UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ CAMPUS UNIVERSITÁRIO DO BAIXO TOCANTINS COLEGIADO DO CURSO DE LETRAS

ISRAEL FONSECA ARAÚJO

ENTRE A SALA E A COZINHA: O TEXTO LITERÁRIO ENQUANTO ELEMENTO QUE PROBLEMATIZA A SOCIEDADE: UMA PERSPECTIVA ANALÍTICA APLICADA À NARRATIVA O QUINZE, DE RACHEL DE QUEIROZ.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Colegiado do Curso de Letras da Universidade Federal do Pará/Campus Universitário do Baixo Tocantins, como requisito para a obtenção do Grau de Licenciado Pleno em Letras, sob a orientação do Professor Garibaldi Nicola Parente.

ABAETETUBA – PARÁ, 2005

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Universidade Federal do Pará/UFPA Campus Universitário do Baixo Tocantins/CUBT Coordenadora Pró-Tempore do CUBT: Professora Mestra Alessandra Vasconcelos Colegiado do Curso de Letras/COLLET Coordenadora do COLLET: Professora Mestra Francisca Carvalho

ARAÚJO, Israel Fonseca Entre e Sala e a Cozinha: o texto literário enquanto elemento que problematiza a sociedade: uma perspectiva analítica aplicada à narrativa O Quinze, de Rachel de Queiroz/ Israel Fonseca Araújo. Abaetetuba, PA. Universidade Federal do Pará, 2005. 57 f.

Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura Plena em Letras)/ Universidade Federal de Pará.

1. Literatura Brasileira.

2. Estudos Culturais/Relações de Gênero.

I. Título.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ CAMPUS UNIVERSITÁRIO DO BAIXO TOCANTINS COLEGIADO DO CURSO DE LETRAS

FOLHA DE APROVAÇÃO

Abaetetuba/PA, 30 de maio de 2005

_________________________________ Garibaldi Nicola Parente Professor-Orientador

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Para Giovanni, maior de todos os meus amores e a motivação de minha determinação; Para meus pais (Raimundo e Terezinha) e meus irmãos (Ismael, Isaac, Ezequiel, Daniel e Zadiel – os Fonseca Araújo), pela ajuda incondicional; Para minhas avós Henriqueta e Carmozinha e para meu avô materno Miguel (In Memorian); Para o meu avô paterno, Nilo Araújo; Para Keila, pela admiração; Para Vilma, por tudo o que somos um para o outro – e pelo inefável; Para Jacqueline, pelos inúmeros incentivos, pelos carinhos e por fazer parte de minha vida; Para o meu primo Batista e meu tio materno Manoel Luiz, pelo socorro em momentos cruciais.

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AGRADECIMENTOS

Na impossibilidade de referir todos aqueles (as) que contribuíram para a construção deste Trabalho de Conclusão de Curso (e para a conclusão do Curso de Letras), cito os (as) que a memória e o espaço a mim permitem elencar, a saber:

A Deus-Pai, pelo dom da vida; Aos (às) meus (minhas) pais, irmãos, cunhadas e demais parentes e amigos (as) – muitos e muitas!, pelo auxílio em todos os momentos em que delas (as) precisei; Ao meu filho Giovanni, por, mesmo sem saber, ter sido tão compreensivo; por esperar tanto; Ao Professor Garibaldi, por apostar na minha proposta de TCC e pelas orientações; Á Rosinete, por anos de dedicação e solidariedade; À minha tia Oneide e à família da Dona Alzira, por tudo; À Vilma, pelos apontamentos, pelo incentivo, pela dedicação; À Jacqueline, por tanto respeito, pela admiração, pelo incentivo; Aos amigos (as) colegas da Turma de Letras/2001, pelo respeito, pelo carinho, pelo incentivo, pela solidariedade, pelos anos (não terminados!) de convivência; Aos professores (as) Ana, Silene, Rosilda, Odileuza, Natalina, Fábio, Placide e Nazareno (da Escola BOM JESUS I), pela convivência; Ao Partido dos Trabalhadores (Diretório de Igarapé-Miri, na pessoa do Sr. Júlio) e ao Kennedy, pela cedência dos computadores; Ao meu tio Manoel Luiz, pelas ajudas; Aos (às) colegas de Igarapé-Miri das Turmas de Letras 2001 e 2002, de Matemática 2001 e 2004 e de Pedagogia 1998 e 2002, guerreiros (as) das muitas noites, pelas brigas, pela companhia e pela alegria.

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Foi então que [Conceição] se lembrou que, provavelmente, Vicente nunca lera o Machado... Nem nada do que ela lia. Ele dizia sempre que, de livro, só o da nota do gado... Num relevo mais forte, tão forte quanto nunca o sentira, foi-lhe aparecendo a diferença que havia entre ambos, de gosto, de tendências, de vida. O seu pensamento, que até há pouco se dirigia ao primo como a fim natural e feliz, esbarrou nessa encruzilhada difícil e não soube ir adiante.

(pp. 78 e 79 dO Quinze)

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 08

CAP. I – ESPECIFICIDADES DO TEXTO LITERÁRIO .............................................. 11 1. A LITERARIEDADE ................................................................................................. 11 2. A CONTAÇÃO ........................................................................................................... 13 3. “NORMAS ESTABELECIDAS PELO FICCIONISTA” .......................................... 16

CAP. II – ENTRE A LITERATURA E OS ESTUDOS CULTURAIS: UMA APROXIMAÇÃO POSSÍVEL ............................................................................................. 18 1. A LITERATURA ........................................................................................................ 18 2. OS ESTUDOS CULTURAIS ..................................................................................... 21 3. RELAÇÕES DE GÊNERO, ESTUDOS DE GÊNERO OU ESTUDOS DA MULHER? .................................................................................................................. 25

CAP. III – RACHEL DE QUEIROZ: JORNALISTA, PROFESSORA, ESCRITORA, FEMINISTA (?) .................................................................................................................... 29 1. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DE RACHEL DE QUEIROZ ............................................................................................................................... 29 2. A NARRATIVA O QUINZE ............................................................................... 32

CAP. IV – ENTRE VICENTE E CONCEIÇÃO: A POSTURA SEXISTA E A INCONFORMAÇÃO FEMININA ...................................................................................... 37 1. PRELIMINARES .................................................................................................. 37 2. CONCEIÇÃO: MULHER, MÃE (?) E PROFESSORA ...................................... 39 3. VICENTE: O HOMEM LÍDER-PROVEDOR .................................................... 47

CONCLUSÃO ....................................................................................................................... 53

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................... 56

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INTRODUÇÃO

A vontade de discutir Rachel de Queiroz em meu Trabalho de Conclusão de Curso surgiu em novembro de 2003 (curiosamente o mês/ano em que Rachel morreu) quando, em Literatura Brasileira IV, participei de um Seminário em classe e o nosso (da equipe) assunto foi a narrativa O Quinze, da referida autora. Após terminada a apresentação, a certeza do assunto do TCC e a abordagem central do mesmo: mostrar que o texto literário é capaz de problematizar a sociedade, além de causar deleite, encantamento e outras sensações em quem o lê. Para os efeitos deste Trabalho decidi discutir as Relações de Gênero estabelecidas pela contação dO Quinze no que concerne às posturas das personagens Vicente (o masculino) e Conceição (o feminino). Para tanto, já naquele momento sabia que deveria (e mais gostaria de) apoiar-me em considerações de autores (as) da área da Educação, ou da História, que discutam as Relações de Gênero, as disputas, as lutas de poder (geralmente implícitas) entre o homem e a mulher em sociedade – lutas muitas das vezes amparadas na parcialidade onde o masculino tenderia naturalmente a vencer por ser mais forte (?). A figura de Vicente enquanto provedor, viril, um bravo guerreiro que trabalha de sol a sol e que não se deixa vencer pela implacável seca. Conceição, por seu turno, como a mulher que diz alegremente ter nascido solteirona, que não aceita passivamente o pressuposto implícito que está na fala de Dona Inácia, a saber: que toda mulher deve casar, ter filhos (as), cuidar da casa, agüentar as infidelidades do esposo. Essas variáveis instigaram-me a relacionar Educação e Literatura (saber acadêmico/teorização e arte). Uma vez que vivemos um momento onde se fala muito em interdisciplinaridade 1, fiquei mais estimulado a analisar uma narrativa literária num recorte que a relacionasse a um outro ramo do conhecimento. Esta vontade de fazer um Trabalho que não fosse restrito à Literatura ou à Língua Portuguesa, começou a amadurecer a partir do meio do Curso de Letras e não mais me saiu da mente.

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Como o Curso de Letras prepara profissionais para atuarem na Educação Básica, o que aqui está latente acerca da Interdisciplinaridade é a nítida possibilidade de relação entre as disciplinas e/ou áreas do saber, como a Literatura e a História, por exemplo. Acerca da Interdisciplinaridade, será oportuna a leitura de FAZENDA, Ivani Catarina Arantes. Interdisciplinaridade: História, Teoria e Pesquisa. Campinas, SP : Papirus, 2002. A relação que está sendo feita neste texto entre a Literatura e os Estudos Culturais/Relações de Gênero é a seguinte: uma narrativa literária brasileira (O Quinze) está sendo lida sob a ótica dos Estudos Culturais.

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Estudos Culturais/Relações de Gênero é uma possibilidade dentre outras de relacionar a Literatura: História, Sociologia, Psicologia e outras áreas do conhecimento humano poderiam agora estar no primeiro plano, ao lado da Literatura. O que é dito nas narrativas (ou em outros textos literários não-narrativos) aponta para questões polêmicas. Por exemplo, nO Quinze 2, à página 132, quando cai a primeira chuva de dezembro, Dona Inácia e Conceição emudecem; só a “Maria, a preta velha da cozinha, irrompeu pelo corredor, acocorou-se a um canto e engulhando lágrimas e mastigando rezas, resmungava: - O Inverno! Senhor São José, o Inverno! Benza-o Deus!”. Por que tinha que ser preta e velha para estar na cozinha?!... Questões que não devem passar despercebidas quando da leitura (das entrelinhas) do texto literário, como o preconceito, a postura sexista etc.. É de suma importância frisar que os termos Sala e Cozinha, presentes no Título do Trabalho, não se referem, respectivamente, à Literatura e aos Estudos Culturais (ou às Relações de Gênero), como se poderia pensar. Referem-se, isto sim, a Vicente e à Conceição, uma vez que o narrador nos mostra que a professora não é resignada, ao passo que Vicente é o líder, aquele que está à frente e, poeticamente eu diria, na Sala. Conceição não aceita ser a Cozinha. Antes de mais nada é bom que se esclareça: 1) neste estudo considero o texto literário prosaico, com a sua tendência à denotação e à metáfora univalente; 2) debruço-me sobre uma narrativa moderna brasileira com a sua fluência na linguagem, por exemplo; 3) não pretendo e nem posso ser conclusivo, dar a última palavra acerca do que me propus discutir; ainda não estão comigo as chaves desse segredo (nem acredito que elas existam); e 4) portanto, este texto constitui-se enquanto primeiras linhas sobre a capacidade que o texto da Literatura tem em apontar para o mundo exterior, em problematizar as relações estabelecidas socialmente (sem se prender ao tempo ou ao espaço, aliás). Ressalto, acima de tudo, que não são primeiras linhas no sentido de ser o primeiro estudo nessa linha analítica no CUBT/UFPA, mas sim por ser marcado pela superficialidade, por ser cheio de limitações. Trata-se de uma perspectiva analítica porque considero esta apenas uma entre tantas outras. Resolvi relacionar Literatura e Estudos Culturais/Relações de Gênero, mas o recorte poderia apontar para outras áreas e/ou campos do saber. Entretanto as figuras centrais de Conceição e Vicente instigaram-me a procurar entender as Relações entre os Gêneros 2

As citações retiradas da narrativa O Quinze e listadas neste texto constam da edição nº 62, São Paulo : Siciliano, 1993.

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tecidas na trama dO Quinze. O foco analítico poderia apontar para os aspectos formais, para as “minudências” (MOISÉS, 1991, p. 36) e quantas outras perspectivas poderiam ser visualizadas. Preferi dividir o texto em quatro Capítulos: no primeiro, trato de algumas das Especificidades do texto da Literatura; no segundo, relaciono a Literatura e os Estudos Culturais, as Relações de Gênero, que me fascinam tanto quanto a literariedade; no terceiro, trago “um pouco” de Rachel de Queiroz para o Trabalho e, no quarto, cotejo Vicente e Conceição (e vice-versa), os elementos masculino e feminino, da forma que os pintou a fala do narrador dO Quinze. Não se trata, inicialmente, de um Trabalho que visa discutir o processo EnsinoAprendizagem, quer em Língua Portuguesa, quer em Literatura. Entretanto, uma vez que faço uma leitura possível do texto literário O Quinze sob a ótica dos Estudos Culturais/Relações de Gênero, fica implícita a possibilidade deste estudo poder contribuir com o processo EnsinoAprendizagem acima referido, uma vez que a interdisciplinaridade é a prova de que o conhecimento é um só e com o processo de Formação Continuada de Professores (as) 3. Noutras palavras: a relação entre as áreas do saber é uma realidade indiscutível. O conhecimento produzido pela humanidade apenas encontra-se dividido, fragmentado, para efeitos didáticos. Neste texto não é possível encontrar a completude, mas a superficialidade. Nele a petulância foi barrada e a simplicidade teve de entrar e, junto com ela, um pouco de poesia (esta é sempre muito bem vinda). Se, após a sua leitura, ele for considerado não restrito à Literatura todo o sacrifício terá “valido a pena”.

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As citações aqui feitas e a Bibliografia arrolada ao final do texto podem ajudar no processo de Formação Continuada de Professores e Professoras que não fogem (e nem deveriam mesmo fugir) dos “problemas deste tempo”. Considero a Formação Continuada o elemento (gêmeo do compromisso, da responsabilidade, da ética) capaz de permitir uma melhora gradual na qualidade (tão discutida) da educação formal/escolar que as nossas escolas oferecem. Autores e autoras como Tomaz Tadeu da Silva, José Carlos Libâneo e Cipriano Carlos Luckesi – para citar alguns nomes que me surgem agora na memória – ajudam grandemente nesta busca (por uma educação de melhor qualidade).

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CAP. I – ESPECIFICIDADES DO TEXTO LITERÁRIO

1.

A LITERARIEDADE

Segundo Rogel Samuel (2002, p. 08) “Literário é um certo tipo de texto que possui a literariedade, constituído pelas metáforas, as metonímias, as sonoridades, os ritos a narrativa, a descrição” (grifo do autor). O texto literário fala do real de forma verossímel, aproximada. Apreende o real. É verossímel a história que fala duma verdade não de fato, mas aparente; que toma por base a verdade (e disso dar-nos-á prova a narrativa O Quinze, de Rachel de Queiroz, ponto fulcral deste Trabalho); mas não a pinta tal qual ela existe no mundo objetivo. E não o faz objetivamente porque um dos pilares da literariadade é a subjetividade. É subjetivo o texto da Literatura porque é artístico. Não afirmo, com isto, que outros textos não possam ser subjetivos por não serem literários. Apenas falo da subjetividade presente na linguagem literária, trabalhada cuidadosamente para poder enquadrar-se nesse patamar. Rachel de Queiroz, nO Quinze, fala dum calor que mais parece uma pequena fogueira; não parece o calor do ambiente físico tal qual o sabemos da realidade concreta: sabemos que a seca é maltratante, mas chegar a esse ponto! É a literariedade. Vejamos o seguinte trecho, colhido da fala do narrador dO Quinze: “- Que sol horrível! Não sei como não cega a gente... Já estou preta e descascando, só do mormaço” (p. 15). É o exagero da expressão; a linguagem figurada. A literariedade pode ser entendida como a capacidade que o texto literário tem de captar o real de forma bela, romanceada, artística. É assim, à guisa de exemplo, que José de Alencar (via fala do narrador em O Guarani) pinta-nos uma parte, apreendida, da cultura indígena; apresenta um indígena (Peri) sobremodo forte, capaz de arrancar uma enorme árvore para que ele e Cecília possam escapar a salvos da grande enchente de que ficamos sabendo no final da trama (Alencar, 1987) – não estou falando que o indígena não seja forte. Apenas que o narrador exagerou a expressão. Valeu-se da linguagem figurada, um dos pilares da Literatura. José Saramago (1994), escrevendo sob a ótica do maravilhoso no seu conto Embargo, tomando por base o sucesso esplendoroso da tecnologia na atualidade, mostra-nos

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um homem dominado por seu carro, onde é a máquina quem manda, e o homem quem obedece: O conta-quilômetros deu um salto repentino para 90, velocidade de suicídio na rua estreita e ladeada de carros parados. (...) Como um perdigueiro que acode ao cheiro, o carro insinuou-se por entre o trânsito, voltou duas esquinas e foi ocupar lugar na fila que esperava (pp. 35 e 36).

Só para citar dois exemplos de literariedade. Através do anteriormente exposto, a partir dO Guarani e do Embargo, pode-se notar o quanto a linguagem (e na Literatura, especificamente) é forte. Reveladora da mundividência de quem escreve. Ressalto que seria impossível esgotar aqui os assuntos que podem ser explorados. Falar apenas do elemento linguagem já daria uma boa Monografia! A literariedade é, logo, a condição sine qua non dum texto que se queira literário. Sem possuir esta qualidade não pode ascender ao patamar de artístico, de literário. Sem pintar a realidade de forma artística, polivalente, não pode um texto (em prosa ou em verso) pleitear a condição de arte literária. São as metáforas, as comparações, as imagens sugeridas pelo trabalho de um grande escritor (ou de uma grande escritora), a linguagem figurada, as chaves da literariedade. Veja-se o seguinte trecho, que descreve a paisagem e usa a linguagem figurada:

Verde, na monotonia cinzenta da paisagem, só algum juazeiro ainda escapo à devastação da rama; mas em geral as pobres árvores apareciam lamentáveis, mostrando os cotos dos galhos como membros amputados e a casca toda raspada em zonas brancas (p. 13, os grifos são meus).

Falar de literariedade implica, invariavelmente, em falar da linguagem – para não falar deste em detrimento dos demais, ressalto que a linguagem é apenas um dos recursos da narrativa. Para Samuel (op cit, p. 08) a linguagem é “a possibilidade de dizer tudo o que é dito”. Portanto, escritores (as) como José Saramago ou José de Alencar valem-se dessa possibilidade e descortinam as realidades. Falam transcendentalmente acerca do mundo, da vida e das realidades que não se prendem, obviamente, ao tempo físico, exato, do relógio e do calendário. É assim que a escritora nordestina-cearense Rachel de Queiroz, nO Quinze, fala da seca de 1915, no Ceará, e não a condiciona rigidamente num tempo, uma vez que o sofrimento decorrente dela (e doutro flagelo qualquer) serve para quaisquer tempos, ou lugares:

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Conceição passava agora quase o dia inteiro no Campo de Concentração, ajudando a tratar, vendo morrer às centenas as criancinhas lazarentas e trôpegas que as retirantes atiravam no chão, entre montes de trapos, como um lixo humano que aos poucos se integrava de todo no imundo ambiente onde jazia (p. 127).

Para Marisa Lajoio (1994, p. 37) a linguagem literária é “instauradora de realidades e fundante de sentidos”. Noutras palavras: é um recurso narrativo que estabelece ou pinta realidades; que funda, cria sentidos. Rachel de Queiroz, na narrativa objeto deste estudo, pinta-nos uma realidade sobremodo adversa ao homem nordestino: a seca e seus desdobramentos para as famílias de Vicente e Chico Bento, cria sentidos – ver o item 2: A narrativa O Quinze (Cap. III). Pelo que foi exposto, que é apenas uma gota num oceano muito grande, pudemos perceber o quanto a linguagem está relacionada à literariedade. E que seja ressaltado que a linguagem é capaz de evidenciar uma relação de poder – o que pode se dar de forma implícita, disfarçada – existente nas instituições sociais. A seguir, teço algumas considerações acerca da Contação, colocando-a como um pilar da Literariedade.

2.

A CONTAÇÃO

A contação pode ser entendida como o ato ou o efeito de contar, de narrar. Moisés (2002, p. 335) usa o termo gêmeo narração. Para ele esta vem do latim e significa “ação de narrar, de tornar conhecido”. A este respeito, vejamos um trecho da contação dO Quinze:

O trem passava agora diante do Matadouro. Urubus riscavam, negrejando, o ar úmido da neblina, impregnado dum cheiro mau de sangue velho. Dez minutos mais, e o Asilo de Alienados mostrou, num claro, entre mangueiras, a fachada branca da capela. Dona Inácia ouviu, vagamente, misturados ao barulho das rodas e ao resfolegar da máquina, dois ou três gritos agudos e um fragmento de canção (p. 139).

Dessa maneira, o que o texto literário narra e que pode ser em prosa (novela, romance e conto), ou o poema narrativo, informa acerca de algo; conta uma história que tem como pano de fundo as realidades, recriadas, diga-se de passagem.

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Falo em realidades, no plural, porque estou considerando as relações interpessoais em sociedade diversas e estabelecedoras de inúmeras situações, de muitas circunstâncias: a seca, a atuação do crime organizado etc.. “Chama-se narrativa o processo em que determinados seres inventados (personagens) exercem uma certa ação (enredo), articulada no tempo e num ambiente” (SAMUEL, op cit, p. 08, os grifos são do autor). Acerca da contação a definição de Samuel é conclusiva, uma vez que nos mostra os elementos principais duma história: personagens, enredo, tempo e espaço4. O gênero narrativo é riquíssimo em mimetizar a ação humana. Incontáveis textos da Literatura poderiam dar conta do anteriormente exposto. Uma possibilidade de analisá-lo é comentar a fala de Samuel (2002, p. 12), que nos diz que a Literatura imita a “ação humana, intensificando a percepção, distorcendo a realidade”. Dessa forma, a referida arte acaba por criar uma outra realidade. Vejamos como se aplicaria o acima afirmado levando-se em consideração o conto Embargo, de José Saramago (1994). Na referida narrativa, cuja ação é-nos contada em terceira pessoa, que pertence a uma obra intitulada Objecto Quase, juntamente com mais cinco contos, a saber: Cadeira, Refluxo, Coisas, Centauro e Desforra, temos um homem e um carro como personagens principais (digo que a personagem principal é o carro!); ou seja, “seres inventados”. Um carro daquele tipo dificilmente eu diria (sem medo de errar) se existe verdadeiramente da forma que o pintou o narrador do Embargo. A ação consiste em um dia corriqueiro de trabalho contado desde o momento em que o homem acorda de madrugada até o momento em que cai do carro (depois de ter sofrido muito nas “mãos” do seu veículo), na manhã do dia seguinte. Diga-se de passagem que o homem só teve “trabalho” para lidar com as vontades do carro. É uma seqüência de peripécias que inclui cenas ilariantes como as vezes em que o personagem (o homem, desta vez) urina-se dentro do carro, preso que está, dependente como um recém-nascido. Tudo se passa nas ruas de uma cidade não descrita, num tempo não marcado cronologicamente (apenas ficamos sabendo que se passa no período próximo ao Natal, p. 36), onde o poder da tecnologia na vida moderna ou pós-moderna está patente. Saramago certamente critica a realidade; esta é uma maneira possível, particular, de vê-la: portanto, é parte de sua mundividência. Tais realidades de que falei anteriormente são muitas. Ou seja, a “história vivida e sofrida pela multidão de leitores [e de leitoras] está sempre presente, no direito ou no 4

Além destes elementos considero a linguagem, o foco narrativo (ou ponto de vista) e a temática igualmente cruciais. Sobre estes três, e os outros quatro, julgo importante a leitura de Moisés (1991 – cf. Bibliografia).

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avesso do texto” (LAJOIO, op cit, p. 46). Doutra forma diria que não é possível criar a parir do nada. O literato (a) subverte as ordens pré-estabelecidas socialmente, como o que nos conta o narrador do Embargo; mas, ressalto: quem escreve Literatura precisa criar a partir do que já existe. Rachel de Queiroz romanceou uma história, mas a contou a partir do que existia de concreto. Ressalto, igualmente, que estas considerações giram em torno do texto literário em prosa. Conforme Moisés (1991, p. 84), nesta modalidade o texto tende a uma aproximação maior com a realidade (com a vida real). As histórias contadas aproximam-se com mais facilidade e precisão ao que acontece objetivamente em nosso mundo exterior. Sabemos que há pessoas que moram na região denominada, geograficamente, de Nordeste e que, nessa região, muitas das vezes, precisam retirar-se de seus lugares onde moravam e “arribar” para outros lugares no afã de escapar da morte, da seca (são retirantes; aqueles e aquelas que saem donde moravam e vão à caça duma outra vida, para não continuar padecendo onde estão; retiram-se). Sabemos que no mundo há sofrimento, há prazer, há pessoas que se aproximam, que se afastam, que casam (ou não) etc.. Quem faz Literatura também o sabe. Por isso vale-se de sua percepção do mundo real e cria obras de arte pautadas nessa realidade. Entretanto as cria de forma bela, romanceada, amparada na linguagem figurada (conforme já se ressaltou anteriormente). Ou citando ainda uma vez mais Moisés (idem): “ao passo que a metáfora poética é polivalente, a metáfora da prosa tende à univalência (...), a prosa exprimese acima de tudo em linguagem denotativa” 5. Há que se ressaltar, para que o caráter artístico do texto literário não seja desmerecido, que essa linguagem denotativa é um recurso usado para aproximar o texto prosaico à realidade objetiva. Entretanto, a linguagem figurada (comparação, metáfora, hipérbole, outras) embeleza o texto literário em prosa e não o deixa perder o status de arte. A seguir, falo em “Normas Estabelecidas pelo Ficcionista”, o que ainda se refere ao texto literário prosaico, à Literariedade.

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Moisés (1991), na sua A Análise Literária, trata das fôrmas em verso, em prosa e dramática do texto da Literatura. Àqueles (as) que desejarem um aprofundamento maior nesses pontos, indico tal leitura, bem como a da sua A Criação Literária, em Prosa e em Poesia.

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3.

“NORMAS ESTABELECIDAS PELO FICCIONISTA”

Ao iniciar o contato com um romance de qualquer tipo, o leitor é obrigado a concordar com as normas estabelecidas pelo ficcionista. Este inventa um mundo, com base na observação, na memória e na imaginação, que o leitor deve entender como tal. Caso recuse o universo fictício que se lhe oferece, ou procure nele o relato de verídicos fatos acontecidos, só lhe resta fechar o romance e abrir o jornal (MOISÉS, 1991, p. 90, os grifos são meus).

Ainda sobre as Especificidades do Texto Literário (cujo escopo derradeiro é mostrá-lo como peculiar, bastante diferente do texto objetivo e corriqueiro que usamos em nosso dia-a-dia), neste tópico falarei de algumas conveniências intrinsecamente relacionadas a este tipo de texto, a partir da fala de Moisés, supracitada. Quando se depara com a expressão romance de qualquer tipo assalta-se à mente a convicção de que as fôrmas literárias em prosa são basicamente três (romance, conto e novela) e que, para cada uma dessas, há mais de um tipo 6. Portanto, se o texto que se está estudando, com o qual se está contactando, for em prosa, há de se esperar uma aproximação maior com o que se passa no mundo objetivo. O romance é um texto literário em prosa e, portanto, está assentado no terreno do ficcional. A ficção é uma realidade recriada. As histórias que ficcionistas (como Rachel de Queiroz) contam têm a realidade como pano de fundo; não surgem do nada, repito. Dizer que o (a) ficcionista cria seu “mundo” com base na observação, na memória

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e na imaginação é reconhecer o acima exposto: não se cria um texto literário

prosaico (ou não) a partir de não se sabe o quê. Algo existiu ou existe para que haja motivação, inspiração. Aliás, será útil dizer que as capacidades de observar, de recordar e de imaginar constituem-se em condição sine qua non da literariedade (quando se trata de narrar, de contar fatos, da ficção e também da poesia). Rachel de Queiroz era recém-saída da infância quando a grande seca de 1915 assolou o Ceará. Foi preciso recordá-la; buscar na sua memória (e em seu coração), e noutras quaisquer fontes, apontamentos para escrever a trama. Como observadora que foi, encontrou subsídios de que precisava para pôr a sua imaginação a funcionar e, assim, narrar-nos a saga dO Quinze. 6

Este Trabalho não pretende tratar dos vários tipos de fôrmas literárias, quer em prosa, quer em verso, e nem discorrer detalhadamente sobre o romance, por exemplo. Acerca do conto, do romance e da novela ver Moisés (1991), na sua A Criação Literária – Prosa I. 7 Na Academia estuda-se o tema Memória recortando-o para a linha investigativa da Formação de Professores (as), por exemplo, das Relações de Gênero e outras. Sugiro, a este respeito, uma navegada no site do Núcleo de Pesquisa do Campus Universitário do Baixo Tocantins/UFPA, a saber: www.ufpa.br/nupe/. Creio que Moisés está tratando da Memória em sentido restrito de recordação, não com o olhar metódico que as pesquisas acadêmicas a vêem.

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A nós, leitores e leitoras dO Quinze, resta aceitar as “normas estabelecidas pelo ficcionista”: um texto em prosa e, portanto, que tende à denotação porque se aproxima da realidade objetiva, da vida humana corriqueira. Uma narrativa mais longa do que o conto, supõe-se; uma realidade recriada, romanceada, contada subjetivamente, sustentada na linguagem figurada; uma história pautada no real, mas romanceada; a nós leitores (as) da narrativa queirozeana, caso não queiramos aceitar tais normas, resta somente “fechar o romance e abril o jornal”. Neste estudo não pretendi caracterizar a narrativa de Rachel como uma novela ou um romance. Caso fosse-me perguntado se se trata duma ou doutra fôrma literária a resposta seria taxativa: não sei; não tive e nem tenho como fulcro deste Trabalho responder a esta pergunta. Neste momento o que importou, acima de tudo, foi o conteúdo (o texto) e não o continente (a fôrma na qual a mensagem foi vazada). Certamente há muitas outras “normas estabelecidas”, mas a intenção não era esgotá-las, esmiuçá-las uma a uma: dizer que elas existem já é de suma importância para encarar um texto literário. Enfim, discorri, ainda que superficialmente (este texto é marcado pela superficialidade, já o disse), acerca de alguns dos vários pontos que fazem do texto da Literatura um tipo de texto especial; que fazem com que a sua mensagem, a sua linguagem sejam sutis, belas, sugestivas, polivalentes. Muitos outros pontos poderiam ser elencados. O convite está feito. Passemos a tratar, a partir de agora, de uma relação possível entre a Literatura e os Estudos Culturais.

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CAP. II – ENTRE A LITERATURA E OS ESTUDOS CULTURAIS: UMA APROXIMAÇÃO POSSÍVEL

1. A LITERATURA

A Literatura é uma das artes seculares, assim como a Escultura, a Pintura e a Música, por exemplo, e consiste no emprego/manifestação da palavra (Literatura vem de litera, que significa letra) embebida numa esfera de beleza, de poesia. Para Telênia Hill (1997, p. 26), a Literatura é “a arte da palavra”. Ressalto que a expressão “arte secular” tem a ver com o passar dos séculos; não se trata de um juízo de valor que a visse, por exemplo, em detrimento doutras manifestações artísticas (como poderia ser o caso de autores (as) que não gozam da simpatia editorial, de marketing pessoal, que estão à margem do grande público leitor). Ao falar das “Discussões Teóricas Acerca da Palavra Literatura”, às pp. 08 e 09, a professora Alciana Pantoja Rodrigues, em seu Trabalho de Conclusão de Curso, diz da dificuldade de definir Literatura – o que, segundo ela, é “um problema literário que continua em aberto”. Não obstante, ela afirma que: Na verdade, Literatura é uma linguagem específica que, como toda linguagem, expressa uma determinada experiência humana. Daí a dificuldade de se conseguir uma definição exata. Seria o mesmo que tentar conter, no rigor de um esquema racional, a mobilidade complexa da vida que ali está em palavras (p. 09 - grifos meus).

Fazer tal arte é trabalhar com a palavra. E mais: quando se ultrapassa “a materialidade do vocábulo e ingressa-se num estágio de abstração (...) já se pode falar em arte literária” (HILL, op cit, p. 27). É exprimir sentimentos, emoções, dúvidas, através do verbo. A este respeito, veja-se como o narrador dO Quinze, à p. 46, ao falar das tribulações que enfrentavam Chico Bento e sua família, conta acerca da primeira fome: “Chegou a desolação da primeira fome. Vinha seca e trágica, surgindo no fundo sujo dos sacos vazios, na descarnada nudez das latas raspadas”. Aqui as palavras carregam toda a profundidade do sofrimento devorador das forças e esperanças de Chico Bento e sua família: aqui fundam sentidos.

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Conforme Moisés, 2002 (pp. 301 – 314), o vocábulo Literatura sofreu modificações através do tempo. Inicialmente, significava o ensino das primeiras letras; depois, arte das belas letras e, por fim, arte “literária”. O autor fala acerca do alargamento da área semântica do termo Literatura (devido ao atrelamento, impossível de ser desfeito, da Literatura à palavra). Por esse motivo, surgiram expressões do tipo literatura médica, literatura filosófica, dentre outras. Para ele o equívoco seria desfeito substituindo esse literatura por bibliografia. Assim, Literatura ficaria restrito à esfera da arte. Ao longo de suas considerações o autor vai construindo conceitos, definições, para a Literatura, a saber: a Literatura é um certo tipo de conhecimento expresso por palavras polivalentes, que são as metáforas; a Literatura é um certo tipo de conhecimento expresso por metáforas; Literatura é ficção, ou imaginação; Literatura é a expressão dos conteúdos da ficção, ou da imaginação, por meio de palavras polivalentes ou metáforas. Para ele a realidade espelhada na representação não é a que se deseja conhecer, mas como aparece na mente do artista – foi o que fez Rachel de Queiroz, nO Quinze, ao falar duma realidade (a seca) não como gostaríamos de saber, e sim como ela mesma a quis pintar. Este é um conceito bastante difundido, mas aqui não pretendo esgotar a análise dos conceitos. O fazer Literatura requer uma linguagem plurissignificativa, polívoca, onde as figuras de linguagem constituem-se enquanto recursos empregados correntemente. Quer o texto seja em prosa, quer em verso, lírico, épico ou dramático, tal linguagem é sempre mais trabalhada do que aquela de que fazemos uso no dia-a-dia:

Chico Bento fitava o navio, escuro e enorme, com sua bandeira verde de bom agouro, tremulando ao vento do Nordeste, o eterno sopro da seca. Sentia como que um ímã o atraindo para aquele destino aventuroso, correndo para outras terras, sobre as costas movediças do mar... (p. 112 dO Quinze).

Esse trabalhar a linguagem é o que permite ao texto da Literatura poder enquadrar-se na esfera do artístico. Por exemplo, José Saramago, no seu Embargo, fala de um homem que remexeu as costas num movimento de gato voluptuoso: “Fez mover os músculos das costas, com uma torção de gato voluptuoso, ao lembrar-se da mulher ainda enroscada na cama àquela hora ” (p. 36). Para Samuel (2002, p. 14), a Literatura é a “apreensão do real” e esta capacidade ou possibilidade de “apreender” o real é a literariedade. A Literatura, para ele, faz parte do produto geral do trabalho humano, da cultura e a cultura de um povo realizar-se-ia, por exemplo, nas artes (p. 09).

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Uma leitura possível desta “apreensão do real” é que a literariedade fala do real que não é o exato e sim o imitado, a mimese, o sugerido pelas metáforas. Entretanto, é o real que serve como pano de fundo para a manifestação da mundividência (ou cosmovisão) – uma forma especial de interpretar o mundo - dos autores e das autoras (Moisés, 1991). É uma leitura de mundo que intelectuais têm (pessoas “comuns” também a têm) e que a expõem de uma forma metaforizada, subjetiva, pessoal, plurissignificativa. Sartre confirma esta premissa ao dizer que a Literatura fala do mundo “através de uma imagem do mundo” (apud Samuel, op cit, p. 15). Em vernáculo considera-se a Cantiga da Garvaia (ou Canção da Ribeirinha), de Paio Soares de Taveirós, século XII, o primeiro texto escrito na vertente literária 8. Desde então, e assim o será para a posteridade, a Literatura continuará a ser uma manifestação artística sustentada nas metáforas, no lado subjetivo da linguagem. Segundo Lajoio (op cit, p. 47) as histórias que a Literatura conta “não precisam ser verdadeiras”. Por conseguinte, podemos entender que o literato (a) pode distorcer a realidade da forma que a sua imaginação, ou a sua cosmovisão, o deseje; da maneira que o seu espírito criador o tencione fazer. É o que fazem, por exemplo, os autores (as) da chamada Literatura Fantástica 9, mas diga-se de passagem que não só eles (as). Saramago, já citado, exemplifica este distorcer a realidade com a narrativa Embargo, onde o autor critica a dependência humana à avassaladora tecnologia. O ser humano estaria perdendo a sua autonomia e, dessa forma, passaria a depender de suas próprias invenções: como é o caso do carro que governa o personagem do Embargo: “O encosto do banco segurou-o docemente e manteve-o preso. Que era isto que estava acontecendo?” (p. 40). A seguir, tento nocionar os Estudos Culturais no afã de ver até que ponto este “campo de teorização e investigação” (SILVA, 2003, p. 131) pode ser útil para a análise duma narrativa literária, como é o caso de O Quinze.

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Acerca da Cantiga da Garvaia ou Canção da Ribeirinha, sugiro a leitura de Moisés, 1998 (A Literatura Portuguesa Através dos Textos. São Paulo : Cultrix, 1998), onde o autor faz considerações acerca da Literatura Portuguesa “através dos textos”. 9 Sobre esta vertente da Literatura é recomendável a leitura das Histórias Fantásticas, Coleção Para Gostar de Ler, Vol. 21, da Editora Ática.

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2.

OS ESTUDOS CULTURAIS

A fim de registrar uma noção do que sejam os Estudos Culturais e, portanto, evidenciar uma relação possível com a Literatura, lanço mão das considerações que Ribeiro (2004) faz acerca de tal temática. Para esta autora os Estudos Culturais ajudam a compor o quadro das “várias teorizações que transitam no campo das ciências sociais e humanas” (p. 72). A referida estudiosa os situa enquanto “aporte teórico-metodológico capaz de fornecer pistas para [a] análise e [a] compreensão de alguns dos problemas deste tempo”. Para os efeitos deste Trabalho recorto o que se refere à analise e à compreensão dalguns dos problemas deste tempo. Como já foi evidenciado na Introdução, aqui pretendo discutir as Relações de Gênero que são tecidas pela fala do narrador nO Quinze e que se ligam às personagens principais da narrativa: Conceição e Vicente (e vice-versa). Sem pretender (inutilmente) esgotar o assunto, mas, acima de tudo deixá-lo patente, ainda mais uma vez socorro-me em Ribeiro (op cit, p. 75): os Estudos Culturais “constituem-se em uma tradição intelectual e política de análise cultural de origem britânica, cujo objetivo é identificar as articulações e relações entre cultura e sociedade”. Dentro dos Estudos Culturais estudam-se as relações conflituosas, injustas, parciais, entre os gêneros. Dessa forma, a visão sexista comumente presente em nosso dia-a-dia (trabalho, escola, clubes sociais etc.) é discutida procurando-se não só entender suas motivações maiores, mas, acima de tudo, mostrar as injustiças (daí ser uma tradição, também, política) presentes em tais relações; desmascará-las; discutir pontos de vista cristalizados socialmente (a mulher deve sempre cuidar do lar; o homem deve ser o provedor, invariavelmente; o professorado combina muito mais com a mulher do que com o homem, uma vez que a mulher é mais “maternal”

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,...). Ressalta-se que as Relações de Gênero constituem apenas um viés do

campo de atuação dos Estudos Culturais: as discriminações contra negros, idosos, povos ribeirinhos, homossexuais e outros grupos que estejam fora da “norma” também fazem parte de seu campo analítico-investigativo. É importante ressaltar que Ribeiro (anteriormente citada) está tratando das imagens midiáticas e de sua rica gama de significados; de suas mensagens implícitas que tanto dizem sem “nada dizer”. Para o que me proponho discutir neste Trabalho; para mostrar o quanto uma narrativa literária é rica em possibilidades analíticas e, portanto, a relação possível entre a Literatura (arte) e os Estudos Culturais (teorização, saber acadêmico), recortei 10

Sobre este “maternal”, ver as considerações acerca da personagem Conceição, no Cap. IV.

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as considerações que a autora faz sobre os Estudos Culturais e, assim, untá-los à literariedade. Ou doutra forma: ver uma narrativa literária sob a ótica dos Estudos Culturais, pois a Literatura é uma construção cultural. As relações binárias que Rachel de Queiroz faz nO Quinze, ao apresentar Vicente e Conceição (o masculino e o feminino) a meu ver servem para evidenciar uma Relação de Gênero. Impossível seria esgotar o assunto (já o disse na Introdução): continuo insistindo na tecla da possibilidade de se fazer uma leitura do texto literário sob o prisma dos Estudos Culturais. Um dos “problemas deste tempo”, de que nos fala Ribeiro, diz respeito às Relações de Gênero. As atuações de Vicente e Conceição (vice-versa) servem de material analítico (conforme será tratado no Cap. IV) para que se busque o entendimento e, acima de tudo, as problematizações das atuações feminina e masculina na narrativa de Queiroz. Noutras palavras: a atuação forte, máscula, viril, provedora da personagem Vicente (era o chefe dos trabalhos na propriedade da família; quando todos tiveram de ir para o Quixadá por conta da seca, ele ficou cuidando do gado, enfrentando muitas dificuldades), e a postura de Conceição: decidida, de uma mulher que não aceita passivamente a leitura que sua avó (Dona Inácia) faz do ser mulher (a saber: que a mulher nasceu para o casamento, para cuidar de uma casa, dos filhos (as)), ajudam no entendimento das relações de poder (implícitas) presentes na sociedade, neste caso trazidas à tona pela fala do narrador dO Quinze. Nelson; Theichler e Grossberg (2003, p. 07) informam-nos que “Os Estudos Culturais apresentam uma promessa intelectual especial porque tentam atravessar (...) interesses sociais e políticos diversos e se dirigir a muitas das lutas no interior da cena atual”. Destas “lutas”, o que evidencio neste estudo são as relações parciais que são tecidas pela contação dO Quinze. Conceição e Vicente não são referidos em “pé de igualdade”, conforme o que apresento no Capítulo IV. Enquanto homem, Vicente tem a sua condição de mandante nos trabalhos da família (que ele dirige) e absoluta liberdade no ir e vir. Dona Inácia gostaria de dirigir os passos da neta, que esta só andasse acompanhada, mas Conceição não é conformada como sua avó o foi na mocidade. Ler O Quinze sob a ótica dos Estudos Culturais é ver Conceição como uma personagem que está situada na trama como um ícone da mulher que não aceita ser tratada como secundária; que precisa, obrigatoriamente, ser uma esposa/mãe “dedicada” lê “dedicada” como boa para cuidar dos filhos (as) e da casa, sobretudo.

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Acerca deste “dedicada”, leia-se o que consta da Nota anterior, acerca do “maternal”.

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– onde se

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Para os autores acima citados (pp. 17 e 18) os Estudos Culturais são parcialmente dirigidos pelas demandas políticas de seu contexto e pelas exigências de sua situação institucional. Por esta ótica a narrativa O Quinze, ou outra história literária (para mostrar que o texto literário pode apontar para “lutas” ocorrentes na esfera social), pode dar material analítico para procurar entender as disputas tecidas (por exemplo) nas relações familiares – como a família paradigmática de Vicente, onde visivelmente ele tem os poderes de mando e suas irmãs, a condição de obedientes, de dirigidas. A partir desses autores ficamos sabendo que os Estudos Culturais foram forjados num contexto dum sentimento das margens contra o centro, porque, por exemplo, seus baluartes (Williams e Hoggart) vêm da classe operária inglesa e são dos primeiros (as) da classe operária a ter acesso “às instituições de elite da educação universitária britânica” (p. 28). Eles não começam a ensinar nas universidades e sim em programas de educação de adultos; não queriam mais saber de voltar à universidade. Stuar Hall, que veio das margens, assim como Thompsom, Williams e Hoggart, afirmou: “nunca mais atravessar suas portas outra vez. Mas então a gente tem que fazer ajustes pragmáticos aos locais onde o trabalho (...) está sendo feito” (apud NELSON; THEICHLER e GROSSBERG, 2003, pp. 28 e 29). Desse sentimento das margens, de estar fora do centro, que nutriram os primeiros teorizadores (as) dos Estudos Culturais, ficou o lado político em sua atuação. Nas interações sociais encontram-se material para estudo, como é o caso das relações tecidas entre homens e mulheres – geralmente parciais, onde os primeiros tendem a ser tratados como “superiores”, não raro em detrimento daquelas; entretanto não é bom esquecer que os Estudos Culturais não vêem tais relações como tendo a força centrada num pólo e a fraqueza, noutro; o poder de mando num e a obediência, noutro: homens e mulheres estão envolvidos (as) com as mesmas possibilidades e capacidades nas tensas e conflituosas interações sociais. As análises nos Estudos Culturais são “políticas” porque tomam o partido dos grupos em desvantagem na disputa social – como negros, idosos, homossexuais, mulheres e outros (estão em desvantagem por que estão recebendo tratamento desigual nas disputas sociais, mas não são mais fracos do que os outros que compõem a “norma”: brancos, jovens, heterossexuais, homens etc.). Silva (op cit, p. 31) também nos informa acerca da origem dos Estudos Culturais: eles originam-se, institucionalmente, com a fundação (1964) do Centro de Estudos Culturais Contemporâneos, na Universidade de Birmingham, Inglaterra. O Centro possuiu como impulso inicial o questionamento da compreensão de cultura que predominava na crítica literária britânica, a saber: numa “visão burguesa e elitista” a cultura era identificada,

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“exclusiva e estreitamente”, com as chamadas “grandes obras” da literatura e das artes em geral (idem). Isso implicava, por exemplo, em dizer que as manifestações da cultura popular eram preteridas por essa crítica. Como eram preteridas certamente despertaram o interesse do Centro, porque estavam à margem. A categoria Gênero é um dos viéses dos Estudos Culturais. A análise/leitura dO Quinze, sobretudo as atuações de Vicente e Conceição, pode ser feita sob a ótica de tais Relações; pelo prisma teórico-investigativo dos Estudos Culturais. Uma ressalva: com relação à ligação dos Estudos Culturais às disciplinas acadêmicas, veja-se o que Silva (op cit, p. 134) afirma:

O que distingue os Estudos Culturais de disciplinas acadêmicas tradicionais é seu envolvimento explicitamente político. As análises feitas nos Estudos Culturais não pretendem nunca ser neutras ou parciais (...). Os Estudos Culturais pretendem que suas análises funcionem como uma intervenção na vida política e social.

Rachel de Queiroz poderia ter apenas contado a história da grande seca que assolou o Ceará, em 1915, mostrando os seus desdobramentos nas vidas de algumas famílias, a saber: as de Chico Bento, de Vicente e de Conceição. Entretanto apresenta um homem (diria) paradigmático, Vicente, e uma mulher cuja atuação na sociedade destoa da maioria absoluta (que foge ao estereótipo aceito/requerido por uma sociedade que tem no machismo um dos seus pilares), cuja concepção não aceita resignadamente o que quer para ela a Mãe Nácia. Como exemplo vejamos, à p. 111, o que nos diz o narrador quando Conceição vai se despedir da família de Chico Bento (do que sobrou dela: ele, a mulher e dois dos cinco filhos) que vão embarcar para São Paulo. Nesse trecho da contação Mãe Nácia não quer que a neta vá àquela despedida. Uma das maiores preocupações de Dona Inácia é que Conceição não se vá sozinha; mas como a neta insistisse: “A velha ainda fez um gesto para a reter. Mas quando a neta a beijou, e marchou para a porta, ela gritou, num consentimento de última hora: - pois ao menos tenha juízo!” Por esta fala de Dona Inácia, ainda que não tenha sido a intenção do narrador, percebe-se uma tentativa por parte da avó de Conceição de controlar-lhe a sexualidade. Caso ela andasse acompanhada não correria “risco algum”. Quando Vicente sai não há nenhuma advertência do tipo “ao menos tenha juízo!”. É um exemplo da diferença de tratamento que recebem o masculino e o feminino na trama (em sociedade, idem). Não estou dizendo que a intenção de Rachel (via narrador) tenha sido evidenciar uma diferença de tratamento entre o masculino e o feminino e sim que a leitura dO Quinze permite que se chegue a tal conclusão.

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Por que será que a leitura das entrelinhas dO Quinze aponta para o acima exposto? Rachel seria uma feminista? Conceição e Vicente, as personagens que polarizam a história, são assim mesmo por acaso? Estas e outras perguntas poderão ser esclarecidas nos Capítulos seguintes. Caso não o sejam fica o convite a outras tentativas (de respondê-las).

3. RELAÇÕES DE GÊNERO, ESTUDOS DE GÊNERO OU ESTUDOS DA MULHER?

O conceito de Relações de Gênero (ou os estudos dentro da categoria Gênero) é recente dentro da área das ciências humanas. Suas origens remontam, no Brasil, ao final dos anos 80 (do séc. XX) quando, primeiro de forma tímida e depois mais amplamente, as feministas passarão a utilizá-lo (Louro, 1997). Diga-se de passagem que, sob esta ótica, o masculino e o feminino não serão construídos biológica, mas histórica e culturalmente, sem que isso signifique negar o lado biológico do ser humano. Na verdade, o que se constrói histórica e socialmente constrói-se sobre um corpo sexuado até porque, ainda conforme Louro (op cit, p. 22) “é no âmbito das relações sociais que se constroem os gêneros”. Sob esta perspectiva analítica há muitas identidades (não fixas) que podem ser assumidas pelo homem e pela mulher – aqui não pretendo entrar para este fecundo campo das discussões teóricas sobre a transitoriedade das identidades. Silva (2003, p. 91) refere acerca da “origem” da palavra Gênero: “Aparentemente, a palavra „gênero‟ foi utilizada pela primeira vez num sentido próximo do atual pelo biólogo estadunidense John Money, em 1955, precisamente para dar conta dos aspectos sociais do sexo”. Desta maneira, entendem-se as posturas masculina e feminina construídas pelas/nas interações sociais. Louro (1997, p. 22) concorda com esta assertiva, uma vez que esta autora fala em recolocar o debate sobre as características sexuais para o campo do social, “pois é nele que se constroem e se reproduzem as relações (desiguais) entre os sujeitos”. Silva (2003, op cit, p. 91) também fala da confusão entre a análise de gênero e os estudos das mulheres. Informa que a origem da análise de gênero está no campo dos Estudos das Mulheres, mas que ambas as expressões não querem dizer uma só coisa: na análise de gênero (ou das Relações de Gênero) é importante que se estude, igualmente, o

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homem – porque é uma análise relacional; porque, dessa forma, é mais produtiva, a saber: percebe-se mais nitidamente que na atuação social não raras vezes o masculino é tratado (ou se tenta tratar) como “superior”; portanto, uma relação marcada pela parcialidade, onde este está posto em detrimento daquela (mas não se esqueça que as relações são marcadas por disputas, são tensas). Como gênero é um dos viéses dos Estudos Culturais, a análise busca desmascarar as conflituosas lutas entre homens e mulheres em sociedade. Louro (1994, p. 32), ao discutir o fato de algumas estudiosas preferirem a denominação “estudos da mulher”, “estudos de gênero” ou “relações de gênero”, prefere adotar a penúltima: estudos de gênero. Portanto, não centralizar a lupa analítica no feminino, apenas, mas procurar estudar, problematizar o masculino, igualmente. Por isso, falo não apenas de Conceição, mas igualmente de Vicente, numa abordagem relacional. Ainda segundo a autora, gênero significa “a construção histórica e social dos sexos”, uma vez que as autoras/estudiosas que se enquadram nesta denominação (estudos de gênero), ao valerem-se desse conceito, enfatizam “o caráter social – e ao mesmo tempo relacional – dos dois sexos (portanto nessa abordagem supõe-se que os estudos se dediquem à construção do feminino e do masculino)” (idem). Lopes (1994, p. 24) informa-nos que gênero não é uma categoria inventada pelo feminismo. Uma coisa é a pesquisa acadêmica, outra é a prática militante. Não posso, obviamente, abordar tudo o que se poderia discutir dentro da categoria gênero. Importa-me situar a problemática (a categoria) e relacioná-la à leitura possível da narrativa O Quinze. Importa-me, cotejar Conceição e Vicente; problematizá-los: “um gênero se constitui culturalmente em sua relação com o seu outro, em presença ou em ausência (...). Um sexo se constitui, culturalmente, na sua relação com o outro, esteja ele presente ou ausente” (Lopes, op cit, p. 25). Dentro dessa concepção o que definirá posturas masculinas e/ou femininas não serão os condicionantes biológicos, genéticos, mas acima de tudo as interações sociais. A homossexualidade, por exemplo, deixa de ser vista como uma aberração e passa a ser encarada como uma opção dentre outras; como uma opção será a heterossexualidade, sob esse ponto de vista. A postura de não ser casado ou casada passa a ser, também, uma opção dentre outras possíveis. Dessa maneira, Conceição, que acredita ter nascido solteirona, não precisa enforcar-se (!) só porque sua avó (que foi a pessoa que lhe criou, a sua mãe, depois que a mãe biológica morreu) acha que mulher que não se casa é um aleijão. No que tange às Relações de Gênero discuto, neste Trabalho, as identidades masculina e feminina construídas por Vicente e Conceição na narrativa O Quinze, de Rachel

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de Queiroz (Conforme já o disse anteriormente, será abordado mais especificamente no Cap. IV). Rachel de Queiroz é, obviamente, uma mulher. O fato de Rachel não ser homem, e de ela viver um período em que a visão sexista deveria ser mais acentuada do que uma média, via pesquisa, poderia hoje mostrar - uma vez que inúmeras pesquisas, ou uma gama enorme de estudos/publicações acerca da situação da mulher em sociedade ainda não havia chegado aos nossos olhos, às livrarias, às bibliotecas. O fato de ser estudiosa e não estudioso pode ter exercido forte influência sobre a criação da personagem Conceição (!) 12. Trata-se de uma intelectual; de alguém que possui uma forma especial de entender o mundo (pessoas que produzem arte literária sempre têm uma forma especial de encarar a vida, o mundo), uma mundividência. Como mulher culta que foi, Rachel certamente possuía a faculdade da análise (mais rigorosa do que a de uma pessoa “não-estudiosa”). Portanto, percebeu que o tratamento dispensado à mulher na sociedade era (e ainda muito o é) parcial. Noutras palavras: os homens seriam tratados sob o prisma da superioridade que possuíam. Vicente argumenta que não levaria a sua irmã (Lourdinha) ao roçado porque ela era frágil. Ou: era frágil porque era mulher. Conceição poderia ser focalizada sob o prisma da fragilidade, mas (que bom) não o foi. Rachel era culta, metódica, pensante!. Rachel de Queiroz será melhor “olhada” no Capítulo seguinte deste texto. A relação evidenciada na narrativa de Queiroz mostra um masculino forte, provedor; o feminino poderia, repito, aparecer atrelado ao lar exclusivamente, aos cuidados maternais, ao casamento (cuja liderança estaria nas mãos do cônjuge!). Mas não aparece. Conceição não é resignada. Há que se considerar que as demais mulheres da trama: Dona Inácia, as irmãs de Vicente e a mulher de Chico Bento, por exemplo, são resignadas. Não se dá o mesmo com Conceição. Por que será?. Muito interessa estudar a personagem Conceição, o feminino, e, da mesma forma, importa tentar entender Vicente, o masculino, porque se trata de relacionar, de levar em conta o masculino para entender o feminino (ou vice-versa), até porque, ainda conforme Lopes, 1994, “os estudos de gênero supõem que se estude também os homens” (p. 25). Não está ao meu alcance dar a última palavra sobre os estudos em gênero ou sobre as Relações de Gênero, bem como foge da meta central deste Trabalho tal façanha. Acredito que até para os (as) grandes pesquisadores (as) do assunto tal façanha seria 12

Uma outra explicação possível é a que fala da “confusão” da autora com a personagem. Rachel foi estudante normalista (assim como Conceição); possuía suas raízes ligadas ao Quixadá, no sertão cearense, assim como Conceição. Ou seja, a autora teria valido-se de si mesma para caracterizar a professora dO Quinze – outras considerações estão no Capítulo seguinte, que trata da autora dO Quinze.

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impossível. Os estudos em gênero têm tudo a ver como a mulher, uma vez que nossa sociedade ainda está fortemente impregnada pelo sexismo, mas o tem a ver também com o homem. Rachel de Queiroz está à nossa espera no Capítulo seguinte.

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CAP. III – RACHEL DE QUEIROZ: JORNALISTA, PROFESSORA, ESCRITORA, FEMINISTA (?)

1.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DE RACHEL DE QUEIROZ

Tratar de Rachel de Queiroz, ainda que sumariamente, é sobremodo importante para a vida cultural/literária de nosso país, uma vez que contribui para o não abafamento do potencial criativo da referida autora – ou de uma parte significativa de nossa história cultural. Para a construção deste item, além doutras consultas, vali-me de Queiroz (1989), do site da Academia Brasileira de Letras (www.academia.com.br) e do site de busca www.altavista.com.br 13. Quatro pontos, dentre muitos outros, julgo importante ressaltar, comentar. O primeiro ponto importante para este recorte é o que se refere à Rachel jornalista. Já sabemos que com apenas dezessete anos começou a escrever (crônicas e poemas que enviava para o jornal O Ceará) e, com o passar do tempo, apenas aprimorou-se. Com o veículo jornal pôde escrever as suas (muitas) crônicas: publicou mais de duas mil! E um romance, O Galo de Ouro, em 1950, em folhetins, no jornal “O Cruzeiro”. Na fase inicial de sua carreira (crônicas e poemas) ela organizava a página literária de O Ceará. Importante para a carreira de jornalista (para a de literata nem é preciso falar) foi a atuação de sua mãe, Dona Clotilde, na formação da filha leitora. Do hábito de leitora em vernáculo e em francês que tinha Clotilde ficou em Rachel o gosto pela leitura, que a acompanhou até à morte. Antônio Carlos Villaça (Queiroz, 1989, p. xxiii) informa-nos que “Rachel pôde assim ler Camilo, Eça, Herculano, Zola, Balzac, Dostoievski, que depois iria traduzir”. Rachel foi educada rigidamente para ser culta e o foi. O seu atrelamento ao jornal é muito duradouro. Quando do lançamento da Obra Reunida (Queiroz, 1989, José Olympio Editora) já se podia ler Rachel há sessenta e dois anos no jornal. Quando recusou o convite do então presidente Jânio Quadros para ser ministra da Educação, em janeiro de 1961, Rachel disse que era jornalista e assim queria continuar sendo. Relembro que, nesse ano, a autora já havia publicado (só em forma de romance): O Quinze (1930), João Miguel (1932), Caminho de Pedras (1937) e As Três Marias (1939). Dizia que escrevia porque precisava se sustentar... Como era fecunda a autora dO Quinze!.

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Capturado em 03 de março de 2005. Todas as citações que trazem a fonte altavista foram capturadas neste ato.

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É meio difícil acreditar que alguém que escreveu tanto e tão bem costumasse dizer que não gostava de escrever, que escrevia para se sustentar. Diante de uma vasta produção, que inclui romances, peças de teatro, literatura infantil e crônicas, é de se perguntar: e se gostasse?. Escrever para o jornal certamente engrandeceu em muito a sua cosmovisão e contribuiu para a sua produção intelectual como um todo. Até 1944 colaborou para os jornais Correio da Manhã, O Jornal e Diário da Tarde. De 1944 a 1975 permaneceu em O Cruzeiro. A partir de 1988, no Estado de São Paulo e Diário de Pernambuco. Um segundo ponto a considerar diz respeito à Rachel escritora, mais especificamente à Rachel literata. Apenas a sua produção na fôrma crônica já é impressionante: mais de duas mil publicadas. Não pretendo, aqui, tratar acerca de cada uma de suas criações literárias. Apenas do seu lado escritora falar sumariamente. Rachel acreditava que, para escrever, uma pessoa “tem que ter o dom da escrita, tal qual para o cantor é preciso o dom da voz” (altavista). Para justificar o fato das pessoas terem o “dom” para escrever, ela fala de pessoas brilhantes em suas especialidades (medicina, arquitetura etc.) que não conseguem expressar-se por escrito, competência que soube usar para fazer arte literária. Por este seu ponto de vista dá para acreditar que ela tinha o dom da escrita e, por isso, produziu tanto. Ela dizia que, quando começou a escrever, os estilos do homem e da mulher eram distintos, com as mocinhas escrevendo em “estilo açucarado”. Como intelectual que foi, em mais de setenta anos de carreira literária, ajudou decisivamente a consolidar a escrita da mulher na Literatura de nosso país. O que Rachel chamou de dom chamo de competência. Escrever literariamente requer a competência de apreender o mundo, através de concretudes ou abstrações, e colocálo no papel. Para Samuel (1997, p. 110) “o que se passa na sociedade é o que se passa no romance, direta ou indiretamente”. Para escrever com competência é preciso saber lidar com os condicionantes que a escrita exige: coesão, coerência, norma culta,... Não há supervisão de texto que faça milagre. Acerca da fala de Samuel, o que fez Rachel nO Quinze serve como ícone. Ou noutras palavras: a autora abstraiu (e já havia ouvido falar da seca de 1915, no Ceará, que aconteceu quando ela tinha apenas cinco anos de idade) uma realidade e a transpôs para o papel (os condicionantes da escrita!). Mas, para isso, precisou de competência no manuseio da escrita – saber usar a linguagem figurada, por exemplo. Aos noventa anos de idade, Rachel continuava dizendo que não gostava de escrever e o fazia porque precisava sustentar-se. Dizia que tinha publicado poucos livros.

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Apenas cinco: O Quinze; As três Marias; Dora, Doralina; O Galo de Ouro e Memorial de Maria Moura. Para ela os outros eram compilações de crônicas que fez para a imprensa, “sem muito prazer de escrever”, mas porque precisava se sustentar. “Na verdade, eu não gosto de escrever” (altavista). Como mulher culta, intelectual que era

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, soube explorar a temática seca nO

Quinze e mostrá-la em todos os seus horrores para o Brasil e, depois, para o mundo. Diga-se de passagem que Rachel foi a primeira mulher a entrar para a Academia Brasileira de Letras (ABL). Ela dizia que estava convivendo com os acadêmicos e, por isso, a sua entrada não foi escandalosa: já era esperado. “Como todos os meus amigos estavam lá dentro, quando era dia de sessão, eles me abandonavam. Então eles acharam que eu tinha que estar lá também (...). Eu fui a primeira, mas poderia ter sido a segunda ou a terceira” (idem). Sobre o ser professora, o terceiro ponto, apenas mais uma de suas grandes façanhas quero citar: ela formou-se no Curso Normal, em 1925, quando tinha 15 anos. Sua formação escolar parou por aí (é bom não perder de vista que quem tinha o Curso Normal na década de 20 do século passado estava alguns passos à frente da maioria da população brasileira da época). Caso Rachel tivesse acertado rezar como sua avó havia lhe pedido, caso não tivesse se benzido com a “mão esquerda” (QUEIROZ, 1989, p. xxiii), talvez ela não tivesse entrado para o Colégio da Imaculada Conceição (onde fez o Curso Normal). Sua família não topava “esse negócio” de colégio; seu pai chegava ao ponto de dizer: “não vai para o colégio coisa alguma, vamos embora pra fazenda” (altavista). A “sua sina” parece ter sido escrever para sobreviver e encantar os (as) seus leitores (as). A personagem principal dO Quinze também fez o Curso Normal e, assim como Rachel, tinha as suas raízes fixadas no Quixadá (no Quixadá estavam profundamente fixadas as raízes do pai de Rachel). Ela não seguiu a carreira docente. Dizia-se uma jornalista. A Literatura definitivamente cruzou o seu caminho: muito fecundamente escreveu Rachel, mesmo dizendo que não gostava de fazê-lo. Derradeiramente um quarto ponto a considerar: Rachel de Queiroz seria uma feminista? Ainda lembrando da evidente fusão da personagem Conceição com a autora, sabemos que aquela tinha umas “tais idéias” (p. 10 dO Quinze). Rachel e Conceição possuíam semelhanças em comum: eram professoras, liam em francês e tinham suas raízes ligadas ao Quixadá, no sertão cearense. Rachel tornou-se um marco na nossa Literatura; entrou como a 14

Digo, na verdade, é, porque se imortalizou ao entrar para a Academia Brasileira de Letras, em 04 de novembro de 1977, na Cadeira nº 05.

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primeira da lista para a ABL. Por que ela (a autora) não poderia ter também umas idéias tais?. Não estou aqui procurando pistas para denotá-la feminista e nem dizendo que Conceição o fosse e nem dizendo que quem o é mereça ser desmerecido (a). Para não cometer o “pecado” da dubiedade veja-se o que a própria Rachel achava sobre o ser feminista:

Acho que Deus fez o homem e a mulher para serem um complemento um do outro, na união e no bem. Eu acho que [o] homem e a mulher são companheiros e sócios. Se o papel da mulher escrava realmente me repele, mas também o papel da mulher mandona (...), inimiga do homem, me repele também (altavista).

Ou seja, na sua forma de ver o mundo ela não se considerava uma feminista. Quase que mudando de assunto não esqueçamos que a leitura dO Quinze evidencia uma possibilidade de analisar Conceição (e Vicente) sob a perspectiva das Relações de Gênero – onde se vê a mulher não como “inferior” ao homem e sim do ponto de vista da igualdade em termos de valoração, buscando-se desmascarar as desigualdades presentes na teia social.

2.

A NARRATIVA O QUINZE

A narrativa O Quinze, em terceira pessoa, constitui-se numa das mais célebres obras da Literatura brasileira, por elucidar uma maestria da parte da escritora no manuseio com a linguagem, por tratar de uma temática de fundamental importância para a nossa sociedade, por permitir várias leituras (como é de praxe nas obras literárias). Sem, ingenuamente, pretender esgotar a análise da referida narrativa, passo a considerar, sumariamente, alguns pontos por mim considerados principais na trama. A obra O Quinze foi publicada em agosto de 1930 (escrita entre 1929 e 1930), quando Rachel ainda tinha 19 anos! Focaliza a grande seca de 1915, que em muito castigou o Ceará. Conforme Lajoio (op cit, p. 56) “O mundo representado na Literatura, simbólica, ou realistamente, nasce da experiência que o escritor tem de uma realidade histórica e social muito bem delimitada”. Rachel conheceu pela tradição oral a história da seca de 1915, no Ceará, quando ela tinha seus cinco anos. Por conta dessa tradição oral, aproveitou para romancear o fato verídico que se passou em sua terra natal. É bom ressaltar que essas realidades histórica e socialmente bem delimitadas poderão renascer nas penas (e nos

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teclados) doutros autores (as), sabe-se lá quanto tempo depois. O que foi dito através da Literatura há tempos atrás pode ser muito bem aceito tempos depois, uma vez que o seu conteúdo (quer da ficção, quer da não-ficção) transcende o tempo cronológico e os espaços geográficos – bastaria lembrar o Amor enquanto temática sobremodo usada na Literatura e que “nunca sai de moda”; a Dor; o Ciúme; a Inveja e tantas outras também dariam conta do acima exposto. A referida narrativa está formatada em três núcleos principais: no primeiro, a professora Conceição e sua avó, Mãe Nácia (pela leitura da história é possível depreender Conceição como a personagem central); no segundo, o vaqueiro Vicente e sua família (pai: Major, mãe: Dona Idalina, irmão: Paulo, que mora em Cariri, e as irmãs: Alice e Lourdinha, que moram no sertão com Vicente e seus pais). Vicente polariza com Conceição, sua prima, as principais atenções da trama; no terceiro, Chico Bento, o “vaqueiro das Aroeiras” (p. 19 dO Quinze), Cordulina: sua esposa, Mocinha: a cunhada e cinco filhos: Pedro, Josias e Duquinha (os demais não são nomeados). A história narrada passa-se no interior do Ceará, no Logradouro, onde moram as famílias de Vicente e Dona Inácia, próximo do Quixadá. Conceição mora na Capital. Quando Conceição consegue levar sua avó para passar uns meses com ela na Capital, as cenas passam-se na Rua de São Bernardo. Conceição é professora (de dez da manhã às duas da tarde) e faz parte da equipe que socorre as famílias que procuram o Campo de Concentração fugindo da terrível seca. A seca é a temática abordada (numa primeira leitura, aliás). Ela está na motivação dos atos de todas as pessoas que formam os núcleos supracitados: Conceição fazia questão de levar Dona Inácia para morar com ela na cidade, pelo menos enquanto durasse a seca, o que acaba acontecendo: Mãe Nácia acompanha a professora Conceição após as férias desta (cf. à p. 32). Fica os meses da seca com a neta e, após a primeira chuva de dezembro, providencia a sua volta para o Logradouro. A família de Vicente procura o Quixadá para escapar de maiores dificuldades (entretanto o vaqueiro permanece em casa da família para cuidar do gado). Chico Bento e sua família, por seu turno, têm de sair à procura duma “vida melhor”; têm de retirar para não morrerem de fome. Segundo o site da Academia Brasileira de Letras, com o romance O Quinze Rachel de Queiroz agitava a bandeira do romance de fundo social, profundamente realista na sua dramática exposição da luta secular de um povo contra a miséria e a seca (apud altavista, op cit). Para Bosi (1994, p. 396) nO Quinze “os período são, em geral, menos

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‘literários’, breves, colados à transcrição dos atos e dos acontecimentos” (o grifo em itálico é meu). Na verdade não é que seja uma narrativa desprovida da literariedade; é que o drama humano deveria aparecer da forma mais cruel possível, com toda a sua implacável fúria (cf., às pp. 65 – 68, a história da cabra que Chico Bento tentou matar para socorrer a sua família e o desfecho da mesma: sua família comeu as tripas do animal assadas e espremidas na mão). É justamente através do sofrimento da família de Chico Bento que ficamos sabendo: que as crianças morrem de fome (às centenas!); das caminhadas intermináveis; das procuras muitas por um trabalho que dê um pedaço de rapadura em troca, para amenizar a fome das crianças; como é o Campo de Concentração – um espaço providenciado pelo governo para as famílias ficarem e, dessa forma, não invadirem uma cidade que se queria bela à maneira francesa (Belle Epoque), para não sujarem ou mancharem um país que se queria moderno. Na terrível jornada que Chico Bento e sua família enfrentam ao delongo da história, muitas são as desgraças a enfrentar. A seca é mostrada com horrenda vivacidade. A certa altura da contação, ficamos sabendo que:

Debaixo de um juazeiro grande, todo um bando de retirantes se arranchara (...). Quando Chico Bento (...) apontou na estrada, os homens esfolavam uma rês e as mulheres faziam ferver uma lata de querosene cheia de água, abanando o fogo com um chapéu de palha muito sujo e remendado. (...) E depois de arriar as trouxas e aliviar a burra [Chico Bento], reparou nos vizinhos. A rês estava quase esfolada. A cabeça inchada não tinha chifres. Sé dois ocos podres, mal-cheirosos, donde escorria uma água purulenta (pp. 38 e 39).

Em momentos como esse a solidariedade é crucial. Chico Bento divide os pedaços de sua comida com o grupo de retirantes porque “Realmente a vaca já fedia, por causa da doença [mal-dos-chifres]” (p. 40). Depois de ver seu filho Josias morrer à beira da estrada porque, em conseqüência da fome, começou mandioca crua, de ter perdido o Pedro (mais velho) durante a viagem e de ter deixado a cunhada Mocinha na Estação do Castro, Chico Bento, a mulher e três filhos chegam à Estação Matadouro – o Campo de Concentração. Conforme já o referi anteriormente, esse espaço exercia uma estratégica função governamental disfarçada na roupagem da solidariedade para com as famílias carentes. Após deixar o caçula Duquinha morando com sua madrinha Conceição, o vaqueiro e o que sobrou da família, muito diferentes do ponto de vista emocional, certamente, embarcam para São Paulo, fugindo da morte e esperando que lá o futuro se lhes apresentasse diferente, melhor.

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Pelo que foi exposto e por muito mais que poderia ser citado acerca da contação dO Quinze, é possível afirmar que a seca é, realmente, o tema central da história contada. Isso à primeira vista, pela análise da camada primeira do texto. Analisando as entrelinhas da história de Queiroz ficamos sabendo, ainda sobre a seca, que se vendiam passagens que deveriam ser dadas às famílias carentes: “- Ajudar, o governo ajuda. O preposto é que anda vendendo as passagens a quem der mais...” (p. 30): uma injustiça social a partir das demandas que a seca apresenta. Outras leituras das entrelinhas ainda nesse sentido poderiam ser feitas. Não obstante, se analisarmos as atuações das personagens principais da história (Conceição e Vicente)15 tomaremos ciência do que se passa à segunda vista: as relações que evidenciam um masculino provedor, viril, dirigente da família, e um feminino que não se enquadra na outra face (“perfeita” do homem provedor), porque este feminino não é resignado. Conceição não é a mulher que “nasceu” para os afazeres domésticos, para, e isso custe o que custar, o casamento. Dessa maneira, ficamos sabendo que a referida história encerra uma Relação de Gênero quando nos pinta o vaqueiro e a professora. Obviamente que estas considerações não esgotam o que a leitura dO Quinze revela, apenas do ponto de vista das Relações de Gênero 16. Do ponto de vista da marcação do tempo, a história é marcada cronologicamente. A narrativa conta a saga das personagens a partir do mês de março, o mês de São José (no ano de 1915) – Dona Inácia espera que, pelo menos em abril, comece a chover (cf. à p. 07). Contando desde março até dezembro, quando cai “a primeira chuva” (p. 132), são nove meses de espera. Ao final da contação, mais três anos transcorrem e chega a quermesse de Natal, onde a história é desfechada. Trata-se da marcação chamada de tempo histórico, que se caracteriza pela linearidade. Tal tempo é “horizontal, como se os acontecimentos transcorressem numa linha reta, segundo um „antes‟ e um „depois‟” (MOISÉS, 1991, p. 102). Com relação aos expedientes da linguagem, temos a narração (seria impossível num texto prosaico, narrativo, não haver a narração): “O pequeno ia no meio da carga, amarrado por um pano aos cabeçotes da cangalha” (MOISÉS, op cit, p. 35). “E agora, 15

Assim Moisés define este tipo de personagens, o vaqueiro e a professora – os tipos (as planas): “bidimensionais, dotadas de altura e largura mas não de profundidade (...). As personagens planas geram os tipos e caricaturas (...) comparecem as mais das vezes nos contos, nas novelas e nos romances lineares” (MOISÉS, 1991, p. 110, (os grifos são do autor). 16 Ainda mais considerações sobre as Relações de Gênero serão feitas no Capítulo IV, que trata, especificamente, de Vicente e Conceição.

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sentados, juntos, apertados, os três meninos que restavam muito agarrados a eles, abrindo os olhos de espanto à confusão de gente que se aglomerava no carro sujo” (p. 85 dO Quinze), bem como a descrição (“A burra da troca não era bem um babau velho, como Chico Bento vinha dizendo em caminho, na tarde do negócio”, p. 29), a dissertação (“... Tem de ir tudo é por terra, feito animal! Nesta desgraça quem é que arranja nada! Deus só nasceu pros ricos!”, p. 31) e o diálogo (cf. a conversa de Dona Inácia e Conceição, à p. 07, primeira cena da história). Por diálogo:

entende-se a fala das personagens (...). A descrição corresponde à enumeração dos componentes e pormenores de objetos inertes. Quanto à narração, implica acontecimentos, ação e movimento, e a dissertação diz respeito à explanação de idéias e conceitos (MÓISÉS, 1991, pp.114 e 115).

É de suma importância considerar, acerca da linguagem e da dissertação, especificamente, o que pensa Conceição; seu ponto de vista com relação ao casamento (p. 10) e à maternidade: a partir do momento em que encontra a família de Chico Bento no Campo, Conceição (pp. 87 ss) começa a pensar em criar Duquinha, seu afilhado, o que se consuma a partir do momento em que o menino vai morar com a sua badinha, levado pela mãe, Cordulina, para não morrer de fome. A sua (de Conceição) maneira de entender o mundo, a vida; o que a difere em muito da forma como Dona Inácia o vê. Mas à nossa frente encontram-se Conceição e Vicente, as personagens para as quais confluem as principais atenções da trama dO Quinze, com alguns de seus pormenores.

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CAP. IV – ENTRE VICENTE E CONCEIÇÃO: A POSTURA SEXISTA E A INCONFORMAÇÃO FEMININA

1.

PRELIMINARES

Julgo importante fazer algumas considerações antes de adentrar ao Capítulo que trata mais especificamente das personagens nucleares da narrativa O Quinze: Vicente e Conceição. Em nenhum dos Capítulos anteriores as fiz. E só isso já demonstra o quão cruciais são as informações que giram em torne das personagens anteriormente referidas. Considero este Trabalho um todo harmonizado, constituído de partes que, ao final da leitura, dão (ou pretendem dar) uma idéia de totalidade. Não obstante, para o que me propus considerar nele, a saber: as Relações de Gênero tecidas quando das atuações de Vicente e Conceição na história de Rachel, este Capítulo é fulcral uma vez que é nele que espero melhor considerar a relação possível entre a Literatura e os Estudos Culturais/Relações de Gênero, ou considerar O Quinze sob a perspectiva dos Estudos Culturais/Relações de Gênero. Mais uma vez (perdão por tanta insistência) advirto que são informações de um principiante, bem intencionado, diga-se de passagem. E, logo, considerações incompletas, acrescidas futuramente que podem ser (por outros estudos ou por mim mesmo), desde que para tanto haja motivação, intenção de melhorá-las. No intuito de amparar as considerações referentes às atuações de Conceição e Vicente na história dO Quinze, lanço mão do Nº 11, novembro/1994

17

, da Revista do

Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História – PUC/SP, mormente das considerações que Cunha faz em seu trabalho intitulado “Biblioteca das Mocas: Contos de fada ou contos de vida? As representações de mulher e professora nos romances da coleção Biblioteca das Moças” 18. Neste estudo a autora quer saber quais as representações de

17

O nº 11 de tal Revista constitui-se enquanto “material organizado a partir do encontro Mulher e Educação, realizado pelo Programa de História [PUC-SP], em setembro de 1992” (p. 05 - Apresentação). 18 Biblioteca das Moças foi uma Coleção de romances de autores e autoras francesas “publicada no Brasil pela Companhia Editora Nacional, e que fez muito sucesso editorial entre 1940 e 1960” (Cunha, 1994, p. 139). A autora queria saber, acima de tudo, “até que ponto o ato de ler pode ser capaz de engendrar uma identidade e um imaginário próprios em quem os realiza” (idem). Cunha, através desse trabalho, traz para o espaço público a experiência privada da leitura. Mulheres e leitura; professora e identidade são seus pontos-chave.

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professora e de mulher que são veiculadas nessa literatura de entretenimento e que fez grande sucesso no Brasil nos ano 1940/50/60. O referido artigo encantou-me por trazer as variáveis leitura, mulher e professora – além de identidade: ser professora não é o mesmo que ser médica, por exemplo. O ser professora encerra uma série de demandas que o “ser” médica, no nosso exemplo, não encerra – como é o caso de planejar aulas, ser reconhecida socialmente como atenciosa (?!), cumprir programas e calendários; como a mulher reconhece-se socialmente por ser uma professora da Educação Básica e não do Ensino Superior, como aceita a sua desvalorização profissional, como encara a influência governamental em sua função de educadora etc; Conceição é mulher (sobre o ser mulher, trataremos mais adiante), e, como professora, certamente lia: Pegou no primeiro livro que a mão alcançou, fez um monte de travesseiros ao canto da cama, perto da luz, e, fincando o cotovelo neles, abriu à toa o volume. Era uma história polaca (...) contando caso de heroísmos, rebeliões e guerrilhas. (...) - Está muito pobre, essa estante! Já sei quase tudo decorado! (pp. 08 e 09 dO Quinze).

Portanto, tais variáveis pareceram-me cruciais e, o trabalho de Cunha, uma chave para o Capítulo IV, deste texto. Procuro verificar até que ponto o que Cunha depreendeu da leitura dos romances da Coleção Biblioteca das Moças pode ser aplicado à análise da atuação da personagem Conceição nO Quinze. Até que ponto a sua postura na trama aproxima-se ou se distancia das imagens de mulher e professora que Cunha encontrou na Coleção supracitada. Da abordagem que Cunha (1994) faz recorto o que mais me interessa para o momento: o que se refere à mulher e à professora. Considerar Conceição numa perspectiva de Gênero (ainda que superficialmente) fascinou-me porque posso relacioná-la a Vicente. Lopes (1994, já citada anteriormente) afirma ser a categoria gênero relacional e, por conseguinte, os estudos nessa categoria “supõem que se estude também o homem” (p. 25). Em síntese: considerarei o feminino e o masculino; farei, logo, uma relação entre os gêneros, onde cada face da moeda possui o mesmo valor e o mesmo tratamento (onde, portanto, o masculino não está assentado em primeiro lugar e em detrimento do feminino). Diga-se de passagem que neste texto talvez o feminino esteja mais evidenciado porque a atuação polivalente de Conceição é mais enfática na narrativa do que a de Vicente. Com as façanhas de Vicente e Conceição (ou vice-versa) na narrativa de Rachel pude olhar para “uma „história‟ (...) em que

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o universal [não] pressupõe o homem e exclui as mulheres” (idem). Noutras palavras: não se vê um em detrimento do outro. Ressalto que os textos de Cunha e Lopes estão arrolados no material da Revista da PUC-SP, que possui uma vertente ligada à História (a Revista). Suas considerações estão mais atreladas à Educação do que à Literatura. Isso é importante que se ressalte, uma vez que este Trabalho (o meu) não se quer historiográfico, pós-estruturalista, pós-modernista, formalista russo, ou sob quaisquer outros condicionantes: apenas pretende ser acadêmico e em que tais teorizações puderem contribuir, ótimo. Mas Vicente e Conceição nos esperam!.

2.

CONCEIÇÃO: MULHER, MÃE (?) E PROFESSORA

A fala do narrador dO Quinze assim apresenta Conceição: “Vendo a avó sair do quarto do santuário, Conceição, que fazia as tranças sentada numa rede ao canto da sala, interpelou-a: - E nem chove, hein, Mãe Nácia?” (p. 07). A partir desse momento, inúmeras considerações são-nos feitas acerca da neta de Dona Inácia. De todo esse montante recolho, obviamente, as que mais me interessam para o momento, e digo que muitas outras interessariam para outros propósitos. A primeira pista que me chama a atenção diz que “Conceição tinha vinte e dois anos e não falava em casar. As suas poucas tentativas de namoro tinham-se ido com os dezoitos anos (...); dizia alegremente que nascera solteirona” (p. 10). A partir desse ponto da contação percebe-se um embate entre as concepções de Conceição e sua avó. Esta acha que toda mulher deve casar; caso tal não aconteça a mulher tornar-se-ia “um aleijão” (idem). A este respeito (a saber: a diferença notória de pontos de vista entre Conceição e sua avó) veja-se o trecho colhido da fala do narrador dO Quinze, ao informar dos dias que Duquinha ficou doente - o afilhado de Conceição, que ela criou, filho de Chico Bento e Cordulina: Conceição toda se desvelava em exageros de maternidade. E a avó, vendo o cuidado dela, e o carinho com que cercava a criança, dizia às vezes: - Ah, menina! quando acaba, você diz que não é boa para casar!...” (p. 105, os grifos são meus).

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Pela fala de Dona Inácia, fica subentendida a visão que esta personagem tem acerca do ser mulher, do casamento: mulher e casamento confundem-se. Em sua concepção as identidades mulher adulta e casamento são inseparáveis. Ser mulher adulta é ser casada. Para ela, certamente, não lhe cabe a figura da mãe solteira. Caso a sua neta quisesse, por exemplo, ser mãe (biologicamente falando) sem se casar, ter uma produção independente!... Na verdade, o que pensa Dona Inácia é fortemente difundido/encontrado na sociedade brasileira, e não só na brasileira, mas em tantas outras partes do mundo. Não é bom esquecer que uma das explicações possíveis para dar conta de pensamentos como esse (de Dona Inácia) é a herança cultural deixada pelo patriarcalismo em nossa sociedade (que ainda não acabou de todo, e quem sabe se findará algum dia.). Os senhores de engenho (donos de terras, de bens materiais e de seres humanos!); a escravidão (que, também, ainda não acabou de todo...); os barões do café... O homem como o dirigente, o provedor. A herança ficou. A narrativa de Rachel, numa leitura mais profunda, ajuda nessa problematização. A figura de Dona Inácia na trama pode ser vista como um ícone de uma sociedade sexista. A sua postura de avó zelosa mostra-nos um pensamento ainda fortemente enraizado em nossa sociedade, mas não apenas na nossa: a mulher deve ser educada para ser esposa, para cuidar dos filhos (as), do marido, da casa. Assim tudo estaria bem arranjado. Ainda bem que nem todo mundo pensa assim!. Ainda acerca das divergências de concepções de mundo que a narrativa traz sob as falas de Conceição e Dona Inácia, talvez a passagem mais crucial seja o diálogo travado entre Conceição e sua avó, após esta chegar da missa, num domingo pela manhã. Quando a professora lia, descansando, Mãe Nácia entra em casa e reclama que a neta lia até em dia de missa! (p. 123). Ao procurar saber o que a professora lia, Dona Inácia obteve a resposta: “- Trata da questão feminina, da situação da mulher na sociedade, dos direitos maternais, do problema...” (p. 124). A personagem Conceição é culta; lê em francês; é uma professora normalista (formada no Curso Normal, surgido no Brasil, em 1823, no Rio de Janeiro

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). No início da

história (p. 10) ficamos sabendo que a referida professora tem umas tais idéias; (p. 08). Esse lado cultural é o que sustenta a personalidade de Conceição e o que mais de perto a distancia do que pensa Dona Inácia. Trata-se, portanto, de uma mulher que pensa por si porque, dentre outros motivos que não me interesso por descobrir e/ou problematizar, estudava sobre a 19

Acerca do ser professora, neste caso exclusivamente relacionado à personagem Conceição, sugiro a consulta ao Trabalho de Conclusão de Curso de SANTOS (Reg. 019/2004/Biblioteca do Campus Universitário do Baixo Tocantins/CUBT/UFPA), que trata de “duas imagens de professora”, sendo uma dessas imagens na narrativa O Quinze, de Rachel de Queiroz.

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situação/condição dela na sociedade. Porque estudava sobre o ser mãe (o que encerra em si uma identidade); sobre, enfim, a situação feminina. Pelas leituras ela foi adquirindo mais consistência enquanto ser mulher (e não estou dizendo que a mulher “que não lê” não possua uma personalidade, uma identidade); assim ela foi desenvolvendo uma postura resoluta. Sobretudo por isso não era pensada pelos outros. Ainda sobre o diálogo de Conceição com sua avó, vejamos o que diz Conceição para Dona Inácia (ainda sobre o “ler até em dia de missa”): “- Mãe Nácia, quando a gente renuncia a certas obrigações, casa, filhos, família, tem que arranjar outras com que se preocupe... Senão a vida fica vazia demais” (p. 124). Conceição sabia que abdicar ao que a sociedade tanto cobra duma mulher, como é o caso do casamento, traz as suas conseqüências; por exemplo, deixar a vida “vazia demais” – e a leitura foi um com que se preocupar arranjado por Conceição para escapar desse “vazio”. Este é um embate que não pode passar despercebido quando da leitura da narrativa escrita por Rachel de Queiroz. Ante a convicção de sua neta, Mãe Nácia retruca: “- E por que você torceu sua natureza? Por que não se casa?”, ao que a neta responde: “- Nunca achei que valesse a pena... ” (idem). A neta de Dona Inácia nunca achou que “valesse a pena” casar. A principal diferença que tanto a afasta do primo Vicente é o desnível cultural muito acentuado entre ambos. Mesmo achando que nasceu “solteirona” possuía os seus momentos de amargura, de indecisão. É assim que ela ficou olhando Lourdinha pensativamente “afastar-se, graciosa, feliz ao braço do marido, levados ambos pela mesma passada uniforme, como que movida por uma só vontade” (p.147), quando o narrador está desfechando a história. Lourdinha estava casada com Clóvis Garcia e tinham uma filha (Heleninha). Um casal paradigmático, diga-se de passagem, muito bem aceito/requerido em nossa sociedade: pai, mãe e filho (a). Como paradigmático é casal Major e Idalina (os pais de Vicente), pais de quatro filhos: Paulo, Vicente, Lourdinha e Alice. Nesse momento da narração percebemos uma Conceição amargurada, com aproximadamente vinte e cinco anos, não-casada, sem filhos (as). Pela narração, indiretamente, tomamos conhecimento do que estava pensando a moça, numa quermesse de Natal (p. 146) tão animada!, acerca do ser mulher:

Afinal, o verdadeiro destino de toda mulher é acalantar uma criança no peito... (...) Seria sempre estéril, inútil, só... Seu coração não alimentaria outra vida, sua alma não se prolongaria noutra pequenina alma... Mulher sem filhos, elo partido na cadeia da imortalidade (p. 148).

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Este estado de ânimo amargurado da professora Conceição logo se desfaz quando ela vai até Dona Inácia e encontra o afilhado pedindo “dois tões” para comprar um navio de papel:

À vista do menino, adoçou-se a amargura no coração da moça. Passou-lhe suavemente a mão pela cabeça; e pensou nas suas longas noites de vigília, quando Duquinha, moribundo, arquejava, e ela lhe servia de mãe. Recordou seus cuidados infinitos, sua dedicação, seu carinho... E, consolada, murmurou: -- Afinal, também posso dizer que criei um filho... (p. 149).

Aqui uma segunda pista: derradeiramente notamos a Conceição mãe – nem que isso seja para ela um “consolo”, apenas. Não mãe do ponto de vista da Genética, mas porque criou Duquinha que, aos cuidados de seus pais, poderia ter morte certa no Campo de Concentração ou mais além. Nesse ponto da narração dá para encontrar a identidade de professora atrelada à da mãe (e vice-versa). Conceição não foi esposa, mas foi uma mãe “dedicada” (como professora possivelmente o era; como uma das mulheres que socorriam as famílias de retirantes no Campo de Concentração, idem), provando que essas identidades não são condicionantes uma da outra. Cunha (op cit, pp. 140 e 141), pela análise dos textos da Biblioteca das Moças, afirma que “a mulher [naqueles textos] aparece ligada à família e a tudo o que ela simboliza em termos de valores: mulher/mãe/esposa dedicada e submissa vão ajudar a definir um padrão ideal”. É relativo à leitura o trabalho de Cunha e relaciona-se ao papel que a leitura da Coleção supracitada exerceu sobre a construção/afirmação de identidades femininas, no Brasil, nos anos de 1940, 50 e 60. O que a autora constatou encaixa-se perfeitamente à postura da personagem Dona Inácia e ajuda na análise da atuação de sua neta. Para Mãe Nácia seria importantíssimo e (muito cômodo) que Conceição andasse sempre acompanhada para ir e voltar ao trabalho e ao Campo de Concentração, que tivesse um marido, seus filhos/suas filhas, que fosse mãe/esposa “dedicada”, como o era na Comissão que ajudava as famílias do Campo de Concentração; mas a neta possuía as suas idéias e os seus conceitos próprios (p. 10 dO Quinze); não gostava de ser pensada por outras pessoas. A análise, ainda que superficial, da personagem Conceição evidencia (ou requer) um estudo relacional, de cotejo entre os Gêneros. Estudá-la implicar estudar Vicente (e vice-versa), especialmente para este Trabalho, que considera o masculino e o feminino na história dO Quinze. Portanto, a neta de Dona Inácia precisa ser comparada ao vaqueiro filho

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de Dona Idalina

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. Necessário se faz que seja feita uma análise relacional das personagens

para as quais convergem as principais atenções dentro da trama. A história contada é a da grande seca de 1915 que maltratou o Ceará, já o sabemos; Conceição teria vivido nesse ano os seus vinte e dois anos; Dona Inácia era uma senhora católica (viúva) e que cultivava seus valores tradicionais (como o casamento e a maternidade). Ressalto que o pensamento de Dona Inácia precisa ser mostrado porque é ele o quê, mais de perto, deixa patente os pontos de vista de Conceição; Vicente era um moço forte, trabalhador, guerreiro, provedor; Cunha pesquisou textos para entreter as moças das décadas de 40/50/60, no Brasil, e que fizeram grande sucesso entre suas leitoras; Rachel conta uma história fictícia que se passa no interior do Ceará, em 1915; Conceição mora na Capital, sua avó no Logradouro (perto de Quixadá). Sem se prender a datas, a espaço geográfico ou a quaisquer outras variáveis, dá para acreditar que a postura da moça (Conceição), a sua certeza de que nasceu “solteirona” seria combatida por um número muito grande de pessoas/instituições da sociedade brasileira. Caso ela decidisse, por exemplo, ser mãe solteira: a discriminação seria um caso confirmado. O fato de Conceição ser mulher implica que ela deveria, para ser bem vista em sua comunidade/sociedade, ser mãe/esposa “dedicada”, conforme constatou Cunha pela análise dos textos da Biblioteca das Moças. Pelo estudo que fez dos romances da Biblioteca das Moças, Cunha nos diz que o magistério seria a carreira “mais adequada à natureza feminina, pois requeria amor, dedicação, minúcia e paciência” (p. 143). Este pressuposto está patente na figura da professora Conceição, uma moça de vinte e dois anos (portanto, forte, vigorosa), carinhosa, caridosa, que cuida dos necessitados (as), das famílias que procuram o Campo de Concentração com a promessa de que lá o governo ajuda as pessoas a não morrerem durante a seca. A sua atuação como educadora não é descrita, não se sabe se é, por exemplo, tradicional ou progressista. Apenas ficamos sabendo que se formou no Curso Normal e que sai às dez da manhã e volta às duas da tarde e que, após sair do trabalho docente, ia para o Campo ajudar as famílias necessitadas:

Conceição estava na escola. Saía de casa às dez e findava a aula às duas. Da escola ia para o Campo de Concentração, auxiliar na entrega dos socorros. E só chegava de tardinha, fatigada, com os olhos doloridos de tanta miséria vista, contando cenas tristes que empanavam de água os óculos da avó (p. 71). 20

No próximo Tópico é o que faço: analiso Vicente, sempre levando em consideração que os Capítulos são partes que compõe um todo: o Trabalho e que sua atuação está ligada inevitavelmente à de Conceição.

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A figura da professora é a da maternal e pura (Conceição tem zelo de mãe e, até prova em contrário, é uma mulher virginal – não estou aqui colocando o “pura” em termos valorativos, ou pejorativos. É apenas uma ressalva), o que confirma a leitura que Cunha (op cit, p. 143) fez das imagens de professoras encontradas na Coleção Biblioteca da Moças. Essa bibliografia serviu para ajudar a delinear as figuras da mulher e da professora nos anos de 1940/50/60, no Brasil - segundo o gosto francês, diga-se de passagem. “Imagens construídas sobre os atributos da mãe ligam-se visceralmente à imagem da professora. O papel da professora seria a extensão de uma atividade que já ocorria dentro de casa” (idem). Conceição adotou e criou Duquinha. Portanto era maternal. Sua atuação docente já pode ser vista como uma extensão do que se passava em seu lar. Mas o narrador não nos diz nada a este respeito. Deveria ser uma professora que atuava com amor, ternura e paciência. Como uma boa “tia”. Diga-se de passagem que a forma verbal ocorria, do trecho citado, flexionada no pretérito, pode muito bem ser lida no presente do indicativo: ocorre. Mesmo sem obediência a números e/ou estatísticas, vale lembrar que tal continua a ocorrer (recortando: a mulher é a rainha do lar (?)) em inúmeros casos/contextos sócio-históricos, ressalvadas as tentativas de mulheres, instituições, estudiosas (os) em problematizar a atuação do binômio homem versus mulher (vice-versa) em sociedade, onde se pode ler: trabalho, família, escola, igrejas, outros. Dessa maneira, “a idéia de educar pressupunha o princípio de uma promoção que passava pela aquisição de uma competência doméstica” (idem, ibdem). Uma vez que a atuação da mulher (nos textos da Biblioteca das Moças) na esfera pública era basicamente como professora, esse seu atuar deveria ser uma espécie de “prolongamento de suas funções de mãe e dona-de-casa, considerada a escola como um local de maternagem simbólica” (CUNHA, op cit, p. 143). Em outras palavras: o ser professora seria sinônimo de ser mulher/esposa/dona-de-casa “dedicada”. Deveria ser uma profissional que cuidasse das crianças como se fossem seus filhos/suas filhas. Ou seja, a competência profissional ficaria num segundo plano – em primeiro estaria o lado de mãe; o cuidar. Não sabemos do atuar docente de Conceição, mas sabemos muito bem de seu jeito caridoso. A certa altura da narração dO Quinze ficamos sabendo que:

De vez em quando (...) a avó tinha que repreendê-la por quase não comer, por sempre chegar em casa atrasada, por consumir todo o ordenado em alimentos e purgantes para os doentinhos do Campo; ela respondia rindo:

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- Mãe Nácia, eu digo como a heroína de um romance que li outro dia: “Não sei amar com metade do coração...” (p.127).

A professora procurava conhecidos seus entre as famílias para tratar de forma especial (como fez com Chico Bento e o restante da família). Conceição, como professora, poderia ser uma espécie de “tia”. A mesma “tia” que encontramos amiúde em nossas escolas, mormente nas séries iniciais do Ensino Fundamental e na Educação Infantil. Nesta atuação há uma armadilha ideológica: “a armadilha ideológica contida na redução da professora à condição de tia” (Freire, apud VIANNA, 1994, p. 183). Segundo esta autora, a concepção do ser professora que Freire apresenta em Professora Sim, Tia Não é a de que ser professora é não ser tia, a irmã do pai ou da mãe e, por extensão, os alunos (as) não são os sobrinhos (as) e sim discentes. Vianna ressalta uma tentativa de Freire ao incorporar o recorte de Gênero na análise da prática da professora. A referência freireana elucidaria os “aspectos negativos” da relação (impossível de ser desfeita) entre ser mulher e ser professora. Ser “tia”, para ele, seria o mesmo que ser acomodada, portadora de missão incompatível com a rebeldia, com o questionamento e a luta político-sindical. Ser “tia”, enfim, seria possuir uma postura de “subordinação” e “submissão”. Não se sabe se Conceição era realmente uma “tia”, mas dá pra entender que ela é amiga do governo (não estou dizendo que ela deveria ser inimiga dele), porque ajuda a compor o grupo de senhoras que distribuem socorros às famílias necessitadas no Campo de Concentração. Quem sabe se o narrador revelasse outros aspectos de sua personalidade ela não seria pintada como “uma submissa, uma subordinada aos opressores”, como poderia bem dizer Paulo Freire. Vianna (idem) problematiza ainda mais a leitura que o grande estudioso da educação faz do ser professora na obra citada, afirmando (Vianna) que o autor poderia ter ido mais além, questionando:

Como a identidade feminina marca a atuação das professoras, na sala de aula, na escola, no sindicato? Como as professoras assumem, enquanto mulheres, a desvalorização social a que sua profissão está submetida? Como se dão as relações entre homens e mulheres nas instâncias educacionais? (p. 184).

Sem esquecer das considerações primeiras deste Tópico, a saber: de que Conceição teria nascido solteirona, veja-se o seguinte trecho da fala do narrador quando nos diz que a moça “com o brilho de sua graça, alumiava e floria com um recanto novo a rudeza” da vida de Vicente (p. 43 dO Quinze). Portanto, embora achando que nasceu solteirona, a

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professora não deixa de estar presente no mover sentimental do primo na trama dO Quinze, até porque na adolescência os dois já namoraram. Quase no final da narrativa, ficamos sabendo que a professora ficará só com Duquinha, uma vez que após “a primeira chuva de dezembro” (p. 132) Dona Inácia decidiu voltar às suas terras. A casa da Rua de São Bernardo (onde até então moravam Conceição, Mãe Nácia e o menino) será desalugada. Mãe Inácia quer levar Duquinha consigo, mas Conceição argumenta que não; que na casa das Rodrigues tem “um quartinho junto do da criada” (p. 137) e dá para Duquinha ficar lá. Ou noutras palavras: sendo uma “solteirona” ela não estaria desprovida do espírito maternal, poderia (e pôde) criar uma criança; evidenciou o seu lado de mãe zelosa, carinhosa. Sobre ficar em casa das Rodrigues, mesmo sabendo que Conceição está querendo que a avó não se vá para o sertão, para o seu alpendre, e por isso faz dengue, é importante o que fala a professora dO Quinze: “Agora, como é que eu vou me acostumar em casa das Rodrigues? Fico logo uma solteirona, velha como elas ...” (idem). Esta sua fala não esconde certa indecisão. Nasceu “solteirona”, mas não quer ser solteirona para o resto da vida. Entretanto, é um momento de dengue, não é bom esquecer. O que se percebe é que Conceição não se casa com Vicente – o que seria o seu destino certo na narrativa de Rachel porque há uma diferença decisiva entre eles: Foi então que [Conceição] se lembrou que, provavelmente, Vicente nunca lera o Machado... Nem nada do que ela lia. Ele sempre dizia que, de livros, só o da nota do gado... Num relevo mais forte, tão forte quanto nunca o sentira, foi-lhe aparecendo a diferença que havia entre ambos, de gosto, de tendências, de vida. O seu pensamento (...) esbarrou nessa encruzilhada difícil e não soube ir adiante... (...) ... nas horas de tempestade, de abandono, de solidão, onde iria buscar o seguro companheiro que entende e ensina, e completa o pensamente incompleto... (pp. 78 e 79).

Ao saber que Vicente ficou só, cuidando do gado, quando da ida de sua família (pai, mãe e irmãs) para o Quixadá, por conta do apertar da seca, a moça fica preocupada. Ainda mais preocupada ficou quando soube, através de Chiquinha Boa, no Campo de Concentração, que o seu primo estaria de namoro com a Josefa, uma negra filha do Zé Bernardo (um trabalhador da fazenda da família de Vicente): “Conceição estranhou a história e não pôde se conter: - E ele tem alguma coisa com ela?” (p. 57). Noutras palavras: Conceição sente por Vicente mais do que amizade de prima.

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Com relação aos sentimentos que existem entre Conceição e o primo, é importante não perder de vista que os fatos ligados ao vaqueiro e que, de alguma forma estão ligados aos seus, sempre incomodam a professora – a fala da moça citada anteriormente comprova o que acabei de afirmar. É assim, por exemplo, que ela se inquieta ao ler numa carta que Lourdinha (irmã de Vicente) lhe mandou que este teria voltado triste da Capital (onde visitou a professora e a achou mais distante, toda dura, sem saber que ela estava aborrecida por conta da história da Zefa do Zé Bernardo). Conceição, que não podia deixar de se aborrecer ainda mais com essa história da tristeza do primo, resmunga: “- Eu?! E ainda por cima ele é que está triste?” (p. 99). Com relação ao lado maternal de Conceição, ficamos sabendo, à p. 98, que ela está pensando em adotar Duquinha, um afilhado seu (e de Vicente), filho de Chico Bento e Cordulina, que está com os pais no Campo de Concentração. Vejamos o seguinte trecho dO Quinze: “Então, voltando à espreguiçadeira, deixou-se cair, e ficou longamente cismando na pobre criança morta de fome a roer famintamente uma raiz venenosa (...), mastigando com esforço um fio de baba terrosa lhe escorrendo do canto da boca...”. A fala de Cordulina, mãe de Duquinha, ratifica o que acabei de afirmar no trecho anterior: “- Chico, a comadre Conceição, hoje, cansou de me pedir o Duquinha. Anda com um destino de criar uma criança” (p. 101). A partir da página seguinte o narrador dO Quinze informa-nos acerca do quão zelosa é Conceição para com o afilhado. Constata-se, nesse momento da narração, que Duquinha passa a morar definitivamente com a sua madrinha: “- Foi de vez, comadre? Agora não leva mais! Pobrezinho do meu afilhado! Que é que tem dentro dessa barriga tão inchada, Manuel?”. Uma vez com o menino sob sua guarda o seu zelo é constante. Ao saber que Mãe Nácia quer o Duquinha dormindo no quarto da empregada, retruca: “- O pobrezinho está tão doente, Mãe Nácia! Pode acordar de noite, e a Maria é mesmo que uma pedra!...” (idem). Cuida tão bem que Duquinha sobrevive, conforme o desfecho da trama (já citado) evidencia.

3.

VICENTE: O HOMEM LÍDER-PROVEDOR

É à página 10 que o narrador dO Quinze informa-nos acerca de Vicente: “Encostado a uma jurema seca (...) Vicente dirigia a distribuição de rama ao gado”. Vicente é

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forte, viril; é o dirigente dos trabalhos na fazenda de sua família (conforme já ressaltado anteriormente). É primo de Conceição e já a namorou no passado. Este dado interessa-me muito, uma vez que fornece pista importante para o entendimento de sua atuação na trama e, logo, relacioná-lo à Conceição (as Relações de Gênero) na história dO Quinze Vicente e Conceição já se conheciam antes do narrador começar a nos informar acerca do que se passa nO Quinze e é no Capítulo 2 que ele nos mostra os primeiros contatos entre os primos na trama. É perceptível o encanto que envolve as personagens quando da ida de Vicente ao Logradouro, o lugar onde Dona Inácia mora e Conceição está passando férias dos “dez meses de professorado” (p. 9), para tomar carrapaticida emprestada à Dona Inácia. A vida deste forte e vigoroso vaqueiro sempre foi o trabalho: “Vicente foi recordando sua vida de trabalho ininterrupto, desde os quinze anos – trabalho de sol a sol, sem descanso e quase sem recompensa...” (p. 42). Com a seca que se mostrava implacável, a família de Vicente (pai, mãe e irmãs) vai para o Quixadá, onde é menos difícil sobreviver. Entretanto, o vaqueiro permanece na terra da família para cuidar do gado. Vejamos a fala de Chiquinha Boa, uma ex-moradora do Quixadá e que foi encontrada por Conceição no Campo de Concentração: Já Conceição (...) sentara-se num tronco de cajueiro, interessada por aquela criatura que chegava do sertão: -- E tudo por lá? Bem? -- Vai, sim senhora. Seu Major, Dona Idalina e as moças foram pro Quixadá. Só ficou Seu Vicente... (p. 56).

Vicente é quase um super-homem. Permanece na labuta do início da seca (por volta de março) ao desfechar a história. Era um trabalho desumano, de sol a sol, quase não dormindo. A certa altura da contação ficamos sabendo que Alice (sua irmã) e Mariinha Garcia acharam Vicente muito abatido. A um o que foi?, da irmã, o vaqueiro responde: “- Nada! Uma passada quase em claro por causa de algumas reses caídas...” (p. 121). Não obstante, o rapaz não desanima, porque ele é o provedor da família. Quando a seca está com sua força mais visível, o não desistir da luta, pra ele, torna-se um capricho, uma opinião. Após voltar duma viagem que fez à Capital só pra ver Conceição (p. 135), Vicente está fumando e bebendo numa roda de botequim. Quando alguém pergunta se vale a pena tanto esforço, tantas despesas com o gado, a sua resposta é enfática: “- Não sei... Pra mim, isso agora é um capricho... Tomei a peito e vou ao fim... Se salvar tudo, lucro muito, se nada... paciência...” (p. 94). Noutras palavras: a sua fibra é coisa de um grande guerreiro.

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Depois que cai a primeira chuva de dezembro (p. 132) contam-se três anos até a “tão animada” quermesse de Natal (p. 146) de que ficamos sabendo no final da trama. Todo esse período foi dificílimo e Vicente o suportou bravamente. Num de seus momentos de revolta ante o inimigo intocável, quando queria fugir, “viver numa terra melhor”, ficamos sabendo que “logo lhe veio a lembrança dos pais, tão velhinhos, que tudo esperavam dele; evocou o que seria o desamparo da fazenda, vazia de seu esforço; o gado abandonado, tudo paralisado e morto” (p. 44). Por esse trecho da contação percebe-se o quanto o seu esforço é necessário. Mas o vaqueiro também possuía os seus momentos de desânimo, de desencanto ante tão poderoso flagelo da natureza. À página 117 o narrador dO Quinze informa-nos que: “O que desolava Vicente, o que enchia seu coração enérgico de um infinito desânimo, era a triste certeza da inutilidade de seu esforço”. No que tange à sua atuação em cotejo com a da professora Conceição, ficamos sabendo que em Quixadá “era conhecido e até muito exagerado” o namoro dos primos (p. 92). Trata-se de um namoro do tempo de adolescentes, porque Conceição tinha vinte e dois anos quando se inicia a contação e o namoro é narrado como um fato do passado. Deste namoro ficamos sabendo, à página 14, que o vaqueiro foi ao Logradouro para tomar carrapaticida emprestada à Dona Inácia. Ao chegar à casa desta encontrou a professora que, do alpendre, “resguardava os olhos com a mão em pala” procurando identificar quem chegava. A partir desse momento, o narrador informa-nos (sumariamente) que: 1) Vicente volta para suas terras, pra sua fazenda e lá permanece o tempo todo, com saídas para providenciar alimentos para as reses. Vai uma vez à Capital “só para ver Conceição” e fica indo às vezes ao Quixadá, para onde a sua família se mudou, e ele ficou porque o gado precisava dele – a família de Vicente mudou-se para o Quixadá porque “sem banho, mandando buscar água a mais de légua de distância” era muito difícil para a família (p. 56); 2) Conceição, acompanhada por Vicente, sai do Logradouro para a Capital (pp. 32 e 33) levando Dona Inácia para passar um tempo com ela e, assim, sair da influência duma seca que estava começando e seria horrenda. A professora leciona de dez às duas e ajuda as senhoras da comissão de socorros que auxiliam as famílias que estão no Campo de Concentração; 3) Conceição ficará o tempo todo na Capital e voltará ao Quixadá apenas na animada quermesse de Natal do final da trama, três anos depois, quando a história é desfechada. Quando Vicente foi à capital “por causa de uma partida de caroços que encomendara para o gado” (p. 72), sem saber que Conceição estava chateada com a história

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do seu “namoro” com a Josefa do Zé Bernardo que a Chiquinha Boa havia lhe contado, achou a prima indiferente:

Em vão procurou naquela moça grave e entendida do mundo, a doce namorada que dantes pasmava com a sua força, que risonhamente escutava os seus galanteios, debruçada à janela da casa-grande, cheirando o botão de rosa que ele lhe trouxera (p. 78).

Quando Vicente foi-se embora Conceição, deitada na cama, “com a luz apagada” (idem), ficou recordando a visita do primo. A principal diferença entre ela e o primo e que faz com que o seu pensamento não saiba ir adiante (p. 79) é relativa ao desnível cultural que há entre os dois. O narrador, neste momento da contação, revela que o maior obstáculo, a maior barreira que os separa é o “desamparo” que a moça sofreria quando procurasse um “seguro companheiro” (idem) nas horas de abandono e de solidão. Não teria quem lhe completasse um pensamento incompleto. Vicente certamente nunca teria lido Machado de Assis (p. 78), que a professora lia. Pelo exposto e por muito mais que poderia ser elencado acerca da personagem Vicente, dá para entender que o seu destino seria casar-se 21 com Conceição (pelo que conta o narrador). Mas os seus destinos parecem estar encaminhados para direções autônomas. Ainda acerca de Vicente e sua relação com a personagem Conceição é importante frisar a fala da professora quando sabe que ele estaria de namoro com a Josefa: “E o Vicente, todo santinho, é pior do que os outros! A gente é morrendo e aprendendo” (p. 61). Pelo referido até agora dá para perceber que Vicente, além de um homem vigoroso, valente para o trabalho, provedor, é másculo, viril (heterossexual). Portanto, constitui-se enquanto a “norma”. O “caso” com a Zefa do Zé Bernardo é a prova do que acabo de enfatizar. Quando, por exemplo, ele volta da Capital, chega ao Quixadá, encontra Lourdinha e Mariinha Garcia. Veja-se o diálogo travado entre Vicente e Lourdinha:

Vejam como a Mariinha tem as pernas grossas. Lourdinha o repreendeu: - Você não tem vergonha!... Ele respondeu: - Pra que vocês andam agora com umas saias tão justas? Vão subir no bonde, mostram até a batata da perna... (p. 92).

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O casamento pode ser um outro tema para estudo/pesquisa, a partir da leitura da narrativa O Quinze – o que daria um ótimo trabalho. Seria uma outra perspectiva analítica: mas não é o meu objetivo para o momento.

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E, a seguir: “Vicente (...) notou que a moça [Mariinha] tinha uns lindos olhos e uma curiosa graça no riso” (p. 93). Rachel, através da fala do narrador dO Quinze, mostra-nos um masculino sobremodo forte, viril, trabalhador, provedor. Que suporta heroicamente as tribulações da seca, que não se faz de bobo ante um rabo de saia. De quem tanto dependem seus pais (“tão velhinhos”, p. 44) e suas irmãs. Vicente tem uma postura sexista. Em sua concepção a mulher é um ser frágil, que não conseguiria enfrentar o mato ao meio-dia em ponto (p. 114), coisa que ele, homem, conseguiria. Por isso, não quer levar Lourdinha para “a rama”. Mas ante tanto dengue da irmã (e porque ela pediu “pelo bem que ele quer à Conceição”!), resolve levá-la e, após a moça passar mal por conta do calor do sol, conclui, risonho e mais aliviado do susto: “- Mulher lá é gente pra andar no mato!” (p. 117). É esse o masculino de que tanto falei neste Trabalho (e muito mais poderia ser dito, acredito) e que precisava ser comparado ao feminino, como o fiz. Ainda mais uma vez, para não esquecer da personagem que polariza as atenções na trama dO Quinze com Vicente, veja-se a fala deste quando conversa com Lourdinha (quando Lourdinha pede a Vicente que não empate Mariinha Garcia, como teria feito a Conceição), à página 135:

Vicente pulou da cadeira, e interpelou-a, vermelho, exaltado: - O que eu fiz com a Conceição? Diga! O que eu fiz foi um esforço enorme para ir à cidade, só para a ver, chego lá, acho Dona Conceição toda dura, sem querer saber de ninguém... e ainda por cima, fui eu?!...

Ressalte-se que Vicente não sabia o motivo da “dureza” da prima. Porque ele não sabia que a Chiquinha Boa tinha contado à Conceição sobre o seu (dele) namoro com a Josefa do Zé Bernardo. Mas esse dado talvez seja de pouca valia a esta altura das considerações. Ao desfechar a história, durante a animada quermesse de Natal em Quixadá, em frente à calçada da casa de Lourdinha e Clóvis Garcia, perto de Mãe Nácia, estava Conceição, mais feliz porque sabia que criou Duquinha, quando Vicente se aproxima e a cumprimenta com um “- Boa Noite”. E assim o narrador desfecha a contação (que se inicia pelo núcleo de Conceição e finda com Vicente!):

Lourdinha ainda lhe [pra Vicente] gritou um recado para a mãe. Vicente chegou as esporas ao cavalo, que arrancou, num grande impulso.

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E Conceição o viu sumir-se no nevoeiro dourado da noite, passando a galope, como um fantasma, por entre o vulto sombrio dos serrotes (p. 149).

Não há final “feliz” para o casal de primos, talvez porque a moça não era resignada, porque tinha as suas próprias idéias. Quem sabe é um preço que eles deveriam pagar por serem tão diferentes. Acima de tudo mais uma vez é preciso dizer: as posturas de Vicente e Conceição, nO Quinze (sem desmerecer a temática seca) não podem passar despercebidas quando se quer tratar de “um dos problemas deste tempo”: as relações muitas vezes (ou sempre) perpassadas por injustiças, por embates implícitos entre o masculino e o feminino; as Relações de Gênero tecidas em sociedade, onde a mulher é tratada/vista, não raro, como “inferior”. E ainda mais uma vez digo: este não é um Trabalho que bate o martelo e encerra o leilão.

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CONCLUSÃO

Quando decidi fazer uma leitura possível da narrativa O Quinze tinha em mente, sobretudo, considerar as atuações de Conceição e Vicente sob a perspectiva das Relações de Gênero que são tecidas na trama. Por isso falei em uma perspectiva analítica; por saber que outros enfoques poderiam (e podem) ser aplicados. No decorrer das leituras e da escrita do texto passei a ter a convicção de que Rachel de Queiroz, ao publicar O Quinze com dezenove anos de idade (em agosto de 1930), queria apenas abordar e temática seca. E esta leitura de sua intenção tanto mais ganhou consistência quando, através da página virtual da Academia Brasileira de Letras, fiquei sabendo que Rachel teria decidido escrever um livro sobre a seca, porque ela estava com problemas de saúde; precisava preencher o tempo. Por isso a autora mostra as conseqüências da seca nas vidas dos familiares de Chico Bento, Conceição e Vicente. É assim, só para citar um exemplo, quando a seca está com todo o seu poder e vivacidade num novembro que parecia trazer a foice da morte, que Conceição vê as criancinhas morrerem às centenas, no Campo de Concentração (p. 127). Conforme foi referido no Capítulo III, Rachel não era uma feminista (e nem era intenção deste estudo denotá-la enquanto tal). A sua intenção não foi a de problematizar as atuações de Conceição e Vicente, a saber: não foi a de discutir as Relações de Gênero tecidas na trama via mover-se dos primos. E nem acredito que ela devesse ser uma feminista para poder ter esse ponto de vista. Não foi exaltar a professora em detrimento do vaqueiro (nem vice-versa). Não obstante, a leitura do texto dO Quinze pode ser feita sob a ótica dos Estudos Culturais/das Relações de Gênero, uma vez que a postura viril, provedora, sexista, preconceituosa e/ou discriminadora de Vicente pode ser analisada com a intenção última de problematizar o mover-se do binômio homem-mulher em sociedade. O mesmo pode ser aplicado à análise da personagem Conceição, enquanto uma mulher que não aceita passivamente a leitura que sua avó faz do ser mulher, a saber: que esta deve a qualquer preço casar para não se tornar “um aleijão”, que não deve “torcer a sua natureza”, que a mulher que tem “jeito” para tratar de crianças é “boa para casar” (até porque, nessa perspectiva, a finalidade única do casamento e da mulher nele é a procriação e suas demandas congêneres). Para Conceição a vida tem muito mais do que fórmulas prontas de muitas décadas atrás.

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Obviamente que os fatores idade e espaço geográfico/cultural influem no pensar de Dona Inácia: ela é idosa e mora no Logradouro, Zona Rural, e de lá não saía fazia muitos anos; já Conceição tem 22 anos naquele 1915, é professora, lê bastante, mora na Capital. Entretanto, não é bom esquecer que a atuação de Dona Inácia pode ser vista como um ícone de uma sociedade sexista e, na trama dO Quinze, deixa patente a concepção de Conceição. Rachel de Queiroz, em 1929-1930, quando escreveu a obra, não sabia da existência dos Estudos Culturais, das Relações de Gênero e, também por isso, está voltada para a seca e, é claro, para uma pitadinha de namorico que há na narrativa. Noutras palavras: fala do ano de 1915. É bom frisar que a autora, aos dezenove anos de idade, ainda carecia da vasta experiência que acumularia ao longo de seus 93 anos de vida; não se amadurece do dia para a noite. Por conta dessa “inexperiência” ela criou uma história o mais realista possível, até porque, para o que ela se propôs mostrar, essa realidade foi uma necessidade premente. O texto prosaico tende a uma maior aproximação com a realidade objetiva. Sua metáfora tende à univalência: mas esta é só uma ressalva, porque a linguagem figurada foi muito bem usada no texto de Rachel. Não é qualquer um (a) que manuseia brilhantemente a linguagem literária, quando ainda se é tão jovem, com a consistência que Rachel o fez. Só por essa história (O Quinze) já se poderia dizer do grande talento da autora, conforme ficou comprovado pela excelente recepção que O Quinze teve no eixo Rio-São Paulo no ano de 1931. Foi do texto literário que falei e não do que queria Rachel ao escrever/publicar a sua obra; se realmente era ou não a sua intenção problematizar as Relações de Gênero tecidas em nossas circunstâncias/relações sociais. Nas entrelinhas (e claramente) disse que o texto da Literatura pode ser enfocado sob pontos de vista diferentes: a sua relação, ou o seu estudo sob a perspectiva teórico-metodológica, com o campo dos Estudos Culturais, é apenas uma possibilidade dentre outras. É apenas uma possibilidade uma história literariamente contada poder ser submetida a uma outra teorização/investigação. Por isso é uma perspectiva analítica. Para estas derradeiras considerações acerca do Trabalho que escrevi digo, como disse Louro (1997, p. 162), que o escrevi “aceitando limitações e provisoriedades. A forma como apresentei tais reflexões constituem-se, evidentemente, num quadro parcial, provisório e limitado de possíveis relações entre” a Literatura e os Estudos Culturais/Relações de Gênero.

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O texto da nossa Literatura pode, folgadamente, problematizar as relações sociais; pode discutir crenças e paradigmas que já se encontrem (am) cristalizados (as) socialmente, como é o caso da atuação da mulher em sociedade/na sua comunidade; das atuações masculinas, não raro discriminadoras, com preconceitos do tipo “mulher lá é gente pra andar no mato” (p. 117 dO Quinze). O texto em si possui a polivalência que lhe permite ser analisado sob várias perspectivas, mas esse “apontar para mundos diferentes” também depende grandemente da leitura de mundo que temos, ou não, enquanto partes que somos desta sociedade informacional. A narrativa O Quinze pode ser vista dessa maneira; confirma o pressuposto acima referido, desde que haja competência leitora para tanto. A linguagem literária é polivalente e a competência intrínseca a quem lê uma obra literária precisa dessa mesma polivalência.

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BIBLIOGRAFIA

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