª série do ensino fundamental da escola.

A LEI 11.645/2008 E AS PERSPECTIVAS OUTRAS DA HISTÓRIA Tendo em vista o que foi discutido anteriormente, pode-se dizer que a educação é um importante instrumento no processo de 1217

formação cultural, histórica e política de um povo. Nas considerações de Antonio Gramsci, educação é processo de formação humana, é o processo de socializar determinadas formas de pensar, de valores, de habilidades, de comportamentos e de atitudes (GRAMSCI, 2001). Ao se relacionarem com o Outro, os educadores socializam determinados conteúdos, determinados conhecimentos, formas de compreender e praticar o mundo. Deste modo, a escola em sua dimensão de locus do processo de ensino-aprendizagem, passa a se constituir enquanto uma instituição responsável pelo disciplinar dos corpos, o disciplinar das vozes e mais, o disciplinar dos sentimentos (FOUCAULT, 1979). Lançando o olhar sobre a intencionalidade inerente aos currículos escolares e o processo de transmissão dos conteúdos, é possível perceber que a educação é uma instituição orientada por um princípio norteador básico que define o quê e como educar, selecionando os conteúdos a serem reproduzidos e, por conseguinte, produzindo verdades, discursos sobre o mundo e sobre a realidade. Segundo as considerações de Michel Foucault: A verdade é deste mundo, ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos de regulamento de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discursos que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; (FOUCAULT, 1979, p. 12)

Nesse sentido, o processo de ensino-aprendizagem no Brasil assume dimensão política e ideológica, a partir do momento que (re)produz

verdades,

perpetuando

uma

perspectiva

da

história

fundamentada na concepção de unidade nacional hegemônica, um discurso que nega a diversidade enquanto componente da história e cultura nacional. Segundo Edward Said, o intelectual – e aqui enfatizamos o papel do educador – tem a função de “apresentar leituras alternativas e perspectivas da história outras, que aquelas oferecidas pelos representantes da memória oficial e da identidade 1218

nacional” (2003, p. 39), ou seja, desconstruir as representações distorcidas ou demonizadas das sociedades indígenas, de etnias que tiveram seu passado negado, e buscar a diversidade presente na cultura, fazendo com que esta esteja representada na memória oficial e na identidade nacional de seu povo (NAJJAR; NAJJAR, 2006, p. 176). Para Benjamin “nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história” (BENJAMIN, 1994, p. 223). Sem distinguir entre os grandes e os pequenos acontecimentos, a história real é a “história dos vencidos” (BENJAMIN, 1994), ou seja, aquela das esperanças frustradas que a história oficial dissimula, o esquecimento da história dos vencidos pela história da dominação burguesa (ROUANET, 1981, p. 21). Benjamin acolheu a realidade da dor e do sofrimento humanos para a escritura de uma história que a historiografia oficial não conta. Em suma, reiterando Rouanet, objetiva-se trazer “para o presente o futuro aprisionado no passado, em vez de mergulhar no arquivo morto do ‘era uma vez’” (1987, p. 72), logo, um processo dialético, onde destruição e construção não cessam, pois este é o movimento da história dos vencidos, da verdadeira história, segundo Benjamin. A lei 11.645/08 teria, então, o objetivo de resgatar uma história entre tantas, a história perdida ou esquecida das sociedades indígenas. Uma história que existiu e existe, que é construída e destruída a todo o momento, porém, sem se deixar extinguir, pois uma história não termina, pelo contrário, se transforma dentro de um contexto onde todos os atores são essenciais. No processo de (re)construção da identidade nacional brasileira, essa lei resgata a história dos vencidos, trazendo, então, a possibilidade de enfrentar uma sociedade pluriétnica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS No momento em que se propõe uma discussão sobre a aplicabilidade da lei 11.645/08 nos currículos escolares em Belém se traz 1219

à tona inúmeras problematizações, esperando-se com elas que muitos efeitos sejam produzidos. A proposta deste trabalho foi de, primeiramente, considerar que a partir de uma identidade nacional brasileira construída e propagada, efeitos múltiplos são gerados no imaginário e na vida social dos brasileiros. Tendo a educação um papel primordial no que tange à socialização dos conhecimentos e das verdades, a forma como esta se dá, construindo ou desconstruindo essa formação da identidade nacional, implica diretamente na visão de mundo dos estudantes, no reconhecimento dos sujeitos sociais diversos enquanto construtores dessa história e assim na consolidação ou não de suas identidades. Os currículos escolares enquanto materialização do que será repassado como saber, tornam-se, nesse contexto, subsídios de fortalecimento do conhecer e importante artifício para orientação dos educadores. Em linhas gerais, a partir dos contextos escolares visitados, foi constatado que mesmo com a implementação de uma lei assegurando que a forma de educar dialogue com a diversidade característica da sociedade

brasileira,

ainda

assim

a

resistência

nos

modelos

educacionais cristalizados é evidente. Apesar de alguma sinalização – esta encontrada nos livros didáticos da escola D e nas ações isoladas dos professores da escola B – para a diversidade étnica e cultural, percebe-se que o processo ainda é muito lento e desarticulado na realidade belenense, onde não havendo algum mecanismo de verificação para efetivação da lei, esta continuará “sem vida” nas salas de aula. A lei 11.645/08 surge na sociedade brasileira, principalmente na educação, como uma possibilidade de resgate e re(construção) de formas de ser e agir no mundo, a partir das sociedades indígenas brasileiras e sua contribuição para o Brasil. Tornar coletiva essa história, no intuito de valorizar as populações indígenas enquanto atores históricos,

significa produzir sentidos outros para o que se pretende 1220

como relação eu e outro no sentido de construir uma sociedade brasileira em sua diversidade étnico-cultural.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. BRASIL, LDB. Lei 11.645/2008. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm. Acesso em: 12 nov 2010. BRASIL, LDB. Lei 9394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/ L9394.htm. Acesso em: 12 nov 2010. DAMATTA, Roberto. Relativizando; uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1987. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de janeiro: Ed Graal, 1979. GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin. São Paulo: Brasiliense, 1982. GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. 2ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2000. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Campinas: Editora da Unicamp, 1992. GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. Livros didáticos e fontes de informações sobre as sociedades indígenas no Brasil. In: SILVA, Aracy Lopes da; GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (Orgs.). A temática indígena na Escola: Novos subsídios para professores de 1º e 2º graus. Brasília: MEC/MARI/UNESCO, 1995. LIMA, Antônio Carlos de Souza. Um olhar sobre a presença das populações nativas na invenção do Brasil. In: SILVA, Aracy Lopes da; GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (Orgs.). A temática indígena na Escola: Novos subsídios para professores de 1º e 2º graus. Brasília: MEC/MARI/UNESCO, 1995. MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Técnicas de Pesquisa:

1221

planejamento e execução de pesquisas, amostragens e técnicas de pesquisa, elaboração, análise e interpretação de dados. São Paulo: Atlas, 2002. NAJJAR, Jorge ; NAJJAR, Rosana . Reflexões sobre a relação entre Educação e Arqueologia: uma análise do papel do IPHAN como educador coletivo. In: Manuel Ferreira Lima Filho; Márcia Bezerra. (Org.). Os Caminhos do Patrimônio no Brasil. Goiânia: Alternativa, 2006. NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Rideel, 2005. RIBEIRO, Maria Luisa Santos. História da Educação Brasileira: a organização escolar. 20ª ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2007. RICARDO, Carlos Alberto. “Os Índios” e a sociodiversidade nativa contemporânea no Brasil. In: SILVA, Aracy Lopes da; GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (Orgs.). A temática indígena na Escola: Novos subsídios para professores de 1º e 2º graus. Brasília: MEC/MARI/UNESCO, 1995. ROUANET, Sérgio. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. ________________. Édipo e do Anjo. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro Ltda, 1981. SAID, Edward. Cultura e Política. São Paulo: Boitempo, 2003. SAVIANI, Dermeval. A política educacional no Brasil. In: STEPHANOU, Maria. BASTOS, Maria Helena Camara. Histórias e memórias da educação no Brasil, Vol. III: século XX. Petrópolis: Vozes, 2005. SILVA, Tomaz Tadeu. Dr. Nietzsche, curriculista – com uma pequena ajuda do professor Deleuze. In: CORAZZA, Sandra; SILVA, Tomaz Tadeu. Composições. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. VIEIRA, Paulo Alberto dos Santos; SILVÉRIO, Valter Roberto. Tempos presentes. Políticas Públicas contra as desigualdades étnico-raciais na educação brasileira: as leis 10.639/03 e 11.645/08. Disponível em: http://www.simposioestadopoliticas.ufu.br/ imagens/anais/pdf/CC12.pdf. Acesso em: 25 nov 2010.

1222

CONTRIBUIÇÕES DA MEMÓRIA NA (RE)PRODUÇÃO DE SABERES E FAZERES INDÍGENAS PARA UMA EDUCAÇÃO INTERCULTURAL

Suzete Rosana Wiziack347 Icléia Albuquerque de Vargas348

Resumo: Aborda-se elementos constitutivos de um processo de elaboração de material didático-pedagógico que se deu por meio de pesquisa qualitativa, de enfoque interdisciplinar, delineada pela antropologia. A memória dos indígenas, materializada pelas narrativas orais, revelou-se como elemento fundamental para se atingir os saberes-fazeres próprios do cotidiano histórico da comunidade. O material, uma cartilha com coletânea de textos denominada “Os Terena da Aldeia Buriti – Saberes e Fazeres” destina-se aos alunos de uma escola indígena de ensino fundamental, localizada no município de Dois Irmãos do Buriti, em Mato Grosso do Sul. Foi produzida conjuntamente aos professores indígenas e com o apoio da comunidade da Aldeia. Os resultados evidenciam a intercompreensão e os diálogos realizados entre professores indígenas, pesquisadores e a comunidade indígena, favorecendo a desconstrução e (re)construção de idéias, lógicas e conceitos se caracterizando como resultado de diálogo interculturais e materialização do diálogo de saberes. Palavras-chave: Memória, Escola Indígena, Diálogos Interculturais, Diálogos de Saberes.

INTRODUÇÃO

A proposta apresenta resultados de uma pesquisa desenvolvida no âmbito do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Populações Indígenas, NEPPI/UCDB, em um projeto de caráter interinstitucional sobre os índios Terena do Estado de Mato Grosso do Sul. O trabalho envolveu cinco pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento de duas universidades – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e Universidade Católica Dom Bosco (UCDB) - e foi subsidiado pela

347

Professora UFMS, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB. [email protected] 348 Professora UFMS, doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento. [email protected]

1223

Fundação ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do Sul (FUNDECT). Estruturou-se em três eixos: 1) Identificação das formas de pensar e aprender; 2) Luta pela posse dos territórios tradicionais, e 3) Representações de ambiente nos saberes e valores dos Terena. Os principais objetivos da pesquisa foram a investigação da memória Terena relacionada aos processos de territorialização do espaço que deu origem à Terra Indígena Buriti, das representações de ambiente e de natureza e dos sentidos do aprender dos Terena. Além da produção de material didático para subsidiar o ensino e a aprendizagem na escola Terena, contribuindo assim para a construção de uma proposta de educação indígena diferenciada. Por meio de investigações anteriores realizadas com os Terena, os pesquisadores já haviam constatado reivindicações, por parte de professores e comunidade da Aldeia Buriti, de produção de materiais de apoio pedagógico que pudessem contribuir com a escola indígena. A pesquisa constatou a inexistência, nessa comunidade, de materiais didático-pedagógicos voltados para os Terena e, a escassez de materiais voltados para os processos de educação indígena intercultural, conforme ratifica Brand (2004) ao indicar um estado de omissão da comunidade acadêmica frente às complexas questões relacionadas à educação escolar indígena. Assim, no processo de investigação tornou-se relevante para a pesquisa, a produção de um material didático-pedagógico que atendesse aos anseios dos Terena, tornando-se uma experiência para uma escola diferenciada Neste texto, o enfoque principal se volta para o processo da construção desse material pedagógico, uma cartilha elaborada pelos professores indígenas, com o apoio dos pesquisadores envolvidos, visando à recuperação da memória dessa comunidade indígena. Denominada “Os Terena da Aldeia Buriti – Saberes e Fazeres”, a cartilha se destina aos alunos do ensino fundamental da Escola Municipal 1224

Alexina Rosa Figueiredo, da Aldeia Buriti, município de Dois Irmãos do Buriti (MS). A seguir são apresentados alguns elementos constitutivos desse processo que motivou a intercompreensão e o diálogo entre professores indígenas

e

pesquisadores

favorecendo

a

desconstrução

e

(re)construção de idéias, lógicas e conceitos.

OS POVOS INDÍGENAS TERENA EM MATO GROSSO DO SUL Mato Grosso do Sul reúne a segunda maior população indígena do Brasil, com presença das etnias Terena, Kaiowa/Guarani, Kadiwéu, Guató, Ofaié-xavante. O povo Terena, pertencente ao grupo linguístico Aruak, instalou-se na região, especialmente às margens dos rios Miranda e Aquidauana (CARVALHO, 2005). Considerados agricultores desde suas origens, os Terena formam o segundo grupo de povos indígenas de Mato Grosso do Sul. Na atualidade habitam territórios indígenas situados em diversos municípios do Estado, como Campo Grande, Sidrolândia, Dois Irmãos do Buriti, Nioaque, Aquidauana e Miranda. A

Terra

Indígena

de

Buriti,

habitada

pelos

Terena

da

comunidade em questão, foi sendo constituída após o fim do grande conflito platino ocorrido na segunda metade do século XIX, conhecido como Guerra do Paraguai. Ao usar como palco boa parte do atual território

de

Mato

Grosso

do

Sul,

esse

evento

contribuiu

significativamente para expulsar comunidades inteiras de seus habitats, obrigando-as a enfurnarem-se nas encostas da Serra de Maracaju, em localidades de difícil acesso. Com o fim do grande conflito, partes dos índios, organizados em grupos, decidiram retornar para os territórios de origem na região de Nioaque, Aquidauana e Miranda. Outros permaneceram nas localidades onde haviam se refugiado. Para Vargas et al. (2009), muitos daqueles que partiram em busca das antigas aldeias, não mais as encontraram, por terem sido 1225

alvo de destruição da Guerra. Decidiram, então, pelo retorno à região do Buriti e lá permaneceram, sobrevivendo com a prática da agricultura e pecuária insipientes. Tentaram se reestruturar enquanto sociedade indígena, situação que permaneceria por pouco tempo, uma vez que todo o Sul de Mato Grosso estava sendo colonizado por não índios, resultando [...] no esbulho dos índios Terena dos territórios que ocupavam (VARGAS et al., 2009, p. 248).

Assim, o povo Terena, marcado pela expropriação, teve seus territórios

reduzidos

por

demarcações,

seus

recursos

naturais

dilapidados. Sobre a Terra Indígena Buriti, Vargas e Wiziack destacam: [...] até meados da década de 1970, a região do entorno da Reserva ainda mantinha sua cobertura vegetal original, permitindo, aos indígenas, a manutenção das atividades de reprodução social tradicionais. A partir desse período, com o advento da expansão da fronteira agrícola brasileira para o Oeste, a paisagem da região vai se transformando aceleradamente, quando o cerrado vai dando lugar para as lavouras e para as pastagens artificiais (VARGAS & WIZIACK, 2008, p. 6).

Situações que paulatinamente vão desequilibrando as formas de reprodução social desse povo, inviabilizando suas economias tradicionais,

desencadeando

um

processo

permanente

de

empobrecimento, conforme observado por Carvalho (2005).

Pressupostos Teóricos e Metodológicos Norteadores do Trabalho Intercultural A educação escolar indígena em nosso País, para atingir os objetivos propostos em projeto nacional - a Constituição Federal de 1988 estabelece o direito dos povos indígenas a uma educação específica e diferenciada - precisa corresponder às exigências da interculturalidade. O Plano Nacional de Educação prevê a escola indígena

como

intercultural

e

bilíngue,

diferenciada. 1226

ou

seja,

uma

escola

Todavia,

Nascimento

(2004)

faz

menção

sobre

inúmeras

dificuldades para se tornar coerente este projeto, sobretudo para os professores indígenas. Para a autora, a noção de uma escola diferenciada explicita múltiplos fatores de ordem política, sócioadministrativa e natureza epistemológica. Adverte para a necessidade de se interpretar a diferença como [...] uma categoria vinculada à construção das relações sociais, das atividades humanas, e que precisa ser cientificamente estudada em cada realidade para que sua história de existência possa ser o eixo norteador da organização e dos fins de cada escola nas comunidades indígenas (NASCIMENTO, 2004, p. 169).

Em função disso, a diferença almejada impõe um projeto político escolar e de definições específicas do modo de ensinar e aprender,

devendo

sempre

ser

(re)

construída,

reelaborada

e

contextualizada. Ao tratar algumas das especificidades dos Terena que deveriam ser refletidas pela escola diferenciada, se fez presente na pauta de itens do processo de produção do material didático-pedagógico, a percepção do ambiente dos indígenas e a recuperação de saberes tradicionais ainda presentes na memória da comunidade. Considerouse que os problemas de exiguidade e degradação dos territórios indígenas Terena promovem a percepção de ambiente e natureza desses indígenas como elemento revelador de sentidos e de identificação de antigas e novas leituras de ambiente. Da mesma forma, a compreensão e a recuperação dos saberes tradicionais mostra-se fundamental para entender como o povo Terena tradicionalmente construiu sua cultura numa profunda relação com o ambiente natural.

A importância da relação dos povos indígenas com o ambiente é ratificada pela “Convenção sobre a Diversidade Biológica/1998”, que recomenda o reconhecimento dos saberes tradicionais para a manutenção e preservação da conservação e uso sustentado da diversidade biológica evidenciando como tais saberes tornaram-se

1227

fundamentais para as gerações indígenas na construção de seus diálogos com outras culturas. Ensina Edna Castro (2000), que não é possível a proteção da diversidade biológica, “sem proteger a sócio-diversidade que a produz e a conserva” (CASTRO, 2000, p.176). Com isso, o desvelamento da percepção do ambiente e de natureza dos Terena, assim como a recuperação de saberes próprios de cultura Terena mostram-se imprescindíveis para alcançar uma educação emancipatória e potencializadora da uma escola diferenciada. Leff (2006) assinala que a apropriação de conhecimentos e de saberes de diferentes racionalidades e identidades étnicas leva à compreensão ambiental, processo pelo qual é possível apreender, além de aspectos de ordens física e social, novas formas de conhecimento e do pensamento, assim como o estabelecimento de conexões entre formas de saber. Na busca desse processo, a escola serviu de palco da construção de um processo coletivo de apreensão de saberes, sendo evidenciada pelos Terena como instituição capaz de atender aos anseios de sua comunidade. Com esse sentido, a escola tornou-se um espaço privilegiado para o diálogo com os demais espaços comunitários do território indígena Terena, sendo foco da construção do material didático-pedagógico e local de trabalho da equipe que tomou por base a pesquisa qualitativa de enfoque interdisciplinar e delineada pela etnografia, uma importante contribuição para o entendimento de que o sentido do ensinar e do aprender dos indígenas se manifesta em experiências comunitárias presentes na pedagogia indígena, conforme a pesquisa revelava. Participaram efetivamente da investigação cinco professores pesquisadores das duas universidades envolvidas, alunos de iniciação científica e os professores indígenas da Escola da comunidade. Para produzir os dados foram selecionados alguns representantes da comunidade, a maioria composta por pessoas idosas, que figuraram 1228

com certo destaque na luta pela construção da Aldeia e pela manutenção e valorização da cultura Terena. Nas reuniões de trabalho realizadas na escola, planejavam-se as ações a serem desenvolvidas e se discutiam noções e idéias sobre as temáticas elencadas pelo grupo de trabalho. Os professores da escola, com o apoio dos pesquisadores e subsidio da investigação inicial, buscaram as informações necessárias após a proposição dos temas. Os textos produzidos, de início por pequenos grupos de professores foram, posteriormente, discutidos de forma coletiva, nas reuniões de trabalho que desencadeavam férteis diálogos interculturais. Depois, os textos eram revisados e novamente apreciados pelo grupo. Considera-se necessário destacar que durante o processo investigativo na Escola, foi constatado o pouco uso dos livros didáticos distribuído pelo poder público. Verificaram-se pacotes de livros fechados nas prateleiras da biblioteca, assim como, em alguns momentos foi possível se deparar com o reuso de partes de livros (capas ou páginas internas) para outras funções, como capa de caderno ou trabalhos manuais. Tais fatos evidenciaram a necessidade de uma investigação mais acurada sobre os (não)usos dos livros didáticos em escolas indígenas349. Também permitiram

reforçar a importância de os

professores indígenas refletirem sobre isto e se envolverem na produção de textos próprios baseados em registro da memória da comunidade, sobretudo sobre seus fazeres e saberes. Enfatiza-se que os registros da memória histórica da comunidade sobre os saberes e fazeres Terena da Aldeia Buriti foram desenvolvidos por meio da técnica da história oral, conforme Verena Alberti (2004). O trabalho com as narrativas orais, produtos das lembranças dos

349

Sobre a presença do livro didático como material de apoio ao processo ensino-aprendizagem nas escolas, apoiamo-nos em Bittencourt (2008) que o indica, ainda, como um dos raros objetos da cultura escolar possível de veicular um conhecimento organizado e sistematizado com certo rigor e em condições de circular em meio a um público leitor heterogêneo, cujo saber é fortemente construído pela intervenção das mídias.

1229

colaboradores, revelou a memória como principal indutora do trabalho, elemento fundamental para se atingir os saberes-fazeres próprios do cotidiano histórico da comunidade. Nesse sentido, foi possível ao coletivo de pesquisadores avançar até a fronteira entre o real (existente) e o ideal. Bosi (1994), ao trabalhar com memórias de idosos, indica: Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, "tal como foi", e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual (BOSI, 1994, p. 55).

A obra de Bosi (1994) nos auxiliou a identificar a função social desempenhada durante a vida ativa desses sujeitos - agora pouco ativos devido à velhice – quando trabalhavam e construíam a história da Aldeia, eram protagonistas e propulsores da vida de seu grupo social. Na atualidade, esses sujeitos, ao lembrar e discorrer sobre a vida pretérita de seu grupo e seu lugar, se torna a própria memória viva do grupo, da comunidade. Nesse sentido Bosi (1994, p. 414) destaca: "O grupo é suporte da memória se nos identificamos com ele e fazemos nosso seu passado." Todavia, é importante ressaltar que nas comunidades indígenas, diferentemente da realidade vivenciada pela maioria dos idosos da sociedade envolvente (não-indígena), os mais antigos geralmente têm seus espaços garantidos na comunidade. Ainda atuam como sujeitos da construção da identidade cultural por serem detentores de saberes fundamentais para a própria sobrevivência da comunidade e do grupo social étnico. RESULTADOS E DISCUSSÃO - O DIÁLOGO COMO PROCESSO E RESULTADO DA (RE)CONSTRUÇÃO DE SABERES E FAZERES TERENA

1230

No empenho de se levantar a memória viva do grupo social investigado, os pesquisadores exercitaram a aproximação, alcançaram diálogos interculturais (Figura 1), pois, nas inúmeras reuniões de trabalho realizadas na Escola da Aldeia, professores, gestores e membros destacados da comunidade se fizeram presente, quando a ênfase sempre se voltava para o dialogo intercultural350. Isto coaduna com a concepção de Enrique Leff (2006) sobre o diálogo de saberes, pelo qual se apropria conhecimentos e saberes de diferentes racionalidades culturais e identidades étnicas, e como o qual é possível a produção de novas significações sociais, novas formas de subjetividade e posicionamentos políticos em relação ao mundo. Para Leff, o diálogo de saberes ocorre no encontro de identidades permitindo aos atores sociais a construção de estratégias alternativas de reapropriação da natureza, mesmo em campos conflituosos de poder. O diálogo de saberes, de acordo com Enrique Leff (2001), desvela a

dimensão

ambiental,

provocando/alcançando,

dessa

forma,

significações, subjetividade e posicionamentos políticos. Nesse processo, saberes subjugados e marginalizados pela ciência moderna podem ser explicitados (LEFF, 2001). Ao refletir sobre a importância do saber nas relações humanas, Leff (2006) afirma que a história é um produto da intervenção do pensamento no mundo. Dessa forma, o saber ambiental advém do diálogo de saberes por meio do encontro de tradições e de formas de conhecimento legitimadas por diferentes matrizes de racionalidade, por saberes arraigados em identidades próprias que se “hibridam” na codeterminação de processos materiais. Na concepção de Cunha (2007), o diálogo de saberes ocorre por meio dos campos epistemológico, político e metodológico. Interligados, 350

Segundo Freuri (2012, p.7), “A perspectiva intercultural implica em uma compreensão complexa da educação, que busca – para além das estratégias pedagógicas e mesmo das relações interpessoais imediatas – entender e promover lenta e prolongadamente a formação de contextos relacionais e coletivos de elaboração de significados que orientam a vida das pessoas”.

1231

esses campos referem-se: a) transgressão radical de uma ciência que reduz

a

realidade,

proclamando

verdades

supostamente

inquestionáveis. b) proposição [ou a revisão] de um novo projeto civilizatório, com nova ética para a relação entre os povos e a natureza e com estratégias de lutas políticas de salvaguarda de seus territórios, culturas e ecossistemas. c) revisão das metodologias para favorecer as redes de relações dos sujeitos socioambientais, em seus diversos contextos, com o intuito de articular os conhecimentos locais e os processos globais que afetam a dinâmica de cada lugar . A produção coletiva dos dados ocorrida nas inúmeras reuniões realizadas na escola é compreendida como exercício do diálogo de saberes, pois motivou a reflexão das questões Terena observando os três campos indicados por Cunha, favorecendo, assim, o questionamento dos conhecimentos científicos presentes nas escolas, sobretudo nos livros didáticos, mas que estão distantes da realidade indígena; a reflexão sobre o projeto de vida da comunidade local, com enfoque para os seus territórios, os aspectos de sua cultura e de compreensão da relação que os indígenas mantêm com seus ambientes naturais; também, a reflexão sobre novas metodologias para atender a comunidade em seus planos mais amplos, na vida cotidiana e, na escola, em suas especificidades.

Figura 1 – Reunião de trabalho - um dos encontros de diálogos interculturais realizado em uma sala de aula da Escola da Aldeia, em junho de 2009 (Foto de Icléia Vargas, 2009).

1232

Durante os debates, a temática da valorização, pela escola, da língua Terena apresentou-se como fundamental para alcançar os diálogos interculturais e o diálogo de saberes, motivando a reflexão dos envolvidos sobre a importância da língua para as culturas indígenas no Brasil, aspecto que vem sendo apresentado como central na construção de uma escola indígena diferenciada. Dessa forma, no processo da construção e da edição de textos que resultaram numa coletânea, editada nas línguas portuguesa e terena, intitulada “Os Terena da Aldeia Buriti – Saberes e Fazeres” – “Têrenoe Íhaehiko Mburíti – Éxonehiko Yoko Ítukehiko”

Figura 2 – Capa da cartilha (Foto Icléia Vargas, 2011).

A organização da cartilha, em quatro capítulos, contemplou a maioria

das

temáticas

elencadas

pelos

professores

indígenas,

permitindo a revelação de saberes e fazeres considerados importantes para as novas gerações de estudantes da escola Terena. O primeiro capítulo da cartilha apresenta dados sobre o povo Terena, suas histórias, onde e como vivem em Mato Grosso do Sul. O segundo capítulo aborda a cosmovisão e organização social dos Terena da Aldeia Buriti. O terceiro enfoca os saberes desses indígenas, destacando os rituais religiosos tradicionais e as festas católicas. Por fim, o quarto capítulo se dedica aos fazeres indígenas, enfocando as

1233

manifestações artísticas e culturais, as práticas esportivas e o uso de plantas para a saúde na comunidade. Como já mencionado, um aspecto relevante observado durante a investigação e a produção do material foi a participação efetiva da comunidade Terena da Aldeia Buriti que muito contribuiu com o produto final dessa experiência inédita de construção coletiva. Além disso, a plena integração dos pesquisadores com os professores da Escola local e com membros da comunidade concretizou-se em diálogos interculturais, ou, em diálogos de saberes segundo a proposta de Leff (2001).

Figura 3 – Na Cartilha (p. 17) a localização da Terra Indígena Buriti, além de dois “balões” com o tópico “Para saber mais”, nas línguas portuguesa e terena, estimulam a pesquisa dos alunos com o auxílio do professor (Foto Icléia Vargas, 2011)

Após a conclusão dos trabalhos de editoração e impressão, foi organizado um evento de lançamento da Cartilha na Escola da Aldeia Buriti. Foi um momento de festa para a comunidade. Alunos, professores,

gestores

e

diversos

membros

da

comunidade

compareceram e participaram do lançamento. Foi uma celebração com discursos, músicas e danças, reforçando a integração entre pesquisadores e comunidade, ampliando o diálogo intercultural (Figura 4).

1234

O trabalho mostrou conforme aponta Tânia Dauster (1996, p. 70) que a valorização da escola “[...] não decorre apenas da possibilidade que os alunos tenham de acender a determinados conteúdos, mas também pelo que ela representa como mediação de socialização e outras formas de participação na sociedade”. Segundo a autora, o problema que é colocado ao professor é o de “pensar o aluno dotado de uma identidade construída histórica e socialmente”. Na sua concepção, é necessário trazer o cotidiano para o interior da escola, mas também “a História e o desafio de conhecer e respeitar a diferença cultural e a heterogeneidade de experiências sociais [...]”

Figura 4 – Festa na Escola – lançamento da Cartilha (Foto Icléia Vargas, 2011)

Espera-se que a Cartilha resultante desse trabalho que se viu na Escola, possa realmente servir de instrumento para a produção de conhecimento e a valorização da cultura e do modo de ser e viver dos Terena. Sugere-se que a material seja revisto de forma permanente para incorporar novos saberes, novas significações dos indígenas professores, alunos e membros da comunidade. A escola que caminha em busca de processos educativos diferenciados, numa perspectiva intercultural, manifesta-se, de acordo com Padilha (2004), como possibilidade concreta de reconhecer seus problemas, de criar a dinâmica coletiva de aproximação de grupos e instituições e, mediante o reconhecimento da diferença, é capaz de 1235

enfrentar os desafios que a realidade lhe apresenta. Com o aporte de Freuri, Padilha (2004, p. 225) afirma que a interculturalidade ao surgir no contexto das lutas contra processos crescentes de exclusão social, vem permitindo o reconhecimento do papel da diferença, valorizando o potencial educativo do conflito e a interação entre os grupos. Com esse sentido, a aproximação entre a universidade e os professores indígenas se mostrou fértil para promover trocas e diálogos interculturais. CONSIDERAÇÕES FINAIS Crê-se que a execução do projeto de produção dessa Cartilha tenha sido um importante passo em direção à instrumentação da educação escolar indígena Terena, em especial da Escola Alexina Rosa Figueiredo. Materializada por meio da produção e disponibilização desse material de apoio didático-pedagógico, a coletânea de textos bilíngue denominada "Os Terena da Aldeia Buriti - Saberes e Fazeres” visa subsidiar o ensino e a aprendizagem na escola, contribuindo para a construção de uma proposta de educação indígena diferenciada. A execução do projeto permitiu a divulgação da produção acadêmica, difundindo conhecimentos e contribuindo com o debate em torno da temática da educação indígena. Da mesma forma, os dados levantados junto às comunidades indígenas, aliados às pesquisas executadas pelos próprios professores indígenas para a produção da cartilha, proporcionaram a valorização e o fomento do registro da história e da memória indígenas de Mato Grosso do Sul, em especial da comunidade Terena. O trabalho acadêmico revelou novas formas de investigação com comunidades indígenas favorecendo a participação dos mesmos, tornando-se uma experiência merecedora de continuidade, a despeito dos problemas vivenciados, sobretudo no tocante ao acesso à realidade da comunidade indígena, que invariavelmente apresenta 1236

conflitos diversos entre os grupos internos, e destes com a segmentos da sociedade envolvente, por vezes, limita o diálogo e a abertura aos processos investigativos no interior das aldeias. Na realidade, nesse tipo de trabalho se depara com embates provocados pela existência de lógicas diferenciadas, sobretudo à relacionada à lógica temporal. Os cronogramas pensados e definidos a partir de uma razão técnico-científica impostos pelas unidades de pesquisa, assim como pelas agências de fomento, nem sempre correspondem

à

racionalidade

própria

da

cultura

tradicional

investigada. Foi necessário, portanto, conciliar o trabalho com as disponibilidades

e

possibilidades

oferecidas

pela

comunidade

investigada. O próprio grupo idealizador da proposta, constituído por pesquisadores de diversas áreas do conhecimento e de duas instituições diferentes, também precisaram adequar suas agendas e exercitar suas capacidades de diálogo intergrupo, ou seja, ensaiar a interdisciplinaridade, tarefa nem sempre tranquila. Apesar dos obstáculos próprios de trabalhos dessa natureza, tem-se a convicção de que seus resultados, fundamentados na recuperação da memória indígena e na produção de recursos para o fomento de uma educação intercultural, possam contribuir para a promoção de resignificações sociais e posicionamentos políticos em relação à cultura e práticas sociais do povo Terena. Acredita-se que o processo e o produto da investigação fortalecem o direito conquistado pelas populações indígenas a uma escola diferenciada e intercultural. Mato Grosso do Sul tem sido cenário de muitas lutas das populações indígenas no empenho de recuperarem seus territórios e suas condições de sobrevivência. Acredita-se no enorme compromisso das universidades, enquanto espaços de saber e de poder, em redirecionar essa tendência de expropriação das comunidades indígenas e outros povos nativos e tradicionais. Nesse sentido, trabalhos como o descrito neste artigo podem ser capazes de contribuir para aumentar as perspectivas de avanço das comunidades indígenas em 1237

direção à conquista de novos espaços na sociedade moderna envolvente. A presença das universidades nas aldeias, assim como dos indígenas na educação superior, pode fomentar as esperanças de transformação das precárias realidades das aldeias. Da mesma forma, as escolas indígenas localizadas nas aldeias espalhadas por Mato Grosso do Sul, podem se fortalece, como é o caso da Escola da Aldeia Buriti, que caminha confiante na luta por uma educação diferenciada, baseada no caráter de interculturalidade, prova disso, é que após este trabalho os educadores da escola se vêem empenhados

na

reconstrução do Projeto Político Pedagógico da Escola Alexina, da mesma forma, se envolvem em propostas de capacitações que os permitam construir uma escola indígena diferenciada.

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LEFF, E. Epistemologia Ambiental. São Paulo: Cortez, 2001. ________. Complejidad, Racionalidad Ambiental y Diálogo de Saberes: hacia una pedagogía ambiental. In: Anais do V Congresso Iberoamericano de Educação Ambiental. Joinville, Brasil, 4-8 de abril de 2006. NASCIMENTO, A. C. Escola indígena: palco das diferenças. Campo Grande: UCDB, 2004. PADILHA, P. R. Currículo intercultural: novos itinerários para a educação. São Paulo: Cortez, Instituto Paulo Freire, 2004. VARGAS, I. A. de & WIZIACK, S. R. de C. Os sentidos e os significados de ambiente e natureza para os Terena: subsídios para uma educação etnoambiental. In: Anais do IV ENANPPAS, Brasília-DF, 4 a 6 de junho de 2008. Disponível em: http://www.anppas.org.br/encontro4/ cd/ARQUIVOS/GT9-102-51420080511002449. pdf. Acesso em 20/09/2012. VARGAS, I. A.; VARGAS, V. L. F; WIZIACK, S. R. de C. Território, Territorialidades e Sustentabilidade Ambiental entre os Terena. In: Anais do IV SEET – Seminário Estadual de Estudos Territoriais e II SNMT – Seminário Nacional sobre Múltiplas Territorialidades. Unioeste. Francisco Beltrão, PR, 27 a 30 de maio de 2009. VARGAS, I. A. de & WIZIACK, S. R. de C. Exiguidade e degradação dos territórios terena (MS, Brasil): pedagogia ambiental e apropriação cultural do ambiente. In: Anais da VIII Reunión de Antropología del Mercosur. "Diversidad y poder en America Latina". Buenos Aires, Argentina, 29 de septiembre al 2 de octubre de 2009. VARGAS, I. et al. (Org.) Os Terena da Aldeia Buriti: saberes e fazeres. Campo Grande-MS, Ed. Oeste, 2011.

1239

LIMITES E POSSIBILIDADES DO PROGRAMA NACIONAL DE ALIMENTAÇÃO ESCOLAR ENQUANTO ESTRATÉGIA DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL NO MUNICÍPIO DE MACAÍBA/RN.

Emanuella Gracy N. C. Sousa351 Cimone Rozendo de Souza (Orientadora)352

Resumo: O presente artigo tem como objetivo compreender a importância do Programa Nacional de Alimentação Escolar enquanto estratégia para Segurança Alimentar e Nutricional do município de Macaíba/RN, levando em consideração a implementação da Lei da Alimentação Escolar, 11.947 de 2009. O programa foi estendido para toda a rede pública de educação básica, de jovens e de adultos, além de garantir que 30% dos repasses do FNDE, fossem destinados para a aquisição de produtos da agricultura familiar. A pesquisa foi realizada com alunos e com agricultores familiares do assentamento Quilombo dos Palmares II, sendo estes, fornecedores do programa que exercem o autoconsumo, que se refere à produção animal, vegetal ou transformação caseira que é produzida pelos membros da família e que é utilizada na alimentação do grupo correspondente de acordo com suas necessidades. Quanto aos alunos, foi aplicado um teste de aceitabilidade em duas escolas localizadas na zona rural e uma na zona urbana, para saber a opinião dos mesmos em relação à alimentação escolar consumida. Palavras-Chave: PNAE, Segurança Alimentar e Nutricional, Agricultura Familiar.

INTRODUÇÃO A

Organização

das

Nações

Unidas

para

Agricultura

e

Alimentação (FAO), divulgou que em 2012 o mundo teria em torno de 925 milhões de pessoas que não comem o suficiente para serem consideradas saudáveis. Só no Brasil, segundo dados do (IBGE, 2010), este número chegaria a 11,6 milhões de pessoas nesta mesma situação, devido principalmente, ao desemprego e a pobreza.

351

Graduada em Administração (UFRN), Nutrição (UnP), Mestranda em Ciências Sociais (UFRN). S base de pesquisa em Agricultura Familiar e Segurança Alimentar. 352 Graduada em Ciências Sociais (UFPA), Mestra em Sociologia (UFPA) e Doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento (UFRN). Professora Adjunta (UFRN), atuando nos programas de pós graduação em Desenvolvimento e Meio ambiente (PRODEMA/UFRN) e Ciências Sociais (UFRN).

1240

Desta forma, a abrangência do tema sobre alimentação constitui para Maluf (2007), um espaço privilegiado de debate à medida que incide sobre outros aspectos igualmente importantes para a qualidade de vida, como: o acesso à terra, acesso à água, à melhoria de renda, além da busca por sistemas produtivos mais adequados a realidade cultural e ambiental de cada região. É no âmbito desse debate que as discussões sobre soberania alimentar e segurança alimentar tem ganhado cada vez mais espaço em conferências mundiais e congressos como na literatura há várias décadas, onde se busca através de estratégias de combate a fome amenizar este mal que assola o planeta, seja através de investimentos no setor agrícola, seja através de políticas públicas que venham beneficiar a população favorecendo-lhe melhor acesso aos alimentos. O

Programa

Nacional

de

Alimentação

Escolar

(PNAE)

é

gerenciado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e tem como objetivo transferir recursos financeiros aos estados e municípios, em caráter suplementar, destinados a suprir as necessidades nutricionais dos alunos do ensino público. O PNAE teve sua origem na década de 40 e passou por diversas modificações ao longo dos anos até que, com a promulgação da constituição federal de 1988, o direito a alimentação escolar foi assegurado a todos os alunos do ensino fundamental. Desde sua criação até 1993, a execução do programa se dava de forma centralizada, ou seja, os alimentos fornecidos para as escolas vinham de um único lugar, para serem distribuídos para o resto do país, nisto

muitas

escolas

ficavam

sem

receber

os

alimentos.

A

descentralização ocorreu em 1994, porém só em 1998, foi consolidada sob gerenciamento do FNDE. Após essa descentralização, o PNAE passou por diversos avanços, entre eles a medida provisória n°2.178 de 28/06/2001, que destacou a obrigatoriedade de 70% dos recursos transferidos pelo governo federal para

serem

aplicados

exclusivamente 1241

em

produtos

básicos

favorecendo os hábitos alimentares, além da vocação agrícola do município para o desenvolvimento da economia local. Só em 2009 com a sanção da Lei da Alimentação Escolar, 11.947 de 16 de junho, o programa foi estendido para toda a rede pública de educação básica, de jovens e de adultos, além da garantia de 30% dos repasses do FNDE, serem para a aquisição de produtos da agricultura familiar. A Lei, acima citada, também veio estabelecer importantes inovações no âmbito da alimentação escolar, firmando uma política pública que garante o direito humano à alimentação por meio de suas diretrizes que compreende: o emprego de uma alimentação mais saudável e adequada por meio do consumo de alimentos que estejam de acordo com os costumes regionais; inclusão da educação alimentar durante o processo de ensino; a abrangência da participação da comunidade no controle do programa; e apoio ao desenvolvimento sustentável mediante o incentivo à aquisição de alimentos produzidos localmente, priorizando os assentamentos da reforma agrária, as comunidades

tradicionais

indígenas

e

comunidades

quilombolas

(BRASIL, Lei, 11.947). Segundo Maluf (2007), a perspectiva de aproximar produtores e consumidores de alimentos, gera ganhos evidentes para ambos, uma vez que gera redução de gastos como transporte, por exemplo, favorecendo assim, a obtenção de alimentos de qualidade com menor grau de processamento, além da diversificação dos hábitos de consumo. Tendo em vista, as oportunidades que esta política trouxe para o meio rural brasileiro, principalmente para os agricultores familiares, uma vez que este grupo pode ser inserido no mercado, a partir de um comprador institucional (o Estado), haja vista, que de acordo com Maluf (2007), tal mercado representa uma parcela expressiva da demanda e pode também dinamizar a produção de alimentos de pequena e média escala, gerando estratégias de desenvolvimento em 1242

âmbito local, beneficiando a qualidade de vida tanto de quem produz (os agricultores), quanto de quem consome (os próprios agricultores e os alunos). Diante destas considerações, esta dissertação se propôs a responder: Quais são os limites e as possibilidades dessas novas diretrizes, como estratégia de Segurança Alimentar e Nutricional entre os fornecedores e os beneficiários do programa no município de Macaíba/RN? A metodologia empregada nesta dissertação foi do tipo exploratória e descritiva, com revisão da literatura, entrevistas e questionários contendo questões objetivas e subjetivas. A pesquisa de campo envolveu três grupos: A) Os gestores envolvidos na execução do programa, sendo entrevistados: a nutricionista, os secretários da administração, da agricultura e educação, além dos representantes do Conselho de Alimentação Escolar (CAE) e as diretoras e merendeiras das escolas pesquisadas. B) Grupo de agricultores: A pesquisa foi feita com 09 agricultores familiares residentes no assentamento Quilombo dos Palmares II que comercializaram seus produtos através do PNAE no ano de 2011.

C) Com os alunos beneficiados pela nova Lei, sendo 160

crianças de três escolas do município, duas da zona rural e uma da zona urbana. Das 47 famílias residentes no assentamento acima citado, as 09 entrevistadas foram as primeiras a entregar para o PNAE no ano de 2010. A princípio, a entrevista foi feita com um grupo focal de assentados, que foram identificados durante participação dos mesmos em uma chamada pública que estava acontecendo no município em 2011. Por conseguinte, realizaram-se entrevistas individuais com auxílio de um questionário. Apesar do município de Macaíba/RN ter vários assentamentos de reforma agrária, este assentamento foi escolhido entre os demais por contemplar o maior número de fornecedores para o PNAE. Já com os alunos beneficiados com a alimentação escolar, foi aplicada a Escala Hedônica do tipo mista, fornecida pelo FNDE para o 1243

público escolar do quarto e quinto anos do ensino fundamental da rede pública de ensino do município de Macaíba/RN, onde a mesma apresenta cinco faces com expressões de múltipla escolha que foram assinaladas pelos alunos de acordo com suas opiniões sobre o sabor da alimentação escolar, que estava sendo servida, priorizando-se a refeição elaborada com produtos advindos da agricultura familiar local, além de duas questões subjetivas onde o aluno escreveu sobre o que mais gostou e o que menos gostou em cada preparação. A quantidade de alunos entrevistados totalizou 160. Destes, 33 alunos foram da Escola Pedro Gomes de Sousa, localizada na zona urbana de Macaíba, 62 alunos da escola José Mesquita localizada nas proximidades do assentamento estudado e 65 alunos da escola Venera Dantas, localizada na zona rural do município, porém situada na comunidade Shalom. O critério de seleção destas escolas deu-se em virtude de que na primeira escola, mesmo sendo da zona urbana, a entrega de produtos oriundos da agricultura familiar se dar por dois produtores do assentamento estudado. A segunda escola tem três agricultores do assentamento pesquisado também fornecendo regularmente seus produtos. No caso da terceira escola, por ser situada também na zona rural, a mesma fica distante do assentamento estudado e o critério de escolha para esta, foi identificar se há recebimento de alimentos provenientes da agricultura familiar com freqüência, já que a maioria dos

produtores

que

fornecem

para

o

PNAE

pertencem

ao

assentamento Quilombo dos Palmares II e nenhum dos mesmos fazem entrega nesta escola.

1. DIREITO À ALIMENTAÇÃO

1244

Em fevereiro de 2010, o Congresso Brasileiro aprovou o Projeto de Emenda Constitucional N° 047/2003, por meio do qual é incorporado o direito à alimentação como um direito fundamental na Constituição Nacional. Este direito é incluído especificamente em seu Artigo 6, que já contemplava outros direitos sociais. É estabelecido que: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados na forma desta Constituição”. Para ter direito à alimentação, é preciso ao mesmo tempo ter acesso a mesma, por isso Maluf (2007) enfatiza que quando se fala em acesso aos alimentos, são considerados alguns aspectos como: a suficiência, continuidade e preços estáveis, e compatíveis com o poder aquisitivo da população. Observa-se neste contexto, que há a politização do debate sobre a fome e estes aspectos aparecem de forma destacada nos documentos oficiais. Neste cenário, a noção de soberania alimentar aparece como princípio da política de alimentação enquanto a segurança alimentar e nutricional constituem objetivos desta política, conforme indica Maluf (2007). Montaña (2003) ressalta que tanto o acesso aos alimentos, como a qualidade dos mesmos e a educação alimentar são considerados eixos sinalizadores para ações em segurança alimentar. Valente (2002) enfatiza que o direito a alimentação é um direito do cidadão e que a segurança alimentar é dever da sociedade e do estado, pois recai sobre estes a responsabilidade de se organizarem por meios de políticas públicas para que se façam valer este direito a todos. Já Caume (2003) expõe que para haver a eficácia de uma política de segurança alimentar no Brasil é necessário que haja o fortalecimento da agricultura familiar e a execução da reforma agrária, como estratégia de desenvolvimento econômico-social no meio rural. Nas definições destes autores, bem como nos conceitos de segurança alimentar e nutricional e soberania alimentar, encontram-se 1245

implicadas não só ideias de acesso ao alimento, mas também à terra, à água, a qualidade e quantidades destes, além de noções de patrimônio alimentar e equidade. conforme

destacado

A abrangência destes conceitos,

anteriormente,

evidencia

o

caráter

socioambiental, cultural e econômico destas. Neste contexto, é destacado o papel da agricultura familiar como protagonista desse processo, considerando-se seus aspectos de organização social da produção, como se verá a seguir.

2. AGRICULTURA FAMILIAR De acordo com Neves (2007), agricultura familiar é uma categoria socioeconômica dotada de direitos, que querem ser socialmente reconhecidos. Sendo assim, segundo a autora: A proposição da agricultura familiar como termo de apelação de um setor produtivo também correspondeu a procedimentos de mobilização política, visando à criação de princípios para enquadramento institucional de diferenciados usuários de serviços e recursos públicos. Por isso, consagrou-se a construção de contrapostos modelos de desenvolvimento econômico e social, capazes de qualificar as formas de organização e unidades produtivas, um deles politicamente correspondente ao desejado valor da sustentabilidade econômico-social. Emerge então no decorrer desses processos, a construção do agricultor familiar, como sujeito de direitos, consagrados em fim pelo Pronaf (NEVES, 2007, p.18).

O agricultor familiar apresenta-se então como categoria de mobilização política, fundamental na construção da sua identidade, em torno da luta pelo reconhecimento da cidadania econômica e política. Afinal, são agricultores familiares, aqueles que se integram como sujeitos de atenção de políticas especiais de crédito, de formação profissional e de assistência técnica (NEVES, 2007). Para Wanderley (1996), os camponeses do passado como agricultores do presente têm por objetivo ter acesso a atividades estáveis e rentáveis que lhes dê espaço para integração à economia 1246

local e regional, tanto no mercado interno de produtos alimentares, como o de produtos destinados à exportação. Por outro lado, afirma a autora, a essa atividade mercantil se soma o autoconsumo, pois dispondo de meios precários, os agricultores procuram assegurar, antes de qualquer coisa, o consumo alimentar da família, garantindo-lhes sobrevivência. Como mostram as pesquisas da Embrapa (2010), os agricultores brasileiros têm potencial para produzir toda a comida de que a população necessita. De acordo com esses dados, no Brasil são cerca de 4,5 milhões de estabelecimentos agrícolas, dos quais 50% se concentram no Nordeste. Este segmento detêm 20% das terras e respondem por 30% da produção global. Em alguns produtos básicos da dieta do brasileiro como o feijão, arroz, milho, hortaliças, mandioca e pequenos animais chegam a ser responsável por 70% da produção de alimentos consumidos pelos brasileiros diariamente (EMBRAPA, 2010). Com esta considerável porcentagem, é observada em quase toda a literatura que trata sobre o tema, que este segmento vem sendo apontado como principal protagonista na garantia da segurança alimentar do país e seu fortalecimento como estratégia para erradicação da fome e da desnutrição, como mostra Wanderley (1996). Sabe-se que dispondo de um meio de produção, mesmo que em condições precárias, o agricultor procura assegurar o consumo alimentar da família e quando há excedentes em sua plantação, se integra ao mercado local para vendê-lo. Isto lhe garante sobrevivência e ao mesmo tempo, coloca à disposição da população de sua região, alimentos para consumo (WANDERLEY, 1996). Porém, o agricultor familiar, segundo Wanderley (1996, p. 08), “sempre ocupou um lugar secundário e subalterno na sociedade brasileira, sendo impossibilitado de desenvolver suas potencialidades enquanto forma social especifica de produção”. Sendo assim, por meio do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, do 1247

Ministério da Saúde, do Ministério da Educação, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, além de outros ministérios, o governo federal articula políticas sociais com estados e municípios e, com a participação da sociedade, implementa programas como o PNAE, o PAA, entre outros, assim como, ações que buscam superar a pobreza e, conseqüentemente, as desigualdades de acesso aos alimentos em quantidade e qualidade suficientes, de forma digna, regular e sustentável, por saberem que a agricultura é uma atividade responsável pela garantia de SAN da população rural.

3.CONCLUSÃO De acordo com o objetivo principal deste artigo, que era saber quais os limites e as possibilidades das novas diretrizes do PNAE enquanto estratégia de Segurança Alimentar e Nutricional para os fornecedores

e

beneficiários

do

programa

no

município

de

Macaíba/RN, foi observado que como limite para os fornecedores, neste caso os agricultores familiares estudados, a chamada pública, não é efetuada antes do início do período letivo, neste caso, as aulas começam em fevereiro e a chamada pública sempre é efetuada na final do mês de março para o mês de abril, havendo ainda um determinado período de espera do resultado, ou seja, quando os agricultores iniciam as suas entregas, já tem perdido parte da produção que haviam plantado desde o início do ano. Outro ponto observado foi a questão dos pagamentos aos agricultores, por parte da prefeitura, uma vez que há uma média de dois meses para o recebimento após a entrega dos produtos. A logística de distribuição também entra como um limitante do programa, pois há custos com frete, onde os produtores necessitavam muitas vezes fazer empréstimos bancários para conseguir pagar o

1248

transporte para distribuir os produtos nas escolas, que muitas vezes se localizavam em regiões afastadas do assentamento. Ficou evidenciado também que por haver dificuldades na manipulação e no armazenamento destes produtos, os mesmos não eram utilizados semanalmente pelas merendeiras, sobrando assim para a semana seguinte, gerando acúmulo de produtos que deveriam ser servidos com mais urgência que os industrializados. É necessário destacar que com a entrada no programa, houve um aumento na produção, e o PNAE como comprador institucional, que deveria estar absorvendo o máximo desses produtos, deixava a desejar neste município, onde havia espaço para a venda a atravessadores. Com relação aos limites do programa para os beneficiários da alimentação escolar, neste caso os alunos, ficou evidenciado a necessidade de aprimoração dos cardápios para que os alimentos ofertados nas escolas sejam mais atrativos e gerem o desejo dos alunos em consumi-los. Além de que há necessidade desses alimentos estarem presentes na alimentação escolar desde o primeiro dia de aula, e não começarem a entrar na rotina escolar de maio para junho. Outro ponto a ser destacado é em relação a uma das diretrizes do programa, que diz respeito “a inclusão da educação alimentar e nutricional no processo de ensino e aprendizagem”. De acordo com o teste de aceitabilidade e de conversas com professores e alunos, esta diretriz não esta sendo cumprida no município, o que dificulta o entendimento das crianças para priorizar alimentos mais naturais. Em relação a diretriz IV que fala da “participação da comunidade no controle social, no acompanhamento das ações realizadas pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios para garantir a oferta da alimentação escolar saudável e adequada”, ficou observado uma fragilidade em relação ao CAE do município, uma vez que não havia interação entre os membros do conselho, haja vista, disputas por posição interna. 1249

Foi observado como possibilidades do PNAE para os agricultores, que o programa foi uma ferramenta geradora de renda e de produção para

autoconsumo.

O

PNAE

abriu

possibilidades

para

que

os

agricultores tivessem maior poder de compra, tanto para aqueles produtos não produzidos por eles, como o óleo de soja, sal, açúcar, etc, como para a aquisição de eletrodomésticos, vestuário, carros e motos, animais, além de reinvestimentos na própria terra. Em relação à produção para autoconsumo, o programa abriu oportunidades para a diversificação das hortas e roçados, fazendo com que ao mesmo tempo que estes produtos eram destinados ao programa, também serviam de alimentos para os próprios produtores, proporcionando assim, segurança alimentar e nutricional para os mesmos, pois de acordo com os relatos, após entrada no programa, iniciou-se o hábito de se alimentar com mais verduras e legumes e o desejo de investir mais em suas produções. Com os alunos, os mesmos têm a possibilidade de estarem se alimentando com alimentos que respeitam os hábitos alimentares da região e ao mesmo tempo são naturais e livres de agrotóxico, condizendo com a segurança alimentar e nutricional.

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da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da UFG, Ano V, No. 1, abril de 2003. Disponível em: http://www.proec. ufg.br/revista_ufg/fome/ seguranca.html. Acesso em: 06 de outubro de 2012. EMBRAPA: O Desafio da Agricultura Familiar: Disponível em: http://www.embrapa.gov.br/imprensa/artigos/2002/artigo.20041207.259 096319 Acesso em: 15 de outubro de 2011. FNDE- FUNDO NACIONALDE DESENVOLVIMENTO DA EDUCAÇÃO. Ministério da Educação. Coordenação Geral do Programa Nacional de Alimentação Escolar. Relatório do Grupo de Trabalho: aplicabilidade do teste de aceitabilidade nos alimentos destinados ao Programa Nacional de Alimentação Escolar. Brasília, 14 de julho de 2009. MALUF, R. S. Segurança alimentar e nutricional. Petropólis, RJ: Vozes, 2007. MONTAÑA, M. M. Evolução do conceito de segurança alimentar e nutricional sustentável e seus constituintes principais. Consea-RS, 2003. NEVES, D. P. Agricultura familiar: quantos ancoradouros! Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/51109383/Agricultura-Familiar. Acesso em: 10 de janeiro de 2013. VALENTE, F. O Controle Social do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) no contexto da promoção do Direito Humano à Alimentação e à Saúde. ÁGORA, Brasília, 2001. WANDERLEY, M. N. B. Raízes Históricas do Campesinato Brasileiro. Anais. XX Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, Minas Gerais, 1996.

1251

O PROINFO E A GESTÃO NO MUNICÍPIO DE PARNAMIRIM/RN (2008-2012) Lincoln Moraes de Souza (Orientador)353 Maria das Vitórias Ferreira da Rocha354

RESUMO: Este trabalho pretende avaliar a eficácia do Programa de Informática na Educação – ProInfo, no município de Parnamirim/RN, nos anos de 2008 a 2012, através de uma avaliação de processo, buscando verificar como se dar a gestão do programa no referido município. Para tais pretensões, ao delimitar o norteamento deste trabalho, que se encontra em andamento, serão consideradas questões pertinentes ao processo de informatização e a utilização do uso da informática nas escolas. O processo metodológico consiste de uma revisão bibliográfica e pesquisa documental efetivada junto aos órgãos responsáveis pelo programa. Utilizaremos também como procedimento a coleta de dados através de entrevistas semiestruturadas com a equipe gestora (estadual e municipal), e por fim, a análise dos dados obtidos.

Palavras-chave: ProInfo. Avaliação. Políticas Públicas.

INTRODUÇÃO

As políticas públicas são definidas como um conjunto de ações planejadas, regulamentadas, elaboradas

e executadas, que se

desenvolvem para um coletivo. No caso do Estado brasileiro, ocorrem nas

escalas

federal,

estadual

e

municipal,

visando

atender

determinados setores da sociedade, podendo ser desenvolvidas, também, em conjunto com organizações não governamentais e com a empresa privada. 353

Graduado em Ciências Sociais (UFC), Mestre em Sociologia (UnB), Doutor em Política Social (UNICAMP). Professor Associado (UFRN). Líder do Grupo Interdisciplinar de Estudos e Avaliação de Políticas Públicas (GIAPP/UFRN). [email protected]. 354 Mestranda no Programa Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRN, Natal-RN. [email protected].

1252

Cabe ao Estado propor ações com vistas à sociedade, por meio das políticas públicas, com diretrizes e princípios norteadores de ações, regras e procedimentos para as relações entre o poder público e sociedade, muito embora, nem sempre isso ocorra. Essas ações propostas pelo Estado, voltadas para a sociedade, são, nesse caso, políticas explicitadas, sistematizadas ou formuladas em documentos, como leis, programas, linhas de financiamento, que norteiam as ações que normalmente envolvem aplicações de recursos públicos. Como afirma Rodrigues, [...] podemos perceber que o Estado moderno se constitui de um conjunto de instituições públicas que envolvem múltiplas relações com o complexo social num território delimitado. Para implementar as decisões que tomam, essas instituições têm, como último recurso, a supremacia que normalmente exercem sobre o controle dos meios de coerção em dado território (RODRIGUES, 2010, p. 17).

No processo de elaboração e implementação, as políticas públicas se revestem, sobretudo, em seus resultados, nas mais diversas formas de exercício do poder político, materializando-se na maioria das vezes, numa relação social que envolve interesses diferenciados e até mesmo contraditórios; entretanto, observa-se a necessidade de mediações sociais e institucionais, para que se possa obter um mínimo de consenso e, assim, as políticas públicas possam ser legitimadas e obtenham um nível mínimo de eficácia. Nesse caso, Por mais óbvio que pareça, as políticas públicas envolvem a produção de bens públicos – e não privados ou apenas destinados ao uso coletivo. Isso porque o caráter público dessas políticas não se dá pelo agregrado social que o bem que elas produzem atingem, mas sim, pelo simples fato de essas políticas serem mandatórias e impositivas. Portanto, podemos afirmar que é o Estado que detém o poder e a autoridade para fazer valer, para toda a população que vive num território delimitado, as políticas que se processam de diversos interesses, necessidades e demandas da sociedade (RODRIGUES, 2010, p. 18).

Sobre esse ponto, não há dúvidas que diversas frentes às forças sociais integram o Estado, e que estas, representam agentes com

1253

posições muitas vezes antagônicas; no entanto, é preciso se ter claro que as decisões e deliberações acabam por privilegiar determinados setores, que nem sempre estão voltadas para a maioria da população. Para elaboração de uma política pública, devem-se definir questões como o que, para que e para quem esta será voltada, ou, ao que ela se propõe. Caracterizadas principalmente como ações estatais, é importante salientar que nem toda ação estatal é uma política pública. Essas definições são calcadas com a natureza do regime político em que se vive, com o grau de organização da sociedade civil e com a cultura política vigente, cabendo-se ressaltar, que nem sempre políticas

“governamentais”

são

“públicas”;

isto

é,

para

serem

consideradas como “públicas”, é preciso observar a quem foram destinadas, seus resultados ou benefícios. A presença cada vez mais ativa da sociedade civil nas questões de interesse geral torna a publicização fundamental, e as políticas públicas que tratam de recursos públicos, se constituem através de três elementos:

transparência,

acessibilidade

e

participação,

sendo

necessário enfatizar, que todo Estado capitalista está ligado às políticas públicas, passando o mesmo a não existir sem estas. Não obstante, Souza explica que, Nesse sentido e levando nosso raciocínio ao extremo, uma interrogação se impõe: toda atividade do Estado capitalista seria especificamente pública, já que, no fundamental, as partes mais importantes de sua estrutura ou de sua ação estratégica a longo prazo poderiam ser caracterizadas por seu comprometimento com interesses privados ou particulares de classes ou grupos dominantes? Evidentemente que não estamos advogando a ideia do Estado como simples instrumento de classes, mas também não queremos cair no equívoco de atribuir uma autonomia total ao Estado (SOUZA, 2009, p. 12-13).

Os

anos

de

1970

e

1980

consistiram

efetivamente

na

descentralização das políticas públicas, como uma das grandes reivindicações democráticas desta época, haja vista, a centralização 1254

decisória predominante no regime militar355, produzindo ineficiência, corrupção e não participação no processo decisório, condicionando as correntes políticas da esquerda e da direita, a um consenso, pelo menos parcial, em torno da descentralização. A descentralização passou a ser vista, como produtora de eficiência, participação e transparência, não cabendo mais ao Brasil dos anos de 1980, a centralização e o autoritarismo, ambos encarados como filhos da ditadura, ao contrário da democratização, vista como processo decisivo e eficiente da gestão pública, passando a integrar, nos diferentes sistemas de ensino, as políticas públicas para a educação, como uma ação mais ligada entre as esferas públicas e o sistema federativo, implicando na colaboração e distribuição de responsabilidades e tarefas. Como em outros setores, também a participação popular, através dos grupos sociais, possibilitaram conhecer de perto os dirigentes públicos e com eles discutir ideias, propostas e necessidades locais, regionais e nacionais, permitindo uma visão mais adequada de suas políticas e, em especial, uma maior coerência na sua implementação e na permanência dos investimentos financeiros. A

reforma

educação,

do

saúde

Estado

e

o

brasileiro356,

início

da

especialmente

privatização

da

para

a

previdência,

empreendida no final do século XX, e oriunda da reestruturação capitalista, redimensiona o papel do Estado ao financiamento das políticas públicas. Evidenciando esses embates teóricos, entramos na década

de

1990,

denominada

“Década

355

da

Educação”,

que

No período que compreendeu os anos de 1964 a 1984, foram decretados numerosos atos institucionais da ditadura militar no país, num regime que torturou, prendeu, assassinou seus adversários, censurou a imprensa e promoveu uma vasta repressão militar. 356 A reforma do Estado brasileiro deve ser compreendida por uma redefinição (parcial) do papel do Estado, que deixa de ser o responsável direto pelo desenvolvimento econômico e social na produção de bens e serviços, para fortalecer-se como órgão promotor e regulador desse movimento.

1255

representou com muita ênfase a ideologia neoliberal357 em resposta aos problemas alocados pela crise do desenvolvimento do capitalismo. Essas

transformações

ocorridas,

oriundas

do

processo

de

globalização e informatização, redimensionaram as relações humanas e implicaram mudanças tanto no campo socioeconômico e político, quanto na cultura, tornando possível o surgimento da chamada era da informação. É nesse novo contexto político, que o papel da educação, principalmente em plena era da informação e comunicação deve ser observado atentamente e examinado com cuidado, reconhecendo-se as constantes transformações na sociedade, na tecnologia e na economia, sob a ótica das consequências oriundas da evolução das novas tecnologias, centradas na chamada comunicação de massa, na difusão do conhecimento, não se fazendo sentir plenamente no ensino. Assim, [...] tomando-se inicialmente a política educacional como exemplo, não se pode esquecer que a escola e principalmente a sala de aula, são espaços em que se concretizam as definições sobre a política e o planejamento que as sociedades estabelecem para si próprias, como projeto ou modelo educativo que se tenta por em ação (AZEVEDO, 2004, p. 59).

No

primeiro

governo

de

Fernando

Henrique

Cardoso,

particularmente a partir do ano de 1995, a educação e as políticas públicas voltadas para esta, ganham importância estratégica para as reformas educativas, alicerçadas na reforma do Estado, e ancorada na ideia de Estado mínimo358, reabilitando o mercado como instância reguladora por excelência das relações econômicas e sociais, numa

357

Ideologia econômica ideal do capitalismo globalizado, com redução da interferência do Estado na economia, surgida logo após a segunda guerra mundial, mas com poucos adeptos. A prosperidade da idade de ouro deixava os governos dos países capitalistas confiantes na política econômica adotada, no entanto, foi só após a grande crise de 1973, que as ideias neoliberais começaram a ser aplicadas. 358 Seguindo a inspiração de Goodin (1998), registramos que no universo de regras práticas em que se move o neoliberalismo, o argumento do Estado mínimo é advogado pelo máximo, não pelo mínimo: principalmente no que diz respeito à sua responsabilidade social, afirma-se tão somente a fronteira demarcadora do máximo até onde deveria e poderia ir o Estado.

1256

evidente contraposição ao estado de bem estar social e restrições impostas pela regulação exercida na esfera política. Para que esse novo padrão possa estar contido na reestruturação da educação, operada não apenas na esfera interna, no caso a escola, através das modificações de conteúdos curriculares e no próprio fazer pedagógico, quanto na ordem externa, mais ligada diretamente aos órgãos que determinam as políticas educacionais, para que depois de formuladas e implantadas, possam ser verificadas por meio das avaliações, em busca de reformulações caso não estejam correspondendo às metas a que o programa se propôs. Ao se expandir a sociedade brasileira e tornar-se cada vez mais complexa, novas tendências e perspectivas políticas, passam a influenciar também as instituições de ensino, por estas articularem-se diretamente com os conhecimentos e a aprendizagem, postulando no sistema educacional a presença cada vez mais consciente de sujeitos e pessoas nele interessados. Essa complexificação, trás a gestão como a presença de um elemento frequente, seja desde a gestão dos sistemas, até a gestão das unidades escolares. A gestão de qualquer setor institucionalizado predomina por sua forma de organização, buscando geralmente, atender e transformar suas metas e objetivos educacionais em ações, dando concretude às direções traçadas pelas políticas. No Brasil, a gestão da educação escolar é regida em grande parte por leis e normatizações, oriundas das esferas federal, estadual e municipal. Esse aporte legal, nos remete a nível administrativo, há uma série de fóruns e coordenações, que agregam os secretários estaduais e municipais, respectivamente, representados pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação – CONSED e pela União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação – UNDIME.

1257

Por ser a educação escolar, um serviço público, com finalidade universal, é no ensino público, que a educação deve ser gerida com garantias que versem pela a igualdade perante a lei, e pelas condições e oportunidades vigentes para todos, sem distinções, assegurando, uma gestão que esteja contida nas competências normativas e mecanismos jurídicos de proteção ao direito a educação. Na formulação das políticas públicas, emerge a preocupação em procurar identificar elementos e similaridades presentes nas orientações da educação básica, tentado compreendê-las dentre do quadro das reformas que a educação passa a presenciar a partir dos anos de1990, para a educação pública, e em especial, na democratização. A

democratização

do

ensino

público

assume

um

papel

importante, a partir da década de 1990, no âmbito da educação básica, visando, pelo menos em termos oficiais, o caráter da qualidade, permanência e conclusão da escolaridade, como um direito social. Todavia, o Estado passa a dar ênfase à gestão da educação pública, com vista ao cumprimento de seus objetivos, equacionando seus problemas e otimizando seus recursos. Por essa razão, a luta pela universalização do ensino, perpassa pelas políticas públicas e pela gestão da escola, já que [...] Por considerar a crise educacional como uma questão de natureza administrativa, o Estado irá atribuir relativa centralidade à gestão da escola na formulação de políticas públicas para a educação básica, sobretudo a partir dos nos 90. Na mesma esteira o movimento social, por considerar o caráter excludente da escola resultante da frequente repetência, a expressão do autoritarismo da estrutura escolar. Passou a reivindicar maior democracia na gestão da educação (OLIVEIRA, 2000, p. 101).

A discussão gerada em torno das políticas e da gestão da educação, tem sido objeto de muitos estudos e pesquisas, tanto no cenário nacional, quanto no internacional. É importante destacar a ação política, assumida por diferentes atores, contextos e marcos 1258

regulatórios que proveram as orientações, compromissos e perspectivas, sendo estes, assimilados e naturalizados pelos gestores de políticas públicas. Nessa ótica, é importante situar as políticas que direcionam a gestão da educação básica, através da avaliação das propostas de ações dos programas e estratégias vinculados ao governo federal. Trata-se, portanto, de buscar apreender, os limites e possibilidades da gestão, de modo a propiciar meios institucionais que contribuam para a materialidade das políticas de gestão e organização educacional no Brasil. Como afirma Garcia, ao considerar que A gestão educacional, entendida como conjunto de ações articuladas de política educativa, em suas distintas esferas que caracterizam um país como o Brasil, onde União, estados e municípios têm responsabilidades solidárias no cumprimento do dever constitucional de oferecer educação pública de qualidade para todos, vive dilemas decorrentes de um modelo que ainda está longe de ser eficiente (GARCIA, 2000, P.127).

No Brasil, a gestão da educação sofreu significativas alterações na última década do século XX, sob a égide da formulação de uma nova base legal, formulada a partir da promulgada da Constituição Federal de 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB, Lei nº 9.394/96, trazendo muitas transformações, principalmente, ao que concernem ao aspecto descentralização da educação básica, materializando-se a partir daí a necessidade e a importância das diferentes formas de gestão e sua operacionalização. E estas, terminam abrangendo variadas atividades, envolvendo desde as discussões de currículos à utilização da informática, como é o caso do ProInfo, ou seja, o objeto de nossa pesquisa.

A PESQUISA

1259

A necessidade de se buscar compreender na esfera pública, as respostas decorrentes de pesquisas sobre seus problemas, demonstra a importância e a urgência de se investigar os objetivos/metas de seus programas, estabelecendo a adoção de critérios de aferição de sucesso (FIGUEIREIDO & FIGUEIREDO, 1986), alicerçados em padrões de referências que possibilitem a avaliação das ações governamentais. Como relata Weiss: El objeto de la investigación evaluativa es medir los efectos de un programa por comparación com las metas que se propuso alcanzar, a fin de contribuir a la toma de decisiones subsiguientes acerca del programa y para mejorar la programácion futura. Em esa definición hay cuatro rasgos primordiais: la expresión “medir los efectos” hace referencia a la metodología de investigatión que se emplea. Lá expresión “los efectos” hace hincapié em los resultados del programa y no em su eficiência, honestidad, moral o respeto a reglas o normas. La comparación de los efectos com metas subraya el uso de critérios explicítos para juzgar hasta qué punto el programa va marchando bien. La contribución a la toma de decisiones subsiguiente y al mejoramiento de la programación futura denota la finalidade social de la evaluatión (WEISS, 1978, p. 16-17).

Observa-se na administração pública brasileira, que por muito tempo, houve uma despreocupação no que tange à avaliação de políticas públicas, aos seus programas públicos, em geral, e programas sociais, em particular; muito embora essa realidade esteja sendo modificada, a avaliação passa a ser vista no contexto atual, como objeto de controle e regulação do Estado, predominando uma preocupação visivelmente focada nos processos de formulação de programas e quanto a implementação e a avaliação, pouca atenção tem se voltada para estas. A crise financeira da década de 1980, devido ao crescimento da dívida externa, ocasionada pela elevação das taxas internacionais de juros e a interrupção de um longo ciclo de crescimento econômico, desencadeou um aumento nas desigualdades sociais, já presentes na realidade

brasileira,

apresentando 1260

uma

estrutura

econômica

desfavorável, e um acréscimo na demanda por ações e serviços sociais que viessem suprir de forma compensatória os problemas mais emergentes,

através

das

políticas

públicas,

consolidadas

pelos

programas e projetos. Esse cenário desencadeou a necessidade de se obter nos investimentos governamentais em programas sociais, maior eficiência e maior impacto nos recursos alocados, passando a ser visto os programas sociais, integrados a uma perspectiva de avaliação sistemática, contínua e eficaz, como forma e controle dos recursos, com vistas a melhores resultados que poderão ser obtidos, haja vista, uma melhor aplicabilidade dos recursos. Na

medida

em

que

os

serviços

públicos

são

alocados,

independente da conjuntura ou da crise, a avaliação se coloca de forma primordial e necessária para a análise crítica de um programa, objetivando, principalmente, verificar em que medida as metas estão sendo alcançadas, custos, efeitos que foram previstos ou não previstos, desejáveis ou não desejáveis, na tentativa de se indicar novos cursos para ações mais eficazes. Desse modo, podemos compreender que uma avaliação de política deve necessariamente verificar conexões lógicas entre os objetivos da avaliação, os critérios de avaliação e os modelos analíticos que irão dar conta se realmente a política ou programa social foi um sucesso ou não (FIGUEIREDO & FIGUEIREDO, 1986). Além disso, torna-se necessário, também, avaliar os programas educacionais como define Scriven (1967) ao destacar a importância de distinguir os fins/metas do papel da avaliação, definindo-a de cunho pedagógico e formativo, por examinar questões que podem ser modificadas durante a elaboração e implementação do programa de modo a aprimorá-lo. Para tanto, a pesquisa será baseada por meio de uma avaliação de processo, a qual visa,

1261

A aferição da eficácia: se o programa está sendo (ou foi) de acordo com as diretrizes concebidas para a sua execução e se o seu produto atingirá (ou atingiu) as metas desejadas. A importância desta linha de avaliação está no fato de que é impossível antever todos os tipos de entravos, problemas e conflitos possíveis durante a realização de um programa (FIGUEIREDO & FIGUEIREDO, 1986, p. 110).

A avaliação de processo, não objetiva mensurar a natureza ou tamanho do impacto do programa, entretanto, ao passo que o programa é implementado, esta se representa pela possibilidade de monitoramento dos processos que são responsáveis e produzem os efeitos esperados e passa a controlar antecipadamente o tamanho e a qualidade do efeito desejado (FIGUEIREDO & FIGUEIREDO, 1986). Uma das marcas das transformações na educação tem sido a enorme e substancial influência da utilização das novas tecnologias de informação e comunicação – NTIC, nas mais diversas áreas da sociedade moderna, inclusive na área de educação em seus diversos níveis. Nota-se que os programas nacionais existentes e desenvolvidos no

Brasil

na

área

da

tecnologia

educacional

são

diversos

e

estabelecem uma unidade básica, de acordo com as propostas dos parâmetros curriculares nacionais, prevendo proporcionar condições de acessibilidade e de conhecimento para todos os cidadãos. No campo das políticas públicas voltadas para o campo da educação que estão sendo desenvolvidos e implementados no Estado brasileiro surge o Programa Nacional de Tecnologia Educacional (ProInfo), que possui, formalmente, o objetivo de promover o uso pedagógico da informática na rede pública de educação básica. O programa leva as escolas computadores, recursos digitais e conteúdos educacionais. Em contrapartida, estados e municípios devem garantir a estrutura adequada para receber os laboratórios e capacitar os educadores para o uso das máquinas e tecnologias.

1262

O ProInfo foi criado através da Portaria nº 522, de 09 de abril de 1997, do Ministério da Educação, e é desenvolvido pela secretaria de Educação a Distância, por meio do Departamento de Infra-Estrutura Tecnológica - DITEC, sendo a partir de 12 de dezembro de 2007, reformulado em virtude da criação do decreto n° 6.300 passando a ser Programa Nacional de Tecnologia Educacional, tendo como principal objetivo promover o uso pedagógico das tecnologias de informação e comunicação nas redes públicas de educação básica em parcerias com as secretarias de educação estaduais e municipal, além de articular as atividades desenvolvidas sob a jurisdição, em especial as ações dos Núcleos de Tecnologia Educacional - NTEs. O interesse pela temática desta pesquisa, que tem como objeto o ProInfo, surgiu com a minha participação no programa enquanto bolsista do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE, na condição de tutora do programa, me reportando a sujeito da pesquisa, suscitando algumas inquietações que desencadearam a investigação do problema central da pesquisa: Como o PROINFO está tratando a gestão do programa? Os critérios, alternativas, metodologias e mecanismos de uma observação e análise mais precisa da gestão do programa, perpassará por uma avaliação do ProInfo com base no critério da eficácia e poderá identificar os fatores que facilitam e os obstáculos que condicionam de forma positiva ou negativa o cumprimento das metas e objetivos propostos pelo programa. Daí a avaliação de processo passa a integrar-se como uma das partes da metodologia usual de avaliação, por ser de natureza qualitativa, e pela estratégia da formulação até a implementação da política ou programa, constituindo-se por decisões acerca das características ou dimensões do processo, através da investigação

1263

sistemática do alcance e dos beneficiados acompanhando os processos internos. O principal objetivo desse tipo de avaliação é poder detectar eventuais defeitos ocasionados na elaboração dos procedimentos, identificando os entraves e gerando informações importantes para reprogramação do programa proporcionando mudanças no seu conteúdo durante a sua própria execução. Como declara Draibe, As avaliações de processo, de natureza qualitativa, buscam identificar os fatores facilitadores e os obstáculos que operam ao longo da implementação e que condicionam, positiva ou negativamente, o cumprimento das metas e objetivos. Tais fatores podem ser entendidos como condições institucionais e sociais dos resultados (DRAIBE, 2001, p. 30).

Diante disso, o objetivo geral desta pesquisa é avaliar a eficácia da gestão no processo de implementação do ProInfo nas escolas públicas do

município de Parnamirim/RN, buscando compreender

como o município está tratando a gestão do programa. Como objetivos específicos, a pesquisa buscará: a) analisar se o programa promove uma continuidade e viabiliza incentivos à capacitação dos professores e o uso pedagógico da informática na escola; b) identificar se as escolas dispõem de uma infraestrutura necessária para o adequado funcionamento dos ambientes tecnológicos do programa; c) observar se há um desenvolvimento e acompanhamento das ações do programa nas escolas; d) Investigar se existe um suporte técnico que possibilite a manutenção dos equipamentos do ambiente tecnológico. Quanto ao método, a pesquisa é de natureza qualitativa, delineada buscando a relação entre a fundamentação teórica e o campo

empírico

e

a

compreensão

do

objeto,

levando

em

consideração o estudo “in loco” uma vez que propomos uma investigação com sujeitos e seus espaços de atuação. De acordo com Denzin e Lincoln (2006, p. 23, grifos dos autores):

1264

A palavra qualitativa implica uma ênfase sobre as qualidades das entidades e sobre os processos e os significados que não são examinados ou medidos experimentalmente (se é que são medidos de alguma forma) em termos e quantidade, volume, intensidade ou frequência. Os pesquisadores qualitativos ressaltam a natureza socialmente construída da realidade, a íntima relação entre o pesquisador e o que é estudado, e as limitações situacionais que influenciam a investigação.

No que diz respeito ao universo e amostra, ressalta-se que o universo ou população-alvo “é o conjunto dos seres animados e inanimados que apresentam pelo menos uma característica em comum” e a amostra “é uma parcela convenientemente selecionada do universo [...] é um subconjunto do universo” (GONÇALVES, 2005, p. 118). Assim, o universo da pesquisa trata-se das escolas da rede municipal de Parnamirim/RN, e a amostra será uma parte deste total, representada por quatro escolas da rede municipal determinadas pela localização dos pontos cardeais, isto é, pelo referencial norte, sul, leste e oeste, no espaço temporal dos anos de 2008 a 2012. Utilizaremos também o procedimento de coleta de dados através de entrevistas, sendo estas importantes, porque através delas os sujeitos entrevistados externam seus anseios, experiências vivenciais, emoções, crenças, frustrações e construções pessoais. Além do mais, nos fornecerão, igualmente, informações relevantes sobre a gestão. Como afirma May (2004, p.145) “[...] As entrevistas geram compreensões ricas das biografias, experiências, opiniões, valores, aspirações, atitudes e sentimentos das pessoas”. Para realizá-las, faremos uso das entrevistas semi-estruturada com a coordenação do ProInfo, representada pela coordenação da UNDIME-RN (atende a demanda das escolas dos municipais); com a secretária municipal de educação do município de Parnamirim/RN; pela equipe gestora municipal do programa, e por fim, com uma amostra de dois professores por escola que receberam a capacitação do programa, totalizando oito professores, o que nos fornecerá os dados empíricos para a avaliação do programa.

1265

A entrevista semiestruturada se constitui em uma série de perguntas abertas, proferidas em ordem prevista, possibilitando ao entrevistador alterar esta ordem, conforme a necessidade de melhor esclarecimento das respostas dos entrevistados. Essa flexibilidade possibilita um contato mais íntimo entre o entrevistador e o entrevistado, favorecendo assim a exploração em profundidade de seus saberes, bem como de suas representações, de suas crenças, de seus valores. Colaborando com esta discussão May (2004, p.148, grifos do autor) acrescenta que, [...] As perguntas são normalmente especificadas, mas o entrevistador está mais livre para ir além das respostas de uma maneira que pareceria prejudicial para as metas de padronização e comparabilidade. As informações sobre idade, sexo, ocupação, tipo de domicílio e assim por diante podem ser perguntadas em um formato padronizado. O entrevistador, que pode buscar tanto o esclarecimento quanto a elaboração das respostas dadas, pode registrar informação qualitativa sobre o tópico em questão. Isso permite que ele tenha mais espaço para sondar além das respostas e, assim, estabelecer um diálogo com o entrevistado.

A pesquisa documental se dará junto aos órgãos responsáveis pelo ProInfo: a nível a nível estadual, na Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Norte; a nível municipal, junto a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação – UNDIME/RN e pela Secretaria de Municipal de Educação de Parnamirim/RN. A caracterização da pesquisa de acordo com os procedimentos de coleta dar-se-á em duas etapas: a primeira diz respeito à pesquisa bibliográfica e documental, sendo a pesquisa bibliográfica com vista aos

materiais

escritos/gravados

com

informações

elaboradas

e

publicadas por outros autores, tornando-as uma bibliografia, e a documental são as fontes de informação trazidas nos documentos que ainda não receberam uma organização; a segunda etapa se constituirá da análise da pesquisa qualitativa desenvolvida no universo em questão, procurando investigar as relações existentes entre as ações propostas pelo programa e sua forma de gestão, confrontando dados 1266

da realidade com os dados orientados pela pesquisa bibliográfica, procurando assim chegar às informações alocadas no objetivo desse projeto respondendo assim o meu problema de pesquisa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para efeitos de sintetização, utilizaremos o indicador que possui uma relação mais direta com esta pesquisa, ligado diretamente à avaliação de acordo com Draibe (2001), será o indicador de eficácia para

medir

a

relação

entre

objetivos/metas

planejadas

e

as

alcançados, situando por sua natureza como uma avaliação de processo, também denominada por Scriven (1967) como formativa, com enfoque na função proativa, que objetiva melhorar e desenvolver o objeto em foco, seja um indivíduo, grupo, programa, instituição, sistema. Concernente ao melhor enfoque que situa esta pesquisa, que tem como objeto a avaliação de um programa educacional, no caso o ProInfo, é o enfoque de estudo de casos ou negociação, também chamada de avaliação responsiva por Stake, no sentido de que os avaliadores devem responder o que os destinatários desejam saber, considerando suas preocupações, buscando compreender por meio as diferentes visões que as pessoas envolvidas em um programa têm sobre ele, investigando a identificação, tendo como principal intento a concepção que os sujeitos envolvidos tem sobre o objeto ou programa que avaliado, adotando como forma metodológica a utilização de entrevista e a negociação, trazendo para pesquisa o caráter qualitativo. Como critério e foco de análise, utilizaremos as contribuições Draibe (2001), enfatizando três, dentre os pontos que ela elege como 1267

fundamentais para uma avaliação de processo e implementação de uma política/programa, que são os Processos de divulgação e informação predominando a necessidade de divulgar as informações alusivas ao programa, e se estas ocorrem de forma suficiente e clara, sobretudo, aos que serão beneficiados pelo programa; Sistemas de seleção

apontando

os

agentes

envolvidos

nos

programas

(implementadores/beneficiários); sistemas de capacitação utilizado e indispensável em qualquer programa para se verificar o cumprimento das tarefas e a capacidade dos agentes na implementação, assim como, os beneficiários. E, por fim, para a sistematização do nosso trabalho, que encontrase em andamento, analisaremos e confrontaremos os resultados obtidos na revisão da literatura, da análise documental e das entrevistas, consubstanciando-se de relevante importância aos progressos técnicos, por meio da verificação e da descoberta e como fonte bibliográfica para posteriores pesquisas.

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1268

DRAIBE, Sônia Miriam. Avaliação de implementação: esboço de uma metodologia de trabalho em políticas públicas. In: BARREIRA, Maria Cecília Roxo Nobre; CARVALHO, Maria do Carmo Brant de. (Orgs.). Tendências e perspectivas na avaliação de políticas e programas sociais. São Paulo: IEE/PUC-SP, 2001. FIGUEIREDO, Marcos Faria; FIGUEIREDO, Argelina Maria Cheibub. Avaliação política e avaliação de políticas. Análise & Conjuntura, v.1, n. 3, Belo Horizonte, set./dez. 1986. FONSECA, M. O Banco Mundial e a gestão da educação brasileira. In: OLIVEIRA, D. (Org.). Gestão democrática da educação: desafios contemporâneos. 7 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. GARCIA, Walter E. Tecnocratas, educadores e os dilemas da gestão. In: FERREIRA, Naura Syria Carapeto; AGUIAR, Márcia Angela da S. (Orgs.). Gestão da educação: impasses, perspectivas e compromissos. São Paulo: Cortez, 2000. GOONDIN, Robert E. Reasons for welfare. N. Jersey, Princeton Univ. Press, 1988. GONÇALVES, Hotência de Abreu. Manual de metodologia da pesquisa científica. São Paulo: Avercamp, 2005. GUBA, Egon G.; LINCOLN, Yvonna S. Avaliação de quarta geração. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011. MAY, Tim. Pesquisa social: questões, métodos e processos. Porto Alegre: Artmed, 2004. OLIVEIRA, Dalila Andrade. A gestão democrática da educação no contexto da reforma do estado. In: FERREIRA, Naura Syria Carapeto; AGUIAR, Márcia Angela da S. (Orgs.). Gestão da educação: impasses, perspectivas e compromissos. São Paulo: Cortez, 2000. RODRIGUES, Marta Maria Assumpção. Políticas Públicas. São Paulo: Publifolha, 2010. – (Folha Explica) SAUL, Ana Maria. Avaliação emancipatória: desafios à teoria e à prática em educação de avaliação e reformulação de currículo. São Paulo: Cortez, 2006. SCHWARTZMAN, Simon. As avaliações de nova geração. In: SOUZA, Alberto de Mello e (org.). Dimensões da avaliação educacional. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.

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1270

PROGRAMA MAIS EDUCAÇÃO: UMA EXPERIÊNCIA DE EDUCAÇÃO INTEGRAL NA REDE MUNICIPAL DE ENSINO DO NATAL/RN/BRASIL

Márcia Soraya Praxedes da Silva359 Antônio Lisboa Leitão de Souza (Orientador)360

Resumo: Atualmente, no cenário da educação, a Educação Integral tem ocupado, cada vez mais, um espaço privilegiado, suscitando debates e discussões acerca de sua contribuição para a melhoria da educação. Este trabalho objetiva refletir sobre a Educação Integral, tendo como referência a implementação do Programa Mais Educação nas escolas da Rede Municipal de Ensino de Natal, Rio Grande do Norte, Brasil. Instituído pelo Ministério da Educação em 2008, através de Portaria Interministerial, o Programa Mais Educação configura-se como uma experiência de ampliação da jornada escolar, ou seja, de Educação Integral, uma das metas propostas pelo Plano Nacional de Educação, 2011/2020. Esperamos contribuir com dados empíricos e teóricos que subsidiem uma melhor reflexão em torno da implementação do Programa Mais Educação, em nível nacional.

Palavras–chaves: Educação. Educação Integral. Programa Mais Educação.

INTRODUÇÃO

O plano educacional no Brasil, século XXI, apresenta um panorama bastante complexo: de um lado, escolas com modelos de processos de ensino-aprendizagem, buscando pelo mais eficiente; de outro,

resultados

insatisfatórios

nas

provas

de

aferição

do

conhecimento, demonstrando a dificuldade de aproveitamento das capacidades intelectuais, sociais, psicomotoras e culturais dos alunos desde os primeiros anos de escolaridade.

359

Estudante de Ciências da Educação (UFRN) [email protected]. Graduado em Pedagogia (UFRN), Filosofia (UFRN), Mestre em Educação (UFRN), Doutor em Educação (USP) com estágio na Universitè Paris 8 e na École des Hautes Études en Sciences SocialesEHESS/Paris. Professor Associado (UFCG) e Colaborador do Programa de Pós-Graduação em EducaçãoPPGEda UFRN. [email protected]. 360

1271

Dados sobre evasão e repetência do sistema público de ensino (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira INEP, 2007), revelam que a permanência e o sucesso da criança na escola, são metas a serem alcançadas. São dados preocupantes, se considerarmos a universalização do Ensino Fundamental. De acordo com Carvalho, (2006, p.7), a educação brasileira não cumpriu o ideário a ela pré-destinado no século XX. “Somente na entrada do século XXI é que, finalmente, universalizou-se o acesso ao ensino fundamental e, no entanto, essa meta não tem sido suficiente para que nossas crianças e adolescentes obtenham os saltos de aprendizagem esperados.” Em 1990 o Brasil participou da Conferência Mundial de Educação para Todos, em Jomtien, na Tailândia, convocada pela Unesco, Unicef, PNUD e Banco Mundial. Dessa conferência, assim como da Declaração de Nova Delhi — assinada pelos nove países em desenvolvimento de maior contingente populacional do mundo —, resultaram posições consensuais na luta pela satisfação das necessidades básicas de aprendizagem para todos, capazes de tornar universal a educação fundamental e de ampliar as oportunidades de aprendizagem para crianças, jovens e adultos. (BRASIL, 1997, p.14)

Delors

(1998),

aponta

como

principal

conseqüência

da

sociedade do conhecimento, a necessidade de uma aprendizagem ao longo de toda a vida fundada em quatro pilares que são ao mesmo tempo pilares do conhecimento e da formação continuada. Esses pilares podem ser tomados também como bússola para nos orientar rumo ao futuro da educação, quais sejam: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser. Nessa perspectiva, cabe às escolas promoverem um ensino capaz de desenvolver uma aprendizagem que contribua para o desenvolvimento integral da personalidade humana, construída sobre a base dos contextos socioculturais nos quais os alunos se desenvolvem .

1272

No contexto da proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais se concebe a educação escolar como uma prática que tem a possibilidade de criar condições para que todos os alunos desenvolvam suas capacidades e aprendam os conteúdos necessários para construir instrumentos de compreensão da realidade e de participação em relações sociais, políticas e culturais diversificadas e cada vez mais amplas, condições estas fundamentais para o exercício da cidadania na construção de uma sociedade democrática e não excludente. (BRASIL, 1997, p.33)

No entanto, a escola não tem conseguido atingir essa meta, é o que nos prova os dados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica – IDEB. Criado em 2007 pelo Instituto Nacional Educação e Pesquisa – INEP – o IDEB, materializa metas de qualidade para a educação básica. Partindo dessa realidade, entre os muitos consensos sobre a educação está o de que o tempo dedicado à educação está muito aquém do que seria necessário para dar conta da formação de nossas crianças e jovens para os desafios do século XXI. Permanece, entretanto, no imaginário social a ideia de educação reduzida à educação escolar e formal apesar das evidências, nas atitudes e respostas das próprias crianças, de que a aprendizagem acontece em cada experiência com a qual é confrontada. É nesse contexto que em 2007, surge o Programa Mais Educação, uma iniciativa do Governo Federal cujo objetivo é contribuir para a formação integral de crianças, adolescentes e jovens, por meio da articulação de ações, projetos e programas federais e suas contribuições às propostas, visões e práticas curriculares das redes públicas de ensino e das escolas. Sua operacionalização é de responsabilidade da Secretaria de Educação

Continuada,

Alfabetização

e

Diversidade

(SECAD);

Secretaria de Educação Básica (SEB); financiado com os recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) através Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE). Aliados ao Ministério de 1273

Educação, nesse programa, estão os Ministérios do Desenvolvimento Social e Combate a Fome, da Ciência e Tecnologia, do Esporte, do Meio Ambiente, da Cultura, da Defesa e a Controladoria Geral da União. Este trabalho objetiva refletir sobre a implementação do Programa Mais Educação nas escolas da Rede Municipal de Ensino de Natal/Rio Grande do Norte/ Brasil, no tocante a melhoria da aprendizagem dos alunos. Em 2008 o Ministério da Educação, implantou o Programa Mais Educação na rede pública de ensino de todo o Brasil. Instituído pela Portaria

Normativa

Interministerial



17/2007,

o

Programa Mais

Educação, constitui-se em mais um marco legal, que tem como prioridade contribuir efetivamente para a formação integral de crianças, adolescentes e jovens, por meio da articulação de ações, de projetos e de programas do Governo Federal e suas contribuições às propostas, visões e práticas curriculares das redes públicas de ensino e das escolas, alternando o ambiente escolar e ampliando a oferta de saberes, métodos e processos e conteúdos educativos. A educação integral constitui ação estratégica para garantir atenção e desenvolvimento integral às crianças, aos adolescentes e jovens, sujeitos de direito que vivem uma contemporaneidade marcada por intensas transformações e exigência crescente de acesso ao conhecimento, nas relações sociais entre diferentes gerações e culturas, nas formas de comunicação, na maior exposição aos efeitos das mudanças em nível local, regional e internacional. (BRASIL, 2009, p.6).

Nesse sentido, a educação integral se dará por meio da ampliação de tempos, espaços e oportunidades educativas que qualifiquem o processo educacional e melhorem o aprendizado dos alunos. Trata-se de (des) esfalecer os tempos da vida de nossos alunos, entendendo-os em seu continuum, em suas dinâmicas como sujeitos “portadores” de todas as possibilidades de aprendizagem e saberes. Trata-se de, a partir dos processos de reflexão e ação instituídos há muito em muitas escolas, avançar na qualificação do espaço escolar como espaço de

1274

vida, como espaço de conhecimentos e valores, como espaço no qual a vida transita em sua complexidade e inteireza, como espaço no qual cada aluno e aluna, com razão e emoção, possa operar com a música, com as ciências, com as artes cênicas, com as matemáticas, com a literatura...onde cada um e todos em relação possam humanizar-se e singularizar-se, entendendo o mundo e entendendo-se no mundo. (MOLL, 2004, p.105).

Não se trata, portanto da criação ou recriação da escola como instituição total, mas da implicação e da articulação dos diversos atores sociais que atuam na garantia de direitos de nossas crianças e jovens na co-responsabilidade por sua formação integral. Destina-se, prioritariamente, às escolas de baixo IDEB, situadas em capitais, regiões metropolitanas e grandes cidades em territórios marcados por situações de vulnerabilidade social que requerem a convergência prioritária de políticas públicas e educacionais. De acordo com o Decreto 7.083 de 27 de janeiro de 2010, o Programa tem por objetivos: I. Formular política nacional de educação básica em tempo integral; II. Promover diálogo entre os conteúdos escolares e os saberes locais; III Favorecer a convivência entre professores, alunos e suas comunidades; IV. Disseminar as experiências das escolas que desenvolvem atividades de educação integral e V. Convergir políticas e programas de saúde, cultura, esporte, direitos humanos, educação ambiental, divulgação científica, enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes, integração entre escola e comunidade, para o desenvolvimento do projeto político-pedagógico de educação integral.

O Programa Mais Educação tem se apresentado, atualmente, como política de educação integral em nível nacional, tendo o marco no governo Lula, sendo mantido no governo atual, de Dilma, ambos do mesmo partido político. Em 2011, dados do MEC mostraram o crescimento do Programa através da adesão de escolas públicas em todo o território nacional: mais de 15 escolas foram contempladas. Em 2012 a estimativa de

1275

atendimento é de mais 15 mil escolas, das quais 5 mil encontram-se na zona rural, são as chamadas escolas do campo. Com essa nova demanda atendida, estima-se, para o ano em curso, a participação de 25 mil alunos da rede pública de ensino em todo o Brasil. O Programa vislumbra uma concepção de educação que propõe a articulação de políticas sociais e o estabelecimento de parcerias para a implementação de atividades socioeducativas no contraturno escolar, tendo em vista o alcance da formação integral de crianças, adolescentes e jovens. O Programa MAIS EDUCAÇÃO já é uma realidade que, como tudo que se faz em educação, será progressivamente aprimorada com a participação de educadores, educandos, artistas, atletas, equipes de saúde e da área ambiental, cientistas, gestores das áreas sociais, enfim, com todos aqueles que, pessoal e profissionalmente, dedicam-se à tarefa de garantir os direitos de nossas crianças, adolescentes e jovens (BRASIL, 2009, p. 07).

O Programa Mais Educação, destina-se, prioritariamente, às escolas que apresentam os mais baixos Índices de Desenvolvimento da Educação Básica - IDEB, situadas em capitais, regiões metropolitanas e grandes

cidades

em

territórios

marcados

por

situações

de

vulnerabilidade social que requerem a convergência prioritária de políticas públicas e educacionais. Na rede municipal de ensino da cidade de Natal/RN, o Programa Mais Educação foi implementado em 2008, com a adesão de 17 escolas, atendendo 3.727 alunos no contraturno escolar. No ano de 2009, amplia-se para 26 escolas. Em 2010, outras 8 escolas fizeram adesão ao Programa. No ano de 2011 não houve nenhum adesão e em 2012 a rede municipal conta com a adesão de 53 escolas, atendendo 8.190 alunos. As escolas foram selecionadas pelo Ministério da Educação, segundo critérios estabelecidos, quais sejam: 1276



Assinatura

do

Termo de

Adesão

ao

Plano

de Metas

e

Compromisso Todos pela Educação.

O Plano de Metas e Compromisso Todos pela Educação é a conjugação dos esforços da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, atuando em regime de colaboração, das famílias e da comunidade, em proveito da melhoria da qualidade da educação básica. (BRASIL, 2007, Art. 1o)

Conforme o Decreto nº 6.094/2007, o Plano de Metas e Compromisso Todos pela Educação propunha a adoção de um conjunto de diretrizes e estabelecia a projeção do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica - IDEB dos anos iniciais e finais do ensino fundamental dos municípios.



Regularidade junto ao Programa Dinheiro Direto na Escola - PDDE,

conforme Resolução FNDE/CD nº 13 de 28/04/2008 que; Estabelece os documentos necessários à comprovação de regularidade para transferência de recursos e para habilitação de entidades estaduais, municipais, do Distrito Federal e entidades privadas sem fins lucrativos, bem como das entidades mantenedoras das escolas de educação especial, beneficiárias do PDDE, para o ano de 2008.



Escolas estaduais ou municipais localizadas nas capitais e cidades

das regiões metropolitanas com mais de 200 mil habitantes, com baixo IDEB e com mais de 99 matrículas registradas no Censo 2007, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP.

O recurso financeiro é destinado às próprias Unidades Executoras (UExs), através do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), para uso na aquisição de materiais, custeio de atividades e pagamento de 1277

transporte e alimentação de monitores responsáveis pela realização das oficinas cadastradas. As

escolas

selecionadas

fazem

a

adesão

através

do

preenchimento do Plano Consolidado, onde consta desde os dados relacionados a escola, gestores, coordenador do Programa na escola, atividades que serão realizadas e o número de alunos participantes. As atividades escolhidas são divididas em dez macrocampos distintos, englobando as diversas áreas do conhecimento - necessárias ao desenvolvimento integral do ser humano - articuladas com o Projeto Político Pedagógico das escolas que, por sua vez, foram construídos levando-se em consideração a realidade política, econômica, social e cultural da comunidade onde estavam inseridas. Os macrocampos contemplados são: Apoio Pedagógico, Meio Ambiente, Esporte e Lazer, Direitos Humanos em Educação, Cultura e Artes, Cultura Digital, Promoção da saúde, Investigação no Campo das Ciências e Educação Econômica. Cada escola cadastra no mínimo 100 alunos e escolhe no mínimo 5 e no máximo 6 atividades, contemplando três macrocampos distintos, sendo obrigatório a todas a inclusão de pelo menos uma atividade

do

macrocampo

Apoio

Pedagógico,

bem

como

a

participação de todos os alunos participantes. Nas escolas, as oficinas oportunizam um trabalho diferenciado do realizado na sala de aula, complementar, possibilitando a ampliação de repertórios relacionais, culturais, científicos e artísticos todos importantes para a criação de significados, compreensão da realidade e aumento da capacidade de intervenção na comunidade da qual os alunos fazem parte. Ao se entrelaçar a escola à comunidade nas suas múltiplas e complexas escalas territoriais de seu modo de existir, a educação torna-se instrumento de democracia 1278

e pode efetivar a construção de condições para a cidadania. Educar a cidadania é possibilitar à criança, ao jovem e a adulto entender a sociedade e participar das suas decisões, reconhecendo o lugar onde vive, sua escola, seu bairro e sua vizinhança como parceiros de seu desenvolvimento (BRASIL, 2009, p.47)

As oficinas são ministradas por monitores, que assinam um termo de compromisso firmado com base nos termos da lei do voluntariado. Para tanto, recebe uma ajuda de custo destinada a alimentação e transporte.

Para

ministrar

as

oficinas

do

macrocampo

apoio

pedagógico, os monitores deverão ser preferencialmente universitários das áreas em foco ou já ter a formação específica, ou seja, pedagogia, letras, matemática, geografia, histórias, dentre outras. Para desenvolver as oficinas dos demais macrocampos, o monitor precisa ter experiência ou habilidades, de modo que pessoas da própria comunidade também poderão ser monitor: capoeira, dança, recreação, judô, horta escolar, jornal escolar, rádio escola e outras. O Programa é coordenado por um professor comunitário (professor da rede e que conheça a comunidade). A contrapartida dessa coordenação é de responsabilidade da secretaria Municipal de Educação. Em 2012, das 53 escolas participantes, 36 recebem carga suplementar, ou seja, como o programa acontece nos dois turnos, temos coordenadores que já possuem 40 horas que destinam sua carga horária integral ao Programa e temos coordenadores com 20 horas, que recebe uma carga suplementar de mais 20 horas para contabilizar 40 horas semanais. É importante ressaltar que o Setor de Educação em Tempo Integral – Setor responsável pelo Programa Mais Educação - sob a orientação do Departamento de Ensino Fundamental da Secretaria Municipal de Educação, vem desenvolvendo desde 2008 a formação continuada de coordenadores e monitores por acreditar que uma atividade a ser

realizada com

monitores/professores

1279

ainda em

formação, por conseguinte, ainda sem o domínio dos saberes necessários ao exercício da profissão, demanda uma capacitação que os oriente no planejamento das atividades de ensino-aprendizagem, desenvolvido a partir dos objetivos presentes nas ementas das áreas do conhecimento contempladas pelo referido Programa. Assim, o objetivo da formação é subsidiar e contribuir com a prática de coordenadores e monitores na perspectiva, sobretudo, de perceberem o aluno como um ser integral, compreendido em sua totalidade, com necessidades e habilidades a serem trabalhadas nas áreas social, afetiva, cognitiva e psicomotora. A Formação é realizada por técnicos da própria Secretaria e vem contemplando apenas os macrocampos escolhidos pelas escolas. Nessa perspectiva, em 2012 a formação contou com a participação de 51 coordenadores e 328 monitores: 45 que atuam nas oficinas de Letramento, 35 das oficinas de matemática, 89 das oficinas de Cultura e Artes, 65 das oficinas de Esporte e Lazer; 21 das oficinas de Meio Ambiente e 22 das oficinas de Mídia. Em 2011 a Universidade Federal do Rio Grande do Norte em parceria com o MEC e com as Secretarias Estadual e Municipal realizaram um curso de formação para os coordenadores do Programa nas escolas, abrangendo ainda, os coordenadores da Secretaria Municipal de Educação. Em 2012 a parceria continua com o curso de extensão “Capacitação em Educação Integral: uma perspectiva de ampliação

de

tempos,

de

territórios

e

das

oportunidades

educacionais”. É sabido que a mudança em educação demanda tempo, mas, passados quase quatro anos da implementação do Programa Mais Educação nas escolas da Rede Municipal de Ensino de Natal - RN, já se pode fazer uma análise preliminar dos resultados apresentados. Dados comprovam que O Programa Mais Educação tem contribuído para a melhoria da aprendizagem.

1280

São vários os indicadores que mostram, que apesar das dificuldades de sua implementação, já é possível evidenciar resultados significativos no tocante à melhoria da aprendizagem dos nossos alunos. Esses dados ainda não são quantitativamente significativos, considerando que em média 100 alunos por escola são contemplados, tendo em vista que as atividades propostas acontecem no turno contrário ao formal, de modo que as nossas escolas não possuem estrutura física adequada e disponível para a realização dessas atividades e a grande maioria localiza-se em áreas de grande vulnerabilidade

social,

onde

a

própria

escola

é

parceira

da

comunidade, cedendo seus espaços para a realização de eventos diversos e não o contrário. Qualitativamente, podemos evidenciar resultados relevantes, seja através de depoimentos de alunos, professores, funcionários da escola, pais e pessoas da comunidade, seja através do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica - IDEB, que começa a mostrar, ainda não tão expressivo, resultados pontuais e diferentes de anos anteriores. Em 2007 o IDEB da rede municipal era de 3,7. Em 2009 esse índice manteve-se, elevando-se para 4,0 em 2011, dados do último Prova Brasil. Trata-se de um programa relativamente novo. Muito se avançou, mas o debate continua em busca de uma educação integral de qualidade. Mas, por contemplar a educação integral, fomentando possibilidades de tornar-se política pública, apresenta-se como um avanço à educação pública. Contudo, mesmo diante do já exposto pode-se perceber que a discussão sobre a proposta de Educação Integral não é simples. Requer, além de um aparato legal e jurídico consistente e exequível; uma definição conceitual, considerando e diversidade de concepções não apenas em relação ao tema em discussão, mas também acerca de outros elementos fundamentais implícitos e inseparáveis da definição de educação integral, tais como os conceitos de tempo e espaço, 1281

formação de educandos e educadores, articulação entre os diferentes saberes, o Projeto Político Pedagógico das escolas e a comunidade e os espaços formais e informais de educação. Essas dimensões são bastante relevantes, tornando-se necessária a reflexão sobre o papel e as implicações de cada uma delas no contexto do debate atual sobre o tema. Há que se reconhecer a obrigação do poder público mediante a implementação de recursos e políticas para que a condição de direito se operacionalize na vida diária. A educação acontece em diferentes esferas da sociedade, em tempos e espaços diversos de organização das cidades e de suas comunidades, sendo necessário um grande movimento, também da instituição escolar, no sentido da construção

de

um

Projeto

Político-Pedagógico

que

contemple

princípios e ações compartilhados na direção de uma Educação Integral. Entendemos que a Educação Integral deve ser vista como uma ferramenta de cidadania, uma maneira de preparar o indivíduo para participar de forma ativa na sociedade, e não exclusivamente como mecanismo de adaptação às novas exigências sociais, característica de projetos educativos que respondem de maneira acrítica à sociedade do conhecimento e às formas atuais de globalização da economia, manifestações de novas formas de organização do capitalismo. Acreditamos na necessidade de investimento em Educação Integral no Brasil, em educação de qualidade, da mesma forma que em pesquisas para investigar o que tem dado certo e/ou errado em programas dessa natureza, pois, entre outros fatores, o novo Plano Nacional de Educação (PNE), decênio 2011/2020, tem como uma de suas metas “oferecer educação em tempo integral em 50% das escolas públicas de educação básica” por meio de atividades pedagógicas e interdisciplinares, de forma que o tempo de permanência das crianças/adolescentes e jovens na escola ou sob sua responsabilidade 1282

passe a ser igual ou superior a sete horas diárias durante todo o ano letivo. Enfim, promover a Educação Integral não é tarefa simples, mas um grande desafio diante da série de dificuldades a enfrentar.

No

entanto, ao ser dado o pontapé inicial para por em prática o Programa Mais Educação, houve o reconhecimento da importância da ação como fundamento imprescindível para contribuir com a melhoria da qualidade de educação oferecida pelas escolas da Rede Municipal de Ensino de Natal/RN e, consequentemente, para que as novas gerações possam participar de modo mais crítico e com maior competência, dos destinos da humanidade. Esperamos que esse trabalho possa contribuir com dados empíricos e teóricos que subsidiem uma melhor reflexão a respeito das Políticas Públicas pensadas e desenvolvidas para a Educação Integral no âmbito educacional, assim como da implementação e contribuição do Programa Mais Educação no Município de Natal, no tocante à melhoria da qualidade da educação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Decreto nº 7.083 de 27 de janeiro de 2010. Dispõe sobre o Programa Mais Educação. _______. Decreto nº 6.094 de 24 de Abril de 2007. Estabelece o Plano de Metas: compromisso todos pela educação. _______. Educação integral: texto referência para o debate nacional. Brasília: MEC/SECAD, 2009. Série Mais Educação. _______. Parâmetros Curriculares Nacionais. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997. _______. Plano de Desenvolvimento da Educação. MEC – Ministério da Educação, Governo Federal, 2007.

1283

_______. Portaria normativa interministerial nº 17, de 24 de Abril de 2007. Estabelece o Programa Mais Educação. MEC – Ministério da Educação, Governo Federal, 2007. _______. Rede de Saberes Mais Educação: pressuposto para projetos pedagógicos de educação integral – cadernos para professores e diretores de escolas. Brasília: MEC/SECAD, 2009. Série Mais Educação. CARVALHO, Maria do Carmo B. de. O lugar da educação integral na política social.Caderno CENPEC: Educação Integral. São Paulo: 2006. n°.2, p. 7-11. DELORS, Jacques et all. Educação: um tesouro a descobrir - Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI. 4 ed. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: MEC: UNESCO, 2000. MOOL, Jaqueline. Ciclos na escola, tempos possibilidades. Porto Alegre: Artmed, 2004.

1284

na

vida:

criando

A ESCOLA DIANTE DO PARADIGMA SOCIOTECNOLÓGICO Andreia Regina Moura Mendes361 Luciana de Oliveira Chianca (Orientadora)362 Resumo: O desenvolvimento tecnológico das últimas quatro décadas impulsionado pela revolução na informática, robótica e genética provocou profundas transformações na sociedade, possibilitando a formação do paradigma sociotécnico. Dentro desse quadro de mudanças, as formas de ensinar e aprender foram envolvidas por novos elementos e estruturas de pensamento, principalmente impulsionados pelas novas tecnologias da informação e comunicação (TICs) e sua incorporação cada vez mais intensa na vida cotidiana. O artigo trata da necessidade de investigar como a escola pública de educação básica compreende o paradigma sociotecnológico e como a mesma é inserida dentro dos novos cenários. O objetivo é discutir quais são os elementos que caracterizam o paradigma sociotecnológico e apontar as suas implicações no ensino público através da implantação do ProInfo. Palavras-chave: Escola, Paradigma, Tecnologias da informação e comunicação, Proinfo

1. INTRODUÇÃO Analisando as mudanças paradigmáticas inscritas na história podemos refletir sobre suas implicações na formação de uma nova sociedade que exige novos posicionamentos, direcionamentos e técnicas específicas. O filósofo alemão Walter Benjamin (1996:169) nos adverte que: “No interior de grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência”. Desta forma, podemos afirmar que as transformações provocadas pelo avanço da tecnologia e da ciência no final do século XX 361

Graduada em História (UFRN), Mestra em Antropologia Social (UFRN) e Doutora em Ciências Sociais (UFRN). Professora Temporária (UFRN). Professora Colaboradora do PARFOR (Educação Física- UFRN). [email protected]. 362 Graduada em Ciências Sociais (UFPB), Mestra em Sociologia (UFPB) Doutora em Antropologia (Université Bordeaux 2/França) Professora Associada (UFPB). Atua nos Programas de Pós Graduação em Antropologia da UFPB e de Ciências Sociais na UFRN. É pesquisadora do LAVID (UFPB), onde pesquisa a cultura digital nas suas interfaces com a cultura urbana, com ênfase na dinâmica política da produção.

1285

estabeleceram

novas

bases

para

a

sociedade

industrial,

que

transformou-se no século XXI na sociedade da informação e do conhecimento, principalmente a partir do advento da rede mundial de computadores no final do século XX. Acompanhamos cada dia não somente o avanço da tecnologia e das formas de comunicação e informação, mas a própria transformação da cultura e o surgimento de um novo paradigma. O que nos leva ao seguinte questionamento: Como a escola, os professores e alunos reagem diante desse quadro de transformações? Esse é o primeira indagação que lanço a partir do meu olhar para os imperativos

de

educar

dentro

de

um

novo

paradigma

sociotecnológico. É preciso refletir sobre a natureza da transformação e como a mesma afeta o sistema escolar, desafiando a escola numa adaptação da realidade educacional para a aplicação das novas tecnologias e mídias. Seria uma exigência para um ensino mais global e conectado com a cultura da interface ou apenas um imperativo para atender aos interesses do mercado internacional? No tópico seguinte vamos apresentar um panorama teórico sobre a formação do paradigma sociotecnológico a partir do desenvolvimento da cibercultura.

2. O PARADIGMA SOCIOTECNOLÓGICO: QUE TIPO DE SOCIEDADE VIVEMOS HOJE? O desenvolvimento tecnológico das últimas quatro décadas impulsionado pela revolução na informática, robótica e genética provocou

profundas

transformações

na

sociedade

ocidental,

possibilitando a formação de um novo paradigma sociotécnico e mudanças tanto na política quanto na economia e principalmente no campo da cultura. Muitos pesquisadores como Harvey (1993), Castells (1999), Lévy (1999), Johnson (2001), Maffesoli (2012) debatem o fim da modernidade e o início de uma nova fase, chamada por muitos deles 1286

de pós-modernidade. É dentro deste novo contexto que se desenvolve um novo paradigma societário com profundas implicações nas formas de apreensão dos conhecimentos, saberes e informações. A pós-modernidade é uma transformação nas formas de pensar, agir e sentir. Segundo David Harvey (1993:25) acompanhamos “uma notável mutação na sensibilidade, nas práticas e nas formações discursivas”. Em sua obra A condição pós-moderna, Harvey apresenta os elementos que apontam para a transição entre a modernidade e a pós-modernidade localizando esta fase no final do século XX. O autor enfatiza que um aspecto importante desse período seria o seu caráter de mudança, o que nos impele a compreendê-la dentro de um fluxo mais acelerado tanto no desenvolvimento das tecnologias quanto nas formas de apreensão da realidade pela sociedade. Algumas questões são colocadas por Harvey ao longo de seu trabalho, entretanto a que mais nos intrigou diz respeito a emergência de uma nova sociedade entretanto, ainda herdeira dos valores e representações da modernidade. Assim, a mudança seria perceptível em todos os domínios da vida humana e a cultura escolar também foi atingida por essa alteração. As formas de ensinar e aprender foram envolvidas

por

novos

elementos

e

estruturas

de

pensamento,

principalmente impulsionados pelas novas tecnologias da informação e comunicação e sua incorporação cada vez mais intensa na vida cotidiana. A pós-modernidade seria então o terreno no qual se desenvolvem novos tipos de sociabilidades e novas formas de lidar com a produção do conhecimento e sua socialização. A produção de saberes estaria estreitamente ligada a uma cultura, a cibercultura, que se movimenta em um espaço cada vez mais fluido e virtual: o ciberespaço. Assim, a pós-modernidade seria o terreno do surgimento de uma nova cultura, a cultura digital, também chamada de cibercultura por pesquisadores como Lévy (1999), Lemos (2002) e Gomez (2010). A cibercultura é marcada pela relação entre a cultura e as tecnologias 1287

da informação e comunicação surgidas a partir da convergência entre a informática e as telecomunicações na década de 1970. Segundo Pierre Lévy (1993:17) a cibercultura é o “conjunto de técnicas (materiais e intelectuais) de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço”. Para o mesmo autor, o ciberespaço é o suporte para as tecnologias intelectuais alterarem profundamente as funções cognitivas humanas, atuando desde o campo da memória, da própria imaginação, das formas de percepção inclusive nos processos de raciocínio (LÉVY, 1993: 157). O pesquisador brasileiro André Lemos (2003:12), afirma que: Vivemos uma nova conjuntura espaço-temporal marcada pelas tecnologias digitais-telemáticas onde o tempo real parece aniquilar, no sentido inverso à modernidade, o espaço de lugar, criando espaços de fluxos, redes planetárias pulsando no tempo real, em caminho para a desmaterialização do espaço de lugar. Assim, na cibercultura podemos estar aqui e agir à distância. A forma técnica da cibercultura permite a ampliação das formas de ação e comunicação sobre o mundo.

A cultura digital seria então o produto direto desse imbricado relacionamento, alterando as formas de inserção das novas tecnologias na sociedade. Manuel Castells relaciona o advento da revolução tecnológica com o aparecimento de uma sociedade da informação (1999:67): Meu ponto de partida, e não estou sozinho nesta conjuntura, é que no final do século XX vivemos um desses raros intervalos na história. Um intervalo cuja característica é a transformação de nossa “cultura material” pelos mecanismos de um novo paradigma tecnológico que se organiza em torno da tecnologia da informação.

Ou seja, na transição para o século XXI surgiu uma sociedade na qual o conhecimento é mediatizado pelas novas tecnologias, o que exige novos procedimentos, técnicas e saberes em articulação, sendo a educação uma esfera diretamente atingida por estas transformações. 1288

Os novos procedimentos dizem respeito às mudanças na forma de pensar e agir diante da incorporação das novas tecnologias. Diante dessas transformações, pensaremos quais são as novas demandas que surgem para a educação diante de uma nova geração que vive dentro da cultura digital. Seria então a década de 1980 que assistiria a junção da informática com as telecomunicações, editoração, e as antigas mídias como o cinema e a televisão. Este processo avançaria no campo da produção musical com o advento da digitalização, revolucionando ainda as formas de comunicação entre as pessoas com o surgimento das mensagens interativas, desenvolvimento de novos jogos de videogames e a criação dos hiperdocumentos (hipertexto e CD-ROM). No final da década de 1980 e início da década de 1990 ocorreu a invenção da internet, o que possibilitou o aparecimento das tecnologias digitais criando um novo espaço de comunicação, sociabilidade, comércio, a circulação de bens e do conhecimento. Todo este desenvolvimento provocaria uma mudança no paradigma anterior, a modernidade, provocando o surgimento de uma nova cultura. Sobre os impactos da cibercultura na educação, Lévy (1993:158) propõe o seguinte: duas grandes reformas são necessárias nos sistemas de educação e formação. Em primeiro lugar, a aclimatação dos dispositivos e do espírito do EAD (ensino aberto à distância) ao cotidiano e ao dia a dia da educação. A EAD explora certas técnicas de ensino à distância, incluindo as hipermídias, as redes de comunicação interativas e todas as tecnologias intelectuais da cibercultura. Mas o essencial se encontra em um novo estilo de pedagogia, que favorece ao mesmo tempo as aprendizagens personalizadas e a aprendizagem coletiva em rede.

A preocupação apresentada por Pierre Lévy no final do século XX nos atinge hoje como uma tarefa urgente e que deve reconfigurar todas as políticas públicas de educação e principalmente sugerir novas adaptações dos sistemas de ensino em todo o mundo para a realidade proposta pela cibercultura. Nas suas palavras (1993:167): 1289

Em resumo, em algumas dezenas de anos, o ciberespaço, suas comunidades virtuais, suas reservas de imagens, suas simulações interativas, sua irresistível proliferação de textos e de signos, será o mediador essencial da inteligência coletiva da humanidade. Com esse novo suporte de informação e comunicação emergem gêneros de conhecimentos inusitados, critérios de avaliação inéditos para orientar o saber, novos atores na produção e tratamento dos conhecimentos. Qualquer política de educação deverá levar isso em conta.

Maffesoli (2012:86) analisa o quanto a vida social é influenciada pelos objetos técnicos, frutos da revolução da informática e indica que a própria educação será impregnada pelo o que ele denomina de razão técnica. Assim, podemos compreender a inserção das novas tecnologias da informática e comunicação na educação como um imperativo dos novos tempos, o que pode ser encarado como um movimento sem retorno. Segundo o autor (2012:89): “É um novo paradigma que está hoje em gestação e que é denominado de cibercultura”. O cenário delineado por Pierre Lévy, Castells e Maffesoli já é o presente, entretanto, a educação pública brasileira ainda vive um dilema, pois enquanto existe a necessidade de propiciar uma formação mais adequada para docentes e alunos nesse quadro de inserção da educação na sociedade informacional com a aplicação do uso das TIC’s no contexto escolar, outros problemas críticos do sistema de ensino público nacional ainda não foram sanados. Porém, é preciso refletir sobre a multiplicidade de situações e contextos presentes na educação brasileira, marcada acima de tudo por graves diferenças no desenvolvimento regional, o que pode ser atestado a partir dos relatórios do IDEB (Índice de desenvolvimento da educação básica). Compreendemos que a cibercultura é um produto das interações entre os homens e as novas tecnologias da informação e da comunicação e acreditamos que a dimensão social desse processo paradigmático é de grande importância. Neste sentido, retomamos

1290

Lévy e encontramos mais uma orientação sobre a mudança que deve ser aplicada na educação da sociedade informacional (1993:169): Será necessário, portanto, buscar encontrar soluções que utilizem técnicas capazes de ampliar o esforço pedagógico dos professores e dos formadores. Audiovisual, “multimídia” interativa, ensino assistido por computador, televisão educativa, cabo, técnicas clássicas de ensino a distância, repousando essencialmente em material escrito, tutorial por telefone, fax ou Internet...Todas essas possibilidades técnicas mais ou menos pertinentes de acordo com o conteúdo, a situação e as necessidades do “ensinado”, podem ser pensadas e já foram amplamente testadas e experimentadas.

Segundo Pierre Lévy, as palavras-chave para a educação devem ser: levantamento de informações e aprendizagem cooperativa. Para ele, é preciso que os especialistas da educação compreendam a diferença entre ‘ensino presencial’ e ‘ensino a distância’ e que saibam fazer uso adequado das redes de telecomunicações e das ferramentas multimídias, não se esquecendo de integrá-las com as formas tradicionais de ensino. Para Lévy (idem): A aprendizagem a distância foi durante muito tempo o ‘estepe’ do ensino; em breve, irá tornar-se senão a norma, ao menos a ponta de lança. De fato, as características da aprendizagem aberta a distância são semelhantes às da sociedade da informação como um todo (sociedade de rede, de velocidade, de personalização etc.)

Nesse sentido, é relevante destacar que as políticas públicas tem uma importância capital no desenvolvimento de uma nova cultura, mas é necessário investigar como os atores sociais foram envolvidos no processo e quais tipos de interação e reação podemos identificar dentro do campo escolar.

Pierre Lévy (1993:170) indica que: “Os

professores aprendem ao mesmo tempo que os estudantes e atualizam continuamente

tanto

seus

saberes

‘disciplinares’

como

suas

competências pedagógicas”. No tópico seguinte vamos conhecer a política pública que procura estabelecer um diálogo entre as TICs e a educação.

1291

3. PROINFO INTEGRADO: UMA BREVE ANÁLISE CRÍTICA O Programa Nacional de Informática na Educação (ProInfo) foi criado no ano de 1997 pela portaria nº522 de nove de abril de 1997 na gestão do então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, tendo como ministro da educação, Paulo Renato Souza. O objetivo inicial do programa era promover o uso das tecnologias da informática e comunicação (TICs) no contexto educacional. Na ocasião foi criada a Secretaria de Educação a Distância (SEED) como órgão responsável junto

ao

Ministério

da

Educação

(MEC)

para

implantação

e

acompanhamento dos resultados do programa. Entretanto, através do Decreto nº 6.300 de 12 de dezembro de 2007 foi lançado um novo programa em substituição ao ProInfo, preservando a sigla e associando a nova política educacional com o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), dando origem ao ProInfo Integrado, em consonância com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e com recursos provenientes do MEC e do Fundo Nacional

de

Desenvolvimento

da

Educação

(FNDE).

Uma

das

mudanças no novo programa foi à adoção do software livre Linux Educacional, desenvolvido pela equipe do MEC e a extinção da SEED, dando lugar a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão, com o objetivo principal de promover a educação inclusiva. Cabe ao MEC os processos de compra, distribuição e instalação dos laboratórios de informática nas escolas públicas brasileiras. A contrapartida dos governos locais consistia na implantação de uma infraestrutura

adequada

na

rede

de

ensino

para

receber

os

laboratórios, como também atender as exigências determinadas pelas cartilhas elaboradas pelo Sistema de Gestão Tecnológica (SIGETEC). O Programa tem como componentes principais a implantação de ambientes tecnológicos (laboratórios de informática), capacitação de professores, gestores e assistentes educacionais para implantação das TICs no contexto escolar, promovendo dessa forma a inclusão digital e o 1292

fornecimento de conteúdos educacionais multimídias. No plano de implantação, constava a parceria entre o governo federal, o distrito federal, os estados e os municípios, num sistema de descentralização com importantes implicações locais. O MEC além de implantar os laboratórios de informática nas escolas conveniadas, capacitou os profissionais formadores que atuariam nos Núcleos de Tecnologia Educacional (NTEs) em estados e municípios para que os mesmos pudessem promover a formação dos professores, gestores e agentes educacionais. Coube também ao MEC a criação de um portal online para suporte didático-pedagógico e troca de experiências entre os professores. A contrapartida dos Estados, Distrito Federal e Municípios era fornecer uma infraestrutura adequada para receber os laboratórios de informática, realizar a manutenção dos equipamentos e cuidar de sua segurança. Ainda tinham como tarefa a promoção da participação dos professores e agentes educacionais na aplicação das TICs no cotidiano escolar. Dentro da perspectiva de descentralização do programa, os Estados, Distrito Federal e Municípios eram responsáveis pelas condições necessárias para o bom funcionamento dos Núcleos de Tecnologia Educacional, como também da formação de pessoal adequado para o trabalho neles e suporte técnico para manutenção dos laboratórios fornecidos pelo ProInfo. A adesão ao programa é realizada através da figura do (a) prefeito (a) do Município ou de seu representante legal que deve assinar o acordo, firmando o compromisso com as diretrizes e princípios do programa. Os critérios para seleção das escolas são os seguintes: escolas de ensino fundamental (1º ao 9º ano), mais de 50 alunos matriculados, fornecimento de energia elétrica e sem laboratório de informática. Desta forma, compus um quadro de referências sobre o ProInfo e o ProInfo Integrado a partir da arte das teses. A primeira dificuldade 1293

encontrada durante esse levantamento diz respeito a reduzida produção da academia em torno desse programa educacional, apesar da primeira implantação dessa política ter ocorrido no ano de 1997. A segunda dificuldade reside no fato dos documentos oficiais que dão conta dos aspectos centrais do programa encontram-se dispersos em diferentes sítios, o que atrapalha a sua localização e estudo detalhado. Durante o levantamento, o primeiro trabalho que nos chamou atenção foi a dissertação de mestrado elaborada por Prata (2005). A autora procurou realizar uma análise do ProInfo no estado do Espírito Santo. O seu olhar deteve-se sobre a avaliação da política pública enquanto espaço para democratização do acesso às TICs nas escolas públicas. O lugar de fala da autora é refletido na avaliação favorável que realizou do programa acreditando que os objetivos propostos pela política foram atingidos. Sobre

a

implantação

da

primeira

política

pública

de

informatização no Brasil, Prata afirma que (2005:61): “[...] teve início na década de setenta, em pleno período de ditadura militar. Tal processo ocorreu em meio de interesses políticos e econômicos, que associou a informática

a

uma

“questão

de

segurança

nacional

e

desenvolvimento.” Esse dado é revelador da associação existente entre os interesses do governo militar com o seu alinhamento político e econômico. Quanto a avaliação da política pública do ProInfo, Prata destaca que (2005:63): Desse modo, o ProInfo visa não só melhorar a qualidade da educação pública, no sentido da diversificação dos espaços e das metodologias para o processo de construção do conhecimento, mas também a equidade, ampliando as oportunidades de acesso à tecnologia e reduzindo a exclusão digital.

A avaliação realizada por Prata aponta para uma política eficiente no alcance dos objetivos propostos, promovendo a democratização do acesso às TICs e reduzindo a linha existente entre os incluídos digitais e 1294

os excluídos digitais. Entretanto, essa realidade não representa um quadro hegemônico, o que podemos perceber a partir de outros pesquisadores. Na análise sobre a implantação do ProInfo no estado de Alagoas, Pinto (2008) buscou durante sua dissertação de mestrado, identificar os fatores responsáveis pela resistência por parte do corpo docente da rede pública do Estado na aplicação das TICs em sala de aula. No seu trabalho ele ressaltou as diferenças entre o modelo da pedagogia tradicional e o modelo educacional emergente centrado no uso das TICs e como ocorre a formação dos professores diante desse novo paradigma. Sua avaliação sobre a implantação das TIC’s no contexto escolar a partir de uma política pública indica que (2008:56): No entanto, o que se percebe das políticas públicas, tomadas como medidas de adequação da escola à configuração dos novos tempos, mais especificamente às iniciativas de introdução dos recursos informáticos no setor da educação pública, são as medidas que mais tendem para a iniciativa unilateral, de fora para dentro, do que medidas que venham a fomentar uma mudança na cultura das escolas.

Em seguida, Pinto explora os conceitos de mudança, inovação e resistência para discutir como os professores se sentem diante da política verticalizada do ProInfo. O autor conclui seu trabalho demonstrando

que

existem

várias

fragilidades

de

integração,

articulação e diálogo entre os NTEs e as escolas, o que é demonstrado pela ausência do programa de aplicação das TICs proposto pelo ProInfo no Projeto Político e Pedagógico de cada escola da rede. O trabalho seguinte trata da análise da política do ProInfo Integrado no município de Natal, RN. A dissertação de mestrado de Martins (2009) procura realizar a análise de eficácia dos objetivos propostos pelo ProInfo Municipal. Martins busca verificar como se organiza a política pública de inclusão digital e qual o impacto do uso das TICs na formação da cidadania na visão dos atores sociais envolvidos. Para Martins (2009:42): 1295

É indiscutível a necessidade de políticas e programas que facilitem o acesso da população a formação necessária para que ingressem como trabalhadores qualificados no mercado de trabalho, na sociedade da informação, participando plenamente do desenvolvimento e formatação das TICs e dos postos de trabalho nos quais se dá a tomada de decisão sobre seu uso e implementação.

A partir da aplicação de questionários, Martins pode montar o panorama da eficácia do programa através da análise das respostas dadas por professores e alunos da rede municipal de ensino sobre a inserção das TICs no contexto escolar e a ampliação da inclusão digital. Na sua conclusão, o ProInfo Municipal vivencia um quadro de ineficácia do programa, pois tanto professores quanto alunos não sentem o impacto positivo seja na capacitação dos profissionais ou na efetiva incorporação da cultura digital num processo de democratização e cidadania. A quarta pesquisa foi realizada por Castro (2011) e sua dissertação de mestrado apresenta o viés político sobre a implantação da política de informática no Brasil e a participação limitada dos diferentes atores sociais interessados em seu desenvolvimento. Seu estudo procura analisar as influências que sofreu o texto da Política Nacional de Tecnologia Educacional diante das pressões do mercado e da obrigação de promover uma política democrática de inclusão digital. Sobre a verticalização que envolve a implantação da política, Castro afirma que (2011:97): “O centralismo do MEC na formulação da política e no controle dos processos decisórios pode ter dificultado a apropriação do ProInfo pelo conjunto dos atores envolvidos em seu desenvolvimento.” A ausência de horizontalidade e de abertura da política, pode ainda ser percebida a partir da sua seguinte observação (2011:98): “Era reduzido, para os professores o desenho da política, não previa qualquer acesso aos processos de debate ou avaliação, ainda que, no texto da política, a valorização e o desenvolvimento dos docentes constituísse um indicador de sucesso do ProInfo.”

1296

Castro traça várias linhas de análise, discutindo sobre os objetivos iniciais do ProInfo e como os mesmos estão alinhados à influência do Banco Mundial, além de enfatizar os aspectos relacionados a participação dos Estados, Distrito Federal e Municípios no que chama de “implementação descentralizada do programa”. Castro acentua o caráter centralizador do MEC diante da implantação da política pública, deixando aos demais atores sociais envolvidos apenas a possibilidade de seguir as diretrizes e princípios do programa. Sobre o papel reservado aos professores, Castro afirma que (2011:98): Aos professores caberia receber a capacitação previamente desenhada e executar as ações idealizadas (por outros), recebendo, caso demandassem, a assessoria técnica dos NTEs. Se tivessem críticas, reivindicações, propostas ou uma nova experiência a compartilhar não havia espaços instituídos para essa comunicação.

O seu trabalho segue a linha de análise crítica e pontua que existe um olhar instrumentalista e uma abordagem tecnicista na implantação do programa. Segundo a autora: “No contexto do ProInfo Integrado a maior

parte

dos

processos

formativos

acontece

à

distância,

exatamente como preconiza o BID aos países em desenvolvimento a partir da década de 90” (2011:115). Para chegar a essas conclusões, Castro ouviu professores, agentes educacionais e gestores tanto das escolas quanto dos NTEs da cidade de Niterói, no Rio de Janeiro.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nossas primeira conclusões em torno do ProInfo Integrado apontam que ele constitui um programa de implantação verticalizada, com pouca participação dos atores sociais locais na discussão e aplicação da política. A partir da análise parcial realizada na arte das teses, percebemos que as metas e objetivos sugeridos pelo programa não foram concretizadas em diferentes realidades e contextos, o que 1297

fornece espaço para uma maior investigação sobre os fatores relacionados com a formação recebida pelos professores pelo programa e as condições que os mesmos desfrutam na rede pública municipal para o uso das TICs em sala de aula. Cabe

agora

continuar

investigando

outras

realidades

de

implantação do ProInfo e estudar in loco o seu funcionamento na rede pública municipal de Parnamirim, entendendo como a escola é envolvida pelo paradigma sociotecnológico, buscando dessa maneira, uma abordagem que privilegie tanto o ponto de vista do docente, para quem é voltado o esforço de capacitação, formação e treinamento, quanto o olhar do educando, ator para o qual a política é desenhada com o objetivo de inseri-lo na sociedade da informação com todos os instrumentos necessários para viver na cibercultura.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996. p. 165-196. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: Centro de Documentação e Informação, coordenação de publicações, 2006. CASTELLS, Manual. A sociedade em rede. 8ª ed. São Paulo: Paz e terra, 1999, vol.1. CASTRO, Márcia Correa e. Enunciar a democracia e realizar o mercado. Políticas de tecnologia na educação até o ProInfo Integrado (19732007). Niterói, RJ, 2011. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Educação da Pontifícia Universidade Católica. GOMEZ, Margarita Victoria. Cibercultura, formação e atuação docente em rede. Brasília: Liber Livro, 2010. HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992.

1298

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1299

BRASIL. Planalto. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em 20 de junho de 2012.

1300

CIÊNCIA E TECNOLOGIA NA POLÍTICA EDUCACIONAL DO BRASIL NO SÉCULO XXI: DESAFIOS E POSSIBILIDADES Lenina Lopes Soares Silva363 Márcio Adriano de Azevedo364

Resumo: Os estudos em ciência, tecnologia e sociedade mostram-se relevantes para os debates sobre desenvolvimento econômico e social e ainda, para compor justificativas para políticas sociais, incluindo-se as políticas educacionais, bem como para fundamentar pesquisas em diversas áreas do conhecimento. Nessa perspectiva, objetiva-se promover, nesta comunicação, breves reflexões acerca da política educacional brasileira no século XXI, tendo como referentes esses estudos em suas interfaces com o desenvolvimento socioeconômico e o financiamento da educação pública. Trata-se de um trabalho de natureza teórica, com suporte bibliográfico e documental, no qual o aporte metodológico são leituras em autores cujas pesquisas enfocam a temática em discussão, os quais servem de fundamentos teóricos para pesquisas por nós desenvolvidas na área da sociologia e da política educacional com ênfase na educação profissional. Considera-se que, no século XXI têm surgido políticas educacionais direcionadas para a implantação da ciência e da tecnologia como política estruturante a exemplo da criação de novas universidades federais e da institucionalização da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica e da criação dos Institutos Federais de Educação Ciência e Tecnologia. Palavras-chave: Ciência, Tecnologia e Sociedade; Políticas Educacionais; Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica.

1. INTRODUÇÃO Os estudos em ciência, tecnologia e sociedade (CTS) surgiram no âmbito da sociologia do conhecimento científico como uma crítica aos modelos essencialistas e triunfalistas. Um dos primeiros estudiosos a se preocupar com a questão foi Robert K. Merton que na década de 1930, escreveu sobre o papel da ciência e da tecnologia em suas interfaces com a sociedade do século XVII, na Inglaterra. No final dos anos 1960 e 363

Graduada em Pedagogia (UFRN), Ciências Sociais (Universidade Luterana do Brasil), Mestra em Ciências Sociais (UFRN) e Doutora em Ciências Sociais (UFRN). Professora Efetiva (IFRN). Programa de Pós-Graduação Educação Profissional (PPGEP/IFRN), [email protected]. 364 Graduado em Pedagogia (UFRN), Mestre em Educação (UFRN), Doutor em Educação (UFRN) e PósDoutor em Sociologia da Educação (Universidade do Minho/Portugal) Professora Efetiva (IFRN). Programa de Pós-Graduação Educação Profissional (PPGEP/IFRN), Membro de Associações acadêmicocientíficas brasileiras, como a ANPED e ANPAE. [email protected].

1301

início dos anos 1970, no Brasil e em outros países do Continente Latino Americano tais estudos já mostravam a relevância de suas reflexões para o debate sobre desenvolvimento social e econômico em sociedades pós-coloniais. Nos anos 1980, os estudos em CTS começaram a se desenvolver em várias partes do mundo, e nos anos 1990, ganharam força em muitas instituições acadêmicas, inclusive, no Brasil, país no qual diversas áreas do conhecimento já começavam a se envolver com o tema entre as quais: a filosofia, a sociologia, a política, a história, a educação e a literatura. A ciência e a tecnologia no Brasil, na verdade, foram regidas até o final do século XX por instrumentação política e financeira de organismos internacionais e, assim, vai chegar ao século XXI, tentando superar a dependência tanto científica quanto tecnológica, necessária ao desenvolvimento do país. É preciso reconhecer de antemão que, saímos da ideologia do capital humano que guiava a política da ditadura civil-militar para a da mercadorização da educação sob a ditadura do capital. (GERMANO, 1995). Em nível mundial havia um grande avanço científico e tecnológico nos países centrais e era inegável que as sociedades ditas periféricas como a brasileira, vislumbrassem alcançar o patamar atingido por essas sociedades. (SADER e GARCIA (Orgs.), 2010). Contudo, chegamos ao século XXI sem uma política educacional sólida, muito menos fundamentada na ciência e, quiçá, direcionada para o processo de transformação tecnológica. Desse modo, nas primeiras décadas deste século, tem-se ainda, um grande contingente social

desprovido

de

base

científica,

técnica

e

tecnológica,

competências imprescindíveis para se transitar por um processo de produção industrial-moderno, científico-tecnológico e digital-molecular em um mundo espaço/temporalizado virtualmente. Então, como se encontra a política educacional para a ciência e a tecnologia no Brasil no século XXI? Sabemos que, em termos políticos, 1302

em 2001, começaram a surgir interlocuções mais pontuais sobre ciência, tecnologia e inovação e, em 2004, surgiu a Lei 10.973/2004 denominada de Lei de Inovação. (BRASIL, 2007). No âmbito da política educacional além

da

criação

de

novas

universidades,

podemos

citar

a

institucionalização da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, quando são criados os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia através da Lei nº 11.892/2008 (BRASIL, 2008), bem como de programas de apoio a pesquisas científicas, tecnológicas e de inovação. Todavia, uma questão permanece, a de que as interconexões entre ciência, tecnologia, sociedade e política educacional não podem ser entendidas como um problema em si mesmo, pois se inserem nos problemas contextuais da acumulação capitalista. Desse modo, não podem ser estudados em um país sem que se perca essa dimensão e os aspectos que incidem sobre eles, quais sejam o mercado, as instituições e as políticas locais e internacionais geridos pelo

sistema

capitalista.

Sabendo-se

que,

esses

interferem

no

financiamento público da educação em todos os níveis. Nesse direcionamento, os estudos atuais em CTS, conforme Osório (2008) tem procurado incluir em seus planos de investigação uma visão de C&T contextualizada

socialmente

no

âmbito

das

políticas

públicas,

observando entre outros fatores a participação e a gestão pública, assim como, o ensino e a pesquisa em nível médio e superior. É nessa perspectiva de debate que apresentamos nosso objetivo, qual seja: o de promover breves reflexões acerca da política educacional brasileira no século XXI, tendo como referentes à ciência e a tecnologia em suas interfaces com o desenvolvimento social e econômico, apontando alguns fatos históricos dessa política e os caminhos percorridos na primeira década deste século. Como metodologia, conformamos que este texto, no qual se pauta nossa comunicação, foi elaborado como um ensaio teórico com suporte bibliográfico e documental, considerando como suporte 1303

metodológico leituras em autores cujas pesquisas enfocam a tríade que compõe a temática em discussão, qual seja C&T e política educacional no Brasil no século XXI. Este vem justificado por sua relevância para as ciências sociais e humanas no contexto atual de globalização; por esses campos científicos pautarem-se em demandas críticas – fundantes de uma visão de mundo articulada com a realidade –, inserida de modo questionador nos problemas da acumulação capitalista e nos esforços estruturais do país para romper com as barreiras impostas por esse sistema. Dentre os autores e obras consultados encontram-se: Herrera (1995), Lundvall (2001), Bazzo (2003), Germano (1995;2010), Sader e Jinkings (2006), Villares (2007), Osorio (2008), Moura (2010) e Sader e Garcia (2010).

2. CAMINHOS DA CIÊNCIA E DA TECNOLOGIA EDUCACIONAL DO BRASIL NO SÉCULO XX

NA

POLÍTICA

Ao fazermos um balanço-síntese da problemática que envolve ciência, tecnologia, sociedade e política educacional no Brasil, tendo como delimitação a primeira década do século XXI, parece ser facilitada

a

reflexão

que

envolve

o

objeto

de

investigação.

Observamos, no entanto, que é preciso situá-lo no contexto histórico e social da América Latina e do Caribe, região que desde seu surgimento teve a ciência e a tecnologia, incorporadas à economia-mundo da Europa ocidental, conforme Sader e Jinkings et. al. (Orgs.) (2006, p.289). Nessa região, registra a obra supracitada, que ocorreram embates entre tecnologias militares e de navegação oceânica e, entre conhecimentos astronômicos desenvolvidos pelos europeus, e as tecnologias agrícolas e de transportes terrestres, desenvolvidas pelas tribos pré-colombianas. Vemos por essa linha de raciocínio que, houve na região a apropriação de tecnologias locais para a organização dos

1304

sistemas de produção dentro dos modelos da demanda da Europa. Para esses autores, na visão e na ação dos colonizadores: A América Latina deveria se europeizar para aplicá-las contra as raízes autóctones, ligadas ao atraso local. Essa atitude de certa forma, prolongava a visão colonial, ainda que reservasse aos Estados coloniais a tarefa de construir uma perspectiva própria dentro desse processo. (SADER e JINKINGS et. al. (Orgs.) 2006, p. 289).

Autores como Germano (2010) e Santos (2006) corroboram as análises de Sader e Jinkings afirmando que, o que ocorreu nessa região, respectivamente, foi violência epistêmica e epistemicídio cultural em grande escala, pois o pensamento dominante sobre ciência, tecnologia e civilização, até o século XIX, era o europeu que procurava tornar-se hegemônico, disseminando suas lógicas preservacionistas e, produzindo não-existência de saberes e práticas sociais, particularmente nos mundos pós-coloniais, como no caso do Brasil , ainda dominados pelo universalismo europeu no sentido dado por Wallerstein (2007). Todavia, Santos (2006) esclarece: O conhecimento científico é hoje a forma oficialmente privilegiada de conhecimento e a sua importância para a vida das sociedades contemporâneas não oferece contestação. Na medida das suas possibilidades, todos os países se dedicam à promoção da ciência, esperando benefícios do investimento nela. (SANTOS, 2006, p. 137).

Ressaltamos que, apesar das amarras racionais, epistêmicas, sociais e econômicas estruturais, a América Latina e Caribe, no final do século XIX e início do século XX, desenvolveu pesquisas científicas originais na área da Medicina, com destacada participação dos brasileiros Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, essas ações estavam circunscritas à especialização na área e, não, a atividades de ensino ou a políticas educacionais, mas sim, à pesquisa científica médica. É necessário dizer, no entanto, que as primeiras escolas de ensino superior no Brasil surgiram no início do século XIX, nessa área do saber, e que, a maioria das universidades brasileiras foi criada no século XX. 1305

Para Sader (2010) políticas sobre ciência e tecnologia, no Brasil, começaram a ser pensadas em âmbito local a partir da década de 1930, articuladas aos esforços de industrialização empreendidos por um Estado Nacional que para este autor: “mediante políticas sociais, sindicalização dos trabalhadores, um projeto nacional e um discurso popular, fez-se o reconhecimento de proporções crescentes de brasileiros em um Estado que priorizou o desenvolvimento econômico como o Norte do país”. (p.13). Isto mostra que, apesar de terem ocorrido políticas no âmbito social e sindical, a preocupação social, englobante da educacional, não foi à pauta principal, portanto, era de certa maneira, parte do discurso e à parte da ação política estatal. Nesse período, na interpretação de Moura (2010) a Constituição Federal de 1937, em seus aspectos políticos voltados à política educacional – retrocedeu em relação à de 1934, “pois, dentre outros aspectos, acabou com a vinculação constitucional destinada à educação (p.63).” Autores como Frigotto (2010), Moura (2010), Sader (2010) e Germano (1995), chamam à atenção para a leitura crítica da realidade quando se analisa a política educacional, particularmente quando articulada à promoção da cidadania, no caso em análise, com contributo da ciência e da tecnologia –, e apontam a necessidade de se trazer o Estado brasileiro para a discussão da problemática, inserindoo nas questões mais amplas de compreensão da realidade histórica. A lição desses autores nos permitiu fazer uma síntese para colocar em parâmetros situacionais, a temática em discussão em seu contexto histórico, qual seja: “Ciência, tecnologia e política educacional no Brasil” no percurso do Estado brasileiro em busca de desenvolvimento social e econômico. Então, vejamos pontualmente: a) Durante todo processo de colonização o Brasil teve sua economia dirigida pela Europa e seu perfil econômico era rural, visto como exportador de bens primários. Isso perdurou até o final do século XIX 1306

e princípio do século XX. Não é difícil se compreender que, até esse momento, não havia interesse para que o país ou o Estado brasileiro promovesse políticas educacionais direcionadas para a ciência e a tecnologia. Embora, como já citamos, tenham ocorrido investidas nesse sentido na área da medicina, e que, o Brasil, tenha participado, já nesse momento, como protagonista científico. b) Da década de 1950, em diante, o Brasil, passou a receber instrumentação política e financeira dos Organismos Internacionais e de Agências supranacionais. Isto gerou dependência, não apenas financeira, mas científica e tecnológica, por todo século XX, notadamente, influenciado pelas teorias da dependência, na industrialização e no programa de substituição de importações. Podemos dizer, contudo, com base nos autores supracitados, que as décadas de 1950-1970 foram de institucionalização e avanços e que as

de

1980-1990

foram

de

estagnação,

havendo,

todavia,

reformulação de políticas, e essas, em grande medida, não provocaram transformações substanciais: nem na educação, nem na ciência e na tecnologia, menos ainda, no denominado processo de inovação. Nesse momento, as universidades e a pós-graduação stricto sensu começaram a desenvolver pesquisas científicas com mais intensidade, muitas financiadas por fundações estrangeiras. No entanto, até esse momento, quase não havia preocupação estatal direta que pudesse ser denominada de política nacional para a ciência e a tecnologia com aporte e suporte educacional, o que veio a ocorrer minimamente, a partir da década de 1950. Essa foi engatinhando até a criação do Ministério da Ciência e Tecnologia, em 1985. A partir daí, a ciência e a tecnologia deixam de ser apenas preocupação

de

cientistas

e

intelectuais

e

passam

a

ser

implementadas políticas para a área por meio dos Programas de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico, com alguns enfoques

vinculados

à

política

educacional,

ancorados

em

aspectos legais, como na Lei 9.394/96. Esses muitas vezes não passam do apontamento legal.

1307

Em suma, observamos que, evidencia-se entre os anos 1950 e 1970 a ocorrência de algumas institucionalizações e avanços na área, com base na ideologia do capital humano, mas que deixavam transparecer certas preocupações com a ciência e a tecnologia em suas incursões pelo processo educativo dos sujeitos. Refletimos ainda, sobre aquilo que podemos chamar de estruturação estatal federal, no âmbito da ciência e da tecnologia, articuladas à educação brasileira, qual seja, do planejamento da administração pública, cujo marco foi a criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) com a indicação de um Plano Básico de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PBDCT), em 1969. Esse começa a se desenvolver na década de 1970, com assessoramento do Conselho Nacional de Pesquisa. É preciso refletirmos um pouco mais, acerca daquilo que observamos entre 1980 e 1990, quando houve certa estagnação no tocante à administração pública, embora, tenha ocorrido reformulação de políticas educacionais, a ciência e a tecnologia, continuaram a ser utilizadas como capital morto, alimentadas pela ideologia de uma sociedade do conhecimento, na qual não há lugar para sujeitos com baixa

escolaridade.Todavia,

não

foi

implantada

nessa

nova

estruturação (política estatal), uma política estruturante capaz de incluílos nessa sociedade. Nos anos 1990, em particular, o Estado brasileiro, explicitamente, seguia a ordenação capitalista do sistema global e o padrão de suas políticas, entre as quais as educacionais, que eram conduzidas pelo Banco Mundial e outras agências internacionais. Nesse papel, o Brasil, inseria-se no processo de globalização mundial sem debater as repercussões

sociais

e

as

consequências

econômicas

dos

posicionamentos assumidos, particularmente, porque não buscava ainda, de forma estruturada, a superação da dependência científica e 1308

tecnológica e, não criava políticas educacionais abrangentes, embora, o discurso hegemônico apregoasse e a legislação conformasse reformulações políticas na área da educação, suas interpenetrações na ciência e na tecnologia se encontravam bem definidas, embora minimamente, apenas, nos aspectos legais, conforme os ditames neoliberais. Germano (1999) analisa essa questão inserindo-a no processo de mundialização em curso nos anos 1990. Ele diz que, essa é uma questão social que repercutia de forma dramática na vida social e atingia o Estado e suas políticas sociais, trazendo com isso consequências nefastas para as sociedades ditas periféricas e semiperiféricas, em particular, para o mundo do trabalho. Os processos econômicos mundializados, para esse autor, naquele momento, eram demarcados pelo

paradigma

hegemônico

de

organização

da

vida

social,

modelados pela visão do mercado como modelo, portanto, sem “critérios morais” como afirma, citando Victória Camps, pois o lucro e o consumo são os critérios básicos desta visão de vida em sociedade. Nesse sentido, informa ainda Germano (1999) que, na América Latina “inequivocadamente o ‘mercado como modelo’ constitui também o paradigma organizador das políticas educacionais [...]” (p.121). Aqui, podemos perceber que a política do Estado brasileiro, nesse momento histórico-social, não tinha como prerrogativa fundante o desenvolvimento socioeconômico em bases científicas, tecnológicas e educacionais, embora, já houvesse criado fundos e conselhos nacionais

com

finalidades,

notadamente,

direcionadas

para

o

desenvolvimento científico e tecnológico do país, como veremos no (quadro 1) adiante. Vemos, desse modo, que a relação entre Estado e economia é crucial para que compreendamos as interconexões entre ciência, tecnologia, sociedade e políticas educacionais, particularmente, se desejarmos discutir os condicionantes que regem a lógica dos posicionamentos deste, quando assume esta ou aquela forma de 1309

política social para a educação – um dos setores fundamentais para o desenvolvimento social, cultural, científico e tecnológico de qualquer nação –, seja ela capitalista ou não. O

quadro

apresentado

a

seguir,

mostra

algumas

institucionalizações de políticas em ciência e tecnologia no Brasil no século XX. Quadro 1: Institucionalização de Políticas em Ciência e Tecnologia no Brasil do século XX Instituição

Ano de criação

Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)

1948

Conselho Nacional de Pesquisa, hoje, Conselho Nacional de

1951

Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

1951

(Capes) Secretaria de Tecnologia Industrial

1972

Sistema Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

1972

Ministério da Ciência Tecnologia (MCT)

1985

Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CCT)

1996

Fontes: Enciclopédia Contemporânea da América Latina e do Caribe (SADER e JINKINGS et. al. (Orgs.) 2006)

Salientamos que essas institucionalizações delineiam o descompasso delas com as políticas educacionais, pois, apenas para exemplificar, enquanto se institucionalizava o MCT em 1985, e mantinha-se o CCT, em 1996, em nível Federal, as reformas na educação implantadas pelo Governo brasileiro, nesse momento,

segundo

Descentralização

Lima

entre

e

Mendes

diferentes

(2006,

p.

66)

instâncias

promoviam:

de

“1)

governo

(municipalização); 2) descentralização para a escola (autonomia escolar); e 3) descentralização para o mercado (responsabilidade social)”. Diante dessa constatação, podemos anuir que ciência, tecnologia e educação continuavam a fazer parte de espaços políticos governamentais no Brasil, do final do século XX, mas, se exerciam em

1310

círculos diversos de projeção em níveis federais, estaduais e municipais quanto à inserção de C&T na política educacional. Em termos de financiamento, é necessário apontar que a área da ciência e da tecnologia começou a se fortalecer a partir de 1999, quando foram criados 16 fundos setoriais, com recursos alocados pelo FNDCT com receitas oriundas de contribuições sobre a exploração de recursos naturais e de parcelas de impostos devidos à União. (NOGUEIRA e VELOSO FILHO, 2010). Nesse momento, a educação também começava a se inserir nas questões que envolvem financiamento e chega ao final do século XX, regida pela Lei 9.424/96, que cria o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério e fixa o que deve ser considerado como despesa para a Manutenção e Desenvolvimento do Ensino, no momento que, estão em funcionamento vários programas, planos e projetos de cunho descentralizador, quais sejam, aqueles nos quais, conforme França (2006) o Estado deixa de ser executor para ser articulador. No contexto conjuntural no qual se insere a tríade formadora do tema desta comunicação CTS e política educacional, reafirmamos que, havia de forma explícita a inserção de organismos internacionais no direcionamento das políticas brasileiras para a área, particularmente, do Banco Mundial. Isso reforça as constatações de Herrera (1995) quando nos ensina que analisar a política científica na América Latina é um exercício demandante de observações dos determinantes sociais e econômicos do contexto histórico, para que possamos ver o que está explícito e o que está implícito na política científica. Com essa perspectiva corrobora Dupas (2007) quando sinaliza, nesse período em reflexão, para situações como: despolitização da grande massa populacional; interesses da sociedade civil; fusão entre pesquisa industrial e pesquisa científica; encolhimento dos horizontes temporais pelas novas tecnologias; e falta de investimento estatal em

1311

ciência, tecnologia e educação. Dimensões políticas sociais que para ele não podem ser desprezadas pelos Estados nacionais. Dando um contorno de fechamento desse item, informamos que, os estudos em CTS, no Brasil, segundo Bazzo et. al (2003) convergem para a compreensão de que a ciência e a tecnologia são conhecimentos que impactam a sociedade e que estas não devem ser alijadas das decisões que as envolvem como produtos sociais. Sendo assim, encontram-se nelas aspectos políticos, sociais e educacionais, que incidem nos interesses dos cidadãos.

3 A POLÍTICA EDUCACIONAL BRASILEIRA EM SUAS INTERFACES COM A CIÊNCIA E A TECNOLOGIA NO SÉCULO XXI Mas, como chegou o Brasil ao século XXI em termos de política educacional para ciência e a tecnologia? Para Nogueira e Veloso Filho (2010): O CCT foi mantido após a criação do MCT. Em 2000, tornou-se órgão consultivo de assessoramento da Presidência da República, contando com a participação de 26 instituições, entre ministérios, representantes de produtores e usuários de C,T&I e de entidades das áreas de ensino e de pesquisa, e tendo, como secretaria-executiva, o próprio ministério. Tem como missão formular propostas para a política da área, promover estudos e avaliações setoriais, articular-se com outras áreas de governo e opinar sobre atos normativos.

Ainda, para esses autores, a estrutura atual em nível Federal, delega ao CNPq o fomento de atividades de pesquisa ao concentrar nas ações e competências deste Conselho “o apoio à capacitação em todas as áreas do conhecimento humano, visando ao desenvolvimento do país.” Já nas reflexões de Cassiolato e Lastres (2005) esse desenvolvimento ocorre tendo como parâmetro implicações das políticas para a área e sem elas dificilmente o país conseguirá atingir os objetivos para os quais se destina em termos de ciência, tecnologia e inovação. 1312

Assim, já podemos perceber que, há no início do século XXI, no Brasil, preocupações políticas mais pontuais direcionadas para o financiamento da ciência, da tecnologia e da educação e, também, com as relações entre as instituições federais de ensino superior e de pesquisas científicas e tecnológicas e as fundações de apoio, a exemplo

do

Decreto



5.205/2004

que

estabelece

sua

regulamentação. Temos ainda, entre outros, dentro das dimensões legais, o Decreto nº 5.493/2005 que regulamenta e institui o Programa Universidade para Todos – PROUNI. Essas são algumas das políticas que podem ser visualizadas na criação de novas universidades públicas federais em todo território nacional e na institucionalização da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica que criou os Institutos

Federais

de

Educação,

Ciência

e

Tecnologia,

Lei



11.892/2008, bem como nas mudanças ocorridas nos fundos de financiamento da educação básica. Em nossas perspectivas a abrangência da política educacional da Rede Federal é um aspecto positivo em um país de dimensões continentais, no qual grande parte da população tem ainda muita dificuldade de acesso à educação formal. Contudo, essa implantação em

nossa

percepção

deve

ser

acompanhada

e

avaliada

constantemente. Nas análises acerca do financiamento da ciência e da tecnologia, no âmbito da educação básica e superior articuladas a C&T, às críticas tem sido na direção de uma preocupação maior com as questões de soberania e dependência tecnológica e, também, das novas configurações da divisão internacional do trabalho. Estas alocadas principalmente, em autores que estudam a política de educação superior, na qual o aporte de pesquisa é maior do que nos demais níveis da educação. Dentre esses destacamos Chaves (2006), que informa ser inegável que a inovação tecnológica passou a ser a finalidade da ciência no país e, que, isto tem mostrado reflexos na

1313

produção científica, pois esta tem se voltado para o mercado por imposição dos financiadores.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Percebemos, a partir das breves reflexões delineadas, que os estudos em CTS permitem o desvelamento de questões envoltas na história político-social e educacional do Brasil, cujos desafios são considerados estruturais. O país saiu de um modelo colonial de perfil rural no final do século XIX e passou para o exportador de bens primários até a metade do século XX aproximadamente. A partir desse momento, acentua-se a dependência financeira científica e tecnológica e começam a ser institucionalizadas políticas voltadas para a superação dessa dependência de forma bastante setorial. Já no século XXI, vão surgir políticas educacionais direcionadas para a implantação da ciência e da tecnologia como política educacional abrangente em todo território brasileiro. Para isso, foram criadas novas universidades federais e a Rede Federal de Educação Profissional, Ciência e Tecnologia quando são criados os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. No entanto, os estudos apontam para problemas vinculados ao financiamento e a finalidade da ciência produzida no país, bem como para questões de soberania no âmbito de C&T, dentre outras as de inovação e patentes. Consideramos, portanto, dentro da perspectiva das reflexões aqui delineadas que os desafios estão postos e que, as possibilidades de interlocução entre as políticas educacionais no Brasil, do século XXI, e o desenvolvimento científico e tecnológico se encontram em processo de implantação. Daí advém, considerarmos como uma necessidade real a ampliação de pesquisas e estudos na área de C&T articulados com as políticas educacionais.

1314

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. LEI nº 9.424/96. Ministério da Educação, Brasília, 1996. Disponível em: . MEC/BRASIL, 2008. BRASIL. LEI DE INOVAÇÃO 10.973/2004. Ciência, Tecnologia e Inovação: desafio para a sociedade brasileira (Livro Verde), Ministério da Ciência e Tecnologia, Brasília, 2001. Disponível em: . MCT/BRASIL, 2007. _____. Lei nº 11.892/2008 – Institui a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, cria os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. Ministério da Educação, 2008. Disponível em: http://www.mec.gov.br>. MEC/BRASIL, 2008. _____. Congresso Nacional. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, v.135, n. 248, 1996. ______. Lei n. 9.424, de 24 de dezembro de 1996. Dispõe sobre o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, 1996. ______. Decreto n. 5.205, de 14 de setembro de 2004. Regulamenta a Lei n. 8.958, de 20 de dezembro de 1994, que dispõe sobre as relações entre as instituições de ensino superior e pesquisa científica e tecnológica e as fundações de apoio.Diário Oficial da República Federativa do Brasil. n. 178. Brasília, 2004. ______. Decreto n. 5.493, de 18 de julho de 2005. Regulamenta a Lei n. 11.096, de 13 de janeiro de 2005, que institui o Programa Universidade para Todos - PROUNI. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, 2005. BAZZO, Wlater; LISIGEN, Irlan Von; Pereira, Luiz T. do V. Introdução aos Estudos CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade). Cadernos de IberoAmérica. OEI Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura. Espanha: Madrid, 2003. CASSIOLATO, José Eduardo e LASTRES, Helena Maria Martins. Sistemas de Inovação e Desenvolvimento: as implicações de política. São Paulo em Perspectiva, v. 19, n.1, p.34-35, jan/.mar. 2005.

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1317

AÇÕES DO PIBID DO IFRN CAMPUS SANTA CRUZ NA REDE PÚBLICA DE ENSINO COM JOGOS DO LABORATÓRIO DE MATEMÁTICA Silvia Regina Pereira de Mendonça365

Resumo: O presente artigo aborda a perspectiva de favorecer a rede pública de ensino de Santa cruz com a apresentação de jogos do laboratório de Matemática do IFRN – Campus Santa Cruz pelos alunos do PIBID da Licenciatura em Matemática, com o intuito de motivar os alunos da região do Trairi. O nosso projeto de trabalho tem o objetivo de enriquecer os métodos de ensino e aprendizagem, a fim de minimizar a forma mecânica de como o conhecimento é abordado em algumas aulas como pronto e acabado, proporcionando aos alunos uma forma mais dinâmica de aprendizado. Assim, nossa proposta visa à apresentação de formas de ensinar e aprender que transponham o limite da sala de aula e proporcione a interação dos professores e alunos. Palavras-chave: jogos, aprendizagem, ensino, laboratório de matemática, PIBID.

INTRODUÇÃO Este trabalho será subsidiado por alguns teóricos que reconhecem a importância do jogo, como uma forma de brincadeira significativa para o desenvolvimento do educando. Ou seja, seus olhares sobre os jogos possuem um grande efeito pedagógico. Diante dos avanços tecnológicos o trabalho com jogos é um dos recursos que favorece o desenvolvimento da linguagem, diferentes processos de raciocínio e de interação entre os alunos. É de fundamental importância que o professor busque desenvolver em seus alunos a iniciativa, aprender a ser crítico e confiante em si mesmo. O espírito explorador a criatividade e a independência desenvolverão também as habilidades e competências necessárias para solucionar os problemas propostos. 365

Graduada em Matemática (Faculdade Integrada Castelo Branco), Mestra em Educação Matemática (UFRN). Professora Titular (IFRN). [email protected].

1318

Além disto, no desenvolvimento de novos processos de ensino podemos contar com diversos instrumentos de interação com o público-alvo. Considere que, por exemplo, temos o jogo de lazer que não possui na sua concepção inicial uma preocupação de utilização no processo educacional, e o jogo montado especialmente para o ensino. Podem-se usar os instrumentos disponíveis e que facilitem o seu trabalho mesmo que tenham sido concebidos para outras finalidades, jogos que poderíamos chamar de jogos didáticos, podem ser articulados aos jogos rotulados de comerciais ou para lazer. A utilização de jogos na escola não é algo novo assim como é bastante conhecido o seu potencial para o ensino e a aprendizagem em muitas áreas do conhecimento. Em se tratando de aulas de matemática, o uso de jogos implica uma mudança significativa nos processos ensino e aprendizagem, que permite alterar o modelo tradicional de ensino, o qual muitas vezes tem no livro e em exercícios padronizados seu principal recurso didático. O trabalho com jogos nas aulas de matemática, quando bem planejado e orientado, auxilia o desenvolvimento

de

habilidades

como

observação,

análise,

levantamento de hipóteses, busca de suposições, reflexão, tomada de decisão, argumentação e organização, que estão estritamente relacionados ao raciocínio lógico. O professor para garantir uma boa mediação deve estar sempre pronto a agir com critério diante do aparecimento de dificuldades, ou até mesmo quando a heterogeneidade que caracteriza toda a sala de aula não trouxer grande problematizarão. É nesse sentido que o professor deve estar em contínua formação, pois somente através do conhecimento

é

que

podemos

encontrar

resposta

para

o

questionamento que se formam. Dessa forma, sabendo que o lúdico favorece o estágio que leva o aluno ao conhecimento de si, que contribui para a construção do pensamento e subjetividade, bem como sobre o mundo adulto com as alternativas que ele dispõe, organizamos atividades para utilização em 1319

sala de aula e propiciamos sua utilização em algumas escolas de Santa Cruz. Os alunos do PIBID levam os jogos para as escolas e auxiliam o professor na sua aplicação. Vale salientar que: seja qual for o caráter em que o jogo seja praticado, ele atua positivamente, pois cabe à escola escolher a melhor forma de fazer com que este recurso didático seja posto em experimentação, devendo apenas atentar para diferenças individuais de cada ser, para que todos possam estar integrados e comprometidos a fim de alcançar êxito conforme o esperado.

OBJETIVO Este trabalho está organizado em torno do tema. “aprender Matemática através de jogos” e tem como objetivo, destacar a importância da inserção dos jogos matemáticos nas aulas do ensino fundamental

pelos

alunos

do

PIBID.

Abordando

os

requisitos

problemáticos: como os jogos matemáticos poderão influenciar no processo

de

ensino

aprendizagem?

Quais

as

contribuições

pedagógicas proporcionadas pelo uso dos jogos matemáticos nas turmas do ensino fundamental?

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA O laboratório de matemática surgiu da necessidade de um espaço de construção do conhecimento do educando, de modo que, neste ambiente tem-se uma interação entre aluno e professor, em um aspecto diferente em relação à sala de aula, possibilitando assim, uma dinamização

do

ensino-aprendizagem

prazeroso, dinâmico e mais eficaz.

1320

por

meio

de

um

modo

Nele, há uma construção coletiva do conhecimento matemático no qual o recurso pedagógico mais utilizado é o jogo, e que por meio desta atividade os alunos têm uma maior participação e interação. Para acompanhar as evoluções que avançam a cada dia, faz-se necessário que nós, educadores, mudemos nossa maneira de ensinar. Tal visão pode ser modificada desde que haja compromisso por parte dos educadores com uma proposta de trabalho criativo, que investigue e analise os problemas político-sociais da atualidade e esteja sempre verificando o que se passa no comércio, na indústria, nos jornais, ou seja, na vida. Freire (2000, p. 79) afirma: “Ninguém nasce feito. Vamos nos fazendo aos poucos, na prática social de que tomamos parte”. Os grupos

se

estabelecem,

constroem

sua

identidade

através

do

desenvolvimento de valores, crenças, estratégias cognitivas e práticas, que evidenciam os aspectos culturais característicos da formação social originária dos indivíduos. Certamente, essas manifestações individuais

e

coletivas

são

evidenciadas

de

acordo

com

as

necessidades primordiais e os recursos naturais e ambientais disponíveis em cada contexto. O professor deve conscientizar-se de que o foco principal é a aprendizagem do aluno e não apenas a simples transmissão do conteúdo. O fracasso de alguns alunos vem acompanhado de vários elementos relacionados à metodologia, ao conteúdo e ao próprio professor. Na maioria das vezes, as disciplinas, principalmente as ditas exatas, são abordadas de forma mecânica como um conhecimento pronto e acabado, condicionando dessa forma alguns alunos a resolver exercícios sem questioná-los, ficando o resolver por resolver. Mesmo porque a forma que “aprenderam” não dá espaço a questionamentos. O aluno, neste caso, não é estimulado a realizar raciocino lógico, o que é igualmente prejudicial à sua formação. Os conteúdos podem ser aprendidos por qualquer pessoa, desde que esta possa criar e expor seus pensamentos, tendo o professor que 1321

dar tal oportunidade propiciando um ambiente de manipulação, investigação e formação de hipóteses, a fim de que o aluno seja o construtor de seus próprios conceitos. O professor, neste caso, será apenas um auxiliador. De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais, o “homem para exercer cidadania deve saber calcular, medir, argumentar, raciocinar e tratar informações estatisticamente” (Brasil, 1997), Partindo desse pressuposto, acreditamos que, para obter êxito no processo ensino-aprendizagem, o aluno deve realizar experiências concretas, vivenciando dinamicamente os conteúdos que lhe forem propostos, respondendo positivamente ao mundo que o rodeia, através de conceitos construídos e interiorizados, manipulando uma série de materiais concretos, que servirão como auxiliares no desenvolvimento de seu raciocínio. As Disciplinas têm por objetivo desenvolver o espírito criativo, o raciocínio lógico e o pensar construindo variados significados a partir das diferentes formas de utilização no cotidiano do aluno. O trabalho no Laboratório de Matemática contribui para uma aprendizagem mais satisfatória nas disciplinas, esse fato nos conduziu ao desenvolvimento deste trabalho na tentativa de mostrar caminhos para o ensino de maneira mais prazerosa e gratificante tanto para o aluno quanto para o professor, fortalecendo a relação de troca de conhecimentos entre ambos e estabelecendo uma relação harmoniosa e respeitosa. Surge, então, a necessidade de a escola criar um espaço onde possa ser

trabalhada

e

ensinada

a

matemática.

Esse

ambiente

é

caracterizado por atividades experimentais, realizadas pelo aluno e pelo professor, com o intuito de construir conceitos, levando à discussão de questões, relacionando conteúdos escolares com atividades vivenciadas no cotidiano, onde o aluno desenvolve sua própria linguagem relacionada à compreensão, interpretando e realmente aprendendo a realidade matemática que pode e deve ser utilizada por todos. 1322

O ambiente de aula deve passar por uma mudança no seu significado, deixando de ser um local aonde os alunos vão para apenas ouvir o professor, para se transformar num lugar de trabalho de produção de conhecimento ou num hábitat natural de pesquisa. Isso não significa que as formas de trabalho anteriores deixarão de existir. O quadro de giz continuará tendo sua importância e a fazer parte do contexto, pois ainda é um dos recursos mais usados para que o professor possa orientar a condução de suas atividades. O mesmo critério é dado à aula tradicional que também não deixa de existir. Entretanto, outras formas de interação do professor com a turma podem ser levadas em consideração para a inserção de inovações no processo educativo, não se restringindo unicamente ao uso do laboratório. O ensino-aprendizagem nas escolas públicas do Brasil tem enfrentado muitas dificuldades e está longe de ser tido como um ensino de qualidade. Os problemas são vários, desde currículos desatualizados, escassez de recursos materiais nas escolas, baixos salários, deficiência na formação dos profissionais envolvidos, até a falta de incentivos e de perspectiva. Neste contexto, os jogos surgem como um recurso metodológico bastante eficiente, desde que usado adequadamente. E ressaltamos ainda que para produzir material para utilização com os alunos não devemos esperar somente pelos recursos escassos do governo. Podemos e devemos utilizar material reciclável de baixo custo e acessível a toda a população, exercendo a nossa cidadania e formando cidadãos para o futuro. Desse modo, sempre que possível apresentamos a Matemática, utilizando a prática e com jogos e brincadeiras diversas, unindo o lúdico ao desenvolvimento do raciocínio matemático, tendo como base as propostas inovadoras da Educação Matemática. Os debates contemporâneos, em nossa forma de perceber e de pensar, levam ao limite essa questão. A Matemática está integrada

ao

sistema

científico, 1323

tecnológico,

industrial,

militar,

econômico, político, cujo processo sempre foi apoiado por tais sistemas, dando a essa disciplina um caráter universal e agradável, sempre que possível (D’AMBROSIO, 2001). O jogo pode ser considerado um ótimo instrumento para a fixação de vários conceitos, inclusive os matemáticos, como cita Brenell (2003), onde ele valoriza a utilização dos jogos para o ensino da matemática, sobretudo porque eles não apenas divertem, mas também

extrai

das

atividades

materiais

suficientes

para

gerar

conhecimento, interessar e fazer com que os estudantes pensem com certa motivação.

METODOLOGIA Foram realizadas visitas e oficinas no laboratório de Matemática do IFRN Câmpus Santa Cruz, tanto com os bolsistas do PIBID, quanto com os professores da rede pública de ensino, com o intuito de conhecer e discutir a respeito do ambiente e dos jogos apresentados. Desse modo, no nosso projeto também fizemos pesquisas em livros e na internet para a análise, sempre trocando experiências com os integrantes da equipe. E, nessa discussão verificamos os jogos mais adequados aos conteúdos trabalhados nas escolas e de interesse dos professores. Dentre os jogos escolhidos, resolvemos relacioná-los com diversos conteúdos, envolvendo assuntos que propiciam o aprendizado da Matemática. Assim, será permitida por meio dos jogos uma estruturação de procedimentos metodológicos úteis, capazes de tornarem a prática docente eficaz na compreensão dos assuntos abordados. Para o nosso projeto, decidimos dividir o nosso cronograma físico em basicamente três etapas distintas: pesquisa, organização e divulgação. Essas foram as nossas metas antes da conclusão do mesmo. De início, pesquisamos e fizemos uma análise geral acerca de jogos que serviriam 1324

de base para o início do programa, levando em consideração as alterações que achamos necessárias tanto acerca de suas regras quanto ao modo de apresentação. Com relação aos jogos escolhidos, temos que foram nove ao todo, sendo deles 5 relacionados a matemática, 2 de biologia e 2 de química. Terminada a pesquisa dos jogos, entramos na segunda etapa do projeto, ou seja, a apresentação. De início, elaboramos uma apostila com os jogos disponíveis no laboratório, seus objetivos e sugestões de atividades. Dentre eles temos o material dourado, ábaco, tangran e outros. Finalmente quando terminado toda a organização dos jogos didáticos, entramos na 3° etapa do projeto: a apresentação nas escolas. A princípio, resolvemos utilizar apenas três dos jogos catalogados, o material dourado, ábaco, tangran. Para isso, levamos para as escolas e fomos recebidos com muito entusiasmo por parte dos alunos. Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologia do Rio Grande do Norte. Apresentamos a seguir as informações de capa da apostila de jogos e dois dos três que foram utilizados no primeiro momento.

Campus: Santa Cruz. PIBID Coordenadora de Área: Sílvia Regina Mendonça.

1325

Materiais disponíveis no Laboratório de Matemática do IFRN câmpus Santa Cruz.

ÁBACO SIMPLES

Descrição do material: É composto por uma base, 5 hastes em madeira e 50 peças para encaixe em EVA. Conteúdos programáticos a serem trabalhados: Raciocínio lógico ( quantidade, operações de adição, subtração, multiplicação e divisão, composição e decomposição de números). Faixa etária: A partir de 06 anos SUGESTÕES DE ATIVIDADES: 1326

O professor escreverá um número e, com o ábaco, os alunos farão a composição deste número utilizando as peças coloridas e a base, encaixando as unidades, as dezenas, etc. O processo inverso poderá se desenvolvido pelos alunos, que colocarão as peças e depois escreverão o número correspondente. O material pode ser utilizado para a realização das quatro operações, em que as peças são adicionadas, subtraídas, multiplicadas ou divididas. Como os alunos do PIBID tem contrato de 12 meses, ainda apresentaremos outros jogos, dando continuidade às atividades propostas.

TANGRAM Faixa etária: Acima de 04 anos Origem: O Tangram é um quebra-cabeça chinês formado por 7 peças (5 triângulos, 1 quadrado e 1 paralelogramo) Com essas peças podemos formar várias figuras, utilizando todas elas sem sobrepô-las. Segundo a Enciclopédia do Tangram é possível montar mais de 1700 figuras com as 7 peças. É um jogo educativo, motivador pelo desafio que desenvolve a criatividade, exercita a paciência e libera a fantasia. Regras simples: 1327

Toda figura deve usar as 7 peças; As peças não podem ser apoiadas ou colocadas uma sobre as outras, mesmo parcialmente; São sugeridas várias figuras para ser montada junto com o jogo, mas a criança fica também livre para usar a imaginação e a criatividade enquanto brinca.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Foi enriquecedor e significativo o trabalho referente aos jogos matemáticos. Através de reflexões conjuntas, os jogos foram estudados, analisando-se as questões que pudessem possibilitar aos professores trabalharem com seus alunos de forma mais prazerosa e significativa, alcançando melhores resultados no processo ensino-aprendizagem. O depoimento de alguns professores veio fortalecer a ideia de que, com a aplicação dos jogos, existe a grande possibilidade de diminuir o bloqueio apresentado por muitos alunos que temem a Matemática e, muitas vezes, se sentem incapacitados para aprendê-la. O jogo facilita a compreensão de regras, estimula o aluno a expor suas ideias e aceitar outras opiniões desenvolver estratégias, levantar hipóteses, durante o jogo, tudo isso acontece quase imperceptível, visto 1328

que dentro de uma situação de jogo, onde é impossível uma atitude passiva e a motivação é grande, há um maior relaxamento e isso, certamente

contribui

de

forma

significativa

para

uma

melhor

aprendizagem. Constatou-se também, que, com a utilização dos jogos, eles exercitam a Matemática brincando, como também o professor pode adaptá-los conforme as dificuldades específicas apresentadas pelos alunos. Compreendemos também que o jogo não é capaz, só ou mal utilizado, de resolver os problemas crônicos do processo ensinoaprendizagem de matemática. Eles devem ser utilizados como instrumentos, “ferramentas” facilitadores desse processo. É preciso consciência, do seu potencial e de suas limitações, além das dificuldades operacionais para sua implementação, não devendo, pois, o professor se aventurar nessa “alternativa pedagógica” sem um mínimo de fundamentação.

REFERÊNCIAS BRASIL, Parâmetros Curriculares Nacionais: Matemática. Brasília: MEC / SEF, 1997. BRENELL, Rosely Palermo. O jogo como espaço para pensar: A construção de noções lógicas e aritméticas. São Paulo: Editora papirus, 4ª edição, 2003. D’AMBROSIO, Ubiratan. Etnomatemática: elo entre as tradições e a modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. FREIRE, Paulo. Política e Educação. São Paulo:Cortez, 2000 (coleção Questões da Nossa Época: v.23).

1329

MESTRADO PROFISSIONAL EM MATEMÁTICA: UMA POLÍTICA SOCIAL ABRANGENTE

Rosângela Araújo da Silva366

RESUMO: Objetiva-se com este artigo discutir a política pública educacional realizada pelo Mestrado Profissional em Matemática em Rede Nacional (PROFMAT), um curso elaborado pela Sociedade Brasileira de Matemática (SBM), com aulas semipresenciais. Este programa como política educacional trata-se de uma política social abrangente, que atinge um público específico, que são os professores de Matemática da Educação Básica. Também atende as metas do Plano Nacional da Educação (PNE) para o decênio 2011-2020, elevando o nível de escolaridade da população. Como metodologia, recorremos a apreciação de documentos oficiais e relatos. Verifica-se como o programa atinge a sociedade com a melhoria do ensino básico. Palavras – chave: Política Pública Educacional, Mestrado Profissional em Matemática, Política Pública, Plano Nacional da Educação.

INTRODUÇÃO O presente estudo propõe uma análise do Mestrado Profissional em

Matemática

em

Rede

Nacional

(PROFMAT),

um

curso

semipresencial, coordenado pela Sociedade Brasileira de Matemática (SBM) e operacionalizado por uma rede de Instituições de Ensino Superior. Trata-se de um projeto inovador que busca contribuir para a efetiva melhoria do ensino de Matemática nas escolas de ensino básico. Assim, versando sobre uma política educacional de cunho social abrangente, pois um dos méritos do Mestrado Profissional da SBM que atende um público que trabalha e procura sempre por capacitação, para se valorizar e consequentemente tornar sua atuação mais produtiva.

366

Professora do Instituto de Educação e Tecnologia do RN. [email protected].

1330

Visa também atender as metas do Plano Nacional da Educação (PNE) para o decênio 2011-2020 que dar sequência ao PNE do decênio passado, que atualmente é o projeto mais amplo referente às políticas públicas educacionais. Podemos citar como principais objetivos a ser atingidos são a elevação global do nível de escolaridade da população e a melhoria da qualidade do ensino em todos os níveis. O PROFMAT foi recomendado pelo Conselho Técnico-Científico da Educação Superior (CTC-ES) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal para o Ensino Superior (CAPES) em uma reunião realizada nos dias 25 a 29 de outubro de 2010. O Curso teve seu início em 2011, com a adesão de 54 instituições e uma oferta de 1192 vagas, sendo, posteriormente, expandido em 2012 para 67 instituições, numa oferta de 1575 vagas. Seguindo para o próximo ano (2013), tem-se a ampliação para 71 instituições, ofertando um número de 1570 vagas.

OBJETIVO Analisar a iniciativa da Sociedade Brasileira de Matemática, ao realizar o Mestrado Profissional PROFMAT em todo o território nacional, como

uma

política

pública

de

capacitação

para

professores,

preferencialmente de Escolas Públicas que atuam no ensino básico de Matemática, demonstrando toda sua distribuição nas IES conveniadas, assim como o impacto deste curso nos índices da educação brasileira para essa área de conhecimento.

METODOLOGIA A

metodologia

usada

insere-se

no

âmbito

dos

estudos

qualitativos, recorrendo-se à apreciação de documentos oficiais e

1331

relatos de experiências, estas declaradas na própria plataforma on-line do programa.

RESULTADOS E DISCUSSÃO Desde sua proposta inicial o PROFMAT visa a atender professores de Matemática, principalmente da escola pública, em atuação no ensino básico, possibilitando aperfeiçoamento em sua formação profissional, com o aprofundamento de conteúdos matemáticos relevantes para sua atuação docente. No Regimento do Mestrado Profissional em Matemática em Rede Nacional consta em seu Capítulo I, os objetivos do programa: Artigo 1º - O Mestrado Profissional em Matemática em Rede Nacional (PROFMAT) tem como objetivo proporcionar formação matemática aprofundada relevante ao exercício da docência no Ensino Básico, visando dar ao egresso qualificação certificada para o exercício da profissão de professor de Matemática. Artigo 2º - O PROFMAT é um curso semipresencial com oferta nacional, conduzindo ao título de Mestre em Matemática, coordenado pela Sociedade Brasileira de Matemática (SBM) e integrado por Instituições de Ensino Superior, associadas em uma Rede Nacional no âmbito do Sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB). Estimular a melhoria do ensino é um dos preceitos da SBM, e vem ao encontro do Plano Nacional de Educação, Proposta de Lei PL8035/2010 (PNE para o decênio 2011 - 2020), que coloca como um dos objetivos nacionais "Formar cinquenta por cento dos professores da educação básica em nível de pós-graduação lato e stricto sensu e garantir para todos formação continuada em sua área de atuação".

1332

Para abranger os conteúdos do ensino básico, fortalecer as teorias que são lecionadas, no mestrado as disciplinas são ofertadas da seguinte maneira: No primeiro ano, de caráter obrigatório, os alunos cursam 4 disciplinas, que compreendem: MA 11 – Números e Funções Reais: Conjuntos, funções. Segmentos comensuráveis e não comensuráveis, números reais, completeza, expressões decimais. Desigualdades, intervalos e valor absoluto. Gráfico de funções. Função afim, função linear, função quadrática, funções polinomiais,

função

exponencial,

função

logarítmica,

funções

trigonométricas. MA 12 – Matemática Discreta: Números naturais, números cardinais. Princípio de Indução como técnica de demonstração. Progressões aritméticas e geométricas. Recorrências lineares de primeira e segunda ordem. Matemática financeira. Combinatória e contagem. Introdução à teoria de probabilidades. Médias e Princípio de Dirichlet. MA 13 – Geometria: Ângulos: bissetrizes, perpendiculares, ângulos retos. Retas paralelas; soma dos ângulos internos de um triângulo, casos de

igualdade

de

triângulos.

Pontos

notáveis

de

triângulos.

Paralelogramos, polígonos regulares. Círculo e circunferência, ângulos inscritos, tangentes. Semelhança de figuras planas. Áreas. Teorema de Pitágoras. Trigonometria do triângulo retângulo, Lei dos Senos e Lei dos Cossenos. Comprimento da circunferência, número π. Retas e planos no espaço. Volumes dos sólidos. Princípio de Cavalieri. Poliedros regulares. MA 14 – Aritmética: Divisibilidade, divisão euclidiana. Sistemas de numeração. Máximo divisor comum e mínimo múltiplo comum, algoritmo de Euclides. Equações diofantinas lineares. Números primos, crivo de Eratóstenes, Teorema Fundamental da Aritmética. Números perfeitos. Pequeno Teorema de Fermat. Números de Mersenne e de Fermat. Congruências e aritmética dos restos, aplicações. Teorema de Euler

e

suas

aplicações

em

Criptografia.

Teorema

Congruências lineares e Teorema Chinês dos Restos. 1333

de

Wilson.

No segundo ano, de caráter obrigatório, os alunos cursam mais 3 disciplinas, que incluem: MA 21 – Resolução de Problemas: Estratégias para resolução de problemas. Técnicas de matemática básica e raciocínio lógico: redução ao absurdo, princípio da indução, análise de casos iniciais, princípio da casa dos pombos, princípio do caso extremo, etc. Problemas envolvendo Números e Funções Reais, Matemática Discreta, Geometria, Aritmética e Álgebra. Análise de exames e testes: ENEM, vestibulares, olimpíadas e afins. Esta ocorre no formato de curso de verão, isto é, aulas todos os dias durante as férias escolares, que funciona como preparação para o Exame Nacional de Qualificação, aprovação necessária para a obtenção do título de Mestre. MA 22 – Fundamentos de Cálculo: Sequências de números reais e seus limites. Conceito de limite de função e suas propriedades básicas, limites

fundamentais.

Continuidade,

propriedades

das

funções

contínuas. Conceito de derivada e suas propriedades básicas; cálculo das derivadas de funções elementares; regra da cadeia e aplicações; Teorema do Valor Médio; polinômio de Taylor; uso da derivada para obter o gráfico de uma função. Problemas de máximo e mínimo. Conceito

de

integral

e

suas

propriedades

básicas;

Teorema

Fundamental do Cálculo; integração por substituição e por partes. Áreas e volumes obtidos mediante integrais. MA 23 – Geometria Analítica: Geometria analítica plana, coordenadas, vetores no plano, equações da reta e das cônicas, transformações geométricas elementares no plano, discussão geral da equação geral de segundo grau no plano. Breve discussão de equações paramétricas. Coordenadas no espaço, equação do plano, da reta e da esfera, interpretação geométrica dos sistemas lineares com 3 incógnitas. Cálculo vetorial no espaço, produtos interno e vetorial, determinantes 3x3, volume do paralelepípedo. Quádricas, formas quadráticas e obtenção dos eixos principais. 1334

Para complementação dos estudos e da realização do Trabalho de Conclusão de Curso, tem-se as disciplinas optativas: MA 31 – Tópicos de História da Matemática, MA 32 – Tópicos de Teoria dos Números, MA 33 - Introdução à Álgebra Linear, MA 34 - Tópicos de Cálculo Diferencial e Integral, MA 35 – Matemática e Atualidade, MA 36 – Recursos Computacionais no Ensino de Matemática, MA 37 – Modelagem Matemática, MA 38 – Polinômios e Equações Algébricas, MA 39 Geometria Espacial, MA 40 – Tópicos de Matemática, MA 41 – Probabilidade e Estatística, MA 42 - Avaliação Educacional e MA 43 Cálculo Numérico. Além disso, o PROFMAT também atende a outros objetivos do PNE que são a elevação global do nível de escolaridade da população e a melhoria da qualidade do ensino em todos os níveis. O

índice

mais

retratado

no

momento

é

o

Índice

de

Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), que consta como meta 07, os valores propostos para as médias. Tabela 1: Resultados e metas do Ideb Anos Iniciais do

Anos Finais do

Ensino

Ensino

Fundamental

Fundamental

Ensino Médio

Ano

Resultados

Metas

Resultados

Metas

Resultados

Metas

2005

3.8

-

3.5

-

3.4

-

2007

4.2

3.9

3.8

3.5

3.5

3.4

2009

4.6

4.2

4.0

3.7

3.6

3.5

2011

5.0

4.6

4.1

3.9

3.7

3.7

2013

-

4.9

-

4.4

-

3.9

2015

-

5.2

-

4.7

-

4.3

2017

-

5.5

-

5.0

-

4.7

2019

-

5.7

-

5.2

-

5.0

2021

-

6.0

-

5.5

-

5.2

Fonte: INEP, 2012

1335

Nota-se que as metas para o ensino fundamental foram sobrepostas com 2, 3 e até 4 décimos acima do pretendido, um resultado bem satisfatório, que, porém, não está acontecendo no nível médio. Mais um apontamento para se priorizar a formação docente como prioridade para se alcançar o desenvolvimento tão almejado pela sociedade. Neste contexto, vem em crescente a disponibilidade das reformas educacionais desencadeadas neste século, com políticas públicas no Brasil, e neste sentido, o estudo sobre as políticas públicas, ganha espaço, com estudos e reflexões acerca do Estado em ação. Segundo, Muller e Surel (2002), o analista de políticas públicas encontra dificuldade para definir “política pública”, pelos deferentes significados da palavra “política”. Posteriormente, em outro texto, Muller (2010) afirma que identificar uma política pública não é tão simples quanto parece, porém é importante ressaltar que o PROFMAT se encaixa em uma política pública, pois foi idealizado, construído e implementado, tendo como foco de atuar sobre um campo da sociedade, com o intuito de propiciar sua evolução, transformação ou adaptação. Com uma visão crítica, Ball (2011) pondera que não se pode desvencilhar as políticas educacionais à arena geral da política social, e temos que ressaltar as transformações pelas quais o país passou nestes últimos anos. É importante ressaltar que os dois focos principais para o decênio vigente são: a valorização do magistério e a qualidade de ensino, para isto o próprio plano traz em suas diretrizes, bem como ao estabelecer suas metas e estratégias, observa-se a ênfase na diversidade cultural de forma a contemplar a questão da democratização do ensino. Ao falar em democratização do ensino, tem-se que apontar o investimento feito pela CAPES, pois deve ser ressaltado que cada aluno recebe uma bolsa mensal de R$ 1.200,00 (Um mil e duzentos reais), a 1336

qual já teve um aumento para R$ 1.350,00 (Um mil e trezentos e cinquenta reais). Segundo, João Ferreira de Oliveira, em seu texto: A Educação Superior no Contexto Atual e o PNE 2011-2020: avaliação e perspectivas.

(DOURADO, 2011), a CAPES teve um considerável

aumento nos investimentos em políticas públicas, o qual se deve segundo o autor, ter ocorrido em decorrência do crescimento da demanda por mestres e doutores. O PROFMAT foi recomendado pelo Conselho Técnico-Científico da Educação Superior (CTC-ES) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal para o Ensino Superior (CAPES) em uma reunião realizada nos dias 25 a 29 de outubro de 2010. E para atingir o Brasil com suas dimensões continentais, surge a inclusão digital, pois o curso é ofertado de forma semipresencial, onde os alunos dispõem de uma plataforma on-line para comunicação. Neste contexto de tecnologia da informação e comunicação é imprescindível registrar declarações de colegas que até entrar no programa nem sequer possuíam e-mail, e agora se veem com a necessidade de acessar uma plataforma digitar suas dúvidas e compartilhar suas experiências. Vejamos agora os números de abrangência do PROFMAT, o Curso teve seu início em 2011, com a adesão de 54 instituições e uma oferta de 1192 vagas: Tabela 2: IES participantes em 2011 IES

Polo

Vagas

(Cidade) Universidade Federal de Goiás Universidade Federal de Goiás Universidade Federal de Mato Grosso Fundação Universidade Federal da Grande Dourados Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

1337

Goiânia Anápolis Cuiabá Dourados

30 20 20 20

Dourados Campo Grande

20 15

Universidade Federal de Alagoas Universidade Estadual de Santa Cruz Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia Universidade Federal da Bahia Universidade Federal do Vale Francisco Universidade Estadual do Ceará Universidade Estadual do Ceará

do

São

Universidade Estadual do Ceará Universidade Estadual do Ceará Universidade Federal do Ceará Universidade Federal do Maranhão Universidade Federal da Paraíba Universidade Federal de Campina Grande Universidade Federal Rural de Pernambuco Universidade Federal do Piauí Universidade Federal do Rio Grande do Norte Universidade Federal do Rio Grande do Norte Universidade Federal Rural do Semi-Árido Universidade Federal de Sergipe Universidade Federal do Amapá Universidade Federal do Amazonas Universidade Federal do Oeste do Pará Universidade Federal do Pará Fundação Universidade Federal de Rondônia Fundação Universidade Federal do Tocantins Universidade Federal do Espírito Santo Universidade Federal de Juiz de Fora Universidade Federal de Lavras Universidade Federal de São João del-Rei Universidade Federal de Viçosa Universidade Federal do Triângulo Mineiro Associação Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada Universidade Estadual do Norte Fluminense Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Universidade Federal Fluminense Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Fundação Universidade Federal do ABC Universidade de São Paulo/São Carlos Instituto de Geociências e Ciências Exatas UNESP/RC 1338

Maceió Ilhéus Vitória da Conquista Salvador Juazeiro

20 20 15

Fortaleza Limoeiro do Norte Maranguape Mauriti Fortaleza São Luiz João Pessoa Campina Grande Recife Teresina Natal Caicó Mossoró Aracaju Macapá Manaus Santarém Capanema Porto Velho Palmas Goiabeiras Juiz de Fora Lavras São João del Rei Viçosa Uberaba Rio de Janeiro Campos Rio de Janeiro Niterói Seropédica Santo André São Carlos Rio Claro

10 5

20 15

5 5 30 15 50 15 25 40 15 10 25 20 12 20 15 15 15 15 25 30 25 15 20 15 50 20 20 25 20 40 20 50

Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas - UNESP/SJRP Universidade Federal de São Carlos Universidade Estadual de Londrina Universidade Estadual de Maringá Universidade Estadual de Ponta Grossa Universidade Federal do Paraná Universidade Tecnológica Federal do Paraná Universidade Federal de Santa Maria Universidade Federal do Rio Grande

São José do Rio Preto São Carlos Londrina Maringá Ponta Grossa Curitiba Curitiba Santa Maria Rio Grande

50 40 30 20 15 20 30 15 20

Fonte: PROFMAT, 2012

Estas IES estão distribuídas da seguinte maneira pelas regiões do país: Tabela 3: Distribuição das IES participantes em 2011 por região Região

Quantidade de

Quantidade de

IES

Vagas

Centro oeste

06

125

Nordeste

19

360

Norte

06

92

Sudeste

16

465

Sul

07

150

Fonte: PROFMAT, 2012

Os professores das redes públicas viram no PROFMAT uma excelente oportunidade de crescimento intelectual e pessoal, por isso, o mestrado foi expandido em 2012 para 67 instituições, numa oferta de 1575 vagas. Tabela 4: Distribuição das IES participantes em 2012 por região Região

Quantidade de

Quantidade de

IES

Vagas

Centro oeste

10

195

Nordeste

18

475

Norte

08

150

Sudeste

22

580

1339

Sul

09

175

Fonte: PROFMAT, 2012 Observa-se que a única região que não houve aumento de instituições, foi a região nordeste, podemos citar, por exemplo, a UFRN que ofereceu no primeiro momento duas turmas sendo uma em Natal e outra em Caicó, quando na segunda oportunidade decidiu por ter apenas a turma de Natal. Porém em termos de quantidade de vagas todas as regiões teve acréscimo. Seguindo para o próximo ano (2013), tem-se a ampliação para 71 instituições, ofertando um número de 1570 vagas. Tabela 5: Distribuição das IES participantes em 2013 por região Região

Quantidade de

Quantidade de

IES

Vagas

Centro oeste

10

195

Nordeste

20

470

Norte

10

170

Sudeste

22

555

Sul

09

180

Fonte: PROFMAT, 2012

Nota-se que o número de instituições aumentou, mas o quantitativo de ofertas de vagas diminuiu, evidenciando que as turmas devem estar um pouco menores, retrato do interesse no processo ensino aprendizagem, que deve constar como ponto de partida em qualquer nível de ensino.

1340

CONSIDERAÇÕES FINAIS Usando os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) a equipe de professores e pesquisadores elaborou a proposta do PROFMAT sempre visando à melhoria do ensino básico, que possui um texto de referência para todos os alunos, conforme as disciplinas elencadas que devem ser cursadas obrigatoriamente. Os PCN’s englobam os conteúdos de Matemática para o Ensino Fundamental: Números e Operações, Espaço e Forma, Grandezas e Medidas, e Tratamento da Informação. Em sequência, os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM’s) complementam os conteúdos fundamentais com teorias tais como, trigonometria e geometria analítica, para que os alunos sedimentem vários campos do conhecimento matemático e estejam em condições de utilizá-los e ampliá-los, capacidades tão importantes quanto às de abstração, raciocínio em todas as suas vertentes, resolução de problemas de qualquer

tipo,

investigação,

análise

e

compreensão

de

fatos

matemáticos e de interpretação da própria realidade. Para que estas metas, assim como os objetivos do Plano Nacional de Educação possam se concretizar e consequentemente melhorar a educação do país é necessário que haja uma ação integrada entre as instituições governamentais e a sociedade, com esta forma de pensar o PROFMAT busca cumprir seu papel na coletividade. É importante deixar claro, como as políticas públicas de educação devem estar em articulação com o conjunto das demais políticas, para que haja avanço social. Por outro lado, pela sua abrangência nacional percebem-se discrepâncias entre os polos, que são as IES participantes. O programa é de âmbito Nacional e tenta-se dar um caráter único, mas, desde o tratamento e atenção por parte da coordenação local, na forma como as aulas são conduzidas, na média de aprovação, assim como na correção das avaliações de cada professor, 1341

fatos considerados irrelevantes pelos alunos, devido a importância social do PROFMAT para o ensino.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BALL, Stephen J.; MAINARDES, Jefferson (Orgs.). Políticas educacionais: questões e dilemas. São Paulo: Cortez , 2011. BRASIL. Casa Civil. Plano Nacional de Educação para o decênio 2001 – 2010. Brasília: Planalto, 2001. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03 /leis/leis_2001/ l10172.htm, acessado em 25/07/2012. BRASIL. Casa Civil. Plano Nacional de Educação para o decênio 2001 – 2010. Brasília: Planalto, 2011. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php? option=com_docman&task=doc_download&gid=7244&Itemid=, acessado em 16/07/2012. BRASIL. Ministério da Educação. IDEB: Resultados e Metas. Brasília: MEC, 2012. Disponível em: http://ideb.inep.gov.br, acessado em 20/07/2012. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais: ensino médio: ciência da natureza, matemática e suas tecnologias. Brasília: MEC/SEMT, 1999. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Matemática. Brasília: MEC/SEF, 2001. BRASIL. Sociedade Brasileira de Matemática. Mestrado Profissional em Matemática em Rede Nacional. Rio de Janeiro: SBM, 2012. Disponível em: http://www.profmat-sbm.org.br, acessado em 16/07/2012. DOURADO, Luiz Fernandes (Org.). Plano Nacional de Educação (20112020): avaliação e perspectivas. Goiania: Editora UFG; Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. MULLER, Pierre. Las Políticas Públicas. 3 ed. Colombia: Universidad Externado de Colombia. Traductores: Jean-François e Carlos Salazar Vargas. 2010. _________. SUREL, Ives. Análise das políticas públicas. Pelotas, EDUCAT, 2002. 1342

AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR BRASILEIRA: CONCEPÇÕES EM CONFLITO Pedro Isaac Ximenes Lopes367 Resumo: A avaliação das IES, historicamente, segue duas linhas de pensamento: a avaliação como controle/regulação e a avaliação com função formativa/emancipatória. Assim, este trabalho investigou as concepções de avaliação presentes nas políticas desenvolvidas para a educação superior brasileira, a partir da década de 1980. Para isso, primeiro resgatou-se a história da avaliação educacional, destacando-se os principais autores. Em seguida, analisou-se o PARU, a CNRES, o GERES, o PAIUB e o ENC. A pesquisa foi bibliográfica e documental. Constatou-se que a literatura de avaliação educacional estadunidense influenciou as formulações acadêmicas e das políticas brasileiras. Identificou-se o embate em torno da definição das funções da avaliação presente no PARU, na CNRES e no GERES, nos anos 1980. A dicotomia explicitou-se na década de 1990 com o PAIUB, tendo como fundamento a avaliação emancipatória, e o ENC-Provão, implantado com um enfoque regulatório. Palavras-chaves: Avaliação. Educação superior.

1. INTRODUÇÃO Com a reforma do Estado brasileiro desenvolvida no Governo de Fernando Henrique Cardoso, a avaliação se consolidou como um elemento central na política de educação superior. Nesse contexto, há um conflito quanto à função que a avaliação deve exercer, sendo o debate representado pelo antagonismo entre uma perspectiva que objetiva o controle e outra, a formação. Isto é, a avaliação das instituições segue a tensão entre duas linhas de pensamento: a avaliação como controle/regulação, respondendo a uma lógica burocrático-formal de validade legal de diplomas, e a avaliação com função formativa/emancipatória, sob uma lógica acadêmica, com o intuito de subsidiar a melhoria das instituições.

367

Graduado em Ciências Sociais (UFRN), Mestre em Ciências Sociais (UFRN). Técnico em Assuntos Educacionais da (UFRN), Tutor à Distância do Curso de Pedagogia (UFRN) e Docente da Universidade Potiguar (UnP).

1343

Sob

a

influência

dos

modelos

internacionais,

essas

duas

concepções se manifestaram a partir da década de 1980. Assim, este trabalho368 teve como objeto de investigação as concepções de avaliação presentes nas políticas desenvolvidas para a avaliação da educação superior brasileira que antecederam o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes). Para isso, primeiro resgata-se percurso histórico da avaliação no campo da Educação, destacandose os principais autores. Em seguida, são considerados o Programa de Avaliação da Reforma Universitária, o relatório da Comissão Nacional de Avaliação do Ensino Superior, o relatório do Grupo Executivo para a Reformulação da Educação Superior, o Programa de Avaliação Institucional das Universidades Brasileiras e o Exame Nacional de Cursos. A pesquisa foi bibliográfica e documental, uma vez que se desenvolveu, fundamentalmente, por fontes bibliográficas (livros, trabalhos em periódicos e artigos) e publicações oficiais. Sendo a avaliação uma atividade eminentemente política (WEISS, 1982),

identificar

os

mecanismos

ideológicos

nos

programas

é

pertinente, na medida em que se revelam quais interesses estão representados.

Entende-se

que

a

avaliação

interfere

nas

transformações da educação superior e da própria sociedade, sendo o principal instrumento para assegurar o êxito e a direção das reformas, produzindo mudanças nos currículos, na gestão, nas prioridades do ensino, da pesquisa etc. Considerando-se a importância da educação superior, a avaliação repercute não apenas nesse nível de ensino, mas também na construção da sociedade.

2. AVALIAÇÃO EM EDUCAÇÃO: UM BREVE PERCURSO HISTÓRICO

368

Esta investigação faz parte de uma pesquisa em desenvolvimento acerca de uma avaliação política do Sinaes, sob a orientação do Prof. Dr. Lincoln Moraes de Souza, no curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRN.

1344

Antes

de

se

discutirem

as

políticas

de

avaliação

que

antecederam o Sinaes, é necessário historicizar os conceitos e papéis da avaliação no campo específico da avaliação em educação. Daniel Stufflebeam e Anthony Shinkfield em “Evaluación Sistemática” (1987 apud DIAS SOBRINHO, 2003) propõem períodos básicos da avaliação. Outra classificação bastante difundida é a de Guba e Lincoln (2011), que estabelecem gerações de avaliação. Pode-se, então, afirmar que o primeiro momento da avaliação, denominado de Pré-Tyler (DIAS SOBRINHO, 2003), manifestou-se no final do século XIX até as três primeiras décadas do século XX. A avaliação era centrada na aplicação de testes e medidas, sendo muito mais uma avaliação de aprendizagem (SAUL, 2010), ou seja, centrada nos estudantes e visando medir o rendimento, sem adoção de currículo. “O foco principal eram os testes, as escalas de classificação, os instrumentos técnicos” (DIAS SOBRINHO, 2003, p. 18). Os autores que se destacaram nesse período foram Edward Thorndike e Robert Thorndike, que desenvolveram instrumentos de medidas e classificação na escola. A avaliação vinculava-se muito à psicologia, pois centrava a atenção nas medidas psicológicas (psicometria). Nessa primeira geração, portanto, a avaliação foi caracterizada pela mensuração e a ferramenta mais utilizada foi a aplicação de testes (GUBA; LINCOLN, 2011). O segundo período iniciou-se em 1934, quando Ralph Tyler criou a expressão “avaliação educacional”. Muitos o consideram o pai da avaliação em educação (DIAS SOBRINHO, 2003). Para Tyler, o ponto central da avaliação era averiguar se os objetivos educacionais estavam

sendo

alcançados

pelo

currículo.

“A

avaliação

da

aprendizagem, na proposta de Tyler, está integrada a seu modelo para elaboração de currículo, que assume, essencialmente, um caráter de controle do planejamento [...]” (SAUL, 2010, p. 27). Assim, a avaliação não se restringia simplesmente a medidas, mas se voltou para a gestão e o desenvolvimento curricular e da instituição, considerando os 1345

objetivos

educacionais,

observando

se

estes

estavam

sendo

alcançados. Esse período se desenvolveu “[...] de acordo com o paradigma de racionalização científica [...], compromissada com a ideologia utilitarista tão peculiar à indústria [...]” (DIAS SOBRINHO, 2003, p. 18-21). Para isso, criaram-se instrumentos para diagnosticar a eficácia das escolas, padrões de sucesso e fracasso, o seu êxito etc.. Essa segunda geração, desse modo, distinguiu-se pela descrição, em que o avaliador cumpria o papel de descrever os pontos fortes e fracos considerando determinados objetivos estabelecidos (GUBA; LINCOLN, 2011). O período de 1958 a 1972, chamado de realismo (DIAS SOBRINHO, 2003, p. 22), está no contexto da obrigatoriedade da avaliação das políticas sociais estadunidenses. Estavam subjacentes as ideias de prestação de contas e responsabilização, visto que as escolas deveriam justificar os financiamentos públicos (custo/benefício) através de seu rendimento, que seriam informados aos usuários. Assim, não se tratava mais de avaliar somente os alunos, mas também os professores, as escolas, as práticas pedagógicas etc. “Essa etapa se caracteriza pela realização de muitos trabalhos práticos na área, já não seguindo apenas a orientação positivista e quantitativista, mas também enfoques naturalistas ou fenomenológicos e qualitativos” (DIAS SOBRINHO, 2003, p. 22,), como, por exemplo, Lee Cronbach e Michael Scriven. A partir de 1973 é denominado o período de profissionalismo (Ibid., p. 23). A avaliação passou a ser também um objeto de estudo, criaram-se cursos e eventos sobre o assunto, extrapolaram-se as instituições educacionais, criou-se a titulação de avaliadores, cooperação entre organizações profissionais etc. A ideia de meta-avaliação foi formulada nessa busca de profissionalização, tornando a própria avaliação objeto de estudo, tanto em aspectos metodológicos quanto de desempenhos (LOPES, 2012). Nesse período, a avaliação foi caracterizada pelo julgamento de valor. Assim, a mensuração deixou de ser sinônimo de avaliação, sendo redefinida como um dos vários instrumentos que poderiam ser 1346

empregados. Para Guba e Lincoln (2011), essa seria a terceira geração de avaliação, identificada pelo juízo de valor, em que o avaliador assume o papel de julgador, mantendo-se as funções técnicas e descritivas das gerações anteriores. Vianna (2000) destaca Ralph Tyler, Lee Cronbach, Michael Scriven, Daniel Stufflebeam e Robert Stake, como principais autores influentes na área da avaliação educacional. Todos eles se inserem em algumas das gerações expostas. Grosso modo, a avaliação em Tyler tem como objetivo medir o desempenho e o progresso do estudante. Em Cronbach, a avaliação parte de uma pesquisa educacional para desenvolver explicações e táticas de instrução. Scriven, com sua vasta obra, entre outras coisas, destaca a avaliação como o estabelecimento do mérito ou valor de um programa e uma avaliação livre dos objetivos do programa (goal-free). Com uma perspectiva de análise gerencial, Stufflebeam toma a avaliação como forma de fornecer informações relevantes e, assim, elevar a racionalidade na tomada de decisões. E, por fim, Stake, numa linha mais interacionista, delineia a avaliação com o propósito de compreender atividades e valores de diferentes grupos (avaliação responsiva). Saul (2010) cita também Malcolm Parlett e David Hamilton, os mentores da avaliação iluminativa, que objetiva “iluminar”, fornecer compreensão sobre a realidade estudada em sua totalidade, verificando o impacto, a validade e a eficácia de um programa de inovação pedagógica. Ver-se-á adiante que ainda hoje vigora a identificação entre avaliação

e

medição

e

testes

de

aprendizagem

(visando

à

classificação de instituições educacionais como empresas), ou, ainda, uma super-valorização da eficiência, custos e ênfase no gerencialismo (visando ao financiamento). Não se buscará aqui, entretanto, indicar pontualmente a influência desses modelos de avaliação formulados pelos clássicos, uma vez que extrapolaria as dimensões do texto. 2.1 - Avaliação em educação no Brasil 1347

Segundo

Saul

(2010),

no

Brasil,

tanto

a

avaliação

da

aprendizagem, num primeiro momento, quanto a avaliação de currículo, num segundo momento, trilharam o caminho da produção estadunidense. Essa influência viabilizou-se através de cursos de professores nos Estados Unidos e dos acordos internacionais, como, por exemplo, o Programa de Assistência Brasileiro-Americana ao Ensino Elementar (PABAEE), na década de 1960. A literatura sobre medida e avaliação da aprendizagem do aluno foi bastante influenciada pelo modelo de Tyler, inserido no paradigma positivista. Para Saul (2010, p. 34), “a influência do pensamento positivista no tocante à avaliação da aprendizagem impregnou o ambiente acadêmico brasileiro, tendo se projetado e difundido [...]” em obras, bibliografia de concursos e, até mesmo, na legislação, nos níveis federal e estadual. Em meados dos anos 1970 é que surgiu, na literatura educacional nacional, a avaliação de outros aspectos além da aprendizagem, como programas, projetos, currículos etc. Na avaliação de currículo, “o modelo mais utilizado e divulgado, inclusive oficialmente, foi o de Stufflebeam, cujo enfoque é a tomada de decisão” (SAUL, 2010, p. 41), estando presente em propostas do MEC. Proposições de avaliação, numa abordagem qualitativa, somente começaram a ser evidenciadas nas publicações acadêmicas brasileiras, a partir de 1978, e ainda de forma tímida (loc. cit.), acompanhadas de tradução de textos de Robert Stake, Malcolm Parlett e David Hamilton. No início da década de 1980, destacam-se também a publicação de dois volumes da revista “Educação e Avaliação”, com artigos que discutiam inclusive aspectos políticos da avaliação, e alguns seminários que buscaram discutir e aprofundar a abordagem qualitativa (Ibidem, p. 41).

1348

3. AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR O leque das repercussões de uma avaliação se estendeu de tal modo que se ampliaram, também, os interessados em seus resultados. Desse modo, a avaliação passou a não ter somente o papel técnico, mas

também

ético

e,

sobretudo,

político,

repercutindo

nas

transformações e reformas da educação superior e da própria sociedade. Quanto à dimensão política, os Estados tornaram-se os aplicadores da avaliação, tencionando reformas, o controle e a regulação. O papel exercido politicamente pela avaliação é tão importante, no sentido de modelar sistemas e garantir determinadas práticas e ideologias, que praticamente todos os Estados a aplicam hoje como política pública (DIAS SOBRINHO, 2004). Segundo Afonso (2009), a partir dos anos 1980, os governos neoconservadores e neoliberais (a “nova direita”), a partir dos Estados Unidos e da Inglaterra, fazem surgir um “Estado-avaliador” (AFONSO, 2009, p. 49). A avaliação tornou-se um mecanismo para implementar a lógica do mercado ao enfatizar produtos e resultados (em detrimento do processo), bem como adotar o gerencialismo e a racionalidade econômica (excelência, eficiência, competitividade, produtividade etc.). Os indicadores mensuráveis tornaram-se o instrumento por excelência. A educação superior foi inserida numa espécie de mercado educacional e os estudantes/pais passaram a ser os consumidores da educação. 3.1 - Avaliação da educação superior brasileira: concepções em conflito Para Dias Sobrinho (2004), as distinções relativas ao papel social da educação superior interferem diretamente na compreensão das funções da avaliação. Na verdade, as transformações que ocorrem nas avaliações e na educação superior se influenciam mutuamente. O 1349

autor distingue duas concepções de educação superior: uma que concebe a educação superior segundo a lógica do mercado, como função da economia e dos interesses individuais e privados; e outra que concebe a educação superior como um bem público, que produz conhecimentos e forma cidadãos para as práticas da vida social e econômica,

em

benefício

da

construção

de

nações

livres

e

desenvolvidas. A cada uma das concepções de educação superior corresponde uma epistemologia e um modelo de avaliação, com seus princípios e fundamentos. A primeira concebe a avaliação como controle, priorizando a função técnico-burocrático-economicista, que prioriza as bases do mercado, a gestão eficaz, o progresso das empresas e o sucesso individual. No geral, colocam-se governos, organismos multilaterais, instâncias reguladoras, setores universitários a serviço do mercado e os adeptos da ideia de neutralidade. A segunda concebe a avaliação como produção de sentidos, priorizando a função

ético-política,

aprofundamento

dos

que

consiste

valores

na

públicos.

democratização Situam-se

aqueles

e

no que

defendem os valores históricos da universidade referenciada à sociedade369 (DIAS SOBRINHO, 2004). Para Rothen (2006), a história da avaliação no Brasil é marcada por duas ideias distintas: a da emancipação e a da regulação. A primeira é oriunda do campo universitário da década de 1980 e entende a avaliação como um ato autônomo da Universidade em prestar contas à sociedade e uma das ferramentas de gerenciamento e de tomada de decisões da instituição. A segunda parte da ideia neoliberal de que o papel do estado em relação à educação consiste em avaliar as instituições. Segundo o autor, as duas correntes se diferenciam na demarcação da instância na qual ocorre a definição do que é qualidade. Esta é negociada com os agentes do processo na

369

O próprio autor lembra que essas concepções de avaliação são coerentes com determinadas concepções de educação superior e com certos interesses e valores de grupos sociais, contudo não se trata de dois blocos homogêneos, mas sim de tipos-ideais, de uma diferenciação analítica.

1350

avaliação como emancipação. Por outro lado, são os técnicos das agências estatais que definem o que é qualidade e os indicadores a serem utilizados para aferi-la, na avaliação como regulação (ROTHEN, 2006). 3.2 - Primeiras propostas de avaliação da educação superior É nesse panorama de embate entre ideias que na década de 1980 programas e propostas foram formulados para avaliar a educação superior. Destacou-se, nesta pesquisa, o Programa de Avaliação da Reforma

Universitária,

o

relatório

da

Comissão

Nacional

para

Reformulação da Educação Superior e a proposta de avaliação no anteprojeto do Grupo Executivo da Reforma da Educação Superior370. 3.2.1 - Programa de Avaliação da Reforma Universitária (PARU) O PARU foi lançado pelo MEC no final do governo militar, em junho de 1983, por iniciativa do Conselho Federal de Educação (CFE), como desdobramento de discussões internas do CFE decorrentes das greves mantidas nas universidades federais e das críticas à legislação aplicada

ao

ensino

superior

(CUNHA,

1997).

A

experiência

e

reconhecimento da Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), na avaliação da pós-graduação, levou Edson Machado de Souza (dirigente da CAPES de 1982 a 1989) e membro do CFE, a propor o Grupo Gestor da Pesquisa do PARU, composto por especialistas em análise de projetos, sendo alguns técnicos do MEC, com a finalidade de avaliar a Reforma Universitária e propor alternativas para a educação superior.

370

Vale salientar que em seguida foi promulgada a Constituição Federal de 1988, em que se estabeleceu no Art. 209 o ensino livre à iniciativa privada, atendidas as condições de autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público. Assim, a avaliação entrava de fato na agenda da educação brasileira.

1351

O PARU trataria de dois temas: a Gestão da IES (poder e tomada de decisão, administração acadêmica, administração financeira e financiamento, e política de pessoal); e a Produção e a Disseminação do Conhecimento (ensino e pesquisas nas IES, e interação entre IES e Comunidade) (GRUPO GESTOR, 1983). O programa se desenvolveria em quatro etapas: I – realização de estudo-base para investigar a realidade das instituições e estudos-específicos para examinar detalhadamente algumas questões; II – consolidação dos resultados da etapa anterior; III – debates nacionais; e IV – conclusão da análise dos subsídios e definição das propostas a serem encaminhadas ao CFE. Para Cunha (1997, p. 23), “apesar de originário na CAPES, o enfoque da pesquisa era avesso ao tecnicismo dominante no Ministério da Educação [...]”, isto é, predominavam elementos da perspectiva formativa. Segundo o mesmo autor, “[...] o PARU foi desativado um ano depois de começado, devido a disputas internas ao próprio Ministério da Educação, em torno de quem competia fazer a avaliação da Reforma Universitária.” (loc. cit.). Assim, o programa restringiu-se somente a um diagnóstico incompleto da educação superior. 3.2.2 - Comissão Nacional Para Reformulação da Educação Superior (CNRES) Atendendo as demandas de entidades docentes, a CNRES foi instituída pelo Decreto nº 91.177, de 29 de março de 1985, no governo José Sarney, período de re-democratização do país. A comissão foi composta por vinte e quatro membros, heterogênea quanto à formação, atuação e posições públicas assumidas (BARREYRO; ROTHEN, 2008). A Comissão era composta, em sua maior parte, de docentes universitários, mas também havia a presença de educadores da educação básica, personalidades do setor produtivo, do meio sindical e do corpo discente. O objetivo da CNRES era oferecer subsídios à formulação de uma nova política para a educação superior brasileira. 1352

Após seis meses de trabalhos, o resultado da CNRES materializouse no relatório intitulado “Uma nova política para a educação superior brasileira” (BRASIL, 1985). Em linhas gerais, defendeu-se, no documento, que, para a superação da crise da universidade brasileira, se deveria aumentar, significativamente, a autonomia universitária que seria acompanhada por um processo externo de avaliação baseado na valorização de mérito acadêmico. Conforme o relatório, uma nova política para a educação superior deveria partir dos seguintes princípios: responsabilidade do poder público, adequação à realidade do país, diversidade e pluralidade, autonomia e democracia interna, democratização do acesso, valorização do desempenho e eliminação dos aspectos corporativos e cartoriais. Em relação ao quarto princípio (autonomia e democracia interna), o documento afirma que “a autonomia [...] supõe uma contrapartida bem definida em termos de desempenho. Não pode haver autonomia sem essa contrapartida de responsabilidade.” (BRASIL, 1985, p. 6). E no sexto princípio (valorização do desempenho), diz “os professores, estudantes e funcionários devem se dedicar plenamente as suas tarefas e os custos financeiros devem ser compatíveis com os resultados obtidos.” (BRASIL, 1985, p. 8). Desse modo, a autonomia e os recursos deveriam ter como contrapartida altos padrões de qualidade no desempenho. A sociedade, que financia a Universidade, teria o direito de exigir a prestação de contas da aplicação dos recursos e do desenvolvimento do ensino e da pesquisa. São apresentadas seis propostas para a nova universidade. Ressalta-se aqui a primeira: reformular o Conselho Federal de Educação. Essa proposta “[...] introduzia pela primeira vez, a ideia de um órgão responsável pela avaliação – ou seja, uma “agência de avaliação” – e da disseminação para todo o sistema da metodologia de avaliação por pares utilizados pela [...] (CAPES) [...]” (BARREYRO; ROTHEN, 2008, p. 139)

1353

Esses princípios e essas propostas compõem a primeira parte do documento, que sumariza os fundamentos e diretrizes básicas da política que deveriam prevalecer na educação superior brasileira. Em seguida,

cada

tema

específico

foi

destacado

em

treze

recomendações, visando à obtenção dos resultados preconizados. Destaca-se, na seção “Universidades e Instituições Isoladas de Ensino Superior”, a ideia de que o CFE renovaria o reconhecimento do “status universitário”

para

as

universidades

e

estas

supervisionariam

o

funcionamento de estabelecimentos isolados. Em síntese, a Comissão compreendia que a contrapartida da autonomia universitária seria o desempenho das instituições. O controle do desempenho se daria por meio de processos avaliativos públicos, através de critérios fixados pela própria comunidade acadêmicocientífica, e, a partir desta, seria criado um sistema meritocrático que nortearia o financiamento estatal da educação superior. Isto é, a alocação de recursos seria em função da avaliação de desempenho. 3.2.3 - Grupo Executivo para a Reformulação da Educação Superior (GERES) O GERES foi um grupo interno do MEC criado pela Portaria n° 100, de 6 de fevereiro de 1986, e instalado pela Portaria n° 170, de 3 de março de 1986. O Grupo, composto por cinco pessoas, tinha a função executiva de elaborar uma proposta de Reforma Universitária. O ponto de partida adotado foi o relatório final da CNRES. O resultado foi um Relatório (GERES, 1986) contendo um Projeto de Lei, que dispunha sobre a natureza jurídica, a organização e o funcionamento das IFES, e um Anteprojeto de Lei que reformulava o CFE. O GERES compreendia que o sistema deveria ser flexibilizado, tanto nos seus objetivos como na sua estrutura organizacional, abandonando a ideia presente da Reforma Universitária de que o modelo único seria a universidade. Em consonância com o documento 1354

da CNRES, o Grupo Executivo propôs também que o controle social fosse feito a partir de um sistema de avaliação de desempenho e que parte do financiamento das IFES deveria estar vinculada aos resultados desse desempenho. Por outro lado, o GERES deu tratamento diverso do proposto CNRES quanto à condução do processo de avaliação. Para o Grupo Executivo, o processo de avaliação deveria ser conduzido pela Secretaria da Educação Superior (SESu) do MEC. O processo deveria contemplar duas vertentes básicas: a da avaliação do desempenho institucional e a da avaliação da qualidade dos cursos oferecidos (GERES, 1986). Barreyro e Rothen (2008) observam que na literatura muitas vezes o relatório do GERES é considerado como o instaurador da visão de regulação e controle da educação superior, e não o documento do CNRES. Os autores apontam os seguintes fatores como explicação: “[...] a maior homogeneidade intelectual entre os membros do Grupo se comparado com a Comissão; o documento sistematizava os princípios adotados por essa visão, o fato de os anteprojetos terem sido divulgados durante uma greve e o apelo que a elaboração de uma proposta de reforma universitária via legislação tem na tradição brasileira.” (BARREYRO; ROTHEN, 2008, p. 143). Em função da resistência da comunidade acadêmica, o projeto foi retirado do Congresso Nacional, permanecendo as ideias como orientação da política geral do governo. 3.3 - Avaliação da educação superior como política pública 3.3.1 - Programa de Avaliação Institucional das Universidades Brasileiras (PAIUB) Divergindo das concepções quantitativistas da década de 1980, foi criada pela SESu, através da Portaria nº 130 de 14/07/1993, a Comissão com o objetivo de estabelecer diretrizes e viabilizar a 1355

implementação

do

processo

de

avaliação

institucional

nas

universidades brasileiras, o PAIUB. Essa Comissão Nacional de Avaliação era composta por membros de entidades representativas do setor371, passando, assim, o MEC a exercer o papel não de condutor do processo, mas de articulador e financiador. Depois de instalada a Comissão Nacional, foi constituído o Comitê Técnico Assessor, composto por especialistas que tinham a função de assessorar a Comissão e avaliar os projetos oriundos das universidades. Após estudos, seminários e contribuições, a Comissão Nacional de Avaliação das Universidades Brasileiras publicou, no dia 26 de novembro de 1993, o Documento Básico “Avaliação das Universidades Brasileiras” (BRASIL, 1994), que continha as condições mínimas que precisavam ser atendidas372 no projeto de avaliação. A SESu/MEC lançou o Edital convidando as Universidades interessadas a apresentarem projetos para o período de 1994/1995, tendo contado com a participação de dezenas de IES. De acordo com o Documento Básico, o processo de avaliação deveria atender a um processo contínuo de aperfeiçoamento do desempenho acadêmico, ser uma ferramenta para o planejamento da gestão universitária e servir como um processo sistemático de prestação de contas à sociedade. Segundo Dilvo Ristoff (BRASIL, 1994), de uma forma expressa ou implícita, os seguintes princípios estavam presentes no Documento Básico:

globalidade,

institucional,

não

comparabilidade,

premiação

ou

respeito

punição,

à

adesão

identidade voluntária,

legitimidade e continuidade. O princípio da globalidade expressava a noção de que era necessário avaliar a instituição a partir de todos os elementos que a compõem, tornando-a a mais completa possível. A 371

A Comissão era coordenada pelo Departamento de Política do Ensino Superior da SESu e representantes das seguintes entidades: ANDIFES (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior), ABRUEM (Associação Brasileira das Universidades Estaduais e Municipais), ANUP (Associação Nacional das Universidades Particulares), ABESC (Associação Brasileira das Escolas Católicas), Fóruns Nacionais de Pró-Reitores de Graduação, Pesquisa e PósGraduação, Planejamento e Administração e Extensão. 372 As universidades, porém, tinham a liberdade de propor outras condições elencadas pelo documento básico, propondo novas concepções e alternativas de avaliação institucional.

1356

comparabilidade era a busca de uma linguagem comum dentro da universidade e entre as universidades, uma vez que uma determinada categoria, como, por exemplo, “aluno”, tinha diversos significados, impossibilitando, institucional

assim,

comparações.

O

respeito

buscava contemplar as características

à

identidade

próprias

das

instituições e visualizá-las no contexto das inúmeras diferenças existentes no país. O princípio da não premiação ou punição significava que o processo de avaliação teria uma função educativa, ou seja, deveria auxiliar na identificação e na formulação de políticas, ações e medidas institucionais para o aperfeiçoamento de insuficiências encontradas. A adesão era voluntária, pois o que se buscava era a compreensão da necessidade de se instalar na universidade a cultura da avaliação e isso só seria possível se fosse coletivamente construído e se pudesse contar com a participação de seus membros. A questão da legitimidade dizia respeito tanto à legitimidade técnica (metodologia e fidedignidade da informação)

quanto

legitimidade

política

(indispensável

à

implementação de um projeto nacional de avaliação universitária). Por fim, o princípio da continuidade afirmava que um processo de avaliação deveria ser contínuo, permitindo a comparabilidade dos dados de um determinado momento e o contínuo aperfeiçoamento do desempenho acadêmico. O PAIUB concebia a avaliação como institucional, sendo a própria instituição o foco, mas se iniciaria pelo ensino de graduação. Previa a criação de uma comissão de avaliação no interior de cada instituição, que elaboraria um projeto de auto-avaliação. A proposta metodológica para a avaliação do ensino de graduação envolvia, essencialmente, cinco etapas: diagnóstico, auto-avaliação, avaliação externa, reavaliação interna e reconsolidação (BRASIL, 1994). O documento parte do princípio de que a avaliação é endógena. A avaliação externa seria solicitada pela própria instituição, no sentido de evitar uma ação corporativa e para incorporar outras visões.

1357

Essa

forma

de

avaliação

correspondeu

à

concepção

formativa/emancipatória, baseada na auto-regulação, na qual a participação da comunidade acadêmica é fundamental, como aconteceu de fato tanto na criação quanto na implementação da proposta.

O

PAIUB

chegou

a

ser

desenvolvido

por

algumas

universidades e, sem ser extinto formalmente, foi relegado pela adoção do ENC. 3.3.2 - Exame Nacional de Cursos (ENC) O ENC, também conhecido como “Provão”, foi um exame aplicado aos formandos, no período de 1996 a 2003, com o objetivo de avaliar os cursos de graduação. Foi criado a partir da Medida Provisória nº 1.159, de 26/10/1995, posteriormente convertida na Lei nº 9.131/1995. Essa MP alterou dispositivos da Lei nº 4.024/1961 (antiga LDB), extinguiu o CFE e criou o Conselho Nacional de Educação. Além disso, estabeleceu que o MEC fizesse avaliações periódicas das instituições e dos cursos de nível superior, realizando necessariamente, a cada ano, exames nacionais com base nos conteúdos mínimos estabelecidos para cada curso, destinados a aferir os conhecimentos e competências adquiridos pelos alunos em fase de conclusão dos cursos de graduação, sendo condição prévia para obtenção do diploma. Estava previsto também que o MEC divulgaria, anualmente, o resultado das avaliações e dos exames, informando o desempenho de cada curso, sem identificar nominalmente os alunos avaliados. Os procedimentos para o processo e avaliação dos cursos e IES foram estabelecidos pelo Decreto nº 2.026, de 10 de outubro 1996. Embora esse Decreto previsse a avaliação do desempenho individual das IES e a avaliação do ensino de graduação, por curso, por meio da análise das condições de oferta, o ENC-Provão foi o instrumento de avaliação privilegiado, uma vez que “[...] os outros tinham menor destaque na divulgação oficial, sendo os seus resultados utilizados para 1358

efeitos regulatórios no reconhecimento de cursos de graduação.” (BARREYRO; ROTHEN, 2006, p. 959). Assim, apesar da legislação citar diversos procedimentos no processo, a avaliação foi limitada à medição e utilizada como teste de verificação de aprendizagem. O ENC-Provão “[...] foi o instrumento quase exclusivo, tanto que o resultado dessa avaliação era amplamente divulgado, o que não sucedia com o resultado das outras avaliações.” (ROTHEN; SCHULZ, 2007, p. 169). Tornou-se, portanto, o mecanismo de regulação utilizado pelo Estado-avaliador, com critérios relacionados ao mercado e com estabelecimento de rankings que estimulavam a concorrência entre as IES e possibilitava ao “consumidor de educação” optar pela “melhor escolha”. A redução da avaliação à autorização do funcionamento das instituições foi fruto da concepção de Estado-avaliador adotado pelo MEC e pela sua estratégia de implantar um sistema de avaliação sem discutir o modelo “ideal” de universidade. É fundamental situar o ENCProvão no contexto da Reforma do Estado promovida pelo governo FHC (1995-2002). Nessa Reforma, a execução dos serviços públicos foi paulatinamente transferida para a iniciativa privada, ficando ao Estado o papel de regular a oferta desses serviços, deixando de ser um Estadoprovedor para se tornar um Estado-avaliador. A educação superior foi considerada como um serviço não exclusivo do Estado (PEREIRA, 1998), acelerando, assim, um processo de “privatização em sentido amplo” (ROTHEN; BARREYRO, 2008, p. 129), pois, embora não tenha ocorrido transferência de instituição pública para a iniciativa privada, ocorreu a incorporação de práticas empresariais no setor público e uma forte expansão das matrículas nas instituições privadas (ROTHEN; BARREYRO, 2011). No período posterior à Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabeleceu as diretrizes e bases da educação nacional (LDB), no campo da educação superior, consolidou-se uma relação estreita entre avaliação e regulação (Cf. Arts. 9º e 46 da LDB). Nesse cenário, o Estado 1359

passou a mediar a relação entre as IES e o mercado, informando ao consumidor os resultados da avaliação e autorizando o funcionamento das IES. Não se pode deixar de destacar que, nesse período, a agenda educacional

foi

influenciada

por

paradigmas

econômicos

que

aplicaram raciocínios de custo/benefício aos gastos com educação e, também,

reforçada

pelos

documentos

emitidos

por

organismos

internacionais de empréstimo (Banco Mundial373, BID). Não obstante, o governo FHC, em relação à normatização da avaliação, não tinha um pacote pronto e fechado para um sistema de avaliação

das

IES.

Os

atos

normativos

foram

publicados

progressivamente, muitas vezes recuando diante da resistência e boicotes, sobretudo da comunidade acadêmica. Como indicam Barreyro e Rothen (2007, p. 137): “[...] não havia um projeto claro, mas uma sequência de atos legislativos que se caracterizam, mais como reação aos acontecimentos e às pressões sociais do que como um ordenamento

jurídico,

a

partir

de

uma

concepção

clara

de

avaliação.”. Em 2001, o Decreto nº 3.860 dispôs sobre a organização do ensino superior e a avaliação de cursos e instituições, ficando a organização e execução da avaliação como competência do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), e não mais da SESu. Um fato interessante a notar é que, embora a concepção de avaliação nessa política fosse a de controle/regulação e “[...] das normas preverem punições nos casos de resultados negativos no Provão, na prática não houve nenhum efeito punitivo, senão de

373

Em 1994, o Banco Mundial publicou um documento sobre ensino superior (BANCO MUNDIAL, 1995) com o objetivo de orientar o crescimento econômico dos países em desenvolvimento. Partindo da ideia de que o modelo tradicional de universidade europeia de pesquisa (neo-humboldtiana) era inapropriada para os países em desenvolvimento e que era preciso adequar o ensino superior às necessidades do mercado de trabalho, três orientações principais se destacaram: diversificação de instituições, necessidade das instituições públicas diversificarem as fontes de financiamento e redefinição da função do Estado no ensino superior. O detalhe é que o documento afirma que o Banco daria prioridade de empréstimos a países que adotassem as recomendações.

1360

divulgação midiática e publicitária em procedimentos de autoregulação típicos do mercado.” (BARREYRO; ROTHEN, 2006, p. 959) O Provão-ENC foi extinto com a promulgação da Lei nº 10.861, de 14 de abril de 2004, que instituiu o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior – (Sinaes). 4. RESULTADOS E CONCLUSÕES A avaliação tornou-se um campo de contradições e de múltiplas referências. As concepções quanto ao uso de instrumentos e emprego das informações oriundas da avaliação foram diversas ao longo do percurso histórico, ora somando-se perspectivas, ora dando mais ênfase a um aspecto do a outros. No campo da educação, viu-se como, num primeiro momento, a avaliação era caracterizada pela mensuração, focando o uso de testes, classificações e instrumentos técnicos. Em seguida, sob a influência da obra de Ralph Tyler, a avaliação passou a averiguar, através da descrição, se os objetivos educacionais estavam sendo alcançados, observando os pontos fortes e fracos. Depois, surgiram outros autores importantes, como Lee Cronbach, Michael Scriven, Daniel Stufflebeam, Robert Stake, Malcolm Parlett e David Hamilton. Aparecem diversas ideias, como a de accountability, avaliação voltada para a tomada de decisões, enfoques naturalistas e qualitativos etc. A avaliação torna-se um campo de atividade profissional; passa a ser caracterizada também como juízo de valor. Toda essa herança, de certo modo, repercutiu nas formulações acadêmicas e das políticas brasileiras. Partindo da discussão do PARU, CNRES e GERES, nos anos 1980, em que já havia um embate entre a definição das funções da avaliação, identificou-se a dicotomia de forma visível em dois momentos das políticas de avaliação das IES, na década de 1990. A avaliação emancipatória foi o fundamento do PAIUB e a avaliação com enfoque regulatório foi implantada com o ENC-Provão. 1361

Partindo do quadro elaborado por Barreyro e Rothen (2008) que sintetiza as características e principais aspectos dos documentos do PARU, CNRES, GERES e PAIUB, incluiu-se o ENC para uma comparação entre os cinco programas. GERES 1986

PAIUB 1993

ENC 1996

24 membros (heterogêne o) provenientes da comunidade acadêmica e da sociedade

Grupo interno do MEC

Comissão Nacional de Avaliação (Representati va de entidades)

MEC

Propor nova política de educação superior

Propor nova lei de educação superior

Propor uma sistemática de avaliação institucional

Avaliar os cursos de graduaçã o

Formativa

Regulação

Regulação

Formativa

Regulação

Justificativ a

Investigaçã o sistemática da realidade

Contraponto da autonomia. Vincula financiament o.

Contraponto da autonomia. Vincula financiament o.

Prestar informaçã o ao mercado educacion al

Tipo de avaliação

Interna

Externa

Externa

Prestação de contas por ser um bem público que atinge a sociedade Autoavaliação e avaliação externa

Comunida de acadêmica

CFE (para a universidade) e Universidade s (para as Faculdades)

SESu (para a edu. pública) e mercado (para a edu. privada)

Autores

Objetivo Função / Concepçã o de avaliação

Agentes da avaliação

PARU 1983 Grupo gestor (especialist as em análise de projetos, sendo alguns técnicos do MEC) Diagnóstico da educação superior

CNRES 1985

Endógena e voluntária

Externa

SESu e, em seguida, o INEP

Instituição, Curso de iniciando Instituição Instituição Instituição graduaçã pela o graduação Indicadores Indicadores Indicadores Indicadores Instrument e estudos de de de Exame os de casos desempenho desempenho desempenho Quadro 1: Comparação entre os documentos do PARU, CNRES, GERES, PAIUB e ENC

Unidade de análise

1362

Vê-se que as propostas do PARU e do PAIUB não questionam a autonomia da universidade, como proposto pela Reforma Universitária de 1968, e, portanto, a avaliação não está relacionada nem com autonomia nem com financiamento. Nessa concepção, avaliar consiste em pesquisar a instituição para detectar pontos a serem melhorados ou mantidos. A ideia subjacente é formativa, a avaliação é um subsídio para a melhoria da qualidade, por meio da avaliação institucional (PARU) e da avaliação interna (PAIUB). Já o relatório da CNRES e o documento do GERES apresentam uma proposta de avaliação que está

baseada

num

questionamento

do

sistema

existente.

Nos

documentos, há forte ênfase na ideia de que a universidade não seria o único modelo de instituição de educação superior desejável. Então, por ela ser privilegiada com a autonomia, deveria prestar contas das suas atividades e os recursos financeiros deveriam ser estabelecidos de acordo com os seus resultados. A perspectiva inclui a avaliação externa, para garantir resultados mais objetivos. Essa concepção foi implantada com o ENC-Provão, que retomou a identificação entre avaliação e testes de aprendizagem. O ENC-Provão partia de uma avaliação somativa realizada pelo MEC (primeiro com a SESu, depois com o INEP) para avaliar os cursos de graduação, através de um exame aplicado aos concluintes, e, assim, prestar informação ao mercado educacional. Com isso, percebe-se como a noção de educação como direito de todos e dever do Estado passou ao de mercadoria, favorecendo a criação de um “quase-mercado” (AFONSO, 2009, p. 116), coerente com uma concepção de educação superior voltada para a economia e dos interesses individuais e privados. Assim, as transformações nas políticas avaliativas foram sendo moldadas por mecanismos

de

mercado,

através

do

Governo,

orientado

por

organismos multilaterais, setores universitários a serviço do mercado e os adeptos da ideia de neutralidade.

1363

Trata-se agora de identificar quais os pressupostos, princípios e conteúdo geral que fundamentam o Sinaes, para entender a política atual.

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1365

POLÍTICA NACIONAL DE FORMAÇÃO DOCENTE E INOVAÇÃO CURRICULAR NO ENSINO DE FÍSICA: PROJETO INTEGRADOR NA LICENCIATURA DO IFRN CAMPUS SANTA CRUZ Maria Emília Barreto Bezerra374 Nelson Cosme de Almeida375

1. INTRODUÇÃO A política educacional brasileira na primeira década do século XXI, para a formação docente, instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores da Educação Básica. A partir desse momento, as instituições de ensino superior iniciaram reformas curriculares para as Licenciaturas, em resposta aos inúmeros problemas apresentados no campo dessa formação. Em 2008, foram criados os Institutos Federais em todo Brasil, o Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte, é um deles, e sob a coordenação da Pró-Reitoria de Ensino, após várias reflexões e discussões acerca do currículo para formação docente, envolvendo todas as Licenciaturas, interpretou as novas diretrizes para a reforma curricular e produziu o seu Projeto Institucional, no qual inseriu o Projeto Integrador. Este nesse momento se constitui, como nosso objeto de estudo e propomos que é uma prática curricular inovadora por promover o envolvimento de professores e alunos com os conhecimentos atinentes às disciplinas que compõem o currículo da Licenciatura em Física.

374

Graduada em Física (IFRN), Biomedicina (UFRN), Mestranda do Programa de Pós-Graduação de Ensino em Ciências Naturais e Matemática (UFRN). Professora de Física (IFRN). [email protected]. 375 Graduado em Física (IFRN), Professor efetivo da Escola Estadual José Bezerra Cavalcanti. Mestrando em Ensino de Ciências Naturais e da Matemática (UFRN). [email protected].

1366

Esclarecendo melhor a questão, informamos que, na reforma curricular do IFRN, foi introduzida uma carga horária de 400 horas, destinadas à Prática Docente como componente curricular nas Licenciaturas do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN). No IFRN esta prática é

integrada

no

currículo e um dos componentes é o Projeto Integrador, que, de forma interdisciplinar, articula teoria e prática, visando à formação docente. O Projeto Integrador é visto assim, como uma estratégia de ensino facilitadora da aprendizagem, pautada no ensino, na pesquisa e na extensão, capaz de articular a vivência escolar com a perspectiva profissional dos educandos. Nossa experiência com a prática do novo currículo vem ocorrendo no IFRN Câmpus Santa Cruz, desde 2009, e tem consolidado sua atuação junto à comunidade santacruzence, no curso de Licenciatura em Física. Em 2010.2 o curso de Licenciatura em Física entrou em seu III Período, nível em que as diretrizes internas do IFRN, apontam como momento apropriado para oficializar junto aos alunos e docentes a integração

curricular

com

o

desenvolvimento

ativo

do

Projeto

Integrador. A prática vivida revela, também, que o desenvolvimento do projeto integrador representa, ainda, um desafio para as Licenciaturas e várias estratégias estão sendo encaminhadas, para cumprir a carga horária determinada, sem prejuízo para os conteúdos específicos, procurando assim, atender da melhor forma possível os objetivos do plano de trabalho do projeto (conforme citado no guia do aluno das licenciaturas do IFRN/2010). A prática didática utilizando projetos no Brasil teve inicio na década de 1990, com a publicação do livro de Hernández (1998). No começo era vinculada a experiências com crianças no início da educação superior, notadamente, nos cursos de formação de professores. Essa prática foi legitimada pelo Parecer 09/2001, do 1367

Conselho Nacional de Educação (Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em Nível Superior). Assim, passou a fazer parte das orientações didáticas para o ensino superior, inclusive para os cursos tecnológicos. Desse modo, nos cursos de licenciaturas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte, as experiências com projetos integradores são norteadas pelas diretrizes curriculares do Ministério da Educação. Essas, “buscam uma nova concepção de currículo, que desloca o foco das disciplinas para o conjunto de conhecimentos e atividades acadêmicas que integralizam um curso” (BRASIL, 2001). Neste sentido, no currículo das licenciaturas eles podem ser considerados como inovadores por trazer à formação docente perspectivas interdisciplinares, na perspectiva ensejada por Fazenda (2008; 2006; 2003; 2002). É diante dessa constatação que, objetivamos nessa comunicação, relatar a experiência do trabalho com Projeto Integrador no curso de Licenciatura em Física do IFRN Câmpus Santa Cruz, como parte da execução de uma política educacional voltada para a melhoria da formação de professores no Brasil. A metodologia por nós desenvolvida na construção deste artigo pauta-se na análise das atividades desenvolvidas com os alunos e no registro de seus experimentos, bem como no relatório do projeto. Podemos ainda ressaltar, a observação durante a realização dos trabalhos nas Feiras de Ciências nas Escolas Públicas. O Projeto Integrador aqui relatado foi desenvolvido com alunos da Turma 2009.2, do Curso de Licenciatura em Física do IFRN Câmpus Santa Cruz, pois este teve como objetivo a construção de experimentos de Física, visando à articulação entre as disciplinas ofertadas nesse período.

1368

2. PROJETO INTEGRADOR: INOVAÇÃO CURRICULAR NO ENSINO DE FÍSICA DO IFRN CÂMPUS SANTA CRUZ As dificuldades e problemas que afetam o sistema de ensino em geral e, particularmente, o ensino de Física não são recentes e têm sido diagnosticados há muitos anos, levando diferentes grupos de estudiosos e pesquisadores a refletirem sobre suas causas e conseqüências. As propostas que têm sido formuladas para o encaminhamento de possíveis soluções indicam a orientação de se desenvolver uma educação voltada para a participação plena dos indivíduos, que devem estar capacitados a compreender os avanços tecnológicos atuais e a atuar de modo fundamentado, consciente e responsável diante de suas possibilidades de interferência nos grupos sociais em que convivem (THOMAZ, M. F. 2000). Nessa direção, o entendimento da natureza da ciência de um modo geral e da Física em especial, constitui-se em um dos elementos fundamentais à formação da cidadania nas sociedades contemporâneas. De modo convergente a esse âmbito de preocupações, o uso de atividades experimentais como estratégia de ensino de Física tem sido apontado por professores e alunos como uma das maneiras mais frutíferas de se minimizar as dificuldades promovendo o aprender e o ensinar Física de modo significativo e consistente. Nesse sentido, no campo das investigações nessa área, pesquisadores têm apontado em literatura nacional recente a importância das atividades experimentais (MORAES, A. M. e MORAES, I. J. 2000). Embora seja praticamente consensual o potencial para uma aprendizagem significativa, observa-se que a experimentação é proposta e discutida na literatura de maneira bastante diversa quanto ao significado que essas atividades podem assumir em diferentes contextos e em diferentes aspectos (DINIZ, 1996 e LABURÚ; ARRUDA, 1996).

1369

A análise do papel das atividades experimentais desenvolvida amplamente nas últimas décadas revela que há uma variedade significativa de possibilidades e tendências de uso dessa estratégia de ensino de Física, de modo que essas atividades podem ser concebidas desde situações que focalizam a mera verificação de leis e teorias, até situações que privilegiam as condições para os alunos refletirem e reverem suas idéias a respeito dos fenômenos e conceitos científicos abordados, podendo assim, atingir um nível de aprendizado que lhes permita efetuar uma reestruturação de seus modelos explicativos dos fenômenos (VENTURA; NASCIMENTO, 1992 e MOREIRA; AXT, 1992). Nessa perspectiva, apesar das pesquisas sobre essa temática revelarem diferentes tendências e modalidades para o uso da experimentação, essa diversidade, ainda é pouco analisada e discutida, ademais, não se explicita aos materiais de apoio aos professores. Ao contrário do desejável, a maioria dos manuais de apoio ou livros didáticos disponíveis para auxílio ao trabalho dos professores consiste ainda de orientações do tipo ‘’livro de receitas’’, associadas fortemente a uma abordagem tradicional de ensino, restritas a demonstrações fechadas e a laboratórios de verificação e confirmação da teoria previamente definida, o que sem dúvida, está muito distante das propostas atuais para um ensino de Física significativo e consistente com as finalidades do ensino no nível médio. Daí a necessidade de práticas de ensino mais inovadoras. Desse modo, é possível constatar que o uso da experimentação como estratégia de ensino de Física tem sido alvo de inúmeras pesquisas nos últimos anos, havendo extensa bibliografia e nessa, diferentes autores analisam as vantagens de se incorporar atividades experimentais.

Entretanto,

a

forma

e

os

meios

com

que

a

experimentação é empregada difere significativamente nas propostas investigadas, de modo que, os trabalhos de diferentes autores apontam para diversas tendências no uso desta estratégia. Nesse sentido, a finalidade por nós desenvolvida para trabalhar práticas experimentais 1370

nos projetos integradores principal é, sobretudo, identificar algumas das principais características dessas tendências, procurando explicitar seus elementos constitutivos de modo a contribuir para uma melhor compreensão das diferentes formas de utilização da experimentação no ensino médio. Com essa perspectiva, esperamos disponibilizar um relato com ênfase descritiva para que este possa subsidiar tanto análises posteriores sobre os diversos enfoques da experimentação presentes na literatura, como também as opções pedagógicas dos professores na organização e planejamento de atividades para a sala de aula com projetos integradores no ensino de Física. No IFRN Câmpus Santa Cruz, o plano de curso (2009) define que a realização de cada projeto integrador deve acontecer a partir de fases, a saber: Intenção, Preparação e Planejamento, Execução ou Desenvolvimento e Resultados finais. A fase da Intenção compreende o momento em que os professores de cada período se reúnem semanalmente para pensar os objetivos

e

finalidades

das

disciplinas,

as

necessidades

de

aprendizagem da turma e sobre os encaminhamentos dos projetos, envolvendo a problematização dos conteúdos. Nesta fase, ocorre também a discussão junto dos alunos sobre a fundamentação e concepção do trabalho pedagógico com projetos didáticos a partir de um problemática e/ou temática. Nesta etapa, ocorre a definição do tema pelos alunos e professores. A fase de Preparação e Planejamento implica o envolvimento de alunos e professores desde a definição do tema, coleta de dados e subsídios teóricos à definição das estratégias para execução do trabalho proposto, divulgação do projeto e de seus resultados finais, com apresentação pública para a banca dos professores envolvidos. Na

fase

de

Execução

ou

desenvolvimento

dos

projetos

integradores ocorre a realização das atividades propriamente ditas e das estratégias programadas. Nos encontros semanais ou definidos conforme as necessidades da turma e dos professores, os grupos de 1371

pesquisa socializam os trabalhos encaminhados, as dificuldades encontradas e os resultados parciais atingidos. As questões levantadas nesses encontros são subsídios para o replanejamento da prática docente de maneira a construir atividades planejadas e desafiadoras para os alunos e professores. Na fase dos Resultados finais ocorre a divulgação dos trabalhos, redundando num produto final realizado pelos alunos, que varia no formato desde a montagem, explicação e divulgação de uma experiência em laboratório, ou artigo científico, ou produção de um material didático. 2.1 - Relatando o Desenrolar dos Projetos Integradores Em linhas gerais os projetos integradores foram desenvolvidos de acordo com a matriz curricular do curso, e em consonância com os documentos oficiais que regem as licenciaturas no IFRN, as disciplinas que participaram das experiências do projeto integrador foram: PROJETO I: Didática, Física experimental I, Eletromagnetismo Básico e Química geral; PROJETO II: Física Experimental II, Física Térmica e Ondulatória; e PROJETO III: Mídias Educacionais; Física Experimental III, Metodologias do Ensino de Física I, Óptica, Mecânica Clássica. As disciplinas envolvidas em cada um dos projetos estavam sendo ofertadas no semestre no qual o projeto foi desenvolvido. Inicialmente foi feito um levantamento nas Escolas públicas da Microrregião da Borborema Potiguar, mas precisamente nos municípios de Santa Cruz, Tangará, Campo Redondo e Lajes Pintada para verificar de que forma vem ocorrendo o processo de ensino e aprendizagem de Física, nos nonos anos do Ensino fundamental e no Ensino Médio. Concomitante a esta atividade, os alunos da Licenciatura pesquisaram e

desenvolveram

diversos

experimentos

de

Física,

apresentados nas Feiras de Ciências dessas Escolas. Dentre os experimentos elaborados destacamos: 1372

que

foram

a) Canhão de Borrachinha; b) Maluca; c) Foguete; d) Submarino; e) Bomba Aspirante; f) Cama de pregos; g) Bexiga vista por dentro; No início do semestre letivo de cada semestre letivo foi levado aos alunos a discussão referente aos projetos integradores. Ainda no planejamento pedagógico para o início do semestre, os professores da licenciatura reuniram-se para pensar coletivamente sobre como levariam a proposta de trabalho interdisciplinar aos alunos e que estratégias seriam adotadas com a finalidade de trazer as questões e anseios dos alunos para torná-los participantes ativos em todas as fases do desenvolvimento do projeto integrador. A partir desse encontro foi sugerido que nos primeiros dias de aula, todos os professores da licenciatura que estariam lecionando no III período entrariam juntos na sala de aula, procurando já mostrar integração inicial de pensamento, e a partir de dinâmicas, conversas, debates e palestras seria lançada a ideia para a turma e discutido as possibilidades, chegaríamos a um consenso de atuação. Na primeira semana de aula, desenvolvemos a atividade proposta, a qual foi bem recebida pela turma. Levantou-se ao longo das discussões a questão da dificuldade de aceitação da disciplina de física, constatada freqüentemente nas escolas. Os alunos revelaram que em Santa Cruz, em 2010, existe apenas 1 professor formado na disciplina, entre todos os que atuam nas escolas da região do Trairí e que frequentemente encontram-se alunos matriculados nos anos finais do ensino médio, ensinando a disciplina para as turmas dos anos iniciais. Nossos alunos referiram-se a esse fato como uma das possíveis causas dos insucessos no ensino de física, 1373

associando a falta de preparo dos docentes com a metodologia enfraquecida utilizada em sala de aula e o distanciamento entre a teoria da física e a vivência cotidiana dos aprendizes. Percebemos que, esse assunto muito tem preocupado os nossos licenciandos, desde o início do curso. Isso posto, procuramos pensar no tema que nos ajudaria a trabalhar junto com a comunidade, desmistificando o ensino de física “como um bicho de sete cabeças” (título proposto por um dos alunos que estavam participando dos debates, em seu projeto monográfico na disciplina de metodologia do trabalho científico – II Período). Tendo elaborado a temática e o plano de atuação juntamente com a turma de licenciatura em física, III período, prosseguimos encaminhando o cronograma de atividades e metodologias de pesquisa. A abordagem utilizada na pesquisa como um todo foi qualitativa e a coleta dos dados se deu por meio da pesquisa bibliográfica, documental e de campo.

2.1.1 - Etapas do Primeiro Projeto Integrador (2010.2): Atividades experimentais no ensino de física: construindo um novo olhar para a disciplina de física Etapa 1: 

Apresentação do tema proposto, identificação de sua área de inserção e formação dos grupos;



Desenvolvimento de pesquisa bibliográfica.

Etapa 2: 

Entrega da revisão bibliográfica, objetivos e justificativa;



Entrada em campo com participação expositiva na Feira de Negócios do Trairí, em Santa Cruz, onde foi aplicado um instrumento de pesquisa;



Exposição na Expotec;



Visita expositiva em escolas de diversas cidades do Trairí; 1374



Visita expositiva em escola de Natal.

Etapa 3: 

Entrega do anteprojeto.

Etapa 4: 

Entrega dos resultados parciais.

Etapa 5: 

Apresentação pública do relatório final

2.1.2 - Etapas do Segundo Projeto (2011.1): Máquinas Térmicas: a importância do seu uso em sala de aula As experiências do segundo projeto partiram de discussões e da necessidade de se rever metodologias e temáticas condizentes ao diálogo interdisciplinar no ensino superior. As etapas consistiram em: 

Escolha do tema a partir de conteúdos e eixos integradores entre disciplinas do semestre;



Divisão dos grupos de trabalho;



Planejamento da pesquisa;



Realização do trabalho;



Apresentação

para

os

professores

participantes

de

cada

semestre. 2.1.3 - Etapas do Terceiro Projeto (2011.2): O uso das mídias educacionais como um recurso facilitador ao ensino de Física As experiências do terceiro projeto partiram de discussões e da necessidade de se rever metodologias e temáticas condizentes ao diálogo interdisciplinar no ensino superior. As etapas consistiram em: 

Escolha do tema a partir de conteúdos e eixos integradores entre disciplinas do semestre;



Divisão dos grupos de trabalho; 1375



Planejamento da pesquisa;



Realização do trabalho;



Apresentação

para

os

professores

participantes

de

cada

semestre.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A apresentação dos experimentos foi à culminância dos estudos e das pesquisas realizadas durante os Projetos Integradores e esses contribuíram não só para a divulgação do saber científico nas escolas públicas onde foram apresentados, motivando os alunos para o estudo de Física, mas principalmente para a formação dos futuros docentes, que tiveram a oportunidade de articular pesquisa e extensão no ensino de Física. Durante o desenvolvimento e execução dos projetos podemos verificar junto aos licenciandos do curso de Física que esses projetos são facilitadores da compreensão de práticas interdisciplinares, bem como favorecedores da formação docente conforme o perfil esperado para eles, qual seja: físico/educador. Sendo assim, ratificamos nossa percepção de que os projetos integradores podem ser compreendidos e praticados como inovações corriculares.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTÔNIO, Severino. Uma nova escuta poética da educação e do conhecimento: diálogos com Prigogine, Morin e outras vozes. São Paulo: Paulus, 2009. DINIZ, R. E. S. (1996). A pesquisa e o ensino de ciências: relato de uma experiência. Série: Ciência & Educação, no 3. UNESP, Baurú.

1376

FAZENDA, Ivani. (Org.) O que é interdisciplinaridade? São Paulo: Cortez, 2008. ________. Interdisciplinaridade: qual é o sentido? 2ed. São Paulo: Paulus, 2006. ________. Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa. 11 ed. Campinas, SP: Papirus, 2003. ________. Interdisciplinaridade: um projeto em parceria. 7 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002. HERNÀNDEZ, F. Transgressão e mudança na educação: os projetos de trabalho. Fernando Hernández. Trad. Jussara Haubert Rodrigues. Porto Alegre: Artmed, 1998. LABURÚ, C. E.; ARRUDA, S. M. (1996). Considerações sobre a função do experimento no ensino de ciências. Série: Ciência & Educação, no 3. UNESP, Baurú. MORAES, A. M. E MORAES, I. J. (2000). A avaliação conceitual de força e movimento. Rev. Bras. Ens. Fís., 22(2): 232-246. THOMAZ, M. F. (2000). A experimentação e a formação de professores: uma reflexão. Cad. Cat. Ens. Fís., 17(3): 360-369. VENTURA, P. C. S. E NASCIMENTO, S. S. (1992). Laboratório Não Estruturado: uma abordagem do ensino experimental. Cad. Cat. Ens. Fís., 9 (1): 54-60.

1377

AS OBRAS DE ARTE PÚBLICAS COMO ESPAÇOS DE IDENTIDADE EM MOSSORÓ – RN. Thalles Chaves Costa376 Rosalvo Nobre Carneiro (Orientador)377 Resumo: Este trabalho analisa como as obras de arte inseridas nos espaços públicos, na cidade de Mossoró - RN, contribuem na construção da identidade das pessoas e do lugar, além de discutir os vários conceitos que envolvem espaço, arte e cultura. Para isto nos apoiamos, dentre outros teóricos, em Gregolin (2007), a qual, procura mostrar a importância da aproximação da análise do discurso, a fim de compreender os movimentos discursivos de produção de identidades e Tomaz Tadeu da Silva (2012), que problematiza a produção social da identidade. Está sendo realizada pesquisa de campo em Mossoró com o intuito de catalogar as obras de arte dos seus espaços públicos e identificar as que ajudam na construção dos processos identitários das pessoas e do lugar, essas obras foram fotografadas para ilustrar e/ou comprovar esses fatos. Palavras-chave: Obras de arte públicas. Espaços públicos. Identidade.

INTRODUÇÃO Espaço, arte, cultura e identidade são conceitos polissêmicos, difíceis de se definir, tomemos o termo espaço, por exemplo, na história da ciência vamos encontrar inúmeras definições do conceito, da popular visão de lugar, passando pelos espaços simbólicos e habitados. Estetas vão refletir questões sobre a obra de arte tanto de um ponto de vista objetivo como de um ponto de vista subjetivo. Até a década de 1970 existiam centenas de conceitos de cultura, agora, nos tempos em que o sociólogo “Europeu” Zygmunt Bauman chama de modernidade líquida e no momento em que você esta lendo esse texto, o número de definições já deve ultrapassar os três dígitos. A identidade pode ser entendida como uma sensação de pertencimento ou identificação. 376

Graduado em Ciência Sociais (UFC), Direção Cinematográfica (Escol de Cinema Darcy Ribeiro/RJ), Mestrando do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH/UERN). Professor Efetivo (UnP). [email protected]. 377 Graduado em Geografia (UEPB), Mestre em Geografia (UFPE) e Doutor em Geografia (UFPE). Professor Efetivo (UERN), Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas – (PPGCISH/UERN). [email protected].

1378

O objetivo deste trabalho é mostrar como as obras de artes plásticas – talhas, esculturas, bustos, mosaicos, pinturas, painéis, instalações e grafites –

que se encontram inseridas nos espaços

públicos, ajudam na construção da identidade das pessoas e dos lugares, a partir de uma análise feita na cidade de Mossoró/RN. Nos apoiamos na revisão bibliográfica para a discussão dos temas, iremos discutir os vários conceitos propostos sob a ótica de pensadores distintos, a fim de que nos seja dado um suporte para um entendimento dos conceitos. Foi realizada pesquisa de campo também a fim de identificar as obras de arte, sejam esculturas, mosaicos, pinturas, painéis, talhas ou grafites que retratem acontecimentos que fazem parte da identidade da cidade. Essas obras foram fotografadas e serão aqui analisadas. Falar de espaço requer distinguir espaço público, onde o objeto dessa pesquisa está inserido, só existe o público porque existe o privado. A seguir nos voltamos para a discussão de arte e cultura. Também é necessário apresentarmos os vários mecanismos de fomento à produção dessas obras de arte, analisando as obras através das fotografias realizadas em campo e observar como elas atuam na construção da identidade.

ESPAÇO E ARTE COMO FATOS SOCIAIS Margaret Wertheim (2001) aborda os diferentes tipos de espaços, do período medieval de Dante ao pós-modernismo da internet. Na “era da ciência”, muitos de nós nos acostumamos tanto a pensar o espaço como algo puramente físico que pode nos ser difícil aceitar outras definições de espaço como um “espaço” genuíno, o fato de algo não ser material não significa que é irreal, embora destituído de fisicalidade, os espaços simbólicos, vividos e habitados onde as obras de arte estão inseridas constituem um lugar real. 1379

Milton Santos (2002) lembra que o espaço é um fato social, um reflexo da sociedade, David Harvey (1989) não concebe o espaço independente das relações sociais. Tendemos a imaginar o espaço como território, uma porção de terra identificada por um nome, a definição de espaço geográfico não é uma tarefa das mais simples, sua definição é árdua, porque a sua tendência é mudar com o processo histórico, uma vez que o espaço geográfico é também o espaço social. As obras de arte se relacionam tanto com os espaços onde estão inseridas como com a sociedade que habita e dá significados à esses espaços e às obras de arte, mas não é só a sociedade que habita e dá significados aos espaços, as obras de arte também habitam e dão significados aos espaços. As obras de arte se constituem então, assim como os espaços, em fatos sociais. Toda descrição de um espaço deveria compreender a percepção por parte dos outros, daqueles que o habitam. Sobre os vários conceitos de espaço que Bettanini (1982) expõe, destacamos os espaços simbólicos, o espaço tem o significado que o homem dá à ele, representa e é à maneira que é utilizado, articulado, percebido, a percepção do espaço é verbalizada, o espaço é falado; os objetos que constituem os tecidos de relações espaciais foram dotados, pelo homem, de significado: o espaço, portanto, fala. Outra definição múltipla é o entendimento de espaço público, a primeira ideia que vem em mente é que deveria ser um lugar disponível à todos, diferentemente do privado que só é acessível às pessoas autorizadas. Mas afinal, o que é o espaço público? Nem sempre um espaço dito público o é totalmente, para Ângelo Serpa (2007), o espaço público deve ter algo mais do que o simples acesso físico a espaços “abertos” de uso coletivo, o espaço público em tese seria ou deveria ser acessível à todos, em qualquer horário. A soma de processos de apropriação de um coletivo de indivíduos não é suficiente para legitimar a noção do espaço público. Os parques e praças públicas são um espaço aberto à população, acessível à todos, 1380

postos à disposição dos usuários, mas todas essas características não são suficientes para definí-los como espaço público.

ARTE E CULTURA Para Suassuna (2009) os estetas metafísicos veem a arte como a revelação de uma realidade superior que se afirma em virtude de um pensamento que busca o absoluto e a unidade última, os realistas consideram a arte como uma faculdade criadora puramente racional. Sem dar conta do que é ou não arte e com uma visão subjetiva, Bargalló (2008) a define como “manifestação da atividade humana por meio da qual se expressa uma visão pessoal e desinteressada que interpreta o real ou o imaginário com recursos plásticos, linguísticos ou sonoros” (BARGALLÓ, 2008, p. 06). Kant (1995) vê os problemas estéticos como insolúveis devido à radical diferença entre os juízos estéticos (juízos de gosto) e os juízos de conhecimento. A estética é uma questão de gosto já que os juízos estéticos não emitem conceitos, eles decorrem de uma reação pessoal do contemplador diante do objeto. Quando falo que uma rosa é branca ou que o céu está lilás, estou emitindo um juízo de conhecimento, se falo que a mesma rosa é bela ou que o pôr do sol é lindo, estou emitindo um juízo de valor, de gosto ou estético e aí entra a subjetividade de cada um. A arte é difícil de se definir e a subjetividade de cada indivíduo vai articular conceitos estéticos distintos. O termo “cultura” originalmente na Alemanha, e ainda hoje em vários lugares, era usado para falar do cultivo da terra, quando nos referimos à agricultura, sabemos que as monoculturas prejudicam o solo, é preciso diversificar. Um estado ou uma cidade pode ser famosa pela cultura da laranja ou do caju. Depois, cunhou-se o termo intelectualmente com o sentido de cultivo da mente, a cultura então virou sinônimo de erudição. A cultura é também confundida com arte, 1381

quando se diz que uma determinada pessoa gosta e apóia a arte, pode-se falar que essa pessoa é um fomentador da cultura, um mecenas, um agitador cultural. Com o surgimento da antropologia, o termo ganha um sentido antropológico. As obras de arte as quais nos referimos nesse trabalho e que consideramos como públicas, são as que estão em lugar de destaque e de circulação comum de um grande número de pessoas diariamente mas a definição de Arte pública é tão diversa que Cesar Floriano (2010) a divide em três categorias distintas: em primeiro lugar as de caráter permanente, a arquitetura, o mobiliário urbano, praças e jardins; o segundo confere aos lugares novos significados, são os marcos urbanos, esculturas, pinturas e grafites; em terceiro as obras de caráter efêmero que buscam na estética relacional uma interação maior com as pessoas, podemos também identificar as instalações e as intervenções urbanas como fazendo parte deste terceiro grupo. Para Marcelo Abreu (2001) a história da escultura pública é um campo de disputa em torno de imagens urbanas que identificam a coletividade e o seu lugar de localização. Uma das características da Arte contemporânea é a saída das obras das galerias e dos museus e a sua habitação nos espaços públicos, seja por meio de instalações, seja através de intervenções urbanas. O artista plástico Hélio Oiticica via o mundo como um museu, um museu aberto onde a arte podendo tornar a vida bem mais agradável. A interação dos artistas e o seu reencontro entre a cidade e a Arte vem se dando ao longo dos últimos anos, a ocupação da cidade pelos artistas faz dos seus espaços públicos suporte de exposições de arte. Da antiguidade à era moderna, das inscrições rupestres ao renascimento e aos dias atuais, encontraremos intervenções artísticas urbanas aproximando a arte das pessoas. Isso implica em compreender que a Arte Pública, ao re-organizar visualmente o espaço público da cidade, permite a construção de 1382

relações simbólicas diversas entre os artistas, moradores e a circulação de significados sociais que constroem sociabilidades e identidades particulares da cidade.

SOBRE OS MECANISMOS DE FOMENTO DE PRODUÇÃO DA ARTE PÚBLICA A primeira obra de arte pública identificada em Mossoró, fica na praça da Redenção, em frente à Biblioteca Pública Municipal Ney Pontes, no centro da cidade. Trata-se de uma releitura em concreto da estátua da liberdade (figura 1), encomendada em 1904, por Sebastião Fernandes de Oliveira378, então presidente da Comissão de Socorros Públicos, ao mestre feitor açuense José Paulino379, em homenagem à abolição da escravatura em Mossoró aos 30 de setembro de 1883.

Figura 1. Réplica da estátua da Liberdade localizada na praça da Redenção. José Paulino. 1904. Foto. Thalles Chaves.

“Os objetos escultóricos que compõem a paisagem urbana são um dos elementos que articulam o espaço e o tempo das cidades, 378

“Primoroso poeta, orador empolgante, jurista completo, criminalista insuperado”, disse dele Câmara Cascudo. 379 José Paulino realizou uma série de obras em Mossoró como altares de igrejas e um obelisco que se localiza numa praça em frente ao mercado público municipal.

1383

para além das funções utilitárias ou decorativas, eles representam a história da sociedade que os produziu” (Abreu, 2001: 1). Santos (2006) chama rugosidade, o que fica do passado como forma, espaço construído, paisagem, o que resta do processo de supressão, acumulação, superposição, com que as coisas se substituem e acumulam em todos os lugares. Esse monumento atravessou o tempo no espaço, é do início do século XX, tem mais de cem anos e continua presente, como suporte à memória, lembrando-nos do fato ocorrido no passado, em cada lugar, pois, o tempo atual se defronta com o tempo passado, cristalizado em formas. Podemos identificar cinco fomentadores da Arte pública em Mossoró: Um primeiro, chamamos de arte independente, são os artistas independentes, literalmente, de lei, de mecenas, de poder público. Fazem por conta própria como necessidade de se expressarem, de mostrarem seu trabalho, interagir e dialogar com a cidade, o meio urbano e a sociedade, usam a cidade como uma vitrine como é o caso das obras de arte, grafites e intervenções urbanas de vários artistas plásticos espalhadas pela cidade. O grafite380, expressão típica urbana, é ínfimo em Mossoró, o artista plástico Marcelo Amarelo chegou a realizar, por conta própria, algumas intervenções na cidade, mas os grafites tem prazo de validade curto, em pouco tempo, se comparado à outras obras, ele vai se apagando da parede ou simplesmente essa parede pode ser pintada. Podemos observar um mural (Figura 2), feito por um grupo de grafiteiros de Natal, vizinho à igreja de São Vicente, na rua Alfredo Fernandes, onde, na manhã de 13 de junho de 1927, ocorreu uma verdadeira “chuva de balas” com a expulsão de cangaceiros que pretendiam invadir a cidade, esse grafite é uma alusão ao tema.

380

Jean-Michel Basquiat com suas intervenções urbanas em Nova Yorque, é um dos precursores e maiores nomes do grafite mundial, no Brasil, Vitché, os Gêmeos e o submundo de Zezão se destacam na paisagem do Rio de Janeiro e São Paulo.

1384

Figura 2. Grafite localizado vizinho à igreja de São Vicente, centro de Mossoró, em alusão à passagem de cangaceiros na cidade. Foto. Thalles Chaves.

A segunda ocorrência se dá por iniciativa de “mecenas” que as financiam, como as instalações que se encontram às margens da BR 304, próximo à uma base da Petrobrás e ao anel viário Natal x Mossoró x Fortaleza. Esculturas gigantes estão inseridas num contexto de um ferro velho, é o caso da escultura do artista plástico Marcelo Amarelo, As Três Graças do Candango (Figura 3) de 2010, uma alusão aos poderes executivo, legislativo e judiciário, uma discussão, crítica e referência à política do Brasil, os artistas sempre dialogando com a pouca atenção dada à cultura pelos governos que tratam o setor de maneira ínfima, e veem os recursos aportados não como um investimento mas como um gasto. Trata-se de uma escultura gigante que está lá, uma instalação, dialogando com o traçado urbano, com quem passa próximo e que foi financiada por vontade própria do empresário dono do ferro velho, um incentivador, amante das artes. Fernando Pedro da Silva (2005), atenta para a influência das obras de arte pública nos espaços urbanos e aponta a relação das obras com a sociedade. A arte recria a paisagem dos grandes centros urbanos, seja pela interferência física, seja despertando um novo olhar naqueles que a encontram em seu caminho diário. Mas não é só com a sociedade que essas obras se relacionam, elas também dialogam com os espaços, dando-lhes novos 1385

significados, o ferro velho antes dessas instalações era outro, as esculturas agora valorizam e dão novo sentido ao lugar, antes um lugar do velho, do feio, agora um lugar de novas possibilidades, de sustentabilidade e aproveitamento, de reciclagem, tanto material quanto do mundo das ideias.

Figura 3. Instalação do artista plástico Marcelo Amarelo, “As três Graças do Candango”. 2010. Foto. Thalles Chaves.

Uma terceira incidência, chamamos de “Filo Mnésica” – amigos da memória. São amigos e familiares, geralmente com um alto poder econômico, de pessoas que já faleceram, não necessariamente relevantes para a sociedade, que mandam erguer bustos em sua homenagem, como é o caso de um busto do enfermeiro Elinas Neto Fernandes Dias (Figura 4), uma homenagem de seus pais, irmãos e amigos, falecido em 1978, localizado vizinho à igreja São Vicente, no centro da cidade, e do político, advogado e empresário Mota Neto, morto em 1981, em frente à sede do jornal Gazeta do Oeste. Em contrapartida, os “Filo Mnésicos” mantem uma pracinha onde o busto está inserido. Segundo Jacques Le Goff (1996) datas comemorativas são criadas e monumentos em memória à grandes feitos do passado são erguidos.

Desde

a

antiguidade,

1386

na

Mesopotâmia,

os

reis



encomendavam monumentos para celebrar suas vitórias nas guerras. Podemos observar em Roma, ainda no séc. I d.C. a coluna de Trajano que como um documento para a posteridade, mostra a queda de uma cidade, uma batalha contra os bócios e soldados colhendo trigo. Entre as manifestações importantes ou significativas da memória coletiva, encontra-se o aparecimento, no século XIX e no início do XX, em seguida à primeira guerra mundial, a construção de monumentos aos mortos.

Figura 4. Busto em homenagem à Elinas Fernandes. Uma homenagem de seus pais, irmãos e amigos. Foto: Thalles Chaves

Um quarto mecanismo é de iniciativa do poder público, é o gestor público pensando na decoração, no aformoseamento da cidade, como é o caso de uma talha do artista plástico Varela (Figura 5), da década de 1970 que se encontra na lateral frontal do prédio da Secretaria de Estado da Tributação, vizinho à igreja matriz de Mossoró. As obras de arte causam impacto na sociedade, produzem sentido e significado, guardam a história, relembram o passado, contribuem para que a história fique sempre viva na memória de quem passa, afirmando a identidade de um povo.

1387

A talha de Varela retrata três momentos importantes da história de Mossoró. A parte de cima retrata o fato de, em 1927, o estado do Rio Grande do Norte, se tornar o primeiro do país a permitir que as mulheres votassem nas eleições. Naquele mesmo ano, a professora Celina Guimarães, de Mossoró, se tornou a primeira brasileira a fazer o alistamento eleitoral. O quadro central da talha relembra que cinco anos antes da Lei Áurea ser assinada, Mossoró libertava seus escravos. Por fim, o último quadro representa a expulsão do bando de Lampião pelo então prefeito Rodolfo Fernandes.

Figura 5. Talha do artista Varela, localizada no centro de Mossoró. Década de 1970. Foto. Thalles Chaves.

Finalmente, como quinto mecanismo, temos a lei municipal Nº 427/89 de 06 de junho de 1989, que obriga construções acima de mil metros quadrados381 terem uma obra de arte, como é o caso da artista plástica Nôra Aires (Figura 6), que realizou um mosaico representativo da flora da região em 2002 situado numa praça da avenida João Marcelino, em frente à sede do Serviço Social do Comércio – SESC Mossoró.

381

Construções destinadas ao uso coletivo, inclusos condomínios residenciais, supermercados, praças, prédios públicos, hospitais, hotéis, motéis, bares, etc.

1388

Figura 6 – Mosaico da Artista Plástica Nôra Aires, avenida João Marcelino, 2002. Foto: Thalles Chaves

A identidade e as obras de arte À primeira vista, a identidade é simples de se definir, quando falamos de identidade nos remetemos à sensação de pertencimento, de identificação com algo, ela é aquilo que se é, nós somos de um lugar, de uma região, pertencemos a um grupo social, trabalhamos com “isso” ou “aquilo”, através das identidades as pessoas se ligam, se reconhecem, têm coisas em comum. “Precisamos de relacionamentos, e de relacionamentos em que possamos servir para alguma coisa, relacionamentos aos quais possamos referir-nos no intuito de definirmos a nós mesmos” (Bauman, 2005: 75). Quando Euclides da Cunha (1902 - 2003) diz que o sertanejo é “antes de tudo um forte”, ele contribui com a construção da identidade de um povo que resiste e luta contra as adversidades da vida, ele cria a imagem de um povo guerreiro que não se deixa abater com as dificuldades, consequentemente os nordestinos com todo o seu histórico de lutas contra a seca e a opressão política se identifica, se achando um próprio personagem de “Os Sertões”, com a frase do Jornalista/Cientista que presenciou parte da guerra de Canudos à serviço do jornal O Estado de São Paulo. A identidade não existe a priori, ela é criada, construída, necessária, segundo Bauman (2005) a identidade é uma invenção e 1389

não algo a ser descoberto, para Gregolin (2007) as identidades são construções discursivas, “os sujeitos são sociais e os sentidos são históricos, os discursos se confrontam, se digladiam, envolvem-se em batalhas, expressando as lutas em torno de dispositivos identitários” (Gregolin, 2007: 17), e elas, as identidades precisam ser afirmadas, repetidas e lembradas o tempo inteiro, elas são produzidas por um trabalho discursivo contínuo, a fim de se cristalizarem no inconsciente coletivo da sociedade, essa repetição, que faz parte do processo de produção da identidade está ligada ao que Judith Butler (1999) chama de performatividade, quando um enunciado, um acontecimento tem efeitos de desdobramentos consequênciais, levam a uma implicação, ajudam na construção da identidade, de tanto se falar, acaba se tornando natural. As obras de arte públicas de Mossoró funcionam como esse lembrete, como a afirmação da cultura, de aspectos relevantes do lugar, ajudam na construção da identidade, produzem identidade. Mas Os símbolos que compõem uma identidade social não são construções arbitrárias ou aleatórias, mantêm determinados vínculos com a realidade concreta, determina aspectos da vida em sociedade (SERPA, 2007: 20) Existem fatos marcantes da cultura de Mossoró que fazem parte da identidade do povo, as sociedades buscam elementos significativos de sua história, fatos que reforçam afirmações de identidades, podemos encontrar várias obras que se repetem, reforçando as identidades culturais, retratando esses fatos, ser um dos primeiros lugares do país a abolir a escravidão, o voto feminino, o conflito com os cangaceiros, a produção de sal, melão, petróleo, assim como a fauna e a flora da região, são retratadas nas obras de arte que se encontram inseridas nos espaços públicos da cidade, esses temas vão se repetindo, em vários locais encontraremos obras sempre falando dos mesmos temas que fazem parte da identidade do povo da região, as obras estão lá se relacionando com o espaço, com o meio urbano, e quando são percebidas, com as pessoas que habitam esse meio urbano e 1390

dialogam com essas obras que lhes fazem lembrar quem são, para que não esqueçam, portanto não existem falsas identidades, tampouco identidades verdadeiras, o que existe são identidades. Podemos considerar esses fatos históricos de Mossoró, mitos fundadores que constroem identidades. Fundamentalmente, um mito fundador remete a um momento crucial do passado em que algum gesto, algum acontecimento, em geral heroic, épico, monumental, em geral iniciado ou executado por alguma figura “providencial”, inaugurou as bases de uma suposta identidade nacional. Pouco importa se os fatos assim narrados são “verdadeiros” ou não; o que importa é que a narrative fundadora funciona para dar à identidade nacional a liga sentimental e afetiva que lhe garante uma certa estabilidade e fixação, sem as quais ela não teria a mesma e necessária eficácia (Silva, 2012: 85).

Mas no mundo pós-moderno, as identidades não são vistas tão bem definidas como eram na modernidade, elas estão se deslocando, para Bauman (2005) a construção da identidade assumiu a forma de uma experimentação infindável. Os experimentos jamais terminam. Assumimos uma identidade num determinado momento, mas muitas outras, ainda não testadas, estão na esquina esperando nós as escolhamos. Muitas outras identidades não sonhadas ainda estão por ser inventadas e cobiçadas durante as nossas vidas. Nós nunca saberemos ao certo se a identidade que agora exibimos é a melhor que podemos obter e a que provavelmente nos trará maior satisfação. As identidades do mundo contemporâneo estão fragmentadas, Hall (2011) aponta que o sujeito pós-moderno está se compondo de várias identidades, ele assume diferentes identidades em diferentes momentos. O mundo está mais interconectado, a globalização está deslocando as identidades culturais. Quanto tempo dura uma identidade típica da modernidade líquida em que ela se descentra e é substituída por outras? As obras de arte públicas que atravessam o tempo no espaço, sólidas e duradouras como são, ajudam a preservar identidades, pois elas estão lá presentes no cotidiano da cidade às vezes por um século até, nos lembrando dos 1391

acontecimentos do passado, que nos identificamos, nossa história, afirmando quem somos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A cidade é um museu vivo, uma galeria de arte a céu aberto, onde as mais variadas manifestações e estilos artísticos se encontram, como um livro caído nas mãos de uma criança que passa as páginas ao sabor do vento. Foram identificados cinco mecanismos de fomento da produção de obras de arte pública na cidade de Mossoró que contribuem para a construção da identidade das pessoas e do lugar. Um primeiro, são os artistas independentes. A segunda ocorrência se dá por iniciativa de “mecenas”. A terceira incidência, chamamos de “Filo mnésica”. Um quarto mecanismo é o gestor público, anterior à lei municipal Nº 427/89 de 06 de junho de 1989, figurando como o quinto elemento, que obriga construções acima de mil metros quadrados terem, em lugar de destaque, uma obra de arte. Assim como os espaços, as obras de arte públicas são fatos sociais, elas habitam os espaços dando significados a eles e fazem parte do imaginário coletivo, são ícones, necessárias, contam histórias. Elas também são expressões e representações subjetivas de artistas, funcionando como um canal de comunicação. As obras de arte analisadas, inseridas nos espaços públicos de Mossoró, produzidas através dos vários mecanismos identificados, são representativas dos processos identitários, ajudam na construção das identidades das pessoas e do lugar ao passo que preservam essas identidades, elas contam e preservam a história do lugar, atuando como espelho da sociedade, mostrando como somos, como vivemos, nosso clima, nossa fauna, nossa flora, nossa história, nossa cultura. A identidade é uma criação social e cultural, as identidades por serem construções discursivas, precisam ser afirmadas e reafirmadas, 1392

não existindo assim uma identidade verdadeira nem uma falsa, já que são construções, existem apenas identidades.

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1394

MUTIRÃO DE GRAFITE COMO FORMA DE AÇÃO SOCIAL E POÉTICA DE JOVENS GRAFITEIROS NA CIDADE DE BELÉM-PARÁ Leila Cristina Leite Ferreira382

RESUMO: Este artigo é resultado da minha pesquisa de mestrado em Antropologia ainda em andamento e tem como objetivo realizar uma etnografia do projeto “Mutirão de grafite” para assim estudar a sociabilidade desses jovens a partir da arte e de sua criatividade para realizar criticas sociais dentro das periferias de Belém. A pesquisa foi realizada a partir de uma observação, entrevistas e a realização de uma etnografia a respeito do projeto “Mutirão de grafite”, especialmente em dois momentos, o “I e o II Mutirão de Grafite”, que foram organizados respectivamente nos bairros do Tapanã e Guamá na cidade de Belém. PALAVRAS-CHAVE: grafiteiros, mutirão de grafite, criatividade.

1- INTRODUÇÃO Este artigo é resultado da minha pesquisa de mestrado em Antropologia ainda em andamento. Ele tem como objetivo realizar uma etnografia do projeto “Mutirão de grafite” para assim estudar a sociabilidade de jovens a partir da arte e de sua criatividade ao realizarem criticas sociais dentro das periferias de Belém. A pesquisa foi realizada especialmente em dois momentos, o “I e o II Mutirão de Grafite”, que foram organizados respectivamente nos bairros do Tapanã e Guamá na cidade de Belém. O grafite é uma arte de rua e também é um dos elementos do Movimento Hip383 Hop (Borda, 2008) e em Belém é produzida por uma juventude que se encontra na maioria dentro do contexto das periferias da cidade. Esses jovens organizam mensalmente um evento que 382

Graduada em Ciências Sociais (UFPA), Mestra em Ciências Sociais (UFPA). É sócia da Associação Brasileira de Antropologia. Pesquisadora do Visagem: grupo de pesquisa em Antropologia Visual e da Imagem. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas com Crianças, Infâncias e Juventudes. [email protected]. 383 O Movimento Hip Hop é formado por quatro elementos, o grafite, o DJ, o Mc e o b’boy.

1395

denominam de “Mutirão de grafite”. Esse evento propõe levar o grafite para as periferias da cidade e fazer com que crianças e jovens desses bairros tenham seu interesse despertado para o grafite e todo o Movimento Hip Hop como uma alternativa viável de arte para se dizer o que quer através das artes plásticas, a música e a dança. E aí se observa um importante momento da sociabilidade (SIMMEL, 1983) entre os jovens grafiteiros, artistas que estão nas ruas e que além de discutir e produzir a arte são também pessoas que usam essa arte para discutir o social que buscam criticar com criatividade e arte. Os “Mutirões” ocorrem dentro das muitas periferias da cidade e vão em espaços que não são pensados por outros movimentos como alvo

importante,

pois

as

ruas

dessas

periferias

escolhidas

são

consideradas mesmo inacessíveis e de alta periculosidade.

2- O GRAFITE: UM CONCEITO Em minhas pesquisas pude perceber que em Belém grafite é uma arte de rua realizada em sua grande maioria por jovens moradores de periferia e que estão em todas as partes das grandes cidades, inclusive o centro através de seus grafites que estão nos muros e paredes espalhados e colorindo tudo. Mas, o grafite também é um elemento do Movimento Hip Hop. Esse Movimento teve inicio na década de 1960 nos Estados Unidos como uma reação a violência que a juventude pobre daquele país via cotidianamente nas ruas onde morava, então ao invés de ser o algoz dessa violência, os jovens resolveram ouvir música e dançar, então a arte plástica, no caso o grafite, também se juntou e trouxe com ela a possibilidade de levar a um maior número de pessoas a sua visibilidade, pois era realizada nos metrôs que passavam por toda a cidade levando sua assinatura (BORDA,2008).

1396

E

conseguiam

mesmo

chamar

a

atenção

das

pessoas,

principalmente das autoridades. E foram vários os prefeitos da cidade que gastaram muito dinheiro para mandar limpar as paredes dos metrôs e das casas para que essa visibilidade se apagasse, mas os jovens resistiram e o grafite está mais do que vivo e visível em todas as grandes cidades do mundo (BORDA, 2008). Em sua dissertação de mestrado intitulada “Palavras sagradas. Rimas e experiências: uma tentativa de compreensão sobre cristianismo pentecostal, rap e antropologia.” Bruno Borda fala do inicio do Hip Hop enquanto um movimento cultural negro que começou suas primeiras manifestações nos bairros marcadamente de pessoas negras, “A cultura Hip Hop tem suas origens nos imigrantes jamaicanos, que se instalaram no Bronx e Harlem (Bairros negros de Nova Iorque), entre eles o que ficou mais conhecido, o DjKoolHerc, que trazem para os guetos nova-iorquinos o costume das festas promovidas nas ruas, onde para animar o público eles falavam em cima dos breaks da música, nascia assim o RAP. Esse estilo oral era, e ainda é, baseado em vocal falado, pelo MC ou Mestre de Cerimônias, em forma de “crônica” que utiliza samples eletrônicos como base musical.”

E o Hip Hop se espalhou rapidamente pelo mundo ganhando seguidores ainda na década de 1960, tendo características muito especificas em cada país. No caso do Brasil também chegou nessa mesma época, primeiro em São Paulo e Rio de Janeiro e mais tarde nas outras

regiões,

tendo

claro,

cada

Estado

suas

características

particulares como ocorreu nos outros países. Em Belém o grafite chegou na década de 1980 com a exibição de alguns filmes como “Os selvagens da Noite” que no original é “The Warriors”. Esse filme mostra as gangues de Nova York reunidas em torno de um líder para que tomem conta da cidade, porém, ele é morto e a gangue que dá nome ao filme “Warriors” é acusada de atirar e matar o líder. Então a reunião acaba em tumultuo com a presença da policia e as gangues rivais que ali se reuniam em uma trégua temporária começaram a brigar e perseguir os “Warriors” que fugiam tentando 1397

chegar ao seu bairro, onde só ai poderiam se proteger. E foi a partir desse e de outros filmes que os jovens começaram a organizar as gangues e as pichações com sua assinatura, acentuando a violência e estabelecendo o domínio sobre determinadas áreas da cidade como sendo suas. Lugares onde outras gangues não poderiam passar ou então se começaria uma guerra. Em sua dissertação de mestrado “Nem Anjos nem demônios! Etnografia das formas de sociabilidade de uma galera de Belém”, Mario Brasil Xavier nos esclarece que o termo gangue na verdade é usado pelas instituições governamentais que de alguma forma se relacionam com esses jovens. Ele diz que os grupos se autodenominam “galeras” e que “gangue” se deve ao fato da constante violência provocada por esses jovens em determinados ambientes ou como forma de proteção e de poder diante de outros grupos. O autor ainda chama atenção para o envolvimento desses jovens com a violência. Xavier relata vários momentos em seu trabalho em que os jovens entraram em conflito com as gangues rivais para que protegessem o domínio de seu território, não deixando assim que seus rivais conseguissem nem mesmo atravessar a rua onde estavam organizados mesmo que esses morassem dentro do mesmo bairro. E essas brigas quase sempre resultavam em ferimentos graves ou mesmo em mortes de integrantes dessas galeras. Izabela Jatene de Souza, no seu artigo “Sociabilidade urbana entre jovens de baixa renda. Estudo de caso sobre gangue”, publicado no livro “Sociabilidade. Espaço e Sociedade” faz uma etnografia (no ano de 2004) de uma gangue do bairro da Sacramenta, chamado de “Os Intocáveis”. A autora fala a respeito da organização dessa gangue, a forma como ela está relacionada com a violência, a pichação e a tomada de território. A pichação é importante para os participantes daquela gangue que chegam a treinar o seu traço em qualquer objeto 1398

que esteja próximo, como caderno, carteira escolar, tudo para que consigam melhorar o traço e façam uma pichação cada vez mais bonita. A pichação e o grafite tem um mesmo significado nesse trabalho, os dois são tidos como arte. Pois aqui estou procurando fazer uma análise dos jovens que estão vivenciando os coletivos, vivem nas periferias

e

enfrentam

as

mesmas

dificuldades

de

moradia,

escolaridade, saúde e violência, representativos do descaso do poder público dentro das periferias de Belém. Em Belém os grafiteiros estão organizados em crews, que diferente das

gangues

não

estão

envolvidas

em

violência,

mas

estão

preocupadas, além de realizar o grafite como uma arte, também em fazer atividades que envolvem questões sociais e preocupação com outros jovens que tem ainda menos oportunidades que eles no que diz respeito ao acesso ao conhecimento. Então, uma crew denominada “Cosp Tinta Crew” se organizou com outros elementos do Movimento Hip Hop e criou o projeto “Mutirão de Grafite”.

3- MUTIRÕES DE GRAFITE: AÇÃO SOCIAL E POESIA NAS PAREDES “Mutirão de Grafite” é um projeto da crew “Cosp Tinta” que elaborou pensando na falta de conhecimento que a maioria da juventude e das crianças tem a respeito do Movimento Hip Hop e a preocupação com a situação de exclusão onde estão inseridos. O “Mutirão” tem como objetivo levar o grafite e o Hip Hop as várias periferias de Belém durante todo o ano de 2012. Será um por mês e alguns já ocorreram. E aqui faço a etnografia de dois momentos em que estive presente e consegui observar a dinâmica que ali estava envolvida. O “I Mutirão de Grafite”foi organizado e realizado no bairro do 1399

Tapanã onde mora o grafiteiro Ed, um dos integrantes da Cosp Tinta Crew. Esse grafiteiro construiu no terreno da casa de sua mãe, onde mora, um espaço para os grafiteiros, denominada de “Casa do Grafite”. Um espaço onde os grafiteiros e outros integrantes do Movimento Hip Hop se reúnem para organizar suas atividades, vender seus materiais, como boné, camiseta, bermuda, etc. além de oferecer oficinas para jovens e crianças dentro do bairro. O “I Mutirão” ocorreu no dia 22 de janeiro de 2012, pela manhã. Foi um domingo de muito sol pela manhã e muita chuva a partir do meio dia. Quando cheguei programação já tinha começado e algumas casas da rua já estavam sendo grafitadas. Cumprimentei alguns conhecidos e abri minha sombrinha para fugir daquele sol insuportável, mas o céu começava a escurecer e a chuva anunciava a sua chegada. Então comecei a registrar o que deu antes que a chuva tomasse conta. Ao som estava o Dj Don Perna e muitas pessoas apenas observavam. Não eram moradores do local, mas sim convidados que estavam ali para admirar a grafitagem e a música que era tocada. Os moradores das casas pareciam ter desaparecido, não tinha muitas portas e janelas abertas para as pessoas acompanharem o que acontecia. Apenas duas casas estavam abertas, mas não pela programação.

Uma delas era pela piçarra que estava sendo

carregada para lá. A outra porque estava com o som colocado na calçada. Na

avaliação

das

pessoas

que

estavam

envolvidas

na

organização foi tudo muito positivo. Na hora em que a chuva começou aproveitaram para servir a feijoada e todos se aglomeraram em torno da mesa para tentar fugir da chuva e pegar seu prato, foi um momento sem muitas conversas, as pessoas apenas mastigavam sua fome para logo em seguida sair para a chuva que tinha começado a amenizar. Os 1400

grafiteiros pararam aos poucos para comer e não abandonaram a lata por causa da chuva ou do almoço. Apenas deram um pequeno intervalo para se alimentar e voltaram para as paredes e seus desenhos. A música também não parou em nenhum momento. O som estava em uma das casas que estavam sendo grafitadas e coberto por lona, os dj’s escolhiam as músicas que achavam que mais poderia agradar e segundo o dj Rg, também estimular a imaginação dos grafiteiros. Mas, não foi só grafite que fez o Mutirão, também tinha por ali muitos mc’s, que também são grafiteiros e aconteceu uma disputa de mc’s, o que ocorre em todas as programações do Hip Hop. A disputa foi feita em meio a chuva e a lama, piçarra que estava sendo carregada ali perto fez acentuar o problema da rua que já tem vários buracos e a falta de esgoto da rua. O segundo “Mutirão” ocorreu em fevereiro de 2012 no bairro do Guamá e também foi organizado pela crew “Cosp Tinta” com a colaboração do Coletivo “Casa Preta”384, do Dudu do Skate385 e o Bar do Fumaça, um bar localizado na “Rua dos Pretos” ou “Rua Bom Jesus 1” onde o evento ocorreu e o espaço do bar foi cedido para que se pudesse colocar o som e a radio comunitária no ar. Ali também foi servido o almoço e as paredes foram grafitadas. Ao chegar ao local da grafitagem na companhia de meu amigo Rui, sua esposa Juliene e nossa amiga Meirielém a programação já havia iniciado e o sol das onze e meia da manhã maltratava bastante. Algumas paredes já estavam grafitadas e muitas pessoas estavam ali presente. Algumas apenas olhavam a programação enquanto a maioria estava na organização montando o som, grafitando ou

384

O coletivo “Casa Preta” é um coletivo envolvido com o Movimento Negro em Belém e discute as questões que envolvem também o Movimento Hip Hop enquanto uma cultura negra. Ele também é um espaço físico, uma casa localizada no bairro de Canudos onde moram os integrantes do coletivo e onde ocorrem as reuniões e algumas oficinas. 385 Dudu do Skate é um jovem skatista e organizador de eventos que também colabora com a crew “Cosp Tinta” para que ocorram os Mutirões.

1401

arrumando o espaço do bar para receber o almoço que estava sendo preparado em outro local. Então fui procurar as pessoas e me informar sobre como as coisas estavam e começar a fazer as fotos e filmagens relacionadas à minha pesquisa. Nesse dia diferente do que ocorreu no Primeiro Mutirão alguns moradores, principalmente os jovens estavam presentes observando curiosos o que estava acontecendo e as crianças também e como sempre bem mais curiosas e atentas a cada traço que os grafiteiros davam nas paredes. Os olhares eram os mais concentrados possíveis e muitas perguntas eram feitas, inclusive uma participação mais direta que ocorreu nesse dia por parte de um morador foi quando um jovem pediu uma lata de spray e pichou por cima dos grafites que já estavam prontos em um portão de ferro de uma casa. Quando acabou a pichação, que foi uma assinatura com um número, provavelmente da casa onde mora, o rapaz pegou uma bicicleta e saiu correndo com a lata de spray do Ed dizendo que iria aproveitar para pichar em outros lugares. O “Bar do Fumaça” ficou a disposição o tempo todo que durou a programação para que as pessoas pudessem usar o banheiro e guardar seus materiais, além do mais, alguns grafiteiros como o Graf, o Dedeh e o Rogério estavam grafitando as paredes do bar. Toda essa movimentação aconteceu durante uma hora entre onze e meia quando cheguei e o meio dia e meio quando o almoço começou a ser arrumado sobre as mesas organizadas dentro do bar. O Fumaça não parava, providenciando pratos, copos e tudo o que era necessário para que o almoço não tivesse nenhum problema. A comida era feijoada e também foram servidos alguns refrigerantes para que a sede fosse amenizada. Logo que iam acabando o almoço cada um voltava as suas atividades e como ao contrário do evento de janeiro nesse dia não choveu, foi possível 1402

aproveitar o máximo de tempo possível para realização das atividades, que não eram apenas o grafite. O “Bar do Fumaça” além de ter ajudado a comportar tudo o que já foi dito também serviu para que as meninas colocassem algumas cadeiras e uma faixa para oferecer oficina de tranças afro. E ai as crianças ganharam o cenário se colocando em fila para fazer as tranças, uma fila que perdurou até o final da programação e ao contrário do “Mutirão” não acabou com muita satisfação, pois a menina que resistiu até as seis da tarde trançando não deu conta de todos os cabelos e muitas meninas saíram dali decepcionadas. Umas três horas da tarde foi o momento em que ocorreu a batalha de mc’s386. Nesse momento muitas pessoas se reuniram em volta e a grande maioria eram moradores que participaram rindo e até mesmo chegando a tentar fazer a sua própria disputa, o que não deu muito certo, pois estavam bêbados e tudo foi levado muito a sério. Essa participação fez um diferencial em relação ao primeiro evento onde a ausência dos moradores se fez perceber. No entanto é importante ressaltar que no dia em que aconteceu o primeiro evento no bairro do Tapanã a chuva permaneceu durante toda a programação então não foi possível observar o interesse ou indiferença realmente por parte dos moradores. Ao término da programação logo após a batalha de mc’s, o cenário começou a mudar e entre cinco e seis horas da tarde o “Bar do Fumaça” deixou de ser o espaço do Mutirão de Grafite para se tornar um bar realmente com pessoas bebendo e outras casas que também vendiam bebidas se abriram e a movimentação na rua toda começou a ter um outro objetivo e uma nova perspectiva de diversão foi posta a visão de todos. A “Rua dos Pretos” na verdade não tem esse nome, oficialmente 386

A batalha de mc’s é um momento em que os mc’s se reúnem e de dois em dois são colocados um em frente do outro e começam a disputar na rima para ver quem é o melhor.

1403

ela se chama “Rua Bom Jesus 1”. Uma rua localizada na fronteira entre os bairros do Guamá, Terra Firme e Canudos, lá predominantemente os moradores são oriundos do Estado do Maranhão e são negros. E segundo Dona Ana Guedes, que mora na rua há mais de trinta anos, esse é o motivo pelo qual as pessoas dizem ter medo de se aproximarem da rua, segundo me contou em entrevista, os habitantes da cidade de Belém do Pará estigmatizam todos que moram ali como bandidos, o que ela afirma não ser verdadeiro, pois ali moram trabalhadores como sua família, que é constituída por pessoas honestas. E essa rua foi escolhida como cenário para a realização do “Segundo Mutirão de Grafites”, mesmo sem as pessoas saberem direito qual o seu endereço. Quando anunciada a programação na internet pela rede de relacionamentos “facebook”, ela foi colocada dentro do bairro da Terra firme e isso causou muita confusão na hora de procurar a rua, pois ela fica como dito acima, dentro do bairro do Guamá, porém como fica na fronteira as pessoas confundem sua localização correta. A crew “Cosp Tinta” e o “Coletivo Casa Preta” realizaram a programação ali pela história de discriminação e por conhecerem o “Bar do Fumaça” já que ali é um espaço onde se pode ouvir reggae e o dono se disponibilizou a colaborar na organização. O nome “Rua dos Pretos” deriva justamente do preconceito das pessoas, pois como ali a maioria das pessoas são negras, quando alguém se refere a rua fala de dizendo que é a “Rua dos Pretos”, como Dona Ana enfatizou. Aquela é uma rua de periferia e como muitas outras carrega consigo o estigma de ser um lugar onde não é possível passar, onde as pessoas representam um perigo eminente e não são dignas de nenhuma confiança, principalmente pela cor de sua pele. A “Rua dos Pretos” é asfaltada e possui um certo saneamento, pelo menos aparentemente. Pois, naquele dia não choveu e não foi 1404

possível observar nada nesse sentido. A presença das pessoas durante todo o Mutirão de Grafite fez um grande diferencial, no entanto, mesmo ali o envolvimento das pessoas com a programação foi mais como observador atento e curiosos de toda aquela novidade não muito comum e que lembrava muito as ruas de lazer que ocorriam nos anos de 1990 e que foram pesquisadas por Antônio Mauricio da Costa em sua dissertação de mestrado intitulada “Lazer na ocupação: um estudo da sociabilidade de integrantes de uma associação de moradores na periferia de Belém em 1997”. O autor trabalha ai uma área denominada de Bosquinho dentro do bairro da Terra Firme, analisa através da associação de moradores “Unidos na Luta” como se dar o lazer dentro da perspectiva dos moradores daquela área. Em seu trabalho o pesquisador demonstra as diversas maneiras que as pessoas daquela comunidade tem para realizar suas atividades de lazer e dentre muitas existe a rua de lazer, uma atividade que segundo ele era comum nas periferias de Belém. Na rua de lazer os moradores das ruas envolvidas organizam disputas diversas como de dança, de futebol, de capoeira etc., onde se vivencia momentos de lazer. O lazer é visto como algo oposto ao trabalho e ao estudo e relacionado diretamente com prazer e diversão se opondo as preocupações cotidianas e é tico como algo de extrema importância para os moradores daquele bairro e principalmente da área do Bosquinho onde o autor pesquisou e que se queixavam da falta de espaços de lazer. Os jovens estavam envolvidos diretamente nesse momentos de lazer, participavam nas mais diversas modalidades de disputa representando sua rua. No caso dos “Mutirões de grafite” a rua fica também tomada por jovens que promovem um dia inteiro do que se pode caracterizar como lazer, pois ali estão presentes a música, o grafite e etc. Porém, um 1405

grande diferencial entre esses dois momentos é que as pessoas que organizam os “Mutirões” não são não são necessariamente moradores da rua onde o evento está acontecendo, como foi no caso da “Rua dos Pretos” onde as pessoas ali envolvidas na organização não movam lá, eram moradores de diversos bairros de Belém e que faziam parte da crew “Cosp Tinta” ou da sua rede de sociabilidade, como no caso do Coletivo Casa Preta. Uma outra diferença é que durante o “Mutirão de Grafite” não acontecem disputas entre os participantes. O único momento que se aproxima disso é quando da “Batalha de MC’s” quando diversos mc’s disputam através da rima num momento próximo do que se faz nos repentes nordestinos, para ver quem tem uma rima mais bonita. No entanto, mesmo ai não ocorre o envolvimento direto dos moradores que mais são vistos como observadores do movimento do que como integrantes diretos. O que vem a contradizer de certa maneira os objetivos dos grupos envolvidos na organização do evento, pois eles dizem pretender com esses momentos um envolvimento da comunidade no sentido de levar o hip hop e principalmente o grafite como uma possibilidade de escolha artística e social, principalmente das crianças e jovens daquelas ruas onde o evento ocorrerá. No entanto é importante observar que os organizadores pretendem realizar uma programação por mês e em lugares diferentes para que pelo menos doze bairros sejam alcançados. Essa característica também é um diferencial em comparação com as ruas de lazer, pois ela não tem a repetição que faz com que as pessoas consigam se reconhecer e se aproximar da programação para uma participação mais direta e constante. Porém, a importância nesse tipo de organização cultural se destaca pelo seu ineditismo dentro de uma metrópole como Belém onde as pessoas estão muito mais preocupadas com o individualismo do que com o coletivo. 1406

Simmel (1976) em seu texto intitulado “A Metrópole e a vida Mental” analisa a maneira como as pessoas estão vivendo dentro da metrópole moderna e de que maneira elas se relacionam com a cidade e umas com as outra. Ele aponta para a questão da individualidade e da antipatia que as pessoas tem umas pelas outras diante a multidão encontrada dentro das grandes cidades e que tornam as relações distantes e sem a profundidade que existe dentro de uma cidade pequena no meio urbano. Segundo ele a cidade grande vive uma realidade onde o mais importante é o dinheiro, o que faz com que as coisas sejam vistas a partir do ponto de vista do quanto valem em dinheiro sem levar em conta outros valores que ali poderiam estar implicados, não ocorre ai um olhar para os objetos de forma diferenciada. Isso ele chama de maneira blasé de o homem metropolitano viver. Nessa maneira está por exemplo o fato de esse homem não se assustar mais com as mudanças provocadas cotidianamente pela vida urbana. Mas, ele acentua que tudo isso é a forma como as pessoas se socializam dentro da cidade grande. Ou seja, sem identificar ali a qualidade tão importante para as pessoas da cidade pequena. Assim ele diz que uma pessoa da cidade grande não suportaria viver numa cidade pequena onde a agitação diária não estivesse presente e todos estivessem atento a sua vida. No caso de minha pesquisa realizada numa cidade grande denominada Belém do Pará, onde as pessoas vivenciam uma realidade muito próxima daquela que Simmel descreve em seu texto, eu busco especificamente pesquisar sobre os jovens grafiteiros que estão inseridos em todo um contexto de arte e de grande metrópole. Jovens que buscam na arte também uma luta social por melhores condições de vida. Esses jovens estão convivendo com uma extensa rede de 1407

sociabilidade que torna possível a realização dessas programações como o “Mutirão de Grafite” e que faz com que seu contato com as comunidades que estão localizadas nas periferias de Belém seja concreto. Com essas programações os grafiteiros levam até outros jovens e crianças, principalmente, a arte do grafite e de todo o Movimento Hip Hop tentando fazer com que chegue até eles uma nova alternativa para dizer o que pensam e o que querem com sua arte. No entanto ainda precisam fazer com que esse contato seja mais intenso do que o simples momento da programação que dura apenas um dia e no próximo mês é levado a outro bairro.

CONCLUSÃO O “Mutirão de Grafite” é um importante momento para os jovens grafiteiros de Belém. Pois representa uma iniciativa cultural e social que representa toda uma preocupação política que estes tem com as condições em que estão inseridos e a maneira como estão vivendo e vivenciando essa realidade da metrópole que se mostra tão volátil aos olhos de seus habitantes. Essa programação mensal é o resultado de esforços dos coletivos ali envolvidos e que sem patrocínio se esforçam no sentido de colocar em pratica sua arte e seus pensamentos através dela. No entanto, é importante salientar que não é possível observar uma relação concreta entre os grafiteiros e as comunidades onde esses eventos são realizados, o que

não significa que são

ações

inválidas

política-artistica-

socialmente. Pelo contrário são ações que levam o individuo a perceber de perto outras realidades sociais e que mostram que não estão sozinhos no enfrentamento dos problemas da grande cidade que é Belém. E 1408

também perceber que outros jovens convivem dentro desse contexto e estão ali observando a movimentação dos artistas sem no entanto se aproximarem muito nem mesmo para fazer perguntas. Os grafiteiros são o que Becker (....) chama de outsiders, pois estão isolados dentro de seus grupos e buscam reforças essa “qualidade” quando não conseguem mesmo em seu discurso realizar seu objetivo de colocar em contato outros jovens com o seu grafite para que possam ver que também podem fazer arte. Pois isso fica dentro de um distanciamento físico que não condiz com que dizem querer. É preciso ainda muito esforço por parte desses jovens grafiteiros para que alcancem realmente seus objetivos artísticos-politicos-sociais. Pois ao final da programação os grafites ficam, mas o que se instala é o silencio e o distanciamento das comunidades envolvidas ou invadidas pelos “Mutirões”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BORDA, B. G. dos S. Palavras sagradas, rimas e experiências: uma tentativa de compreensão sobre cristianismo pentecostal, rap e antropologia. Dissertação de mestrado em Antropologia. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais.UFPA, 2008. BECKER, H. S. Outsiders. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. COSTA, A. M. D. Lazer na ocupação: Um estudo da sociabilidade de integrantes de uma associação de moradores na periferia de Belém em 1997. Dissertação de mestrado emAntropologia.Programa de PósGraduação em Ciências Sociais. UFPA, 1999 HILL, W. Os selvagens da noite (filme). 93min. EUA,1979. SIMMEL, G. Socilogia. São Paulo: Ática, 1983 SOUZA, I.J. Sociabilidade urbana entre jovens de baixa renda: estudo de caso sobre gangue. In D’INCAO, M.A. (ORG.). Sociabilidade. Espaço e 1409

sociedade. São Paulo: Grupo Editores, 1999. XAVIER, M. J. B. “Nem anjos nem demônios! Etnografia das formas de sociabilidade de uma galera de Belém. Dissertação de mestrado do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais. UFPA, 2000.

1410

PARA PENSAR EM CINEMA ENQUANTO CAMPO DE PESQUISA Maíra Leal387

Resumo: O presente trabalho intenta mostrar como a Teoria dos Campos (da indústria cultural e Erudito) do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002) pode ser aplicada no estudo do cinema como produção cultural. A ideia é mostrar que a construção do cinema, a partir do ‘esquema de estúdios de Hollywood’ assim como descrito por Thomas Schatz em seu texto O Gênio do Sistema (1991) podem ser apreciadas a partir do conceito de campo, habitus, instituições, instancias consagradoras, presentes nos trabalhos A Economia das Trocas Simbólicas (1997) e A Distinção (2008) podemos perceber o cinema como um campo cujas trocas, mais que econômicas são simbólicas. Palavras-Chave: Cinema, Campo, Indústria Cultural, Trocas simbólicas.

APRESENTAÇÃO

O objetivo dessa comunicação é mostrar como o cinema mesmo fazendo parte da cultura geral é organizado de uma maneira particular e por isso é também um campo produtivo independente com suas regras e comportamentos esperados, instâncias consagradoras e relações conflituosas com outros campos. O que chamamos de cinema aqui é o conjunto de profissionais que reunidos (por um produtor ou diretor) para fazer um filme, que por sua vez, é feito com o objetivo de ser exibido em salas de cinema comerciais. Essa maneira de fazer filmes de cinema é uma das primeiras definições do campo, e mesmo que se aplique as mais diversas variações regionais desse campo (existe cinema sendo produzido em outros países: do Brasil à Alemanha há filmes produzidos sob o mesmo preceito), é o conjunto de regras imposto pela organização do cinema nos Estados Unidos que vamos usar como exemplo nesta comunicação. 387

Estudante do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (UFRN). [email protected].

1411

Usaremos filmes feitos neste país e personagens desse universo para mostrar como o conceito de campo do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930 – 2002) para explicar o funcionamento do cinema enquanto campo.

PARA PENSAR EM CINEMA ENQUANTO CAMPO DE PESQUISA

A história da vida intelectual e artística das sociedades europeias revela-se através da história das transformações da função do sistema de produção de bens simbólicos e da própria estrutura desses bens, transformações correlatas à instituição progressiva do sistema de relações de produção, circulação e consumo dos bens simbólicos (BOURDIEU, 2007. p. 99).

O sociólogo francês Pierre Bourdieu inicia com esta afirmação o seu argumento em O mercado dos bens simbólicos no livro A economia das trocas simbólicas, (2007), no texto o autor sustenta que a história da vida intelectual e artística, ou como prefiro colocar, a história da cultura388 Ocidental, se estabeleceu a partir de mudanças da relação da sociedade com a cultura, o que levou ao estabelecimento bem definido da cultura e da arte como campos que se relacionam com outros campos, o econômico, por exemplo, através de trocas simbólicas. A cultura é, portanto, um campo com características e regras próprias. Mais a frente o autor nos apresenta dois campos distintos que segundo ele são bem definidos: o “campo da cultura erudita” e “o

388

Cultura é um conceito delicado e o aplico aqui no seu sentido mais histórico, no sentido de “cultivo ativo da mente” (i) um estado mental desenvolvido – como em “uma pessoa de cultura”, “uma pessoa culta”; (ii) os processos desse desenvolvimento – “interesses culturais”, “atividades culturais”(iii) Os meios desse processo – “as artes”, “o trabalho intelectual do homem” , “o modo de vida global.” (William, R.Cultura.2ª ed. 2000, São Paulo Paz e Terra, p. 11). Raymond Williams se ocupa da difícil definição da palavra em várias de suas obras especialmente em e Keywords (Keywords: A Vocabulary of Culture and Society .Taylor & Francis, 1976) e em cultura. Nelas ele explora as significações da palavra (em inglês, que divide a origem etimológica latina com o português) através da história, passando pelo romantismo

1412

campo da indústria cultural”. Bourdieu os diferencia da seguinte maneira O campo da indústria cultural especificamente organizado com vistas à produção de bens culturais destinadas a não produtores (“o grande público”) que podem ser recrutados tanto das frações não intelectuais das classes dominantes (“o público cultivado”) como nas demais classes sociais. Ao contrário do sistema da indústria cultural que obedece a lei da concorrência para a conquista do maior mercado possível o campo da cultura erudita tende a produzir ele mesmo suas normas de produção e critério de avaliação de seus produtos e obedece a lei fundamental da concorrência pelo reconhecimento propriamente cultural concedido pelo grupo de pares que são, ao mesmo tempo, cliente privilegiados e concorrentes (BOURDIEU, 2007. p.105).

O cinema, justamente por ser uma indústria cultural poderia muito bem se encaixar nessa definição de campo descrito acima. Porém, alguns movimentos artísticos dentro do próprio cinema, (desde a Nouvelle Vague389 francesa, o Neo-realismo até o Cinema Novo390), mesmo tendo começado por oposição política e estética a hegemonia da indústria cinematográfica estadunidense, logo atingiram o status de obras de arte e assim o cinema poderia ser também, um campo da cultura erudita. Propomos aqui fazer o exercício de entender o campo cinematográfico não do ponto de vista econômico e político, ao menos nesse momento, mas sob a ótica das relações sociais que são estabelecidas dentro desse campo. Relações essas, que em primeiro lugar, são simbólicas e que funcionam dentro de uma economia de troca. Parte dessas trocas acaba atingindo toda a produção de filmes, e mesmo que o nosso objeto não seja aquele cinema clássico americano, enxergar o filme através dos conceitos de cultura de

389

Nouvelle Vague quer dizer nova onda em português foi o movimento francês de cinema que revolucionou a maneira com que os filmes foram feitos e recebidos. O movimento teve seus dois ícones nas figuras de Françoise Truffaut e Jean-Luc Goddard que lançaram o cinema de autor em oposição à produção de um cinema apenas comercial. 390 Foi o maior movimento artístico cinematográfico do país. Influenciado pela Nouvelle Vague liderado por Glauber Rocha o movimento teve o seu momento mais importante

1413

Bourdieu, nos auxilia em uma compreensão das relações sociais e culturais que são estabelecidas em qualquer produção fílmica. As construções teóricas em geral, estudadas separadas da realidade social e dos fenômenos, se tornam reduzidas ao momento histórico em que apareceram ou mesmo aos exemplos citados pelo autor que constrói o conceito. Embora essa indústria estadunidense não seja a única indústria cinematográfica do mundo, foi o desenvolvimento dela nos Estados Unidos através de produções que ficaram conhecidas como de Hollywood391 e assim tornaram-se marcos hegemônico de produções cinematográficas. Essas produções se tornaram o símbolo de uma indústria cultural desenvolvida à maneira capitalista onde lucro é o objetivo e a produção de filmes é organizada metodicamente para atender as demandas do público, ou pelo menos assim ela nos faz acreditar. Envolta da produção de filmes de Hollywood se desenvolveu uma rede complexa de relações de vários tipos: pessoais, comerciais, artísticas e estéticas. Muitas delas baseadas na troca simbólica. Muitas das regras do cinema, enquanto campo determinam certos tipos de comportamento, o exemplo mais claro disso é o que acontece com os atores famosos, as estrelas. Certos tipos de comportamento são esperados desses atores, porque eles se tornam pessoas públicas e o que eles fazem podem se tornar fator determinante no sucesso de um filme assim como pode atrapalhar a bilheteria do mesmo. O caso recente do ator australiano Mel Gibson392 é um ótimo exemplo dessa relação acima citada. O ator conhecido pelo sucesso de bilheteria em Máquina Mortífera (Lethal Weapon, 1987) ficou

391

Hollywood era um subúrbio da cidade de Los Angeles nos EUA. O preço do terreno nessa região era extremamente barato quando os primeiros estúdios ali se instalaram. Eles precisavam de um espaço vasto para construir seus enormes galpões e o nome do bairro acabou se tornando o adjetivo compulsório de todos os filmes produzidos pelos estúdios locados nessa região, sinônimo de um tipo de filme e também do glamour de uma era. 392 Ator estadunidense de origem australiana famoso por estrelar filmes arrasa-quarteirão. ‘Mel Gibson’, IMDb [accessed 25 September 2012]

1414

conhecido por vários de seus trabalhos e recentemente esteve envolvido com um escândalo na sua vida pessoal – uma ligação do ator claramente alcoolizado, dizendo palavras de baixo-calão e ameaçando uma namorada. O ator teve consequências legais por suas atitudes. Entretanto, o campo cinematográfico esboçou suas reações próprias. Segunda a agência de notícias Reuters393 O agente de Gibson o abandonou, o seu filme Um novo despertar (The beaver ,2011) teve seu lançamento adiado por meses, e os atores da sequência do filme Se Beber não Case (Hangover II, 2011) se recusaram a trabalhar com ele por causa das suas afirmações sexistas e racistas nas fitas (onde se encontram as gravações feitas pela namorada do ator dos telefonemas dele para ela), embora esse não seja o único caso, apenas o mais recente a atingir as manchetes dos jornais, o espaço cinematográfico, como campo, tem regras próprias, algumas das quais não estão escritas em lugar nenhum – não há um manual de conduta dos atores de Hollywood – mas que, certamente, são esperadas, pois para pertencer a um campo um agente394 precisa conhecer e cumprir as regras do campo, mesmo que elas estejam inscritas apenas no habitus, que nada mais são do que as regras incorporadas a vida dos agentes. Basicamente o que Bourdieu entende por campo é um conjunto de organizações, regras, atitudes e comportamentos esperados que formam um organismo social autárquico: o campo. Esse, também possui instituições, que são os lugares em que as regras deste são explicitadas. Ele também possui agentes, estes são livres até certo ponto, porque se querem permanecer no campo tem obedecer a certas regras até o momento que tenham sido reconhecidos. Se acontecer assim, eles se 393

‘Mel Gibson Breaks Silence on Domestic Violence Scandal’, Reuters (Los Angeles, 22 April 2011) [accessed 20 August 2012]. 394 Agentes, habitus, regras do campo, ethos são conceitos usados por Pierre Bourdieu em suas obras, notadamente, A DISTINÇÃO CRÍTICA SOCIAL DO JULGAMENTO EDUSP (Zouk, 2008) e A ECONOMIA DAS TROCAS SIMBOLICAS (Perspectiva, 2007) para descrever o funcionamento e as características do campo. Mais à frente usaremos esses mesmos conceitos e os exploraremos dentro do campo do cinema.

1415

tornam autoridades, sumidades, que não se submetem às regras do campo tão somente, passam a ditar novas regras e são respeitados por todos dentro campo. A forma mais comum de um agente desse campo obter essa liberdade são as instancias consagradoras, em que um conjunto de autoridades do campo evidencia a habilidade técnica e o talento de um agente do campo, em forma de honras ou prêmios que elevam o status desse agente. Para ilustrar o cinema como campo vamos a alguns exemplos retirados do livro o Gênio do Sistema: a era dos estúdios de Hollywood (SCHATZ,1991)

e

também

alguns

dados

da

primeira

produção

hollywoodiana do cineasta brasileiro Fernando Meirelles, o filme O Jardineiro Fiel (The Constant Gardner, 2005). No primeiro o sistema de estúdios do cinema estadunidense é descrito de maneira bastante prática e fácil de entender. O filme de Meirelles é o primeiro grande sucesso de um diretor brasileiro à frente de uma produção do tipo. Escolhi o filme por perceber nele nuances que o distingue da obra anterior do próprio cineasta, Cidade de Deus (2002) tanto em estilo quanto em orçamento. A. Agentes do campo (na produção de O Jardineiro Fiel) Produtores (Jeff Abberley – produtor executivo, Julia Blackman - PE395, Simon Channing Williams – Produtor, Gail Egan – Co-Produtora; e outras sete pessoas creditas de acordo com a IMDB396); Diretores (Fernando Meirelles fez seu debut internacional nesse filme; César Charlone diretor de fotografia); Atores (Ralph Fiennes, Rachel Weisz), de uma lista de centenas

de

pessoas

creditadas

com

diferentes

funções

exclusivamente nesse filme397. b Instituições 395

Para facilitar a leitura inseri a sigla PE para todos os produtores executivos. IMDB significa international movie database, ou seja, Banco de dados internacional de filmes. É um dos sites com o maior número de informação sobre filmes (http://www.imdb.com/). 397 http://www.imdb.com/title/tt0387131/fullcredits#cast. 396

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Estúdios podem ser exemplos de instituições poderosas, na era de ouro de Hollywood398, por exemplo, era impossível fazer um filme fora do esquema da MGM, Paramount ou Fox399. C. Instancias consagradoras Todos os anos, por exemplo, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas entrega os Academy Awards, ou seja, os prêmios da academia, mais conhecidos no Brasil como Oscar, tem sido entregues anualmente desde 1927. D. Habitus É o conjunto de disposições dos agentes. Disposições essas que podem ser adquiridas pela convivência dentro do campo, algumas vezes forçadas pelo campo, e muitas vezes de maneira inconsciente e involuntária. Muitos desses habitus estão entranhados de maneira tão profunda em certas áreas que são difíceis desfazê-los. Por exemplo, a produção de filmes de gênero400. Na era de Ouro os estúdios começaram a realizar filmes que usavam fórmulas, formas estas que se tornaram bem conhecidos, e que são vitais ainda hoje. Exemplo disso são os filmes chamados de comédia romântica que criam um casal que se apaixona, apresenta um problema para esse casal que logo é resolvido e os pombinhos são felizes para sempre. Fazer filme de gênero 398

Hollywood é o nome de um subúrbio da cidade de Los Angeles no Estado da Califórnia dos Estados Unidos. A região ficou conhecida, porém, porque diversos estúdios de cinema se instalaram na região nas primeiras décadas do século passado. Os filmes produzidos por esses estúdios acabaram com a alcunha de filmes de Hollywood. Mais do que apenas uma maneira de adjetivar os filmes em relação ao local da sua produção dizer que um filme é de Hollywood é também remeter-se a um estilo de produção cinematográfica. 399 Estúdios estadunidenses que se estabeleceram na era de ouro do cinema de Hollywood: MGM MetroGoldwyn-Mayer (16 de abril de 1924), 20th Century Fox ou apenas Fox(31 de maio de 1935), Paramount (fundada em 1912, mas só tem o nome desde 1925.) etc. Originalmente integrante do Big Five (os cinco grandes) da era de ouro. Eram na verdade grandes galpões onde se montavam todos os cenários dos filmes. 400 Filmes de gênero são aqueles que se encaixam dentro de uma narrativa previsível. Existem vários gêneros: drama, thriller, policial, comédia etc. Em geral críticos de cinema, jornalistas e publicistas ligam um filme a um gênero para ajudar o público a saber o que esperar. Esse tipo de qualificação é muito usado pelos estúdios de cinema norte-americanos que se baseiam neles para lançar seus filmes. Ao mesmo esses gêneros podem se tornar limitações fortes para os artistas que desejam produzir filmes livres das limitações do gênero

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é um habitus porque ele é uma criação esperada. Algo que não entra de maneira nenhuma em conflito com o funcionamento e as regras de campo. E. Ethos & Hexis: O ethos é habitus incorporado pelo agente do campo. Enquanto a Hexis é o habitus na forma da postura e expressão. Ainda de acordo com Pierre Bourdieu, o habitus do campo incorporado no indivíduo, o exemplo que usamos acima. F. Autonomia do campo: Pode-se medir o grau de autonomia de um campo de produção erudita com base no poder de que dispõe para definir as normas de sua produção, os critérios de avaliação de seus produtos e, portanto, para retraduzir e reinterpretar todas as determinações externas de acordo com seus princípios próprios de funcionamento (BOURDIEU, 2007, p. 106).

Talvez seja no grau de autonomia que o cinema pareça ser mais frágil enquanto campo. Do ponto de vista do campo erudito de produção cultural a indústria cinematográfica hollywoodiana não é tão autônoma assim, ela precisa vender os seus filmes, lucrar com eles, para justificar o dinheiro investido e dar lucro a esses investidores. Nesse sentido, observamos que os filmes mais artísticos, avantguard401 tem um grau de autonomia maior, porque embora não dispensem o lucro advindo das bilheterias, não é isso que o transforma em uma obra de sucesso. O reconhecimento dos pares, do “público cultivado”, dos críticos e dos festivais são as formas de reconhecimento mais importantes para esse tipo de filme. Mesmo assim, tanto como campo da indústria cultural, quando como campo de produção cultural erudita, a indústria cinematográfica possui sim um grau de autonomia, pois mesmo sem perceber, o público 401

A expressão francesa Avant-Guard traduz-se, literalmente, ‘de vanguarda’ e como adjetivo tem sido aplicada a varias expressões culturais, um filme pode ser avant guard e também uma roupa. Não é incomum ver a expressão francesa aplicada popularmente no sentido de adjetivar algo como ‘além de seu tempo’

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acaba consumindo o quer que seja oferecido para ele. Essa foi – e continua sendo – uma estratégia dos estúdios402 que vendiam os seus produtos variando uma grande produção com um filme de baixo orçamento e obrigando os distribuidores a comprar os direitos dos dois compulsoriamente. G. Tomadas de posição e conflitos internos e externos: O campo do cinema, como qualquer outro, está sujeito a conflitos. Todos os agentes que entram em um determinado campo atuam nele e nem sempre estão de acordo com as regras do mesmo. Quando atingem um grau de reconhecimento através das instancias de consagração403 também passam a possuir capacidade de promover mudanças no campo. Ao mesmo tempo o campo cultural, onde está inscrito o campo cinematográfico, sofre ataques constantes de outros campos, como por exemplo, do campo político e do campo econômico. A relação de proximidade entre o campo do cinema com a ordem econômica vigente na maioria dos países ocidentais – notadamente capitalista – levou a diversos conflitos dentro do núcleo do campo cinematográfico. Autores e criadores dentro desse campo, ou seja, agentes desse campo, que discordavam da relação capitalista estabelecida no campo cinematográfico desde sua origem. O cinema cresceu mediante ao pagamento de ingressos por pessoas comuns, operários saindo das fabricas, mulheres, jovens e crianças, que se entregavam a ilusão do filme sem saber que nela estava contida a exploração capitalista.

402

Sorlin, Pierre. Sociologia del Cine: La Apertura Para La Historia de Manana (Fondo de Cultura Económica, 1985) 403 Instancias de consagração são “todas as formas de reconhecimento – prêmios, recompensas e honras, eleições para um academia, uma universidade, publicação em uma revista científica ou através de uma editora consagrada [...]” (BOURDIEU, 1997 p.119) é o conjunto de situações.

1419

CONCLUSÃO Esses conflitos podem até mesmo modificar o campo, porém não na amplitude necessária – para a construção do cinema como a verdadeira arte democrática, como poderíamos desejar – nem na velocidade necessária. As mudanças nos campos culturais são mais lentas do que gostaríamos de pensar. Para se ter uma ideia, como algo muda dentro do campo todas as suas regras, instituições, habitus, etc. Algumas das quais podem possuir setores contrários a essas mudanças. Assim o campo é um espaço de construções culturais que estão em constante negociação, desde a influencia de outros campos (que caracterizam conflitos fora do campo) até as lutas internas, a cessão de espaço para novos tipos de produção, a aceitação desses filmes pelo público, pela crítica, todas essas são negociações; Se algum agente é radical demais, ele acaba saindo do campo, não consegue mais apoio para produzir seus filmes, ou quando não obedecem as regras do campo e não consegue fechar um

trabalho, a despeito do

investimento feito404 As negociações que todas as produções de filmes, por exemplo, fazem com os campo de produção, são a expressão do movimento de mudança em uma sociedade e por isso, a compreensão dos conceitos de Bourdieu são tão importantes para nós: porque entender o cinema como campo é entendê-lo com a perspectiva de negociação e com ela, a esperança de mudança

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOURDIEU, Pierre. A Distinção Crítica Social do Julgamento. Tradução Daniela Kern, e Guilherme J. F Teixeira. São Paulo; Porto Alegre: EDUSP Zouk, 2008

404

É o caso do filme Chatô, de Guillerme fontes, que mesmo com a capitação de patrocínios não foi terminado pelo diretor, que foi condenado a devolver dinheiro a Petrobrás. ‘Petrobras Pode Receber R$ 2,6 Milhões de Diretor de “Chatô” - EXAME.com’ [acessado 29 de setembro 2012]

1420

BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. Tradução: Sergio Miceli Silvia de Almeida Prado, Sonia Miceli e Wilson Campos Vieira. São Paulo: Perspectiva, 2007) EAGLETON, Terry. A Ideia De Cultura. Tradução: Sandra Castelo Branco. São Paulo: UNESP, 2003 SCHATZ, Thomas. The Genius Of The System: Hollywood Filmmaking In The Studio Era. Henry Holt and Company, 1996 SORLIN, Pierre, Sociologia del Cine: La Apertura Para La Historia de Manana . Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1985 TYLER, Parker, Underground Film.New York: Da Capo Press, 1995 WILLIAMS, Raymond. Cultura. Paz e Terra, 2008 ___________. PINKLEY, Tony. The Politics Of Modernism : Against The New Conformists. London: Verso, 2007) Páginas da Web ‘Mel Gibson Breaks Silence on Domestic Violence Scandal’, Reuters (Los Angeles, 22 April 2011) [accessed 20 August 2012] ‘Mel Gibson’, IMDb [accessed 25 September 2012] ‘Nouvelle vague’, Wikipédia, a enciclopédia livre, 2012 [acessada 24 de Setembro 2012] ‘Petrobras Pode Receber R$ 2,6 Milhões De Diretor De “Chatô” EXAME.com’ [accessed 29 Setembro 2012] Wikipédia contributos, ‘Óscar’, Wikipédia, a enciclopédia livre (Wikipédia Foundation, Inc., 2012) [accessed 25 de Junho 2012] FILMOGRAFIA UTILIZADA 1421

Donner, Richard, Lethal Weapon, 1987 Meirelles, Fernando, The Constant Gardener, 2005 Phillips, Todd, The Hangover Part II, 2011

1422

ÉTICA, ESTÉTICA E O CINEMA DA CRUELDADE

Fagner Torres de França405

Resumo: O objetivo do texto é problematizar a discussão sobre ética e estética suscitada por Pierre Bourdieu no livro A Distinção (2007), acrescentando outros elementos de análise, como o maior desenvolvimento da indústria cultural e a emergência de valores pós-moralistas (LIPOVETSKY, 2005) na esteira do capitalismo. A finalidade é analisar como ocorre a relação entre ética e estética no contexto das novas produções culturais hegemônicas, cujo alcance é cada vez mais amplo. Nesse sentido, o intuito é introduzir a ideia de Cinema da Crueldade, de André Bazin (1989), sob o ponto de vista do conceito de Crueldade de Artaud (2006a; 2006b) no âmbito do cinema, na tentativa de encontrar outro caminho para pensar a questão sobre as fronteiras entre ética e estética. Palavras-chave: Ética, Estética, Bourdieu, Artaud, Cinema da Crueldade.

INTRODUÇÃO O cinema não se separa da vida, mas reencontra a situação primitiva das coisas. A. Artaud

Desde pelo menos Platão, o Belo está associado ao Bom. Tal paridade levanta algumas questões importantes. Primeiro, a de saber o que seriam o bem ou a beleza absolutos, haja vista tratarem-se de ideais que, no campo da imanência, colocam-se como valores relativos. Depois, a associação imediata implica afirmar a maldade do feio, tornando a análise ética e estética, a partir dessa relação, um tanto precária. Em terceiro lugar, é preciso se perguntar sobre o lugar da força crítica da estética na atualidade, o que inclui sua capacidade de desestabilizar visões cristalizadas de mundo O percurso escolhido para refletir sobre a questão será o de trabalhar as discussões sobre ética e estética em um contexto mais

405

Graduado em Comunicação Social (UFRN), Mestre em Ciências Sociais (UFRN). Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (UFRN).

1423

sociológico, amparado principalmente por Pierre Bourdieu (2007). O que representa compreender como se dá essa relação em seus aspectos sociais, além de acrescentar ao debate outros elementos capazes de orientar a discussão em sentido diverso, não naquele da contraposição entre grupos a partir de um eixo ético-estético, mas de uma possível reconciliação em uma área de semelhanças no qual todos se reconheceriam. Esse campo pode ser o do cinema da crueldade.

APONTAMENTOS DE ÉTICA E ESTÉTICA Cabem aqui algumas considerações a título de esclarecimento e introdução ao debate, no sentido de estabelecer alguns parâmetros de discussão. Segundo Latuf Isaias Mucci406, Ethos e Aesthesis são dimensões originárias do ser humano, que pelo ético se situa no mundo e pelo estético expressa-se a si mesmo e a esse mundo. Portanto, ambas formam uma bússola que irremediavelmente nos orienta socialmente. Ao agirmos, agimos por meio de uma ética e uma estética. Firmados no pensamento da semioticista Maria Lucia Santaella, Soraya Ferreira Alves e Fabiano Rodrigues Albuquerque407 explicam que, segundo ela, “é da estética que vem a determinação da direção para onde a conduta ética deve se dirigir, estando ambas inexoravelmente relacionadas” (p. 1). Em Peirce, dizem os autores, é possível perceber dois termos que diferenciam ética e estética, pois enquanto aquela está ligada às ações, esta responde pelos sentimentos: “ética e estética nos parecem ambas imbricadas numa relação de ação e reação, pois

406

MUCCI, Latuf Isaias. O mito de Tirésias revisitado: ética e estética na ótica do cinema. Almatea – Revista de Mitocrítica. Universidade Federal Fluminense. Vol. 2. P 199-207. 2010. 407 ALVES, Soraya Ferreira; ALBUQUERQUE, Fabiano Rodrigues. Ética versus estética: a tradução dos quadrinhos para o cinema em Sin City. Trabalho apresentado no XI Congresso Internacional da ABRALIC. USP. São Paulo. Brasil. 2008. Disponível em http://www.abralic.org.br/anais/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/064/FABIANO_ALBUQUERQUE .pdf.

1424

como se pode perceber, sentimentos e ações estão intimamente ligados dentro de um continuum de causa e efeito (p. 1). Em texto apresentado no evento “Encontros Necessários”, o historiador e produtor de cinema Márcio Cordiolli408 registra também a relação entre ética e estética. À pergunta “de que maneira a ética se entrecruza com a estética?”, ele responde: “a arte sendo produto de sensações, portanto, expressa, também, os valores daqueles ou daquelas que a produzem. (...) E como toda obra de arte é uma linguagem, também expressa conjuntos de signos ideológicos, por mais polifônica que possa ser. Portanto, os imperativos éticos constituem-se, também, e mesmo que inconscientes, em imperativos estéticos. E vice-versa. (p. 2)

Para Adolfo Sanchez Vázques (2001), falar em valores é ter em mente ideias de utilidade, bondade, beleza, justiça, assim como os respectivos polos negativos, inutilidade, maldade, fealdade, injustiça. Os pressupostos da ética e da estética são, portanto, julgamentos de valor que definem referenciais de certo e errado, bom e mal, belo e feio. A partir desse ângulo, podemos compreender as diversas classificações éticas e estéticas, como as éticas da revolta e da hospitalidade (Kristeva), da religação (Morin), do perdão (Arendt) etc., assim como as estéticas da fome e da violência (Glauber Rocha), da crueldade (Artaud) etc. Há uma certa beleza épica, por exemplo, nos filmes da cineasta nazista Leni Riefensthal, embora os propósitos do regime fossem assassinos. Nesse caso, o belo não serviu ao bom, a não ser de um determinado “ponto de vista”, que nada mais é que uma “vista a partir de um ponto”. Não deixa de ser irônico, também, como relata o filme Arquitetura da Destruição (2001), o fato de Hitler sentir-se no direito de classificar o que ele mesmo considerava arte genuína e arte degenerada, esta última representada por nomes como Paul Klee, 408

CORDIOLLI, Márcio. Ética e estética como processos de formação de valores. Disponível em http://cordiolli.files.wordpress.com/2009/07/cordiolli_fh005_etica_estetica.pdf.

1425

Edvard Munch e Pablo Picasso, entre outros. Como se a própria lógica da arte, tal qual explica Raymond Williams (2000), não fosse uma relação social, mas seguisse os caprichos de um único indivíduo. É a cultura, diz Williams, que está acima de qualquer ditame, pois os atores sociais estão o tempo todo ressignificando as culturas e suas manifestações. Segundo Williams, a própria reprodução cultural prevê sua contradição, fissuras e bifurcações. A reprodução não é uma busca por padronização. E a própria cultura pode selecionar o que interessa ou não reproduzir. Além disso, como esclarece Bourdieu (2007), as disputas sociais são campos de acirradas disputas ideológicas. A sociedade é marcada pelo jogo dos símbolos e campos, em constante contradição. Por esse motivo é possível imaginar a ideia de campo formulada pelo autor não apenas como segregações, mas como possibilidades de habilitações e reabilitações, mudanças de regras e transformações, bem como de conservações. Pois para que um campo mude suas disposições basta que um novo elemento, ciente de seu modo de funcionamento, consiga operar essas mudanças. Williams (2000) chama a atenção para o fato de que, embora possa haver uma ideologia dominante, os grupos sociais constroem suas próprias ideologias. Eles não são homogêneos, e carregam também em si suas fissuras. Desse modo, os valores, éticas e estéticas podem ser observados a partir de seus locus apropriados, como nas relações de classe, gênero, religião, em seus aspectos políticos, econômicos, regionais, étnicos etc., embora não rejeitemos a importância da universalidade de alguns valores. É nesse sentido que Pierre Bourdieu (2007) trabalha as questões éticas e estéticas, a partir de uma análise empírica e sociológica dos chamados “gosto bárbaro” e “gosto erudito”, focando seus aspectos relacionais, da “estética popular” em contraposição a uma cultura elevada. A partir dos textos citados, principalmente Bourdieu, buscarei compreender as dimensões sociais da contraposição entre a ética e a 1426

estética popular e erudita, além das ideias de subsunção da forma à função (popular) e da contemplação da forma pura (alta cultura). A base erigida até o momento informa, então, que: ética e estética possuem uma relação tanto filosófica, enquanto “dimensões originárias” do ser humano, quanto sociológica, no sentido de representarem certos valores relativos, concernentes a grupos sociais que, segundo Williams, constroem suas próprias ideologias. Para Bourdieu, portanto, há uma construção societária nas estéticas culta e popular, acompanhadas de uma ética própria, a qual é possível (e desejável) esclarecer.

ÉTICA E ESTÉTICA EM BOURDIEU Segundo Williams (2000), dentre os sinais externos mais claros de que algo pode ser tomado como arte, o museu é um dos principais indicadores. O que está exposto dentro de suas paredes, acredita-se, é considerado arte. Para Bourdieu (2007), “o museu de arte é a disposição estética constituída em instituição”. Por trás da ideia de gosto escondese, portanto, um leque de disposições, restrições, recomendações e imposições capazes de separar um grupo de outro e elaborar verdadeiros estilos de vida, no sentido de contrapor-se aos demais, com base nas regras não explicitadas, mas apenas vivenciadas, envolvidas no simples fato de gostar de alguma coisa. O gosto, diz Bourdieu, tem regras, e a violência estética é capaz de exercer agressões terríveis, separa e opõe o ethos da burguesia dos demais. Nesse sentido, à hierarquia socialmente reconhecida das artes, dos

gêneros,

escolas

ou

épocas,

conforme

o

senso

comum,

corresponde a hierarquia social dos consumidores. De forma que reconhecer os códigos da arte, por exemplo, apreciá-los a partir de seus aspectos técnicos, correspondente a períodos, formas, filiações, significa pertencer a uma linhagem de pessoas únicas aparentemente iluminadas pelo dom do gosto distinto. Temos aí, de certa forma, uma 1427

aparente contradição, mas que expõe um caráter em geral escondido relacionado ao gosto. É que a compreensão dos mecanismos da arte, internalizados por uma longa educação familiar ou escolar, depende justamente de não se fazer aparecer como tal, pois isso revelaria a verdadeira origem do mistério da distinção, qual seja, seu aspecto de imanência, de construção social, longe da iluminação à qual juram pertencer aqueles seres tocados pelo sentimento do sublime. É nesse diapasão que a construção da ideia de uma estética popular (lembrando tratar-se sempre de uma luta simbólica) se faz ouvir. Para Bourdieu, tudo se passa como se essa estética “estivesse baseada na afirmação da continuidade da arte e da vida, que implica a subordinação da forma à função” (2007, p. 35), ensejando um corte radical entre as disposições comuns e as disposições propriamente estéticas. A hostilidade das classes populares e daquelas menos ricas em capital cultural (que seria, por exemplo, uma sólida educação familiar) afirmar-se-ia numa rejeição à experimentação formal, seja no teatro, na pintura e, mais notadamente, na fotografia e no cinema. Assim,

este

público

apreciaria

mais

os

personagens

caricatos,

facilmente desenhados e compreendidos, do que aqueles que carregam em si uma forte carga de ambiguidade, dificultando a identificação imediata. Na situação em tela, a frustração da expectativa de participação pela experimentação formal seria compreendida como “um dos indícios do que, às vezes, é vivenciado como o desejo de manter à distância o não-iniciado” (BOURDIEU, 2007, p. 36), ou como uma forma de simplesmente rejeitar aquilo que seria uma expressividade popular, presente na fala, nos gestos, na familiaridade com a vida cotidiana, entregue ao prosaico da percepção imediata dos sentidos. Por outro lado,

“o

espetáculo

inseparavelmente,

a

popular

participação

é

aquele

individual

que do

proporciona,

espectador

no

espetáculo” (p. 37). Por serem menos eufemísticos, ofereceriam situações mais diretas e imediatas. 1428

Inversamente, o esteta ilustrado, segundo ainda Bourdieu (2007), manteria um certo distanciamento em relação às percepções de primeiro grau, deslocando o interesse do conteúdo para a forma, para o consumo do que seria uma arte em si, dotada de linguagem própria, estrutura interna e um nível mais profundo de compreensão apenas apreendido pelo detentores e conhecedores do código. De modo que nada há o que distinga tão rigorosamente as diferentes classes quanto “a disposição objetivamente exigida pelo consumo legítimo das obras legítimas, a aptidão para adotar um ponto de vista propriamente estético” (BOURDIEU, 2007, p. 42) a respeito dos objetos de arte, dos objetos vulgares ou até mesmo nas simples práticas cotidianas do comer, vestir ou decorar casas. Para Kant, segundo o autor, o “desinteresse” é a única garantia da qualidade propriamente estética da contemplação, em oposição ao “que agrada” e ao “que dá prazer”. Portanto, os mais desprovidos de competência específica, no confronto com as obras de arte legítimas, tendem a utilizar o esquema do ethos na tentativa de estabelecer tal relação, ou seja, aquele baseado nas percepções mais próximas da existência comum, que orienta nossas ações e compreensões em determinado sentido, de modo por vezes inconsciente, automático, ligado a padrões de conduta e comportamento. Na estética pura, tal procedimento constituiria um “barbarismo”. É como se “a forma só pudesse vir ao primeiro plano mediante a neutralização de qualquer espécie de interesse afetivo ou ético pelo objeto da representação que é acompanhada” (BOURDIEU, 2007, p. 45). Assim, “o estetismo que transforma a intenção artística em princípio da arte de viver implica uma espécie de agnosticismo moral, antítese perfeita da disposição ética que subordina a arte aos valores de viver”. (BOURDIEU, p. 48). O autor registra, destarte, o que seria uma pretensa distinção ético-estética da alta cultura em relação a uma cultura “vulgar”. Enquanto a primeira submeteria a ética à estética (a 1429

moral não teria restrições frente à estética), a segunda veria na estética apenas

uma

continuação

da

ética.

É

possível,

desse

modo,

compreender tal dicotomia como uma construção de classe e nem sempre verdadeira. A própria indústria cultural mostra que o que serviu a um pode, em outra época, servir a outro, além do que a própria massificação, aliada a um desenvolvimento econômico, atinge uma ampla classe de consumidores capaz de pensar e sentir com os mesmos ou com novos valores.

ÉTICA, ESTÉTICA E INDÚSTRIA CULTURAL Um rápido olhar pelas atuais produções midiáticas hegemônicas no mundo pode nos dar a impressão de que uma forte pulsão de morte domina a sociedade contemporânea, no sentido da quantidade de imagens dedicadas a reproduzir a destruição física do ser humano e seu ambiente. Ivana Bentes aponta que “Nunca houve tanta circulação e consumo de imagens da pobreza e da violência, imagens dos excluídos, dos comportamentos ditos ‘desviantes’ e ‘aberrantes’” (p. 217). No entanto, a autora problematiza a questão elaborando uma dicotomia

entre

o

que

seria

uma

violência

fascista,

mais

contemporânea, e uma estética da violência, relacionada aos grandes cineastas. De fato, a força da violência, da cólera, da ira, da raiva, é objeto de estudo desde os antigos gregos. Nas epopeias e tragédias gregas, podemos encontrar a ferocidade encarnada “quase em seu estado puro” nos personagens de Aquiles e Medéia, ou ainda de forma mais nuançada em Antígona. Mas a questão colocada pelos gregos já na antiguidade está na disposição de integrar a cólera ao processo dialético da própria formação do homem e do mundo, um dado que, apesar de suas transformações no tempo, jamais desapareceu da existência humana. 1430

No cinema, principalmente entre as vanguardas históricas da década de 1920, “figurações da violência são usadas para produzir um estranhamento e um desconforto sensorial no espectador” (BENTES, 2003, p. 2). Por exemplo, na cena do olho cortado no filme O Cão Andaluz (1929), de Buñuel. Mas segundo a autora, é Eisenstein quem leva ao paroxismo, em sua perfeição técnica, o objetivo de produzir pensamento a partir de imagens fortes da violência, como na clássica cena da escadaria de Odessa, na obra Encouraçado Potenkim (1925). Seu conceito de “patético” (DELEUZE, 1985) enfatiza a passagem, através de imagens, de uma consciência inerte a uma revolucionária, por

meio

do

próprio

absurdo

desvelado

pela

alternância

da

“montagem por saltos”. Outro exemplo cuja força das imagens é capaz de romper o imobilismo do pensamento pode ser encontrado em Glauber Rocha. Na cena final de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), o movimento frenético de câmera, a montagem dinâmica, os gritos e tiros dão a impressão que a tela está prestes a explodir. Um e outro tentaram atingir a violência ontológica, essencial, interna à imagem. Hoje, diz Ivana Bentes, o uso da violência no cinema vai estar ligado a uma acomodação do pensamento, onde os assassinos matam, os ladrões roubam, os amantes amam, os ricos são ricos e os pobres são pobres. A partir deste discurso podemos inferir que, se os grandes movimentos cinematográficos faziam de sua estética um processo eminentemente ético, a hegemonia da indústria cultural, em grande parte, transforma a violência em um produto de consumo imediato irrefletido, incapaz de produzir um sobressalto ético, um sentimento outro. Apenas o mesmo conformismo expresso nas dicotomias do bem e do mal. Para repensar esse embate entre ética e estética, alta cultura e cultura de massa, a hipertrofia da indústria cultural pode sugerir caminhos alternativos. Muniz Sodré (1972) compreende ser falsa a oposição cultura de massa x cultura elevada, porque o código de uma 1431

seria ontologicamente o mesmo da outra, apenas simplificado e adaptado para o consumo de todas as classes sociais, um público amplo, disperso e heterogêneo. Historicamente, diz ele, a cultura de massa é apenas um momento na evolução da cultura de uma classe, e seus produtos não tardam a ser recuperados pelo sistema elitista da cultura superior, sendo tal diferenciação apenas formal, não material. Para Teixeira Coelho (1998), “as formas culturais atravessam as classes sociais com uma intensidade e uma frequência maiores do que se costuma pensar” (p. 17), sendo que a passagem de um produto cultural de uma categoria inferior para uma superior seria apenas questão de tempo, como demonstram o jazz e o samba, entre outras manifestações. Com isso em mente, fica mais fácil compreender a artificialidade daquilo que é construído socialmente como um antagonismo entre alta e baixa cultura, uma reserva de distinção na qual uma classe pretende se distinguir de outras a partir da elaboração do que seria um gosto elevado, um prazer puro, alcançado não pelos sentidos, mas pelo intelecto desenvolvido, ou por um dom divino.

VALORES CONTEMPORÂNEOS E O CINEMA DA CRUELDADE O cinema reflete uma necessidade de sonhar, numa sociedade na qual não há mais espaço para o sonho. É através dos espetáculos que os conteúdos imaginários se manifestam. Por meio do estético se estabelece a relação de consumo imaginária. Como aponta Edgar Morin (1997), feita de modo estético, a troca entre o real e o imaginário é a mesma que entre o homem e o além, e homem e os espíritos. Uma condição constitutiva do homem, indiferente à classe social, cor de pele, religião. Pela arte, todo um setor de trocas entre o real e o imaginário se realiza na sociedade moderna, estabelecendo uma relação quase primária com o mundo.

1432

Numa

sociedade

capitalista,

consumista,

pós-moralista

(LIPOVETSKY, 2005) e hipermidiática, portanto, é preciso repensar a questão da ética e da estética não mais em termos de alta e baixa cultura, mas levando em conta a expansão da indústria cultural capitalista num contexto de transmutação de valores. Por sociedade pós-moralista, Gilles Lipovestsky entende como aquela baseada na exaltação de uma vida sem compromissos, no entretenimento visual, no “bombardeio

televisivo”,

na

política-espetáculo

e

espetáculo

publicitário, na evasão e violência em gradações diversas, na trepidação da violência midiática, na banalização do cotidiano, no erotismo de fácil consumo, na fruição do presente, no culto de si próprio e na exaltação do corpo e do conforto, um quadro no qual a felicidade se sobrepõe à ordem moral, os prazeres à proibição, a fascinação ao dever. É nesse ambiente que gostaríamos de retomar a ideia de cinema da crueldade (BAZIN, 1989), retrabalhando o conceito de crueldade a partir do dramaturgo francês Antonin Artaud (2006a; 2006b). Em “O cinema da crueldade” (1989), Bazin analisa seis autores que, para ele, já trabalhavam com uma ideia de crueldade no cinema, entre eles Buñuel, Hitchcock, Kurosawa e Stroheim, sendo que este último teria sido seu inventor. Para Bazin, “De bom grado podemos pelo menos admitir que sua obra é dominada pela obsessão sexual e pelo sadismo, que ela se desenvolve sob o signo da violência e da crueldade” (p. 5). A partir de que critérios, portanto, devemos censurar a antiestética ética das violentas produções de massa, enquanto consideramos Saló ou 120 dias de Sodoma (1976), de Pasolini, por exemplo, apto a circular pelas salas de arte do mundo enquanto detentor de de uma antiética estética?

1433

De fato, é difícil responder sobre qual a fronteira entre a ética e a estética, a forma e a função, ou mesmo se ela deve ou não existir. Mas talvez se possa encontrar em Artaud (2006a) e em seu conceito de Crueldade o que seria uma “terceira via” entre a dicotomia ética/estética na alta cultura e na cultura de massa. Também assumindo a ideia de que a massa pensa antes com os sentidos, sendo absurdo dirigir-se primeiro ao entendimento das pessoas, o objetivo seria recorrer assumidamente aos espetáculos de massa, buscar a poesia que se encontra nas festas e nas multidões dos encontros populares. Williams (2000) e Bourdieu (2007) explicam que, apesar de o espetáculo estar estreitamente ligado ao mercado, a cultura não se reduz a este. Pois os homens são seres simbólicos, o tempo todo a criar suas representações. Há, portanto, entre as instâncias da sociedade (política, econômica, cultural etc.) um processo relacional, embora possa existir hegemonia de um grupo social sobre outros. Mas é preciso sempre ter em perspectiva que as relações sociais são baseadas nas trocas simbólicas. Dessa forma, podemos observar a discussão sobre o espetáculo suscitada por Guy Debord (2003)409 através de outro ângulo. Para Debord, a principal característica da sociedade moderna é estar mergulhada

num

imenso

acúmulo

de

espetáculos,

capaz

de

transformar a verdadeira vida em uma mera representação, um simples simulacro. A imagem se transforma, então, na própria mediadora das relações socais. Seu texto é uma crítica contundente a tal condição. Mas levando em consideração o fato de que, segundo o autor, a situação atual decorre do próprio modo de produção existente, sua superação não se encontra, no momento, colocada no horizonte.

409

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Livro digital. Disponível em www.google.com.br/url?sa=f&rct=j&url=http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/socespetaculo.pdf&q =guy+debord+sociedade+do+espetáculo+pdf&ei=SkcOUKfWA4Gu9ASGs4DQDA&usg=AFQjCNE3iS R1m1lzZ7l-rW3jEh4MDLUsIg. Acesso em 25 de junho de 2012.

1434

Desse modo, a ideia de crueldade pode entrar aqui não como uma rendição, mas sim de forma estratégica, no sentido de servir-se do espetáculo para o esclarecimento, embora esta frase possa soar contraditória. O intento seria jogar com tudo o que há no amor, na violência, na guerra e na loucura, no cotidiano, nos crimes atrozes e nos afetos sobre-humanos, mas de forma que as imagens possam tornar tais sentimentos e situações mais vivos e terrificantes do que eles próprios, mesmo que ainda sejam encarados como sonhos. Daí, diz Artaud (2006a), “o apelo à crueldade e ao terror, mas num plano vasto, e cuja amplidão sonda nossa vitalidade integral, nos coloca diante de todas as nossas possibilidades” (p. 97). Assim, reduzir a participação do entendimento levaria a uma compressão enérgica do texto, pois as palavras “pouco falam ao espírito; a extensão e os objetos falam; as imagens novas falam, mesmo que feitas com palavras” (p. 98). O cinema seria como uma verdadeira liberação, necessária e precisa, “de todas as forças sombrias do pensamento” (ARTAUD, 2006b), um choque infligido aos olhos, tirado da própria substância do olhar, agindo diretamente no cérebro sem intermédio do discurso, não proveniente de circunstâncias psicológicas. Artaud busca o que ele chama de cinema visual, mais que textual, no sentido de exibir os nossos atos em sua barbárie original e profunda. Artaud atuou em cerca de vinte filmes. Escreveu sete roteiros, dos quais apenas um foi filmado, A concha e o clérigo (1928), sob a direção de Germaine Dulac, com quem tentou pôr em prática seu ideal estético cinematográfico. A disposição formal do roteiro é dominada por três elementos: a rapidez, a metamorfose e a transparência. São acontecimentos que se sucedem com extrema rapidez e formas que se encadeiam e dissolvem-se umas nas outras. Em uma das cenas, segundo o próprio roteiro, uma mulher aparece “ora com a bochecha inchada, enorme, ora mostrando a língua, que se alonga até o infinito e na qual o clérigo se agarra como se fosse uma corda. Ora ela aparece com o seio terrivelmente inchado” (2006a, p. 163). Para sua principal 1435

biógrafa, Florence de Mèredieu (2011), com esse filme Artaud pretendeu excluir todo aspecto narrativo ou psicológico, em favor unicamente da dimensão plástica, embora também considerar-se contra um cinema puramente abstrato. Sua “terceira via”, diz Mèredieu, é a de encontrar uma lógica de imagens, “que se engendram, se deformam, se combinam. Ele desenvolve isso criando uma concepção orgânica e – finalmente – muito bergsoniana (ou deleuziana) de cinema: a de um vivente que se move, se transforma” (p. 359).

CONCLUSÃO Em nosso percurso foi tentado trabalhar sociologicamente, a partir de Bourdieu (2007), a concepção de ética e estética e sua ampliação a

um

novo

ambiente

atravessado

por

valores

pós-moralistas

(LIPOVETSKY, 2005) e uma robusta indústria de massa. Nesse contexto, com a ajuda de outros autores, concluiu-se que, apesar das distinções correntes entre alta e baixa cultura, elas são uma construção social passível de serem analisadas e mesmo desconstruídas. Se a cultura erudita vive a ilusão do estetismo, ou seja, de que a ética deve ser subordinada à estética, enquanto na cultura popular a forma deve ser submissa à função ética, foi possível notar que: a) embora ética e estética orientem nossa ação no mundo, não são valores absolutos; e que b) a hipertrofia da produção de massa gera um ambiente nebuloso no qual a discussão ético-estética fica ainda mais tênue. Assim, a ideia de cinema da crueldade pode assumir lugar de destaque no sentido de relacionar sentimentos primordiais, violência na produção de massa e uma tomada de consciência a partir de uma lógica de imagens encadeadas de forma a provocar o questionamento e o deslocamento artísticos num amplo público consumidor.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, Soraya Ferreira; ALBUQUERQUE, Fabiano Rodrigues. Ética versus estética: a tradução dos quadrinhos para o cinema em Sin City. Trabalho apresentado no XI Congresso Internacional da ABRALIC. USP. São Paulo. Brasil. 2008. Disponível em http://www.abralic.org.br/anais/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/0 64/FABIANO_ALBUQUERQUE.pdf ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida. São Paulo: Perspectiva, 2006a. ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2006b. BAZIN, André. O cinema da crueldade. São Paulo: Martins Fontes, 1989. BENTES, Ivana. Estéticas da violência no cinema. Interseções. In: Revista de Estudos interdisciplinares. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais –UERJ. ANO 5 número 1 – 2003 pg. 217-237. Rio de Janeiro. 2003 BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2007. COELHO, Teixeira. O que é Indústria Cultural. São Paulo: Brasiliense, 1998. CORDIOLLI, Márcio. Ética e estética como processos de formação de valores. Disponível em http://cordiolli.files.wordpress.com/2009/07/cordiolli_fh005_ etica_estetica.pdf DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Livro digital. Disponível em www.google.com.br/url?sa=f&rct=j&url=http://www.ebooksbrasil.org/ad obeebook/socespetaculo.pdf&q=guy+debord+sociedade+do+espetác ulo+pdf&ei=SkcOUKfWA4Gu9ASGs4DQDA&usg=AFQjCNE3iSR1m1lzZ7lrW3jEh4MDLUsIg. Acesso em 25 de junho de 2012. DELEUZE, Gilles. Cinema 1: Imagem-movimento. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985 LIPOVETSKY, Gilles. A sociedade pós-moralista: o crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos tempos democráticos. São Paulo: Manole, 2005. MÈREDIEU, Florence de. Eis Antonin Artaud. São Paulo: Perspectiva, 2011. MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: Neurose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

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MUCCI, Latuf Isaias. O mito de Tirésias revisitado: ética e estética na ótica do cinema. Almatea – Revista de Mitocrítica. Universidade Federal Fluminense. Vol. 2. P 199-207. 2010. SANCHEZ VAZQUES, Adolfo. Ética. 26ª ed. RJ. Civilização Brasileira, 2001. SODRÉ, Muniz. A comunicação do grotesco. Rio de Janeiro: Vozes, 1972. WILLIAMS, Raymond. Cultura. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

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A REPRESENTAÇÃO DO OBJETO VENTILADOR NO FILME “O PALHAÇO” Vanessa Paula Trigueiro Moura410 Resumo: Busca-se, a partir da análise fílmica, compreender a representação do ventilador no longa-metragem O Palhaço, dirigido, estrelado e roteirizado por Selton Mello. Considerando aspectos ligados ao imaginário do personagem principal da trama cinematográfica, a relação do ventilador com o desenvolvimento da narrativa vai sendo desvendada a partir da evolução do roteiro. O presente artigo realiza a decupagem audiovisual com descrição das cenas em que o ventilador aparece como elemento valorizador da trama. É abordado o valor simbólico do objeto representado dentro da própria narrativa audiovisual em detrimento do efeito da representação sobre o público. Entende-se o papel das representações visuais no contexto do audiovisual, bem como a implicação das significações imagéticas nas narrativas cinematográficas. Palavras-chave: Audiovisual; Representação; O Palhaço; Ventilador.

INTRODUÇÃO O longa metragem O Palhaço, dirigido, estrelado e roteirizado (em parceria com Marcelo Vindicatto) por Selton Mello narra a trajetória de uma trupe circense chamada Esperança. O filme relata a vida e as dificuldades de uma classe artística brasileira e apresenta os bastidores dos espetáculos do circo na turnê pelo interior de Minas Gerais. Neste ambiente, relata-se uma crise de identidade vivenciada por Benjamin (Selton Mello), que no picadeiro interpreta o palhaço Pangaré, protagonista do longa juntamente com Valdemar (Paulo José), o palhaço Puro-Sangue. No interior dessa narrativa, a presença de um objeto, o ventilador, surge como elemento intrigante de representação simbólica.

410

Graduada em Comunicação Social/Jornalismo (URFN), Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia (PPGEM/UFRN). Integrante do Grupo de Pesquisa Marginália - Grupo de Estudos Transdisciplinares em Comunicação e Cultura. [email protected]

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O processo de significação ao qual o ventilador está ligado parte da subjetividade possibilitada pelas interpretações diversas de acordo com a percepção e repertório cultural do receptor. Por não se tratar de uma leitura denotativa, o objeto trazido por O Palhaço foge de uma padronização simbólica e mesmo sendo apresentado como elemento chave da narrativa, deixa livre ao imaginário do público a construção de seu sentido. A partir de conceitos trazidos por Santaella (2005) entende-se a relação da imagem do ventilador com a cognição semiótica representada no cenário audiovisual proposto pela narrativa do filme O Palhaço. Seguindo também conceitos de Aumont (1993), dos estudos da imagem e de sua representação no contexto audiovisual, além de Flusser (2007) sobre o potencial das representações imagéticas e Dondis (1997) a respeito do repertório pessoal no processo de interpretação de imagens. A fusão do contexto social e simbólico no campo audiovisual nos

permite

aprofundar

a

análise

do

ventilador

como

objeto

representado na trama. O imaginário e o conflito vivenciado pelo personagem principal, Benjamin, relaciona-se com a representação do objeto

analisado

de

maneira

paradoxal,

como

elemento

de

complicação e resolução da trama cinematográfica. O presente artigo limita-se, portanto, a uma análise fílmica para que a representação de um objeto, o ventilador, inserido no interior de uma narrativa audiovisual seja desvendada de acordo com o processo de significação ao qual ele pertence.

REPRESENTAÇÕES VISUAIS O conjunto de imagens cinematográficas é constituído por fotografias em movimento. Um encadear de imagens em um constante processo de adição de elementos técnicos e construção de linguagem a partir de uma estética montada pelos diretores responsáveis por 1440

critérios visuais e sonoros. A montagem cinematográfica é realizada de forma linear com uma união de planos visuais que engloba o trabalho técnico de enquadramento e movimentação de câmeras. Elementos como cor e iluminação são aliados importantes na busca pela construção da intencionalidade de uma narrativa visual. Ligados ao roteiro e à técnica fotográfica de composição de imagens, a montagem dos quadros cinematográficos alicerçam o sentido dos produtos audiovisuais. A amplificação dos sentidos da narrativa visual vai sendo posta de acordo com a inserção de elementos simbólicos no interior das obras. A utilização de objetos responsáveis por representações conotativas enriquecem a experiência da decodificação e quebra a estrutura simplista de produtos lineares imersos em representações denotativas, nos quais seu completo significado encontra-se dado na própria imagem, processo que acarreta a privação da reflexão e construção de sentido também pelo receptor. Quando a referencialidade é direta, isto é, quando as mensagens indicam sem ambiguidade, no mundo existente, aquilo a que elas se referem, estaremos falando em índices. Quando as mensagens têm o poder de representar ideias abstratas, convencionais, estaremos falando de símbolos (SANTAELLA, 2005, p. 49).

As representações simbólicas na narrativa audiovisual aparecem no contexto em que são inseridas as imagens, em um momento póstexto. A partir de Flusser temos a afirmação de que “a escrita é metacódigo da imagem” (FLUSSER, 1985, p. 08). A escrita abriga atrás de si o processo de abstrações imagéticas, ou seja, a absorção do conteúdo programado pelo código linear textual resulta em uma imagem configurada por um sistema de signos inseridos no padrão não-linear. Surge desta ideia a flexibilidade imagética das representações e dos símbolos,

que

permitem

ao

emissor,

bem

como

ao

receptor,

interpretações múltiplas a partir de uma intencionalidade. A tradução dos valores conotativos empregados nas representações imagéticas 1441

resume-se, portanto, na tentativa de esclarecer, de tornar denotativo, o conceito que alicerça a imagem, esteja ela no âmbito visual ou audiovisual. Com base em Flusser (2007) a criação imagética necessita, inicialmente, de uma fase de abstração, na qual se exerce o afastamento

dos

significados

denotativos,

do

mundo

objetivo

propriamente dito. Nesta fase, o processo criativo que trabalha o surgimento das representações traz novas representações à superfície das imagens que, por sua vez, traz ao receptor a experiência de exercício do subjetivo, tão vasta quanto a amplitude do seu repertório social. Ainda sobre a relação próxima entre o repertório do espectador e a referencialidade visual do produto veiculado, segundo Dondis, o “[...] modo como encaramos o mundo, quase sempre afeta aquilo que vemos. O processo é, afinal, muito individual para cada um de nós. O controle da psique é frequentemente programado pelos costumes sociais” (DONDIS, 1997, p. 19). Atrelados a esses costumes, está o repertório do receptor, que aparece como fator determinante no processo de interpretação e na construção de sentido realizada pela representação de elementos subjetivos na narrativa fílmica. Trazendo estas percepções para a narrativa visual em análise, o filme O Palhaço, entende-se que funcionando como um mediador de um significado presente no imaginário do personagem Benjamin, a representação

simbólica

do

ventilador

enriquece

o

potencial

polissêmico das cenas sempre que a imagem do objeto encontra-se presente. O objeto é algo distinto do signo e isso explica porque o signo não pode substituir inteiramente o objeto, pode apenas entrar no lugar do objeto, representa-lo e indica-lo para a ideia ou interpretante que o signo produz ou modifica. Isso significa que a ação do signo só pode se completar quando o signo determinar um interpretante, isto é, quando o signo for interpretado. (SANTAELA, 2005, p. 191).

1442

A representação no contexto audiovisual como função semiótica de consciência e de conteúdo parte da criação de imagens cinematográficas dotadas de diferentes níveis de codificação.

O

domínio dos códigos pelo receptor se dará a partir da compreensão das alusões feitas a partir dos demais elementos inseridos na narrativa. Para Flusser “um código é um sistema de símbolos. Seu objetivo é possibilitar a comunicação entre os homens. Como os símbolos são fenômenos, a comunicação é, portanto, uma substituição: ela substitui a vivência daquilo que se refere” (FLUSSER, 2007, p. 130). Se a imagem contém sentido, este tem de ser “lido” por seu destinatário, por seu espectador: é todo o problema da interpretação da imagem. Todos sabem, que por experiência direta, que as imagens, visíveis de modo aparentemente imediato e inato, nem por isso são compreendidas com facilidade, sobretudo se foram produzidas em um contexto afastado do nosso. (AUMONT, 1993, p. 250).

A função referencial dos signos na imagem ocorre, portanto, a partir de elementos representativos produtores de sentido. Tal produção destaca-se nos processos de codificação e decodificação da mensagem, ambos ligados diretamente ao repertório social, cultural do produtor – imerso em sua intencionalidade – e do receptor, apto a reconfigurar o sentido de acordo com seu processo de interpretação.

DESCRIÇÃO E ANÁLISE Para identificar a forma com que a representação simbólica do ventilador é abordada no longa metragem, o presente artigo traça um panorama geral da narrativa do filme O Palhaço. O método de decupagem audiovisual é utilizado para apresentar um cenário quantitativo da aparição do ventilador, objeto em análise, durante o desenvolvimento do enredo do filme. A identificação das cenas em que ventilador aparece ou é mencionado torna perceptível a importância

1443

do elemento na construção da narrativa fílmica. A decupagem segue como uma etapa descritiva, na qual o processo de significação parte da subjetividade possibilitada pelas interpretações diversas de acordo com a percepção e repertório cultural do receptor – neste caso, a autora do estudo. Em uma das primeiras cenas do filme a palavra “ventilador” é pronunciada por um dos membros da trupe - essa primeira inserção do objeto na narrativa ocorre aos 5’1. A frase cê devia ter um ventilador é dita de forma provocante, quase sussurrada no ouvido de Benjamim, o deixando inquieto, pensativo sobre a possibilidade de adquirir o bem de consumo.

Frame referente ao momento de 5’ do filme O Palhaço.

O fator que agrega ao ventilador a representação de elemento responsável por iniciar o conflito interior de Bejamin está ligado à personagem Lola (Giselle Mota), que pronunciou a frase e assume no enredo do filme o papel que representa o arquétipo2 do vilão. Apresentada de forma misteriosa, inicialmente questiona-se a sua paixão pelo ambiente circense e em seguida é descoberto que a personagem rouba parte do dinheiro que seria destinada ao pagamento da trupe. Após ser notificado de inúmeros problemas pendentes a respeito do circo, Benjamin, ao ficar sozinha na área externa do ambiente circense, tem uma alucinação e vê, pela primeira vez após a provocação de Lola, um ventilador. Fruto de sua imaginação, o delírio 1444

vem reafirmar que a imagem do objeto estava presente em seu imaginário. A cena acontece aos 15’32’’, tem duração de 5’’ e passa a representar o momento de reflexão do personagem.

Frame referente ao momento de 15’32’’ do filme O Palhaço.

Na cena em que a trupe encontra-se almoçando na casa do prefeito da cidade que sediava o primeiro espetáculo, no momento em que todos conversam e confraternizam durante a refeição, Benjamin aparece em cena com ar de hipnotizado. Aos 19’13’’ outro ventilador é apresentado, localizado no chão da sala de jantar. Volta-se o enquadramento ao rosto de Benjamin, que aparece concentrado, olhando para o ventilador e novamente, aos 19’22’’ o ventilador é mostrado. Entre a primeira e a última aparição do ventilador na cena descrita, o objeto mantem-se no foco da trama por mais 13’’. A cena é iniciada em 39’16’’ e corresponde à próxima aparição do objeto. Logo após a chegada do circo em outro município, a trupe realiza uma pré-apresentação no centro da cidade, para divulgar o espetáculo circense. Durante as encenações, Benjamin se distrai por uma loja do setor de eletrodomésticos que tinha em exposição na calçada do imóvel alguns modelos de ventiladores. A cena tem a duração de 7’’, sendo finalizada em 39’23’’.

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Frame referente ao momento de 39’23’’ do filme O Palhaço.

Na sequência do enredo, aos 40’19’’, Benjamin segue até o centro da cidade para tentar adquirir um ventilador. Ao chegar à loja, um diálogo é traçado entre o personagem principal da trama e o vendedor. Benjamin indaga sobre a possibilidade de parcelamento da compra e o vendedor responde que é possível apenas caso ele esteja portando identidade, CPF e comprovante de residência. A cena dura 18’’ e vai delimitando um quadro de autorreflexão do personagem. A resposta do vendedor, a vontade de possuir o ventilador e a inquietação interior de Benjamin somam-se e intensificam a crise de identidade por ele já vivenciada. Nesta fase do filme, o conflito interno de Benjamin encaminha-se para uma fase decisiva, de abandonar a trupe para buscar sua própria identidade, experimentar, pela primeira vez, uma vida fora do ambiente circense e redescobrir o seu papel social.

Frame referente ao momento de 40’19’’ do filme O Palhaço.

1446

Aos 52’23’’ durante a cena em que parte da trupe encontra-se na delegacia, prestando esclarecimento ao delegado da cidade sobre um episódio vivenciado por eles, Benjamim passa a prestar atenção no ventilado de parede da sala. Em mais um caso de alucinação, o personagem imagina o ventilador ligado, aumentando a velocidade de rotação de suas palhetas no decorrer da cena e produzindo uma ventilação direcionada ao próprio Benjamin. Com os cortes de edição entre os enquadramentos de plano médio em Benjamin e os enquadramentos voltados ao ventilador, demarcando o momento de interação entre ambos, a cena tem a duração de 16’’. Durante o espetáculo, ao interagir com o prefeito e a primeira dama, como de costume nas apresentações do circo, Benjamin, em cena no picadeiro como o palhaço Pangaré, vivencia um terceiro momento de delírio com a imagem de ventiladores. A cena ocorre aos 55’56’’, quando foi utilizado um efeito de edição que resultou em uma imagem granulada e desfocada, reforçando a ideia da alucinação. A cena segue e Benjamin continua com seu senso de orientação alterado. Aos 56’07’’ o personagem imagina ver outros ventiladores espalhados pela plateia e a cena é finalizada ao 56’09’’, quando o palhaço Puro-sangue improvisa um quadro de embriaguez para justificar a postura do palhaço Pangaré no picadeiro.

Frame referente ao momento de 55’56’’ do filme O Palhaço.

Com o decorrer da história, Benjamin abandona a trupe circense e segue em busca de um endereço pessoal e profissional fixo. Já 1447

locado na cidade de Passos, Benjamin busca um emprego de atendente em uma loja do setor de eletrodomésticos. Em 01h05’49’’, pelos reflexos no vidro do balcão é possível perceber ventiladores e aparelhos de som nas prateleiras da parte interna da loja. Ao buscar informações sobre o trabalho, Benjamin novamente recebe a resposta de que é preciso portar documento de identidade, CPF e comprovante de residência. Na cena referente à 01h07’45’’ Benjamim, após adquirir toda a documentação necessária, começa em seu novo emprego, na loja de eletrodomésticos e encontra-se rodeado de ventiladores. Nesse primeiro momento o trabalho parece monótono e Benjamin não parece compreender ainda o seu papel social naquele local. A cena em questão tem a duração de 09’’.

Frame referente ao momento de 01h07’45’’ do filme O Palhaço.

Antes de seguir a análise, uma cena do início do filme precisa ser mencionada

para

que

uma

referência

inserida

a

seguir

seja

compreendida. Após a primeira apresentação da trupe, nas cenas inicias do longa, uma mulher desperta a curiosidade de Benjamin. Apresentando-se como Ana, a moça o convida para levar o espetáculo circense até Passos, uma cidade próxima, também no interior de Minas Gerais e em seguida, cita o nome da loja em que trabalha: Aldo autopeças. No instante equivalente a 01h08’35’’, Benjamin entra na loja Aldo autopeças em busca de Ana. As peças 1448

expostas na parede após o balcão estão organizadas em formato circular, com aspecto de palhetas de ventilador. Um índice remissivo ao elemento chave do filme O Palhaço. A cena tem pouco mais de um minuto e se encerra em 01h09’39’’.

Frame referente ao momento de 01h08’35’’ do filme O Palhaço.

Logo na cena seguinte, Benjamin encontra-se na posição de vendedor da loja de eletrodomésticos, do lado de dentro do balcão, assumindo a posição que nunca estivera antes e respondendo o que já havia escutado de outros vendedores sobre a compra parcelada dos produtos: identidade, CPF e comprovante de residência. A cena em 01h10’14’’ introduz um encontro de Benjamin com colegas do novo trabalho. O ventilador de teto aparece durantes 4’’ e em seguida o personagem aparece pensativo, em plano médio, olhando para cima, na direção do ventilador. Essa fase já consiste no descomplicar da trama, quando Benjamin está em um novo processo de reflexão, pensando nas suas atuais atividades e em como era sua vida no circo. Há a descoberta de que sua identidade permanece no ambiente circense, por mais que novos ares tenham sido vivenciados. Aproximando-se do momento final do filme, a cena seguinte em que o ventilado aparece é a de 01h11’38’. A partir deste momento se tem início a uma sequência de cenas que deixa explícitas um caráter de continuação. Trata-se de Benjamin viajando com ventilador, com 1449

uma aparente leveza de quem

conseguiu encontrar sua real

identidade. Inicia-se com Bejamin e o ventilador na garupa de uma bicicleta, seguida por uma cena de ambos em um carro de passageiros e, por último, na parte traseira de um caminhão. Nessa última já é possível rever Benjamin como palhaço, satisfeito em fazer rir duas mulheres que também seguiam viagem. A cena completa tem duração de aproximadamente 2’.

Frame referente ao momento de 01h13’10’’ do filme O Palhaço.

Por fim, a última cena em que o ventilador aparece em O Palhaço é justamente a última cena do filme. Trata-se de um plano sequência que passa por toda a extensão do circo, chegando finalmente ao lugar onde dormem os artistas. Em 01h21’12’’ o ventilador entra em cena em um movimento de zoom in, no último quadro do longa, que tem duração de 12’’. Após o processo de decupagem e descrição das cenas em que o ventilador aparece como elemento chave da narrativa, a fase da análise possibilita a identificação do sentido produzido pela imagem do objeto. No decorrer da análise fílmica a representação simbólica do ventilador vai sendo desvendada a partir da desconstrução da crise emocional do personagem principal do longa. O ventilador surge como um elemento simbólico intensificador da problemática da narrativa. Durante o conflito psicológico vivenciado por Benjamin, o desejo de comprar um ventilador é intensificado juntamente com a necessidade 1450

da descoberta de sua real identidade. Para que ambos sejam realizados, Benjamin passa pela experiência de ter um endereço pessoal e profissional fixo. A oscilação circular do objeto cênico foco do presente artigo, ou seja, as voltas que compõe o movimento do ventilador sintetizam seu simbolismo no filme, representando as voltas dadas pelo personagem Benjamim

durante

seu

conflito

psicológico.

Ainda

refletindo

a

representação do objeto, ao final do filme Benjamin fecha seu ciclo com uma volta completa e encontra-se no mesmo lugar de onde partiu, no entanto, passa a vivenciá-lo sobre outra perspectiva. O ventilador torna-se, por fim, um elemento simbólico da busca pela real identidade do personagem, revelando-se, um dispositivo chave para que Benjamin percebesse, após as novas experiências vivenciadas, que sua vida e sua identidade permaneciam no ambiente circense.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Analisar a representação e seu processo de significação dentro do

próprio

contexto

audiovisual

em

detrimento

do

efeito

da

representação sobre o público possibilita o entendimento do contexto social e simbólico das imagens cinematográficas. Dessa forma, o presente estudo limitou-se a abordar o representado, partindo da existência de um elemento chave de representação simbólica no interior da narrativa de O Palhaço. O ventilador, objeto em análise, apareceu como elemento de significação conotativa, rodeado de abstrações próprias da produção imagética. Intensificador de um sentimento responsável pela condução da narrativa torna-se ainda elemento chave de uma representação simbólica.

Sua

função

referencial

abre

espaço

para

diversas

interpretações, leituras sobre o seu papel real na história do filme, que só 1451

serão possíveis de acordo com o repertório do público no processo de compreensão do objeto como código. NOTAS 1. As marcações temporais das cenas decupadas e analisadas correspondem ao tempo decorrido no produto audiovisual como um todo, contando com a inserção das informações de patrocinadores e apoiadores e dos créditos iniciais. 2. Os arquétipos são formas de apreensão, e todas as vezes que nos deparamos com formas de apreensão que se repetem de maneira uniforme e regular, temos diante de nós um arquétipo, quer reconheçamos ou não o seu caráter mitológico. (JUNG,1984, p. 141).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUMONT, Jaques. A imagem. Campinas, SP: Papirus, 1993. DONDIS, Donis A. Sintaxe da linguagem visual. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. FLUSSER, Villém. Filosofia da caixa preta. São Paulo: Editora Hucitec, 1985. _____. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac Naify, 2007. JUNG, C. G. A dinâmica do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1984 SANTAELLA, Lúcia. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora, visual, verbal. São Paulo: Iluminuras, 2005. _____. Semiótica aplicada. São Paulo: Pioneira Thomson Leraning, 2005.

FILMOGRAFIA UTILIZADA O Palhaço (2011). Direção: Selton Mello. Duração. Duração: 90min. Roteiro: Selton Mello e Marcelo Vindicatto.

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CORPOS DIVERGENTES: RESSIGNIFICAÇÃO DO CORPO FEMININO NO FILME “CRIME DELICADO” À LUZ DO ENSAIO MULHERES, NEGROS E OUTROS MONSTROS

Raquel P. do Amaral Camargo 411 Eduardo R. Rabenhorst 412

Resumo: O presente artigo se propõe a refletir sobre algumas práticas subversivas de gênero, ligadas ao campo da arte, vividas Inês, personagem do filme Crime Delicado. A nossa hipótese interpretativa é a de que tais práticas levam Inês a ressignificar o próprio corpo que é, a priori, enquadrado como divergente. O contexto geral do filme é marcado por uma tensão pode ser assim resumida: Inês, uma moça atraente que não possui uma perna, é levada a construir a imagem de si mesma tomando como referência, por um lado, a experiência vivida enquanto musa inspiradora de um artista plástico mexicano e, por outro, as impressões que Antônio, crítico de teatro frio e pouco passional, emite sobre ela. Tomaremos como fonte de inspiração a idéias desenvolvida no artigo Mulheres, negros e outros monstros: um ensaio sobre corpos não civilizados, da autoria de Cynthia Hamlin e Jonatas Ferreira, segundo a qual a construção de um discurso civilizador ocidental está na base do controle que é exercido sobre os corpos considerados divergentes.

1. INTRODUÇÃO O pensamento ocidental, historicamente, se estrutura a partir de uma concepção dual da realidade. É característico da cultura do ocidente estabelecer dualismos, dicotomizar, separar: corpo versus mente, prazer versus razão, natureza versus cultura, civilização versus barbárie etc. Estes binômios acabam por reger e disciplinar a nossa apreensão da realidade. No ensaio Mulheres, negros e outros monstros: um ensaio sobre corpos não civilizados, os autores se atêm à análise da divisão estabelecida entre civilização e barbárie e argumentam que ela está 411

Mestra em Ciências Sociais (UFPB), Professor do Departamento de Ciências Sociais (UFPB). [email protected]. 412 Professor Doutor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). [email protected].

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na base da formulação de um discurso civilizador por parte do ocidente. A elaboração de tal discurso, por sua vez, possuiria uma relação direta com o controle que foi estabelecido sobre aqueles corpos considerados divergentes, isto é, que fugiam aos padrões estéticos tidos como “normais”. No presente trabalho, nós nos acostaremos às reflexões feitas sobre as implicações de um discurso civilizador ocidental para o controle dos corpos, sobretudo os femininos, e as tomaremos como quadro de referência que norteará as nossas próprias reflexões acerca do filme Crime Delicado. A nossa hipótese fundamental é a de que a personagem Inês, através das subversões que lhe possibilitam o campo da arte, consegue atribuir ao próprio corpo significados positivos, a despeito do olhar da sociedade que o valora negativamente.

2. DISCURSO CIVILIZADOR: CORPOS NÃO CIVILIZADOS A ideia de civilização encontra um importante fundamento na divisão feita entre “mundo da natureza” e “mundo da cultura” e na proximidade que, historicamente, se supôs existir entre alguns seres e o mundo da natureza. De acordo com os autores do já mencionado artigo, os seres que, no imaginário ocidental, aparecem como mais próximos do mundo da natureza são as mulheres, os negros e os monstros (HAMLIN e FERREIRA, 2010, p.811). Da existência desses seres fronteiriços, que não fazem parte totalmente do mundo da natureza, mas estão muito perto dele, surgiu a necessidade de criar um espaço de civilização: “um espaço em que, da segurança do mundo da cultura, seja possível objetivar e controlar esses seres fronteiriços” (HAMLIN e FERREIRA, 2010, p.812). Em outras palavras, é do mundo da cultura que se pode exercer o controle sobre os corpos que transitam entre dois espaços, sobre os seres fronteiriços, aqueles que não se encontram nem lá nem cá. É no mundo da cultura 1454

que se instala a civilização, em contraposição à barbárie, que tem como lugar ideal e apropriado o mundo da natureza. Acontece, porém, que diferente do que possa parecer à primeira vista, o fundamento último do discurso civilizador forjado pelo ocidente não reside na existência de um ou de outro espaço (cultura e natureza), mas sim na impossibilidade de romper com esta dicotomia: “(...) o discurso civilizador não se estrutura exclusivamente em um dos pólos dessa oposição, mas na arquitetura que coloca tais alternativas como inquestionável” (HAMLIN e FERREIRA, 2010, p.812). Ambiguamente, a dinâmica da categorização e controle dos corpos considerados estranhos se funda na necessidade de excluir para poder incluir, e na inclusão a partir da exclusão: “incluir o outro sob o estigma da exclusão”. (HAMLIN e FERREIRA, 2010, p.812). É este o paradoxo que encerra não apenas a estrutura do discurso civilizador, mas de todos os outros discursos que necessitam do “outro” para se legitimar. Trocando em miúdos, ao passo que os seres fronteiriços precisam

ser

controlados

a

partir

do

espaço

de

segurança

proporcionado pelo mundo civilizado, a sua existência é fundamental para que existam corpos considerados civilizados: (...) o outro é aquilo que em princípio não deve circular, mas também aquilo que não pode deixar de circular, sob pena de privar o discurso civilizador da oposição que o funda: em sua feiura, desproporção, desordem, o monstro é o outro do civilizado (HAMLIN e FERREIRA, 2010, p.815).

Pode-se, pois, concluir que o espaço da normalidade, do civilizado, só pode ser forjado em oposição a um espaço de não civilização, o que faz com que a existência do “outro” seja uma necessidade, uma forma de dar legitimidade à existência daqueles que não encarnam em si a alteridade. Em outras palavras, os critérios para definir aquilo que é normal só podem ser forjados quando se sabe o que é considerado anormal. Por outro lado, se é verdade que o “outro” precisa existir, essa existência precisa ser controlada, para que não extrapole os seus 1455

espaços. Do contrário, os limites entre corpos civilizados e não civilizados ficariam nebulosos (HAMLIN e FERREIRA, 2010, p.812). A ambiguidade produzida pela impossibilidade de romper com a separação entre mundo da natureza e mundo da cultura, que equivale à divisão entre barbárie e civilização, não se encerra por aí. A maneira que o pensamento ocidental valora a natureza é em si mesma contraditória. Esta aparece, ao mesmo tempo, como aquela que dá a vida e aquela que abriga toda a morte (HAMLIN e FERREIRA, 2010, p.815). Reitere-se, pois, que é essa ambigüidade, que, paradoxalmente, fortalece o discurso civilizador: é preciso que o outro exista e que seja incluído sob o estigma da exclusão para que possam existir aqueles considerados plenamente incluídos e aceitos como “normais”.

2.1 O olhar Se do conforto do mundo da cultura a alteridade é concebida e percebida, cabe notar que esta alteridade só é passível de ser construída, ou melhor, inventada, porque do lado de cá há aqueles que olham. O olhar, ou se preferir, a mirada, é o principal meio de constituição e de determinação do “outro”: “a visão é o sentido da objetivação, o sentido capaz de promover uma separação entre sujeito e objeto: vejo aquilo sobre o qual ganho perspectiva, distância” (HAMLIN e FERREIRA, 2010, p.816). Aquele que olha é capaz de objetivar o outro; aquele que é olhado é induzido a se sentir, verdadeiramente, o “outro”; é levado a ocupar o lugar que lhe foi imposto. É dentro dessa dinâmica de olhar e ser olhado que algumas pessoas acabam por construir suas identidades psicológicas tomando como referência unicamente os olhares que lhes são lançados. Em sua forma extrema, esse despojamento de si mesmo em função dos olhares alheios consiste na completa destituição e 1456

esvaziamento da subjetividade, no aniquilamento de si enquanto pessoa. A despersonalização em função do olhar externo, aquele que nos é lançado de fora, é representada em suas últimas consequências na História do Olho, de Georges Battaille. Nesse livro, a força do olhar é tamanha que, como lembra Roland Barthes (BARTHES, 2012 in BATAILLE, 2012), é o próprio olho o protagonista do livro. É ele que tem uma história e é essa história que é narrada. Trata-se de um olho sem rosto, que traduz muito bem o desejo do autor de escrever para apagar o próprio nome (BATAILLE, 2012). De fato, o olhar pode ser a tal ponto poderoso que é capaz de nos destituir de nós mesmos: “Existem miradas capazes de nos paralisar, de exercer controle sobre os nossos espíritos – e os aniquilar como tais” (HAMLIN e FERREIRA, 2010, p.816). Há uma relação de muita proximidade entre o “olhar” e o “controle”, entre o “ver e ser visto” e o “controlar e ser controlado” (HAMLIN e FERREIRA, 2010, p.816).

Aquele que olha, comumente, está

hábil para exercer o controle. Não é sem propósito que ao longo da história tenham sido feitas tantas associações entre o olhar e as forças demoníacas, que subjugam e controlam. Tanto que, dentre os diversos ardis e estratégias boladas para fugir e driblar o poder da mirada, se encontra o espelho, objeto capaz de iludir e enganar o próprio olhar (RABENHORST, 2012). Nunca é demais lembrar o mito de Perseu e Medusa. Esta, que teve os cabelos transformados em cobras por Minerva, é descrita como tão feia e assustadora que quem a olhasse se transformava imediatamente em pedra. A forma que Perseu encontrou de combatêla foi justamente através do escudo espelhado, que permitia olhar para Medusa, mas não ser olhado por ela. A relação entre quem olha e quem é olhado é crucial para entender como se exerce o controle dos corpos. Poderíamos, inclusive,

1457

transformá-la em uma pergunta: quem pode olhar e quem se submete a ser olhado? 2.2 - O discurso científico e a construção de imagens monstruosas dos corpos femininos Por que algumas pessoas se deixam invadir pelos olhares dos outros? Porque consentem em ser definidas unicamente a partir daquilo que os outros pensam a respeito dela, como se fossem revestidas por uma superfície porosa que absorve todo e qualquer olhar, sem nenhuma seletividade? Da onde vem esse poder de quem olha e essa fragilidade e vulnerabilidade de quem é olhado? Uma reflexão mais profunda acerca desses questionamentos implicaria em pensar os fundamentos das relações de poder que nos regem. Em outras palavras, implicaria em refletir acerca do próprio poder. Para o que nos interessa neste artigo, trabalharemos como um recorte que, se não explica na totalidade a dinâmica do olhar e do ser olhado, como ademais, entendemos que nenhuma explicação poderia ser tão abrangente, desvela uma lógica importante que rege esse jogo de olhares. Consideremos então o raciocínio segundo o qual a consolidação de um discurso científico pelo ocidente, e, em larga medida, de uma racionalidade

exercida

através

da

rígida

sistematização

do

pensamento, implicou na construção de imagens monstruosas do corpo feminino, e isso levou muitas mulheres, nas mais diversas situações, a acreditarem que de fato ocupavam esta posição. (HAMLIN e FERREIRA, 2010). Para desenvolver este raciocínio, comecemos, pois, falando um pouco das representações feitas sobre as mulheres e do que representa a figura do monstro. Percebe-se que há um elemento recorrentemente presente nas conhecidas representações das mulheres feitas no âmbito da literatura, da pintura ou da música: a ambigüidade. Assim como a natureza, que 1458

abriga sobre a terra “o ventre nutridor” e também o “reino dos mortos” (DELUMEAU, 1999 apud HAMLIN e FERREIRA, 2010, p.814), as mulheres também carregam consigo a perplexidade de representarem, ao mesmo tempo, a vida e a morte, a luz e as trevas: Por um lado, a mulher é vista como mãe santificada, mãe puríssima, caminho para a salvação. Seu corpo pode estar associado à fertilidade, à fecundidade, à virtude de possuir qualidades apotropaicas, isto é, capazes de afastar malefícios e desgraças. (...) Ao mesmo tempo, a mulher é percebida como puta, agente do demônio, noturna, caminho para a perdição, “vagina dentada”, ausência de pênis (HAMLIN e FERREIRA, p.814).

No campo da literatura, um ótimo exemplo da ambigüidade que encerra a representação das mulheres é o suicídio da negra Bertoleza, narrado no romance realista de Aluizio de Azevedo: O suicídio da negra Bertoleza, no Cortiço, de Aluizio de Azevedo, é traduzido como a voz da natureza acuada, caos de sangue e tripas, escamas de peixes, a confirmação da sua condição subalterna, e, ao mesmo tempo, a negação radical dessa condição (HAMLIN e FERREIRA, p.815).

Se a mulher costuma ser representada pela sua ambigüidade, e a figura do monstro, o que representa? O monstro aparece como a representação ideal da alteridade, ele “marca a fronteira entre criação e corrupção, ordem e caos (...)” (HAMLIN e FERREIRA, 2010, p.812). O monstruoso nos remete a desproporção, hibridez, falta de equilíbrio, feiúra, avesso, a própria natureza quando erra: Entre todas as coisas que podem ser contempladas sob a concavidade dos céus, não se vê nada que mais desperte o espírito humano, que mais arrebate os sentidos, que mais assuste, que provoque entre as criaturas uma dominação ou um terror maior que os monstros, os prodígios e as abominações, nos quais se vêem as obras da natureza invertidas, mutiladas, truncadas.(BOAISTUAU, apud BATTAILLE, 2012).

A associação das mulheres aos monstros, pode-se dizer, assume uma forma concreta mediante o desenvolvimento da concepção ocidental de ciência. Neste processo, um elemento que merece 1459

destaque é o ato de observar. A observação é decisiva na formação da imagem monstruosa do outro. Aquele que observa á capaz de tratar o outro como coisa, como alguém desprovido da capacidade de pensar e de fazer julgamentos próprios. Foi exatamente isso que aconteceu no caso extremo de Saartjie Baartman, também conhecida como a Vênus de Hotentote. A forma como S. Baartman foi submetida aos olhares científicos, à sistematização do pensamento ocidental, exprime todo o horror da desumanização e da completa privação daquilo que o ser humano tem de mais fundamental: a sua liberdade. Tomaremos esse caso como exemplo de como se operava a categorização e o controle dos corpos, sobretudo os femininos, pelo discurso científico. Sara413 Bartmaan, a Vênus de Hotentote, chegou à Inglaterra em 1810, trazida em um navio inglês proveniente do território que hoje corresponde à África do Sul. Sara fazia parte de uma etnia conhecida como “Khoisan”, que foi denominada por colonizadores holandeses de “hotentote”, palavra que se assemelhava aos sons onomatopéicos produzidos por certos dialetos africanos “hot-en-tot” (HAMLIN e FERREIRA, 2010, p.823). Na Inglaterra, Sara foi exibida como atração circense nos palcos dos “freak shows” (shows de aberração) que estavam intimamente relacionados com um projeto colonialista e de expansão capitalista. A exibição de pessoas consideradas aberrações, no limite entre a civilização e a selvageria, permitia a criação de um imaginário sobre como era o mundo europeu não civilizado: no mínimo estranho e muito exótico. Em 1814 Sara Baartman foi levada para França, aonde, a pedido do naturalista Georges Cuvier, à época administrador do Museu de História Natural de Paris, teve a sua nudez exposta para olhares de cientistas e artistas no Palace du Roi. Sara possuía duas características

413

Saartijie é o diminutivo de Sara: “pequena Sara”. Era comum colocar o nome de escravos no diminutivo, em alusão ao fato de que eles eram como crianças (QURESHI,Sadiah, 2004 apud HAMLIN e FERREIRA, 2010, p.824).

1460

que eram objeto de particular curiosidade para os naturalistas franceses no início do século XIX: a hipertrofia das nádegas, também chamada de esteatopigia, que significa acúmulo de gordura nas nádegas, e uma espécie de alongamento da genitália.

Havia, à época, relatos de

viajantes afirmando que os membros da etnia khoisin, quando mulheres, apresentam algo semelhante a um avental na genitália: “uma dobra de pele semicircular que pende da parte inferior do abdômen, cobrindo a genitália externa” (BAKER, 1974 apud HAMLIN e FERREIRA, 2010, p.827). Sara foi exaustivamente olhada, observada, classificada, medida e enquadrada. Fez parte de ilustrações do livro História Natural dos Mamíferos, de Cuvier e Saint-Hilaire, este conhecido por ser o fundador da teratologia moderna (HAMLIN e FERREIRA, 2010, p.827). Durante sua estadia breve na França – em 1815 Baartman falece – continuou sendo exibida em salões de shows exóticos, juntos com anões e gigantes, de forma extenuante, como retrata à exaustão o filme Vênus Negra, dirigido pelo tunisiano Abdellatif Kechiche. Após a sua morte, Sara Baartman teve a sua genitália exibida no Musée de L’homme, em Paris, até 1974. Com o fim do apartheid na África do Sul e a eleição de Mandela, Sara teve enfim o seu corpo repatriado para a sua terra de origem. Este é um caso extremo que permite ilustrar como o olhar científico, através do exercício de categorização e classificação, opera a valoração negativa, no limite monstruosa, de determinados corpos. Passemos agora às reflexões sobre as possibilidades de ressignificação de corpos femininos que já previamente se enquadram na categoria de estranhos e divergentes.

2.3 - Um crime delicado

1461

O título do tópico alude ao filme sobre o qual nos debruçaremos e já anuncia, de certa forma, o componente de violência simbólica que o caracteriza. A delicadeza que adjetiva o crime, remete, em uma primeira leitura, à dissimulação daquilo que todo crime tem de grotesco. Crime Delicado é um longa-metragem dirigido por Beto Brant, realizado em 2005, inspirado no livro de título homônimo do escritor brasileiro Sergio Sant’anna (1997). Ambientado no Rio de Janeiro, o filme conta a história de Antônio Martins, crítico de teatro muito respeitado e conhecido pela ferocidade de suas análises, e Inês, uma moça extrovertida que não tem uma perna, e cuja beleza, distante dos tradicionais cânones estéticos, exerce em Antônio um profundo fascínio. Antônio representa no filme a figura do intelectual autocentrado, que coloca o agir racional como uma das mais importantes faculdades humanas. Vera Follain o descreve como alguém “confiante na objetividade de suas apreciações

sobre as

peças, seguro da

universalidade das categorias que utiliza para julgá-las e da isenção que o olhar distanciado lhe garantiria” (FOLLAIN, 2008, p.7). A pretensa racionalidade de Antônio fica muito clara quando ele define sua atividade de crítico como: Um exercício de razão diante de uma emotividade aliciadora, ou de uma tentativa de envolvimento estético que devemos decompor, para não dizer denunciar, na medida do possível como elegância (SANT’ANNA, 1997, p.18 apud FOLLAIN,2008, p.7).

Inês, por sua vez, aparece como aquela que tem a subversão gravada no próprio corpo. O “defeito” de Inês, a ausência de uma perna, é visível a olhos nus. O encontro entre Antônio e Inês ocorre em um bar, da onde Antônio sai visivelmente atraído por uma moça cuja beleza não se enquadra nas suas categorias de “equilíbrio estético” (FOLLAIN, 2008, p.6). A fragilidade de Inês desperta em Antônio o desejo de se apropriar dela, sentimento que ele traduz para si mesmo como um 1462

apaixonamento. A partir daí, ele assume a posição de seu protetor. Esta postura se acentua após Antônio ir a uma exposição denominada “corpos divergentes”, a convite de Inês, e descobrir que ela é musa inspiradora do artista plástico mexicano José Torres Campana. Nas telas expostas, Inês aparece pintada nua, junto à Campana, em posições eróticas que só são possíveis pelo espaço deixado no lugar aonde deveria haver uma perna. Aparentemente chocado com o que vê, Antônio se coloca como obrigação fazer com que Inês tenha consciência da situação de exploração, aprisionamento e enganação da qual ela faz parte. Tentará mostrá-la, de todas as maneiras, que os quadros para os quais ela pousa não configuram arte, mas sim pornografia; que a propositada reprodução dos cenários dos quadros no quarto de Inês, nos fundos da casa de José Campana, é uma prova de que ela é um personagem nessa história toda, e não sujeito; e que ela deve, enfim, denunciá-lo. São estas as palavras de Antônio Martins na cena que acabamos de descrever: Você não quer que eu vá embora, você quer escutar o que eu tenho para dizer ao seu respeito, ou melhor, a respeito daquele quadro, desse pintor (...) Você não é só modelo, você é uma personagem, isso aqui não é um ateliê, é um cenário pseudoconceitual e você está encarcerada aqui, submetida a excentricidade de um artista ordinário. Você está sendo enganada, isso não tem nada de arte, é só perversão, ele é um fetichista e você é uma atriz pornô dele (Crime Delicado, 2005).

Toda a ironia da situação reside no seguinte fato: este discurso, que aparentemente traz consigo tamanha lucidez que possibilita a Inês ver aquilo que por si só ela não é capaz de enxergar, é proferido em circunstâncias absolutamente irracionais. Antônio chega embriagado na casa de Inês, entra contra a sua vontade, faz perguntas sobre a intimidade de sua vida, observa seu quarto, suas coisas, e se sente no direito de proferir o seu julgamento. A cena acaba com um estupro, cuja violência, fática e simbólica, fica muito clara.

1463

Difícil não associar Antônio Martins à prepotência do discurso ocidental e à figura do intelectual que se julga sempre capaz de falar pelo outro. Antônio se sente legitimado para julgar a vida de Inês levando em consideração os seus próprios valores e a vocação totalizadora de seus critérios. A relação entre Antônio e o discurso civilizador ocidental não pode ser feita de forma direta, mas algumas associações nos permitem jogar luz na situação. O julgamento que Antônio faz de Inês não é apoiado em um discurso científico, pois ele é um crítico de arte, porém, a sistematização do pensamento, a rigidez dos métodos utilizados, a necessidade de coerência, a objetividade e o extremo predomínio da razão estão presentes em seu discurso e fazem parte das características mais visíveis deste personagem. Estes elementos, de modo geral, estão na base da racionalidade que funda o discurso científico ocidental. Quando chega à casa de Inês, de madrugada, Antônio justifica sua presença ali em virtude de seu apaixonamento, dizendo que antes de conhecer Inês “via a vida com a pretensão daqueles que estavam vacinados” (Crime Delicado, 2005). Antônio traz consigo a marca ocidental da apreensão dual da realidade. Tal como o discurso civilizador ocidental, que se funda em dualidades como mundo da natureza e mundo da cultura, para Antônio é inconcebível superar algumas dicotomias. Ele separa e coloca em uma relação de oposição a emoção e a razão, o corpo e a mente e, sobretudo, a vida e a arte. Enquanto crítico ele nunca sai com artistas, por exemplo, pois isso implicaria em misturar as coisas. É exatamente por isso que, nas palavras de Vera Follain, Antônio Martins não conseguirá ler a cena em que Inês se insere, não conseguirá entender o papel que desempenha na relação que mantém com ele próprio, o crítico, nem com Brancatti, o pintor. Martins rejeita a diluição das fronteiras entre palco e platéia, entre arte e vida operada pela obra de Brancatti414 (FOLLAIN, 2008, p. 7).

414

O pintor Brancatti, do livro Crime Delicado de Sergio Sant’anna, é representado no filme por José Torres Campana, artista plástico mexicano.

1464

José Torres Campana, (que na citação acima aparece como Brancatti), ao contrário, rompe com a dicotomia entre vida e arte. Simbolicamente, poder-se-ia dizer que ele está rompendo com a própria visão dual da realidade. Tanto que, diferentemente de Antônio Martins, as suas referências não são ocidentais. Ele se inspira nas artes Incas, Astecas, pré-colombianas... Não separa a vida da morte, une a natureza à cultura, une aquilo que é orgânico às infinitas possibilidades de criação e recriação. Na atividade artística de Campana, aquilo que no corpo de Inês poderia parecer como monstruoso é transformado no belo. O grotesco, o áspero e o desordenado são transformados em sutileza, em delicadeza. É o vazio deixado pela ausência física da perna que estimula e nutre a erotismo do instante fugaz e mágico da pintura.Essa racionalidade que rege a relação entre Inês e o pintor José Campana foge aos cânones artísticos de Antônio e à forma como o seu raciocínio está acostumado a enquadrar a realidade. Para Antônio, não se trata de arte, mas de corrupção, enganação. Interessante a analogia que pode ser feita entre o trabalho de Campana e as impressões que Antônio tem dele, e a dicotomia deus versus demônio, na qual apenas deus possui o poder de criar, ao demônio só é consentido misturar os elementos já existentes. Nas palavras de Cynthia Hamlin e Jonathas Ferreira, De acordo com Kramer e Sprenger (Heinrich, KRAMER e James, SPRENGER, 1991), o demônio não possui força criativa; seu poder corruptor está em, com a permissão de Deus, misturar de modo nocivo elementos já existentes no mundo. Assim é possível dizer que o demônio é pura entropia. Sua força reside em retirar tais elementos de seu lugar próprio, combinando-os de modo caótico, monstruoso (HAMLIN e FERREIRA, 2010, p.817).

Inês, por sua vez, traz consigo a ambigüidade dos corpos capazes de provocar fascínio e ao mesmo tempo repulsa, de invocar beleza e ao mesmo tempo estranheza, desproporção, falta de simetria. É interessante perceber como Inês titubeia, mas ao fim consegue se 1465

esquivar do regime de olhar de Antonio. Consegue diferenciar a sua identidade pessoal e a imagem que ela construiu acerca dela própria, forjada partir da relação com José Campana, da sua identidade social, traduzida no julgamento que Antônio faz dela. Durante o julgamento da acusação de estupro feita por Inês a Antônio, o advogado de Antônio pergunta à Inês de que forma Antônio a ofendeu, e ela responde: “ele ofendeu o que é mais sagrado na minha vida que é minha relação com José Torres Campana” (Crime Delicado, 2005). Pode-se dizer que Inês enfrenta o olhar e o julgamento de Antônio e consegue vê-lo como o outro. Há uma inversão de perspectiva que é proporcionada pela experiência artística que ela tem com José Campana. Em outras palavras, é através da arte e não da coerência e racionalidade do discurso objetivo e sistematizado que Inês consegue ressignificar o seu corpo. Outro aspecto interessante é que Antônio julga que Inês precisa de proteção, ou melhor, da sua proteção, como se ela tivesse a condição de infante, como os escravos, que simbolicamente não atingem nunca a idade adulta e por isso não podem ser responsáveis por si mesmos. Em Crime Delicado, o erotismo aparece como o lugar ideal para o rompimento com as dicotomias que prevalecem na visão ocidental. De acordo com Vera Follain, A questão do erotismo está presente na obra como um campo privilegiado para a problematização da palavra como suporte de todo o arcabouço racionalista da cultura ocidental. O erotismo se alimenta da tensão entre corpo e linguagem, presença e ausência: não pode prescindir do outro (é preciso existir alguém que sirva de estímulo para a experiência erótica), mas, ao mesmo tempo, tende a anulá-lo (...) (FOLLAIN, 2008, p.5).

A ideia de José Campana é justamente romper com essas tensões presentes nas relações eróticas através dos processos criativos proporcionados pela arte. Tanto ele, enquanto artista, ou seja, na 1466

condição daquele que cria, como Inês, na condição de modelo, ficam nus no momento de pintar os quadros. Isso faz com que a relação entre poder e vulnerabilidade se anule e que ambos sejam igualmente vulneráveis e poderosos. 3. À GUISA DE CONSIDERAÇÕES FINAIS É na concretude dos corpos que a alteridade ganha forma. Bartmaan é um caso típico, levado as suas últimas consequências, de como a representação do monstruoso se encarna no corpo de uma mulher e de como a construção social da identidade acaba por se sobrepor a construção pessoal da identidade (HAMLIN e FERREIRA, 2010, p.813). Em casos como este, a diferença entre “ser vista” como um monstro e “ser” um monstro praticamente desaparece. Trabalhamos em cima da hipótese segundo a qual Inês, personagem do filme Crime Delicado, através de práticas subversivas ligadas ao campo da arte, consegue ressignificar o próprio corpo que, a priori, é enquadrado como estranho e divergente. Durante o filme, a afirmação da identidade de Inês se dá em meio a uma forte tensão: por um lado, a atividade artística junto ao pintor José Campana permite uma sensualização e erotização do corpo que a liberta do estigma de ser uma mulher não atraente por lhe faltar uma perna, e por outro lado, ela precisa enfrentar a crítica de Antônio Martins, intelectual respeitado, que não considera o seu trabalho de modelo como arte, mas sim pornografia de gosto duvidoso. Consideramos que, ao fim, as possibilidades ligadas à arte permitem que Inês não se submeta ao olhar de Antônio e lhe proporcionam a sua completa emancipação. Ao ter a necessidade de se afirmar perante Antônio, Inês acaba consolidando o reconhecimento que tem de si mesma e fortalecendo a identidade construída na relação com José Campana. Isso fica claro na cena final do filme, na qual Inês olha para si mesma pintada em um quadro exibido em 1467

exposição de corpos divergentes e, com ar de contentamento, retira a prótese que utiliza no lugar da perna e prossegue caminhando, de muletas, com uma perna só e um vestido preto que a deixam assimetricamente bela.

3.1 - Discurso final de José Campana Apenas para ilustrar, seguem alguns trechos do discurso de José Torres Campana, proferido nas últimas cenas do filme, reproduzidos tal como

foram

falados,

sendo

a

pontuação

ortográfica

de

responsabilidade dos autores. (...) falta uma perna, só isso, não tem problema nenhum. É uma pessoa em extremo sexual, extremo bonita, e eu acho que ainda posso ser atrativo, sensual... E essa combinação química que existe, que se dá no momento que os dois estão pelados, juntos, um sobre o outro, é um momento tão íntimo que anula toda possibilidade de violência nesse momento. Que exige suavidade, que exige doçura, que exige amor, possivelmente (...) (...) quando o artista fica pelado e a modelo fica pelada, a relação entre poder e vulnerabilidade acaba, os dois são iguais de vulneráveis ou iguais de poderosos. (...) temos dois momentos: um quando a vida começa e um quando a vida acaba. A morte, e o outro momento é quando a gente tem a possibilidade de começar a vida, sexo. Então você observa as obras Maias, Astecas, pré-colombianas, de Incas... Sempre estão presentes os dois momentos culminantes da humanidade: a morte, violentamente quase sempre, e a procriação, lindamente, eroticamente, sensualmente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARTHES, ROLAND. A metáfora do olho. In: BATAILLE, Georges. Historia do olho. Trad. Eliane Robert. São Paulo: Cosacnaify, 2012. BATAILLE, Georges. Historia do olho. Trad. Eliane Robert. São Paulo, Cosacnaify, 2012. 1468

CRIME DELICADO. Direção: Beto Brant, produção: Drama Filmes, 87 min., 2005. DELUMEAU, 1999. História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1999 apud HAMLIN, Cynthia; FERREIRA, Jonatas. Mulheres, negros e outros monstros: um ensaio sobre corpos não civilizados, Revista Estudos Feministas, Florianópoolis, 18(3): 336, setembro-dezembro 2010, p.814 FOLLAIN, Vera Lucia. Narrativa e poder: ficções pós-utópicas de Sergio Sant’anna. Revista Fronteira Z, São Paulo, Vol. 1, nº 1, março 2008. HAMLIN, Cynthia; FERREIRA, Jonatas. Mulheres, negros e outros monstros: um ensaio sobre corpos não civilizados. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 18(3): 336, setembro-dezembro 2010. RABENHORST, Eduardo. Aquela sou eu? João Pessoa: Ideia, 2012. SANT’ANNA, Sérgio. Um crime delicado. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. SOTINEL, Thomas. “Vénus noire": la Vénus dérangeante et bouleversante de Kechiche. Le monde, 27.10.2010. Disponível em: http://www.lemonde.fr/cinema/article/2010/ 10/26/venus-noire-lavenus-derangeante-et-bouleversante-de-kechiche_1431368_3476. html

1469

AS CORES CODIFICADAS NAS VESTIMENTAS DA PERSONAGEM CAPITU AO LONGO DA MINISSÉRIE DA GLOBO Rafaela Bernardazzi Torrens Leite 415

Resumo: A partir da análise das cenas da minissérie Capitu, veiculada em 2008 pela Rede Globo, o presente artigo busca verificar a importância das cores na construção da personagem Capitu ao longo da narrativa do produto audiovisual. Considera-se a evolução da caracterização da personagem ao longo dos episódios. Por meio da decupagem das cenas em que a personagem aparece de forma direta, compreendem-se as cores das vestimentas como artifício ligado ao psicológico de Capitu, atuando como elemento cênico carregado de significação. Consolida-se a análise de modo a perceber que a presença de elementos da linguagem visual podem carregar expressivas representações da narrativa de uma minissérie televisiva. Em Capitu, surge como um reflexo do amadurecimento de uma das personagens principais do romance Machadiano. Palavras-chave: Capitu, minissérie, cor, vestimenta, narrativa visual.

INTRODUÇÃO O presente artigo busca, por meio de uma análise da linguagem audiovisual, avaliar como ocorre o desenvolvimento da narrativa a partir de elementos cênicos ligados diretamente a composição da personagem Capitu, que compõe a cena no produto audiovisual de ficção seriada Capitu1, minissérie veiculada em cinco capítulos pela Rede Globo. É possível observar uma alteração nas características dos elementos cênicos com o desenrolar do enredo tratado pela minissérie. As

mudanças

estão

ligadas

diretamente

à

personalidade

das

personagens, uma vez que a história se inicia na infância de Bento Santiago, personagem principal, e termina em sua fase adulta. Ocorre em Capitu o progresso das personagens e mudanças de características

415

Mestranda no Programa de Pós-graduação em Estudos da Mídia da UFRN. [email protected].

1470

físicas e psicológicas. Junto a esse quadro, acontecem alterações de coloração na vestimenta, maquiagem, acessórios. Os padrões visuais dos produtos audiovisuais encontram-se em processo de evolução, como é possível observar atualmente na televisão brasileira. A primeira minissérie a trazer uma linguagem visual diferenciada foi Hoje é dia de Maria2, que foi ao ar no ano de 2005 pela Rede Globo. Desde então, produtos audiovisuais como A Pedra do Reino3 e Capitu, foco de análise do presente estudo, foram desenvolvidos e veiculados pela emissora, que optou por explorar um lado mais poético no tratamento da imagem que é transmitida em rede aberta nacional. O diretor Luiz Fernando Carvalho iniciou o trabalho com o Projeto Quadrante4, núcleo da Rede Globo responsável pela produção de uma cadeia de minisséries cujo mote seria a adaptação de obras literárias para a televisão. O primeiro trabalho veiculado foi a minissérie A Pedra do Reino, baseada na obra de Ariano Suassuna, exibida no ano de 2007, seguida por Capitu em 2008, uma releitura da obra Dom Casmurro, de Machado de Assis5. A partir da atribuição de novos significados por meio da produção de sentido ampliada pela indústria audiovisual e literária, Capitu apresenta uma integração entre diversas áreas como cinema, televisão, teatro, dança contemporânea, rádio e literatura. São diversas as características imagéticas que a minissérie agrega à linguagem visual comumente transmitida na televisão brasileira. O hibridismo entre linguagens das áreas já citadas inovou tanto no modo de apresentar uma obra clássica da literatura nacional, como no próprio modo como a linguagem e a narrativa audiovisual foi empregada. Capitu inovou ao apresentar a história de Capitu e Bento por meio da intertextualidade, empregando, entre outros, elementos típicos (1) do teatro (cenografia, maquiagem, figurino, iluminação); (2) do romance machadiano (diálogos precisos, fina ironia de um narrador intruso que interpela o leitor/telespectador, cuidada construção psicológica de personagens); (3) do cinema mudo (legendas, placas

1471

indicando o início de um novo capítulo do livro; locução e música típicas desse período do cinema); (4) de ópera (os grandes espaços no palco, os gestos dos atores, a música em função diegética) (LOPES; GÓMEZ, 2009, p.145).

Além disso, o uso de técnicas pela direção de fotografia resultou em efeitos visuais apurados, que se fundindo à narrativa, eram envolvidos na trama tornando-se persona ao desenvolver da história. A partir de uma análise fílmica da coloração de elementos cênicos usados na formação da personagem Capitu, foram observadas como tais

características

se

comportam

durante

todo

a

minissérie,

considerando a maquiagem, as roupas e os acessórios que a personagem usava.

NARRATIVA VISUAL A construção da narrativa televisiva parte principalmente da manutenção de uma relação com o expectador. A audiência se mostra uma ferramenta de auxílio no desenvolvimento de um modo de se “fazer” televisão e o relacionamento com o receptor nesta fase de “neotelevisão” (FLUSSER, 2008, p. 13) está em etapa de mutação, em consequência da tecnologia na comunicação. Flusser expõe que somos “testemunhas, colaboradores e vítimas de revolução cultural cujo âmbito apenas adivinhamos” (FLUSSER, 2008, p. 13), em que as imagens técnicas tomam forma de “superfícies imaginadas” (FLUSSER, 2008, p. 13). O homem se afasta da interpretação dos textos para ler em imagens, em registros fotográficos, televisão, internet. Vê-se dentro do sistema, como coloca Adorno (1985) em que, “a técnica da indústria cultural levou apenas à padronização em série, sacrificando o que fazia a diferença entre a lógica da obra e a do sistema social” (ADORNO, 1985, p. 100). A partir disso é possível adentrar em um debate da limitação que as imagens técnicas poderiam impor ao expectador, que não mais livre 1472

para imaginar com os textos, agora teria uma imagem pronta para ser “consumida”. Adorno acredita que o consumidor cultural tem sua imaginação e a espontaneidade atrofiadas, que tais imagens a partir de suas constituições objetivas paralisariam a capacidade de imaginar do ser humano. Ao contrário de Flusser, que observa que com a “consciência

imagística

do

imaginador

e

do

receptor

das

tecnoimagens” (FLUSSER, 2008, p. 43) a audiência “vê-se no extremo limite da abstração, e

por isto

mesmo, ela pode vivenciá-lo

concretamente” (FLUSSER, 2008, p. 43). Atualmente, a atrofia da imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural não precisa ser reduzida a mecanismos psicológicos. Os próprios produtos – e entre eles em primeiro lugar o mais característico, o filme sonoro – paralisam essas capacidades em virtude de sua própria constituição objetiva (ADORNO, 1985, p. 104).

A construção de uma narrativa visual requer uma formação de linguagem voltada para o desenvolvimento de personagens e ambientes planejados durante o tempo que durar o enredo. Para analisar como se deu a composição da personagem Capitu durante o produto audiovisual foram observadas as referências ligadas à formação da personagem em cena, principalmente as de composição visual referente à personagem, tais como maquiagem , figurino e acessórios. Para tratar dessa temática, são encarados estudos de Latour sobre como atores diretos deixam traços e geram informações a serem interpretadas pelos espectadores. Para Latour, ator é tudo que age, deixa traço, produz efeito no mundo, podendo se referir a pessoas, instituições, coisas, animais, objetos, máquinas, etc. Ou seja, ator aqui não se refere apenas aos humanos, mas também aos não-humanos [...] ator é definido pelos efeitos de suas ações, de modo que o que não deixa traço não pode ser considerado um ator. Ou seja, somente podem ser considerados atores aqueles elementos que produzem efeito na rede, que a modificam e são modificados por ela e são estes elementos que devem fazer parte de sua descrição (FREIRE, 2006, p. 55).

A partir disso não somente os personagens em si, mas tudo que os compõe pode ser encarado como ator na narrativa visual, uma vez que 1473

os

efeitos

de elementos

como maquiagem

e

figurino afetam

diretamente na construção de sentido da trama e das personagens. Os estudos de Latour ajudam a entender como os elementos cênicos de forma separada e unindo-se ao personagem colaboram para o entendimento e um desenvolvimento do enredo, de modo que não apenas elementos como roteiro, iluminação, direção de atores sejam importantes para o embasamento de uma história. Outros elementos visuais, tal como a coloração das vestimentas e maquiagem, carregam conteúdo interpretativo e funcionam como aliados para a formação da personalidade fazendo uma ligação entre espectador e personagem. A cor “é carregada de alusões psicológicas e morais. [...] No nível mais pobre a simbólica das cores se perde no psicológico: o vermelho passional, agressivo, o azul signo de serenidade, o amarelo otimista etc.” (BAUDRILLARD, 2006, p. 38). Segundo Baudrillard a cor leva com ela uma carga de significação muito forte, já ligado a tradições, “a coerência não é mais a de uma unidade de gosto e sim a de um sistema cultural de signos” (BAUDRILLARD, 2006, p. 47). Por isso um dos principais elementos que a presente pesquisa se propôs a investigar foi a colocação ligada tanto a maquiagem da personagem como nas vestimentas, uma vez que foi possível observar como as cores influenciaram no entendimento da personalidade da personagem Capitu ao longo da minissérie. A cor liberta é imediatamente retomada por um sistema em que a natureza entra somente com naturalidade, como conotação de natureza, atrás da qual os valores do instinto continuam a ser sutilmente negados. Todavia, a própria abstração dessas cores “livres” faz com que se achem, enfim, livres para jogo: é para essa terceira fase que se vê hoje em dia orientar-se a cor ao nível dos modelos, - fase que a da cor como valor de ambiência. [...] Ao passo que no sistema de ambiência as cores obedecem a seu próprio jogo, deligam-se de qualquer coerção, de qualquer moral, de qualquer natureza e respondem a um imperativo: o cálculo de ambiência (BAUDRILLARD, 2006, pp. 41-42).

Contudo somente a partir da percepção das cores é possível interpretar sua significação como ator. Segundo Sodré, a percepção “é 1474

a intuição primeira de um conjunto ou um todo exterior ao sujeito, a partir de uma impressão sensorial e graças a uma estrutura específica, sempre na dependência de um sentimento de realidade” (SODRÉ, 2006, p. 81). A intepretação a partir de uma percepção acontece baseada no repertório de cada expectador exposto ao material e livre para leitura pessoal. Dessa forma, como aponta Hall (2003) os modos como essa imagem será codificada e decodificada podem não ser simétricos, uma vez que os graus de simetria – ou seja, os graus de “compreensão” e “mácompreensão” na troca comunicativa – dependem dos graus de simetria/assimetria (relações de equivalência) estabelecidos entre as posições das “personificações” – codificador-produtor e decodificador-receptor. Mas isso, por sua vez, depende dos graus de identidade/não-identidade entre os códigos que perfeitamente ou imperfeitamente transmitem, interrompem ou sistematicamente distorcem o que está sendo transmitido (HALL, 2003, p. 391).

A polissemia que a televisão mantem aberta deixa margem para que a decodificação ocorra no sentido que o receptor, no momento em que estiver em contato com o produto, decodifique da maneira mais próxima a suas práticas, crenças, a partir de uma influência da cultura a qual está imerso - por mais objetividade que a televisão busque na construção de seus produtos, dando margem até para ser apontada como utensílio que limitaria a visão sobre os temas dos quais ela trabalha. Dessa forma esta análise busca uma aproximação com o produto audiovisual, levando em consideração aspectos técnicos de catalogação de elementos, como maneira de, em meio a uma produção científica, atender as expectativas de discussão sobre como as vestimentas da personagem Capitu foram empregadas como componentes da narrativa audiovisual, sendo um recorte dela, e contudo interferindo na história a partir de uma visão mais ampla.

DESCRIÇÃO E ANÁLISE

1475

Para compor a análise, os cinco capítulos em que a minissérie foi realizada foram analisados em sequência, sendo anotados alguns pontos principais, sendo eles: coloração da maquiagem, coloração das roupas, acessórios e cabelo. A partir da observação desses aspectos foi possível perceber que a construção da personalidade da personagem estava ligada a eles, de modo que refletiam atitudes da Capitu. Os vídeos de análise foram divididos da mesma forma em que foram apresentados pela Rede Globo, sendo retirados os tempos de intervalo. Dessa forma a contagem temporal é retomada do zero a cada capítulo sem contar o tempo dos intervalos. As análises estão ligadas as aparições diretas da personagem, em que se pode notar claramente que é ela quem está em cena, não se referenciando à sombras, vultos, silhuetas ou quaisquer outros modos indiretos de citação da personagem. Também não foram observadas as aparições da personagem durante as vinhetas tanto de abertura, quanto de créditos finais. A análise preocupa-se em como Capitu aparece

durante

o

produto

audiovisual

limitando-o

as

cenas

elaboradas como conteúdo da própria história filmada. A primeira aparição da personagem na minissérie se dá em sua fase adulta, com vestido de noiva branco, ao lado de Bento Santiago. A cena se refere diretamente ao casamento dos dois, o que é confirmado nos episódios seguintes, nos quais a cena se repete de forma mais detalhada. Capitu, ainda na infância, aparece aos 12’56’’. É mostrado primeiramente seus pés e logo após, a exibe em um vestido branco, descalça, com um lenço cor de vinho nos ombros, fita rosa na cintura e um prendedor de cabelo vermelho. As mangas de seu vestido vão até o cotovelo, seus cabelo está quase todo solto a não ser por uma pequena porção presa no topo da cabeça. Na cena seguinte a personagem continua usando um vestido branco com uma fita rosa na cintura e o mesmo cabelo. Eem seu braço

1476

direito uma tatuagem está amostra, original da atriz Letícia Perciles, que interpreta Capitu. Seus pés ainda estão descalços.

Cena referente ao primeiro capítulo da minissérie.

Na próxima cena Capitu usa um vestido rosa, cabelos soltos, mangas um pouco acima dos cotovelos e tatuagem visível. A cena seguinte mostra a personagem usando um vestido amarelo, com cabelos soltos, tatuagem aparente. Em todas as cenas do primeiro capítulo que se referenciam a Capitu em sua infância a personagem aparece com maquiagem cor da pele, cabelos soltos e sempre descalça. Seus vestidos variavam entre tonalidades claras de rosa, amarelo e a cor branca. O segundo capítulo continua com Capitu na infância. A primeira cena mostra apenas seu rosto, os olhos aparentam ter uma maquiagem leve. A primeira cena que é possível notar o figurino mostra um vestido lilás de alça de renda branca, deixando aparecer a tatuagem novamente. O cabelo está parcialmente preso com algumas presilhas brancas, colar fino e brincos pequenos. A cena seguinte mostra a personagem com vestido azul claro, véu também azul claro e cabelo totalmente preso com um adereço vermelho. Em seguida Capitu aparece com o cabelo ainda preso e um laço vermelho em seus cabelos com alguns detalhes em pedras, brincos pequenos, rosto levemente maquiado em tom cor de pele.

1477

Cena referente ao segundo capítulo da minissérie.

A cena que segue retoma um figurino usado anteriormente por Capitu aos 08’47’’, lilás com detalhes brancos e cabelo solto, colar fino, brincos pequenos, e maquiagem cor da pele. Na cena dedicada à explicação dos olhos de cigana oblíqua e dissimulada a personagem usa seus cabelos soltos e maquiagem cor da pele. Na continuação da cena que começa aos 10’41’’, Bentinho prende o cabelo de Capitu em forma de trança e amarra um laço rosa na ponta do cabelo. Na ocasião, ela usa um vestido com as mangas no cotovelo. Com o mesmo vestido azul Capitu aparece agora com duas tranças que prendem seu cabelo por inteiro, brincos pequenos, maquiagem cor da pele e colar fino. A próxima cena mostra a personagem com a família de Bentinho, ela veste agora um vestido rosa com uma capa vermelha, cabelo preso com uma presilha vermelha nele, brinco pequeno e maquiagem cor da pele. Seguindo, ela aparece com os pés descalços, vestido branco, fita rosa na cintura, cabelo preso com lenço branco na cabeça, maquiagem cor da pele e brinco pequeno. Na continuação da cena a personagem ainda se mantem com as mesmas características, tirando apenas o lenço no cabelo. A última cena que Capitu aparece no segundo episódio acontece na janela, seu cabelo está preso com uma fita vermelha e detalhes em pedra, e aparece com um colar fino, não é possível ver sua roupa.

1478

O terceiro capítulo começa com um flash do segundo capítulo, em que Capitu aparece com maquiagem cor de pele, brincos pequenos, cabelos presos no topo e o restante solto, aos 10’24’’. Aos 11’02’’ a personagem aparece novamente usando um vestido azul claro, com as mangas na altura do cotovelo, com um detalhe de fita vermelha no peito, véu, cabelo preso no véu e solto no resto. Na cena seguinte ela está usando um vestido rosa, com as mangas um pouco acima do cotovelo, cabelo preso na parte de cima da cabeça e parte dos cachos soltos, e maquiagem cor da pele. Na sequência, Capitu aparece com um vestido bege com a saia em acabamento rosa, cabelo completamente preso, com véu bege com detalhes vermelhos, brincos pequenos. Na próxima cena ela está usando um vestido branco, com véu branco e detalhes em pedra, brinco longo de pedras, maquiagem leve e cabelo preso. A personagem já começa a ter maquiagem aparente, os olhos ficam levemente escuros, e as roupas mais elaboradas, com mais detalhes e presença de uma paleta de cores mais extensa. Aos 18’58’’ Capitu aparece com um vestido rosa claro, com mangas um pouco acima do cotovelo, com detalhes vermelhos e várias tonalidades de rosa, cabelo preso na parte de cima da cabeça jogados no ombro, nessa cena a tatuagem da atriz está amostra.

Cena referente ao terceiro capítulo da minissérie.

Em seguida a personagem aparece em um vestido branco com saia azul, cabelo preso na parte de cima da cabeça. Logo depois ela 1479

está vestida com um vestido rosa, véu bege, manga curta com a tatuagem aparecendo. A cena seguinte mostra Capitu de cabelo preso, com véu azul, maquiagem leve, brincos longos de pedra, vestido azul com flores e detalhes vermelhos. Na última aparição da personagem no terceiro capítulo, o vestido aparenta ser o mesmo da cena anterior, com um detalhe de fita vermelha no meio do peito e o véu que está diferente, mas ainda com detalhes vermelhos. Na primeira cena do quarto capítulo, Capitu aparece usando um chapéu em uma tonalidade escura de rosa, com uma fita o prendendo a cabeça, colar fino com um pingente de cruz, maquiagem cor da pele, com vestido rosa com babados brancos. Na próxima aparição ela está usando um vestido rosa escuro, com babados brancos e véu branco. Na cena seguinte a personagem aparece com os cabelos presos, o mesmo colar com pingente de cruz, brinco pequeno e um vestido rosa de manga curta, com maquiagem leve. Aos 19’32’’Capitu está de cabelo preso, com detalhes vermelhos e como se fossem medalhas pequenas penduradas, maquiagem leve e um vestido rosa escuro com uma saia de tecido fino branco compondo o vestido e detalhe branco nos ombros, a tatuagem da atriz está aparente. A próxima aparição da personagem é na fase adulta. A apresentação de Capitu na fase adulta, interpretada por Maria Fernanda Cândido, acontece aos 28’08’’, com vestido vermelho, cabelo preso, com um véu cobrindo parcialmente seu rosto, a tatuagem da atriz Letícia Perciles foi reproduzida no braço direito da personagem Capitu na fase adulta.

1480

Cena referente ao quarto capítulo da minissérie.

O cabelo está preso com uma fita e alguns detalhes com medalhas penduradas no cabelo, a maquiagem já aparece mais escura nos olhos, brincos longos. Acontecem alguns flashes da Capitu na fase mais jovem usando um vestido semelhante a personagem que acaba de ser apresentada, na fase adulta. A aparição seguinte é a cena de casamento entre Capitu e Bentinho, em que ela está de vestido de manga longa, branco, cabelo preso para cima com detalhes em flores brancas e véu branco, com maquiagem leve.

Cena referente ao quarto capítulo da minissérie.

Já na vida de casada a primeira aparição da personagem é em um vestido azul petróleo, com os cabelos parcialmente presos, com maquiagem levemente escura nos olhos. Na cena seguinte Capitu está usando um vestido branco gelo, brinco branco longo, maquiagem esfumaçada entre prata e preto, chapéu com véu da mesma cor do vestido, cabelo preso para cima, com detalhe vermelho. 1481

Na aparição seguinte Capitu usa um vestido branco com detalhes que variam entre rosa e lilás, com véu branco. Na próxima cena a personagem usa um vestido azul, cabelo preso, detalhe rosa no cabelo, termina a cena colocando um chapéu branco com véu branco cobrindo o rosto, brinco longo.

A última cena em que a

personagem aparece, ela está usando um vestido vinho com prendedor de cabelo com um pequeno véu também vinho, na ocasião a tatuagem aparece, seu cabelo está preso e usa uma maquiagem levemente escura nos olhos. O quinto e último capítulo da minissérie tem como aparição inicial da personagem ela em um vestido rosa com detalhes brancos, colar de brilhantes, cabelo preso para cima, com enfeites de flores rosas no cabelo, maquiagem escura nos olhos e batom claro. A quantidade de enfeites no cabelo, assim como o tamanho dos mesmo aumentaram. Na próxima cena Capitu aparece com um vestido roxo de manga curta, pulseiras, enfeites no cabelo que variam entre rosa e dourado e brincos médios. A maquiagem é escura nos olhos e clara na boca. Em seguida Capitu aparece com brinco branco, cabelo preso para cima com detalhes verdes, rosa e amarelo, com maquiagem variando entre prata e preto, e maquiagem clara na boca. Logo depois, a personagem entra em cena com vestido branco, cabelo preso com detalhes rosa claro, maquiagem entre prata e preto. A próxima cena, referente ao parto de Capitu. Ela está deitada na cama com os cabelos soltos, vestido branco e em seguida aparece com vestido branco e cabelo preso. Aos 9’11’’ a personagem aparece com maquiagem prata nos olhos, batom claro nos lábios, cabelo preso para cima com detalhes prata. Em seguida, com vestido prata e um detalhe rosa no cabelo preso para cima, com véu branco cobrindo o rosto. Aos 10’18’’a personagem está usando um vestido amarelo com cabelo preso com detalhes dourados e rosa, maquiagem prata, boca com batom claro, brinco longo de pedras, pulseiras e anéis. Na próxima cena ela está 1482

com os cabelos parcialmente presos, brinco pequeno, maquiagem leve, vestido branco de mangas longas. A cena seguinte é externa, um passeio em família. Capitu usa um vestido vermelho escuro, chapéu escuro, pulseiras e anéis. Logo após usa um vestido escuro de mangas longas, aparentemente preto, com um chapéu de mesma cor. A maquiagem dos olhos está um pouco mais escura, os lábios continuam claros. A cena seguinte é o velório do personagem Escobar. Capitu encontrasse inteiramente de preto, vestido manga longa preto, véu preto com detalhes dourados, os olhos estão com maquiagem levemente escura, e a boca com maquiagem clara, usa luvas pretas.

Cena referente ao quinto capítulo da minissérie.

Logo após o enterro de Escobar, Capitu ainda aparece usando roupas escuras, um vestido preto com gola vinho, véu preto, a maquiagem dos olhos está mais clara, mas ainda levemente escura, cabelo preso para cima. Aos 28’52’’ ainda com roupas escuras Capitu se encontra com vestido preto, cabelo preso, maquiagem prata nos olhos, boca clara, véu preto na parte de trás do cabelo. Se encaminhando para o final da história, Capitu aparece usando um vestido azul de mangas curtas, com cabelo parcialmente preso e com fitas azuis, maquiagem leve. A cena seguinte mostra a personagem com um vestido preto com babador branco, cabelo preso para cima, brinco médio e na continuação da cena um laço azul fica 1483

aparente na altura da cintura da personagem. Aos 36’59’’ Capitu está usando um vestido vinho, chapéu e véu vinho, brinco longo, maquiagem prata, boca clara, cabelo preso.

Cena referente ao quinto capítulo da minissérie.

A cena seguinte é referente a morte da personagem Capitu, ela está deitada em uma cama, com vestido branco, rosto sem maquiagem, cabelos presos. Após sua morte as últimas aparições de Capitu aparecem em forma de flashes que misturam a personagem em sua fase jovem e adulta. A fase jovem usa um vestido rosa com detalhes brancos, cabelo preso com detalhes dourados e uma fita vermelha. A fase adulta usa um vestido vermelho e rosa, com véu lilás, cabelo preso com detalhes vermelhos na cabeça e rosto parcialmente coberto. Maquiagem escura nos olhos e boca clara. Outros acessórios são anéis e pulseiras. Essa é a última aparição da personagem Capitu na minissérie. Com isso é possível identificar uma variante entre a parte inicial da narrativa e a parte final da minissérie, em que a personagem se inicia jovem, mais leve, livre das responsabilidades de uma vida adulta. O reflexo desse estado emocional é aparente na coloração das roupas, na maior parte das vezes variando entre o branco e o amarelo, e a quantidade de acessórios como adereços no cabelo, pulseiras ou anéis e por diversas vezes a personagem aparece descalça. O cabelo de Capitu, usualmente solto na parte jovem, mostra certa liberdade característica da fase infância, além de reafirmar sua personalidade 1484

alegre e sedutora. Os elementos de sedução presentes nas cenas em que Capitu demonstra interesse amoroso por Bentinho estão nas cores rosa e vermelho, aparecendo de forma discreta, exceto nas cenas em que a personagem usa vestidos nessas variações. Conforme Capitu vai crescendo e a história do casal vai se desenvolvendo é perceptível uma mudança na personalidade da personagem, assim como na coloração de suas vestimentas. Capitu começa a usar o cabelo mais preso, com objetos presos a ele, assim como vestidos com cores mais fortes como o rosa em diversas tonalidades, e algumas vezes outras cores, ainda claras. A apresentação da personagem na vida adulta traz mais mudanças ao visual de Capitu, além da alteração da própria atriz, interpretada na infância por Letícia Perciles e na vida adulta interpretada por Maria Fernanda Cândido. A utilização de tons mais escuros nas vestimentas é acompanhada por uma maquiagem de cores um pouco mais densas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir da análise foi possível observar como ocorreu a transformação da personalidade da personagem conforme seu amadurecimento como pessoa, usando elementos cênicos, como vestimentas e acessórios, no ato de codificação. Desse modo, Capitu passa de uma infância que envolve sedução, liberdade, inocência, para uma vida adulta, de mulher casada em que busca mais seriedade, firmeza, responsabilidade tanto quanto mãe, como quanto mulher, e mesmo sendo acusada de traição, permanece firme, saindo de cores claras e indo para cores mais escuras. Analisar o processo e atentar para possibilidades e modos de codificação da mensagem auxilia no entendimento geral da realização do produto audiovisual. O presente estudo possibilitou uma reflexão 1485

sobre as possibilidades que as imagens técnicas, como as transmitidas na televisão, podem gerar no processo de interpretação de elementos cênicos pela sociedade. Usando como base para argumentação os teóricos abordados nas teorias da comunicação como Adorno (1985), Baudrillard (2006), Flusser (2006), Hall (2003) e Sodré (2006), foram interpretadas técnicas de composição de cena e refletido sobre a codificação da mensagem nos meios de comunicação como modo de aproximar a academia do mercado audiovisual e propor uma abertura para interpretações a partir de meditações culturais e superfícies imaginadas.

NOTAS 1- Minissérie com enredo adaptado da obra Dom Casmurro, de Machado de Assis. Escrita por Euclydes Marinho e exibida ente 9 e 13 de dezembro de 2008, em cinco capítulos.Com direção e roteiro final de Luiz Fernando Carvalho. 2- Minissérie exibida em janeiro de 2005, com direção geral de Luiz Fernando Carvalho, em oito capítulos. 3- Minissérie exibida entre 12 e 16 de junho de 2007, em cinco episódios, foi baseada na obra de Ariano Suassuna “O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Vai-eVolta”. Com direção de Luiz Fernando Carvalho e roteiro de Luís Alberto de Abreu, Bráulio Tavares e Luiz Fernando Carvalho. Realizada para homenagear o escritor nordestino, que nessa data completou 80 anos. 4- O Projeto Quadrante tinha o propósito de adaptar obras da literatura brasileira para a televisão, a equipe realiza parte do processo de produção no estado em que o autor da obra escolhida nasceu, treinando uma equipe de moradores para atuar e trabalhar durante as filmagens da minissérie. A primeira obra foi de Ariano Suassuna, A Pedra do Reino, em 2007, seguida de Capitu, obra de Machado de Assis. As obras que deveriam vir a seguir seriam de Sérgio Faraco e Milton Hatoum, contudo o projeto foi cancelado. 5- A obra Dom Casmurro foi escrita por Machado de Assis em 1899. O enredo ocorre em meio ao Segundo Império no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro. O romance é narrado em primeira pessoa, em que Bento Santiago retrata sua vida, sua paixão pela jovem Capitu que vem a se tornar sua mulher e suas dúvidas quanto a fidelidade de sua amada.

1486

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1985. BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2006. FLUSSER, Vilém. O universo das imagens superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008.

técnicas:

elogio

da

FREIRE, Leticia de Luna. Seguindo Bruno Latour: notas para uma antropologia simétrica. Comum – Rio de Janeiro – v.11 – nº 26 – p. 46 a 65 – janeiro/junho, 2006. HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003. LOPES, Maria Immacolata Vassallo; GÓMEZ, Guillermo Orozco (coords.). A ficção televisiva em países ibero-Americanos: narrativas, formatos e publicidades: anuário 2009. SODRÉ, Muniz. As estratégias sensíveis: afeto, mídia e política. Petrópolis: Vozes, 2006.

FILMOGRAFIA UTILIZADA Capitu (2008). Direção Luiz Fernando Carvalho. Duração: 4h30min. Estúdio: TV Globo. Roteiro: Euclydes Marinho e Luiz Fernando Carvalho.

1487

O TRABALHO, O HOMEM E A MÚSICA: UM DIÁLOGO.

Lorrainy da Cruz Solano416 Ailton Siqueira de Sousa Fonseca417 Raimunda Medeiros Germano418 Resumo: Há uma relação íntima e indissociável entre trabalho e homem, relação que poderíamos chamar de dialógica já que homem e trabalho se co-produzem em suas historicidades. O ponto de partida dessa reflexão é a música Cidadão de Lúcio Barbosa. Por meio desse registro imagístico que é a arte/música, tentamos compreender as relações homem/trabalho no nosso cotidiano. A partir dessa escuta e compreensão da música Cidadão, se faz necessário repensar nas questões éticas da enfermagem, não como “etiqueta profissional”, mas como uma visão de mundo pautada nas humanidades, solidariedades e generosidades. Palavras-chave: Trabalho. Homem. Música.

1 – INTRODUÇÃO

Há uma relação íntima e indissociável entre trabalho e homem, relação que poderíamos chamar de dialógica já que homem e trabalho se co-produzem em suas historicidades. Este estudo é um convite

para

caminharmos

e

compreendermos

416

melhor

esse

Graduada em Enfermagem (UERN), Mestra em Enfermagem (UFRN). Enfermeira da Estratégia de Saúde da Família do município de Mossoró-RN. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa do Pensamento Complexo/UERN e membro do Grupo de Pesquisa Ações Promocionais e de Atenção a Grupos Humanos em Saúde Mental e Saúde Coletiva/UFRN. [email protected] 417 Graduado em Ciências Sociais (UERN), Mestre em Ciências Sociais (UFRN) e Doutor em Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais (Antropologia) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É professor titular da UERN, Diretor da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais (FAFIC/UERN), Professor do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH/UERN). Líder do Grupo de Pesquisa do Pensamento Complexo (GECOM/UERN). [email protected] 418 Graduada em Enfermagem (UFPE), Pedagogia (UFRN), Mestra em Educação (UNICAMP) e Doutora em Educação (UNICAMP). Professor adjunto (UFRN). [email protected].

1488

relacionamento entre homem/trabalho/arte, pois a expressão artística tem o poder de traduzir a subjetividade e o imaginário humanos de forma profunda e complexa. A música é uma dessas expressões artísticas que tem a capacidade de dizer algo mais do que o dito nela mesma, pois sua escuta já requer um diálogo silencioso de si com o outro e do outro consigo mesmo. música é uma via generosa e disponível para nos conduzir no doloroso e, ao mesmo tempo, inventivo e realizador caminho do trabalho cotidiano do homem, principalmente nesse processo de mundialização que nós estamos imersos. O ponto de partida dessa reflexão é a música Cidadão de Lúcio Barbosa. Por meio desse registro imagístico que é a arte/música, tentamos cotidiano.

compreender Para

fundamentação

as

relações

homem/trabalho

esse

diálogo

e

entendimento,

teórica

em

autores

importantes

no

nosso

buscamos para

o

aprofundamento da temática quais sejam: Leloup, Boff, Morin, Siqueira, Antunes,

Berlinguer

e

Garrafa,

Almeida

et

al.

Portanto,

nossa

caracterização segundo os procedimentos de coleta é bibliográfica, já que nos colocamos em contato direto com os principais autores nesta linha de pensamento que é a Teoria da Complexidade, já que a discussão traz a necessidade de repensar o processo de trabalho da enfermagem e, quiçá, uma reforma do pensamento, capaz de gerar um entendimento do contexto e do complexo, como pensa Edgar Morin. Ou seja: O pensamento contextual busca sempre a relação de inseparabilidade e as inter-retroações entre qualquer fenômeno e seu contexto, e deste com o contexto planetário. O complexo requer um pensamento que capte relações, interrelações, implicações mútuas, fenômenos multidimensionais, realidades que são simultaneamente solidárias e conflitivas (...), que respeite a diversidade, ao mesmo tempo que a unidade, um pensamento organizador que conceba a relação recíproca entre todas as partes. (MORIN et al, 2007, p. 21).

Este recorte visa possibilitar o conhecimento da problemática que atualmente tortura - e mata mesmo - seres humanos em todos os cantos 1489

do planeta, seres humanos que são colocados em condições indignas e subumanas, desrespeitados e utilizados como peças da engenhoca engrenagem

que

sustentam

o

enriquecimento

de

poucos

em

detrimento da dor, do sofrimento, e mesmo da morte de grande parte da população em todo o mundo. Convivemos com novos e velhos problemas. Por vezes, banalizamos a dor e sofrimento em prol de reproduzir, de consumir como os poucos privilegiados economicamente. O trabalho escravo, exploração de mulheres e crianças, as seleções com critérios eugênicos, o assédio moral e sexual abusivo e as leis do mercado (o mercado como o grande maestro dessa desafinada orquestra que não seduz nossos sentidos), nos condena a censura previsível que sustenta esta “Era dos Extremos” como bem definiu Eric Hobsbawn. Estamos sendo levados pelo vento da contemporaneidade sem refletir acerca dos porquês, das causas e efeitos causadores de outras causas, dos motivos e motivações, sem pensar sequer se haverá uma esquina para fazer a curva. Temos que ser o vento, como diz Jean-Yves Leloup, e balançar as estruturas mais elementares do sustentáculo desta sociedade do consumo, impermeável ao sofrimento humano, e reencontrar a nossa face humana sentindo a humanidade que nos cerca. Sem isso seremos uma nação planetária de seres vivos não-vivos, perambulando pelo mundo ao impulso desse vento que aliena, mata, faz sofrer toda a vida existente, aprisiona, escraviza e explora. Não adiantará tentar preencher tamanho vazio com toda a parafernália a consumir existente sobre a Terra, porque o vazio se tornou uma condição de sobreviver, e a nossa face será única e sua plasticidade também será pré-definida pelas leis do mercado. É sobre o enchimento desse vazio e o fato de não perder a nossa face humana que propomos esse devir amparados pelo pensamento de Leloup (1997, p. 13): “...todos nós estamos perdidos e todos nós procuramos um caminho. Não estamos aqui para dar respostas, mas

1490

para convida-los a um caminho. Convidá-los a uma transformação, a uma construção”. Nesse caminho onde passaremos por muito sofrimento, propomos a alegre e doce polifonia das artes e das letras. Nossa vontade é de gritar nossa revolta com a desumanização da condição humana com a qual

convivemos

hoje, mas

preferimos

expor nosso

repúdio e

indignação na sustentável leveza da música. O trabalho deveria (ou deve) ser uma fonte inesgotável de realizações, mediante ações inventivas e criativas, capazes de garantir ao trabalhador um andar a vida419 com dignidade e respeito a si, aos outros. Estes outros entendidos não somente como seres humanos, mas como seres vivos de maneira geral, os reinos animal, vegetal, mineral, a pátria, o planeta e o cosmo. A falta desse poder de criação e realização faz sofrer o trabalhador, que tem o trabalho como um castigo, e algo mediador que esteriliza sua essência humana, mas dá acesso a alguns bens materiais, que são postos como finalidade única da existência humana sobre a Terra: é a cultura do Ter. Como diz Leloup (1997, p. 79) “a nossa referência é o Ter”: Neste caso viveremos em um mundo onde só a matéria existe e todo o resto são sonhos e fantasias. Esta visão pode nos parecer curta e restrita, mas determinados momentos de nossas vidas esta visão pode ter parecido suficiente. Porque sentimos bem nossos limites, sentimo-nos em segurança no interior destes limites e desconfiamos de tudo o que pode nos fazer sair deles, de tudo o que poderia evocar um outro mundo, tudo o que poderia evocar uma outra consciência. (LELOUP; BOFF, 1997, p. 51).

A música Cidadão de Lúcio Barbosa nos permite sentir as incertezas, inseguranças e dramas dessa temática que é o trabalho. Esta música nos faz dialogar sobre o trabalho e o homem, numa resposta ou convite de diminuir o descompasso entre o que somos e o

419

Andar a vida aqui expressa a qualidade de vida de uma população, como uma condição de existência dos homens no seu viver cotidiano (MENDES, 1996).

1491

que pensamos, entre o que pensamos e o que dizemos, entre o que dizemos e o que fazemos, entre o que fazemos e o que temos. Essa música, “Cidadão”, sangra a cadavérica condição do trabalhador contemporâneo. O pulso de fino e impalpável torna-se pulsante e vivo. O trabalhador que se arrebenta, cria calos nas mãos para edificar o desejo dominante de construir materialidades num mundo carente de afeto, sofre na veracidade de sua condição marginal e afônica de dominado. A cada nota musical somos levados a pensar que exploramos e causamos sofrimento àqueles que nos ofertam mãos e almas à obra. A música não é voz e sim canto do lamento de muitos cidadãos anônimos, trabalhadores que dão a vida para um trabalho que se aparta de si depois de realizado. Cidadão dá voz a centenas de condenados ao mutismo. O cidadão da letra não é aquele que buscamos ser, autônomos, com acesso a determinados bens e serviços sociais e de saúde, conscientes dos nossos direitos e deveres. Ao contrário, é aquele trabalhador que diz ao próprio trabalhador que tipo de homem ele é e o que o pode ser e fazer. Tá vendo aquele colégio moço? Eu também trabalhei lá Lá eu quase me arrebento Pus a massa fiz cimento Ajudei a rebocar Minha filha inocente Vem pra mim toda contente Pai vou me matricular Mas me diz um cidadão Criança de pé no chão Aqui não pode estudar Como ter uma identidade criadora como trabalhador se o que crio não é capaz de inventar em mim uma realização? Quais as implicações sociais dessa re-produção estéril e despersonalizada do

1492

trabalhador? E como fica a nossa face humana nessa objetal condição laboral? A relação dialógica entre o trabalho/homem vai seguir o caminho das notas musicais para ser percebida como um movimento de co-produção entre si. Este eixo norteador nos conduz na reflexão profunda sobre a condição humana e sua re-ligação com o entorno. Quando trabalhamos ou levamos em consideração o homem, é importante “...discernir a imagem do homem, a imagem transformada do ser humano que nos é apresentada”. (LELOUP; BOFF, 1997, p. 50). É sobre essa imagem e sua relação com o próprio homem que iremos agora abordar.

2 - “CIDADÃO”... O TRABALHO E O HOMEM

O homem e o trabalho são dois temas que andam juntos. Em marchas

diferentes,

por

vezes

desiguais,

em

alguns

momentos

capengam, mas são indissociáveis. Podemos dizer que o homem inventou o trabalho que o criou como humano, como sapiens-sapiens faber. Constatamos este fato quando direcionamos nosso olhar para a história da humanidade. Ao tentar modificar o seu meio o homem primitivo dava os primeiros passos ao lado daquele que viria a ser o que hoje compreendemos como trabalho. O homem se faz numa relação dialógica entre ele e o mundo, entre ele e a natureza. Nesse processo, tudo que o homem faz também o faz homem. Como ressaltou Siqueira (2008, p. 29) “dialogicamente, o homem constrói o trabalho que o constrói como homem em sociedade”. Nesse instante, é válido subsidiar a discussão em torno da dialógica, para haver uma melhor compreensão acerca dos temas em questão.

1493

Que tipo de contradições pode haver nos indissociáveis: trabalho e homem?

Como

tais

contradições

podem

ser

estimuladoras

e

reguladoras? Lúcio Barbosa, autor da música “Cidadão”, respondeu estas questões lógicas e emocionais quando escreveu: Ta vendo aquele edifício moço? Ajudei a levantar [...] Hoje depois dele pronto Olho pra cima e fico tonto Mas me chega um cidadão E me diz desconfiado, tu tá aí admirado Ou ta querendo roubar? O homem dialoga com o seu trabalho e questiona sua finalidade, como pode transformar seu esforço, seu suor em algo concreto, material e não conseguir sequer admirar sua obra. Mais que isso: o homem constrói obras que são maiores do que ele mesmo como se por meio do trabalho ele conseguisse se superar, mostrar seu poder de colocar no mundo aquilo que a natureza não construiu. As obras mostram a grandeza do homem que não sabe qual é seu tamanho de criatividade. A música também chama a atenção para um fato próprio do mundo moderno: o homem, o trabalhador, espanta-se com seu trabalho e está distanciado daquilo que ele mesmo construiu. O trabalhador se aparta de sua produção, como salientou Marx. A produção ganha vida própria como se negasse o seu construtor e agora passasse a existir por si, sem historicidade, sem sujeitos responsáveis por ela. Não é exagero pensar que o homem constrói, mas sua construção também des-constrói sua condição de homem. Era isso que de certa forma falava Antunes ao dizer: ...quanto mais o trabalhador se desgasta trabalhando, tão mais poderoso se torna o mundo objetivo, alheio que ele cria diante de si, tão mais pobre se torna ele mesmo, seu mundo interior, e tanto menos [o trabalhador] pertence a si próprio. (ANTUNES, 2004, p.177).

1494

O trabalho deixa de ser fonte de construções subjetivas de existência pessoal e social. Se por um lado ele cria identidades, por outro, ele destrói as identidades existentes por não possibilitar a identificação do trabalhador com seu produto. O labor deixar de ser um companheiro generoso e solidário que contribui para o que Leloup define como Identidade Criadora. A capacidade imensurável do homem em inventar e transformar. Porém, o que vivenciamos na atualidade, e há bastante tempo, é o trabalho como um algoz voraz e cruel, como se o trabalho passe a consumir aquele que por meio dele sonha consumir bens para sua sobrevivência, sua existência e construção social. A própria origem da palavra trabalho remete a este fato. Segundo Pinto: Muitos já associaram a origem da palavra trabalho ao tripalium, um antigo instrumento de tortura. A eficácia dessa explicação está na sua verificação do fato de que o trabalho, enquanto “atividade laboral”, nem sempre foi considerado desejável por homens e mulheres em todas as épocas históricas. (PINTO, 2007, p. 17).

A música “Cidadão” traz a tortura do universo laboral em suas notas musicais. Ao ouvir, entendemos (mas é preciso não aceitar!) a naturalização do trabalho como um tripalium no cotidiano do homem. Essa música nos leva também a pensar que nem sempre foi assim: Por que eu deixei o norte Eu me pus a me dizer Lá a seca castigava, mas o pouco que eu plantava Tinha direito a comer. O fenômeno do êxodo rural expõe a busca por condições mais dignas de sobreviver. Naquele tempo, inúmeros trabalhadores saiam do Nordeste para São Paulo e Rio de Janeiro em busca de trabalho e da realização do sonho de serem considerados trabalhadores formais, terem uma identidade social, cidadão.

1495

Mas quão surpresos ficaram ao se depararem com o trabalho formal, mas sem direito sequer de apreciar o produto do seu trabalho: E pra aumentar meu tédio Eu nem posso olhar pro prédio Que eu ajudei a fazer. Somos condenados à visão mecanicista e prática da ideologia dominante. De acordo com a ideologia dominante, não somos artistas que admiram suas obras. Só somos trabalhadores, só fazemos parte da engrenagem societal e só precisamos ofertar nossa força-de-trabalho, nosso sacrifício voluntário. É por isso que, na visão de Siqueira (2008, p. 29), “o trabalho pode ser concebido como um sacrifício voluntário que todos nós fazemos para construirmos a vida societária e o futuro da humanidade”. Não somos, e nem é permitido ser, admiradores de nossas produções, já que somos produtos inconscientes da força criativa que temos. Antunes (2004, p. 176) contribui com esse entendimento dizendo: “O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral”. O trabalho e o homem andam juntos, neste descompasso relacional. Ao homem é condenado ao trabalho (este fonte inesgotável) como finalidade única do existir; existimos para que com o trabalho possamos ser produtivos para esta sociedade, existimos para ter bens materiais. O próprio homem é um bem material, quanto mais produtivo é para a sociedade, mais valiosa é sua mão-de-obra, mais valorizados é enquanto produto capaz de produzir sempre mais e mais. Conforme Boff, O trabalho agora é trabalho assalariado e não atividade de plasmação da natureza. As pessoas vivem escravizadas pelas estruturas do trabalho produtivo, racionalizado, objetivado e despersonalizado, submetidos à lógica da máquina. (BOFF, 2004, p. 97).

1496

O trabalho que deveria ser fonte de humanização do homem e de emancipação de sua condição de dependência, passa a ser vivido com dor, sofrimento, angústia que escraviza. Mas, o trabalho escravo foi abolido da história da humanidade há séculos! É que agora ele é eufêmico, somos escravizados, contemplando o poder dos nossos proprietários, com aquele sorriso no canto da boca, reluzindo em ouro como Midas, alienados quanto ao preço que pagamos pelo brilho. Nessa tortura do trabalho como meio de Ter e Ser produtivo da atualidade,

estamos

esquecendo

nossa

humanidade,

ela

está

guardada no armário da moda, em um cabide também dá moda. Somos ingênuos, levados pelo mesmo vento da modernidade que nos faz crer, como pensa Berlinguer e Garrafa, que: A força-de-trabalho ou capacidade de trabalho é entendida no caso como “o processo no qual o homem coloca em movimento as forças naturais pertencentes a sua corporeidade, braços e pernas, mãos e cabeça, para se apropriar e transformar os materiais da natureza de forma que sejam úteis para a sua própria vida”. (BERLINGUER; GARRAFA, 2001, p. 12).

Embebidos em tanta utilidade, tanta praticidade, talvez não vamos ter sequer o desejo de querer admirar nada que não esteja a venda, nem na moda. A música de Lúcio Barbosa vai ser um artefato de museu, daqueles que só fazem parte do mapa cosmopolita, com poucos (pouquíssimos) visitantes. Por quê? A música da moda, também tem que ser útil, prática e da moda, então descartável, como as questões subjetivas e existenciais do humano. A condição de ser-objeto do homem e do trabalho como uma coisa, mercadoria, nesta era de mundialização, não justifica nossa imobilidade diante do vento que insiste em nos levar. O trabalho não está em sintonia com nosso ritmo de vida e nossa vida não está no mesmo ritmo que o trabalho exige. O homem moderno vive tentando se adaptar ao mundo que ele mesmo criou, tentando entender e viver segundo uma lógica mercadológica que ele mesmo põe em ação diariamente. Como ressaltou Siqueira, 1497

...a devastadora lógica da eficácia pela eficácia gera um ser humano fechado em si mesmo, inseguro, medroso, individualista, ansioso, mas habilidoso tecnicamente em suprir as exigências do mercado tecnológico ou as demandas do mundo do trabalho. (SIQUEIRA, 2008, p. 33).

É, portanto, preciso romper com essa estática e entender e sentir o movimento que nos faz ser vivo. Nosso corpo é movimento incessante, basta parar e contemplar o vendaval que constitui nossa genial estrutura celular e sentir nosso sangue pulsando em nossas veias, o ritmo de nossa respiração, o diálogo dos nossos sentidos com o tudo que nos envolve. “Ta vendo aquele prédio moço?” É constituído das mesmas moléculas que eu! Foi construído com o suor do meu rosto, a dor das minhas mãos, com o meu sonho de realização e de plasmação da natureza. Posso sim então admirá-lo porque ele foi feito por mim, e traz tatuado em sua estrutura mais do que as marcas do meu trabalho: está escondido em si o meu suor, minhas dores, meus sonhos não realizados, minhas projeções. O trabalho se torna cada dia mais central, mais importante, a passos firmes e elegantes; já o homem coxeando. A grande maioria das pessoas trabalha para ganhar a vida e a de suas famílias. E não há nada de criador no trabalho que fazemos. Este trabalho não criativo pode nos tornar doentes; se não doentes, pelo menos

infelizes

(LELOUP,

1997).

E

doentes,

infelizes,

seremos

inconvenientes e inúteis para a sociedade do consumo, e seremos substituídos por outro trabalhador apto a ser mais produtivo que nós. Numa

visão

apocalíptica

seremos

uma

população

inter-

planetária adoecida e infeliz. Vamos nos permitir ao arrependimento por nossas escolhas cegas pelo ouro que brilha: Por que que eu deixei o Norte Eu me pus a me dizer Lá a seca castigava, mas o pouco que eu plantava 1498

Tinha direito a comer. O trabalho se apresenta aqui como um meio de se conseguir alimentos e não uma forma de se adquirir identidade, dignidade e liberdade. O desafio é Ter mais ou Ser mais? Não acreditamos em felicidade plena, nem pensamos que seja a finalidade da existência humana, mas acreditamos que não devemos ser doentes e infelizes, a vida deve andar com prazer: em comer, em conhecer, em se divertir, em andar. Leloup (1997, p. 145) diz sereno: “Não se trata de ter mais riqueza, mais conhecimento, mais relações, mas se trata de ser mais”. E o que somos? Qual a nossa condição de ser humano? Onde está escondida a nossa humanidade? No meio educativo, se o homem é apenas matéria, matéria composta que logo se decomporá, será ensinado que a finalidade do homem é o sucesso material, é o êxito. Este gênero de mensagem é transmitido constantemente pela mídia e nós conhecemos as conseqüências sociais que ele pode trazer. (LELOUP, 1997, p. 51).

A ideologia dominante quer o homem-máquina, cético, hábil, alienado, ambicioso, voraz, consumidor. “O homem maquinal vive a insustentável leveza das demandas de uma realidade que o transforma em um produto ou em uma função para a sociedade” (SIQUEIRA, 2008, p. 35-36). Se quisermos ser críticos dessa realidade se faz necessário tirarmos nossas maquiagens maquinais, borrar o padrão do status quo, mostrar a porosidade das nossas peles, degustar da nossa pluralidade de sentidos, sentimentos, sonhos. E vem o desespero e a desilusão: Ta vendo aquela igreja moço? Onde o padre diz amém Pus o sino e o badalo Enchi minha mão de calo Lá que trabalhei também 1499

Lá sim valeu a pena [...] Foi lá que Cristo me disse Rapaz deixe de tolice Não se deixe amedrontar Se a lamentação não resolve a situação do “cidadão”, o medo, por outro lado, só reforça a dolorosa servidão. É importante dizer que a nossa natureza humana não é só servil. Precisamos ser mais críticos. Nessa música, Cristo emerge como uma figura seminal, como uma semente, parafraseando Leloup. Um arquétipo de generosidade, acolhimento e humanidade. O mais humano dos irmãos que sofre, chora, cai, mas levanta e luta para continuar vivendo sua natureza humana. Este

trabalho

é

inventivo

e

possibilita

que

sejamos

verdadeiramente humanos. Somos fortes e fracos, felizes e infelizes, sadios e doentes, alegres e tristes. Somos. Ser é diferente de Ter. o Ter nunca substitui o Ser. E a música traduz essa dimensão do homem, num exercício entre o pensamento lógico e a percepção estética. Traz Cristo, o arquétipo da humanidade: Fui eu quem criou a terra Enchi o rio fiz a serra Não deixei nada faltar Hoje o homem criou asas E na maioria das casas Eu também não posso entrar. E ele entra pela porta da frente e enfeita a sala de visitas reluzindo em ouro, e fica aprisionado na fala de quem o usa como convém e deseja a sociedade do consumo. Por isso, na maioria das casas ele, Cristo (homem seminal) não pode entrar. Cristo representa a falta de fé, o esvaziamento da subjetividade que o homem moderno, consumido pela lógica mercadológica, vive. O homem não acredita mais em si,

1500

em seu trabalho, em sua vida. O trabalho é um fardo tal qual aquele que Sísifo foi condenado a pagar todos os dias, condenado a empurrar todo dia a mesma pedra até o topo do monte e vê-la rolar para baixo e, assim, ter que empurrar novamente para cima. Consumido pelo seu trabalho mimético e repetitivo, seus sentimentos estavam igualmente condenados a se atrofiarem, pois seu trabalho o desgastava ao invés de reconstituí-lo subjetivamente como humano. Sísifo não conhecia a liberdade, não vivia a aventura da descoberta e da reconstrução da natureza. O trabalho pode nos fazer esquecer que somos “uma mistura de natureza e aventura” (Leloup, 1997, p. 121). Não se pode esquecer a aventura, que é a liberdade sobre a natureza. Não podemos mudar a nossa natureza, mas podemos orienta-la. Não posso transformar argila em mármore. Mas com a argila ou com o mármore que me é dado, posso fazer uma Vênus de Milo ou um penico. (LELOUP, 1997, p.121).

O ser humano é um ser que pode ser, fazer. Sua relação com o trabalho demonstra isso. Tudo funciona como se o sujeito tivesse que fazer, trabalhar, como pré-condição de existir socialmente. O labor como único e indiscutível meio de inserção social, meio de sair do anonimato ou invisibilidade social. Mas, geralmente, acontece o contrário: o trabalho produz uma invisibilidade social do sujeito porque a lógica capitalística separa o homem do objeto de seu trabalho, o criador da criatura, o sujeito do produto. Portanto, a in-visibilidade que nos é dada como homem no universo laboral, não se restringe ao cenário trabalhista propriamente dito. Ela transpõe as paredes e invade o nosso cotidiano, nossa casa. Berlinguer e Garrafa (2004, p. 49) avisam: “o dinheiro deturpa, embrutece tudo aquilo que cai sob a sua lei implacavelmente feroz”. Há uma tendência social do ser humano se brutalizar nesta lógica mercantil e não sentir a insustentável leveza de ser. Para enfrentar essa lógica é necessário investir em esforços pequenos, mas extremamente 1501

humanizantes como sermos mais cordiais conosco e possibilitar viver para além das necessidades nada básicas que querem inculcar nas nossas vidas. Viver é agora. O discurso de que o trabalho nos permitirá viver depois, camufla a face maquinal que querem nos incorporar. Contrariando a lógica maquínica que indiretamente diz que o trabalho deve nos conduzir ao progresso, ao bem-estar pessoal e social, poderia dizer que o importante é deixar a vida nos levar, não somente a vida humana, mas a vida em geral. E não nos levar pela referência em Ter Hoje depois dele pronto Olho pra cima e fico tonto Mas me chega um cidadão E me diz desconfiado, tu ta aí admirado Ou ta querendo roubar? Meu domingo ta perdido Vou pra casa entristecido Dá vontade de beber

A música grita o silêncio que nos atormenta. Precisamos gritar mais, para quem sabe ser ouvido. Ao trabalhador, o silêncio. A própria organização do trabalho prevê a afonia do homem. Para Almeida et al (2003, p.13) “toda a afonia do homem oculta a polifonia do ser”.

3 - CONSIDERAÇÕES FINAIS O paradigma da complexidade chama para o diálogo contínuo e

incessante

aquilo

que

é

aparentemente

antagônico,

mas

complementares, como é o caso da relação entre o trabalho e o homem. Essa dialogia não serve somente para cumprir tarefas acadêmicas, mera burocracia. Este preceito tem que estar vivo nos nossos cotidianos, em nossos operadores cognitivos, em nosso ser pulsante. 1502

Em tempos de mundialização, o desafio está em ter consciência que

a

inconsciência

desta

relação

dialógica,

caracterizará

a

enfermagem como também algo descartável para esta sociedade capitalista. O cenário que se apresenta é o trabalho como um momento fundante da vida humana, podendo ser compreendido como um ponto de partida do processo de hominização, mas a sociedade do capital o transformou num algoz cruel que priva o homem de sua humanidade, aliena e fetichiza o trabalhador assalariado. As notas musicais são os fios da teia policromática da vida. Seus fios belos, coloridos e resistentes não objetivam prender nenhum alimento, mas alimentam a beleza de viver. A partir dessa escuta e compreensão da música Cidadão, se faz necessário repensar nas questões éticas da enfermagem, não como “etiqueta profissional”, mas como uma visão de mundo pautada nas humanidades, solidariedades e generosidades. A enfermagem pode ser mais, mas para tanto precisa pensar na relação dialógica entre o trabalho e o homem para além do discurso científico e a música é uma dessas possibilidades fundantes, inventivas e humanizadoras.

REFERÊNCIAS BLBIOGRÁFICAS ANTUNES, R. (Org.). A dialética do trabalho: escritos de Marx e Engels. São Paulo: Expressão Popular, 2004. 195 p. ALMEIDA, M. C.; KNOBB, M.; ALMEIDA, A M. (Org.). Polifônicas Idéias: por uma ciência aberta. Porto Alegre: Sulina, 2003. 317 p. BERLINGUER, G.; GARRAFA, V. O mercado humano. 2 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. 252 p. BOFF, L. Saber Cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. 11 ed. Petrópolis: Vozes, 2004. 199 p. LELOUP, J. Y. Terapeutas do Deserto: De Fílon de Alexandria e Francisco de Assis a Graf Durckeim. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. 197 p. 1503

MENDES, E. V. Uma agenda para a saúde. 1 ed. São Paulo: Hucitec, 1996. 300 p. MORIN, E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma reformar o pensamento. 9 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2004. 128 p. PINTO, G. A A organização do trabalho no século 20: Taylorismo, Fordismo e Toyotismo. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2007. 103 p. SIQUEIRA, A Ética e trabalho. Contexto: Revista acadêmica da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais. Mossoró, v.3, n.3, p. 27-44, jan/jul. 2008.

1504

RAVE EXCITADA – COMUNICAÇÃO E DESPESA NAS FESTAS DE MÚSICA ELETRÔNICA

Thiago Tavares das Neves420

Resumo: A festa é uma categoria indestrutível da civilização humana, faz parte da cultura, condensando comunicação, despesa e, em alguns casos, êxtase. As festas de música eletrônica não seriam uma exceção. Três elementos, que partilham da esfera simbólica, atuam aqui como operadores conceituais para se pensar a dimensão universal da festa, neste caso, as festas de música eletrônica. O trabalho tem como objetivo fazer uma abordagem teórico-epistemológica sobre esse tipo de festa partindo desses três elementos. As principais bases epistemológicas são: Georges Bataille (1992), (2005); Edgar Morin (2002), (2005); Harry Pross (1980), (1990); e Ciro Marcondes Filho (2004), (2009); já o aporte teórico encontra suporte em Michel Maffesoli (2004), (2005) e Norval Baitello Júnior (1997).

Palavras-chave: Festas de música eletrônica, comunicação, êxtase, despesa, excitação.

INTRODUÇÃO

Festa é sinônimo de despesa. Os indivíduos saem do seu ritmo normal da cotidianidade para gastar suas energias em festejos, consumir sem se importar com o excesso, com as perdas; o intuito é mesmo de desperdiçar o tempo, o corpo, bombardeando-o de sensações, deixando-o excitado. Festa é também excitação, e em alguns momentos, o corpo fica tão excitado que explode em êxtase.

420

Graduação em Comunicação Social/Jornalismo (UFRN), Rádio e TV (UFRN), Mestre em Ciências Sociais (UFRN). Doutorando do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da UFRN. Integrante do Grupo de Estudos Transdisciplinares em Comunicação e Cultura (Marginália/UFRN). [email protected]

1505

Há comemorações em que o êxtase protagoniza, como nas cerimônias xamânicas e raves421, permitindo a comunicação do individuo consigo mesmo e com os outros presentes. Festa é comunicação em diversos sentidos, partindo do corpo biológico/individual como mídia primária, instância simbólica e comunicante, ao corpo social que pulsa, age, reage aos estímulos de meio nutrindo a sociedade de vitalidade e a cultura de substrato. Festa é cultura. Bakhtin (1993) afirmava que não existe

cultura

sem

a

presença

da

festa

como

um

elemento

indispensável de sua constituição. As festas de música eletrônica englobam diversos eventos. Este universo abrange as raves comerciais, underground e em lugares abertos em contato com a natureza. As comercias geralmente têm grande divulgação na mídia. São realizadas em arenas, estádios ou locais para shows, trazendo grandes DJs422 conhecidos mundialmente. Há também as do tipo underground, em que a divulgação geralmente é pouca, comumente realizada de forma oral, acontece em lugares abandonados, e os frequentadores habitualmente já se conhecem entre si. Outro tipo de festa de música eletrônica são as raves em lugares abertos: praias, sítios, granjas, cujo intuito é de destacar o contato com a natureza. É importante ressaltar as festas de música eletrônica que acontecem em casas- noturnas (clubes e bares). Clubes e bares também são relevantes no contexto desse tipo de festa, porém não são raves em stricto sensu. Algumas vezes, o espaço é reservado para raves 421

É importante destacar que nas cerimônias xamânicas o êxtase é ritualizado e tem caráter sagrado. Nas raves, a prática extática é desritualizada e profana. De acordo com Mircea Eliade (2002, p.16): “Uma primeira definição desse fenômeno complexo, e possivelmente a menos arriscada, será: xamanismo = técnica do êxtase.” 422 Dee Jay ou DJ (disk jockey) é o artista da festa, o que controla a vibe (energia) dos dançantes. Ele mixa (mistura), a batida de duas ou mais músicas na mesma velocidade, nas mesmas bpm (batidas por minuto). A figura do DJ remonta à época dos músicos de Jazz dos anos 50, na qual os fãs se reuniam num clube para escutar os lançamentos e dançar. Era o fã que durante o intervalo dos shows mostrava as músicas, para manter a vibração da galera. Nos dias atuais, existem três tipos de DJs: o DJ móbile (móvel), o rádio DJ (opera nas estações de rádios) e o club DJ (DJ oficial, “residente”, fixo de um clube). Dados extraídos do texto “Sobre a cultura da música eletrônica e cibercultura” de Cláudio Manoel Duarte de Souza, retirado do site http://www.pragatecno.com.br. Visitado no dia 7 de janeiro de 2009.

1506

mensais ou a rave acontece apenas uma vez naquele clube. Tudo isso negociado com os promoters da casa. O promoter é responsável pela seleção dos DJs, feita com base no público que deseja atingir e no estilo de música a ser tocado no lugar. Em alguns casos, cabe a ele também distribuir flyers, ajudar na iluminação e na decoração do ambiente. As diferenças das raves para festas em clubes, de acordo com os frequentadores, incluem o horário que na maioria das vezes não dura muito tempo nas casas-noturnas (5 a 7 horas de duração), enquanto nas raves o tempo é bem maior, algumas raves chegam a durar 12 a 24 horas. Outra diferença é a venda exclusiva de álcool e a proibição da venda de outras drogas consideradas ilícitas. Os frequentadores de clubes geralmente estão lá com o intuito de paquerar, tomar alguma bebida alcoólica, dançar, dentre outras razões; já nas raves o maior objetivo é dançar. Contudo, é relevante ressaltar que a cena rave começou em clubes. Eles fazem parte da história. (SYLVAN, 2005). O termo rave surgiu a partir da mídia inglesa quando as pessoas se referiam a uma festa espetacular de grande porte. Rave é também adjetivo, significa entusiasmado (a). Palavra que remete a outras como excitação, empolgação, características encontradas nesses eventos. A música tocada é a eletrônica. Geralmente tocada em um volume alto, cabendo ao DJ guiar a vibração dos dançantes, pois é ele o grande condutor da energia entre os presentes. O que distingue as raves é o conceito de experiência compartilhada; nasce um sentimento de unidade, promovendo uma abertura nas pessoas para o outro. Abertura que só se dá por meio da comunicação, da relação que se estabelece entre si e o outro.

COMUNICAÇÃO A comunicação é condição da existência humana, é a construção de pontes para atravessar o vazio entre o “si” e o “outro”. 1507

De acordo com Georges Bataille (1992, p.104): “A existência é comunicação – e que toda representação da vida, do ser, e geralmente de ‘qualquer coisa’, deve ser revista a partir daí.” Segundo sua etimologia, a palavra vem do latim communicatio e significa estabelecer uma relação com alguém, mas também com um objeto cultural. Os indivíduos estão entrelaçados na e pela comunicação desde sua história filogenética. As moléculas, as células, os corpos tecem juntos uma teia comunicacional com o ecossistema, estão imbricados nos organismos e na sociedade. A comunicação abraça dimensões físicas, químicas, biológicas, sociais, históricas, filosóficas, psicológicas e culturais. É a espinha dorsal, aquilo que liga. Para ser é preciso comunicar, tecer relações com o mundo, com o outro. De acordo com Merleau-Ponty (2006, p. 569): “É comunicandonos com o mundo que indubitavelmente nos comunicamos com nós mesmos. Nós temos o tempo por inteiro e estamos presentes a nós mesmos porque estamos presentes no mundo.”. Comunicar-se com o mundo também significa ver o invisível, enxergar o que está embaixo, subterrâneo, escondido, aquilo que se encontra nos abismos. O abismo é o espaço do inframundo (espaço dos mitos, das figuras imaginárias, dos sonhos, do lúdico) é o suporte da cultura, onde ela se funda (informação verbal)423. Comunicar é também ver no escuro e perceber formas e símbolos arcaicos. Arcaico entendido aqui não como algo velho ou antigo, mas como aquilo que é anterior, fundador, primeiro, constituinte do ser e das coisas. A comunicação é da ordem do visível e do invisível, do audível e do inaudível, das bases que radicam o ser e as relações humanas.

Conferência “A Comunicação é mais em baixo! Sobre abismos e imagens abissais", proferida pelo professor Dr. Norval Baitello Jr. no dia 13 de março de 2012 em Natal como atividades do GRECOM Grupo de Estudos da Complexidade e da CIUEM - Cátedra Itinerante UNESCO Edgar Morin, com apoio dos programas de pós-graduação em Ciências Sociais e em Estudos da Mídia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 423

1508

A comunicação realiza-se na mediação, no meio do caminho, na construção de sentidos entre os sujeitos que se comunicam, ou entre o sujeito e o mundo. O sentido comunicacional se encontra exatamente neste meio do caminho, no durante, no “entre-ser”, que dá vitalidade aos processos e só quem viveu captou-o. É uma razão durante. (MARCONDES FILHO, 2004). É exatamente neste “entre-ser” que estão os símbolos, os signos, os significados que compõem a subjetividade do ser. Signo é concebido aqui como algo que está no lugar de alguma coisa distinta e, nesta concepção, é interpretável e entendido como tal. No sentido lato, é uma relação de três membros: o meio, o objeto designado e a consciência interpretante, conectando as experiências individual e ambiental. Já no sentido estrito, os signos estão ligados entre si, construindo uma rede através do qual o ser humano conhece, experimenta, aprende e expressa a realidade. (PROSS, 1980). O mundo dos signos é o das relações sociais. Não existe comunicação nem sociedade fora deste campo, o destaque é para os símbolos que ligam uma classe de objetos a uma consciência interpretante,

expressando

algo

conceitual

com

uma

função

designadora. (PROSS, 1980). Ernst Cassirer (1977) vai na mesma direção ao garantir que: os símbolos são designadores; o pensamento e o comportamento simbólicos figuram entre os traços mais constitutivos da vida humana; e

todo o progresso da cultura se baseia nessas

condições. Michel Maffesoli (2005, p.14) reafirma: “O símbolo é a causa e o efeito de toda vida societal”. Nas festas de música eletrônica, a comunicação acontece, principalmente, na instância corpórea. O corpo dança, treme, pula, pulsa, emite, recebe, simboliza, transcende, extasia. Mídia primária por excelência, a primeira forma de diálogo do sujeito com o meio. (PROSS, 1990). A comunicação se efetua por meio de uma simbologia corporal que

se

expressa

na

dança,

nos 1509

gestos,

nas

conversas,

no

comportamento, na despesa de energia. Harry Pross (1980) fala da densidade

de

dependência

comunicação, de

um

correspondente

conjunto

de

signos

à que

uma

mútua

tendem

ao

reconhecimento comum possibilitando o entendimento recíproco. Nas festas de música eletrônica é notável esse reconhecimento, levando sempre em consideração os signos que os participantes carregam no corpo, vestindo-se, comportando-se e dançando de forma parecida. Há também comunicação sonora. A música conduz o movimento dos dançantes, é ela quem manda no corpo. Fazendo uso do pensamento de Ciro Marcondes Filho (2004), a comunicação entre o corpo e a música encontra-se no meio do caminho, na razão durante, na imputação de sentindo ao processo comunicacional que ali se desenvolve. O simples ato de escuta musical já é um exemplo, em alguns casos, é normal nessas festas ver pessoas encostadas em caixas acústicas, às vezes, até em cima delas tentando sentir o som ao máximo. Não param de dançar. A música é o guia, melhor, é guiada pelo DJ que cumpre papel relevante na interação entre a pista de dança e o disk jockey. Os movimentos dos participantes fazem parte do processo de criação musical no momento em que as pessoas, ao dançarem ou emitirem alguma reação na pista de dança, guiam o DJ no procedimento de construção de uma nova música, ou até mesmo, ajudam o mesmo a identificar se aquela música foi do agrado ou não da pista. É criada uma relação dialógica/comunicacional. Alguns DJ’s chegam a executar gestos (batendo palmas, dançando, fazendo pequenas coreografias com os braços, outros pegam o microfone e trocam palavras com a pista) com o intuito de animar os participantes da festa e despertá-los para uma situação de excitação coletiva. Alguns participantes nas raves e em alguns clubes saem de si por meio de substâncias psicotrópicas, e, às vezes, sem fazer uso delas.

1510

ÊXTASE O êxtase também é comunicação, por meio dele o indivíduo experimenta a satisfação, a felicidade, a insipidez. É um saber apreendido que se expressa em um corpo excitado, de sensações levadas ao extremo. Para Bataille é uma experiência interior, mística: os estados alterados, de arrebatamento, pelo menos de emoção meditada. “O êxtase é, aparentemente, a comunicação, opondo-se ao achatamento sobre si.” (BATAILLE, 1992, p.20). Para compreender melhor o êxtase, é necessário entender que o mesmo parte dos estados “normais” da percepção para distinguir aí duas gamas: os estados de vigília “ergotrópicos” (ergotropic arousal) caracterizam-se pela hiperatividade psíquica, de alta temperatura mental, que podem ser superexcitados por drogas alucinógenas (como nas raves) ou por exaltação mística, levando a êxtases de satisfação (como em Teresa de Ávila); os estados “trofotrópicos” caracterizam-se pela hipoatividade psíquica, conduzindo à dessensibilização progressiva aos estímulos exteriores e induzindo à meditação serena, podendo resultar nos estados extáticos do zazen e do samadhi424. As duas vias excluem-se e conduzem a êxtases distintos: um de exaltação infinita e o outro de paz infinita. Os dois êxtases reencontram-se não somente na 424

Tabela criada por Roland Fischer:

1511

plenitude que proporcionam, mas também na superação ou na abolição de todas as estruturas cognitivas “normais”; explodem as categorias distintivas do universo fenomenal (sujeito, objeto, tempo, espaço), eliminam as separações, associam as contradições, misturam o lógico e não-lógico antes de também os extinguir, operando a fusão do si e do mundo. (FISCHER apud MORIN, 2005). Para Edgar Morin (2005), o êxtase pode ser alcançado por todas as vias indicadas, o ritual, a possessão, o transe, a dança, a música, a fusão amorosa, os alucinógenos (era mesmo preciso que um dia uma droga se chamasse ecstasy425). Cientificamente denominado de metilenodioximetanfetamina (MDMA), mais conhecido popularmente como E ou bala. A música é um importante ativador do efeito desta substância no corpo, mas é possível sentir alguns dos seus efeitos mesmo sem ingeri-la. O E se transformou no elemento-chave das festas de música eletrônica, sendo consumido em bastante quantidade desde as primeiras raves. O ecstasy pode propiciar uma profunda experiência de comunicação interpessoal e de autodescoberta. Quando um grande número de pessoas tomam E juntos, a droga cria uma atmosfera de intimidade coletiva, um senso elétrico de conexão entre completos estranhos. Ele possibilita uma interação sinérgica e sinestésica com a música, especialmente a música eletrônica. (REYNOLDS, 1999). De acordo com Jimi Fritz (1999), nas raves, o estado alterado de consciência, o sentimento de grupo e o ritual que ali acontece, podem ser pensados como uma experiência tribal. Maffesoli ao chamar a música eletrônica de techno426 pondera: Ao suscitar uma comunhão com as forças da natureza, os estrondos da música techno favorecem uma espécie de 425

Criado em um laboratório em 1913, a droga foi usada em teste durante a segunda guerra com os soldados norte-americanos e somente em 1984 ela invadiu a cena eletrônica no estado do Texas, proliferando-se por toda Europa e hoje em dia no mundo inteiro. 426 Techno é a abreviatura de technologic: isso significa que a produção desse estilo de música eletrônica acontece através de uma interface tecnológica.

1512

envolvimento primordial. Retorno à matriz terrestre. Como os mantra budistas, os encantamentos sufis ou mesmo a melopéia gregoriana, o ritmo techno marcado proporciona um transe que envolve o corpo em sua integridade. O vazio das letras é impressionante. Em compensação, as onomatopéias são significativas. Reiterações, falta de sentido, repetições à maneira de ladainhas não precisam ser explicadas, pois remetem a um sentido distante. Limitam-se a participar de uma experiência que permite ‘sair de si’. Reencontramos aqui a própria essência do êxtase: o indivíduo que sai de si mesmo para participar do ‘completamente diferente’. (MAFFESOLI, 2004, p. 163 e p.164)

Êxtase, comunicação e cultura estão conectados. Não existe cultura sem comunicação, assim como, não existe cultura sem festa. Ao se debruçar sobre a semiótica cultura, seus estudiosos, como Ivan Bystrina, afirmam que as fontes de cultura radicam em quatro momentos:

nos

sonhos;

nas

atividades

lúdicas;

nos

desvios

psicopatológicos como neuroses, paranoias, esquizofrenias; e por fim nas situações de êxtase e euforia (provocadas ou não, com o auxílio de algumas substâncias). O resultado da ação destes quatro fatores implica na emergência de um complexo sistema comunicativo chamado cultura. Compreendida como um conjunto de textos produzidos pelo homem. Os “textos da cultura” não são apenas as construções da linguagem verbal, mas também imagens, mitos, rituais, jogos, gestos, cantos, ritmos, performances, danças, etc; se constroem no diálogo, na operação interativa entre seus componentes subtextuais, no diálogo entre os signos e dos signos com seu próprio percurso histórico. (BAITELLO, 1997). A semiótica da cultura fala de uma segunda realidade, de caráter simbólico, imaginário, talvez algo análogo à noosfera de Edgar Morin. É nessa segunda realidade que se instauram as fontes de cultura. Norval Baitello (1997) dialoga com Morin ao afirmar que os sons, os movimentos e algumas substâncias são procedimentos de busca do êxtase. O estado de êxtase, é uma saída de si, implica em perda de energia, gasto, despesa. 1513

DESPESA É condição da vida. O crescimento e a reprodução seriam impossíveis se a planta ou o animal não dispusessem normalmente de um excedente. O próprio princípio da matéria viva quer que as operações químicas da vida, que exigiram uma despesa de energia, sejam beneficiárias, criadoras de excedentes. O sol é um exemplo basilar, irradia o tempo todo, dá sem receber, é fonte de vida. A despesa começa nas estrelas e se estende por todo o cosmos, incluindo a vida em sociedade, os aspectos biológicos e culturais. Há dois tipos de despesa: a primeira, redutível, representada pelo uso do mínimo necessário, para os sujeitos de uma sociedade dada, à conservação da vida e à continuação da atividade produtiva; a segunda, improdutiva, corresponde ao luxo, ao luto, à guerra, ao culto, aos jogos, às artes, à festa. Geralmente é reconhecido o direito de adquirir, de conservar ou de consumir racionalmente, mas deixa-se de lado a despesa improdutiva. Os homens encontram-se constantemente cometidos em processo de despesa. A variação das formas não acarreta alteração alguma dos caracteres fundamentais destes processos

cujo

princípio

é

a

perda.

A

excitação

acalora

as

coletividades e as pessoas. Os estados de excitação são assimiláveis a estados tóxicos, sendo compreendidos como impulsos ilógicos e irresistíveis. A festa, um dos exemplos de despesa improdutiva, de excitação coletiva, produto e produtora do social. A sociedade humana pode ter interesse em estragos consideráveis, em desastres que provocam, em conformidade com necessidades definidas, depressões tumultuosas, crises de angústia e, em última análise, um certo estado orgíaco. (BATAILLE, 2005). Michel Maffesoli, contaminado pelas ideias de Bataille, fala do orgiasmo cujo princípio maior é o desgaste. “O orgiasmo, ao contrário, 1514

que é a um só tempo contenção e excesso, assim como dispêndio, perde-se no presente, esgota-se no instante. Não funciona sobre um futuro hipotético ou sobre um passado duvidoso.” (MAFFESOLI, 2005, p.35). A música e a dança fazem parte de uma grande parcela das práticas orgíacas que remetem a um imoralismo-ético ao enraizar o laço simbólico de toda sociedade. Lugar do excesso. As festas de música eletrônica, principalmente, as raves, chegam a durar mais 12 horas. Algumas inclusive têm o after, uma festa depois da festa, cujo o intuito é fazer com que a comemoração acompanhe o efeito da droga no organismo. A música só pode terminar quando o efeito passar. O corpo se torna dependente das batidas eletrônicas, atrelado ao dispêndio intenso de energia juntamente com a explosão sensória. Fala-se aqui de uma descarga emocional – há o surgimento de um si global que evoca o consumo de si no instante vivido, os dançantes vibram, têm um feeling, “se entregam” com os outros – e sonora. O presente é o que importa e o instante é eternizado. Existe uma necessidade de “gastar” as energias individuais nas festas de forma geral. Tais energias alimentam o corpo social, transformando-o em um organismo pulsante que usa a comunicação entre os presentes como glicose para a criação de sua energia. A música techno, por sua própria velocidade, proporciona uma sensação de parada. Dá uma impressão de estabilidade dentro do movimento. E não é um dado sem importância, a este respeito, que um dos prazeres consista em remexer na lama. Símbolo dos mais claros do desejo de se estabelecer na terra. Deter o tempo que passa, portador de nossas angústias, ao mesmo tempo encenando as figuras monstruosas dos sonhos infinitos, é efetivamente um paradoxo significativo, o de um enraizamento dinâmico. É igualmente este paradoxo que permite entender a criatividade dos ‘ravers’ em transe que encontram no descontrole animal um acréscimo de energia para suas vidas cotidianas. (MAFFESOLI, 2004, P.160)

A despesa também pode se transformar em comunicação. A emissão, a perda, o gasto, o excesso no momento em que é 1515

apreendido pelo outro ou compartilhado, adquire significado. A mediação se estabelece, a ponte é feita e a comunicação realizada. O suor emitido pelos participantes numa pista de dança, o descontrole dos corpos, o excesso de energia desperdiçado pelos dançantes compõem uma simbologia corporal, que faz uso da despesa, aumentando a densidade comunicativa do espaço. Nessas festas, a experiência é extrema, e, nesse sentido, a despesa e o êxtase estão entrelaçados. “O extremo do possível supõe riso, êxtase, (...), agitação incessante do possível e do impossível.” (BATAILLE, 1992, p.45). É o ápice das sensações, a excitação explodindo em êxtase. Há uma necessidade latente em buscar novas sensações na cultura contemporânea. Christoph Türcke fala de uma sociedade excitada e essa busca ele denomina sensation seeking. As sensações descontroladamente tomam o organismo, extrapolando por todo o corpo, dando-lhe o sentimento pleno de si, e a anestesia dos sentidos. Tem-se como exemplo a quantidade de danos auditivos produzida em indivíduos nos clubes ou por meio de fones de ouvido fala por si só. As sensações criam a necessidade de outras. (TÜRCKE, 2010). O extremo do possível passa a ser cada vez mais alcançar sensações nunca sentidas, abusar dos sentidos, atingir, no caso das festas de música eletrônica, excitações coletivas, êxtases até então nunca vivenciados. A sensation seeking resulta numa despesa incomensurável. A comunicação e a despesa em conjunto com a experiência extática inserida num contexto cultural funcionam como bases epistemológicas e operadores conceituais primordiais para se pensar o homem arcaico e contemporâneo em toda sua universalidade, principalmente em suas dimensões festivas, hedonistas e simbólicas; o homem excitado.

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____________. O método 4 – as idéias. Porto Alegre: Sulina, 2005. _____________. O método 5 – a humanidade da humanidade. Porto Alegre: Sulina, 2005. NEVES, Thiago Tavares das. Batidas intensas: corpo e sociabilidade nas festas de música eletrônica em Natal. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, Natal, 2010. PROSS, Harry. Estructura simbólica del poder. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1980. REYNOLDS, Simon. Generation Ecstasy – into the world of techno and rave culture. New York: Routledge, 1999. SOUZA, Cláudio Manoel Duarte de. Sobre a cultura da música eletrônica e cibercultura. Disponível em: . Acesso em: 7 jan. 2009. SYLVAN, Robin. Trance formation – the spiritual and religious dimensions of global rave culture. New York: Routledge, 2005. TÜRCKE, Christoph. Sociedade excitada – filosofia da sensação. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010.

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A ASCENÇÃO E A DECADÊNCIA DA IMAGINAÇÃO POÉTICA NO FORRÓ Pedro Augusto de Queiroz Ferreira427 Allan Phablo de Queiroz428 Karlla Christine Araújo Souza (Orientadora)429 Resumo: O presente trabalho apresenta uma pequena amostra da análise da ascenção da poesia musicada chamada de Forró entre 1945 e 1989, que posteriormente sofreu adaptações bruscas e foi apelidado de “Forró Universitário” entre 1992 e 1999, e de 2000 até nossos dias, sofreu rupturas com o tradicional e passou a ser chamado de “Forró Eletrônico”, provocando uma decadência nos componentes de ritmo, instrumentalidade e poesia. Esse novo estilo de fazer forró é tido por uns como música de mau gosto e por outros, música de nenhuma qualidade. Este trabalho se apoia nas teorias de Walter Benjamim e Umberto Eco para entender como mercado de consumo dita as regras de mudança, como ocorreu as ruptura com as gravadoras multinacionais, e o que determina o lançamento e a eclosão de bandas cada vez mais independentes e os possíveis motivos da queda da qualidade das composições e de suas arregimentações. Palavras-Chave: Forró. Imaginação. Música. Poesia.

INTRODUÇÃO Na metade da década de 40, um jovem artista chamado Luiz Gonzaga começava a fazer sucesso no Rio de Janeiro com um acordeom simples e um chapéu de couro. Ao tocar seu famoso “Vira e Mexe” no auditório do Festival Ary Barroso transmitido para o grande público pelos meios de comunicação, deu-se início oficialmente a história do estilo musical chamado Forró. Do seu compacto simples no formato “45 rpm” (que apenas comportava duas músicas, uma de 427

Estudante de Graduação em Ciências Sociais (UERN). Integrante do Grupo de Pesquisa do Pensamento Complexo (GECOM/UERN). [email protected] 428 Estudante de Graduação em Ciências Sociais (UERN). Integrante do Grupo de Pesquisa do Pensamento Complexo (GECOM/UERN). [email protected] 429 Graduada em Ciências Sociais (UFPB), Mestra em Sociologia (UFPB) e Doutora em Sociologia (UFPB). É professora Adjunto II (UERN), Professora do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH/UERN). Vice-Líder do Grupo de Pesquisa do Pensamento Complexo (GECOM/UERN). [email protected]

1519

cada lado), intitulado com o nome “Vira e Mexe”, alcançou o Brasil inteiro por meio da gravadora RCA Victor (atual Sony Music). De outros compactos

contendo

outros

clássicos

de

sua

carreira,

saíram

interpretações diversas como a versão japonesa da canção “Paraíba” interpretada por Keiko Ikuta, ou a suposta alegação de que o quarteto britânico The Beatles regravaram a antológica Asa Branca, quando na verdade, apenas o cantor grego Demis Roussos teve a façanha realizada. A partir de 1957, a intérprete Marinês, seguindo o exemplo de seu mestre Luiz, grava por insistência de seu esposo, o sanfoneiro Abdias dos 8 Baixos (que já gravava desde 1960 discos instrumentais pela Columbia/CBS), o seu primeiro disco “Aquarela Nordestina” pela SINTER/CBD-Phonogram (atual Universal Music). A referida gravação continha um estilo de forró que até então só havia aparecido em alguns compactos de Luiz, o xaxado, tornando-se com isso a “Rainha do Xaxado”. No ano seguinte, Luiz Gonzaga, vendo o sucesso da discípula, grava seu primeiro LP, “Xamego”, sempre pela RCA Victor, que se tornou sua principal gravadora, com as exceções de saídas eventuais entre 1973 e 1975 em benefício da Odeon (atual EMI Music) e de 1988 a 1989 em benefício da Copacabana Discos, que foi comprada pela Emi Music em 1995. Com o advento da década de 1960, o gênero de forró cresceu, multiplicou-se e ganhou vários artistas como Elino Julião, Gerson Filho, Severino Januário, Jackson do Pandeiro, Messias Holanda, entre outros. Nesta época, os intérpretes de forró cantavam letras que retratavam romances, fatos cômicos e causos populares do Nordeste, é o que atesta um disco como o do Trio Nordestino lançado em 1964 pela gravadora SOM/Copacabana (autointitulado). A partir de 1972 a música nordestina começa a sofrer influências da MPB, pois influenciados pela migração nordestina e pelo sucesso de seus ídolos-artistas, alguns viajam em busca de sucesso, outros em busca de estabilidade financeira, migrando para o eixo Rio-São Paulo. Os maiores expoentes da chamada “Geração Nordeste”, tais como o 1520

cearense Raimundo Fagner que migrou em 1970 para São Paulo e já começa sua carreira em 1971, em parceria com o conterrâneo Wilson Cirino. Depois em 1973 estreia solo cantando canções melancólicas com pouco ou nenhum elemento do forró.

Já a paraibana Elba

Ramalho que, na época, uma estudante de Sociologia, abandonou a faculdade para se dedicar ao conjunto “As Brasas” e em 1974 chega em São Paulo sob pretexto de abrir uma companhia de teatro, por ser também uma atriz. É recebida com uma decepção de não conseguir construir a sua própria equipe de teatro e é descoberta neste meio tempo por Chico Buarque e Caetano Veloso em 1978. A partir de 1979 lança-se artista com um repertório bem mais voltado ao folclore da terra nordestina. Alguns cantores da chamada “Geração Nordeste” rapidamente caíram no ostracismo como a potiguar Terezinha de Jesus que fez parte do Projeto Vitrine da Funarte e que gravou cinco LPs entre 1979 e 1983 pelo selo Epic/CBS (atual Sony Music) sob as produções de Sivuca e Fagner e que em 1984 não logrou mais produção musical alguma. A partir de 1989, começa-se a pensar um novo tipo de forró que já não obedeça aos padrões tradicionais, um tipo de forró mais jovem, que em 1992 passa a usar guitarras eletrônicas, aproveitando o sucesso da era do “Rock” (1983-1988). Com a morte de Luiz Gonzaga em 1989, os poucos que restam no estilo tradicional estão à beira de serem esquecidos. Em 1992, alguém tem uma ideia que pode revolucionar para sempre o forró, instrumentalizá-lo de ritmos latinos criando assim o estilo “Forró Universitário”. Com a modernização dos estúdios de gravação, três elementos foram mudando no jeito de cantar forró, 1- A partir de 1995, muitas bandas passaram a surgir do Ceará como “Mastruz com Leite”, “Magníficos”, “Saia Rodada”, “Calango Aceso”, “Circuito Musical” como também começam a eclodir selos independentes em todo o Nordeste, o que ocasionará uma ruptura da MPB com as gravadoras multinacionais; 2- Começam a eclodir em 1999 um enxame de gráficas 1521

trabalhando a todo vapor para atender a demanda de bandas que querem lançar seus CDs em escala menor e assim conquistar um público mais fechado, o que acaba ocasionando o contrário, com o aumento do preço dos discos originais, muitos preferem ganhar CDs de divulgação gratuitamente e curtir uma música de baixa qualidade, já que o mercado da música não lhes dá mais acesso à antiga cultura; 3Não se ouve mais falar de CD de forró gravados em estúdio pelas multinacionais em 2004, a maioria das músicas desse estilo que agora levam o nome de “Forró Eletrônico”, são gravadas ao vivo, seguindo o exemplo da banda baiana de Axé Music “Chiclete com Banana”, que lança anualmente suas músicas inéditas agora apenas ao vivo, gravadas durante o período do Carnaval. Hoje

o

chamado

“Forró

Eletrônico”

passa

por

uma

descaracterização que leva os mais jovens fãs de todo o Brasil a gostarem de uma música que peca erroneamente pela qualidade de arranjos, das letras e principalmente de vozes, chegando muitas vezes a se confundir a obra de uma banda com outra, devido à semelhança de timbres vocais.

O FORRÓ VISTO DE DOIS ÂNGULOS Em nossos dias, o estudo sobre a Indústria Cultural da música seria bem empregado no caso do “Forró Eletrônico”. Para Walter Benjamin, em seu estudo acerca da Reprodutibilidade Técnica, no contexto da perda da aura “a produção artística tem um único objetivo, servir ao culto de olhares atentos, embora em presença ela valha bem mais do que em audição, se aplicado o conceito da reprodutibilidade técnica (BENJAMIN, 1990, p.215),”. Ainda neste pensamento ele nos mostra, que assim como as pinturas e o cinema, a música, pode ser marcada pelo excesso de poesia ou pela ausência dela, nas quais se estipulam valores físicos, psíquicos e de sensações e provoca nas massas uma atitude 1522

cada vez mais variada à medida que as épocas passam. As obras de arte têm um porquê de serem reverenciadas por algum de seus atributos, pelo menos, os que a faça única ao observador. Por isso atualmente a sua reprodutibilidade vem sendo discutida. As canções possuem esse caráter, pois nenhum grande compositor irá se aventurar a parodiar uma canção, seja na letra ou nos arranjos, para realizá-la em estúdio, sendo que outro artista já havia gravado. Além disso, o processo de reprodução de mídias piratas vem crescendo no Nordeste, para o descontentamento das autoridades, um dos aspectos do comércio que vem influenciando esta mudança. O estilo que nasceu de violeiros e acordeonistas nordestinos no final do século XIX430 tomou força pelos seus defensores da década de 1940 à década de 1990, apesar da força da reprodutibilidade técnica na música. No dizer de Walter Benjamin a reprodutibilidade técnica determina o fim da chamada aura, em que já não se distingue mais o que é original e cópia, visto que assim como o negativo da foto guarda as informações de quando ela foi tirada, os rolos de fitas magnéticas nas fileiras de estantes de arquivo das gravadoras, guardam os registros originais tal como foram gravados, mixados ou masterizados. Nesse sentido, a capacidade de uma música surpreender pelos arranjos e ao mesmo tempo contar algo relevante em sua letra é simplesmente questão de poética. A poética do nordestino passou a ser admirada por apresentar ao ouvinte uma espécie de nova poesia que trazia tradições

e

fatos

culturais

consigo,

e

de

novos

arranjos

que

revolucionaram a Música Popular Brasileira. No meio de tantas canções registradas em discos entre 1956 e nossos dias, muitas abusaram da imaginação poética e outras simplesmente usaram do duplo sentido, de que dispunham os autores para passar mensagens cômicas nas letras. Hoje esse forró é

430

Existem relatos de que os pais de Luiz Gonzaga, Seu Januário e Dona Sant’Anna, se conheceram em 1909 e se casaram ao som das sanfonas (cf. TOMAZ, 2009), porém o som dos acordeons em Pernambuco já era conhecido bem antes, por causa dos imigrantes italianos e alemães no sul do país.

1523

denominado Forró Pé-de-Serra, mas teve sua fase de glória nos anos 1960 chamando a atenção especialmente com os discos de Luiz Gonzaga: “Ô Véio Macho” (1962), “Pisa no Pilão” (1963), “Quadrilhas e Marchinhas Juninas” (1964), e “Óia Eu Aqui de Novo” (1967). As letras bem construídas falando de Nordeste como em “Caboclo Nordestino”, presente no disco “Pisa no Pilão (ou Festa do Milho)” explica bem o tipo de letra que Luiz Gonzaga costumava cantar no início da carreira. Abaixo a letra transcrita deixa transparecer a poesia nordestina:

Caboclo Nordestino (José Marcolino) Caboclo humilde roceiro, disposto trabalhador No remexer da sanfona, escuta este cantador Que num baião fala ao mundo, teu grandioso valor E no caboclo que vive, com a enxada na mão Trabalhando o dia inteiro, com a maior diversão Sem invejar a ninguém, satisfeito a trabalhar Cada vez animado, esse teu suor pingado Grandeza e honra te dá Na tua humilde palhoça, só se vê felicidade E quando chega da roça, sentes as mesmas vontades Pra comer teu prato feito, na mesa ou mesmo no chão A filharada em rebanho, o teu prazer é tamanho De quem possui um milhão Aqui nesta vida humana, ninguém é melhor que tu Escuta esta homenagem, de um cabra do Pajeú E outro do Rio Brígida, dos carrascais do Exú

No que diz respeito aos arranjos, a música exprime bem a primeira união do trio “Sanfona-Zambumba-Triângulo”, instaurado por Luiz Gonzaga em 1945. Na época, os estúdios da RCA comportavam os sons de maneira a captar com baixa fidelidade o que estava sendo orquestrado ao microfone. Na época, Luiz Gonzaga queria levar ao sudeste do país a realidade do seu Nordeste, especificamente de Pernambuco, sua terra natalícia. Igual comparação foi feita na canção “Cabocleando” (de autoria de Eduardo Casado) lançada no disco 1524

“Chá Cutuba” (1977-RCA) que também brinca com a poética do sofrimento do sertanejo nordestino. Ao falar dos caboclos nordestinos, Luiz Gonzaga exalta, na poesia de Eduardo Casado, os valores do homem trabalhador do campo e das fazendas, chamadas às vezes no sertão de “sítios”. A imaginação poética nesta letra exalta bem o sentimento de patriotismo no sentido em que Luiz Gonzaga se diz “Nordestino” com orgulho e no que concerne ao fato de o Nordeste ser visto ainda hoje pela maior parte do imaginário popular como uma terra de pedras rachadas e de crânios de bois em meio a cactos e mandacarus espalhados pela paisagem à luz de um sol escaldante. Hoje em dia, o Nordeste se parece bem menos com essa visão, e as músicas não retratam mais essa realidade. Na época em que essas letras foram escritas, a maior parte dos moradores das áreas de interior dependia exclusivamente da agricultura e pecuária, apesar de neste intervalo as coisas tenham mudado muito. Esta canção tem sua aura no sentido de ela já não poder ser mais interpretada tal como está gravada por causa da morte do intérprete original e pelo seu valor cultural contido num passado histórico, fatores estes que a concedem uma originalidade à versão registrada no disco. Já na década de 1970, o forró começa a ganhar retoques mais eletrônicos e passa a figurar como elemento de luxo entre os círculos da época, porém em 1976, depois do violeiro baiano Xangai lançar seu primeiro disco “Acontecivento431, os poucos forrós “Asa Branca”, “Forró de Surubin”, “Pr’onde Tu Vai, Luiz?” e “Me Diga se Tá Certo”432 tentam inovar com um estilo que nem se pareça muito com o tradicional pé431

Lançado em 1976 pelo selo Epic/CBS, este disco representa a segunda grande ruptura com o estilo forró tradicional (somente atrás do cearense Raimundo Fagner, que gravou tangos, cocos e toadas entre 1973 e 1975), pois Xangai originalmente se lança violeiro em Vitória da Conquista (BA) em 1974 e só depois é que tem condições para começar a sua carreira, com poemas musicados e com algumas pérolas desconhecidas do Nordeste, sendo o primeiro a inserir neste disco, ritmos novos como a rumba, marcharancho e o samba nas composições nordestinas. 432 Composição de Nanuke e Xangai, a canção “Asa Branca” que se encontra neste disco, conta com uma letra e arranjos diferentes daquela que foi composta por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira e gravada por Luiz Gonzaga em 1947. Já as canções “Pronde Tu Vai, Luiz?” de Luiz Gonzaga e Zé Dantas e “Forró de Surubin” de autoria de Antônio Barros e José Batista, conservam as letras originais de seus intérpretes originais, Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, respectivamente. Já a “Me Diga Se Tá Certo”, de autoria do violeiro cearense Gordurinha, é uma composição lançada originalmente pela primeira vez neste disco.

1525

de-serra, chegando a se confundir com um Rock improvisado. A exemplo desta mudança radical, o cantor cearense Antônio Carlos Belchior, ao gravar seu segundo disco destinado ao grande público, “Alucinação433” no mesmo ano, abusa das guitarras e do violão, de modo a lançar tendência para os outros artistas que estreariam nos anos seguintes, como a cearense Amelinha (1977), o paraibano Zé Ramalho (1978) e o instrumentista cearense Manassés (1979) que se afastariam bem do estilo forró tradicional, deixando o forró esquecido entre os muitos estilos tradicionais como o tango, o maxixe, o carimbó que Marinês estava começando a explorar em seus discos, e o frevo que Carlos Fernando começava a introduzir no cancioneiro brasileiro a partir do projeto “Asas da América434”. A segunda poesia que analisamos da época da Geração Nordeste é a poesia “Amar Quem eu Já Amei”, que ganhou sua primeira interpretação pela voz da cantora potiguar Terezinha de Jesus em seu disco “Pra Incendiar seu Coração” (Epic/CBS-1981), depois pela cearense Amelinha em “Mulher Nova, Bonita e Carinhosa Faz o Homem Gemer Sem Sentir Dor” (CBS-1982) e por último pelo paraibano Zé Ramalho e a cantora de Axé baiana Ivete Sangalo no CD “Nação Nordestina” (BMG/Ariola-2000), transcrita abaixo: Amar Quem eu Já Amei (João do Vale / Libório) Seu moço, eu venho de longe Não sei onde vou chegar Não tenho medo de seguir Mas tenho medo de voltar Plantar, plantar, porque homem sou Plantar colher, pra quem não plantou Amar, amar, quem nunca me amou Ser mais escravo do que hoje sou Quando a ida não é boa A volta não pode prestar

433

Lançado em 1976 pelo selo Philips/PolyGram (atual Universal Music). Projeto que rendeu 6 LPs lançados entre 1979 e 1993, dois pelo selo Epic/CBS nos anos de 1979 e 1980, um pelo selo Ariola em 1981, um pelo selo Barclay/PolyGram em 1983 e dois pela BMG-Ariola nos anos de 1985 e 1993. 434

1526

Não tenho medo de seguir Mas tenho medo de voltar Amar, amar, quem eu já amei Acreditar no que acreditei Trabalhar pra quem trabalhei Passar caminho que já passei

A letra trata de uma canção que valoriza a força braçal do trabalhador do Nordeste, embora já não mais durante os anos de seca. Neste caso, é uma crítica ao quadro de muitos dos artistas nordestinos que emigraram para o Rio de Janeiro e São Paulo entre 1971 e 1979, pois a canção destaca repudiando um amor que não deu certo, um emprego

que

não

descontentamento

lhe

que

deu o

satisfação,

pode

ter

ou

levado

um a

se

estado explicar

de o

incompreendido de sua vivência na música. Ao afirmar a letra no trecho, “Seu moço eu venho de longe, não sei onde vou chegar” e no trecho “Quando a ida não é boa, a volta não pode prestar”, expressa um possível medo do nordestino que viajou léguas, às vezes mais de dez estados para chegar ao “Sul Maravilha” e ter de amargar um retorno com quase nada conquistado. Esta canção dá ao ouvinte um bom exemplo de sua poeticidade, pela beleza da letra e as figuras de linguagem que permitem trabalhar um tema pesado, de modo implícito. Por este fato, esta canção passou a figurar nos círculos da Música Popular Brasileira a partir de 1982, devido à interpretação de Amelinha. O terceiro caso a ser analisado é a da letra da música “Neném Mulher”, anos depois apelidada de “Paixão de Beata”, originalmente lançada no LP “Remexer”435 de 1986 por Elba Ramalho, foi regravada em 1989 por seu compositor, o sanfoneiro Pinto do acordeom

435

Distribuído pela Barclay, selo da multinacional PolyGram, este disco, lançado em 1986, traz em seu repertório mais uma ruptura para com o estilo tradicional de forró ao inserir um repertório repleto de frevos e toadas eletrônicas em vez de pé-de-serra ou xaxado, estilo que segundo a própria cantora Elba Ramalho, homenageia a cantora pernambucana Marinês. Na faixa “Boca do Balão” (de autoria de Moraes Moreira, Zeca Barreto e Fred Góes), presente neste disco, o que parece ser um forró ganha os primeiros retoques da qualidade do forró eletrônico desencadeado na segunda metade da década de 2000.

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especialmente para a trilha sonora da telenovela Tieta 436 com outra letra, mas mantendo os arranjos. A letra está transcrita abaixo dividida pelas suas duas versões: Neném Mulher (Versão gravada em 1986) Neném, neném, neném O que aconteceu? “Tão” todos te querendo Tu vem ficar mais eu, “ói” Neném, neném, meu bem Me dá teu coração Que eu caso com você Nessa noite de verão Basta ver como estou Enjeitado sem amor Vem depressa, me abraçar E por toda a vida, nunca mais nos separar

Neném Mulher (“Paixão de Beata”) (Versão gravada em 1989) Ai ai, ai ai, meu Deus, O que aconteceu ? O mundo tá perdido Eu não entendo mais Ai ai, ai ai, meu Deus No escuro, a confisão Para mim não tá bem claro O que é que eu faço com a paixão Basta ver como estou Rejeitado sem amor Vem depressa me abraçar Seja santo ou Seja alguém prá gente se alinhar

Como deixam bem claras as duas versões da composição, ambas trazem a vontade do interlocutor de namorar uma mulher, ou no caso da interpretação de Elba Ramalho, de um homem. As palavras usadas sugerem o amor incondicional de uma pessoa sem par que 436

Esta novela teve seu disco de trilha sonora distribuído pela Som Livre em 1989, cuja maioria dos artistas intérpretes das faixas eram nordestinos.

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tenta apelar ao mesmo tempo para a pessoa imaginária da canção. A letra pode ser entendida como uma mensagem de amor, mesmo que curta e pouco portentosa. Já se começa a notar, em ambas as versões, o início ainda fraco do artifício da repetição das estrofes para ganhar espaço na mídia. Mesmo assim, elas chamam atenção por pelo menos três minutos de duração. Passando para os nossos dias, o forró mudou para um tipo de música que apresenta poesia incoerente e ao mesmo tempo mais apelativa do que as músicas anteriores. Para Umberto Eco, a decadência da cultura se deve a um modelo de gosto iniciado pelos jovens da nossa contemporaneidade que endeusam a ação, o rendimento e o ativismo físico, como deixa transparecer o trecho a seguir sobre a canção feita tão somente para o “consumo” exacerbado da sociedade moderna: Não sabemos o que pode ainda resultar deste filão; mas parece-nos que se trata de uma renovação de costume que pouco a pouco, vai encontrando os caminhos da audiência popular. De qualquer maneira, é um processo já iniciado, e que não ficará sem consequências. (ECO, 2008, p. 301).

Partindo para as análises das duas letras do forró eletrônico que foram selecionadas, o gosto dos jovens por esse tipo de ritmo deriva antes de muitos outros estilos, tanto que continua sempre em processo de atualização constante. A primeira trata de uma espécie de machão que conta vantagem em que se repetem os apelos sexuais, visto que a duração das músicas de forró quando gravadas ao vivo, algumas chegam a extrapolar os quatro minutos de execução. Segue-se a letra tal como gravada pela banda “Aviões do Forró”: Gostosão (Autoria não declarada) Vou te levar pra cama Vou te deixar toda nua Vou te morder Vou te lamber, safada!! Você vai ficar tesuda

1529

Vou te abraçar Vou te beijar Vou te levar as nuvens É loucura de amor Eu sou força total No sexo, sou campeão Vamos fazer amor Quem é o gostosão daqui? Sou eu, sou eu, sou eu..!

Dois fatos já chamam a atenção imediata: 1- A autoria das músicas de forró eletrônico na atualidade, na maior parte das vezes não é declarada, ou não é exposta, como se a banda fosse a responsável pelo “sucesso” da letra, ou pior, como se os direitos autorais não valessem mais nos dias atuais, visto que uma letra moderna de forró pode gerar repercussão e todas as bandas a gravarem, como também podem gerar um processo por plágio, como foi o caso noticiado da música “Minha Mulher Não Deixa Não”, envolvendo a banda “Aviões do Forró” que a gravou sem permissão, envolvendo o possível compositor de forró Reginho da TV Diário de Fortaleza/CE; 2- na letra se vê vários apelos sexuais explícitos, como nunca se havia imaginado na época dos grandes defensores do pé-de-serra. O que antes era codificado pelos poetas hoje em dia exibe sua libertinagem pelas letras dos “forrós populares”. A letra faz, implicitamente um convite para as moças a se deixarem levar para a cama enquanto o macho fica contando vantagem em cima de sua “fraqueza” diante da insistência. Nada mais pode ser extraído desta análise. A segunda letra, gravada pela banda “Forró do Muído”, denota ainda um maior apelo aos pronomes explícitos: Ela é Um Lixo (Autoria não delcarada) Lixo, Ela é um Lixo Me trocou por isso, Sou mais eu, fica com ela Você é um lixo Me trocou por isso, eu não acredito Fica com ela e vê se esquece o meu telefone Vê se some, esquece o meu nome

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A escolha foi sua, vê se some E apaga o meu telefone Acho, que é um pouco tarde Para de bobagem Você não deve mais nenhuma explicação Larga do meu pé, não sou sua mulher E se depender de mim não volto nunca mais Porque, tomei nojo de você Não quero mais te ver Vai correr atrás daquele lixo Aquilo é um lixo Pensando bem ela combina com você

Pensando como os grandes poetas, o que mais se pode ler além da palavra “lixo” nesta letra? A mulher está cansada de ser traída, denotando que a terceira pessoa envolvida não passa de lixo para ela. O palavreado decadente

que é exposto nesta letra denota uma

depreciação dos valores morais, como se a banda tivesse a liberdade de chamar outra pessoa, mesmo que “imaginária” de lixo. A banda “Forró do Muído” faz em alto som uma acusação pública como se estivesse, denegrindo a imagem de uma pessoa. Como se não bastasse, todos os que repetem, dão à letra uma certa força. Uma análise de “videoclipes” das duas últimas letras apresentadas deixaria no ar a dúvida se o público acompanha as atrações por causa da banda, ou por causa dos dançarinos que ajudam a ilustrar o sentido da canção.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Quanto à decadência da imaginação poética no Forró de 1945 até nossos dias, concluímos ter sido um fenômeno que começou pela ruptura com os arranjos originais do trio “Sanfona-Triângulo-Zabumba”, passou pelas modificações no estilo de canções nortistas para canções melancólicas, românticas, festivas e até mesmo eletrônicas. O golpe de abuso foi a banalização das composições atuais que abusam de letras

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infames e altamente explícitas. Por causa da pirataria, as produções multinacionais sobem a cada dia de preço, deixando os cantores mais experientes e as multinacionais a declinarem da venda do material físico legítimo em lojas especializadas. Por isso, as novas músicas de forró não podem ser suprimidas, pela rápida difusão com que as mídias são copiadas e distribuídas. A distribuição e venda de relançamentos em CDs dos primeiros LPs de Luiz Gonzaga hoje amargaria uma queda baixa tanto pelas vendas, quanto pelo gosto por este tipo de música. A pergunta se o Forró perdeu sua essência, seu ritmo, seu poder de venda, enfim, sua influência e, se para conquistar público nos dias atuais, precisou perder até mesmo sua integridade e dar lugar a letras pouco poéticas e altamente explícitas, vai continuar por mais algum tempo, até que alguma pesquisa se arvore em resolver este dilema de causalidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS LACERDA, Carlos. Forró. Disponível em: http://www.onordeste.com/ onordeste/ enciclopediaNordeste/. Acesso em 08/09/2012 às 14:51. SOUZA, Robson Fernando. “Forró” eletrônico contemporâneo e seus inconvenientes. http://www.artigos.com/artigos/humanas/sociologia/ %93forro%94-eletronico-contemporaneo-e-seus-inconvenientes-6651/ artigo/. Acesso em 08/09/2012 às 15:47. RAMOS, Danielle Priscilla Santiago. JÚNIOR, José Mauro de Alencar Correia. DIAS, Lêda. LUNA, Márcio Antonio de. Sanfona. Disponível em: http://www.recife.pe. gov.br/mlg/gui/Sanfonas.php. Acesso em 21/09/2012 às 17:20. TOMAZ, Paulo Wanderley. Cronologia da Vida de Luiz Gonzaga. Disponível em: http://www.luizluagonzaga.mus.br/index.php?option= com_content&task=view&id=13&Itemid=120. Acesso em 21/09/2012 às 17:35. BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica. In: ADORNO, Theodor, et al. Teoria da Cultura de Massa. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, pp. 207-256.

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ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 2008, pp. 295-323.

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E DE REPENTE, DE UM CENÁRIO FAZ-SE POESIA: UMA ANALOGIA SOBRE A PRODUÇÃO POÉTICA DO CORDEL E DO REPENTE EM MOSSORÓ/RN Samuel Moreira Chaves 437 Ailton Siqueira de Sousa Fonseca438 Thiago Romero Leite Barra439 RESUMO: O rio que invade veredas, transporta galhos úmidos que antes por sequidão e ali caíram transformando-se em botes para pássaros velejarem, que vistos ao olhar de um poeta, de repente, torna-se um canto que se eterniza na mente de quem o contempla. Perceber a reconstrução narrada da paisagem por poetas repentistas e cordelistas de Mossoró/RN, nos motiva dialogar sobre a sua vida e obra que se constroem nesse berço da poesia do instante que possui grande variedade tanto de técnica quanto de inspirações. A pesquisa ainda trata de revelar as memórias dessa cidade por meio desses sujeitos de grandes expressões criativas em suas narrativas poéticas: cordel e repente. A produção sobre o tema, comumente vem no enfoque comercial, muitas vezes destratando o dom artístico desses indivíduos. Inserido nesse universo, tanto nos quintais quando nas paginas que registram e propagam esse produto, alimentamos o espírito com o narrar saudável dos fatos ocorridos no mundo imaginário e real de nossos terreiros. Aqui, queremos, falar juntos a, e não sobre a arte poética, assim construindo um novo método de fazer ciência, pois é contemplando relatos por meio de entrevistas, apresentação e leituras dos mesmos, que nos fazemos inspirados e motivados a tentar entender e viajar sob seus cantos ritmados instantaneamente sobre suas vidas, vidas de poesia.

PALAVRAS-CHAVE: Cordelistas; Repentistas e imaginação poética; Memórias e saberes.

INTRODUÇÃO “Comprei um bote, aquele ali pendurado, onde nem sei quando vou usar ele pelo rio Mossoró, o rio tá cheio de mato, tá raso, tá tão sujo que nem vejo mais os peixes, mas eu viajo por ele em meu bote, pois eu lembro que quando eu era moleque e tomava banho nele e pescava, desde moleque eu 437

Graduado em Turismo (UERN). Integrante do Grupo de Pesquisa do Pensamento Complexo (GECOM/UERN). [email protected] 438 Graduado em Ciências Sociais (UERN), Mestre em Ciências Sociais (UFRN) e Doutor em Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais (Antropologia) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É professor titular da UERN, Diretor da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais (FAFIC/UERN), Professor do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH/UERN). Líder do Grupo de Pesquisa do Pensamento Complexo (GECOM/UERN). [email protected]. 439 Graduado em Ciências Sociais (UERN). Integrante do Grupo de Pesquisa do Pensamento Complexo (GECOM/UERN). [email protected].

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conheço ele todo. Por isso, quando eu quero, eu viajo nele e vejo ate os animais conversando e dizendo que sentem falta de quando o rio era limpo” (Trecho da entrevista com Antônio Francisco em 15/05/2012.)

O rio que invade veredas, transporta galhos úmidos que antes, por sequidão, ali caíram transformando-se em botes para pássaros velejarem. Vistos pelo olhar de um poeta, de repente, esse passeio torna-se um canto que se eterniza na mente de quem o contempla. Perceber a reconstrução narrada da paisagem por poetas repentistas e cordelistas de Mossoró/RN. O Rio Grande do Norte é considerado um estado de grandes atribuições no que diz respeito à cultura e à criação de novos artistas. O objeto dessa pesquisa se insere num conjunto de desafios e inquietações cognitivas do Grupo de Pesquisa do Pensamento Complexo (GECOM/UERN). Visando possibilitar a construção de um novo sujeito do conhecimento e um novo estatuto para a ciência humanística conferindo a esta uma constituição mais metafórica e poética, mas não menos rigoroso, ao centrar-se na vida e obra desses poetas. Repentistas e cordelistas são sujeitos cada vez mais raros nesse mundo onde as pessoas ouvem cada vez menos os discursos e as narrativas dos outros. Talvez tenha sido isso que fez Walter Benjamin dizer: “o saber que vem de longe encontra hoje menos ouvintes que a informação sobre acontecimentos próximos” (1994, p. 202). Contudo, observando que esses sujeitos sociais que fazem do seu cotidiano

uma

manifestação

cultural,

artística

e

poética,

compreendem o mundo e sua complexidade como fonte de inspiração presente no seu processo de criação poética, pois, esta, advém da relação entre vida e obra desses homens, poetas, tão desconhecidos pela comunidade acadêmica e social de Mossoró, enquanto feitores da poesia do instante.

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A singularidade dessas expressões poéticas por meio das quais esses “homens ordinários”, que ao evocar a palavra, se tornam sujeitos, se mostram ao mundo, ao outro e a si mesmos pela arte do instante, esta que poetiza uma vida no espaço temporal de sentir e dizer pelos versos na hora criados. Dar atenção e escutar esses saberes e memórias populares é o grande desafio para dar à prosa do mundo uma resposta poética, desafio também de construir uma ciência mais próxima da “lógica do sensível” (Lévi-Strauss,1989) e das experiências cotidianas. Atribuímos ao instante o ponto de partida e a base de uma explicação compreensiva da sociedade, uma centelha da criação que é tão necessária à poesia quanto à ciência, à cultura e à educação dos valores humanos. Segundo, a poesia popular improvisada tem suas raízes na experiência imediata dos repentistas e de seu público, porém o saber letrado também é parte do conjunto de saberes desses poetas, saber esse que tem sempre como referência o modo de vida do nordestino ou da cultura do local, o que acontece também com os cordéis. Os repentistas são “exímios em captar a profundidade horizontal das relações conscientes entre pessoas e entre pessoas e coisas” (Santos, 2008, p. 89). No repente tanto quanto no cordel há um conhecimento implicado sobre o homem, a vida, a sociedade, a cidade e as relações humanas entre os homens e entre esses e a natureza. O estudo sobre esses “sujeitos” e suas expressões poéticas encontra, hoje, um respaldo científico cada vez maior dentro das Ciências Sociais. Segundo Boaventura Santos e Michel Random, estamos vivendo a emergência de um novo paradigma da ciência que abraça a reflexão poética como forma de ampliar suas lentes racionais e seus conceitos teóricos por meio dos quais lê e interpreta a realidade. A ciência que abraça esse desafio é a mesma que busca “reabilitar o senso comum por reconhecer nesta forma de conhecimento algumas

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virtualidades para enriquecer a nossa relação com o mundo” (Santos, 2008; Random, 2000). O cordel não é apenas uma arte de divulgar as coisas do cotidiano, das tradições populares e as ideias dos seus autores. É verdade que o repente e o cordel se referem, quase sempre, a coisas do convívio cotidiano e da cultura de uma região, mas, como percebemos, não há limites na escolha dos temas da criação de um cordel ou de um improviso poético. Essa é uma arte que representa o espólio do imaginário de uma época, de um povo, de uma cultura, manifestações poéticas que, ao tratar de algo especifico (como toda literatura), terminam tocando no que é universal. Se é pertinente dizer que “o que se diz de si mesmo é sempre poesia” (Renan apud Bachelard, 2007, p. 13), não é exagero afirmar que falando de si mesmos, de suas vidas, seus costumes, suas cosmovisões ou se expressando improvisadamente, poetas repentistas e cordelistas contribuem para construir uma grande e complexa imagem do ser-no-mundo; com suas palavras vivas e pulsantes, tecidas no calor do instante - já, eles reconstroem imagisticamente a realidade, sua história, sua cultura e, com isso, acrescenta à prosa do mundo a poesia de estar vivo, sentindo e intuindo a realidade circundante. Tudo funciona como de fato parecer ser: repentistas e cordelistas percebem em tudo que encontram aquela sabedoria implicada que lhe permitirá transformar o indizível em poesia, aquela sabedoria que a ciência, por trabalhar com o discurso explicativo, ainda não soube perceber nas coisas que ela mesma estuda e tenta entender. Consideramos

que

pesquisas

dessa

natureza

podem

contribuir

significativamente para a compreensão da diversidade e unidade da cultura local e regional, para a valorização do patrimônio imaterial e simbólico da realidade dessa cidade que, crescentemente, se torna referência econômica, política, social e cultural no Estado.

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MATERIAL E MÉTODOS Através da história de vida desses poetas colhida com os próprios cantadores por relatos de suas experiências e vivencias dentro do universo da cantoria em Mossoró, correlacionamos o seu fazer poético com a sua própria trajetória de vida pessoal. Assim, por entrevistas procuramos captar o pensamento e ou posicionamento dos cantares perante algumas indagações sobre a importância do estudo formal acerca das cantorias e aprimoramento dos poetas. Para isso o projeto teve como procedimentos metodológicos básicos a observação direta da poesia popular e a história de vida de cordelista e repentistas. A observação direta da poesia ocorreu nos espaços do desenvolvimento do repetente em Mossoró: nas rodas de cantoria na casa dos cordelistas, em apresentação em eventos, tais como festivais e feiras comerciais e culturais. O trabalho possibilitou a observação e o contato com a poesia popular e com o auxilio de ferramentas para registro audiovisual e sonoro da poesia e dos ambientes em que ela ocorre. A pesquisa também usou registros escritos como: pesquisas de opinião, na qual se fez mostrar o perfil dos repentistas e dos cordelistas que ainda se mantem ativos na cultura da cidade de Mossoró. A história oral e a história de vida possibilitaram a construção de uma representação do universo do repente e do cordel em Mossoró a partir da concepção de seus próprios sujeitos. Por outro lado, o público que o prestigia contribui para a representação social que eles tem de si mesmos, assim como percebemos no discurso de “Dona Têquinha’’, moradora do bairro Abolição II em Mossoró, que alegra-se quando os cantadores se reúnem na esquina da sua rua. Como ela disse: “é muito bonito os ver cantando. Meu filho, Thiago, de oito anos é que gosta, fica no pé dos homens. Ele me disse que um dia vai ser cantador” confessou ela.

1538

Entre as atividades realizadas durante a pesquisa, tivemos como fase inicial a participação quinzenal nas reuniões do Grupo de Pesquisa do Pensamento Complexo – GECOM - UERN, com o objetivo de iniciar a fundamentação teórica e apresentação da metodologia de pesquisa que foi usada. Nesse período foram coletadas obras que remetiam a Cultura Popular, Sociologia e Antropologia, como também livros de metodologias científicas, jornais e revistas do cenário local, ligados à temática em discussão. O segundo passo foi o contato com os cordelistas e repentistas da cidade. Foi nessa fase que nos envolvemos com as rodas de cantoria e conversas sobre cordel e ainda fizemos o acompanhamento de manifestações populares. Foi nessa etapa também que podemos conhecer um pouco da vida dos poetas e um pouco do seu cotidiano e dificuldades enfrentadas. Estes foram alguns dos momentos que desfrutamos do contato direto com o universo da pesquisa ao logo dos meses. Outra atividade de extrema importância que foi executada com sucesso (mesmo que parcial tendo em vista que ainda há muito o que ser explorado) foi o mapeamento dos poetas repentistas e cordelistas de Mossoró. Este possibilitou o reconhecimento dos locais onde os poetas residem e se apresentavam bem como para e o registro para futuros contatos. Essa atividade foi importante para pesquisa em detrimento das dificuldades encontradas na localização e locomoção que tivemos devido alguns desses poetas residirem em assentamentos rurais com difícil acesso. Dentro do cronograma de atividades da pesquisa, também utilizamos entrevistas abertas com os cordelistas de Mossoró e sobre sua produção poética. Entre os entrevistados estão Antônio Nilson da Silva, José Antônio da Silva, conhecido como “Nildo da Pedra Branca” e Valdeci Alves Maniçoba, José Antônio. A discussão gerou grande riqueza de perguntas e questionamentos sobre a produção de cordel local, devido às dificuldades encontradas para expor o trabalho realizado para sociedade. 1539

RESULTADOS E DISCUSSÃO A convivência com os poetas nos levou a tentar criar um perfil do cordelista e repentistas mossoroense, assim, obtendo um melhor resultado do pensamento individual e em grupo da produção na cidade. Pensando nesta proposta, foi realizada uma pesquisa de opinião com os cordelistas que aceitaram responder algumas perguntas a cerca da vida e da carreira dos mesmos. Lembrando que por se tratar de uma pesquisa de opinião, a identidade dos participantes não foi identificada no momento do preenchimento. A pesquisa contou com 16 perguntas que eram ligadas desde a faixa etária e escolaridade até o ponto de vista individual a cerca das transformações que essa literatura vem causando na sociedade. No total foram nove pessoas que aceitaram responder o questionário. Para, além disso, ainda foi feita uma analise dos manuscritos assim como falas em apresentações em eventos privados e públicos, feiras e diálogos, como o intuito de perceber de que maneira estes artistas veem a cidade. Assim, para adentrarmos no universo particular e social desses indevidos feiticeiros no uso da palavra do instante, antes de mais nada, deve-se fazer presente o iniciar dessa arte em terras locais. “O início da literatura de cordel está ligado à divulgação de histórias tradicionais, narrativas de velhas épocas, que a memória popular foi conservando e transmitindo; são os chamados romances ou novelas de cavalaria, de amor, de narrativas de guerras ou viagens ou conquistas marítimas. Mas ao mesmo tempo, ou quase ao mesmo tempo, também começou a aparecer no mesmo tipo de poesia e de apresentação, a descrição de fatos recentes, de acontecimentos sociais que prendiam a atenção da população. Antes que o jornal se espalhasse, a literatura de cordel era a fonte de informação (DIEGUES Jr. 1986, p. 31)”.

Durante a disseminação do estilo na vida dos nordestinos o contato com o cordel era mantido nas reuniões noturnas familiares. 1540

Após o jantar, as pessoas se reuniam para ler ou cantar a literatura de folhetos. O alfabetizado da família ocupava uma posição privilegiada diante dos outros: era o leitor. Dessa forma, a história era cantada e divulgada. Foram raras as obras vindas de Portugal ou de centros mais adiantados do Brasil. Havia os folhetos contando novelas populares e, ás vezes, histórias de Santo. Esse tipo de poesia por muitos é considerado um “dom” por outras apenas facilidades de improvisar palavras em verso. O poeta cordelista Antônio Francisco consegue descrever um pouco essa emoção quando ele diz:

“Escrever é meditar Todo dia, dia inteiro, Fazer do vento uma escada, Do luar um candeeiro, Pra ver o rosto de Deus Por detrás do nevoeiro. É viajar dia e noite No barco da liberdade, Num rio feito de versos, Pela criatividade, Olhando pela janela Dos olhos da humanidade. É viver plantando sonhos Onde mais ninguém plantou, Sonhar colhendo semente Do sonho que ele sonhou, E sugar o mel das pétalas Da roseira que murchou”. (FRANCISCO Apud FONSECA, 2010, p.123).

Em meados do século XVIII para início do século XIX surge uma nova modalidade de apresentação de cordéis, agora de forma cantada, tendo como apoio musical a viola, também conhecida como “viola de sertanejo”, “viola nordestina”, “viola cabocla”, “viola brasileira” e outras denominações. Esses instrumentos de cordas, populares no interior do Brasil, símbolo da música popular, também tem ascendência ibérica. Levando a questão para o nível local, mais precisamente em Mossoró, pode-se perceber durante as conversas com os cantadores, que muito da sua produção se remete a momentos 1541

inesquecíveis vividos na infância sofrida nos assentamentos rurais da cidade e região. Antônio Nilson da Silva, cordelista e repentista de Mossoró, relatou que sua inspiração para produção de suas obras refere-se tanto a fatos reais acontecidos na atualidade, na criação de biografias encomendadas e de fatos que marcaram sua infância na zona rural. O valor da família, da terra e dos animais que conviviam no dia-adia desses poetas serviam como inspiração para produção de verdadeiros desabafos pessoais e, da mesma forma, um protesto para com o tipo de qualidade de vida que levavam. O caipira deixava de ser apenas mais um no cangaço ou Sertão para ser protestante e protagonista do que presenciava no campo. “A música caipira [...] se caracteriza estritamente por seu valor de utilidade enquanto meio necessário para efetivação de certas relações sociais essenciais ao ciclo do cotidiano do caipira. [...] Sem a música essas relações não poderiam ocorrer ou seriam dificultadas, acentuando a crise da sociabilidade mínima dos bairros rurais, como, aliás, se observa naqueles que estão em desagregação”. (MARTINS Apud LOPES 2008, p.122).

Já no desenvolvimento da trajetória do repente, também conhecido como desafio, é uma modalidade genuína da cultura nordestina, onde a habilidade do improviso se apresenta com suas diversas facetas, narrativas e temporalidades. A arte do improviso é considerada o maior feito do cantador nordestino. Decorar trechos ouvidos no momento da apresentação dos profissionais, não é uma tarefa fácil para os amantes do repente. Alguns apologistas costumam dizer que sair do “precipício” seria livrar-se de situações que parecem impossíveis, é outra grande característica do repentista. Os repentistas e cordelistas mossoroenses podem contar com diversos eventos que os acolhem, onde podemos citar a Feira do Livro de Mossoró que tanto em 2011 e 2012 contaram com um espaço para comercialização e divulgação de trabalhos de cordéis ou com referência ao mesmo. O espaço também deu oportunidade para novos 1542

cordelistas que desejam apresentar seus trabalhos. Abaixo um pequeno fragmento da última publicação de uma jovem poetisa de Mossoró, Monique Stefhany Silva Ferreira:

Deus me ajudando escrevo Respeito à diversidade Satisfeita me inspiro Com toda felicidade Para falar de culturas Com minha capacidade. Saiba como respeitar Um amigo, um parceiro. Nunca, jamais maltratar. O nosso bom companheiro Amar, cuidar, respeitar. O nosso melhor parceiro. (FERREIRA, 2010b, p. 01).

Agora, chegamos a uma problemática presente sobre as discursões que se referem a o repente e cordel: a profissionalização. Muitos dos nossos intelectuais acham que com a escolaridade dos nossos atuais e principais poetas a literatura de cordel corre o risco de descaracterizar essa poesia, mesmo sabendo que a polidez e obediência à gramática não tiram a autenticidade sobre a obra (SILVA, 2008). Contudo, por questões mercadológicas, muitos desses poetas podem se vender a tal sistema e fugir de suas raízes de inspiração. Assim com trata Antônio Francisco ao dizer: - só o que há são propostas de fazer cordel encomendados, eu até faço, mas faço do meu jeito 440. O mesmo ainda afirma que sempre está trabalhando em sua poesia, em sua vida, pois minha vida se resume em viver olhando as coisas e falando delas em forma de poesia, assim, para não esquecer disso, todos os dias eu olho o meu cordel que conduz os passos de minha vida. É um cordel que todos os dias me inspira a viver, eu diria que ele é o meu cordel reprodutor, é por causa dele que hoje tenho títulos, ainda não acabados, mas eu olho pra eles todos os dias. Olha! É preciso olhar pra eles todos os dias, porque é preciso gosta deles, porque se eu não gostar deles, eu tenho certeza que ninguém vai gostar. Você acredita que 440

Trecho da entrevista com Antônio Francisco em 15/05/2012.

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eu ainda leio os meus cordéis antigos. Um dia desses, eu tava na rodoviária esperando um ônibus, fui a banca de revistas comprar um algo para eu ler e quando chego lá eu vejo um livro que o autor era um tal de Antônio Francisco, era uma coletânea de cordeies, e eu comprei ele para eu ler. Eu li o livro todim na viagem de Natal a Mossoró.441

Com muito bom humor Antônio Francisco fala e concordar que além de registro dos fatos políticos, econômicos e sociais de uma época, dos usos e costumes de um povo, o cordel e o repente é também a forma cristalizadora dos ideais, aspirações e sentimentos coletivos, além de expressar uma forma de arte que se mantém independente de suas aspirações individuais. A expressão de sua subjetividade ainda denota o subjetivo coletivo da sociedade. É por tal questão que os próximos textos tratam de um olhar que a sociedade tem sobre si, onde esses títulos são: A greve dos três ladroes; A gaiola de vidro; O preço da ignorância; Lavando Calçada da vida; Uma escola para a vida; A procura do espirito natalino; O garajau; A lata de vick vaporube; Terra mãe; Pelas Veredas da Noite; O disco Voador; A alma humana e; Eu sou discurso.

CONCLUSÃO

De acordo com o desenvolvimento da pesquisa foi constatado que os poetas populares sentem carência de apoio financeiro e moral para continuar desenvolvendo suas habilidades com a poesia, apesar de muitas vezes, algumas dificuldades serem a matriz de sua arte. Outras dificuldades também foram relatadas pelos artistas da palavra, principalmente aquelas relacionadas à infância difícil que gerou consequências no presente como, por exemplo, a falta de estudo. Contudo, muitas vezes, essa é a razão pela disposição a criar sua obra 441

Trecho da entrevista com Antônio Francisco em 15/05/2012.

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de arte falada ou escrita, visto que diante a verticalização do saber, o surgimento das narrativas ganha métodos e formar, assim, podendo limitar a espontaneidade da mesma. A partir dos diálogos e obras apreendidas pela pesquisa, foi possível encontrar uma metáfora presente na vida de todos os sujeitos estudados. A metáfora do rio, este que possui um ciclo de vida, este que se renova a cada instante, este que inicia e finaliza fases da vida destes homens, se materializa sempre de maneira muito simples, natural e apaixonada pelas vozes desses poetas. Em diversos momentos, os relatos de vida dos próprios artistas das palavras seguem um roteiro que pode facilmente ser comparado a esse rio. A descoberta do amor, a primeira discursão, o pedido de perdão e o – sim, aceito casar-me como você, são pode ser visto como fases da vida de uma pessoas, assim como o rio tem seu momentos de fluidez e calmaria. Hoje, o público feminino que está envolvido no desenvolvimento do cordel e a cantoria ainda é pouco conhecido no cenário local e, por isso, sendo pouco divulgado para os apreciadores da poesia. Mesmo que existam aqueles que desprezam ou não respeitam esse tipo de cultura, existem também aqueles que presam pela consagração de formas alternativas e inteligentes de se fazer cultura. A prova disso foi à força de vontade de alunos de graduação e projetos afins que desejam registrar e mostrar para população o que se produz na cidade. Aparentemente, diferentes cordelistas estão muito próximos e em diálogos constante. Inicialmente, percebemos que repentistas e cordelistas eram semelhantes: ambos usavam a oralidade como expressão de suas poesias.

Com o tempo, muitos repentistas se

tornaram cordelistas e muitos cordelistas, que dominavam a arte do improviso, se tornaram predominantemente artífices da literatura de cordel, ou seja, transformaram sua poesia improvisada ou do instante, em livretos escritos que eram expostos à venda em praças públicas, festas populares, feiras livres, entre outras. 1545

A história oral e a história de vida possibilitaram a construção de uma representação do universo do repente e do cordel em Mossoró a partir da concepção de seus próprios sujeitos. Por outro lado, o público que o prestigia contribui para essa representação social que eles tem de si mesmos. O mapeamento feito entre os repentistas e cordelistas possibilitou o reconhecimento dos locais onde os poetas residem e se apresentavam bem como para e o registro para futuros contatos. Essa atividade foi importante para pesquisa em detrimento das dificuldades encontradas na localização e locomoção que tivemos devido alguns desses poetas residirem em assentamentos rurais com difícil acesso. Um ponto importante a ser ressaltado, é que mesmo diante de toda ação mercadológica, a razão vital para se fazer poesia esta no universo da paixão, pois é comum encontrar relatos de convites de apresentações sem a presença do retorno financeiro. Para além disso, a poesia em muitos vem sendo o caminho de inspiração de viver no real. Eu nasci em Fortaleza, mas eu não sou de lá não, porque eu sou do mundo. [...] antes das pessoas conhecer o meu cordel, eu já era do mundo porque eu inventava ser, eu inventava que conhecia o mundo e escrevia. Agora eu viajo, e vi que eu não inventava, eu conhecia mesmo, e melhor que isso, o meu mudo é muito melhor que esse [...] Assim eu vivo nos dois mundos e amo viver nos dois.442

O cordel ainda vem sendo trabalho com maior força tantos nas escolas como em instituições privadas e públicas como método de discutir temas que vem sendo tratados na atualidade que carecem de diálogos a fim de concretização, como é o caso do uso de drogas, encontrasse em uma religião, consciência politica e, outro. Assim temos que reconhecer que essa arte vem se enaltecendo na sociedade não como uma ferramenta comercial, mas uma matéria prima da poesia, da paixão, do saber.

442

Apontamento de um diálogo com o cordelistas fortalezense durante a Feira do Livro de Mossoró 16/08/2012.

1546

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O HEROI, O BANDIDO E A POESIA: AS MÚLTIPLAS FACES DE LAMPIÃO Karlla Christine Araújo Souza443 Isadora Ingrid Augusto da Cruz 444 Ridna Maria Tavares445 RESUMO: É sempre uma questão polêmica afirmar que aquele que rouba, mata e comete ainda um número infinito de atrocidades é um herói. Virgulino Lampião, mesmo cometendo crimes que para o julgamento cultural sejam inaceitáveis, como roubo e homicídios, traz na finalidade a representação dos interesses do povo. Assim, a mitologia cria em torno de Lampião um mistério sobre suas verdadeiras intenções e motivações. Porém, defendemos que o herói pode estar para além do sentimento de culpa e que seu julgamento depende do sistema de idéias a que se reporte. A partir do cordel o Ataque de Mossoró ao bando de Lampião, o herói foi ressuscitado para dar cabo aos dilemas e interesses de um povo. Nesse caso, a história desse herói revivida na cidade pode se tornar uma espécie de tranqüilizador, invocando nos seguidores a passividade benigna de contemplar aquele que teve a coragem, ao invés de agirem em seu lugar.

Palavras-Chave: Poesia. Herói. Mito.

BANDIDO OU HERÓI?

É sempre uma questão polêmica afirmar que aquele que rouba, mata e comete ainda um número infinito de atrocidades é um herói. Amiúde, o herói idealizado pela sociedade está envolto por bravura e coragem e isento de frieza que lhe impulsione a matar alguém, exceto em legítima defesa, ou por um motivo que segundo seus princípios seja justo. Ele é dotado de generosidade e dessa forma não busca apenas

443

Graduada em Ciências Sociais (UFPB), Mestra em Sociologia (UFPB) e Doutora em Sociologia (UFPB). É professora Adjunto II (UERN), Professora do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH/UERN). Vice-Líder do Grupo de Pesquisa do Pensamento Complexo (GECOM/UERN). [email protected] 444 Estudante de Graduação em Ciências Sociais (UERN). [email protected]. 445 Estudante de Graduação em Ciências Sociais (UERN). [email protected].

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seus interesses pessoais, na verdade encontra no bem-estar de sua gente, seu próprio bem-estar. O herói não é cruel e sua personalidade traz como um dos pontos marcantes a bondade de ser crucificado em favor de todos. No entanto, Virgulino Lampião, mesmo cometendo crimes que para o julgamento cultural sejam inaceitáveis, como roubo e homicídio, traz na finalidade de seus atos a justiça social. Dessa forma parece-nos algo contraditório classificar um bandido como herói, pois segundo os padrões sociais, as praticas da bandidagem fogem completamente das características do heroísmo. A partir da leitura de Eric Hobsbawn (1976), uma questão importante é para corroborar esse ponto de vista, pois para a população menos favorecida todos os atos do bandido/herói são aceitáveis, pois estão envoltos pela intenção de vingar os “pobres esquecidos.” Em um contexto de desigualdade, onde a seca castiga e prejudica, sobretudo aqueles que vivem no campo, é natural que estas pessoas sintam-se enfraquecidas e que não encontrem meios para lutar contra a “soberania” dos ricos. Esta parte da população, enxerga no “bandido social” uma esperança para dissolver as adversidades, pois este bandido conhece a fundo suas dificuldades, por ter saído do mesmo meio. Este bandido/herói dá força aos fracos, faz notáveis os esquecidos. Virgolino Ferreira da Silva, o afamado cangaceiro Lampião está entre estes bandidos sociais, fortificando o paradoxo de bandido/herói. É curioso constatar que em meio a uma lista numerosa de crimes, cabelhe espaço para ser também classificado como justiceiro, uma espécie de Robin Hood Nordestino e, sobretudo herói. Isto ocorre, porque suas atitudes são justificadas pelas circunstâncias, pelas dificuldades de nordestino pobre e “aterrorizado” pela estiagem. Muitos daqueles que dividem com ele as mesmas angústias e adversidades, por serem da mesma região e classe social, compreendem e até apoiam suas escolhas e seus atos. 1549

A região Nordeste do Brasil é a maior em número de estados, é conhecida pelas altas temperaturas que predominam na maior parte do ano, por suas belas paisagens e por sua cultura. Sua economia tem se desenvolvido consideravelmente nos últimos tempos e os nordestinos que anteriormente migravam para outras regiões, especialmente Sul e Sudeste, encontram agora em suas próprias fronteiras a qualidade de vida que desejavam. Mas este Nordeste afamado nem sempre desfrutou de tamanho prestígio, na verdade já foi cenário de fome, miséria e palco para disputas sangrentas. A seca castigava e os mais prejudicados eram aqueles que viviam na zona rural, utilizando-se da natureza como principal fonte de sobrevivência e renda. Os camponeses eram castigados pelas longas estiagens . Este era o cenário oportuno para o surgimento do banditismo.

Alguns

desses

camponeses

encurralados

pela

seca

começaram a formar bandos de salteadores, nos casos em questão roubando apenas dos grandes fazendeiros, que detinham o poder e toda “fonte” de riquezas. Este tipo de bandido é classificado, segundo Eric Hobsbawn, como bandido social, pois não ingressou na criminalidade por ambições individuais, mas sim como forma de reivindicar direitos que são seus e de sua comunidade. O bandido social, além disso, procurava não usar de violência e só matava em legítima defesa. Em um contexto de extrema pobreza, estes bandoleiros eram tidos pela população menos favorecida como verdadeiros heróis, que extraindo força das adversidades, adquiriam coragem suficiente para não se prenderem ao comodismo. Eram verdadeiros Robin Hoods, que saíam da lenda para fortalecer a realidade, e da realidade para fortalecer a lenda.

UM OLHAR POÉTICO

1550

O sol escaldante esquentava rigorosamente todos os dias, o solo rachava-se, as plantas ainda com verde eram cada vez mais raras, os animais, poucos que restavam “rastejavam” esgotados de força. Aquele povo de ambições pequenas rezava silenciosamente, usando a pouca fé que neles ainda havia. Não pediam muito, só o suficiente, e eles sabiam que o suficiente naqueles tempos era muito raro. A saudade era sombra permanente, e que falta fazia aqueles tempos de bonança. Como eram boas as lembranças que aquela saudade trazia. O cheiro que tem a terra depois da chuva, o verde que colore toda a parte, as plantas que cressem como fruto do trabalho, o alimento garantido na hora da mesa. Seria injusto pedir que se prolongue? Seria pecado odiar o que ficou em seu lugar? O pouco que restava acabava irrevogavelmente, ainda que economizado, acabava. Suas mãos calejadas buscavam o trabalho, seu desejo constante era encontrar solução. Aos “nobres” nada faltava, aos seus filhos tudo sempre estava ao alcance da mão. Eles tentavam se conter, lembrar das leis da bondade, mas só conseguiam sentir repúdio, pelos “nobres”, pela vida. Sua mãe dizia: jamais se aposse daquilo que não é seu, mas ele já não ouvia. Aquela já não era mais sua verdade. A primeira vez foi difícil, exigia muita coragem. Seu bando salteou as primeiras mercadorias, os primeiros tostões. Já não era mais faminto, já conseguia alimentar os que também sentiam fome. Agora era ladrão, bandido, e não poderia lhe soar feio estas palavras. Devolvia direitos, saciava necessidades. Quase nada havia mudado. O sol permanecia escaldante, a terra seca, mas o homem já não era mais o mesmo. Agora era renovador de sonhos, distribuidor de esperanças. O mais repudiado bandido, o mais exaltado herói.

A MAGIA DO SERTÃO

1551

Na poética da oralidade, o sertão é a casa popular da natureza. É nele que encontramos uma vasta paisagem de árvores, bichos, relevos e um universo de habitantes. Entre eles estão os pássaros cantando, voando e avisando a chegada de alguém ou a sua inquietude com a invasão do humano ao seu habitat. Ouvimos os ruídos das cobras rastejando e se preparando para defender-se com seu bote certeiro. No sertão encontramos também rios e açudes com suas belezas radiantes em suas sangrias – água jorrando para os baixios e plantações de feijão. Percebemos que o sertão é feito tanto da diversidade de seus habitantes como pelo seu modo de viver e de ser cantado, poetizado. Modo esse que tem se destacado até os dias atuais, pois o homem do sertão vive de suas colheitas, pescarias e caças – vive do que a natureza lhe oferece, e vive de poesia, que torna mais suportável as adversidades do ambiente. Foi nesse mundo “naturalmente mágico” que o cangaço pegou carona para se desenvolver. Portanto, a mata era perfeita como rota de fuga e esconderijo para o cangaço. Mas como a floresta tem seus mistérios, o homem só conseguia adentrá-la depois de pedir permissão à floresta, como nos mostra Silva: O caçador educado ao conduzir o seu cão antes de entrar na mata tinha, por obrigação ao caipora pedir a sua autorização. Senão estava sujeito a ser desafortunado ou inexplicavelmente ficar desorientado andando em círculo na mata por tempo indeterminado (SILVA, 2005, p.14).

A lenda do caipora, então, ao qual o caçador tem que pedir permissão para entrar na mata revela parte desse mistério que rodeia o sertão nordestino, um mundo tão rico no imaginário que até o ar que se respira tem um toque singular de mistério. A imensidão da beleza é tão vasta que o homem jamais irá decifrar completa e verdadeiramente os desígnio do sertão.

1552

Talvez o cangaço seja o que chegou mais próximo desses mistérios emprenhados no sertão, uma vez que o próprio cangaço instalou-se nas matas mais fechadas no seu período de sobrevivivência , que deixou histórias a serem contadas nas bocas dos narradores e recontadas na literatura de cordel até os dias atuais.

O REI DO CANGAÇO A data de nascimento do rei do cangaço, Virgulino Ferreira da Silva, O Lampião, tem sido bastante discutida por seus historiadores. De acordo com Silva (2005), dentre todos os que estabeleceram datas para seu nascimento, Nertan Macedo foi aquele que mais apresentou provas que conduzem à data mais provável: 04 de Junho de 1898. Sua infância não foi diferente de muitas crianças sertanejas – exceto por não ter vivido na pobreza como a maioria das crianças nordestinas no final do século XIX e início do século XX. Mas, provavelmente, nenhum de seus amigos de infância imaginaria quem ele se tornaria ao crescer. A família de Virgulino vivia basicamente da agricultura de subsistência e da criação de gado e cabras. Ele não frequentou a escola, pois até meados do século XX não havia muitas escolas no sertão nordestino e as poucas que existiam eram de difícil acesso. No entanto, Virgulino aprendeu a ler, escrever e a contar com um professor particular. Quando já era um jovem, Virgulino viu-se no meio de um conflito pela posse de terra, quando um vizinho quis aumentar as terras dele, tomando parte das terras de seu pai. Esse conflito tomou grandes proporções e levou à invasão das terras de sua família. Durante um ataque, seu pai foi morto, porém, sua morte foi imediatamente vingada por Virgulino. A partir de então ele se tornou um foragido da justiça,

1553

embrenhou-se pelas matas e juntou-se ao cangaço. Configurando neta fase, a primeira jornada do herói: a partida. Surge, então, o Lampião, que logo forma um bando de cangaceiros e passa a atacar e roubar as fazendas dos coronéis, a fim de obter recursos para sua própria sobrevivência e a de seu bando. Isso, por sua vez, produziu a sua fama como a de um Robin Hood do sertão – aquele que rouba dos ricos e distribui com os pobres. Lampião fica conhecido, então, como imperador dos sertões, e dá sentido à vida de muitos sertanejos pobres, que viam nele um defensor dos oprimidos e uma esperança de mudança de vida. Enxergavam nele um homem valente, determinado a lutar contra os coronéis e oferecer ao povo as vias de justiça. Neste momento, caracterizamos a segunda fase do herói: a fama pelos seus feitos. Enquanto Lampião seguia fazendo seus roubos, as pessoas começaram a se identificar com a bravura desse homem – atribuída à sua coragem de na desistir e nunca ser preso. Assim, muitas pessoas se unem ao cangaço em busca de uma vida melhor, enquanto outros se unem como uma forma de fuga em defesa da própria vida. Para fazer parte do bando de Lampião era necessário passar por uma espécie de ritual. Esse ritual era iniciado por um tipo de empatia do chefe do bando, ou seja, Lampião olhava, e se não se agradasse do “cabra”, este mesmo não era aceito no bando. Mas, uma vez que a pessoa agradasse a Lampião, ela conseguia entrar no grupo. Porém, teria que aprender primeiramente a respeitar o seu chefe. Lampião tinha várias qualidades e defeitos, assim como qualquer pessoa comum. Além de disciplinador, era um homem de liderança

distributiva,

mas

também

era

severo

nos

momentos

necessários. Assim, dentro do grupo, a relação poderia ser amistosa ou tensa, dependendo da disposição dos liderados em se submeterem às regras do chefe. É o que mostra Chandler (1980), ao afirmar que “Lampião era bom para eles, diziam todos. Mas, era bem capaz de 1554

mandar executar um jovem cangaceiro que tivesse seduzido a filha de um coiteiro de confiança” (CHANDLER, 1980, p. 282). Muitos se juntaram a Lampião pelas injustiças sofridas da parte de seus malfeitores. As pessoas buscavam justiça, muitas vezes, com as suas próprias mãos, uma vez que a lei era apenas para aqueles que tivessem bens. Assim, para muitos, o cangaço se tornava a única opção de luta, o meio mais rápido de vingança e, ao mesmo tempo, de autodefesa. Lampião, então, se tornou o ponto de apoio e esperança dos sertanejos cansados e oprimidos, lutando contra as hierarquias e os benefícios desfrutados apenas por governadores e políticos influentes. No entanto, quando era perguntado sobre o que gostaria de fazer se abandonasse o cangaço, as suas respostas revelavam uma admiração pelas classes conservadoras, uma vez que ele afirmava que “ficaria feliz se fosse comerciante” ou fazendeiro (CHANDLER, 1980, p. 278). Assim, a mitologia cria em torno de Lampião um mistério sobre suas verdadeiras intenções e motivações. Seria ele mesmo um defensor dos oprimidos? Se ele fosse um comerciante ou fazendeiro, trataria seus empregados com justiça? Defenderia ele os interesses da coletividade ou apenas os seus? Essas são questões que só podem ser especuladas, pois o que está ao nosso alcance é o conhecimento do que ele representou para os sertanejos de seus dias, pelo seu papel em alimentar o imaginário popular e a memória coletiva com seus atos de coragem que renderam a transportação do herói para a poesia. De qualquer maneira, o que permanece é o aroma da magia e do mistério próprio das entranhas do sertão, onde o rei do cangaço marcou a história com a sua presença e seus feitos, sendo imortalizado na poesia que perpetua a sua existência e atualiza o seu sentido político do mito.

1555

A SAGA DO HERÓI Para explicar o motivo de haver tantas histórias com heróis, seja na mitologia, na poesia ou narrativa popular, Joseph Campbell (1990) diz que a saga do herói é uma viagem a qual nos aventuramos pensando que iremos para longe, quando na verdade estamos desbravando o centro da nossa própria existência. Nessa saga, esperamos sempre matar alguém e, de fato mataremos, a nós mesmos. No caso da trajetória heróica de Lampião, vamos encontrando os elementos arquetípicos da aventura heróica, tanto em sua vida, quanto na literatura de cordel, que se imbuiu de imortalizá-lo, tantas vezes ressuscitando-o. Em específico, o episódio que trata da invasão de seu bando à cidade de Mossoró, despertamos para o centro da existência de uma coletividade cultural e política que se denomina da Resistência, por

ter

defendido

a

cidade

do

ataque

de

Lampião.

Assim,

questionamos qual o coletivo aqui está sendo representado? O herói pode ser um personagem fictício, um ser poético ou literário, bem como um homem histórico, que teve sua memória divinizada ou eternizada. Nesse sentido, os heróis podem realizar dois tipos de proeza, a transcendente e espiritual ou a proeza física, que em certa medida, levará também à transcendência, quando a dor for suportada e os limites do corpo físico explorados em favor de uma luta maior. De acordo com tais atributos, podemos definir Lampião enquanto padrão da saga do herói. Em toda sua extensão, a vida de Lampião é marcada por características que constituem as provações do herói. Joseph Campbell explica que A façanha convencional do herói começa com alguém a quem foi usurpado alguma coisa, ou que se sente está faltando algo entre as experiências normais franqueadas ou permitidas aos membros da sociedade. Essa pessoa, então parte numa série de aventuras que ultrapassam o usual, quer para

1556

recuperar o que tinha sido perdido, quer para descobrir algum elixir doador da vida. (CAMPBELL, 1990, p. 131)

A história da vida de Lampião contada pelo pesquisador Billy Chandler (1980) relata que o marco inicial da carreira de Lampião enquanto cangaceiro ocorreu numa dissensão entre a família de grande fazendeiro e sua família, por conta de demarcação de lote de terra. O fazendeiro opressor, que possuía terras vizinhas às suas, por astúcia aumentava seu lote mudando a cerca de lugar e encurtando as terras de seu pai. Debaixo de juras de morte e desesperançado de ver o caso resolvido na justiça, por estar desprovido de regalo social, Lampião decide honrar o nome da família e fazer justiça com as próprias mãos, matando o fazendeiro. A partir daí começam as sequências de assassinato, vingança e fugas. Essa fase da vida de Lampião representa a aventura arquetípica da viagem do jovem em busca de seu pai, tal qual Telêmaco foi em busca de Ulisses. Essa busca do pai corresponde à aventura heróica de procurar “seu horizonte, sua própria natureza, a sua própria fonte”. (CAMPBELL, 1990, p.137). Representa, ainda, o domínio sobre o medo, inclusive o medo da morte: “o domínio sobre o medo propicia coragem à vida. Esta é a iniciação fundamental de toda aventura heróica: destemor e realização”. (CAMPBELL, 1990, p. 161). A vida de Lampião se confunde com a do sertanejo agricultor, submetido à estrutura fundiária do país e à autoridade de uma elite agrária e política que designava o destino do desenvolvimento econômico do Nordeste brasileiro. Ao que se assemelha com a saga do herói, tenta recuperar as terras e a honra de sua família, mas ao mesmo tempo, afronta toda uma estrutura política e econômica, saindo da esfera da acomodação usual e partindo para uma série de aventuras que o tornaria o Rei dos Cangaceiros. De modo que, enquanto cangaceiro Lampião foi também um grande líder, o que se confunde com certo heroísmo. Em termos

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psicológicos, conforme abordagem de Campbell, o líder deve ser analisado como aquele que percebeu o que podia ser realizado e o fez. Por um lado, todo o contexto no qual se encontrava Lampião, briga de famílias, ladrões campesinos fugitivos, bandos armados, subvenções, já o antecedia e dava-lhes condições para que tomasse

destino

incomum. O herói luta contra um mundo duro e hostil, o próprio meio haveria contribuído para formar herói destituído de valores humanos subliminares. Desse modo, Lampião não sucumbiu e realizou a vingança em nome de todos. Dependendo do ponto de vista, Lampião pode ser chamado de herói ou aberração, de acordo com o foco e a moralidade do olhar. Se por um lado pode ser considerado como vingador de todo um povo, um candidato a salvador. Se ele sacrificou toda sua existência lacerando seu próprio corpo vivendo nas veredas do sertão, aí pode estar contido uma moralidade: sofrer e se sacrificar em nome de uma ideia maior. Por outro lado, pode-se dizer que a ideia pela qual ele se sacrificou não merecia tal gesto. Assim, um aventureiro que persegue a ideia de vingança e assassínio pode ser considerado um herói, em termos mitopoéticos? Um herói pode estar para além do sentimento de culpa e seu julgamento depende do sistema de idéias a que se reporte. O que para uns pode ser um absurdo terrível, para outros pode ser a realização de uma longa espera. O fato é que todo herói espreita um de nós, mesmo que não saibamos. O que existe em comum entre nossa espera e a saga do herói, é que ambos só descobrem a respeito de si, à medida que vão em frente. Ademais, a aventura empreendida pode incluir tanto possibilidades positivas, quanto negativas, por isso ela é sempre perigosa e imprevisível. Portanto, para que esta saga seja tida como espiritual, é preciso que na trajetória ela desperte o mais alto de sua natureza. De certo modo, as proezas de Lampião foram mais físicas que espirituais, talvez por isso, seu retorno não tenha sido triunfal:

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Todas essas diferentes mitologias apresentam o mesmo esforço essencial. Você deixa o mundo onde está e se encaminha na direção de algo mais profundo, mais distante ou mais alto. Então atinge aquilo que faltava à sua consciência, no mundo anteriormente habitado. Aí surge o problema: permanecer ali, deixando o mundo ruir, ou retornar com a dádiva, tentando manter-se fiel a ela, ao mesmo tempo em que reingressa no seu mundo social. Não é uma tarefa das mais fáceis. (CAMPBELL, 1990, p.137)

Todo feito do herói pode ser resumido no ciclo partida – realização – retorno. Sair da condição inicial da imaturidade para adquirir coragem e autoconfiança exige morte e ressurreição. Alguns heróis retornam numa condição mais rica e mais madura, outros serão concebidos como mito. A história de Lampião não pode ser considerada a do jovem chamado à aventura do herói , que enfrentou tormentos e provações e retornou com uma benção para a comunidade. Assim, no cordel de Antônio Francisco, O Ataque de Mossoró ao Bando de Lampião, este retorna diretamente do inferno para a literatura de cordel e o poeta transforma o mito em poesia: A Lampião eles deram Um passe pra viajar, Por todo canto do inferno, Mas se quisesse arriscar, Podia vir pro Nordeste, Tomar cachaça e brincar Lampião disse contente O nordeste é meu xodó, Eu vou rever o sertão E dar lá, naquele pó, Um abraço em Candeeiro E um susto em Mossoró.

1559

Quando Lampião retorna diretamente do inferno para uma passagem em Mossoró, está um pouco mais regenerado e apesar de sua sede de vingança, ele toma um choque com a violência atual e foge dos assaltos em Mossoró. Através da imaginação poética, a aventura foi preservada e revitalizada, promovendo retorno metafórico e mitológico, para falar de coisas que de outro jeito não podem ser contadas. Os grupos sociais utilizam os mitos, as histórias, os poemas como signos através dos quais expressam atitudes coletivas em relação a áreas problemáticas da vida social. Assim, nos indagamos de que modo as representações de Lampião enquanto herói injustiçado, na literatura que reconta a invasão de seu bando à cidade de Mossoró, tem a ver com à vida política e social desta cidade. Nosso texto se baseou na leitura e discussão coletiva dos cordéis, com o intuito de identificar as fases simbólicas que caracterizam os feitos de Lampião enquanto herói, pretende estimular essa leitura e trazer algumas questões, a serem exploradas na continuidade da pesquisa ou por interessados atentos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A caminho das reflexões finais, pretendemos defender a legitimidade de Lampião enquanto arquétipo de herói. Contudo, Lampião não deve ser modelo de herói universal. Pelo contrário, Lampião não conseguiu fechar o ciclo partida – realização – retorno, sendo a última fase possível somente na literatura de cordel. A partir do cordel estudado, o herói foi ressuscitado para dar cabo aos dilemas e interesses de um povo, o povo de Mossoró. Nesse caso, a história desse herói revivida na cidade se torna uma espécie de tranqüilizador, invocando nos seguidores a passividade benigna de contemplar aquele que teve a coragem, ao invés de agirem em seu lugar.

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Lampião não pode ser considerado um arquétipo de herói espiritual, mas ele pode ser revivido num sentido político. Assim, ele é um modelo de herói que agrada ao povo, porque foi aquele que enfrentou a ordem sem está imbuído do poder institucional, sem intenções políticas programadas. Seu único poder era o da energia da vida e da sede de justiça. Num sentido político, existe o perigo de encararmos esses relatos como proezas alheias. De acordo com Joseph Campbell (1990), nem sempre o arquétipo do herói teve esse fim. Para o autor, nos empenhamos na jornada do herói com o intuito de salvarmos a nós mesmos. Todavia, o sentido da sociedade moderna e o padrão da cultura do consumo nos impõe os riscos de vivermos esse mitos coletivamente como se estivéssemos num anfiteatro ou num cinema, apenas vendo o que os outros conseguem realizar e que serve de consolo para nossa impotência diante da realidade ao nosso redor. Na leitura do sistema vigente, Lampião está desprovido de humanidade. Porém, propomos uma leitura que consiga extrair propósitos humanos nesse herói mitopoético. Dentro dos padrões míticos, precisamos consagrar a necessidade que temos de romper com a ordem do mundo, de viver apenas o que nos foi imposto: “O mundo está cheio de pessoas que deixaram de ouvir a si mesmas, ou ouviram apenas os outros, sobre o que deviam fazer, como deviam se comportar

ou

quais

os

valores

segundo

os

quais

deviam

viver”(CAMPBELL, 1990, p.157). Na história mítica de Lampião, percebemos que não havia nele nenhum apego com a vida. Esse é um dos apelos da mitologia heróica. Os heróis nunca deixam de enfrentar a batalha por medo da morte. Num sentido psicológico geral, precisamos realizar o esforço de morrer constantemente, deixar morrer um modo de ser, para deixar nascer outro, constantemente matar a forma definitiva do ser e vencer a morte todos os dias.

1561

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LITERATURA DE CORDEL UTILIZADA FRANCISCO, Antônio. O Ataque de Mossoró ao Bando de Lampião. Mossoró: Queima Bucha, s/d. (coleção queima-bucha de cordel).

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ESPAÇO E FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO NOS PERSONAGENS DO ROMANCE ESSA TERRA DE ANTÔNIO TORRES Giza Karolyne Santiago Rocha446 Carolina Bentes de Oliveira447 Rosemary de Oliveira Almeida (Orientadora)448

RESUMO: No romance Essa Terra, que se passa na cidade do Junco, Antônio Torres retrata a realidade vivenciada por seu povo marcada por uma dualidade características de cidades pequenas, como o anseio de mudar de vida partindo para cidade grande e a permanência em uma vida estagnada. Assim, os personagens experimentam diversos conflitos. O trabalho proposto está centrado na análise sociológica da influência do espaço narrativo na trajetória dos personagens e de como essa influência vai além da mera relação com a terra, pois aponta para questões amplas de valores e situações de vida. A abordagem será norteada pelo pensamento de Durval Muniz de Albuquerque acerca do Nordeste brasileiro, as reflexões sobre identidade e região de Pierre Bourdieu, Octávio Ianni e a análise do suicídio em Énmile Durkeim. Palavras-chave: espaço, conflitos, busca, volta.

1. INTRODUÇÃO Desde o início da modernização do mercado a partir da Revolução Industrial, o mundo voltou-se para a necessidade de enquadrar-se nos novos moldes econômicos. O que parecia ser suficiente para sobrevivência, em uma cultura de subsistência, tornou-se pouco diante de uma diversidade e novidade de produtos surgidos no mercado para consumo. Neste contexto está situada a população de 446

Estudante de Graduação em Ciências Sociais (UECE). [email protected]. Estudante de Graduação em Ciências Sociais (UECE). [email protected]. 448 Graduada em Ciências Sociais (UFC), Mestra em Sociologia (UFC) e Doutora em Sociologia (UFC). Professora Adjunta (UECE) e do Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Coordenadora de área do Subprojeto de Sociologia do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência/PIBID da UECE. Coordenadora adjunta do Laboratório de Estudos da Conflitualidade e Violência (COVIO/UECE); pesquisadora do Laboratório de Direitos Humanos, Cidadania e Ética (LABVIDA/UECE). [email protected]. 447

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cidades pequenas como o Junco na obra de Antônio Torres, Essa Terra, um povo que, diante a estagnação de sua cidade, sonha e busca por uma vida melhor nos grandes centros urbanos. Assim, Nelo, personagem que personifica bem os conflitos internos sofridos pelo povo de sua cidade, imbuído da ambição particular de crescer financeiramente indo para São Paulo, torna-se símbolo da possibilidade de mudança de vida. Entretanto,

a

oportunidade

de

tornar-se

“grande”

anda

entrelaçada a possibilidade de não obtenção do êxito almejado. Sua regionalidade o constrói e o caracteriza, refletindo no seu modo de pensar, agir, em seus anseios, dúvidas e medo. Nessa perspectiva as análises da obra estarão entrelaçadas no contexto do modo de vida e pertencimento ao espaço de morada e os conflitos gerados pela necessidade de deixar a terra natal para “crescer” em um espaço gerador de conflitos da própria existência humana se pensar o sertanejo na capital.

2. ESTAGNAÇÃO Na obra de Antônio Torres, Junco aparece como uma cidade que se encaixa nos moldes tradicionais de cultura de subsistência da sociedade, mostrando semelhanças com muitas outras cidades sertanejas espalhadas Brasil afora, sua formação, seus habitantes e a própria organização social. A obra traz fortemente a marca do abandono, sinalizado com o pássaro Sofrê, com a galinha Sofraco e com o boi Sofrido, o desrespeito a uma população que, diante as dificuldades, encanta-se com as novas tecnologias e com a possibilidade de uma maior mobilidade social, vislumbrada diante a estrutura dos grandes centros urbanos. É perceptível no romance a estagnação da cidade, o caminhar sempre nos mesmos “trilhos”: a casa, a roça, a igreja, a venda, a praça 1564

e os vizinhos. E ainda, os mesmos destinos, a mesmice da cidade em que vivem ou a ida para grandes capitais. Esses traços tão familiares a cidades reais e à história de tantas pessoas do interior brasileiro fazem-se perceber importantes no diálogo entre a sociologia e a literatura. Afinal, a realidade, obra-prima por excelência sociológica, está, liricamente, retratada nos conflitos de Essa Terra. Segundo Octávio Ianni, talvez se possa afirmar que a construção de tipos e tipologias pode ser um indício importante de como a narrativa literária, tanto quanto a sociológica, está desafiada e fascinada pela “realidade”. (IANNI, 1999, p.39)

Essa relação revela um passo além do dado histórico, pois permite ao leitor deslizar entre o que foi e o que poderia ter sido, colocando-o diante de possibilidades

conhecidas, ou

não, e inundado de

sentimentos e de uma personalidade de outrem que é a personagem, permitindo a reflexão sobre a realidade sob nova ótica, desvendando, assim, o universo apresentado. No caso dessa obra, a personagem que empresta esse novo olhar ao leitor é Nelo.

3. VIDA DO PERSONAGEM NELO Nelo vive até os vinte anos de idade em uma cidade no interior da Bahia, o Junco. Uma cidade pequena, isolada, sem água nem transporte público, que só vê uma movimentação diferente quando na feira, a cada oito dias, ou quando tem missa. Desde já podendo perceber a presença marcante da religiosidade na obra, visualizada possivelmente como vida plena no céu, já que na terra o sofrimento é uma marca na história dos habitantes. O povo do Junco traz a marca da angustia climática, com a grande seca de 1932 e a demasia de chuvas em 1933, que trouxeram 1565

consequências graves à vida de uma população que retira o sustento da agricultura e por isso dependendo de uma dose equilibrada de sol e chuva. Todavia diante a impossibilidade de controle climático, o desejo aflito de uma mudança estrutural e social torna-se necessário para a própria sobrevivência. No núcleo familiar do personagem, ele é o primogênito de doze filhos, o pai agricultor analfabeto e a mãe dona-de-casa que fora retirada da escola pelo pai quando escrevera pela primeira vez um bilhete para o namorado. Sem condições de proporcionar uma vida melhor para seus filhos, a mãe de Nelo passa a almejar o ginásio para este, que se apresenta nesse momento como a possível redenção das dificuldades vivenciadas pela família no dia-a-dia. Desde o nascimento já carregando esta responsabilidade. Desde a infância, é estimulado pela mãe a partir para os grandes centros urbanos, uma ideia associada ao filho homem, que desde o seu nascimento torna-se exemplo para os outros irmãos, aquele que mudará de vida e levará todos a mudar também. Esse fator, segundo Bourdieu, é algo natural ao homem, pois este deve expandir suas fronteiras. Tudo isso, associado a fatores sociais e geográficos presentes na vida desse primogênito, leva-o a tomar a decisão de ir para São Paulo. Desta maneira torna-se

o centro das possibilidades de

mudanças, já que sua partida é vista como uma conquista certa e, concomitantemente a isso, um símbolo de que os habitantes do Junco ainda podem ter uma esperança de sair dessa vida tão “miserável”. O deslumbramento com a concretização da mudança esbarra na dura realidade, a exemplo das irmãs do personagem, prostituídas, espancadas, “sumidas” e mortas. Nelo, desde pequeno, presencia cenas de brigas entre os pais, "Ontem foi a mesma coisa, todo dia é a mesma coisa." (TORRES, 1986, p.83) e por esse motivo não há muito diálogo na família: "Mas conversa mesmo, ali em casa, só do canário engaiolado [...].” (TORRES, 1986, p.58). 1566

Os conflitos presenciados diariamente aliam-se com peso da responsabilidade que personagem carrega com a necessidade de mudar a estrutura de sua família, como se o seu êxito estivesse intimamente relacionado com as possíveis mudanças positivas da estrutura de sua família. Todavia o que vai perceber-se é que os conflitos vivenciados ou invés de serem sanados com a vitória de Nelo, ao contrário, refletem no modo com este irá reagir e sobreviver para além da cidade que nascera. Indo além dos aspectos familiares, o sertão nordestino, assim como o Junco, possui uma imagem cristalizada de espaço miserável: [...] infestado de esfomeados, magricelos, desdentados, analfabetos e desnutridos além de dividirem este espaço miserável com animais também agonizantes por conta da seca que racha o seu solo [...] (AGRA).

Essa identificação do meio é transfigurada na imagem do homem, que não é somente visto da mesma maneira, como também passa a identificar-se com essa “verdade”. Com isso discursos de propostas de desenvolvimento e riqueza são facilmente aceitos pela população. Como exemplo disso na obra, está o Banco Ancar, que causa a miséria total de muitos dos habitantes da comunidade. De início ele traz propostas de desenvolvimento e riqueza: Ninguém disse, porém, se a vinda de Ancar estava nas Sagradas Escrituras. Ancar: o banco que chegou de jipe, num domingo de missa, para emprestar dinheiro para quem tivesse umas poucas braças de terra. Os homens do jipe foram diretos para igreja e pediram ao padre para dizer quem eles eram, durante o sermão. O padre disse. Falou em progresso, falou no bem de todos. O banco tinha a garantia do Presidente (TORRES, 1976, p. 21).

Com a cobrança dos empréstimos, os habitantes se vêem diante de grandes dívidas e de um empobrecimento ainda maior. Desta maneira a região “[...] ganha a conotação de espaço vencido, de espaço subordinado, de espaço explorado, de espaço discriminado [...]” (MUNIZ, 2010, p.05). Essa perspectiva caracteriza não só o espaço, mas o sentimento de todos que após verem-se sem êxito no 1567

empreendimento feito e ainda devendo ao banco, entregam suas terras e todos os outros bens que possuíam. Ainda nas palavras de Muniz, “O capitalismo coloniza não apenas os espaços externos, mas coloniza seus corpos, suas mentes e suas subjetividades” (MUNIZ, 2010, p.07). Essa internalização feita pelo meio de ideologias que colocam o desenvolvimento como uma necessidade quase vital faz com que Nelo e muitos outros de sua cidade percam a identidade local, para valorizar e almejar o que vem de fora, o diferente, o que se apresenta como melhor forma de vida, mesmo que sejam demonstrados claramente os males que isso poderia causar.

4. A PARTIDA A busca feita pelos nordestinos por trabalho nos grandes centros urbanos, o êxodo rural, com o intuito de conseguir o seu próprio sustento e, consequentemente, o da sua família, é algo que ocorre há várias décadas na sociedade brasileira. Entretanto, a vida na cidade grande não é fácil para um homem criado em uma cidade do interior e que possui uma cultura diferente daqueles que cresceram em São Paulo, por exemplo, e isso gera um choque inevitavel: [...] mudanças rápidas na cultura criam novas idéias e estabelecem novos padrões, enquanto os antigos ainda persistem. Tudo isso deixa muitas pessoas desnorteadas e frustradas na realização de seus desejos, e desamparadas no lidar com as situações em que se encontram. Essas pessoas podem tornar-se vítimas de vários tipos de neuroses e psicoses, cometerem suicídio ou tornarem-se criminosos, radicais extremados, transviados e descontentes de todos os gêneros (KOENIG,1976.p.77).

Desta maneira pode-se supor a desorganização individual de Nelo, ao sair de um contexto familiar conturbado e chegar a um ambiente em que é apenas mais um nordestino em busca de enriquecimento, um ser vulnerável a agressões tanto verbais quanto físicas. 1568

Em São Paulo adquire vícios como a bebida ("Tio, Nelo gritou de novo, ele não quer me vender uma cachaça fiado”), jogatina ("Faço fé na loteria toda a semana. Jogo, perco, jogo, nunca acerto"), é abandonado pela esposa e os dois filhos, Robertinho com oito anos e Eliane com sete anos: ("- Não agüento mais, quero ver meus filhos, quero acordar todos os dias e ver os meus filhos [...].") e ainda convive com a preocupação de mandar dinheiro para a família ("Preciso mandar um dinheiro para o senhor comprar de novo a roça e a casa que o senhor vendeu, tomara que tudo melhore."). Por todos esses problemas Nelo diz: "Aqui vivi e morri um pouco todos os dias." (TORRES, 1986, p.47). Mais uma vez o peso da responsabilidade adquirida com a família que deixará no Junco e a que constituíra torna-se maior do que o personagem consegue suportar. Sozinho ele tem que lidar com o peso de sustentar as famílias, tanto no sentindo financeiro como da própria representação simbólica. A conturbação que o personagem vai adquirindo com o passar do tempo na capital, pode facilmente ser relacionado com a realidade para além da obra de Torres, hodierno é frequente a busca de enriquecimento nas cidades grandes, todavia o preço muitas vezes pago por essa decisão afeta a estrutura dos indivíduos tanto nos vínculos que são quebrados como a própria subjetividade. Em algumas situações levando a problemas psicológicos e vícios, já citados anteriormente. O que parece a solução de todos os problemas acarreta ainda maiores dificuldades, e não tendo mais nada a fazer o retorno a cidade natal, torna-se inevitável. Na obra não só volta para Junco “fracassado” de acordo com suas expectativas, mas ainda pior do que partira. 5. A VOLTA Quando retorna ao Junco, Nelo, reencontra a família mais desestruturada e fragmentada do que quando havia saído: três irmãos e a mãe morando em outra cidade, duas irmãs mortas. Totonhim (irmão 1569

mais novo e o marco da partida de Nelo) é rejeitado pela família, marcado de sofrimento, morando sozinho e o pai perdido pelo mundo. O personagem sente-se responsável pela organização da família, entretanto, traz consigo a verdade de que nem a família constituída em São Paulo conseguira consolidar.

Diante de tantos conflitos e sem

perceber um caminho alternativo, comete o suicídio: Atordoado, me apressei [Totonhim] e bati na porta e bastou uma única batida para que ela abrisse - e para que eu fosse o primeiro a ver o pescoço do meu irmão, pendurado na corda, no armador da rede (TORRES, 1986 , p.19).

De acordo com Émile Durkheim as causas mais relevantes que levam uma pessoa a cometer suicídio são sociais: Distinguiu três tipos de suicídio: o egoísta, o anômico e o altruísta. O primeiro é devido a uma diminuição da coesão de grupo, um enfraquecimento dos vínculos de solidariedade e um aumento do isolamento social. [...] O suicídio anômico, por outro lado, é causado por uma perturbação no equilíbrio social, por um estado de anomia, ou falta de normas, durante o qual a conduta do individuo deixa de ser controlada pelas normas aceitas na sociedade. Finalmente, o suicídio altruísta ocorre como resultado de uma intensificação na tendência da sociedade de absorver a tal ponto os interesses do individuo que este é apenas uma parte do grupo, sem exigências pessoais. O individuo está, então psicologicamente pronto a sacrificar-se pelo grupo, quando necessário (KOENIG, 1976, p.81).

A partir dessa definição pode-se dizer que o suicídio do personagem possui características dos três tipos: o egoísta, o anômico e o altruísta. O primeiro devido ao ambiente familiar onde cresceu, a falta de solidariedade é representada pela desarmonia entre seus pais. A desorganização vem a partir de quem deveria proporcionar o equilíbrio. Isso pode representar como é também o convívio entre os irmãos, e a soma desses fatores favorece uma diminuição do espaço social. Já o segundo está mais associado ao momento em que Nelo está em São Paulo, pois lá, além de sofrer com a falta de equilíbrio social, sofre violência física. O terceiro tipo é contextualizado na volta para a cidade natal, quando percebe que, se contar a verdade sobre seu 1570

fracasso, frustrará uma cidade inteira. Então ele opta pelo suicídio, para que todos sobrevivam com a ilusão de que ele viveu como um vitorioso em São Paulo. Os suicídios retratados no Romance Essa Terra, exceto no caso em que foi utilizado veneno, usam especialmente a corda como arma usada pelo suicida. Metaforicamente, pode-se analisar como uma tentativa feita pela terra de matar os seus habitantes, pois em Junco havia plantações de sisal, uma das matérias-primas para a fabricação da corda: A corda está ligada, de maneira geral, ao simbolismo da ascensão, como a árvore**, a escada* de mão, o fio de teia de aranha**. A corda representa o meio, bem como o desejo de subir (ELIT, 95) apud². Atada em nós, simboliza qualquer espécie de vínculo e possui virtudes secretas ou mágicas (CHEAVALIER, 2009. P.285).

Os acontecimentos citados no decorrer do artigo ratificam que as causas para essas ações são mais sociais do que individuais. O clímax do romance demonstra claramente o quanto o meio em que o indivíduo se desenvolve é fundamental para sua identificação como parte integrante da sociedade. A estrutura familiar aparece como a mais importante para estrutura do indivíduo, seja social, ou psicológica/individual. A partir das análises feitas, pode-se perceber a íntima relação entre os acontecimentos da vida de Nelo e da cidade do Junco, ambos partindo de uma estagnação, seguida da tentativa de mudanças (Para Nelo São Paulo, para o Junco, banco Ancar), tendo como consequência a frustração e culminando com a morte (Em Nelo o suicídio, em Junco, a morte da esperança, esta depositada em Nelo): "- Nessa terra os vivos não dormem e os mortos não descansam em pazassim falava Alcino, na noite quieta." (TORRES, 1986.p.74) Pode-se concluir desta maneira uma inversão na representação do

indivíduo

como

ser

constituído

socialmente,

indo

além,

o

personagem não só vai formar-se a partir do espaço, da relação com o 1571

meio e sua subjetividade, mas também irá personificar a representação da terra a partir de sua própria existência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A obra de Antônio Torres, Essa Terra, é a história de Nelo, impulsionado a morar em São Paulo para conquistar melhor condição de vida. Entretanto para se entender o personagem faz-se necessário perceber a influência que o círculo de vivência de que ele faz parte exerce sobre sua decisão de sair de sua terra natal. A obra mostrou nesse sentido, como o espaço social contribui na formação do indivíduo e como as relações que se estabelecem são determinantes para tomada de decisões que poderão refletir de maneira decisiva para a construção ou “destruição” do ser integrante da sociedade. Nessa perspectiva a trajetória e a própria culminação com o suicídio pode ser refletido a partir da influência do espaço social de maneira determinante para as tomadas de decisão do personagem, assim como pode ser refletido em âmbitos gerais e nas atuais histórias, muitas vezes passadas nas mídias, de como a vontade de sair da terra e a precisão de se retornar é frequente. No decorrer do artigo pode ser visto a análise sociológica do texto literário que faz refletir como os ambientes físico e social podem influenciar na construção subjetiva do ser e na trajetória que cada indivíduo toma para sua vida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGRA, Luciano; Região: Uma Releitura Historiográfica e Epistemológica do conhecimento aos novos Paradigmas. Acessado em 2010dezembro-20. Disponível na World Wide: 1572

. CHEAVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Tradução Vera da costa e Silva; Raul de Sá Barbosa; Angela Melem; Lúcia Melim. 23 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. DURHAN, Eunice R. A Caminho da Cidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973. IANNI, Octávio. Sociologia e Literatura. Sociedade e Literatura no Brasil. SEGATTO, José Antonio; BALDAN, Ude. Unesp, São Paulo, 1999. JÚNIOR, Durval Muniz de Albuquerque. O Objeto em Fuga: algumas reflexões em torno do conceito de região. Acessado em 2010dezembro-20. Disponível na Worldo Wide: . KOENIG, Samuel. Elementos de Sociologia. Tradução Vera Borda. 5 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores,1976. TORRES, Antonio. Essa Terra. 7 ed. São Paulo: Ática,1986.

1573

A (DES) CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE RELIGIOSA: UM ESTUDO SOBRE A RELIGIOSIDADE DOS SEM RELIGIÃO Ronaldo Robson Luiz449

INTRODUÇÃO

Nesta

pesquisa

procuramos

compreender

o

impacto

da

modernidade no campo religioso a partir da observação das mudanças, articulações, combinações e interpretações da polissemia que caracteriza esse fenômeno no país. Nesse sentido esta pesquisa se propõe estudar a desinstitucionalização da religião, nomeadamente os denominados sem religião, fenômeno esse que vem se apresentando cada vez mais expressivo na ordem social moderna. O campo religioso brasileiro nunca foi caracterizado, segundo estudiosos da religião, pela constituição de “fronteiras rígidas” entre as diversas formas de crer e de ser religioso. A “porosidade das fronteiras” entre catolicismo e espiritismo formou as instituições religiosas no país, assim como a própria cultura nacional. O crescimento dos pentecostais de 9% da população brasileira em 1990, para 15% em 2000, segundo dados do IBGE, passou, no imaginário social e nas análises de alguns cientistas sociais, a ameaçar o enquadramento sob o qual se estabeleceu o jeito de ser religioso e mesmo o jeito de ser cidadão no Brasil. O exclusivismo constitutivo das práticas e da crença evangélica estava em dissonância com a cultura nacional, mas apresentava, desde a época da guinada pentecostal no campo evangélico ao final dos anos 1960 e início dos 1970, um crescimento (para alguns) assustador. 449

Graduado em Teologia (UNICAP), Mestre em Ciências Sociais (UFRN) e Doutor em Ciências Sociais (UFRN). Integrante do Grupo de Pesquisa Mythos-logos onde desenvolve pesquisas na área de epistemologia da Religião.

1574

Implicaria esse crescimento numa nova forma de ação social, cultural e política? O passar vagaroso dos anos nos apresenta mais encontros, mais flexibilidade, mais continuidades no cenário religioso brasileiro do que a ruptura (por alguns) temida. O pentecostalismo não acabou com a nossa diversidade. Pelo contrário: o pentecostalismo se tornou mais uma opção no quadro das diversas formas de contato com o sagrado que a sociedade instituiu. A circulação e mesmo o múltiplo pertencimento, antes impensado, ao catolicismo, ao esoterismo, ao espiritismo e ao pentecostalismo já são observados na própria dinâmica da realidade social. O intenso trânsito religioso revelado por várias pesquisas (ALMEIDA & MONTERO, 2001) se apresenta como fruto do voraz processo de individualização da pessoa na

modernidade.

Os

vínculos

religiosos

apontam

para

uma

experimentação. A fusão das várias crenças numa nova forma de ser fiel a uma religião é resultado das várias experiências religiosas vividas pelo indivíduo. A forma de ser católico, espírita, budista e mesmo evangélico se configura, na modernidade, como o resultado desse percurso de múltiplos contatos com “os sagrados”. Existe ainda, neste trajeto, a possibilidade de constituição de uma religiosidade própria, “mixada” a partir das várias ofertas presentes no “mercado religioso” atual. Como nos informa Burity:

... tudo aponta para uma configuração do religioso que opera segundo uma lógica de deslocamento de fronteiras e ressignificação ou redescrição de práticas. O efeito contraditório mais marcante destes dois processos é o de que o aprofundamento da experiência religiosa como algo pessoal, individual, íntimo se dá ao par com uma desprivatização ou publicização do religioso (BURITY, 2001, p.28).

Nossa proposta de pesquisa é captar o intenso contato que os autores promovem entre o “tradicional” e o “moderno”, percebendo 1575

como essa relação se dá no campo empírico, na construção de ressignificações e relativizações da religiosidade e da pertença religiosa, de uma forma específica com o grupo dos “sem religião”. Segundo os dados do Censo do IBGE – 2010 existem 12 milhões de pessoas religiosas no Brasil que não fazem parte das religiões instituídas tradicionalmente conhecidas. Sãos os sem religião do Brasil. As informações do Censo também sinalizam para o crescente quantitativo desse grupo específico que é contabilizado em cerca de 7,4% da população brasileira. Estes, de acordo com Pierucci (2004) podem ser definidos como os que estão desencaixados de qualquer religião, desfiliados de toda e qualquer autoridade religiosamente constituída. Ou seja, são os indivíduos que não se curvam a nenhuma autoridade religiosa, ou que estão transitoriamente desvinculados de alguma igreja determinada. Essas pessoas não são ateias, elas acreditam em Deus, inclusive orgulham-se de sua forte ligação com o transcendental. O fato é que elas não estão ligadas a nenhuma religião em especial. Geralmente tais pessoas já passaram por algumas religiões, mas não encontraram nelas satisfação, tendo optado por uma relação “autônoma com Deus”, onde nos dizeres de Arriel (2004) se trata da influência do individualismo, ao culto do sujeito autônomo, ao culto ao corpo e ao bem estar, onde o que está em jogo é a afirmação da auto identidade.

DEFINIÇÃO DO PROBLEMA Para ser objeto dos problemas que se tomam como objeto, é preciso fazer a história social da emergência desses problemas, da sua constituição progressiva, para dar a conhecer e fazer reconhecer estes problemas como problemas legítimos, confessáveis, publicáveis, públicos, oficiais. (...) Em todo caso, descobrir-se-á que o problema, aceite como evidente pelo positivismo vulgar, foi socialmente produzido, num trabalho coletivo de construção da realidade social... (BOURDIEU, 2005, p. 21)

1576

Partindo da ideia de imaginação sociológica formulada por Wright Mills (1982) acerca da conexão entre os problemas pessoais e as estruturas sociais constituírem-se na dinâmica sob a qual se assentam as relações

sociais,

definimos

enquanto

questão

de

pesquisa

compreender, até que ponto a religiosidade dos denominados sem religião constitui-se fruto de uma nova ordem moderna e individualizada da religião desinstitucionalizada? Nesse sentido, problematizando a questão acima formulada, constatamos que segundo Hervieu-Léger (1999) esta construção individual de uma religiosidade “customizada” de contornos próprios e totalmente autônoma, tem sido chamada de "bricolagem", ou simplesmente: uma religiosidade do "faça você mesmo". Para a autora, essa é uma das características mais significativas da religião na modernidade:

A descrição dessa modernidade religiosa se organiza a partir de uma característica maior, que é a tendência geral ao individualismo e à subjetivização das crenças religiosas. Todas as pesquisas confirmam que esse duplo movimento trabalha por sua vez as formas de experiência, de expressão e da sociabilidade religiosas. (...) Mas o aspecto mais decisivo dessa 'desregulação' aparece sobretudo na liberdade com que consentem os indivíduos de 'bricolar' seu próprio sistema de crença, fora de toda referência a um corpo de crenças institucionalmente validadas. Esse duplo fenômeno aparecia de modo particularmente legível nos países que se supõe serem os mais secularizados na Europa, a saber, os países escandinavos (HERVIEU-LÉGER, 1999, p.43 e 44).

O fato é que presenciamos na modernidade a instauração de relações entre o indivíduo e o cosmos sagrado de essência autônoma e subjetiva, que recebe reforços a partir da atenuação da tradição religiosa que, paulatinamente, perde seu poder de influenciar a vida social como um todo. Agora, nos deparamos com um indivíduo 1577

transformado em "consumidor religioso" que pode optar livremente, como qualquer outro tipo de consumidor, por um ou mais produtos expostos à “compra” no mercado da fé, já que é mais do que patente que a religião está inserida na extensão privada. Dessa forma, a nossa pesquisa ambiciona balizar a hipótese de que o visível crescimento religioso contemporâneo não se estabelece na modernidade como uma negação da secularização, nem muito menos como um retorno à época da prevalência irrestrita da religião como reguladora da vida social. Na realidade, defendemos que o enfraquecimento das tradições das instituições religiosas e a autonomia do sujeito em articular a sua própria religiosidade livre de vínculos e fidelidades, provocam a proliferação de opções religiosas sem que necessariamente essa proliferação surja como novas instituições, e sim de outras formas, como por exemplo, através da religiosidade dos sem religião.

O CENÁRIO RELIGIOSO BRASILEIRO: TRANSFORMAÇÕES, RUPTURAS E CONTINUIDADES.

Estudar o fenômeno religioso no Brasil a partir da possibilidade de evidenciar uma desinstitucionalização da religião constitui-se num empreendimento que particularmente nos traz desafios e motivação. Nosso interesse preliminar surgiu quando realizarmos pesquisa de campo no mestrado, onde investigávamos a relação de concorrência entre as Igrejas Neopentecostais no Recife. Na ocasião percebemos um grande número de frequentadores dessas igrejas que se declaravam “sem religião”, mas que, por motivos diversos, frequentavam aquelas igrejas. Quando configuração

decidimos

religiosa

no

empreender campo

uma

brasileiro

análise

da

contemporâneo,

percebemos que esse empreendimento intelectual exige múltiplos esforços de reflexão, onde a produção sociológica vem sendo 1578

continuamente acessada como

possibilidade de entendermos o

cenário atual em que o fenômeno religioso é percebido. Certamente desde os clássicos, a religião é um tema que obteve atenção da sociologia. Isso por que a religião como uma das facetas que enredam a dinâmica das estruturas sociais vem historicamente mantendo-se como norte orientador das ações dos indivíduos, portanto, lócus da observação e análise sociológica. Dessa forma, acreditamos que a pesquisa aqui proposta justifica-se mediante o potencial explicativo das relações sociais engendradas no embricamento indivíduo e sociedade. Com efeito, para compreender a religião na contemporaneidade é preciso contemplar a sua vivência pelo indivíduo racional da modernidade. Neste espaço há a constituição de experiências religiosas que independem da formulação e fidelidade institucional, onde o sagrado não é apreendido apenas na esfera do transcendente por meio de certos ritos e mitos propagados pelas religiões institucionais, mas por meio daquilo que fornece sentido e eficácia simbólica para as pessoas, para indivíduos em suas subjetividades (PORTELLA, 2006). Ou ainda, de acordo Campos & Gusmão:

Portanto, em termos contemporâneos, seja qual for o formato assumido – moderno ou pós-moderno, para não citarmos outros – o fenômeno religioso detém o espírito e a alma do indivíduo no seu centro gravitacional. Se Durkheim, há um século, nos oferecia a consciência coletiva e os momentos de efervescência criadora como as bases da religião, atualmente nos vemos diante das possibilidades de uma busca interior, que se empenha em desenvolver a auto-identidade e o potencial humano (CAMPOS & GUSMÃO, 2010, p. 74).

Podemos mesmo postular a manifestação de uma ação nomizadora

ou

de

eficácia

para

a

vida.

Uma

espécie

de

estabelecimento de um “cosmos sagrado” (BERGER, 2004) peculiar, onde sua instauração é cada vez mais pessoal mais individual e

1579

subjetiva e não necessariamente sacra. Quem sabe, certa adequação para o surgimento da uma “síntese” particular da religião: Se tal estabelecimento de um "cosmos sagrado", de sentido ou eficácia para a vida estava, dantes, ancorado nas instituições religiosas, na Tradição, a Modernidade secularizadora, particularmente a contemporaneidade, reverte este quadro. Plausibilidades, legitimações do mundo e teodiceias me parecem cada vez menos elementos atrelados exclusivamente à regulação oficial de uma instituição na vida das pessoas. Os indivíduos até buscam nas tradições/instituições esses elementos, mas o fazem a partir da subjetividade de suas experiências, sem fidelidades a identidades fixas, ultrapassando fronteiras antes bem delimitadas e borrando-as (PORTELLA, 2006, p. 74).

Tal desvio do centro de poder, das instituições religiosas para os sujeitos religiosos, foi abordado por Luckmann (1973) nas evidências dos processos

de

especialização

e

diferenciação

institucionais

característicos da modernidade. Estes processos, deflagrados pela ruptura entre Estado e Igreja e a concludente produção de concepções

de

mundo

localizadas,

heterogêneas

e

múltiplas,

cunharam uma conjuntura de variedade ideológica. Ou seja, cada sujeito, no processo de composição de sua personalidade, tem a seu dispor, por conseguinte, um leque, verdadeiramente vasto, de possibilidades, de escolhas religiosas, de quadros de referência, os quais, na essência do seu alvedrio pessoal, podem ser selecionados, rejeitados ou aproveitados, de forma integral ou parcial.

MODERNIDADE E RELIGIÃO

“O que um homem vê depende tanto daquilo que ele olha quanto da sua experiência visual e conceitual prévia, que o preparou para ver”. Thomas Kuhn

1580

No período de transição do século XIX para o século XX encontramos um alerta feito por Weber de que o mundo se tornara “desencantado”, pois segundo ele, a ciência e outras formas de racionalismos estavam assumindo o lugar da autoridade religiosa. A partir

dessas

observações,

foram

cunhados

elementos

que

posteriormente ajudariam a formulação do que ficou conhecido como a tese da secularização, que apontavam para um enfraquecimento das instituições religiosas (TSCHANNEN apud BRYM, 2006, p. 401). A tese da secularização trouxe alguns desdobramentos, como por exemplo, a compreensão de desencantamento do mundo onde, para Weber a secularização e o desencantamento do mundo estão intrinsecamente ligados, como afirma: Intelectualização e racionalização crescentes, portanto, não significam um crescente conhecimento geral das condições de vida sob as quais alguém se encontra. Significam, ao contrário, uma outra coisa: o saber ou a crença de que basta alguém querer para poder provar, a qualquer hora, que em princípio não há forças misteriosas e incalculáveis interferindo; que, em vez disso, uma pessoa pode – em princípio – dominar pelo cálculo todas as coisas. Isto significa: o desencantamento do mundo. Ninguém mais precisa lançar mão de meios mágicos para coagir os espíritos ou suplicar-lhes, feito o selvagem, para que tais forças existam. Ao contrário, meios técnicos e cálculo se encarregam disso. Isto, antes de mais nada, significa a intelectualização propriamente dita (WEBER, 1972, p.30).

Dessa forma, o desencantamento do mundo se constitui numa herança da modernidade que tem na autonomia do sujeito o abandono da possibilidade de que a religião possui a “última palavra” nas decisões ou no rumo da sua vida. Como argumentou Touraine (1998, p. 18) em sua crítica à modernidade: “A ideia de modernidade substitui Deus no centro da sociedade pela ciência, deixando as crenças religiosas para a vida privada. (...) ela fez da racionalização o único princípio de organização, isto é, de desvinculamento de toda a definição dos ‘fins últimos’”.

1581

Nesse sentido, Campos (1997, p. 34) vai afirmar que o paradigma da secularização continua trazendo influências sobre o papel das representações sociais em nossos dias, de forma especial nos debates sobre os processos culturais de pluralismo, as transformações nos papéis sociais das instituições religiosas, a exacerbação da competição entre agências produtoras de sentido, a possibilidade de se eleger estilos religiosos com base nos resultados observados, constituindo-se, a partir dessa seleção, uma assimilação subjetiva e individualizante do sagrado. Portanto é condição necessária para compreensão do cenário religioso brasileiro em nossos dias, perceber o indivíduo racional da modernidade expressando sua possibilidade de individualização nas suas relações com o sagrado. Nesse sentido as experiências religiosas não são mais dependentes

da

formulação

de

práticas

religiosas

de

uma

determinada instituição, mas por meio daquilo que fornece sentido e eficácia

simbólica

para

as

pessoas,

para

indivíduos

em

suas

subjetividades. Assim: O fato é que presenciamos na modernidade a instauração de relações entre o indivíduo e o cosmos sagrado de essência autônoma e subjetiva, que recebe reforços a partir da atenuação da tradição religiosa que, paulatinamente, perde seu poder de influenciar a vida social como um todo. Agora, nos deparamos com um indivíduo transformado em "consumidor religioso" que pode optar livremente, como qualquer outro tipo de consumidor, por um ou mais produtos expostos à “compra” no mercado da fé, já que é mais do que patente que a religião está inserida na extensão privada (PATRIOTA, 2008, p. 82).

De forma evidente então, percebemos que no momento em que apontava para um esfacelamento da religião, ela ressurge numa multiplicidade de formas e expressões, mantendo uma postura de diálogo à medida que se rearticula com a modernidade, sendo assim fica claro que a racionalização secularizante trouxe uma espécie de renovação do sagrado na esfera privada, proporcionando uma pluralidade de crenças e uma rearrumação do cenário religioso: 1582

Justamente por não ser religiosa, (a sociedade moderna) tornase capaz de abrigar todas as religiões, sejam elas institucionais, como o catolicismo, o protestantismo, o budismo, o islamismo, sejam sistemas de crenças sem uma referência institucional definida ou visível (...) A pluralidade e fragmentação religiosa, portanto, são frutos da própria dinâmica moderna. A secularização multiplica os universos religiosos, de forma que a sua diversidade pode ser vista como interna e estrutural ao processo da modernidade. A secularização e a diversidade religiosa estão associadas diretamente a um mesmo processo histórico que possibilitou que as sociedades existissem e funcionassem sem precisar estar fundadas sobre um único princípio religioso organizador (STEIL, 2001, p. 166).

Segundo secularização

Campos

acabou

(1997,

por

pp.

impedir

30-31) que

o

paradigma

diversos

da

pesquisadores

conseguissem enxergar o que hoje nos parece claro: que a fuga do sagrado dos padrões que pretendiam contê-lo – as instituições religiosas – para as outras áreas da vida humana não é sinônimo de dissipação e, sim de transformação da religião. Até mesmo porque foi possível o surgimento de uma outra posição teórica a partir da observação do aparecimento dos novos movimentos religiosos e do aumento dos grupos religiosos a partir do séc. XIX e especialmente no séc. XX. Algo como uma demonstração da sociedade de um novo processo de “reencantamento”, ou “ressacralização”, o que representaria o “eclipse da secularização”. Os surtos religiosos contemporâneos sugeririam uma “volta”, um “retorno” da religião, o que foi denominado por Kepel (1991) de “Revanche de Deus”. Para que este entendimento fique claro, é importante que pontuemos acerca do sujeito moderno e a sua relação com a religião. Inicialmente convém ressaltar, que a modernidade se distingue pela instauração do indivíduo como medida e como fim. Nestes termos, tal indivíduo dotado de peculiar racionalidade, de certa forma vem a substituir um cosmo sagrado, estruturado e apresentado por meio das instituições religiosas que conferiam sentidos e forneciam os elementos 1583

potencializadores da coesão social e cultural da sociedade, na medida em que assentavam o centro de sentido para além do ser humano. A modernidade, todavia, possibilitou o despontar de indivíduos como medida de si, de suas relações e do universo, a partir de uma lógica cartesiana e de uma moral kantiana (PORTELLA, 2006, p. 72) que mesmo não caracterizando a modernidade em geral, caracteriza sim, uma certa modernidade. Dessa forma, é perceptível que as instituições religiosas não mais são o cimento que une os aspectos culturais e sociais determinados pela religião que mediava e promovia a realidade e o social da vida comunitária, porque agora a própria racionalidade e a independência proveniente das escolhas racionais aflora de indivíduos de essência autônoma. Consequentemente, essa nova percepção ordenadora da realidade e do indivíduo interfere, sobremaneira, na sociedade e na religiosidade por ela vivida. Com efeito, a religião, particularmente compreendida em suas instituições oficiais de representação, torna-se incompetente na sua anterior capacidade de dar sentido e ditar as regras de conduta no mundo moderno. Enquanto em boa parte da história da humanidade os estabelecimentos religiosos trabalharam como monopólios na sociedade, com a autoridade garantida do pensamento e da ação, esta

circunstância

transforma-se

nos

tempos

modernos

com

a

afirmação da secularização e do pluralismo.

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1587

UMA DESTERRITORIALIZAÇÃO DO CRISTIANISMO

Joao Victor Costa Toores450

Resumo: Atual e perspicaz com as novas formas de se fazer comunicar, o cristianismo adentrou também no imaterial, isto é, na virtualização. Presenciamos nos tempos atuais um crescimento no leque de possibilidades de evangelização. A técnica é uma das responsáveis desse fenômeno, pois eliminou as fronteiras antes reféns do tempo e do espaço. O culto, a relação com o sagrado e a noção de comunhão transbordaram os rituais face-a-face. Outros territórios foram criados para transmitir “a boa nova”. O devir social aspirou novos ares e agora, nascem novos desafios. A história que nos parece acontecer de forma continua e gradativa é também apresentada com lacunas, rupturas, revisões e contrassensos. Esse resumo pretende traçar uma abordagem epistemológica a respeito da arena imaterial onde ocorrem os tensionamentos simbólicos utilizados pelo cristianismo para perenizar seus ideais. Palavras chaves: Cristianismo, comunicação, mídia e virtual.

O CRISTIANISMO E A IMPRESSÃO DE FORMAS. A posição do cristianismo e seus infinitos mecanismos de comunicação sofreram profundas modificações e rupturas em sua extensa trajetória. Ao mesmo tempo, as manifestações desse sistema sempre estiveram ligadas através de uma relação lógica que manobra símbolos e suas infinitas significações semióticas. Trata-se de uma longa história, uma longa caminhada em que as escolhas e os recortes propostos para a reflexão implicará também em inúmeras renúncias. Durante toda a história do cristianismo podemos arriscar dizer que a comunicação foi feita a partir da impressão de formas. Impressões essas, marcadas por meio de símbolos, ora presente nas igrejas, nas catedrais; ora nas procissões, nos templos, no sermão; e de igual forma

450

Estudante de Pós Graduação em Estudos da Mídia (UFRN). [email protected].

1588

desdobradas nas liturgias, nos evangelhos, na comunicação via papiro e na impressão de textos sagrados. A reprodutibilidade da bíblia e dos demais textos, no contexto da Reforma Protestante, aos olhos de Benjamim (1996) talvez pudessem ser enxergados como corrupção no que tange a aura de uma literatura. Já que para ele o valor de presença e autenticidade, seria escamoteado em função do lucro e da reprodução. Inegavelmente as revoluções industriais

possibilitadas

pelo

amadurecimento

do

capitalismo

autorizaram outras formas de comunicação e de catequese. Com o inegável desenvolvimento tecnológico, a transmissão de ondas de som e imagens por meio do espaço, tornou-se utensílios da didática cristãs igualmente úteis. O século XX, no que diz respeito à apropriação da mídia

pela

religião,

é

fortemente

marcado

por

fenômenos

comunicacionais como o radioevangelismo e o televangelismo, meios que traz em sua essência características inequívocas do religioso comunicacional

norte-americano

(a

presença

de

testemunhos,

pregações, orações e do canto gospel são provas da semelhança). Atual e perspicaz com as novas formas de se fazer comunicar, o cristianismo adentrou também no imaterial, isto é, na virtualização. O espaço físico já não significa uma ameaça. A necessidade de comunicação prevalece. A água benta dispensa a benção firmada no contato face-a-face; a representação do copo com água em frente à tv torna possível a unção diária; a voz do pastor reproduzida pelas ondas sonoras da TV coordena um ritual de exorcismo antes presencial; por fim, as orações em corrente e bênçãos podem estar disponíveis em um anonimato a partir de um elo firmado por ondas ou bytes. Em que espaço

essas

trocas

acontecem?

Em

que

esfera

os

símbolos

conseguem ter vida própria e interagir com a vida real? Para que sociedade esse tipo de comunicação é indispensável? Longe de encontrarmos as verdadeiras respostas, nos apoiaremos em alguns teóricos que possam por ventura nos oferecer um feixe de luz, mesmo que mínimo, para nortear nossa compreensão. 1589

UMA HISTÓRIA DE RUPTURAS A história da apropriação dos meios de comunicação pelo cristianismo é feita de protrusões. As inovações tecnológicas nem sempre foram vistas com bons olhos. Durante muito tempo a maquinaria que possibilitou a comunicação em larga escala foi classificada como uma obra a serviço do mal. É o que nos assegura Puntel (2005): “Passaram-se vários anos e houve muitas discussões para mudar as opiniões da igreja (católica) sobre os meios de comunicação, considerados simplesmente meios de difusão de mensagens negativas e do mal”. (PUNTEL, 2005, p.120). Em contrapartida, o viés protestante do cristianismo, atento as transformações possibilitadas pelas revoluções industriais, se utilizou dos meios de comunicação para anabolizar o seu rebanho. Talvez a pressão e o sucesso da força adversária tenha feito o Papa Leão XIII rever as estratégias de reafirmação do catolicismo, quando reconheceu nos meios de comunicação sua enorme força: “A postura eclesial era de usar as tecnologias dos meios de comunicação como um campo de batalha: se a sociedade estava utilizando os meios de comunicação social para difundir o mal, então a Igreja também deveria usar esses mesmos recursos para difundir a boa mensagem, de modo a combater esse mal”. (PUNTEL, 2005, p.119).

A indiferença aos meios de comunicação não estava sendo o melhor recurso para manter a instituição milenar erguida e forte naquele contexto. Entretanto, é somente em 1963 que a igreja católica reconhece os meios de comunicação como uma força necessária que poderiam

ser

facilmente

associados

aos

fins

“benéficos”

de

evangelização. É por meio do decreto Inter mirifica (IM), uma carta de reconhecimento eclesiástica, que as ferramentas midiáticas foram autorizadas dentro da comunidade católica (o IM funciona como que

1590

uma necessidade de orientação para os cristãos no qual é legitimado o uso dos meios de comunicação). Nas palavras do documento: “O decreto Inter mirifica é o segundo dos dezesseis documentos publicados pelo vaticano II. Aprovado em 4 de dezembro de 1963, assinala a primeira vez que um concílio geral da igreja se volta para a questão da comunicação.” (PUNTEL, 2005, p.122) Os estudos apontados por Pross (1990) caso devidamente agenciados

e

aplicados

às

práticas

cristãs,

modificariam

todo

entendimento e toda compreensão que se tinha a respeito da mídia, sobretudo, a concepção do Papa Leão e do decreto Inter mirifica. No célebre capítulo “la clasificación de los medios”, Pross (1990) nos revela uma concepção um tanto particular para compreender a episteme comunicacional. Um tripé constituído por três formas de mídias (primária, secundária e terciária) amplificaria o estudo da comunicação e enquadraria o corpo como elemento midiatizado. Ele explica que os meios podem ser entendidos como: 1) mídias primárias, ou seja, o sujeito como uma instância midiática, sem aparatos externos, segundo esse autor “o principal meio de entendimento”; 2)a mídia secundária, isto é, as ferramentas e utensílios utilizados para amplificar a disseminação de mensagens (e aqui é cabível relembrar os estudos de McLuhan que entende as mídias como extensões do sujeito no tempo e no espaço - nessa perspectiva o homem criar mecanismos para a “produção” de material simbólico) sendo o rádio, a televisão, a revistas e os jornais bons exemplo ilustrativos; e por fim, as 3) mídias terciárias que abarcam a utilização de ferramentas, tanto na instância de recepção como na instância de emissão, para codificar e decodificar mensagens e possibilitar o tráfico de símbolos. Os cds, dvds e

softwares

ilustrariam

tal

categoria.

Mesmo

classificando

e

conceituando os diferentes tipos de mídias Pross (1990) considera que “toda comunicação humana começa na mídia primária na qual os indivíduos se encontram face a face, corporal e imediatamente, e toda comunicação retorna para lá” (PROSS, 1972. p.128). 1591

Ora, o que Pross (1972) nos garante é que o sermão, o canto eclesiástico, a confissão, os movimentos corporais, seja ele para encenar o sinal da cruz ou referendar o sagrado, até um simples gesto repetido, estariam também envolvidos nas trocas e no tensionamento simbólico, isto é, nos jogos de significações semióticas e nos seus desdobramentos sob a forma de sentidos. Surpreendentemente, nessa perspectiva, o catolicismo seria um dos grandes pioneiros no uso excessivo dessa mídia primária que é inaugurada com a linguagem. Para pensar essa esfera da linguagem, forma primordial de comunicação, Cassirer (2005) nos oferece algumas pistas. Quando pensou a raça humana, o filósofo destacou a presença de uma característica inédita à existência. Para ele o homem descobriu um novo método para adaptar-se ao seu ambiente. Entre o sistema receptor e o efetuador, encontrados em todas as espécies animais, o pensador verificou que existia um terceiro elo que poderia ser descrito como ‘sistema simbólico’ - característica exclusiva do ethos humano. Considerando isso, o homem não viveria apenas em uma realidade ampla; mas sim, em uma nova dimensão do real. Ele completa discorrendo sobre uma diferença inconfundível entre as reações orgânicas e as respostas humanas: “no primeiro caso, uma resposta direta e imediata é dada a um estímulo externo; no segundo, a resposta é diferida. É interrompida e retardada por um lento e complicado processo de pensamento” (CASSIRER, 2005. p, 48) As contribuições do filósofo servem para enquadrar certamente as primeiras manifestações representativas da comunicação cristã, sobretudo, quando essa faz uso do que Pross (1990) intitulou “mídia primária”. Decerto Cassirer (2005) dá o pontapé inicial para entender o que chamaríamos mais tarde de desterritorialização da comunicação cristã em seu enfoque que privilegia a linguagem. Todavia, são somente a partir das intervenções de Sodré (2011) que poderemos aprofundar tais reflexões.

1592

Antes de desenvolvermos essa questão se faz necessário pontuar a crise que se instaurou na metafísica e a dificuldade de explicar a realidade, sobretudo, no começo do século XX. Nietzsche (2001) no livro III de Gaia a Ciência, precisamente na seção 125 intitulada “o louco”, nos deixa muito claro que a morte de Deus pouco tem a ver com ações reacionárias ou apologia ao ateísmo, mas sim, com a emergência do homem cientista que desautoriza e neutraliza qualquer justificativa do real que remeta a um outro plano. A modernidade por si só desautoriza o homem religioso, ou se preferirmos nas palavras de Peter Berger (2003): “a crise da religião é um dos efeitos claros da secularização, ou seja, o processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos.” (Peter Berger; apud MARTINO, 2003 p. 60) É nesse terreno de vulnerabilidades que é também terreno fértil para a emergência de novas células de cunho religioso que o cristianismo se aproxima da Indústria Cultural. Segundo Martino (2003), a religião “ também produz nos indivíduos efeitos psíquicos que deixam os bens

simbólicos

despercebidos

como

mercadoria,

criando,

por

conseguinte o desejo de consumo destes bens.” (MARTINO, 2003 p. 64). Pela palavra “bens” deve-se entender: líderes; igrejas; estratégias comunicacionais, mercado audiovisual, livros, roupas, a ainda o sistema de viagens para os lugares “sagrados”. Ainda nessa perspectiva, o pensador nos traz uma reflexão admirável que associa a estratégia pedagógica religiosa às técnicas e às estruturas do texto jornalístico: Cada experiência está marcada por uma infinidade de variáveis que compõem-se de cinco elementos: comunicador, mensagem, canal, receptor, contexto, e ao serem associadas às perguntas do lead jornalístico - Quem? Onde? Quando? Por quê? O quê?Como? - constituem um ponto de partida para que a igreja possa estruturar e questionar seus métodos de evangelização. (MARTINO, 2003, p 44)

Se por um lado a filosofia de Cassirer (2005) tem como foco o gênese, isto é, as primeiras interações permitidas a partir da linguagem 1593

representativa ou o que chamamos de mídia primária, Sodré (2011) pensa a comunicação em um estado posterior às intervenções tecnológicas. Esse autor pondera a respeito de um território, não integrado por pessoas, sujeitos interpelados por enunciados, mas sim, um espaço composto por letras, discursos, sentimentos, falas, intenções, ideologias e narrativas digitalizadas produzidas por instâncias midiáticas de poder. Esse lugar imaterial, ou bios virtual como preferiu o pensador, seria composto por elementos significativamente semelhantes à realidade, a ponto de serem confundidos com a própria vida. É na apropriação cristã dos meios de comunicação de massa inclusos na perspectiva de indústria cultural que nasce tal pressuposto teórico: o bios é um lugar magneticamente afetivo, uma recriação tecnoestética do ethos, capaz de mobilizar humores ou estados de espirito dos indivíduos (...) são assim expressões adequadas para o novo tipo de forma de vida caracterizada por uma realidade imaginarizada, isto é, feita de fluxos de imagens e dígitos, que reinterpretam continuamente com novos suportes tecnológicos as representações tradicionais do real. Trata-se geralmente de um imaginário controlado e sistemático, sem potência imaginativa ou metafórica, mas com uma notável capacidade ilocutória (portanto, um imaginário adaptável à produção) que não deixa de evocar a dinâmica dos espelhamentos elementares ou primais (...). No bios virtual o individuo é expropriado da experiência e da singularidade, portanto da vontade, da escolha criativa e da partilha simbólica, logo de uma corporeidade própria e ativa, geradora de sentido, que tende hoje a ser cada vez mais genética e culturalmente controlada – apesar da exaltação do corpo consumidor pelos automatismos sensoriais da mídia. (SODRE, 2006). p, 122-123

A moral que impera nesse território, nas palavras de Sodré (2011), é de cunho estritamente mercadológico, já que para ele o fenômeno "mítico-religioso" não é gerado somente por conteúdos de natureza informacional. Mas sim, por “uma lógica mercantil, profético-moralista e autoescatológica, que troca o antigo Bem ético pelo bem-estar individualista, associando salvação e consumo” (SODRÉ, 2011. p, 67). Essa agregação só estaria no campo do possível, ainda nas palavras do autor, pela articulação da rotina cotidiana dos indivíduos (regulada 1594

pela religião tradicional) com “o efeito (quase divino, à beira do sobrenatural)

de

simultaneidade,

instantaneidade

e

globalidade

característico da intervenção das modernas telecomunicações no tempo-espaço” (Idem, 2011. p. 67) Para esse espaço de deslocamento a filosofia de Flusser (2010) é categórica. Para o pensador a passagem da imagem para o conceito significa não só a utilização de uma forma possível de representação, como também a necessidade de abstrair e imaginar. O teórico acredita que toda tentativa de simbolização provém de um gesto artificial que se inicia com o olhar, se desdobra em imagens, se refaz em linguagem verbal ou escrita (linearidade) e se apresenta atualmente por meio de bits através da transposição dos códigos binários em significações virtuais. Sintonizados com o autor, podemos arriscar entender o processo midiático do virtual em que se inscreve o cristianismo hodierno como uma ação de distanciamento entre a experiência cristã do sagrado, anteriormente feita, no ritual face-a-face, e a que temos hoje disponível sob a forma de espectros. Fornecendo reflexões também para os estudos da comunicação, Deleuze (1988) esclarece que o ‘virtual’ não deve ser entendido em oposição ao real. Ele aponta para uma espécie de atualização que funciona no devir, isto é, na cadeia da transformação dos processos sociais que levam em consideração, sobretudo, as necessidades e os problemas. O virtual seria ainda, aos olhos do filósofo francês, uma parte do objeto real projetada em um espaço indefinido, sendo essa projeção não-idêntica ao objeto que a reflete. Observemos na integra as ideia do autor “no virtual, à diferença e a repetição fundam o movimento

da

atualização,

da

diferenciação

como

criação,

substituindo, assim, a identidade e a semelhança do possível, que só inspiram um pseudomovimento, o falso movimento da realização como limitação abstrata”. (DELEUZE, 1988. p, 200) Deleuze (1988) de certa forma entende a virtualização como uma potencialidade que surge de uma ruptura, ao mesmo tempo em que, 1595

conserva as marcas que a tornou viável. Daí a permanência das reflexões sobre diferença e repetição. Seria essa potência, por assim dizer, uma das faculdades do homem capaz de produzir novos espaços, romper limites, acentuar a liberdade, já que a virtualização, agora nas palavras de Levy (2011): “reinventa uma cultura nômade, não por uma volta ao paleolítico nem às antigas civilizações de pastores, mas por fazer surgir um meio de interações sociais onde as relações se reconfiguram com o mínimo de inércia” (LÉVY, 2011, p. 2021). Uma das funções dessa virtualização seria o seu caráter desterritorializante. Ancorados ainda pelo arcabouço teórico de Lévy (2011)

poderíamos

definir

essa

desterritorialização

como

uma

aceleração de processos já conhecidos que aniquilam o tempo e o espaço, criando novas velocidades, confundindo o público e o privado, intensificando

as

sensações

e

estremecendo

os

limites

antes

reconhecidos. É considerando isso, que devermos trabalhar com a ideia de virtual desterritorializante não circunscrito em um espaço especifico, já que encontra-se disperso em exterior alheio. O virtual como atualização e amplificação da liberdade de comunicar é um dogma indispensável para o cristianismo atual. De forma geral, contabilizamos abaixo os sites oficiais das principais facções do cristianismo. Para isso abrimos mão de tantos outros sítios regionais e locais sem se preocupar em definir a história de cada segmento, já que nesse estudo estamos lançando luz somente sobre a apropriação do imaterial pela comunicação cristã. O endereço já não suporta mais características como: rua, CEP, números ou quadra. Vejamos o prefixo www:

1596

FACÇÕES/ ENDEREÇOS

SEGMENTOS CRISTÃOS

Católicos

Católicos (http://www.catolico.org.br/)

Congregação Cristã do Brasil Pentecostais Clássicos

(http://www.cristanobrasil.com/index.php) Assembleia de Deus (http://www.assembleia.org.br/site/) Igreja do Evangelho Quadrangular

Pentecostalismo Neoclássico,

(http://www.quadrangular.com.br/) Igreja Brasil para Cristo (http://www.obpc.com.br/) Igreja Deus é amor (http://www.deuseamor.com.br/) Casa da Benção (http://www.catedraldabencao.org.br/portal/) Igreja Universal do Reino de Deus (http://www.arcauniversal.com/iurd/), Igreja Internacional da Graça de Deus (http://www.ongrace.com/portal/), Igreja Batista Nacional (http://www.cbn.org.br/), Igreja Fonte da Vida de Adoração

Neopentecostais

(http://www.fontedavida.com.br/) Igreja Mundial do Poder de Deus (http://www.impd.org.br/portal/), Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra (http://saranossaterra.com.br/), Ministério Nova Jerusalém (http://www.ministerionovajerusalem.com.br/), Igreja Nacional do Senhor Jesus Cristo (http://www.insejec.com.br/), Ministério Internacional da Restauração (http://www.mir12.com.br/br/index.php)

Diante de tais provocações sobre a ocupação desse território imaterial resta-nos a pergunta: para que sociedade essas formas de comunicação com o sagrado são possíveis e fazem sentido? Innis (2011) em seus estudos sobre o viés da comunicação tornou claro que cada materialidade comunicativa produziria uma natureza social distinta, isto 1597

é, a mídia atenta às necessidades e às características culturais de um dado campo. A resposta para nossa pergunta talvez venha das reflexões de Sfez (1994) no que diz respeito ao tautismo. Nomeou tautismo uma gestão comunicacional que se utiliza de conceitos opostos: ‘representação’ e ‘expressão’. Por representação Sfez (1994) entendeu as montagens, a cenografia, as estratégias discursivas, e toda tentativa utilizada pela mídia de apresentar um acontecimento a partir de uma determinada perspectiva; por ‘expressão’ o autor percebeu a ausência do elemento intermediário, já que “a expressão é auto organizada, direta e espontânea. (SFEZ, 1994. p. 75). A arte, por assim entender, seria um exemplo dessa expressão. O tautismo é a “confusão” entre esses dois gêneros. Já que acredita-se que a partir do mundo das máquinas o ‘eu’ é expressado quando na verdade reina soberana a representação. Nas palavras de Sfez (1994): “tenho a ilusão de estar ali, de ser aquilo, quando não há senão cortes e escolhas que antecedem o meu olhar” (idem, 1994. p, 76). É nessa projeção

atualizada

do

real

que

residiria

tal

camuflagem

da

comunicação cristã. O virtual nos parece um território fértil para os tentáculos do cristianismo atuar. É nesse sentimento de liberdade sem tamanho e do aumento do leque de possibilidades de evangelizar que a igreja opera e faz sua gestão. Deleuze (1988) nos foi claro: “o virtual tem a realidade de uma tarefa a ser cumprida, assim como a realidade de um problema a ser resolvido” (Idem, 1988. p, 200). Para essa realidade Sfez (1994) chamou “sociedade de Frankenstein”, aquela que compra gato por lebre, isto é, quando a maestria da representação no virtual é confundida com a expressão do real. Talvez seja Frankenstein, não essa sociedade em que o cristianismo está viciado em confundir a representação por expressão, mas seja ela um outro evangelista apócrifo capaz de situar o local exato em que reside a boa nova e a comunicação com o sagrado.

1598

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENJAMIN, Walter. A Obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. São Paulo: Brasiliense. Ed.1996. CASSIRER, Ernst. Ensaio Sobre o Homem (An essay on man, 1944). São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Tradução: Luiz Orlandi, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988 FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. Organizado por Rafael Cardoso. Tradução de Raquel Abi-Sâmara. São Paulo: Cosac Naify, 2010. MARIANO, Ricardo. Os pentecostais e a teologia da prosperidade. In Novos Estudos. São Paulo: CEBRAP, 1996, nº 44, p. 24 e ss. PROSS, Harry. La clasificación de los medios. In: PROSS, Harry; BETH, Hanno. Introdución a la ciencia de la comunicación. Barcelona: Anthropos, 1990, p. 158-178. PUNTEL.Joana.Cultura Midiática e Igreja; Uma nova ambiência,São Paulo:Ed.Paulinas,2005 SFEZ, Lucien. Crítica da Comunicação. Editora Instituto Piaget, Portugal. 1994. SODRÉ, Muniz. Antropológica do Espelho. Petrópolis: Vozes, 2011. SODRÉ, Muniz. As estratégias sensíveis: afeto, mídia e política. Rio de Janeiro: Vozes, 2006

1599

EVANGÉLICOS: PENSANDO SOBRE O PENTECOSTALISMO A LUZ DA TEORIA WEBERIANA SOBRE RELIGIÃO

Priscila Ribeiro Jeronimo Diniz451

Resumo: O objetivo desse trabalho é pensar o pentecostalismo como uma dinâmica diferenciada dentro do movimento dos evangélicos, a luz da teoria weberiana sobre religião. Na medida em que é o segmento religioso que mais cresce no Brasil. Os pentecostais convergem e divergem do movimento protestante europeu que Weber estudou. O pentecostalismo lança mão do sincretismo, e também consegue passar por um fortalecimento, reelaborando o caldo da religiosidade brasileira. Convivendo com a secularização e passando por uma dessacralização religiosa, através do mercado religioso atual. Nesse trabalho fiz uma observação sistemática na cidade de Juazeiro do Norte, e a partir desse olhar puder concatenar a pesquisa sobre pentecostalismo com uma análise bibliográfica da leitura de Max Weber sobre a religião. Palavras-chave: Pentecostalismo, Sincretismo, Dessacralização.

INTRODUÇÃO

A proposta desse texto é pensar a religião através de Max Weber, com uma comparação teórica entre o nascer do ethos protestante europeu, com os pentacostais latinos americanos dos dias de hoje. Pensando sociologicamente sobre como convergem e divergem esses dois tipos de composição evangélica. Assim como Weber estudou a formação dos protestantes históricos como um modo de vida, que possuiu uma significação cultural através da racionalização e do desencantamento do mundo

451

Graduada em Ciências Sociais (URCA), Mestra em Sociologia (UFPB). Professora Efetiva (URCA). [email protected]

1600

observo os pentecostais como evangélicos que estão entre a fronteira do racionalismo (asceta) e do misticismo. Proponho-me

escrever

sobre

o

tema

pentecostal

em

comparação aos protestantes aos moldes de Weber, por fazer pesquisa sobre esse segmento religioso há dois anos, e agora submeto produzir no decorrer do texto uma relação com os estudos da religião de Weber. Os evangélicos pentecostais fazem parte de um segmento religioso que se iniciou em 1910, essa denominação propõe uma dinâmica diferenciada dos evangélicos protestantes históricos. A principal diferença é a glossolalia (os dons do Espírito Santo). Segundo Perez “o pentecostalismo é o ramo revivalista do protestantismo, e embora tenha nele sua matriz, se distancia em muitos aspectos, principalmente

no

que

se

relaciona

à

fixidez,

à

rigidez

e

à

institucionalização das confissões de fé e ao fechamento dos cânones revelatórios do protestantismo, em contraposição à dinâmica do pentecostalismo caracterizada pela revelação aberta”. (PEREZ, 2000) O pentecostalismo é dinâmico, é sincrético, se utiliza de símbolos e fenômenos de outras religiões, como forma de agregar mais membros, como por exemplo, usa roupa branca em cultos de exorcismo, igual aos pais de santo do umbandismo, e ao mesmo tempo é contra essa religião. Outro exemplo é usar óleos nas pessoas para a unção, tal como há no catolicismo, com os óleos que unge os fiéis. Por isso é uma religião hibrida, como diz Almeida “não só pessoas circulam, mas também conteúdos simbólicos e práticas rituais circulam por meio de cópias, oposições, concorrência (...) este segmento se caracteriza muito mais pela plasticidade de suas formas do que pela estabilidade institucional de suas doutrinas, que são muito mais cristalizações provisórias de uma religiosidade em constante mutação”. (ALMEIDA, 2008, p.51 e 56).

1601

Assim pensar sobre o pentecostalismo é refletir sobre um contexto latino americano marcado pela diversidade e pluralidade de formas religiosas, e os evangélicos pentecostais divergem nesse ponto dos protestantes históricos. Eles são marcados por construções culturais diferentes.

BRASIL: UM CALDO RELIGIOSO

O Brasil é um caldeirão de misturas religiosas, porém há uma predominância católica. Alguns estudos que estão sendo realizados no país apontam para um declínio desta supremacia. Para observar um panorama mais amplo sobre o quadro religioso brasileiro, tratarei disto a partir de três fontes de dados, o Censo 2000, da Fundação Getúlio Vargas (FGV, 2009), Censo 2010, que indicam para o declínio da hegemonia católica e para a expansão evangélica. Os dados dos Censos das últimas quatro décadas revelam que o crescimento evangélico não é recente. O número de católicos diminuiu consideravelmente, principalmente na última década; o número de evangélicos

cresceu,

e

os

sem

religião

também

cresceram,

reformulando o quadro das religiões no Brasil. (Censo 2000). Segundo dados da Fundação Getúlio Vargas, o número de católicos no Brasil continua diminuindo e o número de evangélicos aumentando, como informava o Censo 2000, onde antes 73,6% eram católicos, e 16,2% evangélicos. Em 2009, os dados da CPS/FGV, mostram o contínuo decréscimo de católicos. Analisei os dados da década de setenta até o ano de 2009, e pude perceber que em 1970 o número de católicos era de 91,77% e os evangélicos com 5,2%. Em 2009 o número de católicos diminuiu para 68,43%. Já os evangélicos tiveram um acelerado crescimento, com 20,23% de fiéis. E com o mais recente 1602

Censo 2010, os evangélicos foram o segmento religioso que mais cresceu no Brasil no período intercensitário. Em 2010, chegou a 22,2%, um aumento de cerca de 16 milhões de pessoas (de 26,2 milhões para 42,3 milhões). Já os católicos passaram de 73,6% em 2000 para 64,6% em 2010. (Censo 2010/IBGE). O que isto denota é que a religião dos brasileiros não pode ser mais considerada com base na exclusividade do catolicismo. Conforme Sanchis: Há duas ou três gerações, falar em “religião dos brasileiros” seria apontar quase que exclusivamente para o catolicismo. Isso mudou. Hoje o catolicismo constitui cada vez mais uma das religiões, entre outras, dos brasileiros, e num movimento diversificador que se acelera. Não se trata só de números (...), mas de algo qualitativo, de um problema identitário. (SANCHIS, 2001, p. 10)

É importante observar que os evangélicos englobam protestantes históricos e pentecostais. Na denominação dos protestantes há um pequeno crescimento e, “embora as taxas de crescimento do protestantismo histórico sejam inferiores às do pentecostalismo, são muito elevadas” (MARIANO, 2004, p.122). Mas a expressão dos evangélicos que ascendem mais são os pentecostais. Segundo

Mariano,

“os

pentecostais,

diferentemente

dos

protestantes históricos, acreditam que Deus, por intermédio do Espírito Santo e em nome de Cristo, continua a agir hoje da mesma forma que no cristianismo primitivo, curando enfermos, expulsando demônios, distribuindo bênçãos e dons espirituais, realizando milagres, dialogando com servos”. (2010, p. 28). Todas as ondas acreditam nos dons do Espírito Santo, dons de línguas (glossolalia), cura e discernimento de espíritos. A primeira onda é composta pelas igrejas clássicas, que representam as pioneiras do movimento pentecostal no Brasil e, em 1603

1910, iniciaram o movimento com os dons do Espírito Santo. São elas: Assembléia de Deus e Congregação Cristã. A segunda onda é constituída pelos deuteropentecostais (deutero, que significa segundo), que instauram um evangelismo de massa com a cura divina. Exemplos desse segmento são as igrejas Deus é Amor, Quadrangular (objeto de análise neste trabalho) e Brasil para Cristo. A terceira onda é formada pelos neopentecostais, e é a denominação

pentecostal

que

mais

cresce.

Eles

agregam

e

ressignificam as particularidades das outras ondas. Um dos aspectos fundamentais dessa onda é a ênfase na tríade cura-exorcismoprosperidade. Exemplo desta denominação são as igrejas Universal do Reino de Deus, Internacional da Graça de Deus, Renascer em Cristo, Sara Nossa Terra, Nova Vida, entre outras. Essa classificação revela a dinâmica religiosa das diferentes denominações pentecostais, que também são definidas por cortes históricos.

DISCUSSÃO WEBERIANA SOBRE RELIGIÃO

Como Weber produziu uma Sociologia Compreensiva como método, ele visava à ação social e individual, por isso a produção e o estudo das diversas religiosidades.

Max Weber ao estudar religião

observou a importância dela, e como era a sua influência em relação a outras esferas da vida. Pensou também, sobre a forma de introdução da racionalização por meio do desencantamento do mundo. Como observa Júnior “o interesse de Weber pela religião, segundo Martelli (1995), nasce exatamente da convicção de que as 1604

imagens religiosas do mundo exercem um papel fundamental nas sociedades,

podendo

legitimar

comportamentos

tradicionais,

ou

romper com eles, promovendo a inovação.” (JUNIOR, 2008, p.02). Por isso as comparações que Weber faz entre o catolicismo, tradicional que legitima esse tradicionalismo, e por outro lado, o desencantamento do mundo

rompendo

esse

comportamento

tradicional

através

do

racionalismo asceta dos protestantes. Com isso, Weber em A ética protestante e o espírito do capitalismo, mostra as diferenças entre os católicos e os protestantes em seus lugares de trabalho, e diz que “as peculiaridades mentais e espirituais adquiridas do meio ambiente, especial do tipo de educação favorecido pela atmosfera religiosa da família e do lar, determinam a escolha da ocupação e, por isso, da carreira.” (WEBER, 2006, p. 36). Como também, mais adiante ele prossegue informando que: O conceito de vocação foi, pois, introduzido no dogma central de todas as denominações protestantes e descartado pela divisão católica de preceitos éticos em praecepta et consilia. O único modo de vida aceitável por Deus não estava na superação da moralidade mundana pelo ascetismo monástico, mas unicamente no cumprimento das obrigações impostas ao indivíduo pela sua posição no mundo. Essa era sua vocação. (WEBER, 2006, p. 68)

Então para o autor o protestantismo foi um ethos construído, que nasceu com uma ética e corresponde a um tipo-ideal, que surgiu de um rompimento com a igreja católica. Originou-se uma ética através de um contrato diretamente com Deus, o fiel unia trabalho mais vocação mais espírito religioso, e fortalecia o espírito do capitalismo através dessa unificação. No entanto, relacionando essa proposta com o pentecostalismo podemos pensar que hoje o fiel doa seu dinheiro a Deus. Mas ao mesmo tempo, podemos pensar, e como a igreja pentecostal fortifica o

1605

espírito do capitalismo? Ela não fortalece o capitalismo, há sim, uma forma bem diferente de usar o dinheiro em comparação com o segmento religioso estudado por Weber, para o autor e a denominação que ele estudou, o fiel economizava dinheiro, por que “as menores ações que possam afetar o crédito de um homem devem ser levadas em contas” (WEBER, 2006, p.47). Já o fiel pentecostal doa seu dízimo à igreja, o contrato que ele produz é com a igreja e não diretamente com Deus, ele é um escolhido, assim como os protestantes, mas antes de tudo foi ele quem escolheu a Deus primeiro. Outro ponto importante no texto da Ética é o que o fiel trilhava para garantir a sua salvação, ou seja, vivia no mundo, mas sempre na busca de uma vida melhor em um futuro pós-morte. Diferentemente dos pentecostais, que vivem no mundo, buscam usufruir desse mundo, onde o que vale é o aqui e o agora, e apoiam a idéia de que Deus quer sua felicidade hoje, e não em um futuro próximo. Avançando sobre o pensamento de Weber no texto A ética, podemos perceber que das quatro formas principais de protestantismo ascético que o autor expõe, o calvinismo é o segmento mais diferente em relação ao pentecostalismo, devido à doutrina da predestinação, que era o seu dogma. Como já informei, os pentecostais acreditam ser escolhidos por Deus, mas tal propósito também foi escolhido por ele mesmo, ou seja, uma escolha de “mão dupla”. Assim

como

o

calvinismo

é

à

forma

mais

distante

em

comparação ao pentecostalismo, o metodismo é modo mais próximo dos pentecostais.

A combinação de um tipo de religião emocional e ainda assim ascética com a crescente indiferença ou até o repúdio das bases dogmáticas do ascetismo calvinista é também característica do movimento anglo-americano, correspondente ao pietismo continental, chamado metodismo. (...) é mostrada acima de tudo pelo fato de o método ter sido

1606

usado primeiramente para provocar o ato emocional da conversão. (WEBER, 2006, p.106)

O que converge as duas doutrinas está no fato da luta emocional usada nos dois. Principalmente para fazer com que a conversão seja o ponto chave, que provoca os momentos de êxtases, “isso formou as bases de uma crença na posse não merecida da graça divina e, ao mesmo tempo, de uma consciência imediata de justificação e perdão.” (WEBER, 2006, p.107). Ou seja, não precisa da teologia da predestinação, o que importa é o arrependimento e a vontade de seguir um caminho escolhido por Deus, cuja fundação vem pelo perdão dele, e pela conversão do fiel. Continuando sobre o pensamento de Weber em Rejeições religiosas do mundo e suas direções, verifico uma fronteira tênue que está o pentecostalismo, onde se ver o sincretismo dessa denominação religiosa, nas quais, une características ascetas e místicas. Weber explana sobre essas duas características, onde o “ascetismo ativo que é uma ação, desejada por Deus, do devoto que é instrumento de Deus.” (WEBER, 2006, p.228). Ou seja, o protestante asceta, busca ações desprendia do corpo e das sensações corporais e que, por meio da ascese, tenta assegurar o triunfo do espírito sobre os instintos e as paixões. O pentecostalismo usa de algumas dessas características, busca certo racionalismo sobre seus instintos em relação, por exemplo, na esfera erótica, onde compactua com o matrimônio racionalmente regulamentado. Weber também informa que “o ascetismo ativo opera dentro do mundo; o ascetismo racionalmente ativo, ao dominar o mundo, busca domesticar o que é da criatura e maligno através do trabalho numa vocação ‘mundana’.” (WEBER, 2006, p.228). O que quer dizer que o asceta racional é colocado em prova nesse mundo, buscando trilhar um caminho ereto através da sua domesticação. Neste caso, o 1607

pentecostalismo converge com o ascetismo em relação a se domesticar, ele não rejeita o mundo, mas vive no mundo, o que diferencia é que ele desfruta do mundo. Em contra partida ao ascetismo, há a possessão contemplativa do sagrado, como existe no misticismo, que visa “a um estado de ‘possessão’, não ação, no qual o indivíduo não é instrumento, mas um ‘recipiente’ do divino.” (WEBER, 2006, p.228). Diferente do pentecostal, pois esse fiel acredita ser instrumento de Deus e não um recipiente. No misticismo busca-se a fuga do mundo, o pentecostalismo não quer fugir do mundo, mas sim usufruir do mundo dessa forma ele se torna um escolhido de Deus, por ter prosperidade em tudo da sociedade. Os pentecostais convergem com o misticismo, na questão da adesão as características mágicas de outras religiões, como exemplo, a fita de promessas do catolicismo, como no caso da cidade de Juazeiro do Norte, onde as pessoas usam essas fitas amarradas em suas mãos, e quando o fiel alcança a promessa, a fita é cortada, tal como ocorre com as promessas do Padre Cícero, santo popular que as igrejas pentecostais da cidade reprovam. Das

interpretações

geradas

pela

sociologia

da

religião

weberiana, Souza dialogou com os textos de Weber e retratou sobre a cultura produzida pelos protestantes em A ética protestante e a ideologia do atraso brasileiro, afirma que “Weber procurou indagar, antes de tudo, como esta cultura específica se constituiu, o que fundamenta a sua peculiaridade em comparação com outras, e quais as direções para as quais ela aponta. É esta a origem do seu monumental estudo comparativo sobre as grandes religiões mundiais.” (SOUZA, 1998, p.08). Comparando ao pentecostalismo observo que ele não

segue

um

ethos

da

cultura

protestante,

os

pentecostais

acompanham uma ética de fraternidade, de viver em comunidade

1608

sobre uma mesma filosofia, mais não é tão rígida e fixa como o protestantismo. Souza também ajuda a pensar sobre a religião pentecostal em “à esfera religiosa pode ser percebida como uma forma de resolver o dilema da interação do homem com o meio social e natural.” (SOUZA, 1998, p.02). Onde é necessário viver uma ética de fraternidade, para associar o “caos” e direcionar o lugar do individuo no mundo, por isso a força da religião mesmo após a secularização, ou seja, o processo de retraimento gradativo do poder da religião no espaço público. Mas que persiste no cunho privado, cujo propósito é redirecionar o indivíduo a viver em sociedade. Assim pensar o pentecostalismo é ver que essa denominação religiosa convive com a secularização, pois se depreende da institucionalização protestante, e é um movimento mais flexível. Segundo Junior: A religião não é pensada como propriedade de toda sociedade, mas como criada por grupos específicos, que geram no restante da sociedade a demanda por esses produtos, ou seja, seria a oferta e não a demanda que condicionaria o interesse pela religião. (JUNIOR, 2008, p.74)

A religião então sai de um campo espiritual e passa a fazer parte de um mercado de vendas e trocas. Com o mercado religioso, hoje o que ocorre também é uma dessacralização das formas religiosas, onde não é ser menos religião, mais sim um fazer religião diferente. “Segundo Pierucci(1996) quanto mais o ‘fortalecimento’ da religião em nossa sociedade depender do aumento da oferta de religiões no mercado religioso ao alcance dos indivíduos, tanto mais a sociedade avançará, não na direção do reecantamento, mas da dessacralização”. (JUNIOR, 2008, p.84) O mercado religioso possui os mais variados produtos para os gostos das pessoas, é uma espécie de “a la carte”, ou rodízio, onde o 1609

fiel une elementos que o satisfaça. Exemplo é a cura que é mostrada pelas igrejas como um serviço, quase como um produto. A religião modela o fiel que se nutre de aspectos identitários, isto é, o fiel se aproxima mais do que ele compartilha, e consome o melhor e mais apropriado discurso para ele. “A religião se transforma em consumo e o fiel em consumidor, numa relação de mercado que a sociedade está equipada para regulamentar, como qualquer outro produto” (Prandi e Pierucci, 1996, p.272). Os processos religiosos contemporâneos, em certa medida, se tornaram um serviço que necessita de especialização, de mão de obra qualificada, como exemplo o curso Teológico de formação de pastores, como também, cursos de atualização desses serviços que mostram a especialização religiosa, através das ofertas de produtos da igreja. É nesta lógica que é produzido uma ética do consumo espiritual, onde os segmentos religiosos mostram afinidades que são compatíveis com o que o fiel - consumidor procura. Por isso a identificação, pois só frequenta quem se sente próximo das idéias da igreja, e a oferta de serviço religioso é que sustenta a igreja, quanto mais serviço diferenciado, maior o número de fiéis e de visitantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analiso, portanto, que a Sociologia Compreensiva de Weber faz refletir sobre a ação da esfera religiosa nos dias de hoje, tanto como essa esfera mobiliza as ações sociais de uma determinada comunidade religiosa, como o pentecostalismo, e também, a sua influência nas ações individuais, em relação aos fiéis.

1610

A relação entre protestantes e pentecostais mostra conflitos entre duas correntes, que mesmo englobadas em uma mesma estrutura, de ser evangélicos, possui e reesignificam características distintas. Quando o pentecostalismo foi criado aos moldes do desencantamento do mundo, estudiosos sobre religião acreditavam que esta seria uma denominação religiosa que teria começo, meio e fim; porém é o segmento que mais cresce, devido o seu “jogo” de participar do mercado religioso.

Na tese de Procópio, o pentecostalismo estava marcado para morrer no final da grande narrativa de modernização da sociedade brasileira, pois continha o germe de sua própria destruição- desencantamento do mundo. Assim, quando os “resíduos agrários” fossem assimilados pela sociedade moderna, com a ajuda do próprio pentecostalismo, ele se destruiria. Porém, não é a isso que estávamos assistindo nos últimos decênios. Vemos, isso sim, uma curva de migração campo-cidade em franco declínio e de adesão ao pentecostalismo em uma subida vertiginosa. (JUNIOR, 2008, p.86)

Ou seja, ele convive com a secularização, e se rearranja com a dessacralização

das

formas

religiosas,

não

é

uma

cultura

preponderante, que teve rompimento como os protestantes, mas participa do caldo da religiosidade brasileira, agregando elementos simbólicos de outras religiões. Portanto pensar em uma cultura pentecostal não convém. Pois no Brasil não houve uma transição de identidade católica para uma identidade pentecostal, mas há sim um movimento de mercado religioso, na tentativa de abrir espaço para os diferentes segmentos. Desta forma, a religiosidade passa por um rearranjo de estruturação do sagrado, onde a demanda é constante, mas a oferta e serviços religiosos são maiores.

1611

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Sociologia

do

novo

NERI, Marcelo (org.). Novo mapa das Religiões. Rio de Janeiro, FGV, CPS, 2011. Site: www. fgv.br/cps/religião. PEREZ. Léa Freitas. Breves notas e reflexões sobre a religiosidade brasileira. Imprensa Oficial dos Poderes do Estado. Edição Especial, Brasil 500 anos, junho de 2000. Belo Horizonte, pp. 40-58. PRANDI, Reginaldo e PIERUCCI, Antônio Flávio. A realidade social das religiões no Brasil. São Paulo; Hucitec, 1996. SANCHIS, Pierre. Religões, religião... Alguns problemas do sincretismo no campo religiosos brasileiro. In: Fiéis e cidadãos. Percursos de sincretismo no Brasil. Rio de Janeiro; EDUERJ, 2001. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Editora Martin Claret, 2006. WEBER, Max. Rejeições religiosas do mundo e suas direções. In: Ensaios de sociologia. 5° edição. Rio de Janeiro: LTC, 2002.

1612

TURISTIFICAÇÃO DA ROMARIA? UMA ANÁLISE SOBRE DISPUTAS E APROPRIAÇÕES NO CONTEXTO DE ROMARIAS EM JUAZEIRO DO NORTE - CE

Rosana Dayara Correia de Alcântara452 Maria Paula Jacinto Cordeiro453

Resumo: Esse estudo procura atualizar os elementos que são discutidos pela literatura no contexto de tensões de praticas em período de romaria. Os objetivos são voltados para compreender como vivencias de visitantes que se nomeiam turistas na cidade Juazeiro do Norte, no Ceará, em períodos de romaria, contribuem para a construção de novos significados para esses eventos. Foram realizadas observações sistemáticas e entrevistas durante acompanhamento a grupos de turistas em duas romarias em 2011. Ao analisar o turismo na cidade de Juazeiro do Norte pôde-se perceber que a “publicização” da imagem da cidade como uma “terra santa” é de interesse tanto de autoridades religiosas locais, como politicas e econômicas, cada uma esforçando-se no sentido de atender a demandas dos usuários do espaço e com isso contribuindo para dimensionar mais amplamente significados da romaria.

Palavras-chave: Turismo. Romaria. Interesses políticos e econômicos.

INTRODUÇÃO

As romarias de Juazeiro do Norte são fenômenos sociais de expressão religiosa, que trazem a cidade milhares de pessoas todos os anos. A memória do padre Cícero como um líder religioso que se popularizou como santo e o calendário de festas religiosas anuais ainda se mantêm como principais atrativos de fiéis e curiosos ao local, mas 452

Estudante de Graduação em Ciências Sociais (URCA). [email protected]. Graduada em Ciências Sociais (URCA), Ciências Econômicas (URCA), Mestra em Desenvolvimento Regional (URCA) e Doutora em Sociologia (UFC). Professora Adjunta (URCA). [email protected] 453

1613

não só. Tem se diversificado cada vez mais as práticas e vivências das pessoas que visitam a cidade, onde é possível perceber muitas ações que vão além das expressões religiosas. Esse

cenário

se

alinha

às

especificidades

do

contexto

contemporâneo, tendo em vista as atividades desgastantes do mundo do trabalho, com o acumulo de funções e obrigações, o individuo sente se expropriado do seu tempo454. O tempo livre455, por outro lado, suscita uma expectativa de maximização do proveito que aliada a ofertas multidirecionadas, como acontece nas romarias que favorece uma imbricação entre práticas religiosas e outras atividades que tendem a diluir a dimensão devocional do evento, sinalizando uma tendência de redução do domínio institucional, em favor do controle do Estado e do mercado (STEIL, 2003). Essas tendências e apropriações e tensões são discutidas no presente estudo com o objetivo de saber quais as praticas motivos e interesses que trazem o turista a cidade de Juazeiro do Norte, bem como quais as ações por parte do mercado e estado estão voltadas para a concretização desse tipo de turismo que acabam expandindo as dimensões de significados atribuídos às práticas de romarias. Dessa forma, a conjunção de experiências de diversão, devoção e consumo

454

Sobre essa questão Kurz (1999) afirma que “Apesar de consumir a maior parte do tempo diário, a maioria esmagadora dos que laboram não sente o tempo de trabalho como tempo de vida próprio, mas como tempo morto e vazio, arrebatado à vida como num pesadelo”. 455

Sobre tempo livre Aquino e Martins (2007) consideram que “o tempo livre, tal como o concebemos hoje, adveio da natureza cronológica que atinge o apogeu pós-revolução industrial. É da liberação do tempo que devia ser dedicado ao trabalho, que emerge a noção do tempo livre. Aí estão implicadas algumas variáveis. A primeira delas é que a liberdade, tomada como exercício temporal, não podia ser exercida no trabalho, pelo menos na concepção de trabalho industrial, uma vez que a organização produtiva pressupunha uma sincronização, que ainda não havia sido experimentada de forma generalizada em outros momentos da história. A segunda é que a liberdade de constituir-se como sujeito estava limitada pelo processo de alienação imposto pela produção capitalista [...] O tempo livre, a partir do seu viés industrial, dá passo também ao surgimento da compreensão do lazer, que passa a ser concebido como uma atividade que tem sua base ancorada na existência de um tempo livre, fomentado e reconhecido legalmente, e que poderia ser exercido autonomamente pelos trabalhadores, tendo por base sua condição socioeconômica e seus valores sociais”. Neste sentido a tempo livre caracteriza o “não-trabalho”, a liberdade de não trabalhar.

1614

potencializadas em períodos de romarias podem estar influindo na ressignificação das romarias.

ANTECEDENTES CONCEITUAIS

No mundo contemporâneo, o Ocidente Europeu tem se apropriado cada vez mais de formas diversificadas de vivenciar o sagrado em experiências ora institucionalizadas formalmente, ora resultantes de ressignificação de grupos específicos e por vezes materializada em locais e espaços. Existem diversas perspectivas teóricas que buscam compreender fenômenos de expressão social que se fundamentam na religiosidade. Para uma melhor abrangência desse campo é necessário recorrer a definições conceituais das categorias usadas no presente estudo, trataremos de três, romaria, peregrinação, e turismo religioso, pelo fato de cada uma dessas possuir em sua estrutura especificidades em termos de práticas atribuídas que não permitem ao leitor confundi-las em sinonímia, na medida em que “os usos que se fazem dessas categorias demarcam diferenças e posições dentro de um campo de disputas de sentido e de poder, no qual estão envolvidos diversos atores religiosos e políticos, mas também os acadêmicos que estudam esses eventos sociais” (STEIL, 2003, p.29).

As romarias são eventos que fazem parte das interações em grupo, pessoas se organizam em caravanas com propósito de viajar em distâncias relativamente curtas para lugares considerados santificados onde se acredita estar o próprio santo, dentro de uma perspectiva devocional, com intuito de homenagear prestar reverencias pagar promessas e agradecer bênçãos. Combinado a fortes aspectos festivos em datas que fazem parte dos calendários das igrejas, mesmo que a iniciativa romeira faça parte de processos sociais complexos de formação de identidade e se dê com certa autonomia institucional, é 1615

sempre sujeita a programação institucional advinda dos órgãos eclesiásticos. Dessa forma representa O sagrado feito gente com quem se conversa se troca bens energias e saúde, perto de quem se vive uma pequena porção de tempo, o tempo feito festa: comida, bebida, danças, e até a volta para um cotidiano transfigurado, já na espera de outra romaria. Um ritmo de vida e na vida. Uma relação constituinte do além vida, fonte de vida, o sagrado (SANCHIS, 2006,p85)

Quanto às peregrinações, essas são vivenciadas em um sentido de individualidade, uma busca de si em encontro com o sagrado, essas viagens são marcadas por sofrimento e penitencia quanto mais difíceis e dolorosos se tornam os percursos até o local desejado maior se acredita ser a benção, satisfação espiritual, transformação pessoal e remissão das pegados, cometidos em sua existência profana. “Outra conotação que parece se agregar ao significado de peregrinação na pós-modernidade religiosa contemporânea é a que associa

à

experiência interior de um caminho a ser percorrido por cada individuo na direção do seu verdadeiro ‘eu’” (STEIL, 2003,p.33). Um dos autores pioneiros nos estudos sobre peregrinação foi Victor Turner456. Ele instituiu um modelo universal para compreender o acontecimento. O autor afirma ser a peregrinação um fenômeno que indica total suspenção da estrutura para um estado de liminaridade, numa experiência em que o individuo sai de suas funções sociais e passa a conviver por um determinado período em um ambiente de interações sem hierarquizações de posições. Apesar desse modelo não ser comprovado com facilidade, empiricamente, a teoria de Turner sempre é evocada a participar dos discursos sobre peregrinação seja por quem concorda com ela ou por quem discorda. Sendo que esse modelo é visto como uma possibilidade explicativa pura. Para pensar 456

Ver introdução de Image and Pilgrimage in Christian Culture, realizado com sua esposa Edith Turner. Em texto sob o título Pilgrimage as a Liminoid Phenomenon os autores lançam a discussão sobre fenômenos liminoides o que seria mais tarde discutido como fase do processo ritual, em texto próprio.

1616

contextos empíricos há de se considerar as dinâmicas de fatores que envolvem o próprio fluxo e implicam muitas vezes em questionar se contemporaneamente as romarias ou peregrinações ao se submetem a imbricações de práticas e apropriações diversas que muitas vezes implicam em processos de hierarquização de sentidos podem ser entendidas como situações propícias a análises que consideram tais práticas como exemplificativas de situações de liminaridade457. Por outro lado, a atividade turística é externa às categorias acima citadas e se encaixa em contextos de gestão política e empresarial tendo em que conta que cada agente é encarado como potencial consumidor. O turista que busca lugares pelo atrativo religioso, procura espaços para o descanso e afastamento da rotina que proporcionem também um contato com experiências religiosas, porém em seu papel de atuação, se posiciona em um lugar de observação, não lhe é necessário participar das programações do evento, nem mesmo demonstrar socialmente sua fé, isso implica em um olhar diferenciado, fato que o distingue das outras categorias, as pessoas que participam das primeiras atuam como protagonistas no espaço e nas ações e representações, sendo que o turista participa como um expectador e consumidor usual da fé. O ponto fulcral reside no grau de imersão e de externalidade que cada uma dessas experiências pode proporcionar, enquanto as peregrinações e romarias tendem a ser vivenciadas como um ato religioso de imersão no sagrado, o turismo mesmo quando adjetivado de religioso, caracteriza se por uma externalidade do olhar para que um evento possa ser considerado como turístico (AMIROU, 1995 apud STEIL, 2003, p. 35).

457

Na segunda edição de Contesting the sacred (2000), no capítulo Introduction to the Illinois paperback, John Eade atualiza a discussão e toda controvérsia que envolve o modelo turneriano, sinalizando a necessidade relacionar pessoas, “lugares” e “textos” na abordagem analítica de peregrinações cristãs.

1617

Entender essas categorias dentro do cenário das romarias separadamente é um trabalho de abstração, pois apesar de serem classificadas de maneiras diferentes em vários aspectos suas fronteiras estão borradas, na prática essas categorias são muito difíceis de serem encontradas

de

forma

pura.

Romeiros,

turistas

e

peregrinos

compactuam de uma imersão no espaço do sagrado, sendo possível que uma mesma pessoa vivencie em uma única viagem experiências relacionadas a todas essas categorias. Em abordagem qualitativa aos visitantes da cidade de Juazeiro do Norte foi possível perceber certa burocratização nas ações sendo que há uma reserva de tempo para cada atividade, as pessoas que se identificam como romeiros realizam também uma organização prévia de seu tempo durante a permanência no local, com dias e horários reservados para atividades distintas que vão desde ir a missas ao dia de fazer compras ou realizar passeios de caráter não religioso. Por sua vez, os que se dizem turistas geralmente participam de celebrações religiosas. O que evidencia que as categorias funcionam como modelos puros de ações e representações próximos aos tipos ideais propostos por Weber, o que se pode encontrar é a predominância de um desses modelos sobre os outros, mas não necessariamente estarão agindo em função exclusiva de um desses.

CONTEMPORANEAMENTE...

Em Juazeiro do Norte, a romaria apresenta-se como um espaço de varias dimensões nas quais múltiplas práticas são agregadas ao sentido dessas, despertando interesses de atores e esferas da sociedade que inicialmente poderiam se fazer perceber como destoantes do contexto das romarias e não relacionadas aos significados evocados 1618

nestes eventos. De fato, as várias formas de apropriação do evento participam de disputas de poder que se relacionam e integram para estruturar o espaço da festa, e tensionam os significados atribuídos às romarias. A esse respeito, evoca Sanchis (2006,p92): A estrutura do sagrado não se confunde com a estrutura da religião, mas articula se necessariamente com ela para fazer história. Estruturas de estruturas. Não somente com ela, aliás. Digamos que uma realidade social humana, existe na confluência de estruturas de vários níveis, em trabalho tensional de pressão e rivalidade mútua.

A existência de uma narrativa mítica amparada e rememorada por uma instituição religiosa é sustentáculo ideológico dentro do espaço criado para vivência do sagrado, neste caso, o interesse religioso se articula com o econômico e político da cidade para dar suporte a esse evento. No tocante aos indivíduos, essas dimensões também se encontram interligadas sendo que os envolvidos podem buscar por experiências que digam respeito a apenas um desses campos

ou

até

mesmo

em

todos,

independente

disso

serão

bombardeados com possibilidades de experiências que ora se impõem, ora se apresentam como disponíveis. É comum encontrar nas práticas de quem vivencia a romaria aspectos que não correspondem a inclinações de cunho religioso, os grupos cada vez mais são atraídos pela oferta de serviços e lugares, o que indica que o sagrado e o profano podem ocupar simultaneamente o mesmo espaço que se desmonta e remonta o tempo todo em função dos interesses envolvidos tanto por parte dos que demandam experiências, como por parte dos que a oferecem. Acompanhamos na cidade de Juazeiro do Norte, em 2011, duas grandes romarias: a de Nossa Senhora das Candeias que ocorre durante o mês de setembro e a Romaria de “Finados” no mês de novembro. Fazendo uma releitura sobre o material teórico produzido sobre as romarias, é possível tentar estabelecer um paralelo entre as 1619

pesquisas existentes e as práticas que ocorrem dentro do espaço da romaria, nas várias dimensões que esta abrange. No modelo proposto por Turner não é possível compreender as práticas lúdicas desse evento, e a posição do individuo enquanto ser socialmente localizado. Por meio de observação sistemática, foi visto que na organização da viagem é estabelecida uma programação não religiosa para os dias que permanecerão na cidade, dentre essas passeios a engenhos, visita a fábrica de refrigerantes e balneários fazem parte do roteiro com horários regulados, locais de visitação fixos. O dia reservado a fazerem compras também é estabelecido nesse período de organização, que é articulado entre o locatário do carro (fretante) e o motorista. Sendo possível perceber que as ações dos indivíduos estão intimamente ligadas a sua vida social, as atividades escolhidas dependem muito das características que reúnem os grupos que são visíveis em representações e manutenção de lugares sociais de origem na articulação entre os membros de um mesmo grupo. O próprio esforço de convencimento sobre que programação seguir evoca lugares de autoridade próprios de sua vida cotidiana. [...] Por isso os símbolos da posição de uma pessoa são de grande importância. Isto é, pelo uso de vários símbolos (como objetos materiais, estilos de comportamento, gosto e linguagem, tipos de associações e até opiniões apropriadas) uma pessoa está sempre a mostrar ao mundo o ponto a que chegou. (BERGER, 1986, p. 92).

Além de evocar um encontro com o sagrado e um lugar para renovar sua fé ou participar de rituais religiosos a romaria dá espaço também a uma busca por momentos de lazer, pelo novo, uma forma de fazer novas amizades ou mesmo reforçar laços com pessoas de seu convívio, que se organizam em viagens para buscar novas experiências dentro de um espaço social moralmente permitido. O grupo de referência dos indivíduos é peça decisiva para escolha do local de viagem, buscando conscientemente ou não o reconhecimento dos 1620

parentes amigos e clã religioso ao qual o individuo pertence. Segundo Berger (1986), os papeis sociais que representam estão para além do indivíduo e quando incorporados dificilmente são identificados por quem dele faz uso trazendo consigo, inclusive sentimentos e emoções (dando a impressão de que lhes são naturais). Neste sentido, são fortemente articulados duas possibilidades de práticas: as denominadas como religiosas; e as lúdicas e de consumo.

A FÉ COMO ESPETÁCULO

O fato de a cidade de Juazeiro do Norte ter se tornado um destino turístico não se deve a valorização estética do lugar, mas sim a um desdobramento de demandas que caracterizam as romarias e colocam os romeiros, numa lógica de mercado, na posição de consumidores potenciais. Esses agentes foram inicialmente motivados pela possibilidade de proximidade de valores morais cultuados pelo Catolicismo. A crença nos santos contribuiu para a caracterização do espaço como “terra santa” tendo em vista feitos prodigiosos atribuídos ao Padre Cícero e são conteúdos ainda recorrentes nos discursos dos participantes da romaria, enfeitando o imaginário dos que vem em busca de um refúgio espiritual e também dos espectadores. Na romaria de Finados que acompanhamos em 2011458 tivemos a oportunidade de acompanhar o período de estadia das pessoas que se hospedaram na pousada Cordeiro de Deus. Lá estavam presentes grupos que vinham de vários estados, dentre eles Alagoas, Sergipe, Pernambuco , Paraíba, Bahia .

458

Evento que ocorre anualmente em Juazeiro do Norte no mês de novembro, nos dias 1 e 2, embora a estadia dos participantes não se restrinja a esse período, principalmente porque é também um momento em que várias ofertas de diversão se espalham pela cidade sob a forma de shows de forró, feiras e estabelecimento de parques de diversão em diferentes lugares ao mesmo tempo.

1621

A pousada fica em frente ao Memorial Padre Cicero, possui piscina, churrasqueira e bar. Uma boa parte das pessoas que ali se hospedavam reservavam as vagas com antecedência por ser muito grande a procura da pousada pela localização central, e pela piscina, cujo acesso já está incluso no valor da diária. Durante os três dias de acompanhamento, as práticas observadas eram as mais diversas, banhos de piscina, consumo de bebidas, festas à noite, interação entre os grupos que vinham de lugares distintos com troca de experiências e informações sobre seus locais de origem, visitas a igrejas, ao Shopping Center, ao Horto459 e participação da programação religiosa. Foram realizadas cerca de trinta entrevistas semidirigidas, entre essas pessoas, encontramos nove homens que formavam um grupo de motoqueiros estilizados e percorriam o Brasil em busca de festas, se denominavam turistas e visitavam a cidade de Juazeiro do Norte pelo terceiro ano consecutivo, descreveram a cidade como “um lugar bonito de se ver, agente bate fotos e mostra pra família [...] gosto de ver as pessoas no Horto, a fé com que elas rezam é linda, emocionante e inspiradora, os problemas da gente fica tão sem importância!” (João, 46 anos, em entrevista concedida às autoras em 01 de novembro de 2011). A fala desse turista remete claramente à noção de seu lugar de expectador. E o espetáculo é o da imagem da fé representada como um bem de consumo importante para os participantes que se posicionam como expectadores, suficientes para sentir o sagrado. Nesse sentido, o sagrado é evocado na medida em que experimentam, de forma intermediária, através a fé do “outro”.

TURISMO E ECONOMIA LOCAL

459

Colina onde está localizada a estátua do Padre Cícero, com 27m de altura.

1622

No Ocidente Europeu contemporâneo as relações sociais encontram-se cada vez mais complexas. Os indivíduos se desdobram em diferentes funções, sendo que cerca de um terço do dia das pessoas economicamente ativas é utilizado nas atividades do mundo do trabalho. Com acúmulo de funções e obrigações, o indivíduo sentese expropriados do seu tempo, num vazio subjetivo ou como diria Sapir (1985) um “vácuo espiritual”. Nesse contexto, a categoria tempo livre sempre propagada pela mídia se faz em oposição ao tempo de trabalho. Não estando desatento a essa demanda, o mercado capitalista investe na venda lugares de lazer, constrói paraísos para o descanso e alimenta (até mesmo cria) a ideia de que é necessário um lugar de refúgio dos males. A existência cada vez maior de pessoas que participam da romaria e se denominam como turistas, permite pensar que a romaria está dentro do quadro de possibilidades de fuga da rotina característica das necessidades do turista. “A alienação do trabalho encontra seu prolongamento na alienação do turismo de massa [...] o turista esse sujeito-objeto aliena-se nas regras de uma estrutura rígida que comanda seus trajetos seus horário e seu olhar” (LUCHIARI, 1998, p. 19). Na cidade de Juazeiro do Norte a imagem da cidade como uma terra santa é de interesse tanto de autoridades religiosas locais como politicas e econômicas, todas essas esferas empregam seus esforços no sentido de atender as demandas exigidas pelos usuários do espaço e oferecer serviços e ambientes de lazer que tornem a estadia no local prazerosa e confortável. Podem-se perceber claramente mudanças provocadas pela presença dos visitantes: os empenhos aplicados pelas autoridades policiais, órgãos de regulamentação de trânsito, autoridades e instituições religiosas em disputa com agentes que transferem outros conteúdos para as romarias como produtores de eventos, donos de pousadas e hotéis, clubes e balneários. Por outro lado, as reformas das 1623

igrejas, na estátua de Padre Cícero sinalizam o zelo pelos elementos de externalidade que caracterizam a experiência do olhar como atestam os fragmentos de fala a seguir: “Gosto de ver o povo”, “Tem tanta coisa para ver”, “Só em tá vendo tudo isso já me sinto no céu”. Outras pistas podem ser percebidas no crescente aumento do comércio, na contratação de funcionários nas lojas e pousadas no período

da

romarias,

também

como

os

investimentos

em

pavimentação, sinalização e centro de apoio aos romeiros. Tudo parece sinalizar um processo mais abrangente de turistificação das romarias, amplamente apoiado pela municipalidade, pelo Estado e pelos segmentos empresariais beneficiados com os fluxos. O turismo religioso seria portanto, a oportunidade de oferecer um “pacote” de serviços indispensáveis que permitiriam ao cliente-peregrino por vezes doente por vezes portador de deficiência ou mesmo normal- uma permanência na cidade santuário numa estrutura digna, por um período medianamente breve, a custo razoável (CAVALCANTE, 1998, p. 149).

Todos esses elementos apontam para uma racionalização dos esforços para manter e garantir uma exploração econômica do espaço a um longo prazo. E atender as exigências desses atores que cada vez mais tem consciência de seu papel na economia dessas cidades e como consumidores, são grandes as reclamações em termos da estrutura da cidade para receber os visitantes, esses cobram conforto e atendimento de qualidade por parte de seus fornecedores, bem como a existência de melhores opções de entretenimentos. Autores como Antônio Mourão Cavalcante, defende que o turismo religioso pode ser concreto e consistente para o nordeste, já que as paisagens do litoral podem rapidamente serem saturadas.

1624

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os turistas que visitam as romarias em Juazeiro do Norte não se veem distantes do sentido de contato com o sagrado, a ele são agregadas varias práticas e significados. O turismo religioso é uma oportunidade de vivenciar aspectos impressos na formação identidades dos grupos e dá acesso a símbolos, representações diversas, em estéticas

e

performances

diferenciadas

que

representam

ressignificações e adaptações de modelos de relacionamento com o sagrado, com e excepcional em associação a contextos de fuga do cotidiano de labutas e tendo como pano de fundo a complexidade das relações sociais no mundo contemporâneo em cenários em que interesses diversos estão em disputa. Nesse sentido, a persona social está presente em todas as fazes da viagem, o consumidor e o devoto em vários casos são a mesma pessoa. O Mercado e o Estado estruturam as demandas dos novos modelos

de

participantes

ao

mesmo

tempo

em

que

criam

necessidades de consumo e objetivam imagens e sensações, sendo por eles estruturados. Os turistas ao escolherem os objetos e as ações e lugares de consumo acionam vários dispositivos carregados de representações simbólicas e atualizam com suas ações e práticas os significados das romarias.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1625

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1626

MEMÓRIAS SOCIAIS SOBRE O PADRE CÍCERO

Domingos Sávio de Almeida Cordeiro460 Itamerson Macell de Oliveira Costa da Silva461

Resumo: As memórias sociais relacionadas ao Padre Cícero são o foco dessa pesquisa. O trabalho aborda questões acerca da memória social a partir de indivíduos que narram histórias sobre o Padre Cícero. Os entrevistados são pessoas idosas na coorte acima de 60 anos de idade. Nessa etapa entrevistamos indivíduos da Casa do idoso, que fica situada na cidade de Juazeiro do Norte, próximo ao hospital São Lucas. Por conseguinte apresentamos também reflexões através da captação da memória enfocando a dimensão memorial dos narradores e cotejando os conteúdos simbólicos presentes nas falas dos entrevistados que possuem múltiplas vozes acerca da construção do Padre Cícero como líder. Como resultados provisórios, identificamos que as memórias acerca do Padre, ainda se apresentam de forma constante nas falas dos narradores. Dessa forma, a vida do Padre ainda é rememorada. Palavras-chave: Padre Cícero. Juazeiro do Norte. Memória Social. Narradores.

INTRODUÇÃO Desde a antiguidade, os indivíduos repassam para outras gerações costumes, crenças, modos de vida e valores, através da oralidade. A captação da memória no espaço de formação da cidade de Juazeiro do Norte e de seu fundador, Padre Cícero, são o campo de análise dessa pesquisa. Falar de Juazeiro do Norte para explorar a memória do ponto de vista sociológico significa mencionar um vasto campo social. Quando se aborda a fundação da cidade e o seu desenvolvimento, o padre é tido como figura constante na oralidade da população, tanto por pessoas idosas, romeiras e migrantes, como por descendentes dos mesmos que conviveram ou ficaram muito 460

Graduado em Comunicação Social (UFPE), Ciências Sociais (UFRCA), Mestre em Sociologia (UFC) e Doutor em Sociologia (UFC) com estagio sanduíche na Universidade de Lisboa/Portugal. Professor Associado (URCA). [email protected]. 461 Estudante de Graduação em Ciências Sociais (URCA). [email protected].

1627

próximas de histórias que os envolvem. Tais indivíduos são porta-vozes de valores sociais primordiais. “A narração de fatos da memória dos indivíduos torna possível que se extraiam elementos para reconstrução de um fundo de memória coletiva”. (CORDEIRO, 2011, p.39).

Essas

memórias são aqui conteúdos que definem espaços e maneiras dos indivíduos se organizarem, incluindo suas práticas de trabalho, crenças, modos de vida, etc. Quando os narradores estão juntos complementam o que falam acerca de determinados relatos como histórias envolvendo o Padre, milagres que alcançaram, dentre outros acontecimentos. Juazeiro do norte é uma cidade formada por indivíduos migrantes que vieram de várias localidades nordestinas como Alagoas, Rio grande do Norte, Pernambuco, etc. As migrações que ocorreram com mais freqüência no século XX, possibilitaram um maior crescimento urbano da população brasileira, que migrava, sobretudo das zonas rurais às zonas urbanas. As pessoas que vieram dessas regiões nordestinas supracitadas, para Juazeiro do Norte, em sua maioria, eram agricultores de baixa renda que estavam fugindo da seca, fome, conflitos por terras, etc. Em busca de melhores condições de vida para suas famílias. Com a chegada de Padre Cícero à Juazeiro, o mesmo foi capaz de organizar a cidade, criando formas pacíficas de convívio entre os moradores, incentivando também a produção de grãos, em locais delimitados pelo Padre, como uma maneira de amenizar a falta de alimento. Ele conseguiu criar “estratégias” para essas pessoas sobreviverem. De acordo com Della Cava: Muitos dos romeiros [...] eram analfabetos, pobres e politicamente inertes. Sob a capa do impulso religioso [...] escondia-se, muitas vezes, o desejo infrutífero de controlar o meio adverso e sobrepujar as injustiças sociais que faziam de suas vidas uma desgraça (1976, p. 139).

Os indivíduos então pediam ao Padre Cícero conselhos sobre vários assuntos que auxiliassem suas vidas. A partir das demandas que eram atendidas, essas que poderiam ser tanto materiais como 1628

espirituais, o Padre, começa a ser visto por grande parte da população juazeirense como um olhar de destaque. Por conseguinte, se torna uma figura carismática para os sujeitos atendidos. As pessoas que entrevistamos na Casa do Idoso, vêm de localidades rurais, e possuem um modo de vida centrado em relações sociais primárias, no qual as mesmas construídas entre a comunidade ou grupo são priorizadas; grau de escolaridade baixo, ou carência de instrução escolar; união dos grupos familiares. Wirth ressalta que: [...] “A nossa vida social tem a marca de uma sociedade anterior, de folk, possuindo os modos característicos da fazenda, da herdade e da vila. A influência histórica é reforçada pela circunstância da população da cidade em si ser recrutada, em larga escala, do campo, onde persiste um modo de vida reminiscente dessa forma anterior de existência” (1987, p. 92).

Um dos aspectos que mais se destacam nesse modo de vida rural é a presença vigorosa da religiosidade. Ao contar histórias sobre alguns acontecimentos

envolvendo

o

Padre

Cícero,

a

maioria

dos

entrevistados narram destacando ensinamentos do mesmo sobre como lidar com a seca, fome, falta de dinheiro, trabalho e conselhos religiosos. Vale ressaltar que essas histórias foram vivenciadas pelos próprios narradores e transmitem condutas e formas dos mesmos organizarem suas vidas.

NARRADORES COMO FOCO DE ESTUDO As visitas em grupos de convivência e romarias são de grande serventia para a construção de uma problemática sociológica da pesquisa.

Entendemos

por

narradores

aqueles

indivíduos

que

conviveram com o Padre Cícero e contam histórias envolvendo o mesmo, e também outras pessoas que tiveram contato com suas narrações através de parentes, vizinhos e amigos. 1629

Diante disso

percebemos que indivíduos que narram histórias envolvendo Padre Cícero, conservam um acervo de condutas e práticas em seus contos que criam uma coesão social, em que os atores conduzem suas vidas. Na concepção de Michael Pollak (1992, p. 204) “a memória é um elemento constituinte do sentido de identidade”. Com isso, o ato de pertencer a um lugar social, faz com que os indivíduos perfaçam essa construção de identidade de sua conduta humana, relacionando o Pe Cícero no contexto de suas vidas. Esses aspectos se evidenciam nos momentos em que os entrevistados contam histórias discorrendo sobre como era a vida com o Padre, e a forma ideal de viver de acordo com seus conselhos e ensinamentos diante de vários problemas que eram enfrentados por essas pessoas, como falta de água, escassez de alimentos e de trabalho. A metodologia operacional para aproximação empírica com as memórias sociais acontece por meio de depoimentos e entrevistas de histórias de vida de pessoas da terceira idade por essas terem vivenciado experiências com o Padre Cícero. Os entrevistados são selecionados em grupos de convivência de idosos, onde identificamos narradores. A instituição que estamos analisando é a Casa do idoso, situada em Juazeiro do Norte. Nela, nos aproximamos de narradores migrantes que conheceram e/ou conviveram com o Padre Cícero, e descendentes dos mesmos que se aproximaram de histórias do fundador de Juazeiro, através de parentes, amigos e vizinhos. Com isso, as narrações são importantes e servem como instrumento para análise sociológica das memórias sociais na pesquisa.

A CASA DO IDOSO A instituição intitulada Casa do idoso, abriga pessoas que muitas vezes têm famílias, porém quando os idosos são hospedados no local, as visitas aos mesmos se tornam escassas e muitos até esquecem os 1630

parentes462·. Conversamos com uma pessoa que tinha uma situação parecida com essa. Dona Joana463 morou com os pais, até completar dezoito anos de idade, engravidar e no ano seguinte casar-se. No período em que estava casada ela teve dois filhos. Seu esposo morreu aos cinqüenta anos. Na época ela tinha cinqüenta e cinco anos de idade. Por conseguinte, seus filhos hospedaram-na na casa do idoso. A mesma alega, que devido a solidão que enfrentou e as poucas e raras visitas dos familiares, fizeram com que ela se esquecesse da família e de boa parte das lembranças do seu casamento. Meu casamento parecia ser bom. Mas no fundo acho que eu num era feliz, sabe. Não lembro quase nada do que aconteceu no meu tempo de casada. Quando fiquei viúva, fiquei triste, quase morro. Me colocaram aqui (casa do idoso) e meus parentes vinha algumas vezes me ver, mas depois de um tempo deixaram de me visitar. (D.Rosa, 72 anos, Jul- 2012).

No começo das visitas na Casa do idoso, ocorreram alguns empecilhos. Na primeira semana em que começamos a frequentar a instituição, não tive acesso às salas em que os idosos se encontravam, pois o coordenador do local nos disse que precisávamos de um documento que autorizasse as entrevistas. Quando falamos que se tratava de uma pesquisa sobre memória social acerca do Padre Cícero, houve uma maior aceitação do coordenador, e aos poucos fui construindo uma relação de amizade com o mesmo e os demais moradores da casa. Apesar de no começo das minhas visitas os idosos nos olharem com uma percepção de estranhamento, aos poucos com nossa presença semanal no cotidiano deles, os mesmos passaram a conversar melhor. Muitos contaram fatos vivenciados por eles, no qual a figura de Padre Cícero se manifestava. O campo de pesquisa é cercado por desafios que o pesquisador adentra para conhecer universos múltiplos em que estão inclusos conteúdos simbólicos. Emerson et alii, no texto “Notas de campo na pesquisa etnográfica” destaca que: 462 463

Os dados foram obtidos por informação oral. Utilizamos codinomes a fim de preservar a identidade dos entrevistados.

1631

Através da imersão, o pesquisador de campo vê de dentro, como as pessoas conduzem suas vidas, como estas desempenham seus afazeres cotidianos, o que estas consideram significativo e como o fazem. A imersão na pesquisa etnográfica, consequentemente, confere ao pesquisador acesso à fluidez da vida de terceiros e melhora sua sensibilidade para processos e interações (1995, p.01).

O autor considera o suporte para a pesquisa e a problematização etnográfica, a inserção do pesquisador no campo de estudo, pois através dela ele tem a oportunidade de criar uma relação com o grupo pesquisado e ao mesmo tempo desenvolver um olhar de aproximação e estranhamento na sua investigação, buscando um olhar mais apurado na pesquisa etnográfica.

HISTÓRIAS NARRADAS Como já havíamos criado uma aproximação empírica com o grupo, procuramos conversar com D. Rosa. Ela conheceu o Padre Cícero, quando a mesma ainda era criança. Então a informante contou várias histórias sobre o Padre, que transmitem em sua maioria conteúdos instrutivos. É interessante analisar o seguinte trecho de nossa conversa: A sra. é de onde? Juazeiro do Norte. A sra. Morava perto de qual local? - Perto da Coelce. A Coelce comprou minha casa. Eu morava lá. Em minha casa tinha um portão grande e quando Pe Cícero ficava muito aborrecido com os romeiros, ele chegava em minha casa, triste porque um queria uma coisa, outro outra coisa. Tinha um quarto que tinha um santuário e ele ficava lá rezando por todos aqueles beatos, beatas, penitentes e romeiros. Eu estudava na escola das beatas do Pe Cícero. Ensinavam bem, eu aprendia muita coisa. - A sra conheceu pe Cícero, como foi? - Conheci. Pe Cícero chegou na casa de minha mãe e ela disse: Meu padim nasceu uma criança em minha casa, aí meu padim chegou, olhou e disse: Esse menino vai ser Padre. E ele acabou sendo padre, meu irmão. Eu tinha uns dez anos de idade, e todo dia eu pedia a benção a meu padim. Ele era uma pessoa muito humilde e tranqüila, era santo. - A sra lembra de alguma história que Pe Cícero contava?

1632

- Ele fez muitos milagres. Chegava aqueles doidos amarrados de corda, porque num tinha corrente. Aí meu padim, orava neles e eles ficavam bom. Tem muitos milagres que ele sempre fazia. Ele foi o Primeiro prefeito de Juazeiro do Norte. Ahh, mas ele sofreu muito o bispo do Crato, proibiu ele de fazer celebrações, ele sofreu demais (pausa). As vezes eu ficava muito doente, e meu padim dizia pra minha mãe: Dona Maria faça um chá de erva doce que ela fica boa. Aí ela fez e eu melhorei. Tenho muitas lembranças de minha casa, que num posso morar (pausa). O meu tempo era muito bom.Teve uma irmã minha que tava namorando um cara que num era bom, só vivia bêbado. Aí minha mãe perguntou o que deveria fazer ao Pe Cícero. Ele disse: Maria, vá pra casa porque ela ta com as malas todas arrumadas, e você pode impedi-la. Aí minha mãe disse: Num precisa ir embora não. Vou fazer seu casamento. Ela fez. E ela foi morar numa casa que minha mãe arrumou. Meu padim ajudava em tudo lá em casa. (Rosa, 80 anos, Jul- 2012).

Durante essa conversa, a memorialista fazia pausas e conservava o silêncio. Há inúmeros significados para o silêncio dos narradores nas entrevistas. Afora o esquecimento, aquele silêncio de D. Rosa poderia significar memórias dolorosas que a mesma tenta evitar entrar em contato, ou talvez alguma rejeição, ou ao contrário, saudades. Apesar de as histórias serem contadas no interior de famílias, a memória social faz parte de um cenário coletivo, pois esses discursos pertencem a uma determinada geração social que conserva preceitos cuja fonte é atribuída ao Padre Cícero, e têm fortes valores baseados na religiosidade. “Lembranças pessoais que parecem não pertencer a ninguém senão a nós podem bem se encontrar em meios sociais definidos e ali se conservar” (HALBWACHS, 1990, p. 50). Desse modo, as memórias dos indivíduos pesquisados durante as entrevistas possuem convergências e divergências nas suas falas. Muitas vezes eles narram uma mesma história, mas com conotações diferentes para cada narrador. Eles podem destacar, acrescentar ou retirar elementos para adequar as suas formas de compreensão do meio social, e suas visões de mundo que, via de regra, possuem grande influência religiosa. A substância da memória vai se constituindo por meio dos arranjos coletivos morais e de práticas, entre os que destacam valores religiosos. 1633

Segundo Mircea Eliade, “O homem religioso desejava viver o mais perto possível do centro do mundo” (ELIADE, 2001, p. 27). É a partir desse centro que as experiências transcendentais se manifestam. No ato de alguns narradores terem convivido e vivenciado vários momentos com o Padre Cícero, há uma ideia de pertencimento a um universo religioso múltiplo de simbologias que possibilita uma coesão social, organiza a vida dos indivíduos e os mantém fora do caos. Então as experiências religiosas podem influenciar também a vida social e econômica das pessoas, visto que muitos dos entrevistados trabalhavam e dirigiam suas vidas de acordo com os preceitos proferidos pelo Padre Cícero. A pesquisa em memória social possibilita uma análise dos discursos de múltiplas vozes envolvendo o Padre Cícero, buscando um sentido de convergência nas falas dos narradores. De acordo com Queiroz, as narrativas orais podem captar as experiências dos narradores [...] “mas destes também recolhe tradições e mitos, narrativas de ficção, crenças existentes no grupo” [...] (QUEIROZ, 1991, p.05). É importante perceber que os idosos transmitem histórias, em conformidade com suas próprias percepções e, na maioria das vezes a religiosidade e lições pedagógicas estão presentes. Dessa forma, a memória social não se apresenta apenas para trazer à tona lembranças de acontecimentos de determinados grupos em tempos passados, mas a mesma é criativa, e pode ser refeita e reconstruída de acordo com as novas práticas de um grupo em confluência com os novos significados em que a memória é tecida. Lembro de quando meu padim, dizia pra fazer o bem até os inimigo e trabalhar com honestidade, pra gente ser feliz... (Rosa, 80 anos, Jul- 2012).

Ao adentrarmos no campo de pesquisa sobre memória social, vivenciamos situações que corroboram a ideia da multiplicidade de significados e falas presentes nas narrações, pois havia narradores que enfatizavam histórias e descreviam como era o local em que as mesmas 1634

ocorreram.

Outros,

porém,

narravam

de

uma

forma

diferente

destacando novos cenários, ideias e elementos nas histórias. Isso é importante para a pesquisa, pois fornece uma contribuição para a problemática sociológica. Em outra visita entrevistamos um narrador chamado Seu Jorge, que conviveu com o Padre Cícero, e relembra, nas entrevistas, de vários momentos de alegrias e aflições que marcaram a vida do mesmo. No começo da conversa, Seu Jorge, estava desconfortável e perguntou se a entrevista que estava sendo gravada no gravador de voz iria para algum jornal. Pois ele só contava fatos de seu vida para os amigos que pertenciam a Casa do Idoso que entendiam o que ele contava. Na concepção de Cordeiro (2011, p. 67) “Muitos dos conselhos visavam a uma finalidade moral ou social, eram direcionados a cada um, em correspondência às suas necessidades e atitudes, e tinham um efeito multiplicador.” Então, quando os narradores estão juntos eles podem trocar experiências memoriais entre si carregadas de conteúdos simbólicos que servem como coesão social para suas vidas. Após algum tempo de conversa, Seu Jorge contou alguns acontecimentos de sua vida: O Sr conheceu Padre Cícero? - Conheci. Era um homem bom de coração. Dizia para mim “Jorge, faça sempre o bem para os outros e você vai ser sempre feliz”. Quais os conselhos que ele dava? - Ele dizia que pra minha famia464 (família) que sempre andasse nos caminhos certos. Teve uma vez que eu achei uma carteira com dinheiro e perguntei a meu padim se eu podia ficar com o dinheiro pois eu tava passando necessidade e sede. Aí ele dixe (disse): Quando você achou essa carteira tinha uma identidade? Aí eu disse: Tem. Aí ele falou: Então devolva todo o dinheiro e a carteira também. Com isso, a sua família vai ser abençoada, procure o dono até achar ele. Então: Depois de procurar muito, eu achei e devolvi o dinheiro, e o dono me deu uma moto, tava um pouco velha, mas serviu muito. Meu padim sempre falava pra eu ser honesto. O Sr freqüentou romarias em Juazeiro do Norte?

464

Preservamos o modo de falar do entrevistado que está gramaticalmente incorreto, pois faz parte do modelo de vida do nativo.

1635

- Sim. Quando era jovem vim a Juazeiro nas romarias e saudar meu padim. Fui para as romarias até 1960. Fazia canto, oração, passava embaixo do cajado da estátua do Pe Cícero, acendia vela, era bom demais. O Sr lembra de alguma história que Pe Cícero contava? -(Pausa) Em plena guerra de 1914, Veio um bando de soldados com a intenção de bombardear Juazeiro, meu padim tava protegendo a cidade. Vi que ia ser uma disputa muito grande. Aí tinha um muro e meu padim tava atrás desse muro, aí soltaram um torpedo em direção ao muro, mas quando ele foi chegando perto do muro o torpedo ficou fraco e caiu no chão sem atingir de jeito nenhum, meu padim. Ele era um homem abençoado mesmo. (Seu Jorge, 80 anos, Jun- 2012).

De acordo com Cordeiro (2011, p. 42), “A memória coletiva dos indivíduos está livre de compromissos com verdades oficiais”. Não que elas sejam histórias falsas, mas há uma tendência de que quando uma pessoa deseja contar uma história ele acrescenta outros elementos, então os indivíduos concedem uma autonomia para as histórias, visto que elas “voam pelo mundo”. Sendo assim, os relatos carregam conteúdos de significações simbólicas que são repercutidas pela cultura. É interessante perceber que os discursos transmitidos pelo Padre Cícero aos seus seguidores muitas vezes há uma presença de uma coerção social, mesmo de modo indireto, para o público. De acordo com Walter Benjamin (1987, p.59) “A orientação para o interesse prático é traço característico dos narradores natos [...], o narrador é um homem que dar conselhos ao ouvinte”. Ao longo da conversa que tivemos com o entrevistado, o mesmo transmitiu sua forma ideal de ver o mundo e também os conselhos efetuados a partir de condutas expressas na religiosidade. Segundo Geertz, (1989, p.80) “o comportamento humano é visto como uma ação simbólica”. Dessa forma, quando os indivíduos romeiros ou devotos vêm a Juazeiro do Norte com o intuito de freqüentar as romarias, “passar debaixo do cajado da estátua de Pe Cícero no horto”, visitar a basílica central, participar de procissões segurando velas, etc. Esses significados atribuídos ao Pe Cícero, são públicos e construídos coletivamente e podem ser ressignificados. Essa 1636

também é uma forma de construção coletiva ao Padre Cícero. Então os narradores contam histórias em que esses rituais referentes ao Padre estão presentes, servem como reverência ao mesmo em que o representam como uma figura protetora e guia das pessoas. Vale ressaltar, que as pessoas pertencentes a uma geração social que conheceram o Padre, tinham interesses, desejavam uma melhoria financeira, tinham carência de água e alimentos, e necessitava de uma aproximação do sagrado. Sendo assim, os indivíduos que conviveram com o mesmo ou se identificavam com seus ensinamentos, atribuíram a ele, uma figura de líder que guiou esses indivíduos. Há vários narradores que

contam

histórias

distintas

de

um

mesmo

acontecimento

envolvendo o Padre Cícero. Na concepção de Ramos (apud Cordeiro, p.135) “as histórias são construídas de maneira própria por cada devoto, embora possuam traços comuns, há muitas versões para um mesmo acontecimento; [...]”. Sendo assim as histórias podem ser transmitidas ou se adequar de uma maneira autônoma de acordo com a condução de seus narradores. Através disso, as narrações podem conservar alguns elementos ou outros poderão ser alterados compondo a memória coletiva. Através da orientação que o líder apregoava, estão inclusos preceitos de uma moral religiosa firme, baseado na noção de oração e trabalho, criando um ambiente constituído por relações sociais mais calorosas entre as pessoas. As histórias narradas sobre o padre Cícero exercem uma coesão social entre as pessoas, então os indivíduos quando contam histórias, transmitem saberes e experiências, para outras pessoas e refletem sobre uma forma ideal de sociedade, projetando seus modos de vida e sonhos nessa construção social. É interessante notar que os indivíduos pesquisados, durante as suas falas discorrem sobre a questão do tempo para narrar um acontecimento envolvendo o Padre Cícero. Como por exemplo:

1637

No tempo de minha mãe, o povo era mesmo fiel a igreja. Rezava todo dia, e ainda mais muitos rosários, sabe. Era um tempo muito agradável. Hoje no mundo, têm poucas pessoas boas, diferente daquele tempo... (Seu Jorge, 80 anos, Jun2012).

Então, os indivíduos discorrem sobre essa questão do tempo justamente para demarcar divergências do que é vivido no tempo presente da vida deles. Vale ressaltar, que “o tempo antigo” em que eles narram foi marcado por uma moral religiosa e familiar mais rigorosa, o que difere do tempo presente que para eles é marcado pela violência e desrespeito a família. Na concepção de Eliade (2001, p.38) “[…] O tempo sagrado é por sua própria natureza reversível, no sentido em que é, propriamente falando, um tempo mítico primordial tornado presente”. Dessa forma, os narradores através de suas histórias sobre o Padre Cícero, trazem à tona conteúdos simbólicos e modos de organização através das rememorações que estão presentes na memória coletiva do grupo que é constantemente tecida e que pode servir para outras gerações. Considerações As memórias sociais sobre Padre Cícero são criadas sobre múltiplos olhares e perspectivas. É importante observar as construções memorialistas dessas interpretações sobre histórias envolvendo a vida do Padre, pois elas possibilitam uma gama de interpretações da formação da cidade de Juazeiro do Norte. Analisar as representações memoriais a partir das narrações é apresentar contextualizações construídas temporal e espacialmente a partir de significados que podem ser reelaborados no contexto presente. Diante disso, memórias são construções sociais que têm funções de renovar experiências e saberes. Por conseguinte as memórias sociais podem ser criadas a partir de novas posições, olhares e experiências levando em consideração a demarcação dos atores 1638

envolvidos e suas formas de recorte e visões de mundo. Sabendo que o meio social é múltiplo as práticas memoriais são ressignificadas constantemente

pelos

sujeitos

envolvidos

nelas,

o

que

produz

conhecimentos e habilidades que podem manter indivíduos coesos em um grupo. É importante analisar as construções memoriais dos narradores que tiveram, sobretudo, influência de Padre Cícero no contexto da cidade de Juazeiro, e ver que essas memórias são elaboradas a partir de confluências entre sujeitos, cenas e lugares do meio social que produzem experiências a partir de mundos que se encontram e formam um conjunto de interpretações que possibilitam a preservação de elementos em comum, e inovações de outros. A pesquisa em memória social concede ao investigador um olhar mais apurado sobre as narrações e também ressalta que as tradições são expressas na oralidade, e, apesar de serem pouco valorizadas em alguns contextos sociais por motivos do avanço tecnológico na contemporaneidade, são vivas e povoam a consciência das pessoas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, a arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987. CORDEIRO, Domingos Sávio de Almeida. Narradores do Padre Cícero: muito mais a contar. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2011. CORDEIRO, Maria Paula Jacinto. Entre chegadas e partidas: dinâmicas das romarias de Juazeiro do Norte. Fortaleza: Editora IMEPH, 2011. DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Joazeiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins fontes, 2001.

1639

EMERSON, Robert M.; FRETZ, Rachel I.; SHAW, Linda L. “Fieldnotes in ethnographic research” in: Writing ethnographic Fieldnotes. Chicago: University of Chicago Press, 1995. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1978. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice/ Revista dos tribunais, 1990. POLLAK, Michael. Estudos históricos. Rio de Janeiro, Vol. 5. n 10, 1992. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Variações sobre a técnica de gravador no registro da informação viva. São Paulo: T.A Queiroz, 1991. WIRTH, Louis. O urbanismo como modo de vida. In: VELHO, Otávio (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. P. 90-113.

1640

INFLUÊNCIAS INTERGERACIONAIS NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS DAS ROMARIAS Patricia Sutel da Costa465 Maria Paula Jacinto Cordeiro466 RESUMO: As romarias em Juazeiro do Norte ganham um novo repertorio de práticas de acordo com interações geracionais, marcadas por influências recíprocas. Este trabalho tem como objetivo compreender o tempo das romarias em seu processo de construção de sentidos a partir de um recorte geracional. Tomando como referência temporal os períodos de maior visitação romeira que ocorrem anualmente de setembro a fevereiro, foram realizadas observações participantes e entrevistas, entre 2011 e 2012. Como resultados, tem-se uma articulação entre práticas devocionais e lúdicas no cenário da festa religiosa, onde outras necessidades relacionadas à sociabilidade são evocadas, transformando o ambiente de penitencia e oração em um espaço de diversão e entretenimento para todos os públicos e faixas etárias.

Palavras chave: Romaria. Gerações. Práticas devocionais e lúdicas.

INTRODUÇÃO

A presente comunicação procura descrever e friccionar dois modelos de se vivenciar práticas romeiras, em um contexto vivenciado por seus participantes nas experiências do sagrado e do profano. Ao iniciar

esta

pesquisa,

indagamos

sobre

vários

questionamentos

referentes às trocas recíprocas das práticas realizadas por meio das gerações mais avançadas e juvenis. Inicialmente, o olhar sobre as romarias foi construído a partir de leituras com o objetivo de dês naturalizar as noções pré-estabelecidas 465

Estudante de Graduação em Ciências Sociais (URCA). [email protected]. Graduada em Ciências Econômicas (URCA) e Ciências Sociais (URCA), Mestra em Desenvolvimento Regional (URCA) e Doutora em Sociologia (UFC). Professora Adjunta do Departamento de Ciências Sociais (URCA). [email protected]. 466

1641

esse processo de lidar com um fenômeno familiar para as pesquisadoras foi amadurecido a partir de visitas ao campo, durante os períodos de setembro de 2011 a fevereiro de 2012. Por meio da pesquisa com instrumental de observação estivemos em contato com o campo, e com indivíduos que fazem parte desse contexto, assim analisando duas gerações: de pessoas a partir dos 15 até cerca de 30 anos que correspondem a uma geração mais jovem e outra de pessoas entre a maturidade avançada e a velhice, com faixa etária a partir de 50 anos para poder visualizar as práticas que são evocadas por pessoas de gerações diferentes. Utilizou-se a noção de geração ao relacionar os participantes enquanto jovens e idosos, considerando principalmente que a noção de juventude tem sido amplamente discutida quanto à suas especificidades e por haver uma tendência no campo sociológico a tratar recortes demográficos com cautela. Nesse sentido, tomamos num universo de participantes aqueles mais jovens e os mais velhos que possam ser classificados como participantes de gerações diferentes. Enquanto fenômeno, as romarias de Juazeiro do Norte atraem milhares de pessoas, que vem a cidade em discurso por motivações devocionais, mas quando são consideradas as práticas, percebe-se que ‘também são o gozo, a festa, o comercio, os shows, os folguedos populares, os encontros, os namoros e o turismo,” (PAZ, 2011, p,28), que estão dentro desse campo, por detrás das falas pré-estabelecidas dos indivíduos. Nesse trabalho analisamos as influências intergeracionais das pessoas que buscam a cidade todos os anos, por motivos religiosos e/ou lúdicos.

Através

dos

relatos,

do

público

juvenil

e

dos

idosos,

demarcando as falas empregadas por cada geração, demonstramos como se dão as influências que são transmitidas entre si.

AS ROMARIAS E SUAS NARRAÇÕES

1642

As práticas e rituais dos romeiros em Juazeiro do Norte são vivenciadas por muitos deles, em suas falas, como práticas de pagamento de promessas que envolvem sofrimento e privações para alcançar uma graça que recorreu ao santo. Essas práticas e rituais são vivenciadas de forma extraordinária e são marcados por interesses simbólicos, que adquirem novas significações. Há um sentido de dádiva presente nas narrações das relações com o santo, pois em cada pedido narrado há uma troca simbólica recíproca. Num sentido devocional, aqueles que tomam o sagrado como base

de

sua

experiência

romeira,

carregando,

inclusive,

esses

significados atribuídos para suas vidas, são direcionados a partir do contato com o santo. Seus rituais iniciam-se na preparação da viagem, ainda em suas casas, como relatam alguns romeiros, “temos que deixar tudo pronto, para podermos vim a Juazeiro”. Nesse conjunto de romeiros que direcionam sua representação prioritária aos sentidos religiosos/ devocionais, as falas são repletas de significados de fé e devoção. Durante o percurso que levam a Juazeiro, ,cantam, rezam até a chegada. E ao colocar os pés na cidade, o primeiro lugar de visita é a Basílica Nossa Senhora das Dores, para participar da celebração eucarística, antes de irem ao Horto e ao comércio. [...] o lugar sagrado suscita significados plurais: é orientação para o crente, ambiente material dos passos do mestre, propício e comemorações e ritualizações por suas caracterizações como espaço de manifestação do divino, onde é possível cumprir deveres religiosos, purificar-se, promover recuperação da memória tradicional e resistência cultural (CORDEIRO, 2011, p. 76).

Suas práticas de penitência e pagamento ao santo são vivenciadas pelo sacrifício e devoção, são empregadas por seus participantes, sem referenciar as idades, ou melhor, as gerações, pois as falas dos mais velhos muitas vezes já estão postas nas dos mais novos, 1643

fixadas pelo exemplo já que “[...] Desempenhando esses papeis, o individuo vem a representar as objetividades institucionais de um modo que é apreendido, por ele e pelos outros” (BERGER, 1985, p. 27). Nesse conjunto de representantes da categoria “romeiros”, em suas falas, dificilmente encontrarão elementos como festa e diversão. Esses elementos ficam por trás dessas falas empregadas. Entretanto, ao anoitecer, na praça PE. Cícero torna-se um lugar de diversão e bebedeira, onde mais novos e mais velhos divertem-se ocupando os mesmos espaços, onde as trocas de significados culturais são ambientadas nos fluxos de ir e vir, onde experiências religiosas não se apresentam mais como elementos centrais, pois estão na pauta das práticas também questões como namoro e consumo de bebidas alcoólicas. As praticas lúdicas, ficam fora do discurso empregado por seus participantes,

entretanto

essas

práticas

são

vivenciadas

constantemente no decorrer da romaria, assim havendo uma tensão entre o profano e o sagrado sob a forma distintiva entre o como é – terreno das práticas, e o como deveria ser a romaria – terreno dos discursos. Dois terrenos que mesmo se confrontando estão interligados, na medida em da mesma forma que há varias formas de se vivenciar uma festa, há também varias maneiras de se vivenciar uma romaria, que

estão

por

trás

da

falas

empregadas.

Estando

abertas

publicamente, algumas dessas práticas lúdicas superam as práticas sagradas. Quando comecei a vim para a terra do meu padim, eu era muito jovens ainda, vinha com minha mãe e meu pai, os dois são falecidos [...] minha mãe me ensinou que a terra do meu padim Cícero era, terra santa, vinha para cá, para rezar, para ficar mais perto do céu, e ainda eu sinto que to mais perto do céu. [...] No ônibus que nos vêm, todos gostam muito de rezar, agente vem cantando, e rezando o caminho todo, sai de lá a nossa casa é cedo, para poder chegar aqui logo. [...] Nosso coração fica parecendo que vai sair pela boca, quando chega aqui no céu ( risos) vamos para missa, vamos lá no meu padim , lá no horto, ai vamos lá na igreja que ele esta( referindo-se a igreja de Nossa Senhora do Socorro, onde se

1644

encontra o túmulo do Pe:Cícero)[...], e assim, o tempo é muito curto, mais eu fico perto do Céu, não vou deixar nunca de vim a juazeiro, ate o dia que meu padim não deixar eu vim mais.[...] minha filha e meu filho vem comigo, eles pediu e eu deixei ela vim[...] eles também gosta é muito de rezar, de ir nos lugar santo né. Mais a noite, nos vamos, lá na parca, Pe:Cícero, e ficamos lá só olhando minha fia, e bom para eles se divertir um pouco.[...] só não gosto quando vem os dois sozinhos, tem que ficar de olho neles[...]ai minha fia, eu fico ouvindo as musicas e bebendo umas cervejinhas com o povo que vem junto, não é pecado não né?E eles ficam na praça.se divertindo um pouco mia fia, mais eu falo para eles, que em primeiro lugar é Deus né?, Como o padim falava![...] ( M. S.P, Feminina, 53anos, depoimento concedido em 15/ 09 de 2011)

Além da visão e da noção estereotipada que tem o senso comum sobre romaria como um fenômeno unicamente religioso, por trás dessa forma de pensamento existe outra categoria romeira, ou seja, aquele romeiro que vem a cidade com o intuito de diversão e lazer se distanciando do interesse do romeiro devoto. Pode-se observar que dentro do campo da romaria, ocorre uma ampliação na forma de vivenciar a romaria, fugindo assim da ideia do estereótipo puramente devocional, ou do próprio lugar da devoção como centro da significação das romarias.

EFEITOS DE GERAÇÃO E EFEITO DE IDADE

No tempo vivenciado durante as romarias, é possível pensar em uma distinção sobre os efeitos de geração e os efeitos de idade467, considerando que a primeira decorre do meio social e dos fatores históricos a que o individuo está inserido. Esse dois conceitos formulam a relação das influências intergeracionais que vem sendo registradas no decorrer das romarias. 467

Segundo Pais (1998, p. 26) Os efeitos de idade são relativos a representações e comportamento que se caracterizam pela influência da idade e por isso são passageiros. Os efeitos de geração são referências sociais e culturais que marcam uma geração e são carregados por toda a vida. Para melhor compreensão desses conceitos ver Nunes (1969).

1645

O primeiro conceito aqui registrado, o efeito de geração, ocorre em um determinado tempo que compartilham os participantes uma mesma geração, estes desenvolvem os mesmos olhares a partir do contexto vivenciado, estão ligados enquanto comunidade de sentido pelos mesmos fatos sociais e suas representações. Assim para Mannheim ([1976], p. 153): Os indivíduos da mesma idade só estavam ligados e estão ligados como uma geração real se participam nas correntes sociais e intelectuais características da sua sociedade e período e se têm uma comum experiência ativa ou passiva das interações [..] Só falamos de uma geração como uma realidade quando se cria um laço concreto entre os membros de uma geração pelo fato de estarem todos expostos aos sintomas sociais e intelectuais de um processo de dinâmica de desestabilização”.

Essa ligação entre indivíduos, que mesmo podendo nunca se encontrar, vivem experiências semelhantes, torna-se possível devido a uma identidade de respostas pelo fato de que que todos são socializados a partir de experiências com referências em comum. Os efeitos de geração são associados às mudanças que ocorrem apenas naquela geração, ou atitudes, modo de se vivenciar aquelas relações. Neste sentido, Freitas (2005, p.06), afirma que “A noção de geração remete à ideia de similaridade de experiências e questões dos indivíduos que nascem num mesmo momento histórico, e que vivem os processos condicionantes das conjunturas históricas”. O segundo conceito, o efeito de idade, não está ligado ao um tempo específico, ou a um contexto histórico, mais sim à vivência de cada uma das fases da vida com suas características mais gerais e peculiares. São efeitos que não duram a vida toda e se concentram em aparecer de acordo com a fase da vida. Assim com o efeito de geração está ligado ao tempo longo; o efeito de idade, liga-se ao curto espaço de tempo.

1646

MUDANÇAS NAS PRÁTICAS: EFEITOS DE GERAÇÃO Há uma mudança na forma de se vivenciar as romarias, devido provavelmente ao efeito de gerações, os mais novos carregam sentido culturais que são próprios do seu tempo. Nenhuma outra geração esteve submetida ao conjunto de influências complexo que caracteriza a contemporaneidade. De fato, há uma mudança na atuação, uma forma de se vivenciar o sagrado e o profano, ou melhor, para efeitos destas considerações, o devocional e o lúdico. Levando em consideração que essas mudanças resultam de demandas de lazer que a nossa sociedade contemporânea produz, do enfraquecimento das práticas religiosas institucionalizadas, e também das novas formas de rituais que se desenvolvem sob forma de bricolages468 é compreensível que os significados das romarias de Juazeiro do Norte estejam sofrendo alterações. Essas mudanças vêm aos poucos alterando o cenário romeiro. A partir das falas dos informantes, percebe-se múltiplos condicionamentos em seus relatos, a partir das vivencias no decorrer do tempo na romaria, estas são difundidas por meio de interações geracionais e se apresentam como formas abrangentes de se vivenciar as romarias, ora aproximadas

das

dimensões

devocionais,

ora

sinalizando

deslocamentos de sentidos que são evocados por práticas lúdicas e de consumo. [...] minha mãe chama né, para i (ir) a missa, ai eu vou né neguinha, mais fico na parte de fora, conversando com meus amigos né, venho para Juazeiro, para comprar né, aqui tem muita coisa legal, gosto da praça [...] Pe: Cícero, tem shows de noite e de tarde eu visito os lugares que minha mãe quer ir né! [...] Eu não rezo muito, mais também não falo nada contra, venho para cá passear, tem vez, quando meu primo não fica muito no meu pé, aproveito para beijar, da minha família só vem eu e meu primo, mais vem umas amigas, que moram perto da minha casa, os mais velhos, ficam lá na missa, ai nós vem para a praça se divertir , né neguinha, tem que ser assim, 468

Sobre essa noção ver Hervieu-Lèger (2005)

1647

por que mãe fala que aqui é lugar santo, mais eu mesma não considero santo não, já vi tanta coisa, e o povo daqui é normal como nos.(I.M.S., feminino, 16 anos, entrevista concedida em fevereiro de 2012) [...] olha minha filha, tenho 52 anos, sabe por que venho todos os anos, não deixo de vim nunca, só quando meu Padim não permitir, por conta, que o mal existe,por que Deus quando criou o mundo, um anjo pegou o livro errado,o livro do mal, [...]Deus pode ver tudo, ele é um cordeiro com vários olhos, e sempre que eu preciso ele e o meu padim correm logo para atender, minha mãe me falava isso, é isso que acredito (M.A.O., feminino, 52 anos, entrevista concedida em fevereiro de 2012).

Há nos discursos uma ruptura nas formas de viver o sagrado, levando a uma disputa não apenas entre a categoria geracional, mais sim entre vários elementos que estão em jogo. Essas mudanças estão situadas mais fortemente nos contextos juvenis, pois são justamente os mais jovens que estão expostos as mudanças, favorecendo o conflito geracional e a mudança nas práticas. As mudanças que observamos com maior visibilidade dentro da romaria, se caracterizam pela forma de se viver a mesma. Há alguns anos atrás eram reduzidos os romeiros que em tempo de romaria, iam a clubes que ficam localizados em cidades vizinhas, festas no entorno das praças. Entre os que procuravam namoro, diversão, ou mesmo se embriagavam, estas experiências consistiam em aspecto reduzido dentro da experiência de romaria. Todos esses aspectos são bastante comuns na contemporaneidade e geradores de expectativas mais amplas em termos de distribuição em tempos de romaria. Em vários contextos de grupo é como se a prática devocional não passasse de um item numa longa lista de experiências a serem vividas nas romarias. Isso não quer dizer que esses efeitos, ocorrem entre jovens. Eles estão sendo transmitidos entre gerações. Os estilos tanto dos jovens como dos idosos vem sendo alterados, na medida em que ambas as gerações estão submetidas a processos mais amplos de influencias culturais, veiculadas pela mídia como estilos e experiências de vida que 1648

se deseja vivenciar. É certo que os jovens recebem esse processo com mais flexibilidade, entretanto isso não quer dizer que os idosos também não estão sendo submetidos a conjuntos semelhantes de demandas, assim por meios de elementos chaves, duas gerações conversam sobre os mesmos aspectos, de suas vivencias nas romarias. Eu venho para a romaria, para me divertir mesmo [...] eu sou de recife mais aqui é bom, sou evangélica, [...] vou nas igrejas com o povo que vem de recife, enquanto eles rezam eu tiro fotos, para levar para casa.[...]Só que não visitamos apenas as igrejas não, vamos nos clubes, tomar banho, conversar, rimos e dançamos[...] tem aqueles que não vão, que preferem ficar na pousada, se preparando para sair de noite, para a missa. Eu quando chego, quero tomar banho, e ir da uma volta na praça, lá tem uns bares, com musica ao vivo,[...] eu tenho 57 anos, minha filha, mais eu gosto de me divertir mesmo, já trabalho tanto, que sempre que posso me divirto sim.[...] tem um dia que saímos só para fazer comprar, andar no comercio, comprar umas lembranças para quem fico em casa que não pode vi.[...] minha filha, eu só uso verbo!comprar, dançar,divertir... só verbos. ( M.L.S, feminino, 57 anos, entrevista concedida13/09/2011)

Percebe-se a construção da fala desta romeira, que mesmo sendo evangélica, visita a cidade no tempo das festas, visita as igrejas, mesmo que estando em outro contexto social, a mesma a firmar que busca a cidade para o lazer e a diversão, mesmo já tendo uma idade mais avançada. A idade, não é um único elemento de classificação na contemporaneidade, mas sim um deles, pois com o crescimento de informações e oportunidades, gera gradativamente um universo, que não pode ser observado por um único viés, mais sim pelo o seu todo. Compreende-se que essas mudanças na forma de atuação dos jovens e idosos, estão diretamente associadas as demandas de crescimento do lazer, do entretenimento, onde a religião não é o único caminho para a felicidade, que não é mais pecado se divertir um pouco, que ser romeiro não esta mais ligado unicamente a imagem que se foi criada relacionada à penitência e devoção, que é possível vivenciar a romaria ligada ao sagrado sem deixar as práticas lúdicas. 1649

Com a receptividade das gerações a influências mútuas há um desdobramento de sentidos onde uma categoria interage com a outra, assim formulando um campo de significados ampliado. Com essa inter-relação entre as duas gerações, pode-se pensar na reconfiguração das experiências romeiras, onde o sagrado e o profano estarão cada vez mais imbricados um com o outro, assim borrando fronteiras entre o que é religioso e o que são práticas festivas e de diversão, dentro do campo de atuação romeira. De fato, embora o peso de manutenção das tradições recaia sob as gerações mais velhas que se alimentaram por mais tempo dos seus conteúdos, “as gerações estão num estado de constante interação” (MANHEIM, 1976, p.150). ROMARIA E SEU CENÁRIO ALTERADO Como já foi posto no decorrer desta comunicação, o cenário romeiro em Juazeiro do Norte – CE vem sendo transformado gradativamente no decorrer desses últimos 10 anos, esse fato não ocorre isoladamente, ou por consequência de um único fenômeno ou variável causal. Neste caso, não é possível deixar fora dessa análise as implicações da classificação das romarias como turismo religioso. Nos últimos anos, o crescimento do turismo religioso no tempo das romarias, vem ganhando um maior destaque entre os visitantes, que buscam a cidade para aproveitar a religiosidade dos fies, as festas e diversão ofertadas pela a indústria do turismo. Com os investimento nesse campo, as romarias ganham um novo repertorio, assim alterando os contextos em que eram assimilados a forma de ser romeiro. Os indivíduos que buscam a cidade, não estão apenas em busca de oração/ devoção, mais também em busca de sair de suas rotinas diárias, que no geral são rotinas cansativas e estressantes, sobre os quais, esperam ansiosos pelo o tempo festivo, para poderem esvaziar-se do cansaço de suas vidas. Essas formas de esvaziar-se de suas rotinas

1650

atingem

dos

mais

velhos

aos

mais

novos,

com

motivações

diferenciadas, mais buscando os mesmo fins. Contudo, as mudanças gradativamente que vem ocorrendo no campo

das

romarias,

decorrem

de

um

lado

de

influências

intergeracionais e de outro são decorrentes de uma transformação na forma de se percebê-la, tendo em vista inclusive as apropriações dos interessados em representa-la como evento do turismo religioso. Isto não quer dizer que essas mudanças sejam negativas, ou que terminariam de vez com as práticas tradicionais da vivencia do sagrado na romaria, mais sim dão elementos para a criação de um novo leque de situações, muitas das quais são demandas da própria sociedade e dos participantes. CONCLUSÃO As romarias, sendo um fenômeno de interação entre os seus participantes que interagem no campo, apresenta elementos que caracterizam e marcam não apenas a suas individualidades, mas também o seu coletivo. Suas representações agem como um mecanismo que modelagem entre eles. As juventudes e os idosos, a partir das transformações sociais que vem sofrendo, alteram esse mecanismo, pois cada um das duas gerações vem sofrendo influências da outra a partir das duas respectivas vivências. Os jovens, aos pouco estão corroborando para essa mudança que as romarias vem sofrendo, pois com a maior facilidade de absorção de novas ideias, e com um força de transmitir suas vontades, terminam assumirem a posição de elemento chave, tanto na alteração de demandas e consequente significados, quanto na sua reprodução entre as demais gerações envolvidas. A

partir

deste

estudo,

pudemos

constatar

as

influências

geracionais e perceber como os rituais e práticas romeiras estão se renovando por meio da reciprocidade de seus integrantes, e como as

1651

relações com o santo e a festa atualizam e mantêm tradições responsáveis pela manutenção das romarias. A devoção não é a única forma de participar das romarias, as festas seculares, são novos elementos que estão nesse fluxo de ofertas dentro desse campo. Essas vivências tornaram o campo das romarias, que ocorrem ano a ano, um espetáculo em que cada individuo a partir de suas experiências e dos seus meios sociais de origem, representam uma forma de ser romeiro e uma forma de se vivenciar as romarias que por ser representada publicamente exerce influencia entre os demais participantes..

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERGER, Peter L; O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulus, 1985. CORDEIRO, Maria Paula Jacinto. Entre chegadas e partidas – dinâmicas das romarias em Juazeiro do Norte. Fortaleza: IMEPH, 2011 FREITAS, Maria V. Ação educativa, juventude e adolescência no Brasil: referências conceituais. São Paulo: Ação Educativa,2005. HERVIEU-LEGER, Daniele. O peregrino e o convertido: a religião em movimento. Lisboa: Gradiva, 2005. (Coleção religião aberta). NUNES, A. Sedas. As gerações na sociedade moderna: conceitos e perspectivas gerais. In: Sociologia e ideologia do desenvolvimento. Lisboa: Moraes, 1969. P. 75-93. MANHEIM, Karl. O problema das gerações. In: Sociologia conhecimento, Vol. II. Porto: RES-Editora, [1976]. p. 115-176,

do

PAZ; Renata Marinho; Para onde sobra o vento – A igreja católica e as romarias de Juazeiro do Norte. Fortaleza: Editora :IMEPH, 2011

1652

POLÍTICA E RELIGIÃO AYAHUASQUEIRA

Janaína Alexandra Capistrano da Costa469

Resumo: A Ayahuasca é uma bebida psicoativa, milenar, de origem indígena e consumida originariamente, por populações da região amazônica. O Brasil é o único país dessa região, onde se desenvolveram religiões de viés cristão que fazem uso ritual dessa bebida, designadas religiões ayahuasqueiras brasileiras. Desde o seu surgimento, passando por sua consolidação e por um recente processo de expansão, essas religiões se relacionam com instâncias político-instituicionais do Estado buscando conquistar formas de reconhecimento e inserção, bem como tecer denominadores comuns de convivência com a sociedade mais ampla. O objetivo deste artigo é delinear um panorama dessas relações e das controvérsias aí geradas, com destaque para o Santo Daime, ao longo de mais ou menos um século de convivência. Para tanto se lançou mão da análise histórica e documental, tendo como horizonte a problematização do principio de liberdade religiosa e da separação entre Estado e Igreja previstos pelo paradigma da secularização. Observou-se nesse trajeto, a produção de diferentes formas de presença pública dessas expressões da dimensão religiosa.

Palavras Chave: Religião – Ayahuasca - Política

INTRODUÇÃO

A partir das primeiras décadas o século XX, o campo religioso nacional foi dotado de um fenômeno bastante singular formado pelas religiões ayahuasqueiras brasileiras, o Santo Daime, a Barquinha e a União do Vegetal. As quais recebem tal denominação em virtude do fato de fazerem uso ritual da Ayahuasca470. 469

Graduada em Ciências Sociais (UNESP), Mestrado em Sociologia (UNESP) com Intercambio em Ciências Políticas (Universidade do Chile), Doutora em Ciências Sociais (UFRN). Professor Assistente (UFTO) 470 A ayahuasca é uma bebida com propriedades psicoativas e de origem indígena que é produzida a partir da fervura de dois vegetais, o cipó Banisteriopsis Caapi e a folha do arbusto Psichotrya Viridi. Ela é ingerida durante os rituais das chamadas religiões ayahuasqueiras brasileiras (Labate, 2005:398).

1653

Sobre esse fenômeno, vem se desenvolvendo ao longo dos anos uma gama de estudos em diversas áreas acadêmicas, tais como farmacologia, biomedicina, ciências humanas e artes, ao mesmo tempo em que organismos estatais, meios de comunicação, grupos religiosos e associações civis, vêm se pronunciando publicamente sobre o tema e dessa forma revelando sua perspectiva sobre ele (Labate, 2008: 28). Em tal contexto, esses atores atestam sua presença pública envolvemdo-se em controvérsias através das quais contribuem para a definição de um denominador comum para a convivência entre a minoria religiosa em questão e a sociedade mais ampla. No primeiro semestre do ano de 2010, um debate envolvendo a opinião pública, o Estado e as religiões ayahuasqueiras ganhou notoriedade a partir de dois acontecimentos. O crime contra as vidas do cartunista e dirigente do Santo Daime Glauco Villas Boas e de seu filho Raoni e a tentativa -em certa medida incitada pela incidência desse primeiro fato- do Deputado Federal Paes de Lira do PTC (Partido Trabalhista Cristão) de São Paulo, de suspender a Resolução n.º 1 do CONAD (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas) de janeiro de 2010, que autoriza e regula o consumo da Ayahuasca no Brasil (Labate, 2010a, 2010b, 2010c, Lira, 2010, CONAD, 2010). A discussão sobre a proposta do Deputado, o Projeto de Decreto Legislativo 2491/10, se deu através de audiência pública da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado. Da qual participaram representantes das entidades religiosas ayahuasqueiras e membros da equipe do Grupo Multidisciplinar de Trabalho, que pesquisou sobre o assunto e cujo relatório final foi incorporado na íntegra pelo CONAD no embasamento de sua decisão. Na ocasião dessa discussão, o juiz federal do Acre Jair Araújo Fagundes, relator do GMT Ayahuasca, afirmou que a proposição de tal suspensão poderia agravar os problemas concernentes ao uso religioso do psicoativo em tela, “Se você tira a resolução do CONAD, você tem um grande vácuo, você tem uma definição muito abstrata, muito genérica: uso religioso”. 1654

Paes de Lira, por sua vez, finalmente admitiu a necessidade de aprofundar o seu conhecimento a respeito da temática para levar adiante a proposta, e esboçou os alcances de sua concepção de liberdade religiosa em relação ao caso afirmando: “uma coisa, no entanto, se põe de manifesto: há necessidade de maior controle pelo estado brasileiro” (Prado, 2012, grifo meu). Assim, em 12 de janeiro de 2011 o PDL 2491/10 foi arquivado definitivamente pela Câmara de Deputados de Brasília na Presidência do Deputado Marco Maia471. Antes disso, no entanto, a Federação Goiana da Ayahuasca (FEGAYAH) apresentou à Comissão de Legislação Participativa da Câmara Federal a Sugestão 246/2010, que sugeriu a realização de reunião de audiência pública para discutir o tema: Uso religioso da Ayahuasca: soluções responsáveis para uma legislação federal. Uma das justificativas apresentadas pela Federação para veicular esse pedido de audiência constituiu-se na ameaça que a proposição do PDL 2491/10 teria representado para a legitimação do uso religioso da citada

bebida.

Caberia,

portanto,

inaugurar

um

processo

de

legiferação para garantir a liberdade religiosa no relativo a essa prática. Contudo, a despeito de a garantia de uma Lei, e não apenas de uma Resolução, ser de interesse de um conjunto de atores representativos do uso da ayahuasca e das religiões brasileiras ayahuasqueiras, a audiência pública que fora marcada inicialmente para o dia 15 de dezembro de 2011 foi cancelada e a discussão foi adiada sem previsão de data para voltar à pauta472.

471

A legitimidade do uso da ayahuasca foi institucionalmente questionada em duas outras ocasiões. Entre 1985 e 1987, quando a bebida foi colocada na lista de substâncias proscritas pela Divisão de Medicamentos do Ministério da Saúde e logo retirada, e no inicio da década de 1990 quando seu uso foi colocado em xeque após uma denúncia anônima. Diante disso, em 1991, as religiões ayahuasqueiras publicaram uma “Carta de princípios das entidades religiosas usuárias do chá hoasca”, na qual explicitaram os parâmetros que seguem para o consumo. Em ambos os casos foram elaborados pareceres técnico-científicos que sustentaram a liberação regulada da Ayahuasca. Mas, ainda de acordo com Labate (2004, p.97, 2011), não existe uma garantia efetivamente legal para o uso dessa substância, estando este uso sujeito a pressões políticas e conjunturas de governo. 472 Por meio de um documento público as entidades religiosas ayahuasqueiras manifestaram em 1991: “A regulação do uso do chá Hoasca, através de lei, aprovada pelo Congresso Nacional, é objetivo permanente das entidades signatárias desta Carta de Princípios.” Contudo, a FEGAYAH não fez parte dos signatários

1655

Tal adiamento ocorreu, após a Deputada Marina S’antanna, do PT/GO e segunda relatora da Sugestão, ter sido procurada por diversas entidades ligadas ao tema proposto que solicitaram a ampliação do debate e o aprofundamento da abordagem sobre o problema antes da realização do evento. Seguramente, uma forte razão para essa mobilização pela paralisação da SUG 246/2010 ter ocorrido foi a falta de representatividade da FEGAYAH, que introduzira a Sugestão na Câmara. O Deputado Pedro Wilson também do PT/GO, primeiro relator da matéria, requerera que fossem convidados para a audiência representantes da Federação Paulista da Ayahuasca (FEPAY), da Religião da Fraternidade Universal, do GMT Ayahuasca (CONAD), da Assistência Judiciária do Distrito Federal e, ainda, dos Representantes da “Escuela Inkari de Medicina Tradicional”, tanto no Brasil quanto na Bolívia. (Wilson, 2012:4). Logo, revelou-se aí uma incoerência política, pois com exceção dos representantes do organismo estatal, o convite não se estendeu a nenhum dos demais atores participantes ativos dos cerca de trinta anos de diálogo, pesquisa e negociação, através dos quais foi possível reconhecer a legitimidade da Ayahuasca no Brasil 473. Nesse esboço inicial sobre a controvérsia que gira em torno ao uso religioso da Ayahuasca, é relevante notar ademais o fato de seus desse documento e permanece alheia ao grupo formado por estes, o que revela haver no momento uma cisão entre os interessados na legiferação do uso da Ayahuasca (CARTA, 2010). 473 A cronologia da SUG 246/2010 é a seguinte; 01/12/2010 foi apresentada à Comissão e foi designado seu relator o Deputado Pedro Wilson, seis dias depois em 07/12/2010 este emitiu seu parecer, em 18/05/2011 foi designada segunda relatora a Deputada Marina S’antanna, que em 07/11/2011 apresentou o segundo relatório, aprovado em 09/11/2011, marcando-se a reunião pública para o dia 15/12/2011, que foi adiada. É interessante observar como os relatórios desses Deputados, sobretudo o primeiro, foram elaborados com grande rapidez se considerada a amplitude do assunto e como seus textos citam as comunidades tradicionais amazônicas do uso da ayahuasca a fim de legitimar seus argumentos, mas não as convidam para o debate institucional. A lista do grupo virtual pesquisadores_da_ayahuasca se movimentou intensamente nos dias que antecederam dito adiamento. As opiniões que circularam foram desfavoráveis à proposição encaminhada pela FEGAYAH, o conteúdo de um dos principais e-mails encaminhados constituiu-se num modelo de mensagem a ser enviada para os deputados relatores do projeto e que solicitava o adiamento da discussão, afirmando que “o requisitante dessa “Audiência Pública” da ayahuasca, que se afirma dirigente de uma “Federação Nacional” de grupos ayahuasqueiros, não tem representatividade nem legitimidade para falar em nome das religiões brasileiras que fazem uso da ayahuasca.” (Mensagem: Aos dirigentes e participantes de organizações ayahuasqueiras, [email protected], 2011, grifo da mensagem). Note-se que tanto os deputados relatores da SUG 246/2010 quanto a sugerente FEGAYAH são representantes do estado do Goiás. Enquanto que as religiões ayahuasqueiras brasileiras nascem na Amazônia acreana e rondoniense. O que sugere a existência de uma cisão regional em torno do reconhecimento.

1656

desdobramentos terem adentrado o âmbito do Judiciário como uma referência consolidada para debates mais amplos. Como indica a argüição do Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso Melo, por meio da qual em meados de 2011 expressou voto a favor da autorização para a realização de manifestações públicas, em prol da discussão sobre a (des)criminalização da Cannabis Sativa. Durante a polêmica de alcance nacional suscitada pela chamada “Marcha da Maconha” e no ínterim das discussões jurídicas sobre o caso, Celso Mello admitiu a necessidade de se relevar aspectos como o uso ritual e sacramental de substâncias psicoativas. Pois, de acordo com o Ministro, há uma relação intrínseca entre esse uso e o postulado fundamental da liberdade religiosa e, além disso, o país já conta com uma experiência institucionalizada de regulação nesse sentido, a qual está expressa na Resolução N 1 de 2010 do CONAD. Sobre a qual ele afirmou:

A Resolução em causa, ao assim definir o tema, preserva a liberdade religiosa, cujo conteúdo material compreende, na abrangência de seu amplo significado, dentre outras prerrogativas essenciais, a liberdade de crença (que traduz uma das projeções da liberdade de consciência), a liberdade de culto, a liberdade de organização religiosa, a liberdade de elaboração de um “corpus” doutrinário e a liberdade contra a interferência do Estado, que representam valores intrinsecamente vinculados e necessários à própria configuração da idéia de democracia, cuja noção se alimenta, continuamente, dentre outros fatores relevantes, do respeito ao pluralismo (Mello, 2012, grifo meu).

Nesse processo, a Associação Brasileira de Estudos Sociais do Uso de Psicoativos –ABESUP foi admitida como Amicus curiae da corte, ou seja, como uma terceira parte interessada dotada de legitimidade e representatividade adequada para oferecer informações e pareceres a respeito do assunto em pauta. (Mello, 2012; Supremo, 2012)

474.

Em

relação a participação da ABESUP nesta qualidade, dois fatos chamam a atenção, o fato de enquanto instituição ela também ter participação 474

Esse processo pode ser encontrado em; .

1657

ativa no processo de regulamentação da Ayahuasca no Brasil, além do fato de ser composta por alguns dos principais pesquisadores do uso religioso deste psicoativo no Brasil e no mundo 475. Esse quadro suscita interrogações acerca das formas de presença pública das religiões ayahuasqueiras. Um primeiro ponto evidenciado é o de que, embora seja corrente a idéia de que essas religiões estão presentes publicamente apenas nos meios de comunicação e na opinião pública em ocasiões esporádicas de maior destaque, a sua expansão e o seu comparecimento em diferentes instâncias decisórias e canais de participação sugere a ampliação e a diversificação dos modos de sua presença. Destaca-se a presença no processo de regulação proposto pelo Estado via CONAD; além dos limites deste canal, porém, a participação ultrapassa a forma de articulação entre Estado e sociedade civil orquestrada exclusivamente pela institucionalidade política vigente, pois atua com vitalidade em outras dimensões como, por exemplo, as organizações de natureza civil.

Essa realidade é pouco conhecida da

sociedade que, ao ignorá-la, fica sujeita a toda sorte de preconceitos, dificultando a formação de denominadores comuns de convivência. Trata-se de uma dialógica que ao mesmo tempo em que abriga grandes controvérsias, produz a presença da Religião no interior da ordem jurídica estatal secular, não necessariamente em oposição a esta, mas recorrentemente compromissada com facetas da laicidade nos regramentos com que se apresenta. Nesse sentido, cabe problematizar

a

austera

separação

e

diferenciação

entre

as

concepções de religioso e secular, tal como sugere Talal Asad (apud Giumbelli, 2008, p.82). Em contraste com a perspectiva do paradigma da secularização, tal problematização permite perguntar: Como o Estado exerce controle sobre as religiões? Em que sentido incide esse controle e sobre qual definição de religião? Se o Estado, como zelador 475

De onde se destacam Edward MacRae, Beatriz Cauby Labate e Isabela Lara Oliveira, todos possuidores de estreita relação com o Santo Daime.

1658

da saúde e da ordem publica, deve estabelecer parâmetros deontológicos para as religiões que fazem uso sacramental de substâncias psicoativas, como fazê-lo sem comprometer o exercício do principio de liberdade religiosa? Que elementos devem nortear e como deve ser produzido tal controle? O presente artigo não oferece respostas definitivas a essas perguntas, mas persegue o objetivo de apresentar argumentos que possam enriquecer essa reflexão.

PANORAMA DAS RELAÇÕES ENTRE POLÍTICA E RELIGIÃO AYAHUASQUEIRA

A seguir, no desenho do panorama das relações entre o Estado brasileiro e as religiões ayahuasqueiras, em alguns momentos se da maior destaque ao Santo Daime. Porque no conjunto dessas religiões, esta foi a primeira a surgir no país por volta do inicio da década de 1930. Desse modo, até o tempo presente, decorreu um período de mais ou menos um século, o que lhe aufere um protagonismo histórico significante na controvérsia em tela. Tal realidade possibilita verificar também a dinâmica dessas relações num continuum temporal, seus pontos de influxo e termos. Por fim, em comparação com a UDV e a Barquinha o Santo Daime é a religião que possui mais evidência pública, fato ao qual está relacionada sua ampla expansão ocorrida a partir da década de 1980, tanto em território nacional quanto em território internacional476, e que incide nos modos de sua presença pública477. 476

Vale notar que o Brasil é o único país do território amazônico onde surgiram religiões de ordem cristã que fazem uso ritual da Ayahuasca. Logo, trata-se aqui de fenômeno em sua gênese singular à sociedade brasileira, embora atualmente outros países tenham lidado com a questão em virtude da expansão internacional do Santo Daime. Esta religião está presente hoje em países tais como: Uruguai, Argentina, Chile, México, EUA, Inglaterra, Itália, Espanha, Alemanha e Japão (Labate, 2005: 398). 477 Ver, sobretudo, o subtítulo “o Santo Daime a UDV e os meios de comunicação” em Labate (2005: 435-441). Em relação à tragédia que ceifou a vida de Glauco, por exemplo, porta vozes da religião foram instados a se posicionar publicamente face à publicação de reportagens sensacionalistas e à ameaça de suspensão da resolução 01/2010 do CONAD. Por outro lado, em março de 2012, a cidade de Osasco em

1659

Até o momento, o principal resultado institucional gerado no bojo dessa controvérsia, tanto para as religiões ayahuasqueiras, quanto para o Estado e a sociedade em sua relação com esse fenômeno religioso, foi a Resolução N 1 do CONAD. Por meio desse documento, o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas define parâmetros deontológicos que considerou compatíveis com o uso religioso da Ayahuasca, e que sevem de guia para outros órgãos da Administração Pública ou entidades da sociedade civil. A sua principal deliberação consiste em afirmar “que não pode haver restrição, direta ou indireta, às práticas religiosas das comunidades, baseada em proibição do uso ritual da Ayahuasca”.

Esta e as demais disposições que abarcam aspectos

tais como feitura e distribuição do chá, limitações para propaganda e venda e normas para acesso e divulgação, possuem como anteparo duas grandes referências, o relatório do Grupo Multidisciplinar de Trabalho Ayahuasca e a posição do INCB (International Narcotics Control Board) de não considerar nem a bebida e nem as plantas que a compõe objeto de controle internacional478. O CONAD é um órgão normativo vinculado ao Ministério da Justiça e responsável pela definição de orientações às ações dos órgãos do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas SISNAD no que diz respeito à prevenção e repressão às drogas bem como à reinserção social de usuários479. Em relação ao papel que cumpriu nesse caso, a natureza de sua função pode indicar que para o Estado o problema central em torno do qual a polêmica com as religiões ayahuasqueiras gravita é antes de tudo, o consumo da bebida psicoativa pelos fiéis e seus possíveis efeitos negativos sobre a São Paulo criou o Parque Glauco Vilas Boas em homenagem ao cartunista que residia e era líder de uma Igreja daimista nesta cidade. Há inúmeros outros episódios que atestam os desdobramentos da visibilidade adquirida pela religião, mas “a despeito de alguns estudos acadêmicos sérios, a imagem pública do Santo Daime permanece invariavelmente pejorativa, quase que alheia às categorias classificatórias disponíveis na sociedade mais ampla. Boa parte da incompreensão e preconceito com relação ao grupo se deve, provavelmente, à ação da própria imprensa”. 478 (CONAD, 2010a) 479 O CONAD passou a compor o Ministério da Justiça em maio de 2011, antes disso fazia parte do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República. Mais informações sobre o órgão podem ser encontradas em:< http://www.obid.senad.gov.br/portais/CONAD/index.php>

1660

manutenção da saúde e da ordem pública. Há, portanto, nessa visão, uma forte conotação biomédica e jurídica. Como se poderá notar adiante, a abordagem institucional não se deteve a essa perspectiva, mas ampliou o seu olhar incluindo demais aspectos do culto religioso, referentes à sua população, origem e tradição. A primeira operação direta e planejada de um agente estatal nas comunidades do Santo Daime se deu em 1982 com a visitação de uma comissão de investigação. A qual fora organizada pelo Ministério da Justiça e composta por agentes da Policia Federal, do Exército e mais quatro profissionais, um psicólogo, um antropólogo, uma historiadora e um sociólogo. A formação desta comissão, segundo depoimento do Psicólogo Paulo Roberto Silva e Souza que intermediou a comunicação entre os grupos de pesquisadores e de fiéis, resultou de um debate entre duas propostas, a de uma avaliação estritamente policial e a de uma avaliação combinada que relevasse aspectos culturais da questão, onde venceu a segunda proposição480. Em decorrência desse primeiro trabalho,

não

houve

interdição

oficial

às

práticas

religiosas

ayahuasqueiras481. Mas apenas três anos depois, a Divisão de Medicamentos (DIMED) do governo federal incluiu as espécies utilizadas na cocção do chá Ayahuasca na lista de substâncias proscritas no Brasil, ao expedir a Portaria 02 de fevereiro de 1985482. 480

“havia sim uma diferença cultural de encarar a vida, diferenças que precisavam ser examinadas, então a partir daí eu propus que pudesse ser constituída, não detetives, policiais, pessoas assim não, psicólogos, médicos, antropólogos, sociólogos, historiadores, botânicos, ai sim a gente pode apurar a verdade, porque se é uma comunidade que usa uma droga e fica drogada, gente vai lá e nós vamos ver uma bagunça, vamos ver uma confusão, nós vamos ver uma situação de degenerescência na estrutura pessoal, na estrutura familiar, na estrutura de produção, na estrutura comunitária, então eu propus que a verdade pudesse ser apurada por cientistas, e foi o que realmente aconteceu, em dezembro de 1982 eu vim trazendo essa comissão ao Rio do Ouro” (Daime Santa Maria, 2011) 481 O filme de Noilton Nunes e Gigi Abreu intitulado “Daime Santa Maria” e produzido com o apoio da FUNART, com pesquisa de Vera Froés e Fernando La Roque, mostra cenas da chegada dessa Comissão ao Seringal Rio do Ouro AC onde residia a comunidade daimista do Padrinho Sebastião no momento em que um dos fiéis, Lucio Mortimer, lê em voz alta para vários membros, incluindo o líder religioso, a obra Os Sertões de Euclides da Cunha, num claro sinal de resistência. 482 Embora a Portaria publicada no Diário Oficial em 13 de março de 1985 tenha usado textualmente as seguintes palavras: “Banisteriopsis caapi (cipó de chinchona ou chacrona ou mariri) – produtos obtidos da planta [no singular] ou de suas partes”; a forma como define a espécie entre parêntesis revela confusão entre as espécies. A definição correta para as espécies são: para o cipó Banisteriopsis Caapi e para a

1661

A forma como a DIMED agiu e se pronunciou nessa ocasião parece ter sido irrefletida no que diz respeito ao conhecimento sobre a substância, seus componentes e o seu contexto de ingestão. Mais um agravante de sua postura, como sugere Labate (2005: 415) foi o fato de não ter submetido a proscrição ao crivo do antigo CONFEN, hoje CONAD, já que era um órgão subordinado a esta instância.

Tal

situação, associada a uma petição encaminhada pela UDV (União do Vegetal), instou o Conselho de Entorpecentes a promulgar a Resolução Nº 4 de 30/07/1985, que criou um Grupo de Trabalho para “examinar a questão da produção e consumo das substâncias derivadas daqueles vegetais, em todos os seus aspectos”

483.

E meses depois a Resolução Nº

06 de 04/02/1986 que suspendeu provisoriamente os efeitos da Portaria 02/85 da DIMED484. O Relatório final do grupo de trabalho então instaurado apresentou em agosto de 1987 um parecer favorável à exclusão definitiva da Ayahuasca e de seus componentes da lista de substancias proscritas. Anos mais tarde, em reunião ordinária de 2 de junho de 1992 o Conselheiro do CONFEN Domingos Bernardo G. da Silva Sá argumentou a favor da manutenção dessa posição, sublinhando que durante

todo

sistematicamente

o

período as

em

comunidades

que

o

Estado

ayahuasqueiras,

acompanhou elas

tinham

demonstrado possuir mecanismos internos de controle suficientemente eficazes e que qualquer interferência mais incisiva desse aparato neste arranjo seria, por conseguinte, indevida, desnecessária e poderia, inda, criar problemas485. Argumentos estes coerentes com o conteúdo da Carta de princípios das entidades religiosas usuárias do Chá Hoasca de 1991, texto onde as próprias religiões explanam alguns desses mecanismos e se comprometem em segui-los. Essa consonância sugere

folha Psichotrya Viridi, no vocabulário científico, ou popularmente cipó jagube, ou mariri, e folha chacrona ou rainha. 483 (CONFER, 2010c) 484 (CONFER, 2010b) 485 (CONFER, 2010c)

1662

a adoção se não de uma política, pelo menos de uma postura política de reconhecimento público da minoria religiosa em questão. Enquanto que a publicação da Carta informa uma disposição em estabelecer compromisso com o Estado e a sociedade. O

reconhecimento

fundamentais

no

e

jogo

o

compromisso

político

que

toca

constituem o

idéias

problema

do

multiculturalismo. Se uma sociedade possui minorias desfavorecidas e marginalizadas caracteristicamente religiosas, uma política multicultural exigirá políticas públicas que representem o exercício prático dessas idéias com estas minorias. Isso conduz a pensar sobre as relações e os vínculos estabelecidos entre o Estado e a religião sugerindo a pertinência de um secularismo moderado, tal como Giumbelli (2008: 95,96) propôs. No transcorrer da década de 1990, o grande ponto nodal sobre o qual o CONFEN deveu se posicionar constituiu-se no problema da participação de menores de idade nos rituais. Em 1995 e em 1997 o órgão recomendou que a Ayahuasca não fosse ministrada para menores de idade e portadores de distúrbios mentais. Entretanto, por não possuir força de lei o posicionamento não dirimiu por completo a questão que ficou, assim, sujeita à judicialização dependendo da conjuntura dos conflitos que emergirem. Um dos argumentos jurídicos possíveis consiste em afirmar que esse ponto deve ser regulado pelo direito privado previsto no código civil, porque nele se ancora o pátriopoder que garante aos pais o direito de oferecer educação aos filhos em todas as dimensões, incluindo a religiosa. Por outro lado, argumentase que o Estado possui mecanismos para suspender o pátrio-poder nos casos em que compreender que há dano ao menor de idade (Labate, 2005: 414,415). Outro

ponto

de

tensão

que

ganhou

contornos

político-

institucionais já no final dos anos 90 está ligado ao acréscimo na produção

de

Ayahuasca

decorrente,

em

grande

medida,

do

crescimento do número de fiéis. A variação no consumo exige maior 1663

quantidade de matéria prima para a cocção do chá, com efeito, uma maior acessibilidade a esta e o aumento do tráfego desse material. Isso, sem contar com os ajustes necessários na feitura e na distribuição do produto final. Do ponto de vista religioso, essas atividades estão demarcadas simbolicamente por um ritual, que no caso do Santo Daime recebe o nome de Feitio. Logo, cabe perguntar a propósito da liberdade e dos limites desse processo, visto que nele ao mesmo tempo em que se deve lidar com a problemática do meio ambiente enquanto bem público, se deve considerar o exercício pleno da religião e o reconhecimento de uma tradição cultural. A chegada a um bom termo depende da participação dos interessados e de uma boa política tanto pública quanto institucional, pois esta deve permitir o entrecruzamento de saberes e especialidades486. O IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) vem atuando concretamente na regulação da extração e do transporte das espécies de cipó e folha utilizadas, através da Portaria nº 117 de 17 de agosto de 1998 e da Portaria nº 4, de 16 de outubro de 2001. Documentos que exigem das entidades religiosas um cadastro junto ao órgão onde deve constar CNPJ, dados do representante legal, numero de filiados, media de consumo, media de feitios, media de litros obtidos, media da quantidade de cada espécie utilizada, reposição florestal, dentre outros pontos. Este cadastro deve ser anual e subsidia a concessão ou não do “Requerimento para coleta, transporte e armazenamento de produto florestal para fins religiosos (cipó Banisteriopsis caapi e folha Psychotria viridis)”487. É importante denotar, como informa Labate (2005: 426,429), que essa atuação não se deu unilateralmente, pois foram feitas reuniões entre representantes dessa instituição e das entidades ayahuasqueiras em Rio Branco AC. Oportunidades em que se discutiu

486

O pesquisador Edward MacRae, integrante da Câmara de Assessoramento Técnico e Científico sobre o uso da Ayahuasca alertou no relatório de 2004 que não obstante a legalização do uso religioso da Ayahuasca, existem inda outras maneiras de coibir as atividades e a expansão das religiões que fazem uso ritual da bebida como, por exemplo, dificultar e burocratizar a produção e distribuição de seu sacramento. 487 (IBAMA, 2011)

1664

sobre fiscalização, extração e manejo das espécies. Segundo a autora, o controle sobre as plantas e seu transporte era um anseio apresentado pelas próprias entidades, que temiam o tráfico e o comércio ilícito. Esse sentimento desvela que se existe desconfiança sobre essas religiões representarem ou não uma ameaça ao corpo social, do mesmo modo representantes dessas religiões se sentem ameaçados no seu modo de vida, especialmente diante de eminentes apropriações e deturpações de seu patrimônio. Ao adentrar o novo milênio a situação do uso religioso da Ayahuasca ainda era instável no país. Não existia uma Lei ou uma medida administrativa específica destinada a regular claramente essa prática. Em 2002, mais precisamente no último dia do governo de Fernando Henrique Cardoso 31 de dezembro, o CONAD determinou a criação de uma comissão para sanar essa deficiência488. Com o inicio do governo Lula e a reestruturação institucional da conjuntura, entretanto, o trabalho foi assumido pela recém formada Câmara de Assessoramento Técnico e Científico sobre o uso da Ayahuasca. Esta, em parecer técnico apresentado em agosto de 2004, reiterou a liberdade do uso religioso do chá. Dois meses depois esse parecer foi aprovado pelo Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas que na mesma oportunidade, também criou o Grupo Multidisciplinar de Trabalho Ayahuasca, cujo objetivo final seria a elaboração de um documento que traduzisse a deontologia do uso da ayahuasca 489. Diferentemente das experiências anteriores, em meados de 2005 o GMT Ayahuasca definiu sua composição como sendo seis membros designados pelo Governo Federal entre representantes institucionais e expertos no tema, mais seis membros eleitos pelas próprias entidades religiosas. Esta participação direta permitiu que a noção de uso religioso

488

Resolução N 26 31/12/2002 (CONAD, 2010b). Segundo o relatório do GMT Ayahuasca apresentando em 2006 essa retomada se deveu ao impacto de denuncias de uso inadequado da bebida feitas, sobretudo, por parte da imprensa. O relatório informa também que não há nenhum registro de que este grupo tenha sido efetivamente formado. 489 Resolução N 05 4/11/2004 (CONAD, 2010c).

1665

da ayahuasca, por exemplo, fosse delineada a partir do lugar de onde provém esse discurso. Isso incidiu decisivamente no formato do relatório apresentado pelo grupo em novembro de 2006 e aprovado na íntegra pelo CONAD em 2010. No percurso desde a primeira investida em 1982 até este acontecimento manifesta-se a gradativa mudança no padrão de relações

entre

a

esfera

político-institucional

e

as

religiões

ayahuasqueiras. Se for verdade que pode ser considerada tênue tendo em conta o tempo transcorrido e as idas e vindas institucionais, de qualquer maneira essa mudança revela uma progressiva conotação na participação dos interessados e na dimensão cultural presente no fenômeno religioso. O texto final do CONAD é expressivo disso: d) deve ser reiterada a liberdade do uso religioso da Ayahuasca, tendo em vista os fundamentos constantes das decisões do colegiado, em sua composição antiga e atual, considerando a inviolabilidade de consciência e de crença e a garantia de proteção do Estado às manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, com base nos arts. 5 o, VI e 215, § 1o da Constituição do Brasil, evitada, assim, qualquer forma de manifestação de preconceito. [...] 23- A correta identificação do que é uso religioso, segundo os conceitos e práticas ditadas, a partir das próprias entidades que fazem uso da Ayahuasca, permitirá assegurar a proteção da liberdade de crença prevista na Constituição Federal. [...] 24- Trata-se, pois, de ratificar a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca como rica e ancestral manifestação cultural que, exatamente pela relevância de seu valor histórico, antropológico e social, é credora da proteção do Estado, nos termos do art. 2 o, "caput", da Lei 11.343/06 (6). e do at. 215, §1º, da CF. (CONAD, 2010a, grifo meu).

Assim, a dimensão regulatória do ente estatal aparece como conseqüência do jogo democrático e como garantia de direitos relativos aos princípios fundamentais de liberdade e igualdade. Historicamente, a trajetória das relações entre Estado e Religião no Brasil conformou um regime onde se combinam a ausência de um

1666

ordenamento jurídico especifico para a categoria religião, atendimento a expectativas de auto-regulação com poucas restrições e, por fim, formas de regulação indireta do religioso (Giumbelli, 2008: 83-87). O que parece se alterar é a tonalização que adquire esse regime em cada contexto. A luta pelo reconhecimento dos cultos mediúnicos, por exemplo, indica que a ausência de uma categoria não impediu que estes sofressem injustiças por não serem considerados religiões, tanto por parte da sociedade quanto por parte do poder público. É impossível negar também, que a auto-regulação significou na maioria das vezes para os grupos religiosos minoritários o imperativo de criar meios de resistência e sobrevivência, como foi com os cultos de origem afro. A partir do histórico do Santo Daime, nomeadamente, é possível vislumbrar como se deu essa variação nas tintas que colorem dito regime de maneira adjacente à variação nas formas de presença pública que essa religião encontrou aí. Isso não só durante os últimos trinta anos, como foi visto. Voltando-se um pouco mais no tempo é possível identificar entre as décadas de 1970 e 1980 um expressivo ponto de inflexão nas relações entre os daimistas e a política do ponto de

vista

político-institucional.

Esse

ponto

localiza-se

entre

dois

panoramas diferentes de relações. Um deles compreende o ínterim onde se formou e se consolidou essa religião e outro está demarcado pela expansão e reconhecimento desta. A passagem de um a outro coincide com três acontecimentos que devem ser levados em conta para se compreender melhor esse ponto. O primeiro deles corresponde às transformações que o próprio Santo Daime operou em seu interior ao se dividir em duas grandes linhas, uma delas qualificada como linha do Alto Santo e que se restringe mais ao estado do Acre e a outra conhecida como linha do CEFLURIS (hoje ICEFLU) e que é responsável pelo crescimento do número de centros filiados e fiéis. Tal cisão ocorreu após o falecimento do fundador da religião Raimundo Irineu Serra em 1971 e foi liderada por Sebastião Mota de Mello em 1974, que acompanhado por mais de uma 1667

centena de fiéis registrou legalmente um novo núcleo com o nome de Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra provido de estatuto próprio490. À diferença do Alto Santo este agrupamento absorveu influencias da contracultura, do modo de vida inspirado no sistema comunitário, da umbanda e do experimentalismo vegetalista. Tais influencias foram determinantes para que um grande número de centros fora da região amazônica se organizassem em comunidades rurais e se envolvessem com organizações civis atuantes e de caráter social e ambiental. O segundo fato é a reconfiguração da política de combate ao uso ilícito de substancias psicotrópicas. De acordo com Goulart (2008: 264, 279) entre os decênios de 1960 e 1980 o país dinamizou uma sistemática política de repressão ao uso de drogas que afetou as relações

entre

os

cultos

ayahuasqueiros

e

as

instituições

governamentais. O relevo adquirido por essa temática ocorreu em função do cenário internacional onde as convenções de 1961 e 1972 da ONU, submetidas a uma forte influencia dos EUA, impunham aos países signatários o aumento do controle sobre o comércio das drogas com fins médicos e classificadas como legais e sobre o tráfico das tidas como ilegais. Em terceiro lugar, o cenário político da época era marcado pela transição à democracia. Fervilhavam questões concernentes à volta do estado de direito, sobre como o modelo republicano iria se efetivar, sobre quais seriam as formas de participação, sobre justiça para com o passado e, sobretudo, atinentes às liberdades e igualdades política e social. Nesse ambiente teria ocorrido uma guinada cultural, explicada pela “emergência da temática cultural como objeto de debate público e político e como elemento nucleador de formas de ação coletiva”. 490

Muito provavelmente em virtude de disputas internas a essas linhas hoje esta linha recebe a designação de Igreja do Culto Eclético da Fluente Luz Universal Patrono Sebastião Mota de Melo. A designação da religião como Santo Daime, por sua vez, foi preteria pela linha do Alto Santo que prefere ser chamada de religião do Daime simplesmente. É importante frisar, contudo, que as diferenças entre essas linhas não as transformam em religiões diferentes como o são a UDV e a Barquinha a despeito de todas serem ayahuasqueiras.

1668

Nesse sentido, o reconhecimento das diferenças sociais passou a ser encarado como peça fundamental da democracia. Por ai, o discurso republicano radicalmente laico foi perdendo terreno para fronteiras mais tênues com os discursos multiculturalista e religioso (Burity, 2008: 88,89). Esses acontecimentos ajudam a compreender a dinâmica do processo de reconhecimento e regulamentação ocorrido depois desse ponto de inflexão. Com a expansão vieram a tona a visibilidade e os desafios que a convivência com o fenômeno impõe, desse modo, este que antes representava mais uma questão de caráter regional passou a ter relevância nacional e internacional. A estranheza e as incertezas despertadas pelo consumo cotidiano do psicoativo, na condição de sacramento religioso e no seio da cultura capitalista, trouxeram como reação a rápida associação desse consumo ao mundo profano das drogas. Os envolvidos, no entanto, puderam até agora afinar seus discursos e superar habilmente seus principais conflitos chegando a um bom termo de convivência. Resta saber como foi a convivência com o regime de relações no período anterior ao citado ponto de inflexão que, como se disse, demarcou diferenças. Neto de escravos do interior do Maranhão, ao migrar para o Acre para trabalhar no primeiro grande ciclo da borracha no inicio do século XX,

Raimundo

Irineu

passou

por

uma

intensa

experiência

de

sobrevivência na Floresta. Foi quando conheceu a Ayahuasca e passou a organizar paulatinamente seu culto religioso. Entre 1930 e 1950 fundou uma comunidade na periferia de Rio Branco após receber uma grande doação de terras de um político amigo; ali aglutinou um grande número de fiéis. Desde o principio pairou sobre a nascente religião um clima de desconfiança ao líder e a seus seguidores eram feitas acusações de curandeirismo, macumba, feitiçaria e charlatanismo, tanto por membros da sociedade em geral, quanto por órgãos oficiais de governo. Para estes havia o respaldo institucional do Código Penal 1669

brasileiro de 1890, que proibira o exercício ilegal da medicina, do espiritismo, da magia e do curandeirismo (Goulart, 2008: 255-260). Assim, concomitantemente e face à ameaça intermitente de represálias

que

dependiam

geralmente

da

compreensão

dos

detentores do poder policial, Irineu formou uma ampla rede social e política capaz de garantir-lhe certa tranqüilidade para levar o culto adiante. Com o tempo, essa rede se fortaleceu com barganhas e trocas de interesses, principalmente com o mundo da política do Acre. A década de 1960 foi de grande prosperidade para a comunidade daimista. Próximo da cúpula política local, o líder viabilizou recursos para construir uma nova sede, uma escola de 1ª grau e um centro mecanizado de produção agrícola na comunidade, além disso, conseguiu passagens de avião e navio para si e alguns familiares para uma viagem que realizou à sua terra natal. Enquanto isso, Mestre Irineu, como passou a ser reconhecido, era procurado em romaria por políticos em busca de apoio, votos e bênçãos. A sede de sua comunidade chegou a abrigar comícios de lideranças políticas influentes como governadores, senadores e deputados estaduais e federais. A participação do líder religioso, todavia, era considerada apartidária e sempre respeitosa ao poder constituído. Durante a ditadura militar, mas precisamente em maio de 1966, o Secretário de Saúde e Serviço Social, Carlos Meixeira, enviou amostras de cipó e folhas para a Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes a fim de receber um parecer sobre a toxidade das espécies. A resposta recebida por telegrama foi favorável ao Daime, e então Meixeira declarou via oficio que a Secretaria não teria nenhuma objeção a fazer ao uso da bebida em rituais espirituais, como há muitos anos vinha ocorrendo na região. Tal manifestação foi de fundamental importância para que houvesse continuidade dos ritos sob as condições do Estado de exceção vigentes (MacRae e Moreira, 2011:276-294). Assim, a permanência do Daime dentro daquele contexto tem mais a ver com um tipo de compromisso marcado pela tessitura de 1670

fortes laços de compadrio, do que com um claro compromisso institucional. Dentre as motivações dessas relações, MacRae e Moreira observam que o fato de Irineu “estar sempre ao lado do governo ia além de preferências políticas, já que a sua preocupação a respeito da legalização ou legitimação necessárias ao culto, o levava a sempre estar ao lado da legalidade, como forma de preservação de sua comunidade.” O que é possível observar como pano de fundo dos dois períodos diferenciados anteriormente por suas tonalidades dentro do regime de relações apontado por Giumbelli (2008) é a presença permanente da condicionalidade entre o exercício da liberdade religiosa e a manutenção da ordem pública. Aspecto ontológico na narrativa do contrato social (Giumbelli, 2002). Os ajustes práticos entre esta condicionalidade, no entanto, produzem resultados não esperados, como as distintas formas de presença pública das religiões e de presença do político nas religiões, que são em grande medida determinados pelo contexto e pelas culturas. Retomando a Resolução n 1 do CONAD de forma conclusiva, constata-se que do ponto de vista jurídico, como analisou Reginato (2012: 8,9) as formas de controle adotadas pelo Estado caminharam no sentido da despenalização, passando por critérios de criminalização, legalização

simples,

e

legalização

restritiva,

mas

sem

eliminar

definitivamente a possibilidade de o uso ritual da Ayahuasca ser tratado como algo criminoso, dado a ausência de um respaldo com força de Lei. De acordo com Labate (2011), ainda existem inúmeras áreas nebulosas na regulação, cujo efeito imediato pode ser a judicialização e até a penalização dos envolvidos como, por exemplo, em casos de consumo por estrangeiros, exportação da bebida, doação de sangue e guarda de crianças de pais com opiniões religiosas divergentes. Tais imprecisões, segundo a autora (Labate, 2011), resultam de pressões contra a regulação provavelmente advindas do Ministério do Exterior, da Polícia Federal sob influencia da administração de repressão e 1671

prevenção às drogas dos EUA (DEA), ou ainda de lobbies provenientes das Igrejas evangélicas. Situação que sinaliza a continuidade das controvérsias com as religiões ayahuasqueiras.

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1674

POSSESSÃO, COOPERAÇÃO E PRÁTICAS EMANCIPATÓRIAS: UM ESTUDO SOBRE PLURAIDADE RELIGIOSA E TRASFORMAÇÃO DA EXPERIÊNCIA ENTRE MULHERES SOTEROPOLITANAS Paula da Luz Galrão491 Orientadora: Miriam Rabelo

Resumo: Este trabalho tem por objetivo compreender como mulheres da periferia de Salvador constroem redes de cooperação a partir da relação que mantêm com entidades sagradas que atendem em consultas domésticas. Para isso analiso como os serviços prestados pela médium e suas entidade desenvolvem mecanismos de reciprocidade ativados pelas mulheres que se valem deste atendimento espiritual, e as fazem permutar bens e serviços em uma relação que ultrapassa o contato médiumconsulente, desvelando-nos estratégias alternativas de lidar com situações problemáticas do cotidiano. Com esta análise, me foi possível perceber como a fluidez do campo religioso brasileiro se apresenta nas práticas religiosas e como isto pode ser utilizado para compreendermos a construção do carisma em líderes religiosos.

Palavras-chave: Entidades; mulheres; redes de cooperação.

INTRODUÇÃO

As discussões sobre o fenômeno da possessão sofreram, durante um período de um século, mudanças significativas. A forma como os pesquisadores têm caracterizado este fenômeno seguem modelos interpretativos diversos, como os baseados em estados sonambúlicos, representações míticas ou até, como podemos perceber nos estudos mais

recentes,

aqueles

que

concebem

os

espíritos

e

deuses

comportando-se como agentes reais presentes na vida de seus médiuns. Conhecer, então, os caminhos interpretativos a cerca do 491

Graduado em Ciências Sociais (UFBA), Mestre em Ciências Sociais (UFBA) e Doutor em Ciências Sociais (UFBA). Professor Assistente (UNIVASF). Coordenador do Núcleo de estudos afro-brasileiros Abdias do Nascimento-Ruth de Souza (UNIVASF). [email protected]

1675

fenômeno da possessão, e a forma como atualmente ele é pensado, é fundamental para o entendimento dos objetivos desse trabalho, assim como os possíveis resultados que poderão ser alcançados. Nos estudos sobre possessão por muito tempo não houve um consenso sobre como interpretar os estados em que pessoas afirmavam estar possuídas por espíritos. Nina Rodrigues, por exemplo, considerava inadmissível a hipótese de fingimento ou simulação nos casos de possessão no Candomblé. Porém, acreditava que esse estado não passava de sonambulismo com desdobramentos de personalidade, induzido principalmente pela música e pelo batuque, enquadrando o fenômeno da possessão em um panorama psicopatológico, recorrente em indivíduos “insuficientemente desenvolvidos do ponto de vista intelectual”492. A partir dos estudos de Roger Bastide, o quadro passa a ser visto sob um novo prisma. Este autor descartou a concepção da possessão como um fenômeno patológico. O transe estaria regulado segundo modelos da mitologia do povo-de-santo e a dança do filho possuído seria a representação de certas cenas míticas compostas de vários outros personagens (que seriam os outros filhos-de-santo possuídos por seus deuses), que no ritual interagiriam uns com os outros reproduzindo, sem autocontrole dos seus corpos, a mitologia dos orixás493. Atualmente, contudo, a forma como é visto o fenômeno da possessão é, pelo menos entre alguns pesquisadores da religião, um pouco diferente. Questionar se o indivíduo está realmente possuído por uma entidade não é mais o foco da questão. O relevante para esses estudos é a condição de agentes que essas entidades assumem e

492

NINA RODRIGUES, Raimundo. O Animismo Fetichista dos Negros Baianos. Bahia: Theatro XVIII/P555, 2005, pp. 75-76. 493

BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia da Letras, 2001, p. 191.

1676

como através dessa agência elas podem conferir poder, se comunicar e interferir de forma positiva ou não na vida dos seus médiuns494. Voltando-se para trabalhos como o de Hayes, Capone, e também de outros como o de Jim Wafer (The Taste of Blood: Spirit Possession in Brasilian Candomblé), Patrícia Birman495 discute a forma como mulheres integram entidades nas suas vidas e nos contextos de resolução de conflitos. Neste artigo, ela afirma que os espíritos podem participar de tal modo da vida de seus médiuns que terminam por reorganizá-la, invertendo relações de poder no seio da família, que ganha com a possessão um novo integrante, muitas vezes aliado da mulher (médium) e adversário do homem. Assim, conceber a possessão segundo o enfoque que aborda as entidades como agentes nas situações em que estão inseridas – que não deixa de ser o ponto de vista dos atores que com elas se relacionam − nos capacita a perceber melhor as estratégias e os arranjos interativos gerados a partir das suas relações com os outros. Perceber a possessão sob esse ponto de vista nos permite, primeiro, tomar como pressuposto que a ação das entidades interfere diretamente na vida de outras pessoas e na forma como elas concebem, interpretam e agem no mundo; e, segundo, nos permite perceber como essas entidades interagem com os outros, e quais as conseqüências dessa interação. Contudo, um diferencial em relação a estes últimos trabalhos citados nos possibilita ir além. Nas pesquisas por mim realizadas é possível perceber que o contato mantido pela entidade não está restrito apenas à relação médium↔intermediário (necessário, pois médium e entidade assumem o mesmo corpo) ↔entidade. A entidade 494

BIRMAN, Patrícia. Transas e Transes: Sexo e Gênero nos Cultos Afro-Brasileiros, um Sobrevôo. Revista de Estudos Feministas, São Paulo, 13 (2): 403-414, 2005; CAPONE, Stefania. A busca da África no candomblé: tradição e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2004; HAYES, Kelly. Fogos Cruzados: A Traição e os Limites da Possessão pela Pomba Gira. Religião e Sociedade, Rio de janeiro, 25 (2): 82101, 2005; LAMBEK, Michael. Human Spirits: A cultural account of trance in Mayotte. New York: Cambridge University Press, 1981. 495 BIRMAN, Patrícia. Transas e Transes: Sexo e Gênero nos Cultos Afro-Brasileiros, um Sobrevôo. Revista de Estudos Feministas, São Paulo, 13 (2): 403-414, 2005, p. 8

1677

de fato constrói uma rede de relações que muitas vezes ultrapassa ou não é interferida pela rede do médium, e, como observada, é composta em sua maioria por mulheres. Assim, não considerar esse tantos “outros” nos estudos sobre possessão seria esvaziar a análise de um campo tão rico de relações.

CRUZAMENTOS E CONTAMINAÇÕES Ao analisarmos o campo religioso brasileiro podemos perceber uma característica que se mostra marcante: o seu caráter sincrético e “poroso”. Este aspecto específico da religiosidade no Brasil é fruto de um processo que, segundo Pierre Sanchis496, esteve presente desde a adoção

do

Catolicismo

como

religião

oficial,

imposta

pelos

portugueses. Para este autor, ao mesmo tempo em que o Catolicismo encobria aspectos da pluralidade das nossas identidades religiosas, ele permitia o surgimento de um “habitus sincrético”, tanto a nível institucional como relativo à identidade dos fiéis. As possibilidades geradas pelo Catolicismo para o surgimento de um habitus de abertura se mostraram como conseqüência da postura adotada por esta vertente do cristianismo, no que tange a articulação da dimensão da fé: enquanto no protestantismo, por exemplo, a fé é articulada a uma dimensão individual e autônoma dentro do movimento da graça497 na qual a relação entre o indivíduo e Deus não é mediada pela instituição (Igreja), no Catolicismo, a dimensão da fé tende a ser articulada ao aparelho institucional. O vínculo com a instituição, como mediadora necessária entre o fiel e Deus, e a ênfase na dimensão mítica operacionalizada na liturgia dentro dos espaços 496

SANCHIS, Pierre. “Religiões, religião... Alguns problemas do sincretismo no campo religioso brasileiro”. In SANCHIS Pierre (org); [colaboradores], MEDEIROS Bartolomeu Tito F. [et al]. Fiéis e Cidadãos: percursos de sincretismo no Brasil. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001. 497

Idem, ibidem, p. 23.

1678

institucionalizados, conferiu um privilégio à dimensão simbólica. Os símbolos que tiveram lugar nos cultos católicos possibilitaram uma gama de interpretações e orientações sem necessariamente guiar os fiéis a significados fechados e excludentes. Esta pluralidade de significados abriu brechas às diferenças e conseqüentemente à articulação de encontros religiosos, tornando possível os cruzamentos e o surgimento de um habitus suscetível a uniões e “contaminações”498. Desta maneira, é possível perceber a constituição histórica de um habitus religioso brasileiro que até nossos dias se mantém por meio dos encontros e sínteses que permeiam as práticas religiosas no Brasil. Falo de um habitus religioso brasileiro, porque muitas vezes não podemos enquadrar o Brasil em uma modernidade religiosa na qual ele não faz parte. Esta modernidade, na qual o individuo autônomo escolhe as suas crenças e as molda segundo sua vontade, não se mostrou claramente presente no Brasil. Patrícia Birman discute esta questão e nos mostra, primeiro, como não é, e nunca foi possível encontrar grupos de culto (especificamente

os

afro-brasileiros)

com

fronteiras

estritamente

definidas e coerentes, e que esse esforço foi tencionado apenas pelos estudiosos da área499. Estes grupos, para ela e também para os religiosos, estão inter-relacionados, operando como partes de um mesmo todo500. Então, as escolhas realizadas pelos sujeitos, nestes casos, não funcionam de forma excludente, de forma que, ao escolherem um grupo, não estão necessariamente excluindo as crenças e práticas de outros, que como vimos estão relacionados. E, além disso, como a autora salienta, temos de considerar um agravante destes casos, e que os distingue da modernidade religiosa em geral, ou melhor, acrescentalhes elementos: a reciprocidade nas escolhas. Ao tratarmos de religião de possessão a escolha não é, em muitos casos, unilateral. O indivíduo

498

Idem, ibidem, p. 24. BIRMAN, Patrícia. Fazer Estilo Criando Gênero: possessão e diferença de gênero em terreiros de umbanda e candomblé no Rio de Janeiro. Rio de janeiro: EdUERJ, 1995, p. 14-15. 499

500

Idem, ibidem, p. 16.

1679

escolhe, mas também é escolhido por um deus ou uma entidade sobrenatural501. Por outro lado, este habitus de abertura permitiu que o trânsito religioso ultrapassasse as esferas institucionais e se mostrasse presente também nas demais esferas de socialização das pessoas, como o bairro, a vizinhança e em suas casas. Estes espaços têm se mostrado, nos bairros populares, como lugares onde as disposições adquiridas através das experiências religiosas dos indivíduos são articuladas às suas visões de mundo e às dos que os cercam; e onde as práticas religiosas se fazem presentes. Dentre as práticas articuladas e interpretadas segundo este modo sincrético de lidar com o sagrado, uma que podemos salientar como presente em muitos contextos de bairros populares de Salvador é a da possessão. A possessão, como fenômeno religioso, mas não necessariamente institucionalizado, se mostra como prática de alguns grupos religiosos, principalmente os de matriz afro-brasileira ou ligados ao Espiritismo. As entidades que “baixam” no corpo dos seus médiuns, assim como eles, também estão sujeitos a este continuum que se mostram as casas de cultos no Brasil. Ao migrarem ou ao articularem mais de uma concepção religiosas (que é o que acontece na maioria dos casos), as entidades também migram e são re-intepretadas segundo lógicas distintas. Mas, na maioria dos casos, o que ocorre não é uma mudança radical. O que geralmente acontece é que as diversas representações sobre esta entidade são articuladas em um todo homogêneo, onde podem conviver tanto algumas percepções de um grupo como as de outro.

REDES DE COOPERAÇÃO FEMININA

501

Idem, ibidem, p. 17.

1680



Entidade, consultas e rituais Para compreendermos como é construída uma rede de

cooperação feminina em torno de uma entidade, é preciso que antes percebamos quem é essa entidade e como ela está inserida em suas vidas.

A

prática

genericamente

religiosa

denominada

que

me

como

proponho sessão

de

analisar mesa

aqui

é

branca

e

atendimentos espirituais por consulta. Tanto uma atividade quanto a outra são presididas por uma entidade específica, um caboclo chamado Sultão das Matas, ou Seu Sultão como é chamado por todos. Sultão é uma das entidades da médium da casa que de período em período (geralmente de cinco em cinco anos) recebe uma entidade (geralmente caboclo) para que esta trabalhe atendendo a clientes e realizando sessões a fim de que cumpram sua missão aqui na Terra. Esta missão está diretamente ligada à caridade que todos têm que exercer aqui, pois como caboclos doutrinados nos preceitos cristãos precisam fazer valer aquilo que aprenderam e se redimirem pelas suas vidas descrentes, que findou ao conhecerem a palavra de Deus. Às consultas são reservadas as tardes de terças e quintas-feiras, sendo o primeiro dia reservado para os atendimentos a clientes de fora, ou não freqüentes e o segundo dia para o atendimento dos “de dentro”, ou seja, às mulheres que já têm um tempo maior de freqüência constante na casa. As consultas, assim como as sessões, são realizadas pelo caboclo em um quartinho construído ao fundo da casa da médium, que se localiza em um bairro popular de Salvador, e que possui entrada por fora da sua residência. Este quartinho possui dois cômodos, sendo que o primeiro é utilizado para as sessões e o segundo para as consultas. Durante estas, o primeiro cômodo do quartinho é utilizado como sala de espera, onde os clientes dão o nome, que é anotado por uma das mulheres que tem como função ser a secretária do dia. No cômodo das consultas, em uma mesa com um copo d'água, folhas de ofício para as receitas passadas, e uma caneta pra anotá-las, Sultão faz suas prescrições. Entre elas pude verificar banhos, resguardos 1681

e caridades a serem efetuadas, como doações de pães em Igrejas Católicas. Além disso, pude vê-lo oferecer conselhos aos mais variados tipos de problemas, sendo os mais constantes os de saúde, emprego e problemas com a família, nunca cobrados por ele, apesar de receber doações quando oferecidas (de dinheiro, material para as sessões ou presentes variados). Às vezes também ele indica o “homem do anel” (médico) ou uma ida ao candomblé, se o problema for de lá originário. As sessões, por sua vez, são realizadas no primeiro cômodo que comporta uma grande mesa oval, que está frequentemente coberta por uma grande toalha branca com um copo d'água, flores e velas brancas; um altar que possui santos alternados, ora a Virgem Maria, ora Santo Antônio, ou Cosme e Damião e até o orixá Iemanjá; cadeiras; quadros de santos como São Jorge e São Lázaro e da Virgem Maria nas paredes; e uma cruz acima da porta do segundo cômodo. Nestas sessões, além dos mesmos momentos de conselhos e recomendações que os das consultas, com a ressalva de que são públicos e não fechados no quartinho, cerca de uma hora é reservada para rezas e cânticos católicos, onde o caboclo lidera dizendo às mulheres, que são as freqüentadoras assíduas e não os clientes esporádicos, quais músicas e orações quer. Entre uma oração e outra, Sultão aconselha um ou outro e faz breves pronunciamentos, como pedidos a Deus, a Jesus e a Virgem Maria por saúde, compreensão e resignação. Essas sessões por vezes adquirem um caráter diferenciado, visto que sempre que é dia de um orixá importante, ou dia do índio e o dois de julho502, Sultão oferece amalás para orixás e caboclos. Amalá no candomblé é a comida destinada a um orixá específico, Xangô. Mas, nas sessões de Sultão, amalá se tornou um termo genérico que designa a oferenda que se faz aos orixás. Estas oferendas são colocadas em pequenos vasilhames de louça (geralmente são ou milho branco ou arroz branco cozidos, salvo para os caboclos, que são frutas) e possuem 502

Dia da independência da Bahia, que possui o caboclo como símbolo representativo pela sua atuação nas lutas pela emancipação da Bahia de Portugal.

1682

quase sempre flores e alfazema. Esta oferenda é levada à cabeça das mulheres e Sultão as banha com alfazema e pede a Deus e aos santos saúde, proteção, paz, resignação em um discurso dificultado pela sua linguagem ainda rudimentar. Depois desse procedimento as mulheres precisam descansar, pois, segundo ele, a oferenda dada na cabeça deixa o corpo debilitado. Esse ritual é seguido de um resguardo que as proíbe de ter relações sexuais, de comer carne vermelha, pimenta, beber café, e bebidas alcoólicas. Este modelo de atendimento por consulta e sessão de mesa branca comporta, como descrito acima, elementos de diversos cultos religiosos, como o católico, o espírita e o de candomblé. A presença do primeiro grupo religioso pode ser percebida claramente nas imagens de santos, nas rezas e conselhos cristãos de Sultão; o segundo na abertura da médium a receber espíritos e na postura da entidade em “baixar” para fazer o bem e ajudar o próximo sem cobrar; e o terceiro na reverência feita aos orixás com os amalás, nos resguardos e nas prescrições que se seguem à oferenda. Esta amálgama de elementos de vários cultos, contudo, não é um privilégio dos centros de mesa branca. Estes tipos de práticas podem ser verificados em centros de umbanda, em alguns centros espíritas e até mesmo no candomblé.



Um modelo perfeito de mulher Nas consultas e sessões acima descritas temos como presentes

uma grande quantidade de mulheres, uma ínfima parcela de homens e o caboclo. A grande presença feminina, no entanto, sempre se mostrou constante. As mulheres vinham com demandas geralmente ligadas a sua saúde ou a sua família ou a problemas de relacionamento amoroso. Tudo o que Sultão aconselhava e prescrevia foi possível verificar que as mulheres realizavam com assiduidade, retornando sempre para dar um resultado das prescrições e para continuar o tratamento. Para complementá-lo, Sultão recomendava as sessões de mesa branca, e elas compareciam e passavam a freqüentar constantemente. A 1683

persistência das suas presenças nas sessões era inicialmente devido ao tratamento e posteriormente, ao passarem a estabelecer laços de afinidade com a entidade, por gratidão e prazer. Estes laços criados a partir do contato com a entidade e a freqüência nas sessões às faziam desenvolver laços sentimentais com a médium da casa, que se tornava, aos poucos, duradouro visto o reconhecimento, por parte das mulheres, da sua simpatia e bom humor. Este contato mais íntimo com a médium possibilitou, por conseguinte, que as mulheres passassem a freqüentar a esfera doméstica desta, contribuindo para os afazeres da casa e de forma concomitante, do centro (entenda-se o quartinho das sessões e consultas). O modelo de comportamento das mulheres ou é ditado explicitamente por Sultão, que assume claramente a posição de líder do centro, ou deixado por este implícito nas suas preferências por orações que enfatizam Maria, um modelo “perfeito” de mulher. Nas músicas e orações destinadas a Maria, algumas já existentes no catolicismo, outras criadas pelas pessoas do centro que a médium freqüentava na sua juventude, é notório a presença de características comportamentais as quais uma mulher deve seguir como exemplo. Entre elas podemos destacar a da discrição, da assiduidade, da bondade, do pensamento ao próximo, e da resignação. Essa maneira ideal de comportamento também é notada nos próprios rituais, onde é aconselhado que as mulheres “dêem” mais de um amalá, destinando os outros aos maridos, filhos e alguém da família que esteja passando por situações difíceis, praticando a caridade e o amor ao próximo, mesmo que isso as deixe excessivamente exaustas. Este ideal pode também ser percebido nas cobranças de Sultão às mulheres em relação aos seus atos, como no dia em que este caboclo passou um sermão em uma das mulheres por esta não ter oferecido dinheiro e comida à mulher de seu sobrinho que estava passando sérias dificuldades financeiras.

1684

Essas características, por sua vez, não fazem parte apenas de um discurso proferido por Sultão e repetido pelas mulheres. Elas atualizam esses preceitos no seu cotidiano. Suas ações já estão imbricadas por esse ethos, e isto as faz, segundo elas, viver melhor. Pude perceber exemplos nas conversar e entrevistas realizadas com elas. Em um dos casos, uma jovem casada estava passando por problemas conjugais. Sultão neste dia disse para ela ir para casa e dormir, para não fazer mais nada. Esta, inicialmente, não entendeu, pois ainda era final da tarde e cedo para dormir. Mas, quando chegou em casa, viu que seu marido tinha colocado quase tudo de casa em um caminhão e estava preste a lhe abandonar e que sua mãe a tinha tirado de casa inventando uma desculpa para acobertar o filho e possibilitar sua fuga. Mas, ela, então, compreendeu o conselho de Sultão, entrou em casa e foi para cama. Depois ela me explicou sua interpretação dizendo que o conselho era para que ela fosse dormir para não fazer escândalo na rua nem se indispor com sua sogra, pois assim seria melhor para ela, pois evitaria escândalos. Este tipo de comportamento, incentivado às mulheres nas inúmeras práticas das sessões e nas suas vidas cotidianas, se reflete em várias esferas de suas vidas, principalmente no que tange a relação entre elas mesmas. A primeira relação que começam a manter é com a entidade, que se mostra neste trabalho como um “nó de rede” que irradia relações. Sultão não cobra seus sempre elogiados atendimentos, que são eficazes e tranqüilos. Dessa maneira, muitas mulheres que não possuem dinheiro, mas se vêem em débito com esta entidade, se prestam a pagar-lhe de várias maneiras. Contudo a relação que é mantida entre entidade e médium muitas vezes é confundida, o que não deixa de ser compreensível. Eles ocupam o mesmo corpo, ou melhor, a médium lhe cede o corpo para ele fazer boas ações. Sem ela nada disso seria possível. Dessa maneira, muitos dos retornos dados dos clientes se dirigem à médium e não à entidade. Assim, já presenciei cenas onde uma das mulheres, ao ver a médium receber Sultão e 1685

começar a atender, pegar rapidamente uma trouxa de roupas limpas da médium e sua família para passar a ferro. Outra lhe deu uma geladeira, outra lhe deu um fogão de seis bocas, outra lhe deu pisos para colocar na cozinha de chão de cimento batido, e assim por diante. Contudo, a rede criada por Sultão não fica restrita apenas às relações mantidas entre ele e as mulheres freqüentadoras. Elas, por sua vez, passam a manter contatos contínuos entre elas, visto a freqüência dos rituais e consultas. Todas possuem tarefas, um tanto fluidas, mas com responsabilidades: como limpar as “quartinhas” para os amalás, arrumar o quarto das sessões, anotar e coordenar as pessoas que vêm para consultas, presidir as sessões, liderar os cânticos, entre outras. Além disso, elas são muitas vezes levadas a ficar alguns dias “presas” na casa da médium, visto o caráter dos rituais. Como o corpo fica debilitado, e como Sultão indica repouso e concentração, ele as aconselha a dormirem no quartinho e a comerem e ficarem na casa da médium até findar os rituais, que podem durar até três dias consecutivos. Esses rituais e momentos em conjunto as fazem estreitar os laços. E este contato íntimo, unido aos preceitos de caridade e resignação, provoca entre elas um compromisso mútuo, que não as permite não se ajudar. Até um momento de companhia a uma delas que se sente só já é uma ajuda e uma “mão amiga”. Mas isso não acaba por aí. Se uma delas vê um tipo de alimento em promoção no supermercado que trabalha, corre e compra para dar as mulheres do centro que puder. Se uma delas vê que a outra está passando por dificuldade financeira, ajuda sem pensar. E acima de qualquer ajuda trocada, está a disponibilidade, a segurança de estar sempre disponível uma a outra, para ajudar, seja com um almoço ou tomando conta dos filhos.



Família das mulheres Ao analisar esta rede formada a partir de uma entidade espiritual

em sessões de atendimento doméstico, percebi, e isso foi confirmado 1686

pelas mulheres que freqüentam este grupo, a configuração familiar que se apresentava. Contudo, o que podemos perceber é que isso, de forma alguma, é um privilégio desse grupo de culto específico. Digo isto porque diversos autores, ao analisar os grupos de Candomblé, perceberam o modelo familiar que se configurava a partir da disposição e atividades dos integrantes desta religião. Vivaldo da Costa Lima503, ao discutir os postos assumidos pelos integrantes do candomblé, e a importância da hierarquia e senioridade, enfatiza a organização familiar como um dos elementos centrais à estabilidade dos sistemas sociais e políticos iorubas e a correlação percebida nas famílias-desanto dos Candomblés. O valor do princípio de parentesco estaria na cooperação e nas expressões de solidariedade evocadas504. A antropóloga Ruth Landes505 ao estudar os grupos de Candomblé também faz referência ao comentário de uma sacerdotisa que se refere ao seu templo como uma “sociedade de auxílios mútuos”, e parafraseia uma frase de Édison Carneiro ao se referir a este grupo de culto como “única segurança social válida para os pretos”506. Além da característica familiar que é possível também observar no Candomblé, a grande presença das mulheres não deixou de ser notada e analisada pelos estudiosos da área. Neste ponto, tanto Costa Lima507 quanto Landes508 também nos trazem ilustrações. O primeiro considera que os filhos-de-santo podem ser legitimamente também homens, mas confere ênfase na predominância em número das mulheres nos grupos de Candomblé. A sua justificativa se inclina a colocar no processo de industrialização e urbanização a impossibilidade dos homens em se submeterem a ritos complexos e demorados de 503

COSTA LIMA, Vivaldo. A Família de Santo nos Candomblés Jejes-Nagôs da Bahia: um estudo de relações intragrupais. Salvador: Currupio, 2003. 504 505

Idem, ibidem, p. 79. LANDES, Ruth. A Cidade das Mulheres. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002.

506

Idem, ibidem, p. 199. COSTA LIMA, Vivaldo. Op. Cit. 508 LANDES, Ruth. Op. Cit. 507

1687

iniciação509. Ruth Landes, por sua vez, escreve todo um livro para mostrar o Candomblé como uma religião matriarcal, e explicar esse fator como tanto decorrente de uma herança africana na escravidão como também fruto de circunstâncias históricas510. A essa presença feminina eram designadas funções, que as mesmas

tinham

que

desempenhar

nos

terreiros.

Funções

estas

geralmente ligadas à esfera doméstica. Por outro lado, a uma grande parcela dos homens estava destinada a esfera da rua (os ogãs) a fim de angariar prestígio e dinheiro para as casas de candomblé511. A outros era destinada a função de guardarem o peji ou quarto do santo (o pejigã), a outros o toque dos atabaques (os alabês) e também ao sacrifício (destinado ao axogum)512. Às mulheres, segundo Patrícia Birman em seu livro sobre possessão e relações de gênero no candomblé e umbanda, cumpre organizar o grupo doméstico513. Estas

semelhanças

que

observamos

entre

as

sessões

de

atendimento e sessões domésticas de mesa branca com o candomblé, ao analisarmos as redes femininas formadas neste primeiro grupo, nada mais nos reflete do que aquilo que colocamos no primeiro ponto deste trabalho: o continuum religioso, fruto do trânsito que desde a formação do campo religioso brasileiro pode ser notado. A fluidez das fronteiras nos mostra que não só elementos religiosos diversos podem ser encontrados em grupos de culto distintos, como a própria estrutura em que são assentadas as relações entre os seus integrantes sofre “contaminações”. O que não podemos afirmar, todavia, é que estas estruturas organizacionais são fixas e não sofrem modificações de grupo para grupo. O que, a partir desta análise podemos verificar, ao contrário, é que certos elementos da religiosidade popular podem ser

509

COSTA LIMA, Vivaldo. Op. Cit. p. 61-62. LANDES, Ruth. Op. Cit. p. 348-350. 511 COSTA LIMA, Vivaldo. Op. Cit. p. 89. 512 Idem, ibidem, p. 94-96. 513 BIRMAN, Patrícia. Fazer Estilo Criando Gênero: possessão e diferença de gênero em terreiros de umbanda e candomblé no Rio de Janeiro. Op. Cit. p. 172. 510

1688

absorvidos com maior intensidade, e a forma como ele é introjetado gera mudanças sutis, mas significativas. No caso estudado neste trabalho, a ênfase dada a preceitos católicos e espíritas possibilitou a formação de um ethos feminino de bondade, caridade e resignação para com os problemas da vida e de submissão aos homens. Esta postura se diferencia, por exemplo, da assumida por muitas mulheres do candomblé, e registradas por antropólogos como Ruth Landes. Esta autora observou que mulheres desta religião não se preocupavam em se casar legalmente, visto que não queriam se submeter à autoridade masculina514. Além disso, as práticas de magia realizadas contra outrem também são freqüentes em muitos terreiros de candomblé, algo abominável para esta casa de mesa branca. Estas diferenças, no entanto, não deslegitimam o tronco comum onde são erigidas as estruturas de organização de grupos de culto diferenciados. Neste tronco, um fator de peso que unifica muitas das práticas religiosas dos integrantes deste e de outros grupos de culto, e que não podemos desconsiderar aqui, é a entidade. O lugar ocupado por Sultão das Matas nesta rede de mulheres se mostra como central. Ele, nesta análise, pode ser considerado um “nó de rede”, onde relações femininas são estruturadas a partir dos seus serviços e carisma. Esta rede inicialmente se forma independente da médium, que pode ter uma rede distinta da rede de sua entidade. Sultão, assim, fica livre para fazer amigos, visto o seu dom e lugar de pai conselheiro que ocupa entre todos. Ele, como o líder, organiza as sessões, dá conselhos, diz que músicas e cânticos devem ser entoados e se os rituais terão um tom mais católico ou se penderá mais para o lado dos orixás. Só a partir do contato freqüente que as mulheres mantêm com o caboclo é que se relacionarão com a médium. O contato freqüente com Sultão as faz conhecer a médium e simpatizarem com ela. Dentro destas complexas

514

LANDES, Ruth. Op. Cit. p. 200.

1689

redes de relação as mulheres passam a se enxergar como uma família, onde podem resolver seus problemas, conversar e receber ajuda. CONSIDERAÇÕES FINAIS A família coesa que pudemos observar surgir nas sessões de consulta doméstica, onde as mulheres se identificam com uma figura de pai e de mãe e onde recebem e dão ajuda, é construída, como colocamos desde o início, em torno de uma entidade espiritual, um caboclo. É ele quem garante, por seu carisma e competência, a coesão do grupo, visto que é através de seus conselhos e práticas que as mulheres desenvolvem tanto um ethos baseado na caridade, como encontram oportunidades de colocar em práticas os seus atos de ajuda. Enfim, através dos momentos rituais liderados por Sultão elas encontram as bases para reconfirgurar seus problemas e as pessoas para compartilhar suas aflições e ajudar nas suas angustias. Assim, se observarmos atentamente essas características da entidade e sua rede de mulheres, podemos ir de encontro a um paralelo

final

que

complementaria

nossa

análise.

Isto

se

nos

perguntarmos: até que ponto Sultão influenciou na construção do carisma da nossa médium? Ou melhor, até que ponto uma entidade pode influenciar na construção do carisma de uma liderança de um grupo religioso de possessão? Aqui é preciso que não nos prendamos a sessão aqui estudada e ampliemos nosso olhar para os centros de umbanda e para os terreiros de candomblé e observemos as características das entidades, principalmente os exus e caboclos. Em muitas dessas casas são eles quem angariam clientes por simpatia e resolução rápida dos problemas; alguns realizam festas que só têm público por terem aquela (s) entidade(s) de que as pessoas gostam; muitas vezes são eles quem fornecem o dinheiro para o centro ou terreiro com suas consultas; a partir do que pregam e como pregam conseguem garantir um grupo freqüente de pessoas, geralmente 1690

mulheres, que por sua vez assumem as atividades administrativas e de funcionamento do centro. Além disso, ao observarmos que, além da possibilidade de uma mãe-de-santo vir a ocupar o cargo por receber por descendência um terreiro pela morte de seu(a) líder, outra possibilidade é a de ela receber o decá515 e ter que abrir sua própria casa. Dessa maneira, outros elementos podem interferir na construção de uma liderança deste grupo. A nova mãe-de-santo tem que conseguir clientes, além de filhos e filhas-de-santo. Quando ela não recebe um terreiro de uma mãe falecida, ela tem que começar do zero seu séquito. Para isso, necessariamente ela tem de se valer de algo fundamental para uma liderança principiante: o carisma. Todavia, por vir de uma religião de possessão, certamente ela não estará sozinha. Com ela estarão suas entidades. E, em muitos casos, estas entidades além de orixás são também exus e caboclos que podem dar consultas, sessões e festas. Muitos são os casos em que mães e pais-de-santo já recebiam e atendiam com suas entidades antes de receberem o decá. Um deles foi estudado por mim, para o trabalho de conclusão de curso de graduação em Ciências Sociais pela UFBA. A mãe de santo atendia com seu exu, recebeu o decá e foi com ele que conseguiu angariar clientes e uma boa quantidade de filhos-de-santo que iam inicialmente ao terreiro se consultar com ele. Outro pai-de-santo que estudei também se valeu da sua entidade, neste caso uma pomba-gira, para angariar clientes. Mas faço aqui uma ressalva. Muitas vezes esta tática pode ser não-intencional, e a entidade, por exigir “vir em terra”, pode construir sua própria rede que passaria de forma natural para seu médium. Claro que há casos que isto é propositadamente articulado e confirmado por mães-de-santo, que inclusive criticam esta prática. Um

515

O decá seria a permissão e os instrumentos dados ao filho-de-santo que já completou sete anos de iniciado e que possui competência, segundo o pai ou mãe-de-santo, para abrir um terreiro.

1691

desses casos nós podemos observar no artigo de Miriam Rabelo sobre possessão e prática516. A construção do carisma de uma liderança pode então também se mostrar integrante deste continuum religioso fluido que podemos ver cotidianamente nos grupos religiosos. A formação da rede feminina liderada por Sultão das Matas, neste caso estudado, seria apenas um caso dentre vários, onde mulheres se organizam em torno de uma entidade em uma rede de cooperação. A construção do carisma da médium frente a este grupo de mulheres a partir da relação delas pelo carisma de Sultão seria também um exemplo de como o carisma pode ser articulado pela possessão. Ao herdarem e se submeterem às entidades que possuem seus corpos, não só mulheres como também homens estão sujeitos às suas práticas e às suas redes de relação. Mas, essa sujeição pode não ser um fardo e sim um grande salto rumo ao poder.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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516

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1692

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1693

ENTRO NA SUA CASA, ENTRO NO SEU TRABALHO E ENTRO NA SUA VIDA: UM ESTUDO SOBRE AS ESTRATÉGIAS DE LOCALIZAÇÃO DAS IGREJAS NEOPENTECOSTAIS NA TERRA DO PADRE CÍCERO.

Itamara Freires de Meneses 517 Renata Marinho Paz 518

Resumo A proposta desse trabalho é fazer uma análise do campo religioso de Juazeiro do Norte, considerando as igrejas neopentecostais encontradas no centro da cidade que são: Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Mundial do Poder de Deus e Igreja Internacional da Graça de Deus. Desse modo, o meu estudo visa abordar as estratégias utilizadas por essas igrejas com o intuito de “marcarem terreno” em um cenário religioso marcado por uma hegemonia católica, combatendo por sua vez, o catolicismo na figura central do Padre Cícero. Para, além disso, farei uma reflexão a cerca da forma de atuação das igrejas neopentecostais encontradas em locais estratégicos de Juazeiro do Norte. Para a realização do trabalho fiz análises bibliográficas a cerca do universo neopentecostal de uma forma mais ampla, realizei observações aos cultos e entrevistas. Palavras-chaves: Neopentecostalismo. Centro de Juazeiro do Norte. Padre Cícero.

INTRODUÇÃO

O cenário religioso brasileiro tem apresentado, nas últimas três décadas, configurações bastante significativas, principalmente no que diz respeito às trajetórias declinantes do catolicismo, acompanhadas da expansão evangélica, sobretudo neopentecostal. Tem sido notável o avanço dessa vertente religiosa que assume características como a acomodação face à sociedade moderna, o distanciamento de hábitos sectários e ascéticos e a inovadora valorização de soluções de caráter pragmático e imediatista para os dilemas do crente. Vale ressaltar, que o neopentecostalismo possui uma 517

Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Regional do Cariri-URCA. [email protected] 518 Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará-UFC. [email protected]

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grande especificidade, pois além de ser o principal palco do trânsito de pessoas entre duas diferentes denominações, é considerado como um dos principais segmentos que reforçam cada vez mais a busca por uma “salvação individual”, onde essas igrejas atuam como verdadeiros “prontos-socorros espirituais” (MARIANO, 2006, p. 59). Considerando a acomodação ao mundo moderno devem-se levar em conta outros aspectos observados em constantes visitas as igrejas neopentecostais no Juazeiro do Norte. Como, por exemplo, a vestimenta dos frequentadores das reuniões. Há algum tempo atrás, quando se pensava em ir a uma igreja a vestimenta era algo de observância. Em geral, nessas ocasiões, se vestia da forma mais discreta possível. Os neopentecostais, por sua vez, inovaram até mesmo nesse aspecto. Atualmente é possível encontrar com facilidade na igreja Universal ou na Mundial, por exemplo, pessoas trajando shorts bem curtos, blusas que deixam aparecer a barriga e assistem à reunião sem nenhum problema. Esse fato, não incomoda nem a pessoa que está vestindo a roupa muito menos ao líder da igreja que, deixa o freqüentador mais a vontade o possível. A expansão evangélica é um dos fenômenos mais notáveis no campo religioso brasileiro contemporâneo, associado como já foi mencionado a uma trajetória declinante, em âmbito político e estatístico, de católicos. Vale salientar que essa expansão não se constitui num fato recente, embora venha adquirindo maior visibilidade nas últimas três décadas (MARIANO, 2006; FRESTON, 1994; JACOB et alii, 2008). Um aspecto a ser considerado diz respeito ao fato dessa reconfiguração do campo religioso não poder ser compreendida considerando-se apenas o viés religioso. Nas últimas décadas, o país passou por um rápido processo de industrialização e urbanização, o que promoveu uma série de mudanças estruturais relacionadas ao êxodo rural, ao crescimento das grandes metrópoles, e ao aumento das desigualdades sociais, vinculadas ao desemprego, à precarização das 1695

relações

de

trabalho,

violência,

favelização,

informalização

da

economia, resultando em exclusão social. Os fluxos migratórios vinculados à urbanização geram uma movimentação de pessoas, grupos, bens materiais e simbólicos, promovendo uma rearticulação das redes sociais, cujos impactos podem ser percebidos em diferentes esferas, destacando-se aqui a dimensão religiosa. Deve-se destacar que, face a esses deslocamentos, as redes pentecostais, através da ramificação de templos, atuam de forma persistente e singular, configurando-se

como suportes da cultura

material e simbólica de grupos que pertencem, em sua maioria, às camadas mais baixas da população. Diante disso, é possível associar os dados referentes à movimentação no campo religioso em articulação com os problemas sociais, econômicos e culturais vivenciados nas grandes cidades. (PAZ, 2011) Juazeiro do Norte, terra do Padre Cícero, é o maior centro de romarias eminentemente populares do país. De um modo geral, os diversos discursos (políticos, acadêmicos, religiosos, etc.) sobre Juazeiro e padre Cícero tendem a reafirmar a catolicidade da região, servindo de base para a retórica da própria Igreja católica e de setores interessados nas romarias, que vêm, de forma bastante incisiva, sobretudo na última década, afirmando a centralidade da figura do padrinho, através das ações de especialistas que tentam mobilizar uma “memória religiosa”, baseada em sua história na presença da Igreja católica no engendramento de Juazeiro. A realidade religiosa vivenciada num contexto mais amplo não tem se distanciado do que é visto em Juazeiro do Norte, na medida em que o município é majoritariamente católico e conhecido como um centro de romarias populares em devoção ao Padre Cícero. Contudo, essas características não impediram o crescimento de outros sistemas de crenças na localidade, notadamente o significativo aumento das igrejas evangélicas, sobretudo das neopentecostais.

1696

Partindo disso, a proposta desse trabalho é fazer uma análise das principais igrejas neopentecostais encontradas no centro de Juazeiro do Norte que são: Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Mundial do Poder de Deus e Igreja Internacional da Graça de Deus. Nesse estudo por sua vez, analisarei as estratégias das igrejas em “marcarem terreno” no centro de uma cidade, principalmente no centro de um município em que se tem grande devoção a figura de um santo popular. Para, além disso, farei uma reflexão dos motivos que levam tais igrejas não apenas se encontrarem no ponto crucial da cidade, mas, sobretudo, o fato de se encontrarem muito próximas umas das outras. Verificarei também a forma de atuação das respectivas denominações religiosas que se instalam em pontos estratégicos da cidade. Uma vez que, como afirma Bourdieu “o espaço é um dos lugares onde o poder se afirma e se exerce, e, sem dúvida, sob a forma mais sutil, a da violência simbólica como violência desapercebida.” Para a realização da pesquisa fiz leituras bibliográficas a respeito do universo evangélico com foco na vertente neopenecostal. O levantamento bibliográfico, leituras e análises de trabalhos de diversos autores acerca da temática em tela foram imprescindíveis, pois, a partir dela, foi possível estabelecer uma base concreta para o entendimento da realidade do universo religioso, tanto católico quanto evangélico. Além disso, realizei visitas nas respectivas denominações religiosas com o intuito de observância dos cultos e também fiz entrevistas com fiéis e lideranças das igrejas. Considerando a temática é necessário mencionar onde as igrejas citadas mais acima se encontram no Juazeiro do Norte, uma vez que, a proposta desse trabalho é justamente analisar essas igrejas pelo víeis localização. Assim sendo, a Igreja Universal e a Igreja Mundial se encontram na Rua São Pedro, já a Igreja Internacional é localizada na Rua São Paulo, todas bem centralizadas. Vale ressaltar, que a igreja Mundial antes tinha seu templo na Rua São Paulo e mais interessante do que isso é o fato de que essa igreja não apenas mudou de endereço, 1697

mas o fato de que está localizada atualmente bem próxima da igreja Universal. É sabido que o cenário religioso na contemporaneidade se encontra bastante concorrido, por conta disso se ver a concorrência das igrejas na disputa por fiéis. Além disso, o que vemos tanto na mídia como

nos

discursos

de

lideranças

da

igreja

Universal e Mundial são constantes críticas e disputas por espaço e consequentemente por fiéis. Considerando esse fato talvez seja um pouco errôneo pensar que a mudança de endereço da igreja Mundial tenha sido um acaso, pois como uma instituição liderada por seres humanos na igreja também o acaso pode não ser tão frequente. Devido a isso, percebem-se as estratégias, as alianças e os acordos para de certa forma conseguir um local de destaque no universo religioso tão plural como se encontra. De fato, a Igreja Universal se encontra em um ambiente extremamente estratégico, pois fica em frente a uma parada de ônibus. Esse fato possibilita que muitas pessoas advindas do trabalho, por exemplo, e com alguns dilemas a solucionar se encante pelas promessas de resoluções de todo tipo de problemas feito pela Universal. Essas promessas não estão presentes apenas nos cultos, mas também em panfletos que são entregues justamente na parada de ônibus como forma de atrair. Outra questão interessante a considerar faz referência ao fato de que o local em que a igreja Universal se encontra é também reconhecido pela grande presença de travestis, ficando o ambiente conhecido pelo nome “garotas universais”. Assim sendo, como a Universal considera travestis possuidoras de um demônio a ser combatido o acesso a tais pessoas é facilitado pelo fato de estarem próximas da igreja. Vale lembrar, que o fato das travestis serem consideradas possuidoras de algum demônio esse fato não é exclusividade das mesmas, pois um usuário de drogas e até mesmo uma pessoa com uma simples dor de cabeça pode ser orientada pelo pastor a realizar uma oração de repreensão do mal causador da dor de 1698

cabeça ou da droga. Visto que, para os neopentecostais as mazelas do mundo tanto na ordem financeira, emocional e de saúde são vistas como malignas, ou seja, atuação de um demônio que precisa ser combatido. Como havia mencionado atualmente a igreja Mundial encontrase bem próxima da Universal disputando não apenas fiéis como já é visto, mas disputando também espaço. Essas duas denominações e mais a igreja Internacional se encontram em ambientes muito estratégicos da cidade de Juazeiro do Norte, esse fato tem facilitado para as mesmas mais adesão de fiéis, uma vez que, são pontos de fácil acessibilidade. A igreja Mundial, por exemplo, em várias visitas em que fiz ao local presenciei uma televisão ligada em frente à igreja com cultos do apóstolo Valdemiro. Dessa forma, a igreja como forma de estratégia não utiliza cenas em que o bispo ler a palavra e realiza o seu sermão, mas utiliza insistentemente os testemunhos por acreditar serem eles mais eficazes. Desse modo, a atuação da igreja Mundial no que diz respeito a exaltar as possibilidades de milagres não fica restrita apenas para quem está dentro da igreja, mas para quem está passando na calçada, para quem está trabalhando, pois a igreja fica próxima de muitas lojas. “Inversamente, os que não possuem capital são mantidos à distância, seja física, seja simbolicamente, dos bens socialmente mais raros e condenados a estar ao lado das pessoas ou dos bens mais indesejáveis e menos raros. A falta de capital intensifica a experiência da finitude: ela prende a um lugar.” (BOURDIEU, 2203, P.164). Podemos pensar com Bourdieu que os grupos estão sempre em busca de conseguir capital simbólico. Uma vez que, é justamente a aquisição de capital que vai possibilitar que o grupo consiga espaço, pois aqueles que não são capazes de produzir, de fazer uso de um capital simbólico têm como conseqüência a falta de espaço. Considerando por sua vez, que as Igrejas Universal, Mundial e Internacional estão localizadas em um ambiente predominantemente 1699

católico e para, além disso, um dos maiores centro de romarias do país, as mesmas tentam ao máximo se instalar com sucesso no terreno religioso juazeirense. Para tal feito as igrejas neopentecostais se utilizam de estratégias como, por exemplo, a acomodação dos seus templos em pontos cruciais do município, como o centro. O centro que não apenas possibilita um grande trânsito de pessoas, mas que também facilita a atração de fiéis, ou seja, de agentes específicos que as igrejas têm anseio, como as travestis, para combater o mal que segundo as denominações religiosas lhe abalam. Em relação à igreja Internacional da Graça de Deus não se dá de forma muito diferente. Uma vez que, a mesma se encontra na Rua São Paulo próxima de lojas de todos os tipos. Assim sendo, facilita também a adesão de fiéis e faz com que as reuniões nãos sejam restritas apenas para o público da igreja. Visto que, em muitos momentos em que estou assistindo as reuniões percebo que muitas pessoas que passam na calçada muitas vezes mostram interesse pelo culto, parando e ouvindo o que está sendo propagado. É fato, contudo, que essa situação não demonstra apenas interesse pela reunião, pois muitas vezes há pessoas que demonstram estarem incomodadas pelo barulho que muitas vezes alguns pastores fazem na sua pregação. Entretanto, o que deve se considerar aqui é o fato de que chamam atenção, atraem e possibilitam uma maior acessibilidade. Afinal de contas, essas igrejas por se encontrarem em pontos estratégicos da cidade entram na casa, entram no trabalho e entram muitas vezes na vida de muitas pessoas, como é o que caso dos fiéis convertidos. Vale lembrar, que as igrejas neopentecostais são conhecidas, sobretudo, pela grande ousadia na oferta de bens religiosos. Assim sendo, o neopentecostalismo atua de forma diferenciada de outras denominações religiosas principalmente no que diz respeito à maneira de atrair fiéis. Visto que, as mesmas tanto em panfletagem quanto em seus cultos não apenas internalizam no crente a ideia de que suas demandas serão solucionadas, mas passam a certeza de solução. Uma 1700

grande estratégia utilizada por essa vertente religiosa é justamente as infinitas campanhas que realizam na igreja. Essas campanhas têm como finalidade básica não apenas estimular a permanência do fiel na igreja, mas as campanhas também passam para o crente a mensagem de que os seus dilemas serão com certeza solucionados. Um dado interessante

a

ser

salientado

é

o

caráter

pragmático

dessas

campanhas, pois as igrejas não apenas passam a ideia de que o milagre será alcançado, mas principalmente que a benção pode acontecer

de

forma

muito

prática,

rápida

e

imediata

sem

necessariamente exigir um esforço físico do fiel. Na questão das campanhas é importante mencionar uma diferenciação entre práticas católicas e evangélicas, nesse caso específico neopentecostal. Visto que, para além, da igreja Mundial, Universal e Internacional se encontrarem em locais estratégicos da cidade, nesse caso no centro, as mesmas também se encontram em um terreno marcado por uma forte base católica, onde se tem presente a figura simbólica do “Padim Ciço”. O tensionamento que se revela entre católicos e evangélicos é justamente o combate à idolatria, tendo como foco central o Padre Cícero, considerado pelos católicos como santo popular e, no caso das igrejas neopentecostais, na concorrência face à oferta de bens e serviços religiosos relacionados à resolução de problemas de ordem física, emocional ou material, através de bênçãos e graças. As igrejas evangélicas, sobretudo as neopentecostais, atribuem ao Padre Cícero um caráter de impotência e, em contrapartida, afirmam a verdade e a eficácia das práticas por elas empregadas. Assim sendo, as principais igrejas neopentecostais localizadas no centro de Juazeiro do Norte atribui à figura do Padre Cícero um caráter de um homem desprovido de qualquer atuação em benefício das pessoas.

As

correntes

por

sua

vez,

empregadas

nas

igrejas

neopentecostais tendem a reafirmar a supremacia de um Deus que tudo pode e tudo faz na vida do fiel. Por outro lado, tais igrejas 1701

enfatizam a impotência do Padre Cícero no que diz respeito à por fim nos dilemas do crente. Outra questão que deve ser considerada é sem dúvida alguma o discurso de praticidade e facilidade no alcance da benção pregada por essas denominações religiosas. Uma vez que, se no universo católico, um romeiro, por exemplo, que deseja fazer uso de uma graça, o mesmo muitas vezes sobe as escadas do horto de joelho para conseguir o milagre. Esse gesto de certa forma evidencia um sofrimento, uma penitência, assim sendo, no catolicismo se reconhece a figura do homem como um ser dotado de pecados e muitas vezes não merecedor da graça, desse modo, ele precisa passar por uma penitência, por um sofrimento. Na vertente neopentecostal, contudo, o discurso que se dar é o oposto do que se ver na igreja Católica, pois as lideranças neopentecostais ressaltam que o fiel pode fazer uso de uma benção, sem precisar necessariamente passar por algum sofrimento. Portanto, se no catolicismo benção está associada à penitência a sofrimento, nas igrejas neopentecostais a benção é relacionada a praticidade, facilidade. Como pode ser percebido na fala de uma fiel da igreja Mundial do Poder de Deus onde a mesma afirma: Eu tinha uma bursite muito forte no meu braço há trinta e cinco anos, forte que eu não podia lavar roupa, quando eu lavava roupa passava a noite toda gemendo, chorando, muito chorando de dor, minha filha via isso, fui curada também lá na igreja Mundial dos Poderes de Deus, tomando água ungida em casa, dormindo com a toalhinha sê tu uma benção. (E. M. 45 anos. Entrevista realizada por Itamara Meneses em Juazeiro do Norte, 12/12/2011).

Essas práticas, tão recorrentes nas igrejas neopentecostais, podem ser pensadas a partir de duas perspectivas. Uma delas é justamente a legitimidade da igreja. Contudo, a água ungida, a toalha Sê tu uma benção foram entregues em uma denominação intitulada igreja Mundial do Poder de Deus. Esse fato, sem dúvida alguma, 1702

possibilita a legitimidade e a reafirmação da eficácia da igreja. Uma vez que, a água ungida, por exemplo, foi ungida por Deus, mas foi também um pastor da igreja Mundial que possibilitou essa unção indo até o monte para realizá-la. Assim sendo, o primeiro elemento que pode ser pensado a partir dessas práticas é a ênfase na eficácia da igreja. O segundo elemento é justamente a especificidade da localidade, ou seja, Juazeiro conhecido como terra do “Padim Ciço” e dessa forma, essas práticas com esses objetos ao tempo que enaltecem a igreja, mostram também que o poder da igreja em parceria com Deus que tem poder é muito maior do que o Padre Cícero. E para, além disso, mostra que o milagre na igreja neopentecostal pode ser conseguido sem grandes sacrifícios ou penitências. Diante disso, é importante mencionar, que o caráter matricial, fundado num processo histórico secular, marcado por um intenso sincretismo, atua na constituição do catolicismo enquanto religião tradicional dos brasileiros. O caso específico de Juazeiro, por ser um espaço alicerçado no catolicismo, esse caráter matricial se torna mais preponderante, visto que a cidade vive politica, econômica e religiosamente em torno da figura do Padre Cícero, santo popular, personagem influente que transformou essa terra em um locus sagrado do catolicismo popular. Diante desse quadro de hegemonia do catolicismo, torna-se imperante a construção de uma visão mais aprofundada

e

ampliada

do

campo

religioso

na

localidade,

considerando outras formas de crenças, práticas e representações religiosas, especialmente o crescimento evangélico. (PAZ, 2011) Frente

a

esse

cenário

o

que

deve

ser

ressaltado

é

a

especificidade de Juazeiro do Norte, pois, apesar de ser um palco de grandes romarias em devoção ao Padre Cícero, se faz presente na localidade uma grande quantidade de evangélicos. Para, além disso, se faz presente o neopentecostalismo que com toda sua força e estratégias atuam combatendo a figura do Padre Cícero. Além disso, nesse cenário religioso dinâmico, percebe-se que para além dessa 1703

tensão entre neopentecostais e católicos se faz presente uma grande movimentação de fiéis em busca de soluções para seus dilemas. E o conflito está também no momento em que esses crentes que transitam por entre várias denominações são ex-católicos e muitos eram devotos do Padre Cícero. Contudo, na situação atual deixaram o catolicismo e, junto com isso, deixaram de apelar ao Padre Cícero para tentar encontrar respostas em denominações evangélicas. Assim sendo, nessa busca por respostas e soluções circulam por entre o universo neopentecostal e chegando às igrejas neopentecostais encontram lideranças religiosas que se utilizam de várias estratégias para fazer o fiel acreditar que na específica denominação fará uso de grandes bênçãos. Uma dessas estratégias é justamente fazer o ex-católico desconstruir a ideia do “Padim Ciço” como um homem capaz de mudar a condição de vida do fiel. As igrejas neopentecostais em Juazeiro fazem uso de uma diversidade de estratégias para associar à imagem do Padre Cícero um caráter de um homem como qualquer outro, totalmente desprovido de poder de atuação. Visto que, as principais igrejas neopentecostais em Juazeiro como a Igreja Mundial do Poder de Deus, a Igreja Internacional da Graça de Deus e a igreja Universal do Reino de Deus enfatizam a todo tempo que o único capaz de mobilizar e transformar a vida do fiel é Deus. Além disso, são muitas as estratégias utilizadas pelos líderes dessas igrejas para fazer o fiel acreditar nisso. Para tanto, o neopentecostalismo trabalha em duas perspectivas: ao tempo em que promove um discurso de Deus como único capaz de agir na vida do fiel, também trabalha na perspectiva de promover a legitimidade da igreja. Frente a tudo que foi colocado o que deve ser considerado é o fato de que no Juazeiro do Norte se vive na contemporaneidade um campo religioso muito dinâmico e plural. Para, além disso, perceber que as igrejas neopentecostais que buscam insistentemente espaço em 1704

uma terra considerada do Padre Cícero utilizam diversas ferramentas para conseguir o objetivo de atuar e com sucesso em um cenário marcado pelo catolicismo. Assim sendo, as estratégias dessas igrejas são muitas, desde se instalar no centro da cidade que possibilita um maior acesso as mesmas, como também a se contrapor a figura do santo popular, combatendo a idolatria, ostentando a eficácia de seus resultados e a ineficácia do Padre Cícero.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOURDIEU, Pierre. Efeitos de lugar. In: ___________. A miséria do mundo. 5° Ed. Petrópolis: Vozes, 2003. P. 159-166 MARIANO, Ricardo. “Expansão pentecostal no Brasil: o caso da Igreja Universal”. Estudos Avançados vol. 18, n. 52, São Paulo set/dez 2004. ____________. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. (2ª Ed.) Vozes: Petrópolis, 2005. PAZ, Renata Marinho. Projeto de Pesquisa: Neopentecostais: uma análise preliminar sobre o trânsito religioso em Juazeiro do Norte - CE

1705

“QUANDO O SAGRADO E O PROFANO COEXISTEM – A PRESENÇA DO ÁLCOOL NOS RITUAIS DE UMBANDA”. Melina Sousa Gomes519 Jânia Perla Diógenes de Aquino (orientadora)520 Daniel Italo Alencar Barros 521

Resumo: A pesquisa que vem sendo empreendida trata da realização de etnografia em um Centro de Umbanda localizado em Fortaleza. Tem como objetivo analisar os sentidos envolvidos no consumo de álcool durante os rituais de Umbanda. Para tanto estão sendo realizadas visitas semanais, com coleta de dados de maneira informal, gravações de áudio, registro de imagens e diário de campo, além da realização de entrevistas. Pretendo deter-me em momentos que expõem com maior clareza o cerne da pesquisa; para tanto, a ocasião das festas e a atenção especial para os pontos cantados no terreiro são bastante representativos. Deve-se atentar também para as relações entre sagrado e profano, pois o consumo de bebidas alcóolicas não deve ser realizado fora do terreiro. É sobre este último ponto que o presente artigo trata.

Palavras chaves: Ritual de umbanda; álcool; sagrado e profano.

1. INTRODUÇÃO

Estes escritos consistem em um breve artigo para refletir, à luz das ideias daquele que é considerado o pai da sociologia, acerca de algumas de suas concepções e relacioná-las ao meu objeto de pesquisa. Ele é fruto de uma das formas de avaliação da disciplina de

519

Graduado em Psicologia (UFC), Mestra em Sociologia (UFC). Integrante o Núcleo de Psicologia Social do Trabalho (NUTRA/UFC) e o Núcleo de Estudos Sobre Drogas (NUCED/UFC). Formação em Fenomenologia Existencial / GestaltTerapia. [email protected]. 520 Graduada em Ciências Sociais (UFC), Mestra em Sociologia (UFC) e Doutora em Antropologia Social (USP). Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (UFC). Pesquisadora do Laboratório de Estudos da Violência-LEV. Pesquisadora do INCT-Instituto Nacional de Ciência e TecnologiaViolência, Democracia e Segurança Cidadã. 521 Graduação em História (UFC), Mestrando em Psicologia Social do Trabalho (UFC). [email protected].

1706

Teoria Sociológica I, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará. A obra escolhida foi As formas elementares da vida religiosa, apresentada por mim em seminário na sala de aula. A escolha deu-se pela proximidade desta com meu objeto de pesquisa, sendo imprescindível em meu referencial bibliográfico. Embora não seja considerado propriamente um antropólogo da religião, Durkheim traz debates que contribuem de forma significativa para pensar algumas questões sobre esta ciência. Nesta obra o autor chama atenção para vários pontos, como a distinção entre animismo e naturismo, o totemismo, as relações entre sagrado e profano, além de questões metodológicas. Em minha pesquisa, pretendo estar mais atenta às relações entre sagrado e profano. A escolha por discorrer sobre um clássico da sociologia em detrimento de autores da antropologia contemporânea deu-se pelo fato de que, por eu não ser extamente da área de Sociologia, e sim da Psicologia, creio ser pertinente iniciar meus estudos com clareza das obras fundamentais, tendo em vista que esta disciplina foi voltada somente ao estudo de Marx, Durkheim e Weber.

1.1 - Apresentando a pesquisa e o campo Meu projeto visa a realização de uma etnografia em um terreiro de umbanda do qual sou adepta. As questões metodológicas, bem como as

ressalvas

necessárias

ao

esclarecimento

devido

ao

meu

envolvimento na doutrina, são discutidas no capítulo metodológico. O

Centro

Espírita

de

Umbanda



Pelintra

das

Almas



denominação oficial do terreiro– localiza-se na periferia da cidade de Fortaleza e conta com uma média de 30 filhos de santo. Suas sessões – 1707

denominadas giras – são realizadas aos sábados, aberta para visitantes. Nas quartas-feiras ocorrem reuniões restritas aos filhos de santo. Nestas reuniões são discutidas questões de ordem prática, como organização de festas, além da realização de grupos de estudo e resolução (ou apaziguamento) de conflitos. Eventualmente ocorre também uma gira. Minha primeira visita ao centro de umbanda ocorreu no ano de 2007 para realização de um trabalho para a disciplina de Psicologia Social II, à época de minha graduação em Psicologia. Dentre os elementos recorrentes nos rituais, um em especial me chamou a atenção: as bebidas alcoólicas. No momento não pude me deter neste aspecto específico, pois havia muitas outras questões a tratar. Agora, porém, é o uso ritualístico de álcool o cerne de meu projeto. Diante do exposto, minha pesquisa tem por objetivos principais: a) perceber os sentidos atribuídos pelos adeptos a este consumo ritual; b) analisar as possíveis aproximações entre entidade espiritual/substância ingerida e c) procurar compreender as relações entre sagrado e profano, já que a bebida alcoólica (elemento profano) é sacralizada no espaço e no tempo do ritual, sendo vetada em outros momentos. Para efetivação dos objetivos, pretendo me valer de registro das girase de outros momentos em imagens (fotos e vídeos) e arquivos de áudio, bem como anotações em meu diário de campo e realização de entrevistas semi-estruturadas (BEAUD e WEBER, 2007).

2. SOBRE A PRESENÇA DO ÁLCOOL No período em que estive frequentando o terreiro, não tenho recordação de alguma gira que não tenha contado com a presença de bebidas alcoólicas. Raramente – uma vez por ano, na festa do dia 13 de maio, dedicada aos Pretos Velhos – não ocorre a ingestão de 1708

álcool, pois a bebida de preto velho é o café, embora este possa ser misturado ao vinho ou à cachaça, a depender da preferência da entidade. Mesmo que nesse dia só se tome o café puro, tipicamente forte e amargo, as oferendas realizadas contam com bebidas ofertadas às entidades, o que continuo considerando como presença de álcool durante o ritual. As giras duram em média quatro horas e desenvolvem-se mediante a realização de rituais que seguem necessariamente uma ordem, o que não significa que sejam previsíveis. Explico: os trabalhos devem necessariamente ser abertos com as orações e os cânticos de abertura; em determinado momento, há a “virada de banda”, caracterizada pela presença de entidades específicas; os trabalhos continuam “com a banda virada” e, para terminar, ocorrem as orações e cânticos de encerramento. A categoria nativa “banda” corresponde às “linhas” ou “correntes de orixá.” Por exemplo: abril é o mês do orixá Ogum, sincretizado com São Jorge. Assim sendo, este período é de homenagear o referido orixá: a gira inicia com saudações à Ogum, com entidades da “linha de Ogum” e após a passagem de um boiadeiro a “banda é virada” e a linha de trabalho muda, podendo iniciar uma “corrente” de Preto Velho, Oxum, Iemanjá, ciganos etc. Aqui está a surpresa do ritual, que somente é efetivada se respeitadas as etapas descritas. Em uma gira comum, que não apresente caráter festivo, há uma ordem e uma hierarquia que regem o andamento da sessão. Entidades específicas vêm “trabalhar em terra” para que neste momento tudo corra conforme o planejado e respeitando as divindades. Cada entidade tem uma função, que normalmente é explicitada em seu “ponto cantado”, que é a música de anúncio de sua chegada e saudação, na qual sua doutrina e função são esclarecidas. Esses pontos

1709

cantados, também chamados de “corimbas”, são orações e também demarcam o andamento da gira. Como nas músicas é recorrente a referência ao álcool, pretendo explorá-las enquanto elemento rico e esclarecedor sobre as funções rituais que serão problematizadas. O momento das festas – que na umbanda não são poucas – também merecem especial atenção, pois nelas alguns elementos rituais podem ser modificados. Em ambos os casos, o álcool não está ausente. Para abertura, firmação de segurança material e espiritual da casa, para saudar e para despedir-se, para confraternizar-se e identificar-se, as bebidas compõem cenário indispensável no terreiro. Sua importância e valor ritual são indiscutíveis, o que conduz ao questionamento: e fora do momento ritual, qual sua importância? Como o mesmo elemento é encarado fora da gira, nos ambientes profanos?

3. O SAGRADO E O PROFANO Para refletir sobre a questão, valho-me dos escritos de Durkheim em As

formas elementares

da vida religiosa

(1996). Dentre outras

valiosíssimas contribuições, o autor chama atenção para as relações existentes entre o sagrado e o profano. Adentrar no universo sacro significa distanciar-se daquele considerado mundano, renascer em outro espaço simbolizado por esta passagem. Hoje em dia há quem afirme que estes dois universos também não são excludentes, mas correspondem a domínios diferenciados e ocupam lugar de destaque nos rituais. Um bom exemplo desse distanciamento é o confinamento para feitura de santo existente no candomblé (SANTOS, 1975). Embora menos 1710

comum na umbanda, este rito diz respeito à incorporação do sujeito naquela comunidade, tendo a partir daquele momento obrigações para com sua “nação de santo” e seu “orixá de frente”, ou seja, simboliza o distanciamento do universo profano através da renúncia a outras

atividades

que

agora

terão

seu

lugar

ocupado

pelos

compromissos assumidos. O processo ocorre de forma semelhante na umbanda. Para ser adepto desta religião, a pessoa deve passar pelo ritual de “lavagem de cabeça”, que não tem o mesmo sentido de “fazer o santo” no candomblé. Lavar a cabeça é um bom correspondente do batismo católico; enquanto na feitura de santo do candomblé seu orixá principal já se apresenta, na lavagem de cabeça da umbanda o caminho é aberto para que ele se aproxime de você, que agora está apto a recebê-lo. Esta aptidão é alcançada graças à preparação anterior, que consiste geralmente em um período que varia entre três e sete dias nos quais se deve abster de relações sexuais, carne vermelha, bebida alcoólica e sentimentos negativos, como raiva e inveja.Liberto dessas variáveis mundanas, o adepto está preparado para formalizar seu compromisso, pois é possível sair do mundo profano e adentrar no universo sagrado, Mas a maneira como essa passagem se produz, quando ocorre, põe em evidência a dualidade essencial dos dois reinos. (...) A iniciação é uma longa série de cerimônias que têm por objetivo introduzir o jovem na vida religiosa: ele sai pela primeira vez do mundo puramente profano onde transcorreu sua primeira infância para entrar no círculo das coisas sagradas (...) Ele renasce sob uma nova forma (DURKHEIM, 1996, p.22-23).

Essa formalização ocorre no momento do ritual de iniciação, que conta com água, vinho, banho de ervas e perfume para que a cabeça seja lavada. Estes elementos combinados simbolizam a purificação e

1711

limpeza necessárias para que o novo iniciado cumpra de maneira satisfatória suas novas obrigações. Quando uma pessoa torna-se filha de santo novos compromissos de ordens práticae simbólica são assumidos. Dentro da hierarquia do terreiro, ela passa a ocupar um lugar que lhe é destinado junto à roda mais interna da gira, a “corrente”, juntamente com seus novos irmãos. “Põe roupa na casa”, ou seja, passa a vestir-se obrigatoriamente de branco ou outras cores conforme o calendário festivo e as ordens da casa. Esta nova posição concede mais proximidade com as entidades, maior envolvimento nas atividades do centro, maior liberdade para desenvolver sua mediunidade (torna-se lícito iniciar as práticas de incorporação), mas sobretudo aumenta sua obrigação de estar sempre presente e cumprir com os deveres de um filho de santo para com seu orixá, como a realização de oferendas, bem como cantar e atendê-lo durante as giras. As oferendas na umbanda são realizadas para agradar, pedir e/ou agradecer uma entidade. As entidades são seres espirituais e Por seres espirituais, devemos entender sujeitos conscientes, dotados de poderes superiores aos que possui o comum dos homens; essa qualificação convém, portanto, às almas dos mortos, aos gênios, aos demônios, tanto quanto às divindades propriamente ditas. [...] O único comércio que podemos manter com seres dessa espécie se acha determinado pela natureza que lhes é atribuída. São seres conscientes; não podemos, portanto, agir sobre eles, senão como agimos sobre as consciências em geral, isto é, por procedimentos psicológicos, tratando de convencê-los ou de comovê-los, seja por meio de palavras (invocações, preces), seja por oferendas e sacrifícios (DURKHEIM, 1996, p.11-12).

Essas oferendas contam com a oferta de comidas, bebidas e velas. Não podem ser preparadas por qualquer pessoa; há um cargo hierárquico específico para o responsável por fazê-las. Desde o momento de seu preparo até a “arriada” (momento de entrega à 1712

consagração pela entidade), gestos e pensamentos devem ser medidos e controlados, sob pena dessa oferenda ser recusada ou resultar inútil. Depois dela pronta e devidamente arriada, o ritual deve seguir normalmente até o momento de “levantar” (recolher) a oferenda. Enquanto essa comida ou essa bebida estão arriadas, elas são sagradas e destinadas aos orixás e guias espirituais, pois delas dependem para emanar suas forças. Segundo Durkheim (1996), “a dependência é recíproca. Também os deuses têm necessidade do homem: sem as oferendas e os sacrifícios, eles morreriam” (p.21). O autor diz ainda que qualquer coisa pode tornar-se sagrada, contanto que tenha um rito para tal caráter, “inclusive, não existe rito que não o tenha em algum grau. Há palavras, frases, fórmulas, que só podem ser pronunciadas pela boca de personagens consagrados; há gestos e movimentos que não podem ser executados por todo o mundo” (p.20). Tomando por base essa citação, é hora de refletirmos sobra a performance ritual no que diz respeito ao álcool.

3.1 - Quando o álcool é sagrado

Turner (1988) explicita em capítulo dedicado à performancena umbanda brasileira algumas possibilidades para que se desencadeiem redes de fofocas e intrigas. Uma delas é a frustração do ritual, agindo de

maneiras

incongruentes

com

a

doutrina

da

religião

e,

principalmente, em dissonância com a filosofia do centro. Cada centro de umbanda tem um modo de funcionamento particular, o que confere aos terreiros grande heterogeneidade.

1713

Na casa que vem sendo pesquisada, em termos gerais, é esperado que os iniciados que trabalham com incorporação estejam aptos a beber, mas não a se embriagar. Um médium que demonstra sinais de embriaguez é tido como desequilibrado, pois ainda não consegue, através da incorporação, dissipar os efeitos comuns do álcool. Um adepto seguro é aquele que ingere, em uma mesma gira, substâncias como cerveja, whisky, vinho, campari, rum e, ao final, não apresenta sinais nítidos de embriaguez. Um iniciado que não entra em estado de transe também pode consumir bebidas durante a gira, porém em menor quantidade. Ele só bebe

quando

convidado

pela

entidade

a

fazê-lo;

e

este

compartilhamento é sempre prenhe de sentido. O comum é que, através da bebida, bem como da fumaça, a entidade que lhe faz o agrado efetive o trabalho que vem sendo desenvolvido. Até o momento, consigo distinguir quatro sentidos atribuídos ao álcool durante o ritual. São eles: 1) o de confraternização: é o momento que as entidades socializam

com

os

filhos

de

santo

e

convidados,

descontraidamente e de forma feliz, afinal teve uma festa – com comida, bebida, roupas e decoração – toda dedicada a ela. Sua bebida é compartilhada, geralmente distribuída em forma de agradecimento e reconhecimento. 2) o de limpeza, como se com o fato de ingerir uma substância forte, capaz de alterar o estado de consciência, pudesse limpar a alma dos sujeitos não incorporados. 3) o de confirmação, quando algo é pedido,

alcançado ou

acordado em ponto pacífico. Neste caso, geralmente a bebida da entidade é compartilhada como fiel após breves cerimônias. 4) O de identificação, este talvez o mais distante da religião e mais próximo da visão antropológica. Sabendo que a umbanda surge em um contexto de consolidação da identidade nacional 1714

(GUIBERNAU, 1997; ORTIZ, 1980), os tipos representados pelas entidades estão ligados ao universo do imaginário popular, a saber: malandros, mulheres sedutoras e experientes

que

lembram prostitutas, crianças travessas à Saci Pererê, Pretos Velhos e Pajés curandeiros, sereias e princesas. Os hábitos e atitudes destas entidades devem ser próximos aos do cotidiano, para que seja possível o despertar de sentimentos empáticos e a partir daí disseminar-se uma religião voltada à margem social, àquilo que, bem como as tipologias construídas, fogem do moralmente correto – mas nem por isso deixam de ser dignos de fé, confiança e gratidão. Sobre este último ponto é que repousa a interface mais explícita entre a umbanda e a antropologia. Analisar os sentidos compreendidos dentre os rituais de beber (e por conseguinte comer) simbolicamente na umbanda diz respeito à compreensão reflexiva de um imaginário acerca de nossa própria formação cultural, gastronômica e religiosa.

3.2 - Quando o álcool é profano

Nesta religião é curiosa a interface entre as esferas do sagrado e do profano no que tange ao álcool. Percebe-se o caráter ambivalente da substância:no âmbito do sacro, sua utilização diz respeito a um processo de cura específica – seja de enfermidades do corpo ou da alma, para atendimento de preces ou confirmação de votos. O consumo

é

realizado

por

uma

entidade

espiritual

específica

supostamente incorporada em um médium. Dessa forma, quem consome o álcool não é o sujeito em seu corpo físico, e sim a força espiritual que lhe domina momentaneamente – e só o consome com algum propósito (NOGUEIRA, 1996). 1715

Já ao adentrar o universo profano, no caso de um médium que faça uso de bebidas alcoólicas fora do espaço sagrado, seu consumo corresponde a um enorme risco de interromper o fluxo de trabalhos iniciados anteriormente ou, mais grave ainda, desagradar uma entidade. Sob este risco, é sensato que os adeptos realizem oferendas em forma de sacrifício, orações e afins, já que supostamente Não há doença que não possa ser ligada a alguma influência desse gênero. Assim, o poder das almas cresce com tudo o que lhes é atribuído, de tal maneira que o homem acaba por ver-se prisioneiro desse mundo imaginário do qual, no entanto, é o autor e o modelo. Cai sob a dependência dessas forças espirituais que criou com sua própria mão e à sua própria imagem. Pois, se as almas determinam a tal ponto a saúde e a enfermidade, os bens e os males, é prudenteobter sua benevolência ou apaziguá-las quando estão irritadas: daí as oferendas, os sacrifícios, as preces, em suma, todo o conjunto das observâncias religiosas. (DURKHEIM, 1996, p.38).

Uma forma de sacrifício bem quista na Umbanda, que a priori não trabalha com corte e sangue de animais, é a abstinência de álcool, bem como de outras substâncias dotadas do poder de interromper este fluxo de energia, como a carne vermelha. Considera-se um médium bem desenvolvido e eficiente aquele que bem cumpre com estas e outras obrigações, que ultrapassam o momento do ritual e estendem-se para as demais esferas de sua vida (SARACENI, 2010). Durkheim (1996) comenta que “todas essas interdições têm uma característica comum: advém, não do fato de haver coisas sagradas e outras que não o são, mas de existirem entre as coisas sagradas relações de inconveniência e de incompatibilidade” (p.320). Como se percebe, o consumo de álcool é marcado por um paradoxo que só é distinguido pelo uso ritualístico. A mesma substância, ora característica do profano, é purificada mediante seu uso sacralizado.

Esta

relação

de

ambigüidade

perpassa

todo

o

desenvolvimento da história do consumo do álcool pelas sociedades (CARNEIRO, 2010). Durkheim (1996) assume que essas duas esferas 1716

precisam de uma comunicação mínima, pelo menos no sentido de negarem-se uma a outra, caso contrário a separação seria desprovida de sentido. Mas esse relacionamento, além de ser sempre, por si mesmo, uma operação delicada, que requer precauções e uma iniciação mais ou menos complicada, de modo nenhum é possível sem que o profano perca suas características específicas, sem que se torne ele próprio sagrado num certo grau e numa certa medida. Os dois gêneros não podem se aproximar e conservar ao mesmo tempo sua natureza própria (p.24).

No caso pesquisado, estes elementos aproximam-se no espaço e no tempo do ritual, sendo restritos a estes. Em dias de festa, é comum que bebidas especiais sejam ofertadas às entidades, como aluá aos pretos velhos e um coquetel com champanhe e leite condensado às ciganas. No segundo caso, que a bebida é alcoólica, seu consumo é realizado somente dentro do terreiro, no momento da festa e compartilhada pela cigana que é dona do coquetel. Ao terminar a gira, é comum que se tenha um jantar servido fora do espaço do terreiro – para beber, somente suco, refrigerante ou água. A ordem de não se consumir bebidas alcoólicas em todo o espaço da casa é expressa e seguida de forma rígida, pois este uso não seria sacro e seria, principalmente, profanador do espaço sagrado. Eliade (2001) nos fala que para o homem religioso, o espaço não é homogêneo: o espaço apresenta roturas, quebras; há porções de espaço qualitativamente diferentes das outras (...) Há, portanto, um espaço sagrado, e por consequência “forte”, significativo, e há outros espaços não-sagrados, e por consequência sem estrutura nem consistência, em suma, amorfos. (p.25 – grifos do autor). O limiar que separa os dois espaços indica ao mesmo tempo a distância entre os dois modos de ser, profano e religioso. (...) No interior do recinto sagrado, o mundo profano é transcendido (p.29).

Beber em bares, festas, no meio da rua ou dentro do terreiro sem serno momento do ritual é vedado aos filhos de santo, pois são espaços 1717

profanos e/ou agridem um espaço sagrado. Aos médiuns recéminiciados a ingestão de bebidas alcoólicas mesmo na gira também é restrita, pois seu controle ainda é duvidoso. Sobre iniciação, Eliade diz que Se o neófito morre para sua vida infantil, profana, nãoregenerada, renascendo para uma nova existência, santificada, ele renasce também para um modo de ser que torna possível o conhecimento, a ciência. O iniciado não é apenas um “recém-nascido” ou um “ressuscitado”: é um homem que sabe, que conhece os mistérios, que teve revelações de ordem metafísica (p.153 – grifos do autor).

Assim, é claro que para beber em grandes quantidades é necessário um longo tempo de preparação, autocontrole e disciplina para obtenção da referida ciência. A ordem de não beber fora da gira é mais direcionada aos médiuns “desenvolventes”, ou seja, aqueles que estão iniciando as práticas de incorporação – é como se os riscos a que eles estão sujeitos sejam maiores que a de um iniciado que não incorpore entidades. É possível, entretanto, que se consuma álcool em situações externas ao momento e ao espaço do ritual de maneira que seus efeitos

negativos

sejam

minimizados.

Instruções

passadas

pelas

entidades e pelo pai de santo podem ser seguidas no sentido de combater os possíveis males advindo deste consumo.

3.3 - Como sacralizar o álcool fora do ritual

Embora seja proibido em alguns casos e altamente recomendado o maior afastamento possível em outros, nem sempre é possível evitar a ingestão de bebidas alcoólicas fora do espaço do terreiro no momento do ritual. O ato de beber é também cultural, socializador e quiçá político – quão desagradável não é um sujeito que, em um almoço de 1718

negócios, recusa o vinho fino ofertado pelo patrão ou, no happy-hour da sexta-feira, é incapaz de tomar pelo menos um chopp para poder brindar ao fim de semana. Algumas providências podem ser tomadas com o intuito de não desagradar as entidades, bem como preservar a “coroa” – cabeça do médium, principal chakra do qual emanam energias e é o local de “passagem” das “correntes” dos orixás. Elas não devem ser usadas abusivamente, mas somente de acordo com a necessidade – caso contrário, perderia o sentido tanta energia investida na sacralização da substância e trabalhos voltados para o desenvolvimento de seu consumo responsável dentro do ritual. Uma das providências é sempre “servir o caboclo”: ao sentar à mesa do bar e pedir uma cerveja, o primeiro copo deve ser consagrado ao seu guardião espiritual, devendo ficarlocalizado no centro da mesa ou próximo ao médium, e só depois os copos das outras pessoas devem ser servidos. A cada nova garrafa pedida, o conteúdo anterior daquele primeiro

copo

deve

ser

“despachado”

(jogado

fora)

com

o

pensamento ainda na entidade e o processo se repete. No caso de bebidas destiladas, que são pedidas em doses, também uma dose deve ser destinada a alguma entidade. Como são substâncias mais fortes, estão mais associadas aos exus, então uma dose de cachaça ou whisky dificilmente será ofertada a um caboclo – para estes, vinho ou cerveja. Bebidas finas e mais associadas ao universo feminino, como champanhe ou martine, são associadas às pombagiras, os exus femininos, ligadas ao luxo. Por fim, Campari e Rum fazem parte do universo dos ciganos. De acordo com os ensinamentos pertinentes à doutrina da umbanda, a bebida torna o médium vulnerável a influências malignas, pois o estado alterado de consciência não permite o controle da coroa, deixando-a aberta e exposta a espíritos baixos. 1719

As forças religiosas são de dois tipos. Umas são benéficas, guardiãs da ordem física e moral, dispensadoras da vida, da saúde, de todas as qualidades que os homens estimam. (...) Por outro lado, há as potências más e impuras, produtoras de desordens, causadoras de morte, de doenças, instigadoras de sacrilégios. (...) As potências boas e salutares repelem para longe delas as que as negam e as contradizem (DURKHEIM, 1996, p.499-500).

O fato de servir o caboclo significa respeito e pedido de proteção. Beber sem esta reverência e referida proteção implica em estar “descoberto”, ou seja, desprotegido e consequentemente exposto aos perigos mundanos, como meter-se em uma briga, bater o carro, discutir com os amigos ou cônjuge, passar mal física e espiritualmente. Os lapsos de memória podem tornar-se mais comuns, pois você não responde mais pelos seus atos: são as forças malignas que dominam sua coroa, fazendo do médium instrumento para realização de eventos negativos, pois estes espíritos supostamente apresentam desejo de vingança e rancor em alto grau. Assim sendo, se o evento exige que se beba, como por exemplo um brinde aos noivos, é necessário fazê-lo com cautela: “tudo o que importa é que o sacrilégio seja feito com precauções que o atenuem” (DURKHEIM, 1996,

p.364). É

preciso

estar concentrado, com

o

pensamento nas entidades e atento à dose destinada ao caboclo. Nas entrevistas é possível que surjam relatos concernentes a episódios nos quais se bebeu sem as providências cabíveis. Eles são recorrentes, eu mesma já tendo presenciado algumas narrativas de como a pessoa passou mal, esqueceu de tudo ou tornou-se agressiva, eventos que anteriormente a sua iniciação não ocorriam.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

1720

Fatos como o citado acima denotam o forte elemento psicológico imbuído na questão de ser filho de santo, explicitando como a relação com os psicoativos ultrapassa a dimensão fisiológica ou orgânica e é amplamente perpassada pela psique humana. Da mesma forma que o estado de transe permite a ingestão de altas quantidades de álcool

sem evidenciar a embriaguez, a

impregnação da doutrina nas outras esferas da vida do adepto o torna também

suscetível

a

contatos

por

vezes

involuntário

com

o

sobrenatural. O “povo do santo” vivencia a religiosidade como um emaranhado de representações, na medida em que os cultos afro-brasileiros adotam um modelo de filiação que impõe modos de dançar, vestir, comer, beber, falar etc. e está organizado em uma hierarquia rígida, que não dispensa nenhum cargo – desde o de menor até o de maior prestígio – das obrigações para com o santo. Este modelo de funcionamento ocorre preferencialmente no âmbito do sagrado, podendo (e devendo) estender-se ao modo profano, contanto que respeitados os ensinamentos dispensados pelas entidades, mentores espirituais ou figuras de referência e autoridade, como o pai de santo.Goffman (2007) nos fala do conceito de fachada ao discutir sobre representações sociais. Diz que Venho usando o termo “representação” para me referir a toda atividade de um indivíduo que se passa num período caracterizado por sua presença contínua diante de um grupo particular de observadores e que tem sobre estes alguma influência. (...) Fachada, portanto, é o equipamento expressivo de tipo pradronizado intencional ou inconsciente empregado pelo indivíduo durante sua representação (p.29).

No

caso

estudado,

esta

fachada

e

seu

momento

de

representação ultrapassam a atividade ritual e a presença física dos 1721

irmãos de santo, pois os orixás e caboclos manifestam-se também no plano do imaterial, sendo presenças constantes. Sabendo que os orixás correspondem, costumeiramente, a uma tríade de características, a saber: a) identificação com elementos naturais, b) aproximação com uma profissão/atividade e c) um perfil psicológico (LEPINE, 1981),é raro estar em um local que não haja pelo menos um domínio específico de alguma entidade. Estas características devem ser bem observadas no ato de presentear o orixá, bem com no de pedir sua proteção, sob pena de não alcançar a meta em questão devido ao fato de não estar atento ao domínio da entidade. Não se deve, portanto, ofertar cerveja a um preto velho ou whisky a uma princesa – cada entidade tem suas preferências condizentes com suas histórias e demais simbolismos. Mauss (2003) em seu Ensaio sobre a dádiva analisa algumas sociedades pautadas em relações de trocas, sobretudo de conotação econômica ligada à manutenção de status. Em analogia a este pensamento, pode ser feita a metáfora relacionada às relações de trocas com divindades espirituais: seguindo a linha de raciocínio do dar, receber e retribuir, as oferendas já citadas neste texto são comumente efetivadas mediante o ato de presentear entidades espirituais (dar) – no caso os orixás, caboclos e pretos velhos – para, ao se alcançar o objeto desejado (receber), agradecer-lhe com mais oferendas, se possível superior quantitativa ou qualitativamente à primeira (retribuir). Creio que pode ser dito que o ato de presentear, durante o ritual, as entidades com bebidas alcoólicas representa sinal de respeito e agradecimento, bem como fé no fato de que aquela substância é de fato responsável por elevações espirituais, soando como um gesto cortês e ao mesmo tempo possibilitando negociações.

1722

É através da bebida e da negação de seus efeitos mundanos que a força do caboclo é posta à prova, bem como a fé do filho de santo. É seu distanciamento do universo profano, embora o simbolize muito bem, que indica o quão sacro é o espaço do terreiro; é a quantidade e variedade ingerida que, por fim, indica se os médiuns de incorporação são dignos de confiança e se de fato estão sob influência espiritual do caboclo, com forças superiores agindo sobre ele.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BEAUD, S. e WEBER, F. Guia para a pesquisa de campo: produzir e analisar dados etnográficos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. CARNEIRO, H. Bebida, abstinência e temperança - na história antiga e moderna. São Paulo: Senac, 2010. DURKHEIM, E. As formas elementares de vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 1996. ELIADE, M. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2001. GOFFMAN, E. A representação do eu na vida cotidiana. 14ªed. Petrópolis: Vozes, 2007. GUIBERNAU, M. Nacionalismos – O estado nacional e o nacionalismo no século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. LEPINE, C. Os estereótipos da personalidade no candomblé nagô.In: Moura, Carlos Eugênio Marcondes de. (Org.). Olóòrisa, escritos sobre a religião dos orixás. 1ªed. São Paulo: Editora Àgora, v., p.11-31. 1981 MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. NOGUEIRA, L. Entre a cruz e a encruzilhada: formação do campo umbandista em São Paulo. São Paulo: EDUSP, 1996. ORTIZ, R.A consciência fragmentada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. SANTOS, E. dos. Os nagôs e a morte. Petrópolis: Vozes, 1975. 1723

SARACENI, R. Doutrina e Teologia da Umbanda Sagrada: a religião dos mistérios, um hino de amor à vida. São Paulo: Madras, 2010. TURNER, V. W. The anthropology of performance. New York: PAJ Publications, 1988.

1724

MULHERES PASTOREANDO IGREJAS: APONTAMENTOS DE PESQUISA SOBRE OS SENTIDOS DA ORDENAÇÃO FEMININA DENTRO DO CAMPO RELIGIOSO EVANGÉLICO Eliana Coelho da Silva 522

RESUMO: Este artigo pretende compreender os sentidos da ordenação feminina ao pastorado na cidade de Fortaleza. Elenca a biografia das principais pastoras brasileiras dialogando com a história do protestantismo brasileiro demonstrando o contexto em que houve possibilidade de ascensão de mulheres ao cargo pastoral: o neo-pentecostalismo. Através do conceito weberiano de sentido, o artigo interpreta os sentidos da ordenação a partir dos discursos das pastoras extraídos das entrevistas com pastoras de Fortaleza, utilizando-se da metodologia de história de vida. Esta análise dialogando com outros trabalhos sociológicos sobre mulheres evangélicas demonstra que apesar das mulheres que são pastoras reproduzirem discursos fundamentalistas, a consagração delas aponta para uma mudança dentro do campo religioso evangélico.

Palavras-chave: mulheres pastoras; ordenação feminina; campo religioso evangélico.

1. INTRODUÇÃO523 “Nisto não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”. (Bíblia Sagrada - Carta de São Paulo aos Gálatas, Capítulo 3, Verso 28)

Segundo dados do IBGE (2010)524 no Ceará existem 1.236.435 de evangélicos e na cidade de Fortaleza 523.456, destes 223.966 são

522

Graduada em Ciências Sociais (UFC), Mestranda em Sociologia (UFC). [email protected]. 523 Este estudo é fruto da pesquisa para a construção da dissertação de Mestrado para o Programa de PósGraduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará cujo título é o seguinte: “Ministério Pastoral Feminino: Trajetórias de Vida e Discursos das Pastoras de Fortaleza”.

1725

homens e 299.490 são mulheres. Desta população evangélica, segundo dados da Ordem dos Ministros Evangélicos do Ceará têm-se 317 pastores (as), dos quais 33 são mulheres.525 Assim, percebe-se que o número de mulheres líderes de igrejas ainda é pequeno comparado ao número de homens pastores, contudo em um ambiente que até um passado recente não havia mulheres pastoras esse número parece significativo. A pesquisa a que me debruço não se utiliza da metodologia quantitativa, e sim qualitativa, portanto os dados estatísticos elencados para ela nos serviram para demonstração do contexto da análise. Dito isto, a questão que se emerge quando se pensa no assunto é: Quando esse fenômeno começou? Quem foi a primeira pastora? Em que momento da história do protestantismo uma mulher invoca para si o direito de liderar a igreja? Faço um recorte no protestantismo, mas precisamente o protestantismo brasileiro para tornar a análise exequível, mesmo observando que na história do cristianismo há controvérsia sobre participação feminina na liderança da igreja primitiva em seus primórdios. Mas apesar desta divergência, a Igreja Católica Apostólica Romana ainda não consagra mulheres ao sacerdócio.

2. CONTEXTO: DIFERENTES HISTÓRIAS. “Deus falou comigo. Eu tava de tarde domingo deitada pra dormir e Deus disse: “Levanta e vai evangelizar!”... É que Ele tinha uma obra comigo”. Pastora Arildes - 80 anos - Igreja Batista Peniel. (Dia 17 de agosto de 2010).

524

Informações do CENSO 2010. Fonte: http://www.ibge.gov.br/home/. Informações extraídas de pesquisa no escritório da ORMECE em seu banco de dados. Não abrange todos os pastores, mas somente os cadastrados na ordem. 525

1726

O sacerdócio (ato de ministrar os sacramentos) na igreja cristã se tornou masculino no processo de construção da história da mesma, herdado do patriarcalismo judaico antigo, graças às interpretações ortodoxas dos escritos do apóstolo São Paulo. Como em todas as Igrejas dos santos, fiquem as mulheres caladas nas assembléias, porque não é permitido que tomem a palavra. Mas fiquem submissas como ordena a lei. E quando quiserem se instruir sobre alguma questão, perguntem a seus maridos em casa. É inconveniente para a mulher falar na assembléia. (BÍBLIA, Novo Testamento, 1 Coríntios 14: 34-35)

A mulher aprenda em silêncio, com toda a sujeição. Não permito, porém, que a mulher ensine, nem use de autoridade sobre o marido, mas que esteja em silêncio [...] E Adão não foi enganado, mas a mulher, sendo enganada, caiu em transgressão. (BÍBLIA, Novo Testamento, 1 Timóteo 2: 9-12; 14)

Para explicar sucintamente a questão, recorro a uma voz nativa que resume bem o aspecto divergente da consagração de mulheres ao cargo pastoral, que é a do teólogo e Reverendo Augustus Nicodemos (mestre e doutor em interpretação bíblica e chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie), da Igreja Presbiteriana do Brasil. Ele afirma que: Entre os evangélicos existem, de forma muito geral, duas posições básicas quanto ao assunto: os igualitaristas e os diferencialistas. Os igualitaristas afirmam que Deus originalmente criou o homem e mulher iguais; a subordinação feminina foi parte do castigo divino por causa da queda, com conseqüente reflexões sócio-culturais. Em Cristo, essa punição (e seus reflexos) é removida; assim, com o advento do evangelho, as mulheres tem direitos iguais aos dos homens de ocupar cargos de oficialato na igreja. Os diferencialistas, por sua vez, entendem que desde a criação – e portanto, antes da queda – Deus estabeleceu papeis distintos para o homem e a mulher, visto que ambos são peculiarmente diferentes. A diferença entre ele é complementar. Ou seja, o homem e a mulher, com suas características e funções distintas, se completam. [...] O homem foi feito como cabeça da mulher –

1727

esse princípio implica em diferente papel funcional do homem, que é o de liderar.526 (LOPES, 1997, p. 1-2).

No Brasil, é referência importante a vinda da Igreja do Evangelho Quadrangular ao Brasil, igreja pentecostal fundada por uma mulher no inicio do século passado nos Estados Unidos. Essa denominação teve sua origem com o trabalho da evangelista Aimee Semple McPherson no ano de 1921. A fundadora desta igreja nasceu em Ontário (Canadá) em 1890. Aos dezessete anos converte-se e se casa com o evangelista Robert Semple. O casal segue para a China. Tempos mais tarde seu marido é acometido de malária e morre, obrigando Aimee a voltar aos Estados Unidos.

Então em 1917, ela percorre os Estados Unidos

realizando muitas campanhas de cura. Mas é em 1922, durante um de seus cultos na cidade de Oakland que recebe uma visão que a faria fundar a igreja do evangelho quadrangular. No Brasil, esta igreja foi fundada em São João da Boa Vista, no estado de São Paulo, no dia 15 de novembro de 1951, pelo missionário Harold Edwin Williams que, auxiliado pelo Pastor Jesus Hermirio Vasquez Ramos fundaram a primeira congregação quadrangular no Brasil.527 Esta denominação foi responsável pelo alastramento dessas “tendas de cura” nas regiões do sudeste e centro-oeste na década de 80, dando os alicerces para a criação de outras igrejas evangélicas neopentecostais brasileiras (MARIANO, 1999; FRESTON, 1993). Nesse período há emergência de mulheres no Brasil com títulos de pastoras, fundando novas denominações pentecostais com estilo diferenciado e usando a mídia televisiva para a propagação de suas mensagens, como os seus contemporâneos, colegas de cargo: Bispo Macedo, Missionário R. R. Soares e Pastor Silas Malafaia. Citarei dois

526

“Ordenação Feminina: O que o Novo Testamento tem a dizer?” Artigo em defesa da não-ordenação de mulheres a cargos de liderança da igreja feito pelo teólogo Augustus Nicodemos (presbiteriano). 527 Fonte: Site da Igreja do Evangelho Quadrangular - http://www.quadrangular.com.br/historiadaigreja.

1728

exemplos: Bispa Sônia Hernandes e Valnice Milhomens, conhecidas nacionalmente como pastoras evangélicas. Valnice Milhomens Coelho é fundadora e presidente do Ministério Palavra da fé e da Igreja Evangélica INSEJEC (Igreja Nacional do Senhor Jesus Cristo).

Valnice nasceu na cidade de Carolina,

Maranhão, em 16 de julho de 1947. Converteu-se ao protestantismo aos 15 anos de idade. Após fazer um seminário, em janeiro de 1971 é enviada como a primeira missionária da Convenção Batista Brasileira à África. Retorna ao Brasil e em 5 de dezembro de 1987 funda em Recife o Ministério Palavra da Fé, uma organização interdenominacional. Valnice foi a primeira mulher evangélica a usar a televisão como ferramenta para o proselitismo. No dia 24 de junho de 1989 entra no ar o programa “A Palavra da Fé” no canal que hoje é a RedeTV. Mas foi somente em 30 de abril de 1993 a pastora Valnice Milhomes Coelho foi ordenada pastora.528 Sônia Haddad Morais Hernandes nasceu em São Paulo no dia 22 de novembro de 1958. Mais conhecida como Bispa Sônia é fundadora e líder da Igreja Apostólica Renascer em Cristo, onde foi consagrada com tal título. É casada com Estevam Hernandes, fundador da mesma igreja, autoproclamado apóstolo. No final da década de 1980, ela e sua família deixaram a antiga denominação evangélica da qual faziam parte e começaram a organizar reuniões informais com algumas famílias, o que mais tarde se tornaria uma das maiores igrejas neopentecostais do Brasil.529 Em Fortaleza, a primeira mulher a ser consagrada pastora foi a Pastora Arildes Guimarães, fundadora da Igreja Batista Peniel de Fortaleza, da qual pertenço. Dito isto, precisarei fazer algumas considerações sobre as condições da pesquisa e o tema proposto. 528

Fonte: Site da Igreja Nacional do Senhor Jesus Cristo de Fortaleza http://www.insejecfortaleza.com.br/nossa-historia. 529 Fonte: Site da Renascer em Cristo- http://www.igospel.org.br/br/pg_igrejarenascer.php.

1729

-

As questões que me fizeram “coçar” às ideias, desde a produção de uma monografia intitulada “Entre a doutrina e o chamado de Deus: História de vida da pastora Arildes Guimarães, da Igreja Batista Peniel de Fortaleza” (2010) até a escrita do projeto do mestrado, surgiram da observação dos cultos da Igreja Batista Peniel e aprendizado dos ensinamentos através dos discursos sobre a questão feminina feita por pastores, pastoras e líderes desta denominação, da qual fiz parte desde os 15 anos de idade até o momento. Participando dos cultos da Igreja Batista Peniel de Fortaleza me inquietava o fato de que a igreja, tendo sido fundada por uma mulher, com mulheres atuando em todos os ministérios, nos discursos delas (das pastoras e líderes de ministério) perdurava o ensino da restrição, submissão e obediência femininas. Com as observações deste fato, percebi que o exercício de suas dominações carismáticas também passa pela reprodução de valores assimétricos de gênero. No campo religioso apontado aqui que tanto consagra quanto proíbe mulheres ao cargo pastoral, o que faz uma mulher se tornar pastora? Qual o impulso para o engajamento no “ministério”? As mulheres que podem ser consagradas pastoras dentro do campo religioso evangélico, mas o que as mulheres pastoras têm gerado com essa nova posição de poder? Qual a visão que elas têm sobre as questões de gênero? Que visão de gênero elas ensinam para as suas lideradas? Qual o uso que elas fazem da Bíblia? Como é que elas respaldam essa posição que elas têm com relação ao ideal de mulher de Deus? O que é ser uma mulher de Deus dentro desse campo?

3. MATERIAL EMPÍRICO: ENTREVISTAS COM AS PASTORAS. “.... porque você como mulher assumir, você tem que mostrar que você é melhor do que os homens, você não pode nem ser igual, tem que ser melhor” Pastora Rosângela - 54 anos – IPI (Entrevista- Dia 16 de abril de 2012)

1730

Utilizando a metodologia de história oral de vida para as entrevistas, obtive um quadro de quem são essas pastoras, como elas se constroem como líderes de igrejas e qual sentido que elas produzem para justificar essa atuação. “A HV (História de vida)

530

tem como ponto principal permitir

que o informante retome sua vivência de forma retrospectiva. Muitas vezes durante a entrevista acontece a liberação de pensamentos reprimidos [...] Neles se encontram o reflexo da dimensão coletiva a partir da visão individual” (BONI & QUARESMA, 2005, p. 73). Este artigo está baseado em apontamento feitos através da tessitura de oito entrevistas com pastoras da cidade de Fortaleza e a teoria sociológica531.

Nome da Pastora532

Arildes Vilhena Guimarães

Dados pessoais (idade, estado civil, nº de filhos, profissão)

80 anos, casada, 9 filhos (7 são pastores), pastora em tempo integral.

É casada com pastor? (Informações sobre o cônjuge e família)

Conversão e Religião anterior

Ano da Ordenaçã o

Igreja a que pertence e/ou que preside

Vertente doutrinária

Não. Ele presbítero emérito da igreja Presbiteriana do Brasil de Fortaleza e professor da Escola Dominical da mesma.

Data da entrevista/

Desde infância (não lembra a data). Seus pais eram crentes.

1985

Igreja Batista Peniel (preside)

Pentecosta l independe nte.

17 e 30 de agosto de 2010 em sua residência (sala de estar).533

Desde a infância. Seus pais eram

2007

Comunidad e Cristã Internaciona

Pentecosta l independe

22 de agosto de 2011 em

Local da entrevista

Engenheiro aposentado. Rita de Cássia Guimarães

55 anos, casada, 3 filhos (o mais

Sim, seu marido é pastor presidente da Igreja a que

530

Parênteses meu. Por não ser possível expor as histórias de vida na íntegra para o objetivo deste artigo me aterei aos pontos mais importantes. 532 Colocada por ordem da data da entrevista. 533 Entrevistas realizadas para a construção da monografia em 2010, antes do trabalho de campo para o mestrado. 531

1731

novo já é pastor), pastora e coaching.

pertence, além de ter sido pastor presidente da igreja Batista Peniel por mais de 25 anos e ser filho da pastora Arildes.

crentes.

Rosângela Santana

54 anos, casada, 1 filho.

Não. Seu marido somente frequenta a igreja, mas não possui nem um cargo.

Desde a infância. Seus pais eram crentes.

Ruth

52 anos, casada, 2 filhas (a mais nova é pastora e casada com um pastor), educadora física e pastora.

Sim. Seu marido é pastor presidente e fundador da igreja a que pertence. Ele também trabalha como educador físico.

Janilce Fortunatti

46 anos, separada, 1 filho.

Maria Fernanda Pechi Barriviera

Nelildes Costa

Magalhães Bezerra

l (preside junto com o esposo).

nte.

sua residência (sala de jantar).534

2000

Igreja Presbiteriana Independent e da Barra do Ceará (preside).

Histórica

16 de abril de 2012, na cozinha da sua casa.

Em 1991. Antes era católica.

2006

Igreja Betel Para as Nações (preside junto com o esposo).

Pentecosta l independe nte

19 de abril de 2012, em uma sala da sua igreja.

Não. Seu exmarido nunca se converteu, nem seu filho.

Em 2000.

2009

Igreja Internaciona l da Graça de Deus (preside uma congregaçã o).

Neopentecost al

23 de abril de 2012, no banco da igreja, entre um culto e outro.

39 anos, 1 filho, pastora em tempo integral.

Sim. Seu marido pastoreia a igreja e trabalha.

Em 1995.

1998

Igreja Novidade de Vida em Fortaleza (preside junto com o esposo).

Pentecosta l Independe nte

04 de maio de 2012, em uma sala de espera em frente a seu gabinete (igreja).

52 anos, casada, 2filhos (o mais novo já é pastor), pastora em tempo integral e uma das filhas da pastora Arildes.

Sim. Ele é fundador e presidente da igreja a que pertence, ela foi consagrada junto com o esposo.

Desde a infância. Seus pais eram crentes.

1995

Comunidad e Cristã Videira (preside junto com o esposo).

Pentecosta l Independe nte

08 de maio de 2012, em um dos escritórios da sua igreja.

Antes era católica, mas envolvia-se com espiritismo também.

534

Entrevista realizada para a construção do projeto de dissertação para a avaliação do PPGS-UFC, antes do trabalho de campo para o mestrado.

1732

Neilze Queiroz

48 anos, solteira, funcionária pública (Técnica em Educação) e pastora.

Guimarães

Não. É solteira.

Com 6 anos de idade. Seus pais eram crentes.

2007

Igreja Batista Peniel (auxilia a igreja).

Pentecosta l Indepente

É uma das filhas da pastora Arildes.

Fonte: Elaborado pela autora deste trabalho.

Em entrevistas realizadas no trabalho de campo realizado desde abril deste ano (2012) até o presente momento, a categoria “chamado” tem se repetido nas falas das pastoras entrevistadas para afirmar que o fato de que o que elas estão fazendo (pastorear igrejas) é de responsabilidade de Deus que as “chamou” para realizar essa função. “Chamado” é assim denominado o imperativo ideológico filosófico que os evangélicos dão a urgência do exercício de suas funções na igreja. Ex: “Eu fui chamado para pregar, fulano para louvar (cantar)”. Esse chamado é atribuído a Deus, não sendo possível a rejeição deste, mas sim a responsabilização de cumprir, sob pena de não estar realizando a vontade de Deus. Fatores como conjugalidade e parentesco são fortes indícios da construção de uma vocação feminina para o pastorado. E esta “tendência natural” para liderança e posteriormente para o pastorado pode ser visto como fruto de um aprendizado “inculcado” desde a infância para viver a religião do modo mais intenso possível. Claro que nem todas as crianças (meninos ou meninas) educadas com “pão e religião” se tornaram futuros líderes de igrejas (pastores, padres, freiras, mães de santo etc), este pode ser o “mistério” do “carisma”. Podendo ser explicado nos dois casos como uma mescla de capital cultural

1733

31 de maio de 2012, em sua casa (quarto)..

incorporado535 através da educação familiar adicionado a força do imaginário da vocação adquirido em suas trajetórias.

4. QUESTÕES TEÓRICAS: DIFERENTES SENTIDOS.

“Todo dia a gente passa por esse preconceito, querem provar por a mais b que não existe pastora... Mas eu como eu sempre digo, se fosse vontade da gente a gente não estaria aqui, mas chamado é chamado...” (Pastora Janilce Salete – 46 anos – IIGD)(Entrevista – Dia 23 de abril de 2012)

Em “Economia e Sociedade” (1991) encontramos conceitos que extensamente foram usados nessa pesquisa, tais como o conceito de carisma e de dominação carismática, que reitero ser a base da legitimação das mulheres pastoras dentro de suas igrejas. Segundo Weber, carisma é “uma qualidade pessoal considerada extracotidiana e em virtude da qual se atribuem a uma pessoa poderes ou qualidades sobrenaturais,

sobre-humanos

ou,

pelo

menos,

extracotidianos

específicos ou então se a toma como enviada por Deus e, portanto como ‘líder’”(WEBER, 1991, p. 158). A base de legitimação do poder desse líder é a dominação carismática, que é a “veneração extracotidiana da santidade, do poder heróico ou do caráter exemplar de uma pessoa e das ordens por esta reveladas ou criadas” (WEBER, 1991, p.141). Utilizei o conceito de campo de Bourdieu (1989) quando afirmo que a religião é um campo, e que o protestantismo é um campo dentro de outro e que as denominações são sub-campos. No caso das pastoras evangélicas temos que muitas vezes o seu status muda dentro do campo. Em suas congregações elas são o equivalente a sacerdote 535

Terminologia de Bourdieu para indicar que os gostos “pessoais” dos indivíduos são fruto de processos de socialização da família e da escola. Ver Bourdieu, Pierre. A distinção. Crítica Social do Julgamento. 2ª Edição. Porto Alegre, RS: Zouk, 2011.

1734

ou profetas, mas em algumas denominações elas são vistas como hereges cuja existência de seus ministérios equivale a apostasia. “A mulher, ela pode liderar tudo que é de ministério na igreja... Quem executa muita coisa é mulher também, mas muitas denominações ainda não aceitam que a mulher seja a pastora, está no cargo, está ali na presidência, porque é mulher. Aí muitas vezes a Bíblia é mal interpretada com relação a mulher. Os homens interpretam da forma nordestina, machista. Aí eles interpretam que a mulher tem que tá sempre abaixo, mas a Bíblia é bem clara, que isso não existe pra servir ao senhor para fazer a obra na casa de Deus. Paulo diz lá na Palavra, que não é homem nem mulher, nem branco ou preto, né? Então ele vai dizendo que pra Deus não existe isso, essa diferença”(Pastora Ilzinha, 31 de maio de 2012)

“A legitimidade religiosa num dado momento é o estado das relações de força propriamente religiosas neste momento, isto é, o resultado de lutas passadas pelo monopólio do exercício legítimo da violência religiosa” (BOURDIEU, 1992, p. 90). Bourdieu (1999) em “A dominação masculina” aciona um fator importante a esta questão: as mulheres também reproduzem o sistema de dominação masculina É dessa forma que analiso que as pastoras também reproduzem os papéis sociais tradicionais em suas pregações. Até chegar a sua consagração e respaldo dos seus pares masculinos (os pastores da cidade de Fortaleza) há muitas disputas internas no processo de ascensão das pastoras. Em consenso com Focault entendo que “o” poder não existe, o que existem são relações de poder (FOUCAULT, 2001, p. 248). E essas relações de poder estão presentes no campo religioso evangélico e são ativados quando necessário para reforçar a crença em algum ponto da doutrina. No caso específico das pastoras, há a projeção das relações de poder para o nível doutrinário acionando a Bíblia para reforço da negação à consagração de pastoras ou para acusar as pastoras de apostasia. A doutrina é o instrumento argumentativo que legitima (ou deslegitima) o poder e o argumento de gênero está englobado neste discurso. 1735

A construção da identidade de gênero536 é um processo histórico social em que a cultura a qual pertencemos serve-se de todos os meios à sua disposição para obter dos indivíduos (dos dois sexos) o comportamento mais adequado aos valores que mais lhe interessa manter e reproduzir

(BELOTTI, 1985).

E

as

instituições

religiosas,

formadoras e reprodutoras de imaginários sociais são responsáveis pelo inculcamento537 de ideais de gênero. “O sinônimo de liderança, principalmente da mulher, é muito serviço. Então a pessoa tem que ter humildade para entender isso aí. A mulher quando vai liderar, não vai ser aquela líder da última palavra, da decisão... E a mulher sempre tem que ter o tempo de ficar em casa, cuidar da cassa, então esse tempo ela divide um pouco, então ela tem a tarde pra ir para uma oração...” (Pastora Ilzinha – 31 de maio de 2012).

O fenômeno da consagração de mulheres a cargos de liderança nas igrejas evangélicas é crescente, como o aparecimento de novas denominações no Brasil. Enquanto as igrejas de confissão histórica e as pentecostais discutem se ordenam ou não as mulheres pastoras, as denominações neo-pentecostais as ordenam sem o menor pudor e sem maiores debates teológicos sobre isso (SILVA, 2010). As primeiras pesquisas sobre o tema assinalam que muitas das pastoras existentes no Brasil foram escolhidas pelas lideranças locais através do critério da conjugalidade (mulheres casadas com pastores), sugerindo

536

Por gênero utilizo-me do conceito elaborado por Scott (1990) que é “1. O gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos; 2. o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder”. E mesmo que não haja uma relação necessariamente direta entre sexo e gênero, nestas relações sexo/gênero parece haver certo consenso de que gênero evidencia todo um sistema de relações em que o sexo está incluído (MADUREIRA, 2004, p. 14). E nas palavras de Rubin “o sistema sexo/gênero é um conjunto de arranjos através dos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana, e na qual estas necessidades sexuais transformadas são satisfeitas” (RUBIN, 1975). 537 Em entrevista com a pastora Arildes realizada em seu gabinete, ela afirmou que ensinar aos filhos sobre Deus é mais que ler para eles ou estudar com eles a Bíblia com eles. Segundo, ela, é dever dos pais “inculcar” os ensinamentos biblicos, pois é essa é a forma bíblica de ensino.

1736

que os avanços nesse campo também apresentam limitações pautadas nas identidades de gênero tradicionais538 (MACHADO, 2005). Essas informações nos leva a deduzir em primeiro momento que não há mudança paradigmática nenhuma dentro do campo religioso evangélico com relação ao papel da mulher na sociedade, pois segundo Gouvêa “em meio fundamentalista, as mulheres tendem muitas vezes a abrir mão de uma luta por direitos e conquistas socioculturais” (GOUVÊA, 2008, p. 14). Mas resposta à questão da emergência de mulheres ao cargo pastoral não é simples. Porque mesmo em um ambiente fundamentalista podemos encontrar ruptura a esse pensamento. Exemplo disso é o valor que se dá a profetizas539 nas igrejas pentecostais.

Além disso, cargos de liderança associados à

habilidades “inerentemente” femininas, tais como a direção de escola bíblica dominical e a organização de grupos de oração, são comumente atribuídos às mulheres (SANTOS, 2002). Silva (2010) aponta que mesmo que as pastoras apanhem os microfones de suas igrejas para ensinar que as esposas devem ser submissas aos seus maridos, só o fato de serem elas as portadoras da mensagem, paradoxal à suas atuações, já sugere uma mudança. Esse modelo feminino de liderança feminina neo-pentecostal não se abre ao diálogo sobre relações de gênero e a teologia feminista. Há um afastamento do debate às questões contemporâneas da sociedade e uma ênfase na defesa dos valores da religião (SILVA, 2010, p. 80).

Deste modo, na pesquisa com trabalhos recentes, percebe-se que a análise do fenômeno “mulheres pastoras” tem geralmente duas 538

Na igreja Batista Peniel de Fortaleza (objeto da minha primeira pesquisa), uma mulher só é consagrada pastora se for casada,apesar da filha da Pastora ser solteira e ser pastora. Relações de parentesco se entrelaçam nessa “exceção” a regra. 539 Mulheres que tem o dom de profetizar (proferir adivinhação sobre o futuro ou revelação de alguma coisa oculta) são muito procuradas nas igrejas evangélicas pentecostais pelos fieis das mesmas. Elas são muito respeitadas, pois se acredita terem maior contato com Deus por causa do dom que exercem.

1737

linhas de reflexão sobre o assunto “pastorado feminino”. Uma delas enfatiza a forma como esse fenômeno aconteceu em alguma denominação evangélica específica e o sentido disso para aquela denominação (CARVALHO, 1992; MARQUES, 1999; LOPES, 2001; JESUS, 2003) e o outro analisa se o fenômeno da emergência de mulheres pastoras representa uma abertura para a ação das mulheres nas igrejas (SANTOS, 2002; BANDINI, 2009; MIRANDA, 2009). Em Sahlins (1990) na sua análise sobre mudanças culturais abordada no livro “Ilhas de História” há uma teoria sobre mudanças culturais com a qual dialogo. Segundo este autor, as mudanças culturais acontecem como produto da relação história e cultura (estrutura e ação). Portanto, analisamos que nesse fenômeno não encontramos somente ruptura

pelo fato

delas

(em

algumas denominações)

conquistarem o direito ao sacerdócio oficial, mas há também adequação dos discursos tradicionais junto ao processo de suas consagrações. Sobre o discurso, Focault assevera que "por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder" (FOCAULT,p. 10, 1996). No discurso autorizado das pastoras há também espaço para o favorecimento das questões femininas como foi afirmado por Maria das Dores Machado Carismáticos e Pentecostais: adesão religiosa na esfera familiar (1996). a busca feminina da santificação expressa um aperfeiçoamento de alguns atributos do ideal de mulher predominante na sociedade inclusiva, mas constitui também uma tentativa de transcender o lugar de subordinação reservado às mulheres na ordem patriarcal (MACHADO, 1996, p.39).

1738

Ainda sobre a contradição dessa relação entre submissão e prática de ruptura, segundo Van Velsen, pode-se perceber que “está surgindo um crescente desejo entre os antropólogos no sentido de realmente entender como as pessoas convivem com as suas normas, que são muitas vezes, conflitantes entre si” (VAN VELSEN, 1987, p. 359). E a solução para este fator é realizar na pesquisa uma análise situacional. As normas da sociedade não são um todo coerente e consistente, mas sempre são vagas e discrepantes. Por isso é admitido “a manipulação por parte dos membros da sociedade no sentido de favorecer seus próprios objetivos sem necessariamente prejudicar sua estrutura aparentemente duradoura de relações sociais” (VAN VELSEN, 1987, p. 369). A servidão a “Deus” que justificará o meu comportamento e acionará ações especificas como líder de igreja. Essa ética interna já foi bastante discutida por Weber em relação aos protestantes. Mas o interessante é analisar como essa servidão pode ser atraente se ela concede poder. “Ser usado por Deus” não é demérito algum, é um privilégio. Em um país com dificuldades históricas para a ascensão de minorias, esta profissão, “servo de Deus”, não é um “chamado” que se deva ignorar. Com isso, vê-se que não há fórmula para a ascensão de um líder de igreja evangélica. O fato mais recorrente que já havia dito é o seu carisma pessoal. E apesar das igrejas pentecostais independentes serem alvo de críticas por suas práticas fundamentalistas, estas igrejas não possuem faixa doutrinária que as resguarda. Portanto, elas são moldadas pelo “espírito”, ou seja, pelo “espírito de seus líderes”, pelo carisma deles e delas, tornando estas igrejas mais flexíveis às mudanças. O

imaginário

evangélico

da

vocação

feminina

para

o

pastorado pode ser vista dessa forma, tanto da mudança como da

1739

continuidade. Assim, viu-se neste trabalho que o cerne da proposta das pastoras evangélicas é a de que “Deus não escolhe por sexo”. “A minha monografia foi exatamente sobre isso. Sobre atos 2, que o espírito santo vem sobre homens e mulheres, vossos filhos e vossas filhas profetizarão. E o que é um pastor ou pastora? É um profeta, então se o espírito santo escolhe, ele não escolhe por sexo [...] Então se Deus escolhe quem ele quer, então que somos nós pra dizer para Deus que ele não pode escolher uma mulher para ser pastora? [...]O espírito santo chama quem ele quer não quer saber do sexo só quer saber se a pessoa se abre pra ele. Então eu vejo as igrejas que não se abrem pras mulheres, os homens são tão frágeis que não suportam que uma mulher possa ser igual ou melhor do que eles. Como existem homens que são excelentes lideres, há mulheres que são excelentes lideres. Isso não depende da gente, depende do espírito santo”(Pastora Rosângela – IPI -16 de abril de 2012).

Portanto, o seu chamado independe da sua concepção fisiológica sexual.

A idéia é de que homens e mulheres podem ser

“usados” por Deus é inovadora nesta ambiente, apesar de não ser novo o conceito de que tantos homens e mulheres serem porta-vozes da divindade. O imaginário religioso da vocação para o pastorado feminino, desse modo, torna-se o elemento subversivo para mudanças nas relações de gênero dentro das igrejas. Para as mulheres conquistarem seu próprio nome e novos espaços sociais, elas precisaram muitas vezes, subverter e reinterpretar as convenções sociais, desenvolvendo um processo de empoderamento, a partir das relações entre família, casamento e igreja. Afinal, elas estavam excluídas das tomadas de decisões, do acesso aos recursos e do exercício de suas capacidades. [...] Enquanto as mulheres estavam no “palco”, foi possível apontar a presença de lógicas hegemônicas e a maneira delas subverterem, por meio da criação de “cunhas” capazes de cavarem espaços de poder na estrutura religiosa, predominantemente masculina. [...] Tais comportamentos e pensamentos coletivos e individuais tornam-se possíveis porque as mulheres pentecostais estão construindo “buracos no poder”; estão ocupando espaços e tendo voz em âmbitos legitimados, pelo sagrado e pelo social, como espaços predominantemente masculinos. (BANDINI, 2009, p.273).

1740

Segundo Baczko (1985), os imaginários coletivos operados nas utopias têm dois lados. Ela é referencia para se questionar a realidade, mas também opera para legitimar algum sistema totalitário. O importante para este autor é considerar a inegável relação entre imaginação e poder. No caso das pastoras, quando alguns atores se sentindo oprimidos pela ordem posta para eles, decidem questionar esta ordem, não para acabar com ela, mas para interpretá-la de forma diferente, a mudança acontece, e ela se apresenta nestes microespaços chamados de congregações evangélicas, criando assim novas igrejas, novas pastoras, novas devoções. “O essencial da criação não é “descoberta”, mas constituição do novo. [...] E no plano social, que é aqui nosso interesse central, a emergência de novas instituições e de novas maneiras de viver, também não é uma “descoberta”, é uma constituição ativa.” (CASTORIADIS, 1982, p. 162).

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