1

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS ESPECIALISTAS EM POLÍTICAS PÚBLICAS E GESTÃO GOVERNAMENTAL Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental uma carreira a serviço da cidadania Diretor Presidente: João Aurélio Diretora Vice-Presidente: Aleksandra Santos Diretora Administrativa-Financeira: Paula Lima Diretor de Assuntos Jurídicos: Alex Canuto Diretor de Comunicação e Divulgação: Matheus Azevedo Diretor Sócio-Cultural: Jeovan da Silva Diretora de Assuntos Profissionais: Ana Codes Diretor de Assuntos Parlamentares: Carlos de Azevedo (Cadu) Diretora de Estudos e Pesquisas: Leila G. Ollaik Diretor Suplente: Andrei Soares CONSELHO FISCAL: Camila Fasolo e Leandro Safatle CONSELHO DE ÉTICA: Daniel Pitangueira de Avelino, Vitor Cipriano de Fazio e Paulo Gustavo de Araújo Paiva.

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental : ResPvblica / Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental. – Ano 1, n.1 (set. 2002)- . – Brasília : ANESP, 2002- . Semestral ISSN 1678-4057 1. Administração Pública – Periódicos. 2. Gestão Governamental – Periódicos. 3. Politica Pública – Periódicos. I. Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental. II. Título: ResPvblica. CDD 350.005 CDU 35 (05)

Editora: Leila G. Ollaik. Conselho Editorial: Carolina Gabas Stuchi, Daniel Gama e Colombo, Eduardo Granha, Fernanda Bittencourt Vieira, Gildete Dutra Emerick, Gisele Gomes da Silva, Jana Petaccia, Juliana A. N. Suzuki, Lamartine Braga, Márcia Muchagata e Trajano Augustus Tavares Quinhões. Revisão: Nita Queiroz. Projeto Gráfico: Wagner Alves /Anagraphia BR. Foto capa: Patrick Grosner. Diagramação e Produção: Acqua Design. Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Endereço: SBN, Quadra 2, Bloco F, Ed. Via Capital, Sala 309/310 - CEP: 70.040-911 - Brasília/DF. Telefones: (61) 3323 2397 / 3321 3898 / FAX: (61) 3322 4049. E-mail: [email protected] / Site: www.anesp.org Tiragem: 500 exemplares ResPvblica é uma publicação semestral da Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental - ANESP. Seu conteúdo não necessariamente expressa a opinião da ANESP.

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental

Sumário 5

Editorial ESPECIAL ELEIÇÕES

7

Gestão pública e desenvolvimento: proposições para uma agenda de governo Marcelo Viana Estevão de Moraes

19

Para aperfeiçoar o Sistema Único de Saúde: algumas propostas Fabiola Sulpino Vieira

31

Educação no Brasil: políticas educacionais e professores Ana Beatriz Cabral

41

Previdência Social: avaliação do regime atual e sugestões de mudança Paulo Kliass

47

Ciência, Tecnologia e Inovação (C,T&I) como alavancas para o crescimento econômico: propostas para um Brasil digital Rafael Henrique Rodrigues Moreira

59

Superação das desigualdades regionais: o salto de qualidade no processo de desenvolvimento nacional Adriana Melo Alves e João Mendes da Rocha Neto

71

Por uma política pública de redução de homicídios no Brasil Gustavo Camilo Baptista ENTREVISTA

81

Servidores Públicos e Participação Social Daniel Avelino e Fernanda Machiaveli

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental Vol. 13 no 1 Jan/Jun 2014

6

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental

Editorial Em outubro a população brasileira escolherá o(a) presidente que vai governar o país pelos próximos quatro anos. Para contribuir com o debate eleitoral, a ResPvblica tem a satisfação de apresentar aos leitores nesta edição (volume 13 número 2) o Especial Eleições, com propostas de membros da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) para aprimorar as áreas de gestão pública; educação; saúde; previdência social; ciência, tecnologia e inovação; integração nacional; e segurança pública. São autores dessa edição mestres e doutores em áreas diversas como economia, administração, ciência política, saúde coletiva, educação, geografia, psicologia e direito; todos especialistas em funcionamento do Estado. Em comum, agregam conhecimento profundo sobre gestão governamental, políticas públicas e organização da máquina estatal, cujo aprendizado foi adquirido tanto por pesquisas acadêmicas quanto pela ampla experiência profissional. Também conhecidos como gestores governamentais, os EPPGG são servidores públicos federais concursados diretamente responsáveis pela implementação de políticas públicas, possuem atuação descentralizada nos mais diversos órgãos governamentais. Diversos EPPGG com experiência profissional de peso e forte currículo acadêmico foram convidados para contribuir com suas propostas. Os sete artigos desta edição foram escritos no primeiro semestre de 2014. Importante ressaltar que não se trata de um programa de governo, afinal, não é função dos EPPGG compilar propostas para uma unicidade política. O objetivo do

Especial Eleições é oferecer proposições em áreas setoriais, de autores com históricos distintos, todos muito qualificados e experientes, evidenciando a diversidade e a independência dessa carreira de Estado, que busca servir aos governos da melhor maneira possível. Este foi o desafio proposto pela ResPvblica e aceito pelos autores: expor suas propostas, resultantes de profunda reflexão a partir das experiências ao longo de suas trajetórias profissionais e com o devido embasamento teórico. O artigo que inicia a revista apresenta sugestões para uma agenda de governo que contribua para fortalecer a gestão pública em prol do desenvolvimento do país. O texto é assinado por Marcelo Viana Estevão de Moraes, doutor em Ciências Sociais e ex-secretário de Gestão no Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Em seguida, a doutora em Saúde Coletiva Fabiola Sulpino Vieira, diretora do Departamento de Economia da Saúde, Investimentos e Desenvolvimento do Ministério da Saúde, elenca propostas para enfrentar os desafios contemporâneos do Sistema Único de Saúde, sobretudo no que diz respeito ao financiamento e à gestão. No terceiro artigo, Ana Beatriz Cabral, doutora em Educação, dispõe sobre as a relação entre as políticas públicas educacionais e os professores. O quarto artigo aponta estratégias para resolver alguns gargalos da previdência social na visão de um ex-secretário no Ministério da Previdência, o doutor em Economia Paulo Kliass. O secretário-adjunto de Política de Informática do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, Rafael Henrique Rodrigues Moreira, mestre em Economia com 7

especialização em Gestão de Indústrias de Alta Tecnologia na China, traz uma reflexão sobre como investimentos no tripé C,T & I podem alavancar o crescimento econômico do Brasil. O sexto artigo – escrito pela Doutoranda Adriana Melo Alves, atualmente Secretária Nacional de Desenvolvimento Regional, e pelo Doutor em Administração João Mendes da Rocha Neto – trata da superação das desigualdades regionais, tão necessária para o salto de qualidade no processo de desenvolvimento nacional. Finalmente, o último artigo traz sugestões para a segurança pública, com ênfase nas propostas para redução dos homicídios no Brasil, elaborado pelo Doutor em Psicologia Gustavo Camilo Baptista. O assunto da entrevista deste número é a participação social na definição e no acompanhamento das políticas públicas, tema mencionado por todos os EPPGG que construíram esse Especial Eleições. Os entrevistados são Fernanda Machiaveli, mestre em ciência política e chefe de gabinete da Secretaria Executiva da Secretaria Geral da

Presidência da República, e Daniel Avelino, doutor em Política Social, com atuação na Secretaria Nacional de Articulação Social, também na Secretaria Geral da Presidência da República. Esses EPPGG participam ativamente da construção da Política Nacional de Participação Social e do Fórum Interconselhos, iniciativa premiada pela Organização das Nações Unidas na Coreia do Sul em junho último. Viver em um país mais inclusivo, mais justo e mais desenvolvido é o sonho de todos os brasileiros. Nós, EPPGG, gestores governamentais comprometidos, queremos ajudar a construir este Brasil, oferecendo o melhor de nós para trabalhar com o governo que será eleito para o período de 2015-2018. As contribuições compiladas aqui são apenas um exemplo do quanto queremos contribuir para “fazer o que será”.

Boa leitura e vamos ao debate!

Os números anteriores da ResPvblica estão disponíveis para download pela internet no endereço: www.anesp.org

Especial Eleições Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental

Gestão pública e desenvolvimento: proposições para uma agenda de governo Por Marcelo Viana Estevão de Moraes

9

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental Vol. 13 no 2 Jul/Dez 2014

Gestão pública e desenvolvimento: proposições para uma agenda de governo

Introdução A gestão pública não existe no vácuo como mero arranjo instrumental universal no qual a articulação racional de certos meios produz determinados fins. Em uma perspectiva normativa, o modelo de gestão pública deve estar a serviço de um projeto de país. Esta é a primeira pergunta a ser respondida: gestão pública para fazer o que (política) e como (estratégia)? A resposta estará necessariamente condicionada à trajetória histórica do Brasil (Como chegamos até aqui?); ao sistema político e ao arcabouço institucional vigente em determinado momento (Quem manda e como manda?); ao grau de desenvolvimento e complexidade de suas capacidades econômicas e produtivas assim como aos recursos cognitivos e tecnológicos disponíveis (Com que fatores e insumos contamos?); e aos valores e percepções que informam a cultura da população, ou seja, a maneira de ser, pensar, sentir e agir dos brasileiros (O que querem os indivíduos e grupos sociais?). As manifestações de junho de 2013 revelaram, direta ou indiretamente, insatisfações diversas que emergiram de maneira anômica no plano social e que foram e continuam sendo – devido a seu aspecto polifacético – objeto de intensa disputa simbólica no campo das interpretações. O fato é que são manifestações “negativas”; ou seja, uma reação a “tudo isso que aí se encontra em termos de práticas políticas” e não uma ação organizada e sistemática em favor de um projeto concreto de futuro. Em um jargão psicanalítico, expressam a frustração decorrente do hiato entre desejos e realidades e parecem ambicionar por soluções “mágicas”, que em um átimo pudessem dar conta das demandas reprimidas e, diga-se, nem sempre realizáveis, ao menos no curto ou médio prazos. Entretanto, a Constituição de 1988 prevê em seu corpo os fundamentos e os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana;

10

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I - independência nacional; II - prevalência dos direitos humanos; III - autodeterminação dos povos; IV - não intervenção; V - igualdade entre os Estados; VI - defesa da paz; VII - solução pacífica dos conflitos; VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X - concessão de asilo político. Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações. (...). Qualquer que seja a interpretação dada às jornadas de junho de 2013, não parece crível que os que ali se manifestaram – ou que aquela parcela majoritária da população que, segundo as pesquisas de opinião, apoiou à distância as manifestações – quisessem a revogação desse pacto fundamental. Ao contrário, é mais razoável crer que a população queira a implementação mais célere e efetiva dessa agenda: mais “res publica”, e menos corrupção; mais democracia e participação, e menos arbitrariedade; mais prevalência do direito e da lei, e menos

Seria recomendável fazer um mapa de cargos estratégicos para a condução dos programas e ações prioritárias de governo e transformá-los de cargos de livre provimento em funções comissionadas ocupadas por servidores de carreira, mediante processo seletivo interno, no intuito de ampliar a capacidade técnica do Estado para a condução de políticas públicas, de modo a provê-las com base no critério de mérito e competência. impunidade; mais oportunidades, e menos desigualdades; mais segurança, e menos violência; mais desenvolvimento e bem-estar, e menos atraso. Ou seja, o Brasil tem pressa e está impaciente; o projeto básico inserido na Constituição permanece válido e legítimo; e as práticas públicas têm que se ajustar a essa realidade. Como a evolução recente da administração pública brasileira se ajusta a essa realidade? Bem, pode-se dizer que há uma tensão no Brasil contemporâneo entre uma perspectiva gerencial e uma perspectiva societal (PAULA, 2005), no que diz respeito a modelos de gestão, ainda que ambas não sejam, por sua natureza, reciprocamente excludentes. Esse é o enigma da esfinge que nos cumpre decodificar: “decifra-me ou devoro-te”. Suspeito que a 11

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental Vol. 13 no 2 Jul/Dez 2014

Gestão pública e desenvolvimento: proposições para uma agenda de governo

resposta esteja em uma nova síntese que permita um salto de qualidade nas práticas públicas conjugando esses dois polos. Síntese que em verdade nem é tão nova: já vem sendo moldada de maneira incremental e tentativa em um aprendizado contínuo nos anos da democracia pós-1988, ou do que pode ser chamado de terceira república brasileira. Ideias-força de um novo modelo de gestão A demanda por mais participação da sociedade civil na formulação, implementação e avaliação de políticas públicas corresponde a um processo pelo qual a cidadania pretende submeter o aparato estatal a seu controle, restringindo as margens para ações arbitrárias no âmbito do setor público. A vertente societal de reforma e gestão do Estado emerge como consequência da mobilização popular e dos movimentos sociais que a partir dos anos 1970 e 1980 conduziram à redemocratização do Brasil, culminando do ponto de vista institucional com a promulgação da Constituição de 1988. É uma perspectiva que busca resgatar a dimensão sociopolítica da gestão. Essa vertente ganhou materialidade com a criação de novos conselhos de políticas públicas, de alcance consultivo ou deliberativo; a adoção de fóruns temáticos, com novas metodologias de planejamento e orçamentação participativos; entre outras formas de participação não eleitoral das comunidades nos processos decisórios e gerenciais no âmbito da administração. Entretanto, embora a gestão societal procure estruturar um projeto político que repense o modelo de desenvolvimento brasileiro, a estrutura do aparelho de Estado e o paradigma gerencial; ela não tem um projeto integrado e sistemático de organização do aparelho estatal, atendo-se principalmente a iniciativas locais, de menor alcance, centradas na estruturação de canais que viabilizem a participação popular e a focalização nas demandas do público-alvo (PAULA, 2005). A Constituição de 1988, em seu texto original, apontou para a adoção de formas mais democráticas de gestão lançando as bases para a ampliação da participação popular nos processos decisórios, consagrando o princípio da “democracia semidireta” (BENEVIDES, 1991). Houve a previsão de realização de plebiscitos e referendos, da possibilidade da iniciativa popular legislativa, bem como de criação de órgãos colegiados na administração, com a participação

12

de diversos setores da sociedade, com caráter ora deliberativo, ora consultivo, envolvendo os mais variados campos de políticas públicas. A emergência histórica desse clamor coincide com o advento no Brasil da chamada nova administração pública ou gerencialismo, como padrão dominante na gestão pública brasileira, assumindo, ao menos formal e simbolicamente, a hegemonia em relação aos paradigmas anteriores1 marcados pelo autoritarismo, em sua forma patrimonial ou burocrática. A administração gerencial tem sua origem em um movimento global de reforma do Estado iniciado nos anos 1980 tendo por matriz as experiências anglo-saxônicas de inspiração liberal, caracterizadas pela incorporação à esfera pública de novas práticas e técnicas de gestão cujo foco está centrado na obtenção de resultados. Ela enfatiza o aumento da eficiência, da eficácia e da efetividade da administração pública em suas diversas dimensões. Não obstante esse modelo gerencial adote um discurso de promoção da participação e do controle social, ele efetivamente mostrou-se centralizador no que concerne à estruturação dos processos decisórios e das organizações públicas. A distinção central entre o modelo gerencial e o paradigma burocrático de gestão pública, que o precedeu, encontra-se no controle de resultados. No modelo gerencial, pretende-se a definição prévia dos objetivos a serem alcançados, mantendo o foco nos resultado, com a concessão de autonomias e flexibilidades gerenciais ao gestor público (por oposição à rigidez procedimental), conjugando o critério de mérito com a flexibilização dos meios. O enigma da esfinge reside em fazer com que ambas as perspectivas de gestão convirjam, fugindo de uma dicotomia empobrecedora, ainda que se considere e reconheça as distintas origens e trajetórias históricas de cada vertente em matéria de gestão pública – no caso brasileiro, o paradigma gerencial está associado historicamente a um projeto político social-liberal, por oposição ao paradigma societal, cuja evolução associa-se a um projeto popular-nacional. A despeito dessas distinções, é necessário ter em vista as ideias-força de cada perspectiva. Essas ideias-força são, no caso do modelo gerencial, a busca de maior eficiência, eficácia e efetividade na consecução dos resultados almejados pela administração pública; ou seja, o uso dos meios deve observar o princípio estratégico da eficiência logística de modo a maximizar os resultados a serem

Coordenação é o recurso mais escasso do Estado brasileiro e uma dimensão fundamental para a gestão da complexidade. obtidos. Dito de outra forma, os meios devem ser aplicados no momento oportuno, no valor e no local exatos para produzir da melhor forma possível os efeitos desejados. Ao planejamento estratégico e operacional deve ser agregada capacidade de gestão: habilidade para a adequada implementação, coordenação, acompanhamento, controle e avaliação das ações de Estado e de governo; com retroalimentação (feedback) nos próprios processos de planejamento e de gestão. Já na vertente societal, a ideia-força é a participação informada e efetiva da população nos processos decisórios e executivos que têm curso no âmbito da administração pública. Em síntese, trata-se de desenhar instituições e processos que sejam permeáveis à participação ativa da população na definição dos objetivos que serão buscados pela administração. Concomitantemente, essa participação se conjugará com ferramentas gerenciais capazes de permitir a obtenção de objetivos e resultados em quantidade, qualidade e prazo ótimos do ponto de vista de custos, benefícios e de satisfação social. De nada adianta possuir uma administração porosa aos interesses e aspirações dos diversos segmentos da sociedade se ela não é capaz de resolver adequadamente os problemas da coletividade pela consecução das medidas deliberadas democraticamente. Tampouco é de grande valia possuir uma administração eficaz e eficiente, mas que esteja descolada dos anseios e necessidades concretas da sociedade que a financia e é objeto de sua atuação. A tradição brasileira tem sido a de reformas administrativas compreensivas que são adotadas em conjunturas autoritárias, a exemplo do ocorrido no Estado Novo (Dasp) e no regime militar (Decreto-Lei nº 200). Essas foram reformas racionalizadoras da administração pública brasileira, mas adotadas em contexto de baixa participação 13

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental Vol. 13 no 2 Jul/Dez 2014

Gestão pública e desenvolvimento: proposições para uma agenda de governo

política, tanto por meios eleitorais quanto não eleitorais. As propostas de reforma surgidas no passado em ambiente democrático enfrentaram grandes resistências ou não lograram obter um caráter compreensivo. Pode-se dizer, no entanto, que nos últimos 30 anos, ou seja, desde os primórdios da redemocratização, o tema da reforma do Estado e da administração tem constado da agenda política, contendo esse debate elementos dos paradigmas de gestão aqui considerados que poderiam ser resumidos no binômio expresso por participação popular e eficiência logística. O desafio segue sendo o de fazer da gestão pública um instrumento da ação coletiva da sociedade brasileira para a construção do desenvolvimento, com liberdades públicas e integração social, nos contornos das disposições constitucionais mencionadas na introdução. Em verdade pode se falar de uma reforma que ocorre em um ciclo longo, de modo incremental e não linear, com a adoção de aspectos de um e de outro paradigma de gestão, seguindo a trilha alinhavada anteriormente, por meio de aperfeiçoamentos institucionais sucessivos que se dão paralelamente ao amadurecimento da cultura política nacional, na construção de um Estado de direito republicano, democrático e federativo.2 Limites e possibilidades: presidencialismo de coalizão e Federação O presidencialismo, o federalismo, o bicameralismo, o multipartidarismo e a representação proporcional são características tradicionais da república brasileira que encontraram um novo arranjo institucional na Constituição de 1988 e delimitam o campo político, o qual define os limites e possibilidades de qualquer modelo de gestão. Pensar em transplantar para o Brasil modelos racionais e instrumentais de administração pública por resultados – desenvolvidos em contextos político-institucionais diferenciados, em países com menor heterogeneidade histórico-estrutural no que concerne à formação territorial, social, econômica, política e cultural – soa, no mínimo, como uma pretensão ingênua. Dados esses limites em um contexto democrático, em que é preciso gerenciar, mediar e arbitrar uma grande diversidade de interesses em conflito, reformas compreensivas se mostram de difícil execução.3 A isso

14

se somam a diversidade de arranjos decorrentes dos vários tipos de políticas públicas, quer consideremos a taxonomia de Lowi4, ou especificamente a classificação de Nunes5 na análise da trajetória brasileira. Um aspecto que merece destaque no arranjo institucional brasileiro, e que afeta qualquer estratégia de gestão, é o presidencialismo de coalizão. Ele envolve uma combinação atípica, numa análise comparada, entre regime presidencialista de governo, multipartidarismo e representação proporcional, em que a governabilidade depende da constituição de grandes coalizões para compor o Executivo federal. Essa grande coalizão, ao mesmo tempo que dá sustentação ao exercício do governo, dificulta a coesão institucional e administrativa para a implementação de um programa específico. Acrescente-se a isso a forma de Estado – federal – em que o aspecto regional tem tanto impacto na formação da coalizão governamental quanto a representação partidária. Nesse arranjo reside uma das razões para a proliferação de pastas ministeriais no Brasil. Tal realidade é em grande parte responsável pela aparência cacofônica do “modelo” brasileiro de gestão pública e condiciona a manifestação prática do binômio expresso por participação popular e por eficiência logística, dueto já referido na seção anterior, quando se tratou da tensão entre as perspectivas gerencial e societal de gestão. Essa complexidade cacofônica exige um esforço maior de coordenação. Coordenação é o recurso mais escasso do Estado brasileiro e uma dimensão fundamental para a gestão da complexidade. O federalismo brasileiro é caracterizado por forte heterogeneidade regional entre os entes subnacionais, sendo triplo na medida em que inclui a União, os estados federados e também os municípios, que gozam de larga tradição de autonomia no que concerne a suas competências constitucionais (SOUZA, 2006). Nas palavras de um alto dirigente da FIFA, envolvido na organização da Copa do Mundo de Futebol de 2014, o “federalismo brasileiro é um inferno” (VALCKE apud CONTI, 2014). No entanto, a ordenação do federalismo brasileiro é bem mais centralizada do que ocorre em outras experiências federais no mundo, tendo sido adequada para o gerenciamento de um território que é em todos os aspectos bastante assimétrico, funcionando como

A demanda por mais participação da sociedade civil na formulação, implementação e avaliação de políticas públicas corresponde a um processo pelo qual a cidadania pretende submeter o aparato estatal a seu controle, restringindo as margens para ações arbitrárias no âmbito do setor público. elemento de coesão e de pertencimento a uma comunidade nacional (ABRUCIO, 2006). A proeminência da legislação e da regulação da União na maior parte das políticas públicas parece ser uma condição que permite que o conjunto dos entes federativos atue em torno de determinado objetivo cujo alcance é de interesse nacional (ARRETCHE, 2012). A centralização da formulação e supervisão de políticas públicas na esfera federal permite, por um lado, via financiamento, a redução das consequências adversas que resultariam do alto grau de desigualdade de receita entre os diversos entes subnacionais, exercendo um importante papel redistributivo que reduz a desigualdade de acesso dos cidadãos a serviços públicos de naturezas variadas. Nos setores em que há regulação e financiamento federal, por outro lado, é dada prioridade aos gastos voltados principalmente para os segmentos mais pobres como ocorre, por exemplo, em saúde e educação. Já nas áreas de infraestrutura urbana, saneamento básico, 15

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental Vol. 13 no 2 Jul/Dez 2014

Gestão pública e desenvolvimento: proposições para uma agenda de governo

16

políticas metropolitanas, segurança pública, entre outras, em que o modelo regulatório e executivo é distinto, os resultados são piores. Assim, a atuação da União por meio de regulação de políticas públicas em nível federal mostra-se efetiva para a redução das desigualdades regionais e sociais, provendo recursos para regiões e oferecendo serviços para populações que em outras circunstâncias ficariam desamparadas. Essa coordenação federativa permite mais eficácia do gasto social e a redução de tensões no bojo do Estado-nação, já que a regulação federal produz maior uniformidade (ARRETCHE, 2012). Essa conformação constitui requisito e condição de viabilidade para o advento de um esquema mais “fino” e sinérgico de coordenação em diversas áreas, com destaque para a emergência de um novo federalismo social (NERI, 2012). Os setores de políticas públicas em que houve maior integração e coordenação em função de uma regulação federal uniformizadora foram aqueles nos quais o potencial da descentralização executiva produziu seus melhores efeitos (ABRUCIO, 2006). Ou seja, centralização e descentralização não são termos opositores, mas princípios a serem ajustados conforme a natureza das questões a enfrentar. No caso, a centralização normativa propiciou uma descentralização executiva de melhor qualidade, uniformizando recursos e serviços no conjunto do território nacional. Entretanto, permanece um déficit de coordenação federativa em vários setores que demandariam um novo arranjo institucional não apenas para as relações entre os diversos níveis da Federação, mas para a cooperação dos entes subnacionais entre si. O caráter assimétrico da Federação brasileira ainda impõe um papel fundamental para a União de equalizadora das transferências para o financiamento de políticas públicas, em especial na área social. É hora de pensar, no entanto, em mais autonomia para os estados no campo da execução de políticas públicas, com mais espaço para ajustes às peculiaridades locais e regionais das políticas nacionais, posto que o “Governo Federal sempre enfrentará dificuldades para conhecer, diagnosticar e intervir nas diferentes realidades de um país continental” (ISMAEL, 2013, p. 33). A descentralização de parte dos processos decisórios e de processos executivos permite teoricamente maior participação social, incorporando atores sociais ao

espaço público, estimulando uma cultura cívica democrática e o fortalecimento da cidadania (ISMAEL, 2013). A construção de um federalismo cooperativo é especialmente importante em um país de dimensões continentais como o Brasil e que ainda se encontra em um processo de integração de seu próprio território. Com efeito, o governo central nos estados federais tem que ser cada vez mais um núcleo de inteligência e coordenação, tanto “para cima”, no que se refere à articulação para a constituição de esferas supranacionais de governança, como “para baixo”, em relação aos entes subnacionais, com as atividades de prestação de serviços sendo repassadas sempre que possível para as esferas estadual e municipal. Estados e municípios devem ter mais responsabilidades no fomento do desenvolvimento integrado e sustentável de seus territórios, na atração de investimentos e na melhoria do ambiente de negócios. Para fazer frente a tais responsabilidades, é necessário aumentar e fortalecer as capacidades institucionais desses entes subnacionais (MORAES, 2010, p. 46). O que fazer para conjugar eficiência logística, participação e coordenação para a gestão de complexidades de modo que o Estado seja um instrumento da ação coletiva da sociedade na construção do desenvolvimento, da democracia e da emancipação social? A título de conclusão: O que fazer? Não se pretende aqui, na fase final deste breve artigo, apresentar um elenco exaustivo de medidas que poderiam ser tomadas no sentido de permitir a articulação virtuosa de participação, coordenação e eficiência logística, respondendo aos clamores das perspectivas gerenciais e societais de gestão e os limites e possibilidades postos pela especificidade e complexidade do sistema políticoinstitucional brasileiro. Não se trata de inventar a roda, mas em síntese de criar um Estado inteligente, antenado com a sociedade do conhecimento e com as novas formas de sociabilidade, capaz de implementar uma agenda neodesenvolvimentista compatível com as novas realidades e restrições da globalização.

O neodesenvolvimentismo requer um Estado inteligente e competente, com profissionais capacitados que integrem uma administração permanente para o exercício de suas funções básicas, capaz de operar em rede com estruturas mais horizontais, flexíveis, racionais e abertas à participação cidadã na formulação, implementação, avaliação e controle das políticas públicas. Um Estado que use intensivamente as novas tecnologias de informação e comunicação, para atuar mediante processos de trabalho mais simples e mais rápidos. Um Estado com um novo modelo de governança pública, baseado na concertação social e política e nas inovações em gestão pública voltadas para resultados, tendo por foco o cidadão, com eficiência, eficácia, efetividade e excelência na utilização de recursos de toda ordem. Um Estado onde a regulação terá maior qualidade de modo a proporcionar o melhor ambiente possível para que cidadãos e empresas exerçam seus direitos, cumpram suas obrigações, gerem riquezas e aproveitem as oportunidades. Um Estado com capacidade executiva, capaz de tomar decisões e implementá-las. (MORAES, 2010, p. 40) No campo da participação, o Governo Federal adotou duas medidas que vêm ao encontro dos anseios da vertente societal de gestão. Inicialmente, aprovou no Congresso a Lei de Acesso à Informação (LAI) – Lei nº 12.527/2011 –, que regulamenta os procedimentos a serem observados pelos órgãos públicos nos três níveis de governo da Federação para fins de garantia de acesso à informação. Sem informação adequada, a participação sempre será deficiente por força de ignorâncias diversas. A louvável militância indignada despertada pelas manifestações de junho de 2013 também evidenciou o grande desconhecimento de setores expressivos da população acerca dos assuntos públicos, conforme se pode constatar pelo “febeapá”6 que tomou conta desde junho de 2013 do Faceboook, a principal ferramenta em rede utilizada para aquelas jornadas. (IBOPE, 2013). Em outra frente, o Governo Federal editou o Decreto nº 8.243, de 2014, que institui a política nacional de participação social e o sistema nacional de participação social. A política e o sistema buscam consolidar a participação como método de governo, promovendo a articulação das diversas instâncias e mecanismos de 17

123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 participação, aprimorando a relação Revista de Políticas Públicas e do Governo Federal 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 com a sociedade civil, respeitando a autonomia das partes. 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 Gestão Governamental 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 Esse decreto institucionaliza ainda as formas de diálogo: 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 Vol. 13 no 2 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 conselho de políticas públicas, comissão de políticas 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 Jul/Dez 2014 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 públicas, conferência nacional, ouvidoria pública federal, 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 mesa de diálogo, fórum interconselhos, audiência pública, 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 consulta pública e ambiente virtual de participação social. 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 Não há propriamente nenhuma novidadeproposições no referido Gestão pública e desenvolvimento: 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 dispositivo normativo, já que a totalidade dos formatos 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 para uma agenda de governo 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 previstos se desenvolveu historicamente desde os 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 primórdios da redemocratização até hoje, estando 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 previstos no arcabouço jurídico-legal do País. A novidade 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 está na sistematização das iniciativas e na definição 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 metodológica dessa diretriz, inclusive como elemento 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 inspirador para o modus operandi dos demais níveis de 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 governo. 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 Em relação a essas duas medidas mencionadas, trata123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 se agora menos de inovar e mais de agir, sendo necessário 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 dar mais atenção às ferramentas eletrônicas e aos meios 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 virtuais de interação entre o poder público e o cidadão, 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901

pelo aperfeiçoamento e implementação de medidas de governo eletrônico (E-gov), fazendo uso mais intensivo do enorme potencial da “galáxia da internet” (CASTELLS, 2003) para criar o Governo 24 horas, aumentando a “porosidade” estatal em um mundo mais plano no que concerne à relação entre governantes e governados. Quanto à eficiência logística, a Carta de Brasília da Gestão Pública, agenda de trabalho firmada pelo Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Administração e o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, em 2008, permanece atual em suas orientações. No caso do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, o maior desafio ainda é o de desmontar um conjunto de procedimentos inúteis criados no passado para simplesmente travar a ação do Estado em um contexto de grave crise fiscal. A conjuntura mudou, o projeto é outro, mas o arcabouço normativo dos principais sistemas administrativos7 não foi atualizado e racionalizado para adaptá-lo às exigências do momento presente. Se houvesse que escolher uma única medida a implementar, respeitados os limites e possibilidades impostos pelo sistema político, seria recomendável fazer um mapa de cargos estratégicos para a condução dos programas e ações prioritárias de governo e transformá18

los de cargos de livre provimento em funções comissionadas ocupadas por servidores de carreira, mediante processo seletivo interno, no intuito de ampliar a capacidade técnica do Estado para a condução de políticas públicas, de modo a provê-las com base no critério de mérito e competência. A permanência nessas funções seria periodicamente avaliada mediante a aferição do cumprimento de metas e tarefas previamente definidas em um caderno de encargos. Uma medida dessa natureza deveria ser adotada de imediato, logo no início da próxima gestão presidencial, de maneira a aumentar a resolutividade do Governo Federal na consecução de seu programa. Iniciativa similar adotada no âmbito do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), com a criação de funções comissionadas exclusivas da instituição para exercício de atividades estratégicas em sua estrutura gerencial, trouxe bons resultados para a modernização administrativa e a melhoria de seus serviços. Outra possibilidade seria acabar com a atual fragmentação do ciclo de gestão em carreiras diversas, com atribuições distintas, embora os profissionais apresentem, em realidade, perfis, capacidades e habilidades similares. A criação de uma única carreira de gestão e controle, abarcando em sua competência a atuação em todos os sistemas administrativos do Executivo federal – com possibilidade de exercício amplo e cujos integrantes fossem especialmente elegíveis para ocupar cargos de direção e assessoramento superior –, poderia replicar o que já foi feito no passado em relação à racionalização das carreiras que existiam na esfera da administração tributária. Essa nova carreira seria o núcleo básico de uma burocracia especialmente preparada para criar o Estado inteligente do trinômio integrado por coordenação, eficiência logística e participação, dando um salto de qualidade em relação à realidade atual. Deveria ser previsto, inclusive, o exercício temporário em entes subnacionais, quando projetos de interesse comum o justificassem por razões de coordenação. Tal carreira demandaria um profissional que agregasse valor, indo além do cumprimento burocrático de sua missão, criativo, com capacidade de adaptação, e comportamento ético de compromisso com o interesse público: cônscio do seu papel como agente público

indutor da cidadania, do desenvolvimento sustentável e da equidade social, incorporando esta consciência na sua forma de pensar e agir. Esse profissional deveria ser apto a associar ousadia com capacidade de aprender, de interagir, de coordenar, de articular e de trabalhar em rede, mas sempre ciente da dimensão política do

ambiente público e da necessidade de articular e mediar a participação popular na administração. Em síntese, esse seria o eixo de uma estratégia básica de continuidade incremental da reforma democrática da administração e do Estado que poderia ser, eventualmente, adotada pelo próximo governo.

Referências

ABRUCIO, F. L. Para Além da Descentralização: os desafios da coordenação administrativa no Brasil. In: FLEURY, S. (org). Democracia, Descentralização e Desenvolvimento: Brasil e Espanha. Rio de Janeiro, FGV, 2006, pp. 77-125. ARRETCHE, M. Democracia, Federalismo e Centralização. Rio de Janeiro. FGV/Fiocruz, 2012. BENEVIDES, M.V.M. A Cidadania Ativa: referendo, plebiscito e iniciativa popular. São Paulo. Ática, 1991. CASTELLS, M. A Galáxia da Internet: Reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro. Zahar, 2003. CONTI, J.M. Contas à Vista: afinal quanto custou a Copa do Mundo para a sociedade brasileira? São Paulo. Consultor Jurídico, 2014. IBOPE. Pesquisa por Amostra sobre as Manifestações no Brasil em 20 de junho de 2013. Rio de janeiro. IBOPE/ Fantástico, 2013. ISMAEL, R. Governos Estaduais no Ambiente Federativo Inaugurado pela Constituição de 1988: aspectos políticos e institucionais de uma atuação constrangida. Rio de janeiro. IPEA, Texto para discussão 1907, dez 2013, 39 p. MCCOOL, D. C. Public Policy Theories, Models, and Concepts. An Anthology. New Jersey: Prentice Hall, 1995. MORAES, M. V. E. Desenvolvimento e Gestão Pública. Rio de Janeiro: ESG, 2010. NERI, M. O Rio e o Novo Federalismo Social. In: PINHEIRO, A. C. & VELOSO, F. (org). Rio de Janeiro – um Estado em transição. Rio de janeiro. FGV, 2012, pp. 469-503. NUNES, E. A Gramática Política do Brasil: clientelismo, corporativismo e insulamento burocrático. Rio de janeiro. Garamond, 2010. PAULA, A.P.P. Por Uma Nova Gestão Pública: limites e potencialidades da experiência contemporânea. Rio de Janeiro. FGV, 2005. SOUZA, C. Desenho Constitucional, Instituições Federativas e Relações Intergovernamentais no Brasil pós-1988. In: Fleury, S. (org). Democracia, Descentralização e Desenvolvimento: Brasil e Espanha. Rio de Janeiro. FGV, 2006, pp.187-211.

Notas

No mundo real, observa-se uma simultaneidade de não coetâneos, com a existência concomitante na administração pública de padrões patrimonialistas, burocráticos e gerenciais de gestão, todos eles caracterizados por baixa

1

19

123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 porosidade à participação da sociedade, Revista de Políticas Públicas e direta ou indiretamente, nos processos decisórios e executivos do setor 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 público. 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 Gestão Governamental 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 2 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 Vol. no 2das cláusulas pétreas previstas no artigo 60, § 4º, da Constituição: a forma federativa de Estado; o voto Nos 13 termos 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 direto, secreto, Jul/Dez 2014universal e periódico; a separação dos poderes; e os direitos e garantias individuais. 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 3 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 Foi o caso da reforma Bresser-Pereira, cuja proposta encontra-se delineada no Plano Diretor de Reforma do Aparelho 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 de Estado (1995). 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 4 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 Theodorepública J. Lowi desenvolveu uma taxonomia de políticas públicas (policies), identificando quatro tipos básicos: política Gestão e desenvolvimento: proposições 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 distributiva, política regulatória, política redistributiva e política constitutiva. Ele identifica uma correlação entre tipos de 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 para uma agenda de governo 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 políticas públicas (policies), tipos de política (politics) e tipos de coerção governamental (LOWI apud MCCOOL, 1995, 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 p.182-183). 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 5 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 No que concerne às relações entre Estado, instituições políticas, sociedade e economia no Brasil, Nunes (2010) 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 propõe tipificá-las em quatro gramáticas políticas com suas lógicas próprias, quais sejam: o clientelismo, o 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 corporativismo, o insulamento burocrático e a igualdade de procedimentos. 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 6 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 “Febeapá” é expressão inventada pelo cronista Stanislaw Ponte Preta que significa “festival de besteiras que assola o País”. 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 7 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 São sistemas administrativos do Governo Federal: Sistema de Planejamento e de Orçamento Federal – Lei nº 10.180, 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 de 2001; Sistema de Pessoal Civil da Administração Federal (Sipec) – Decreto nº 67.326, de 5 de outubro de 1970; 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 Sistema de Serviços Gerais (SISG) – Decreto nº 1.094, de 23 de março de 1994; Sistema de Administração dos 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 Recursos de Informação e Informática (SISP) – Decreto nº 1.048, de 21 de janeiro de 1994; Sistema de Contabilidade 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901

Federal – Lei nº 10.180, de 2001, e Decreto nº 3.589, de 6 de setembro de 2000; Sistema de Administração Financeira Federal – Lei nº 10.180, de 2001, e Decreto nº 3.590, de 6 de setembro de 2000; Sistema de Controle Interno do Poder Executivo Federal – Lei nº 10.180, de 6 de fevereiro de 2001, e Decreto nº 3.591, de 6 de setembro de 2000); e Sistema de Organização e Inovação Institucional do Governo Federal (Siorg) – Decreto nº 6.944, de 21 de agosto de 2009, todos com alterações normativas subsequentes, mas sem maiores transformações em suas estruturas.

Marcelo Viana Estevão de Moraes: Servidor público concursado da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) do Governo Federal. Doutorando em Ciências Sociais com mestrado na mesma área pela PUC-RJ. Como EPPGG, já ocupou diversos cargos, dentre eles: secretário de Previdência Social; secretário de Gestão no Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão; secretário no Ministério do Trabalho e Emprego; e secretário executivo da Secretaria de Direitos Humanos. E-mail: [email protected].

20

Especial Eleições Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental

Para aperfeiçoar o Sistema Único de Saúde: algumas propostas Por Fabíola Sulpino Vieira

21

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental Vol. 13 no 2 Jul/Dez 2014

Para aperfeiçoar o Sistema Único de Saúde: algumas propostas

22

Introdução É impressionante como o tema da saúde sempre fica em evidência nos anos eleitorais. Nas eleições para os governos municipal, estadual ou federal, os problemas que dificultam o acesso dos cidadãos brasileiros aos serviços de saúde são explorados em todos os meios de comunicação. São exibidas cenas de pessoas que esperam por atendimento em hospitais superlotados, de outras tantas internadas nos corredores à espera de um leito, sem garantia de privacidade e dignidade, e de tantas outras mazelas que chocam a todos. É claro que a mídia mostra, na maioria das vezes, aquilo que não está funcionando, deixando de evidenciar o Sistema Único de Saúde (SUS) que vacina milhões de pessoas a cada ano; faz o controle das doenças; realiza milhares de transplantes, partos e outras cirurgias; e é responsável por inúmeras ações de prevenção e promoção da saúde. Também não pondera que a gestão é tripartite e, de acordo com esse modelo, os municípios são responsáveis pela execução dos serviços de saúde, apoiados pelos estados e pela União. Isso significa que eles têm autonomia político-administrativa, o que contribui para resultados muitas vezes tão díspares. Pouco ajuda neste debate o desconhecimento da classe média, em parte detentora de planos de saúde (cerca de 50 milhões de pessoas em dezembro de 2013), a respeito do SUS. Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que os cidadãos que efetivamente utilizam o sistema o avaliam melhor do que aqueles que não o utilizam para a assistência médica.1 Faço esse destaque porque todos, independentemente se detentores de planos de saúde ou não, são beneficiários das ações de vigilância sanitária e epidemiológica. E muito provavelmente serão atendidos pelo SUS, se precisarem de serviços de alta complexidade como um transplante. Outro estudo realizado com o objetivo de avaliar o grau de satisfação com a saúde pública municipal concluiu que a maior parte dos usuários mostrou-se satisfeita com os serviços de saúde, apesar da grande quantidade de queixas quanto ao atendimento, à falta de humanização e acolhimento, e à deficiência de recursos físicos e materiais.2 Muitos foram os avanços desde a criação do SUS, entretanto, enormes também são os desafios. Diante dessa situação, a questão que se impõe é: Será que a

opção válida e racional para enfrentamento dos problemas da saúde no País é a de fazer fracassar o princípio da universalidade e privatizar o acesso aos serviços? Se assim fizéssemos, estaríamos na contramão dos movimentos feitos, por exemplo, pela Organização Mundial da Saúde (OMS) que nos últimos anos tem trabalhado no sentido de que os países caminhem para o estabelecimento da cobertura universal em saúde.3 Não por uma mera opção ideológica, mas pelo fato de que, quando não há proteção social garantida pelo Estado, as pessoas que necessitam de serviços de saúde têm frequentemente que arcar com elevados custos. Algumas até empobrecem em decorrência disso. A OMS estima que, anualmente, cerca de 150 milhões de pessoas sejam alvos desta catástrofe financeira e 100 milhões delas acabam empurradas para baixo da linha de pobreza. Obviamente, tal situação tem preocupado o governo norte-americano, que aprovou recentemente uma reforma de seu sistema de saúde com o objetivo de ampliar o acesso da população aos seguros privados. O sistema de saúde dos Estados Unidos está fortemente baseado nesse modelo. É reconhecidamente um dos sistemas mais centrados na atenção hospitalar e caros do mundo. Antes da reforma, contabilizava a exclusão de mais de 40 milhões de pessoas, as quais não tinham seguros de saúde e tampouco podiam pagar pela assistência médica de forma direta. Observa-se que a falta de cobertura da população por serviços de saúde é um fator importante para a deterioração das suas condições de saúde e qualidade de vida, para o empobrecimento e, consequentemente, a perda de produtividade de uma nação. No Brasil, o caminho que levou ao SUS foi longo. Chegou-se à declaração da saúde como direito dos cidadãos e dever do Estado. Mas é preciso enfrentar os problemas que obstam sua consolidação e a efetividade dessa garantia. Lançar luz sobre essas questões é fundamental e trazê-las para a agenda, imprescindível. Esse é o clamor das pessoas que insistentemente apontam o setor como problemático. Nesse sentido, é importante discutir tais problemas, de uma forma mais ampla. Houve um tempo em que as análises setoriais polarizavam as explicações para as deficiências do SUS em dois argumentos: do subfinanciamento, se os especialistas eram do setor saúde; ou da falta de gestão, se da área econômica. Hoje parece que essa dicotomização está

No Brasil, o caminho que levou ao SUS foi longo. Chegou-se à declaração da saúde como direito dos cidadãos e dever do Estado. Mas é preciso enfrentar os problemas que obstam sua consolidação e a efetividade dessa garantia. superada. O reconhecimento de que ambos contribuem para os problemas apontados no SUS já constitui um ganho para que se pensem soluções e políticas efetivas. Propõe-se a seguir aprofundar um pouco mais essas questões. Financiamento e gestão do SUS: desafios contemporâneos O financiamento da saúde pública é um tema recorrente no debate setorial. Desde a criação do SUS, com a Constituição Federal de 1988, especialistas dedicam-se a estudá-lo, invariavelmente chegando à conclusão de sua insuficiência para garantia do direito à saúde. A regra inicial para o financiamento do sistema previa a aplicação pela União de 30% do orçamento da seguridade social, até que Lei Complementar regulamentasse a matéria. Ocorre que essa regra nunca foi cumprida e a Emenda Constitucional nº 29, de 13 de setembro de 2000, estabeleceu o critério atualmente utilizado – validado pela Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012 – de aplicação mínima, por parte da União, do montante empenhado no exercício anterior, acrescido da variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB). Já os estados e municípios devem destinar, respectivamente, 12% e 15% de seus recursos próprios, ou seja, dos 23

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental Vol. 13 no 2 Jul/Dez 2014

Para aperfeiçoar o Sistema Único de Saúde: algumas propostas

impostos diretamente arrecadados e das transferências constitucionais. Nos últimos anos, as três esferas de governo empenharam-se em alocar mais recursos para o SUS, conforme verificado na Tabela 1. Destacam-se, entretanto, os municípios que, segundo dados declarados por meio do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (Siops), estão em média aplicando 21,1%, enquanto a média dos estados fica em 12,9%, bem próxima ao limite mínimo (ver Tabela 1). Apesar do aumento verificado nos últimos 12 anos, quando o gasto público com saúde no Brasil é comparado ao de outros países, que também possuem sistema universal, verificam-se diferenças importantes nos indicadores que medem a participação no PIB, bem como quanto ao gasto per capita. Em média, a participação dos recursos destinados à saúde no PIB brasileiro é metade da registrada nos demais países relacionados na Tabela 2. Quando se considera a relação por habitante, o dispêndio do Brasil com ações e serviços de saúde chega a ser menor que um quinto do total aplicado por esses mesmos países. Os números evidenciam o grau de dificuldade que os gestores do SUS enfrentam cotidianamente para prover ações e serviços públicos de saúde, com acesso universal, igualitário e integral, pressionados por demandas cada dia maiores.

Tabela 1 – Evolução do gasto público em ações e serviços de saúde – Brasil, 2002 - 2013

Fonte: Ministério da Saúde. Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (Siops). Acesso em: 08/06/2014. 24

Vários fatores estão relacionados ao aumento dos gastos em saúde, não só no Brasil, mas em todo o mundo. Em relação à população, a transição demográfica acelerada afeta fortemente a demanda por serviços de saúde. As pessoas vivem mais, aumentando a prevalência das doenças crônicas não transmissíveis, devido ao desgaste natural do corpo, mas também como resultado das condições da vida contemporânea e pela ampliação dos fatores de risco, tais como tabagismo, alimentação não saudável, sobrepeso, inatividade física e uso excessivo de álcool e outras drogas. Adiciona-se a isso o surgimento de novas doenças e epidemias como a dependência do crack. Ainda quanto à população, ampliou-se a consciência do direito à saúde e de sua exigibilidade, inclusive por meio do Poder Judiciário. Nos últimos dez anos, assistimos o aumento de decisões judiciais que determinam ao poder público a oferta de tecnologias muitas vezes não incorporadas ao SUS. Nesse contexto, as demandas por novas tecnologias têm exercido papel fundamental para elevação dos gastos em saúde. A cada dia surgem novas abordagens terapêuticas e novos meios diagnósticos, protegidos por patentes e oferecidos no mercado a preços invariavelmente elevados, o que pressiona ainda mais os orçamentos públicos em saúde. Contribui para esse quadro a propaganda da indústria farmacêutica destinada aos prescritores, que muitas vezes acabam convencidos

de que os novos produtos são melhores em comparação aos já utilizados na terapêutica. De forma positiva, no caso brasileiro, do ponto de vista do sistema de saúde, é inegável a ampliação do acesso a bens e serviços, o aumento da realização de medidas que rastreiam precocemente algumas doenças, como o câncer de colo de útero e o de mama, e a elevação do número de médicos, por meio de programa do Governo Federal. Mas é importante destacar que essas medidas, essenciais quando pensadas na eficácia e efetividade do sistema público de saúde, originam novas demandas, que resultam em mais internações, medicamentos, profissionais etc., aumentando o gasto em saúde. Outro grande desafio consiste na gestão do sistema. Ainda é grande a desigualdade regional na oferta de serviços, especialmente de média e alta complexidade. Parâmetros como oferta de médicos por mil habitantes, disponibilidade de serviços em oncologia, terapia renal substitutiva, entre outros, demonstram resultados muito diferentes, em desfavor das regiões Norte e Nordeste. Os gestores esforçam-se no sentido de construir as redes de atenção à saúde, pois não é possível garantir o acesso integral sem consolidá-las. As questões da saúde no Brasil não se resolvem exclusivamente na base da municipalização da oferta dos serviços. A maioria dos municípios é pequena demais para comportar unidades de saúde que prestem atendimento em média e alta complexidade. Por isso, faz-se necessário conjugar critérios

Tabela 2 – Gasto público em saúde de alguns países em 2011

Fontes: OECD Health Data 2013; World Bank: GDP per capita , PPP (current international $) para o PIB per capita do Reino Unido e do Brasil. *Ministério da Saúde: Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (Siops), para o gasto público em saúde; e IBGE para o PIB e a população. 25

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental Vol. 13 no 2 Jul/Dez 2014

Para aperfeiçoar o Sistema Único de Saúde: algumas propostas

26

que favoreçam a eficiência, observando as escalas para otimização do uso dos recursos, ao tempo em que não se estabeleçam barreiras de acesso, situações em que os cidadãos necessitem percorrer grandes distâncias para chegar aos serviços de saúde. Para tanto é preciso investir e para investir é necessário dispor de recursos. Os que estão disponíveis hoje apenas possibilitam o custeio dos serviços existentes, mantendo a situação atual. Para citar um exemplo, a Lei Complementar nº 141, de 2012, determina que o Ministério da Saúde defina e publique, todos os anos, os montantes a serem transferidos a cada estado, ao Distrito Federal e a cada município para custeio das ações e serviços públicos de saúde. Os repasses devem observar as necessidades da população, as dimensões epidemiológica, demográfica, socioeconômica, espacial e de capacidade de oferta e, ainda, o disposto no art. 35 da Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, que adiciona critérios como o desempenho técnico, econômico e financeiro no período anterior, os níveis de participação do setor saúde nos orçamentos estaduais e municipais e a previsão do plano quinquenal de investimentos da rede. Sem recursos adicionais, é quase impossível estabelecer critérios que superem as dificuldades ora encontradas, pois não existe margem para realocação de recursos. Dificilmente estados e municípios aceitarão receber valor menor do que o já repassado, seja na modalidade fundo a fundo ou pela produção de serviços. Como a organização das redes de atenção à saúde está em processo de construção, enfrentando as limitações financeiras apontadas, o SUS permanece tendo problemas com a superlotação de emergências, o longo tempo de espera para a realização de consultas e exames, além de dificuldades para garantir o acesso aos tratamentos após o acesso aos serviços. Nessa temática, vale destacar o processo de judicialização da saúde. Obviamente o aumento do número de demandas judiciais por medicamentos é um indicador da consciência do direito à saúde por parte do cidadão, que busca o acesso ao tratamento por meio do Poder Judiciário. No entanto, também reflete possíveis problemas de gestão, na medida em que parte das demandas é por medicamentos que já estão incorporados ao SUS, bem como interesses de mercado, a exemplo de produtos recém-lançados no País, que não fazem parte das listas da rede pública.

Em relação aos problemas de gestão, além das dificuldades já sabidas de logística e para aquisição dos medicamentos, outra questão de fundo consiste na necessidade de consolidação das redes de atenção à saúde, abrangendo também a assistência farmacêutica no âmbito ambulatorial. De maneira geral, o cidadão tem acesso aos serviços especializados fora do seu município. O problema reside quando esse paciente retorna para casa com uma prescrição de medicamentos que não estarão disponíveis nas unidades básicas de saúde de sua origem, uma vez que o seu município não presta atendimento especializado. O medicamento tampouco poderá ser solicitado no serviço de saúde do município que o atendeu, porque este não receberá pelo medicamento dispensado. Pactuações são necessárias para viabilizar a garantia de acesso aos medicamentos. Esse tipo de situação pode contribuir para o aumento das demandas judiciais, assim como a falta de informação por parte do cidadão e do Judiciário a respeito das políticas para dispensação de medicamentos dentro de um mesmo município, já que nem todas as unidades de saúde dispensam todos os medicamentos da lista. Alguns itens são dispensados em unidades ditas de referência. Do ponto de vista da qualidade do gasto e da eficiência, faz-se necessário ampliar os esforços para implantar uma cultura de gestão de custos e sua apuração em todos os serviços e instâncias administrativas do SUS. É preciso estudar meios mais apropriados para a remuneração por serviços prestados e, atualmente, há limites para isso em virtude da falta de informação sistematizada sobre os custos de serviços, procedimentos ou redes de atenção à saúde. Sem a disponibilidade dessa informação, não se pode avançar para a remuneração diferenciada por serviços prestados em base regional, considerando o impacto de custos de mão de obra e oferta de produtos, sabidamente diferenciados no País. Também é preciso ampliar os mecanismos que possibilitem a aquisição de medicamentos e produtos para a saúde de forma descentralizada e eficiente, utilizando de maneira efetiva o poder de compra do Estado. A aquisição de medicamentos e produtos para a saúde pelos municípios de pequeno porte, ainda que para os quais existam muitos fornecedores, pode ser uma fonte de ineficiência. Outra temática relevante é a da qualificação e valorização dos recursos humanos. É preciso qualificar os gestores e

As responsabilidades pelo provimento de medicamentos são compartilhadas entre as três esferas de governo, mas a população e a maioria dos profissionais de saúde não sabem disso. técnicos do SUS. Os serviços de saúde são produzidos essencialmente por pessoas e o retrato atual, segundo alguns autores,4-7 é de precarização da força de trabalho, o que prejudica o desempenho do sistema de saúde. Feito este panorama inicial de alguns desafios do SUS, que em nenhuma hipótese teve a pretensão de esgotar o tema ou de desconsiderar os avanços obtidos desde a sua criação, apresentam-se na próxima seção algumas propostas para enfrentamento dos problemas apontados. Propostas As políticas que visem ao aperfeiçoamento do Sistema Único de Saúde precisam ter caráter estruturante. Os resultados dificilmente serão alcançados em curto prazo. Estamos falando de um sistema de saúde universal, o qual ainda tem por princípio a igualdade, que para seu alcance necessita da aplicação do princípio da equidade, e pressupõe acesso integral às ações e serviços de saúde em todos os níveis de complexidade. Essa é a definição constitucional do SUS. A Constituição de 1988 trouxe expressivos ganhos para a implantação de efetivo sistema de proteção social no Brasil. No entanto, não parece que este marco seja considerado nos vários debates que se travam entre especialistas que discutem as finanças públicas e o gasto social em nosso País. Fala-se sempre do elevado impacto desse gasto nas finanças do Estado. Mas 27

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental Vol. 13 no 2 Jul/Dez 2014

Para aperfeiçoar o Sistema Único de Saúde: algumas propostas

restam duas questões: De que Estado estamos falando e para que ele existe? As bases do Estado brasileiro estão dadas pela Constituição, a qual expressa a opção por um modelo que protege os seus cidadãos e visa “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”, conforme seu preâmbulo. Não se está desconsiderando a capacidade de gasto do Estado, o que se pondera é que as políticas devem ser norteadas pela opção de Estado que fizemos. Também que é preciso, na medida do possível, proteger a nossa sociedade para que tenha, por exemplo, acesso a serviços

Tabela 3 – Estimativa de gasto público em saúde a partir da aplicação progressiva de percentuais sobre o Produto Interno Bruto (PIB)

Nota: A estimativa do Produto Interno Bruto foi calculada aplicando-se sobre o PIB de 2013 o percentual de variação nominal média de 8% ao ano. Tabela 4 – Estimativa de impacto do gasto em saúde da União sobre a RCL considerando a aplicação média atual pelos estados e municípios e evolução para que o gasto público total atinja 6% do PIB em 2018

Fontes: Ministério da Saúde: Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (Siops) e Diário Oficial da União: Relatório Resumido de Execução Orçamentária - Demonstrativo de Receita Corrente Líquida (RCL). Notas: As receitas dos municípios e estados foram estimadas pela aplicação de variação nominal anual média de 8,5% e 11%, respectivamente, sobre as receitas da base da saúde do exercício de 2013 declaradas pelos entes no Siops. O gasto da União foi estimado subtraindo-se da despesa pública total os valores estadual e municipal. Calculou-se a participação deste gasto sobre a RCL da União, que foi estimada pela aplicação de variação nominal anual média de 10%, observada entre 2010 e 2013. 28

de saúde de boa qualidade, financiados pelos recursos oriundos dela mesma. Assim sendo, seguem algumas propostas que visam contribuir com o aperfeiçoamento do SUS. Ampliação do gasto com ações e serviços públicos em saúde para pelo menos 6% do PIB até 2018 Com a ampliação do gasto será possível melhorar o acesso aos serviços de saúde, reduzindo desigualdades na capacidade instalada, investir para a qualificação e valorização da força de trabalho, bem como implantar ferramentas de gestão que apoiem a tomada de decisão, contribuindo para o uso eficiente dos recursos. Na Tabela 3, apresenta-se estimativa para o gasto público em saúde para o período de 2015 a 2018, tendo por meta alcançar os 6% do PIB neste último ano. Em relação a 2013, o aumento do gasto do SUS seria de 120% até 2018. Para tanto, propõe-se alteração da regra de aplicação mínima de recursos pela União. Caso se mantivesse a aplicação atual pelos municípios e os estados, para chegar a tal objetivo, seria necessário que a União aplicasse 24% da sua receita corrente líquida (RCL), conforme Tabela 4. Os municípios já aplicam percentual elevado (21,1% em média) em relação ao mínimo (15%) e o esforço dos estados tem sido de cumprir o mínimo. Assim, propõe-se que os percentuais mínimos de aplicação sejam alterados

Criar-se-ia um sistema nacional de assistência farmacêutica, disponibilizando-se informação na internet, por exemplo, das responsabilidades para oferta dos medicamentos, de forma que o cidadão saberia quais produtos estão disponíveis, quais são os requisitos para acessá-los, onde encontrá-los e de quem é a responsabilidade pela oferta.

Tabela 5 – Estimativa de impacto do gasto em saúde da União sobre a RCL considerando a aplicação atual pelos municípios, o aumento da alíquota para os estados e a evolução para que o gasto público total atinja 6% do PIB em 2018

Fontes: Ministério da Saúde: Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (Siops) e Diário Oficial da União: Relatório Resumido de Execução Orçamentária - Demonstrativo de Receita Corrente Líquida (RCL). Notas: As receitas dos municípios e estados foram estimadas pela aplicação de variação nominal anual média de 8,5% e 11%, respectivamente, sobre as receitas da base da saúde do exercício de 2013 declaradas pelos entes no Siops. O gasto da União foi estimado subtraindo-se da despesa pública total os gastos estadual e municipal. Calculou-se a participação deste gasto sobre a RCL da União, que foi estimada pela aplicação de variação nominal anual média de 10%, observada entre 2010 e 2013. 29

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental Vol. 13 no 2 Jul/Dez 2014

Para aperfeiçoar o Sistema Único de Saúde: algumas propostas

para: a) 21% para os municípios, mantendo o que em média já estão aplicando e também para evitar que caso ampliasse a aplicação pela União e pelos estados eles reduzissem a alocação para o valor mínimo; b) 17% para os estados, de forma escalonada, iniciando em um mínimo de 14% dos recursos próprios em 2015; e c) 22% da RCL para a União, também de forma escalonada, iniciando em 15% em 2015 (Tabela 5). O escalonamento é importante para possibilitar que os gestores se preparem para aplicação eficiente dos recursos adicionais que estarão disponíveis, planejando os investimentos que serão feitos e terão impacto, aumentando a necessidade de recursos para custeio dos serviços de saúde.

Consolidação das redes de atenção à saúde A regionalização na organização dos serviços é um tema caro ao SUS. Como já foi abordado neste texto, não é possível garantir a integralidade da atenção à saúde numa estrita lógica de municipalização. Assim, a conformação e os investimentos para aumentar a capacidade instalada e a autonomia dessas redes é fundamental. É preciso analisar a relação ótima entre escala na prestação de serviços e acessibilidade, a fim de que os recursos sejam alocados da forma mais eficiente possível ao mesmo tempo em que as distâncias não constituam barreiras importantes para o acesso. Por isso, investir em serviços para transporte adequado dos pacientes também é uma necessidade. Ampliação do acesso a medicamentos e implantação de sistema nacional de assistência farmacêutica As responsabilidades pelo provimento de medicamentos são compartilhadas entre as três esferas de governo, mas a população e a maioria dos profissioanis de saúde não sabem disso. Que dirá os juízes que julgam pedidos de garantia do acesso aos medicamentos via Judiciário. Novas pactuações entre os gestores do SUS para garantir o acesso a medicamentos precisariam ser feitas, considerando as redes de atenção à saúde, a fim de que assegurassem a integralidade do cuidado. Seria possível, por exemplo, lançar mão de mecanismo de entrega de medicamentos, utilizando empresa especializada em logística. Assim, imaginemos que um 30

cidadão sai de seu município para ser atendido por um especialista em um município vizinho. Depois da consulta e dos exames, este paciente receberia os medicamentos de que necessita, para uso por um mês, da unidade de saúde que o atendeu. Depois, para dar continuidade ao tratamento, o medicamento poderia ser enviado para o endereço da unidade de saúde do município de origem, onde o paciente teria acompanhamento periódico pelos profissionais de saúde da atenção básica, e os medicamentos lhes seriam entregues pela equipe da farmácia desta unidade. Obviamente, seria necessário implantar mecanismo que possibilitasse ao município vizinho, de referência, receber recursos para financiar a compra do produto e a logística para sua entrega. Criar-se-ia um sistema nacional de assistência farmacêutica, disponibilizando informação na internet, por exemplo, sobre as responsabilidades para oferta dos medicamentos, de forma que o cidadão soubesse quais produtos estão disponíveis, os requisitos para acessá-los (alguns estão descritos em protocolos que estabelecem critérios de acesso), onde encontrá-los e de quem é a responsabilidade pela oferta, se do Ministério da Saúde, da Secretaria Estadual ou da Secretaria Municipal de Saúde. Com o acesso público, inclusive os juízes teriam como consultar e compreender melhor os mecanismos de garantia de acesso aos medicamentos, cujas decisões de incorporação devem obedecer a políticas que consideram a sua eficácia, efetividade e custo-efetividade. Talvez isso ajude para que eles entendam que não é possível oferecer no SUS todos os produtos farmacêuticos do mercado e que tampouco isso é racional dos pontos de vista terapêutico e econômico, assim como sob o ponto de vista da gestão. Ampliação da disponibilidade da internet em todas as unidades de saúde a fim de garantir que todos os profissionais tenham acesso A internet revolucionou o acesso à informação no mundo e é preciso que este canal de comunicação chegue a todos os profissionais do SUS. A comunicação poderia ser feita de forma mais rápida e eficiente, em todo o sistema, e o conhecimento, compartilhado sobre tantos temas, entre eles: o controle de doenças, o risco de ocorrência de epidemia e novos protocolos de atendimento.

Muitas ferramentas para o planejamento das atividades e de gestão poderiam ser disponibilizadas, além da oferta de cursos de capacitação e de formação que poderiam ser oferecidos na modalidade a distância, utilizando os espaços da própria unidade de saúde. Universalização da apuração e da gestão de custos no SUS O Ministério da Saúde já desenvolve iniciativa que visa à implantação da gestão de custos no SUS, mas, com certeza, tornar esta uma bandeira do governo garantiria esforços e recursos necessários para que o processo de implantação ocorra em alta velocidade. A informatização das unidades de saúde, proposta anteriormente, é ação necessária nesse processo. A informação de custo constitui indicador relevante para a tomada de decisão sobre mudanças no processo de trabalho, visando à otimização do uso dos recursos; a definição de mecanismos de pagamento a prestadores de serviços; a realização de avaliações econômicas de tecnologias em saúde e de análise de impactos orçamentários para o caso de incorporação delas ao sistema, além de subsidiar discussões mais concretas sobre o financiamento do SUS. Estabelecimento de prêmio aos gestores e profissionais de saúde pelo alcance de metas de redução da incidência e/ou prevalência de doenças e agravos A instituição de um prêmio anual, pago pelo Governo Federal aos trabalhadores das redes de atenção à saúde do SUS que cumprirem metas de redução da incidência e/ou prevalência de doenças e agravos, pode ser um estímulo para melhoria da efetividade do sistema. As regras precisariam ser definidas com muita transparência e as informações prestadas por meio dos sistemas nacionais de informação deveriam ser rigorosamente acompanhadas para evitar o efeito adverso de eventual subnotificação de casos. Formalização dos vínculos e profissionalização da gestão do SUS A formalização dos vínculos na saúde é fundamental para uma efetiva gestão do conhecimento. A alta rotatividade de profissionais constitui importante limitação 31

123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 àRevista implementação das políticas e, evidentemente, contribui de Políticas Públicas e 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 para a perda de eficiência no sistema. 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 Gestão Governamental 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 Vol.Também 13 no 2é preciso profissionalizar a gestão do SUS. A 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 gestão pública, em especial na área da saúde, é bastante 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 Jul/Dez 2014 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 complexa. Para melhorar o desempenho do sistema, é 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 fundamental que os dirigentes estejam preparados para 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 enfrentar os desafios que se apresentam e sejam capazes 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 de entender o contexto em que trabalham. Para aperfeiçoar o 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 Assim, propõe-se que se estabeleçam medidas para 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 Sistema Único de Saúde: algumas propostas 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 garantir a formalização dos vínculos e para que sejam 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901

oferecidos cursos de formação para gestores e dirigentes do SUS, em larga escala, possibilitando que os trabalhadores das localidades mais distantes dos grandes centros urbanos também tenham acesso a eles. Enfim, essas são apenas algumas ideias e o objetivo desta iniciativa é contribuir com o debate sobre o que fazer para melhorar a saúde pública em nosso País. Que a gestão que se inicia em 2015 assuma fortes compromissos para o aperfeiçoamento do SUS!

Notas 1

IPEA. SIPS. Sistema de Indicadores de Percepção Social. Saúde. Brasília: 9 de fevereiro de 2011.

MOIMAZ, Suzely Adas Saliba et al . Satisfação e percepção do usuário do SUS sobre o serviço público de saúde. Physis, Rio de Janeiro, v. 20, n. 4, Dec. 2010.

2

3

OMS. Relatório Mundial de Saúde 2010. Financiamento dos sistemas de saúde. O caminho para a cobertura universal.

FARIA, Helaynne Ximenes; DALBELLO-ARAÚJO, Maristela. Precarização do trabalho e processo produtivo do cuidado. Mediações, Londrina, v. 16, n. 1, p. 142-156, 2011.

4

NASCIMENTO, Cynthia Maria Barboza. Precarização do trabalho do agente comunitário de saúde: um estudo em municípios da região metropolitana do Recife. Trabalho de Conclusão do Curso de Pós-Graduação latu sensu em Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, 2005.

5

6 SILVA, Elizabete Vieira Matheus da; SILVA, Silvio Fernandes da. O desafio da gestão municipal em relação à contratação da força de trabalho em saúde. Divulgação em Saúde para Debate, Rio de Janeiro, n. 40, p. 7-13, jun. 2007.

TAVEIRA, Zaira Zambelli. Precarização dos vínculos de trabalho na Estratégia Saúde da Família: revisão de literatura. Monografia do Curso de Especialização em Atenção Básica em Saúde da Família da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, 2010. 7

Fabiola Sulpino Vieira: Servidora pública concursada da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) do Governo Federal; doutora em Saúde Coletiva; mestre profissional em Economia da Saúde; e diretora do Departamento de Economia da Saúde, Investimentos e Desenvolvimento do Ministério da Saúde. E-mail: [email protected]

32

Especial Eleições Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental

Educação no Brasil: políticas educacionais e professores Por Ana Beatriz Cabral

33

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental Vol. 13 no 2 Jul/Dez 2014

Educação no Brasil: políticas educacionais e professores

34

Introdução Desde a famosa “Escolinha do Professor Raimundo”, cujo bordão é um dos motes deste texto, às esquetes dos humoristas mais novos, a escola e a educação brasileira oferecem vasto repertório para o riso. Recentemente, chamou atenção – entre dezenas dos que aparecem diariamente nas redes sociais – um vídeo em que uma senhora com pose professoral, frente a um quadro verde com a palavra panela escrita e separada em sílabas e o desenho que a representa, diz repetidamente que vai ‘açuletrar’ o vocábulo. Em voz alta, ela segue juntando as letras, mas finaliza a leitura pronunciando a palavra “caçarola”. Passado o humor inicial, o vídeo (que não se sabe se é verídico ou não, e, se for, temos um exemplo inequívoco do mais puro humor negro na educação brasileira) serve para provocar algumas reflexões. Uma delas diz respeito ao desempenho do Brasil em leitura, medido tanto pelas avaliações sistêmicas que o País tem implementado desde os anos 1990 – como o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb); a Prova Brasil; e o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), embora se configure como uma avaliação de ingresso ao ensino superior – quanto pelo Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa)1, avaliação internacional que mede o desempenho dos jovens de 15 anos em matemática, ciências e leitura. Na primeira vez em que o Pisa foi aplicado, em 2000, o Brasil amargou a penúltima posição no ranking, subindo algumas colocações recentemente (2013), mas ainda posicionado entre os países cujos indicadores de desempenho são muito baixos. Desse modo, a partir do mote da piada, dentre as inúmeras análises que poderiam ser feitas sobre o tema educação brasileira, vamos nos debruçar apenas sobre um dos ângulos menos visíveis do chiste: a relação entre as políticas públicas educacionais e os professores. Para contextualizar, optamos por iniciar com um marco histórico mais recente, a Constituição de 1988, que democratizou o País e também distribuiu a responsabilidade pelos vários graus de ensino entre os entes federativos, cabendo aos estados e municípios a educação básica – incluindo aí educação infantil, ensino fundamental e ensino médio –, como também incumbiu a União da responsabilidade sobre o ensino superior, ainda que não sejam atribuições exclusivas.

Com o intervalo de quase uma década após a Constituição, outro marco legal que deve ser mencionado é a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996. Ressalta-se que ambas estão relacionadas, embora a LDB já tivesse sendo discutida antes da promulgação da Constituição de 1988. Aquela reafirma as atribuições de cada ente federativo, as modalidades de ensino e direciona ideologicamente2 os fins e objetivos da educação nacional para a construção de um cidadão crítico e preparado para o trabalho, bem como institui o sistema nacional de avaliação da educação básica, entre outros. Atualmente, a LDB sofreu acréscimos importantes como o artigo que trata da obrigatoriedade da oferta de educação básica para brasileiros de 4 a 17 anos de idade, oriundo da PEC 59 de 2011. É ingênuo, entretanto, acreditar apenas na força dos textos legais, ainda que representem propostas de avanços significativos para a educação nacional, como único elemento para que a educação possa efetivamente passar por profundas modificações, uma vez que todo um conjunto estrutural, social e político concorre para amparar essa legislação ou mesmo para enfraquecê-la. A educação brasileira sempre esteve, indubitavelmente, à mercê dessas conjunturas e, não obstante, deu alguns saltos consideráveis, principalmente, no que tange ao acesso, uma vez que, em números de hoje, mais de 98% da população em idade escolar encontra-se efetivamente matriculada na educação básica. Números positivos como esses, no entanto, não escondem outros como taxas de analfabetismo, repetência e evasão escolar, além dos vexatórios penúltimos lugares em avaliações internacionais, bem como os indicadores de desempenho nacionais que têm oscilado ora positiva ora negativamente entre os vários anos de aplicação, desde 1999. Não é objetivo deste texto expor ou analisar em detalhes os dados3 que comprovam essas indicações apresentadas. No entanto, é preciso mencionar que fontes governamentais costumam dar explicações pouco convincentes quando esses indicadores são muito negativos. Uma delas, para explicar as séries históricas de quedas no desempenho educacional medido pelo Saeb, identificou a entrada massiva de estudantes de baixa renda nos sistemas de ensino como um dos fatores que “puxaram” a qualidade do ensino para baixo. Recorrentemente, porém, costuma-se culpar o

As reformas educacionais têm se caracterizado por repasses de poderes administrativos e financeiros para as escolas, na tentativa de promover o chamando empowerment da comunidade escolar, por meio da construção de estruturas de gestão colegiadas e participativas. desempenho do professor em sala de aula como espelho do desempenho de seus alunos nas avaliações sistêmicas, atribuindo a ele responsabilidade por vários fatores que influenciam seu trabalho, desde a formação deficiente à baixa remuneração. Buscando compreender como a política pública se materializa em sala de aula e vai se refletir em indicadores educacionais, positivos ou não, vejamos dois itens da equação. O primeiro refere-se às reformas educacionais ocorridas na América Latina nos anos 1990, pós Constituição de 1988, das quais o Brasil fez parte, embora o termo reforma não tenha sido apropriado pelos formuladores de políticas educacionais da época. O segundo item, se não o mais relevante, é o professor e como sua identidade se (des)faz na sociedade contemporânea e frente às políticas muitas vezes divergentes que precisam executar. O contexto das reformas As influências externas advindas das reformas ocorridas mundialmente na década de 90, sobremaneira, influenciaram a educação brasileira na forma da adoção, pelo órgão formulador de políticas educacionais, o 35

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental Vol. 13 no 2 Jul/Dez 2014

Educação no Brasil: políticas educacionais e professores

36

Ministério da Educação, de avaliações sistêmicas (SAEB e ENEM) e adoção dos Parâmetros Curriculares da Educação Nacional, que privilegiaram a chamada pedagogia das competências, focando a aprendizagem em termos de níveis de desempenhos. É necessário ressaltar, no entanto, que reformas do ensino não são recentes no mundo. Movimentos em direção a reformas nos sistemas de ensino de países como Inglaterra e França tiveram seu início muitos anos antes da Segunda Guerra Mundial, porém as condições que advieram no período pós-guerra auxiliaram na consecução mais rápida dos objetivos propostos. Como característica desses movimentos situados no período do pós-guerra, destacam-se o envolvimento e o comprometimento de atores ligados ao campo educacional, governo e sindicatos, bem como da sociedade como um todo, uma vez que a ideia de reconstrução nacional favorecia o entendimento de partes distintas. Em diferente contexto social e político, as reformas educacionais das últimas duas décadas, tanto em países desenvolvidos quanto em desenvolvimento, têm se caracterizado por repasses de poderes administrativos e financeiros para as escolas, na tentativa de promover o chamando empowerment da comunidade escolar, por meio da construção de estruturas de gestão colegiadas e participativas. (CARNOY, 2002, p.55) Segundo Borges (2004), esse tipo de reforma deve sua rápida aceitação ao refletir a insatisfação generalizada com modelos burocráticos de gestão, em especial relativos às políticas sociais, associados ao Estado do Bem-Estar Social europeu e ao modelo desenvolvimentista do Terceiro Mundo. No entanto, o contexto socioeconômico dessas reformas insere-se em um processo de falência do modelo estatal, no qual a crise do capital por que passam os países ocidentais exige que o Estado se desonere de atribuições antes de sua responsabilidade, repassando-as para a sociedade civil. Nesse sentido, as reformas educacionais, na maioria dos países, em especial na América Latina, inserem-se em um processo mais amplo de reforma do Estado, na direção do chamado Estado mínimo. Busca-se o fortalecimento dessa instituição com vistas a dar-lhe condições de atuar em uma correlação internacional de forças regidas pelo mercado e pela busca de capital, o que o obriga a tornar-se empreendedor de si mesmo. Para

tanto, restringe-se a desempenhar atribuições consideradas apenas essenciais a seu funcionamento, deslocando para outros atores, como a sociedade civil, funções sociais, entre elas, a educação e a assistência. Essas reformas orientadas por organismos multilaterais de fomento – como o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud); a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco); o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef); e o Banco Mundial, entre outros – inserem-se no que Carnoy (2002) denominou de reformas fundadas na competitividade. Nesse modelo, o estabelecimento de padrões educativos mais elevados, definidos de maneira restritiva como o nível da aprendizagem que, supostamente, os alunos deverão alcançar se tiveram acesso a determinado ensino, resultam de maior centralização da educação e consequente maior controle do Estado. Desse modo, de acordo com Peroni (2003, p. 19), a proposta de política educacional das reformas reflete sobremaneira a dicotomia Estado mínimo/Estado máximo, sendo que o mínimo refere-se ao financiamento do setor, que se vê obrigado a buscar recursos além dos que são oferecidos pelo Estado; e o máximo diz respeito ao controle centralizador exercido por esse ator no tocante à definição curricular e à exigência de padrões de qualidade e desempenho. Essas características, em especial as relativas ao modo de institucionalização, revestem as reformas educacionais da América Latina. Segundo Martinic (2001, p. 17)4, “(...) En la mayor parte de los casos estudiados las reformas nacen de leyes nacionales y son impulsadas ‘desde arriba’ por el Estado”. Reformas e políticas educacionais como essas, de cima para baixo, vão resvalar na sala de aula e, portanto, passam necessariamente pelo professor. Sendo assim, é relevante considerar a importância desse ator no processo e como sua atuação tem sido considerada. O professor contemporâneo Professores pertencem a uma classe de trabalhadores cujo processo de profissionalização não tem se apresentado em uma única direção, nem de maneira linear. Conforme Nóvoa, (1995), desde o século XIX, a trajetória dos docentes, ao longo do tempo, vem alternando períodos de profissionalização e

desprofissionalização, delimitados por diferentes interesses e atores diversos. Essa alternância reflete a dificuldade de definir o que se configura ensino. Segundo Roldão (2007), a tensão característica desse conceito encontrava-se, anteriormente, entre o “professar um saber” e o “fazer outros se apropriarem de um saber”; em outras palavras, entre o ensino transmissivo versus o ativo. A discussão atual é bem mais complexa. Diz respeito a uma dupla transitividade e um lugar de mediação. Ensinar configurase como a especialidade de fazer aprender alguma coisa (currículo) a alguém, sem o qual essa transitividade não se realiza. Desse modo, para realizar seu trabalho, o professor depende do outro – o aluno –, cuja composição e características vêm se modificando ao longo do tempo, assim como o próprio professor. A mudança, há algum tempo em curso, diz respeito ao contexto social e econômico que hoje suporta a sociedade, denominada por vários estudiosos como uma sociedade do conhecimento, cujas características estão relacionadas a uma economia que se baseia na geração, no processamento e na transmissão de informações (CASTELLS apud GARCIA, 2002), segundo a qual as diferenças sociais estão concretizadas entre aqueles que conhecem e os que não conhecem. Desse modo, a necessidade de aprender ao longo de toda a vida tem se convertido em uma necessidade cotidiana. No entanto, no entendimento de Garcia (2002), tanto o currículo quanto a organização do trabalho em sala de aula, que atualmente são operacionalizados em nossas escolas, não se adéquam às necessidades dessa nova sociedade. Como consequência, o local do conhecimento e da aprendizagem não está mais somente na escola, nem para os alunos tampouco para os professores. A perda da função de detentora do saber da escola se reflete em seus atores de forma profunda e se traduz como parte de uma identidade perdida, bem mais que um poder que não mais se exerce. Independentemente da noção pedagógica que envolva a função de ensinar – transmissão, emissão, mediação do saber, entre outras –, tal situação acarreta para a profissão docente consequências imediatas fora e dentro de sala de aula. Um desses reflexos é denominado de mal-estar docente5. O fenômeno refere-se a um estado emocional caracterizado por uma sensação de desânimo e 37

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental Vol. 13 no 2 Jul/Dez 2014

Educação no Brasil: políticas educacionais e professores

38

alheamento, advindo de estresse físico e mental; e resulta, na maioria das vezes, em afastamento do docente da sala de aula por longos períodos, cujo agravamento gera o paulatino abandono da profissão. Manifesto de várias formas, esse abandono tem como causa, segundo Lapo e Bueno6 (2003, p. 74) “um conjunto de experiências e expectativas não satisfeitas que, ao longo dos anos, vão se amalgamando até chegarem ao desfecho, nem sempre desejado, do abandono (...) da profissão docente”. Algo tão grave que a Organização Internacional do Trabalho (OIT) considera a profissão docente como uma das que mais apresentam risco para a saúde mental do trabalhador (JESUS, 2002). Contribui para o agravamento desse quadro o fato de os poderes públicos atribuírem quase que exclusivamente aos professores a incumbência de concretizar as políticas educacionais em sala de aula, sem oferecer, na maioria das vezes, o suporte necessário, seja na forma de recursos para os sistemas de ensino, seja na preparação do docente para tal. Um dos resultados desse processo está na responsabilização do professor pelo fracasso dessas políticas. Em outro âmbito, também pode ser percebido como consequência da mudança de posição do professor, no processo de produção do conhecimento, o que autores como Contreras (2002) têm chamado de proletarização dos professores. Tal fenômeno está diretamente relacionado a processos burocráticos desenvolvidos pelo Estado que resultam em formas de controle mais diretas e contundentes sobre os trabalhadores, que perdem autonomia e veem suas funções desvalorizadas. No caso dos professores, esse processo é amplificado no desenho das políticas públicas de educação, que intensificam o trabalho deles em modos regulamentados e repletos de tarefas, muitas vezes rotineiras, que levam os docentes a um desempenho mais isolado e a um processo de desqualificação intelectual. Em outras palavras, a perda da autonomia reduz a função docente à de aplicadores de programas e pacotes curriculares (APPLE apud CONTRERAS, 2002, p.36). Em um contexto mais amplo, a perda da autonomia dos professores, segundo Contreras (1999), repousaria sob as mudanças sociais e econômicas pelas quais atualmente passa a sociedade; centradas, principalmente, na redução do papel do Estado e na emergência de um novo tipo de cidadania, mais flexível e com maior poder de escolha e intervenção.

O que chama atenção, no entanto, é a contradição entre a autonomia que o atual contrato social que operacionaliza as políticas públicas, teoricamente, concede a essa nova cidadania emergente – com mecanismos de consulta pública, accountability ou prestação de contas, sistemas informatizados de compras públicas, incentivo à criação de instâncias consultivas com poder de intervenção, como os conselhos tutelares, no caso brasileiro, entre outros – e os mecanismos de controle desenvolvidos pelo Estado para a implementação dessas políticas, como a existência, no País, de uma legislação bastante burocratizada, que visa o controle dos processos, a exemplo da que rege os contratos licitatórios. Tal paradoxo estaria no fato de que o Estado não cede poder, pura e simplesmente; os controles é que mudam de forma e de lugar. As novas distinções que se produzem em relação à escolaridade, por exemplo, não se referem apenas à possibilidade de estudar ou não. A questão é saber se haveria ou não um controle estreito no acesso à educação secundária e superior, seja por meio da restrição ou diminuição da oferta, seja pelo estabelecimento de padrões de desempenho inalcançáveis para toda a comunidade educacional. Nessa configuração, assumem especial importância os resultados escolares, as qualificações, as avaliações sistêmicas e de larga escala que cumpririam uma função seletiva, em que se operam, no interior da escola, a produção e o controle das oportunidades educativas que talvez não sejam as mesmas para todos. Desse modo, seria necessário perscrutar que tipo de controle estaria sendo exercido e por quem, quando o Estado desenvolve políticas educacionais que visam a conceder maior autonomia às escolas e aos professores para que definam seus currículos, decidam as prioridades para aplicação dos recursos que lhes são destinados ou mesmo sejam incentivados a formar parcerias para buscar outras fontes de financiamento. Para o professor, no entanto, a percepção deste jogo nem sempre é nítida, uma vez que ocorrem processos simultâneos de desqualificação e requalificação. Tais políticas ensejam uma racionalização tecnológica do ensino, o que demanda o desenvolvimento de novas habilidades. É o caso da aprendizagem de novas técnicas de avaliação, exemplificadas nas avaliações sistêmicas implementadas pela reforma do ensino brasileiro, em que a avaliação por competências passou a exigir dos professores novos referenciais e novos modos de ensino.

Há boas práticas e escolas exemplares em todo o território nacional. A busca qualificada desses profissionais e a disseminação de práticas exitosas poderão exercer outro tipo de política, que possa ser “de baixo para cima”, trazendo para o professor um protagonismo no qual ele consiga se reconhecer e reforçar sua identidade transformadora em uma sociedade em transformação. Políticas públicas e professores – uma equação possível Para fazermos uma breve síntese das duas seções anteriores deste texto, diríamos que, apesar de termos um Estado democrático e com vários mecanismos de participação da sociedade civil organizada, ainda definimos as políticas educacionais de cima para baixo. O Estado é quem detém mecanismos de controle sobre os demais envolvidos, principalmente no que se refere ao gasto público em educação. Além disso, vemos os atores incumbidos de executar essas políticas alijados do processo de construção, sendo constantemente desvalorizados e confundidos e, porque não, controlados 39

12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 em suas identidades laborais e sociais. Revista de Políticas Públicas e 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 Não precisa ser muito bom em somar dois mais dois 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 Gestão Governamental 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 para ver que o resultado dessa equação não será 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 Vol. 13 no 2 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 favorável a ninguém, mas afetará de modo quase 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 Jul/Dez 2014 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 irreversível um terceiro lado de que não tratamos 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 diretamente aqui, mas para quem tudo se dirige: o aluno. 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 Torna-se igualmente desnecessário o registro de que 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 países cujos no indicadores de desempenho de ensino são Educação Brasil: políticas 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 invejáveis (Finlândia, Cingapura, 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 educacionais e professores Coreias e China, por 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 exemplo, a despeito de seus regimes políticos) têm no 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 professor o elemento central de suas políticas 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 educacionais. 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121 Embora a conclusão possa parecer bastante simplista

e óbvia e diga respeito à valorização do professor, trata-se, no entanto, de proporcionar alterações profundas nos sistemas educacionais, que comecem, por exemplo, com cursos de formação mais eficientes, instrumentalizando o professor não só com a base científica necessária, mas com tecnologias educacionais de ponta que o possibilitem ficar frente a frente com um aluno que já nasceu nesse universo digital. Igualmente, passa por esse processo o

aumento do piso salarial desse profissional que, em muitas unidades da Federação, não é sequer atingido no patamar em que está; bem como a ampliação do gasto público com a rubrica educação. De fato, não há grandes novidades nessas medidas. Faltam, portanto, planejamento e gestão para executá-las. No entanto, nada fará diferença se o professor continuar a ser um mero executor de políticas desenhadas em gabinetes. Há boas práticas e escolas exemplares em todo o território nacional. A busca qualificada desses profissionais e a disseminação de práticas exitosas poderão exercer outro tipo de política, que possa ser “de baixo para cima”, trazendo para o professor um protagonismo no qual ele consiga se reconhecer e reforçar sua identidade transformadora em uma sociedade em transformação. Talvez assim, em um futuro possível, o vídeo em que a professora não consegue ler a palavra escrita seja apenas o que deve ser – uma piada – e não o retrato da educação brasileira.

Referências BRASIL. Lei nº 9.394, de 23 de dezembro de 1996. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, 1996. BORGES, André. Lições de reformas da gestão educacional: Brasil, EUA e Grã-Bretanha. São Paulo: Perspectiva, 2004. CARNOY, Martin. Mundialização e reforma na educação. O que os planejadores devem saber. Brasília: UNESCO, 2002. CONTRERAS, José. ¿Autonomía por decreto? Paradojas en La redefinición Del professorado. Abril 1999. Disponível em http://epaa.asu.edu/eppa/v7n17 , acessado em 15 de junho de 2014. ________. A autonomia dos professores. Trad. Sandra Trabucco Valenzuela. São Paulo: Cortez, 2002. GARCIA, Carlos Eduardo. Aprender a Enseñar Para La Sociedad del Conocimiento. Agosto, 2002. Disponível em http:// epaa.asu.edu/eppa/v10n35 , acessado em 15 de junho de 2014. JESUS, Saul Neves de. Perspectivas para o bem-estar docente. Uma lição de síntese. Portugal: ASA, de 2002. LAPO e BUENO. Professores, desencanto com a profissão e abandono do magistério. CEDES, março/2003, disponível em www.scielo.br/pdf/cp/n118/16830.pdf , acessado em 09 de junho de 2014. MARTINIC, S. Reformas educativas: mitos y realidades. Revista Ibero-Americana de Educacíon nº 27. SeptiembreDiciembre 2001. p. 17-33. NÓVOA, Antonio (org.) Profissão Professor. 2. ed. Porto: Porto Editora, 1995. PERONI, Vera. Política educacional e papel do Estado no Brasil dos anos 1990. São Paulo: Xamã. 2003. 40

ROLDÃO, Maria do Céu. Função docente: natureza e construção do conhecimento profissional. Rio de Janeiro: ANPED. Revista Brasileira de Educação. V. 12 nº 34, jan/abri. 2007. SAEB 2001. Novas Perspectivas. Brasília: INEP, 2001.

Notas

O Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) é desenvolvido e implementado pela Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OCDE).

1

Ressalte-se que não se configura um teor crítico ao termo utilizado, já que não há época histórica que não seja ideologicamente marcada, ainda que pelos ideais democráticos.

2

Indicadores referentes à educação brasileira estão disponíveis no site do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP): www.inep.gov.br.

3

MARTINIC, Sergio. Conflitos políticos e interacciones comunicativas en las reformas educativas en América Latina. Revista Iberoamericana de Educación nº 27 (2001), pp. 17-33.

4

Em relação a possibilidades de prevenção desse estado, ver o texto de Saul Neves de Jesus , “Perspectivas para o bem-estar docente: uma lição de síntese”, de 2002.

5

A pesquisa das autoras – Professores, desencanto com a profissão e abandono do magistério (CEDES, março/2003) – destaca o abandono de professores do ensino médio do estado de São Paulo no período de 1990-1995.

6

Ana Beatriz Cabral é servidora pública concursada da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) do governo federal; doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos. Atuou no Ministério da Educação de 2000 a 2013, em diversos cargos, como: coordenadora geral do Banco Nacional de Itens da Diretoria de Avaliação da Educação Básica do Inep; assessora de Gestão da Secretaria de Ensino Médio e Tecnológico (Semtec); diretora substituta da Diretoria de Concepções e Orientações Curriculares da Secretaria de Educação Básica (SEB); e coordenadora da Assessoria Internacional do Gabinete do Ministro. E-mail: [email protected].

41

Especial Eleições Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental

Previdência Social: avaliação do regime atual e sugestões de mudança Por Paulo Kliass

43

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental Vol. 13 no 2 Jul/Dez 2014

Previdência Social: avaliação do regime atual e sugestões de mudança

44

Introdução A experiência vivida por boa parte das economias do mundo, ao longo das últimas décadas, apontava para o enquadramento frente a uma agenda de natureza bastante conservadora, quando se tratava dos ajustes preconizados pelos organismos multilaterais, a exemplo do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial (BM). A hegemonia ideológica exercida pelo paradigma neoliberal implicava a incorporação de um conjunto de medidas orientadas pela suposição de que haveria uma superioridade intrínseca do setor privado em relação ao setor público. A presença estatal na esfera econômica era considerada prejudicial para a otimização dos resultados pretendidos. Quando tais premissas eram aplicadas à formulação e à implementação de políticas públicas, a estratégia supunha mudanças significativas na forma como o Estado era organizado na maioria dos países. A hipótese de maior eficiência da solução derivada da livre ação das forças de oferta e demanda apontava para que fosse deixada, ao equilíbrio de mercado, boa parte daquilo que era até então responsabilidade delegada à administração pública. Tendo como meta a situação do Estado mínimo, os governos passaram a implementar os processos de privatização, desregulamentação, liberalização e abertura comercial. A privatização englobava uma série de possibilidades de tratamentos a serem conferidos às empresas estatais. A primeira delas era a que carregava maior simbolismo no processo todo: a venda do patrimônio público ao setor privado, com a transferência da propriedade da empresa. Havia ainda mais alternativas, como a abertura de capital em bolsa e a pulverização acionária, ou a concessão do objeto de atuação da empresa para a concorrência privada, a exemplo do setor de minérios. As medidas previam também a quebra de monopólio oferecido a empresas estatais em setores estratégicos e a abertura à entrada de empresas de capital privado, inclusive estrangeiras. A desregulamentação entrou em cena por meio da criação de agências reguladoras, com algum grau de autonomia político-administrativa frente à estrutura governamental “stricto sensu”. No caso brasileiro, por exemplo, o Sistema Telebrás foi substituído pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e pelas empresas privatizadas – as concessionárias do serviço

público de telecomunicações. O sistema de eletricidade passou por processo semelhante, com a venda de boa parte das empresas públicas ou mistas e a constituição da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), bem como de outros órgãos de natureza reguladora. Apesar dessa forte onda privatizante, alguns setores e poucas empresas conseguiram escapar de tal transformação radical, a exemplo da Petrobrás, do Banco do Brasil (BB) e da Caixa Econômica Federal (CEF). Os setores de saúde e educação mantiveram uma dubiedade de natureza patrimonial. O Sistema Único de Saúde (SUS) foi preservado, mas o crescimento do capital privado no setor conservou-se em ritmo acelerado. A rede educacional pública também foi mantida para todos os níveis (desde o fundamental até o superior), mas aqui demonstrou-se exponencial o crescimento da presença das empresas privadas. As pressões para privatização do sistema de previdência social em nosso País não lograram o êxito obtido em outros locais, a exemplo do processo privatizante ocorrido no Chile. Por aqui também foi adotado o modelo da convivência da alternativa pública e da possibilidade de acesso ao modelo privado. De forma semelhante à permanência de empresas, planos e seguros de capital privado na área da “saúde suplementar”, o setor previdenciário viu crescer bastante um ramo da chamada “previdência complementar”. Vale registrar que em todos esses casos o setor privado conta com um forte estímulo do próprio Estado para assegurar seus negócios. Esse apoio se manifesta desde a política desenvolvida pelas agências reguladoras em favor das empresas até a concessão de facilidades fiscais e tributárias para os usuários que optarem pela alternativa do serviço privado. A complementação da previdência social pode ocorrer por meio do acesso aos fundos de pensão ou pela contratação de fundo de previdência privada oferecido por instituições assemelhadas a seguradoras, sob fiscalização e regulação da Superintendência de Seguros Privados (Susep). O potencial de crescimento desses ramos da previdência se relaciona ao teto estabelecido para o Regime Geral da Previdência Social (RGPS). Até 2004, o limite máximo para pagamento de benefício era equivalente a 10 salários mínimos (sm). No entanto, com o passar do tempo essa diferença foi reduzida e atualmente se encontra no patamar de seis sm. Mais de 99% dos benefícios são inferiores a cinco sm. Isso significa, por

Há dois grupos claramente diferenciados e que deveriam ser tratados também de forma distinta: os participantes do subconjunto dos trabalhadores urbanos e os do subconjunto dos trabalhadores agrícolas. exemplo, que os participantes que contribuíram mensalmente pelo teto, ao longo de décadas, para receber um benefício equivalente a 10 sm viram frustradas suas expectativas no momento da aposentadoria. A mudança da legislação e a introdução do chamado “fator previdenciário” em 1999, por sua vez, contribuíram para a redução do valor médio dos benefícios. Assim, dos mais de 27 milhões de aposentadorias e pensões concedidos pelo sistema, 92% são constituídas de benefícios mensais com valor igual ou inferior a três salários mínimos. Esse quadro colabora para a busca de instituições voltadas à complementação. Além disso, esse universo tem um potencial expressivo de crescimento a partir da mudança nas regras da previdência dos funcionários públicos da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. De acordo com a legislação atual, os funcionários que entraram em exercício a partir de 2012 terão direito apenas ao valor do teto do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) a ser pago pela respectiva administração a título de aposentadoria, devendo buscar alhures os meios para a complementação do valor pretendido. Com esse intuito, por exemplo, é que foi constituída a Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal (Funpresp). Porém, em razão da profunda desigualdade que caracteriza nossa estrutura de distribuição de renda, a absoluta maioria dos beneficiários da previdência social 45

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental Vol. 13 no 2 Jul/Dez 2014

Previdência Social: avaliação do regime atual e sugestões de mudança

ainda depende do modelo do Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Praticamente 100% dos aposentados rurais recebem até um salário mínimo. Já para o subconjunto dos aposentados urbanos, quase metade recebe até esse valor e 72%, até dois salários mínimos. Em tese, trata-se de beneficiários que não contam com rendimento suficiente que justifique a busca de acesso à previdência complementar. A eclosão da crise financeira internacional em 2008 e os efeitos sobre a própria economia brasileira terminaram por arrefecer os ímpetos do sistema financeiro. As perdas verificadas em escala internacional e os movimentos de reacomodação dos gigantes do setor contribuíram para reduzir a voracidade com que sempre encararam o nosso modelo previdenciário. Afinal, os números do RGPS são bastante expressivos. O regime movimentou em 2013, por exemplo, o valor aproximado de R$ 360 bilhões na forma de pagamento de benefícios. Esse total equivale a 7,5% do PIB, montante que não pode ser desprezado por sua magnitude. Esse é um dos vetores da estratégia permanente de levar o regime oficial ao descrédito e de reforçar a hipótese de sua privatização. A situação do Regime Geral da Previdência Social A avaliação do quadro do RGPS, difundida pelos meios de comunicação, tem contribuído de forma sistemática para criar uma falsa situação, quase próxima à catástrofe. Os elementos oferecidos para tanto contam também com algum grau de desinformação oferecida pela própria administração pública federal. A natureza do nosso regime previdenciário é baseada no chamado modelo de repartição. Isso significa que o sistema prevê o pagamento de benefícios de forma intergeracional. Os participantes que ainda estão na ativa recolhem a contribuição mensal para cumprir as necessidades para o pagamento dos benefícios para os que já estão na inatividade. No entanto, para uma avaliação correta a respeito da sustentabilidade desse quadro em termos atuariais faz-se necessário um conjunto de hipóteses e procedimentos. O primeiro aspecto a ser levado em consideração refere-se à existência de dois grupos claramente diferenciados e que deveriam ser tratados também de forma distinta. É o caso dos participantes do subconjunto dos trabalhadores urbanos e os do subconjunto dos

46

trabalhadores agrícolas. Uma das maiores diferenças entre ambos é relativa à capacidade de arrecadação de receitas para fazer face ao pagamento de benefícios. Enquanto o subconjunto dos urbanos apresenta-se equilibrado e superavitário, o caso dos rurais merece uma atenção especial. A origem de tal diferenciação encontra-se na decisão da Assembleia Nacional Constituinte de promover a inclusão dos trabalhadores rurais no sistema previdenciário. Assim, desde 1988, a partir da promulgação da nova Carta, esse importante setor da nossa sociedade passa a contar com os mesmos direitos que os demais. No entanto, criou-se uma situação bastante peculiar, do ponto de vista do equilíbrio econômico-financeiro do regime. Isso porque um conjunto de participantes passou a receber benefícios sem nunca ter contribuído ao longo de sua vida laboral, inclusive pelo fato de o sistema não prever tal possibilidade. Esse descompasso entre capacidade de arrecadação e despesas com benefícios deveria ter sido compensado, do ponto de vista contábil, por aportes a serem efetuados pelo Tesouro Nacional ao RGPS. Afinal, eventual diferença nas contas previdenciárias é devida à decisão soberana de natureza constitucional. A Nação optou por esse tipo de medida inclusiva e a responsabilidade não pode ser creditada a um suposto desequilíbrio estrutural do regime administrado pelo INSS. Trata-se de uma decisão de reconhecimento de uma anomalia e de correção pela via da extensão dos direitos de cidadania. O custo pela implementação de tal medida é do conjunto da sociedade e deve ser expresso pela conta única do governo. Assim, o que se pode concluir a respeito da situação do RGPS é que o regime apresenta um quadro de superávit no que diz respeito aos trabalhadores urbanos. Essa deverá ser a tendência futura para os agrícolas, cujo subconjunto deverá atingir situação semelhante, a partir do momento em que as gerações de trabalhadores rurais concluírem a fase de contribuição na ativa e passarem a receber seus benefícios. De acordo com as informações oficiais do Ministério da Previdência Social, o segmento urbano apresentou um quadro de superávit de R$ 25 bilhões em 2013. Assim, em face da receita líquida de R$ 308 bilhões, as despesas com pagamento de benefícios atingiram o montante de R$ 283 bilhões no ano passado. Na verdade, essa condição de

receitas anuais líquidas superiores às despesas vem ocorrendo desde 2009, quando o superávit foi de R$ 2 bilhões. A partir daí, nos anos seguintes, esses mesmos valores foram crescentes: R$ 9 bilhões em 2010, R$ 21 bilhões em 2011 e R$ 26 bilhões em 2012. Já a realidade do segmento dos rurais é oposta, em razão da inexistência de fundos históricos relativos à população aposentada, que não havia contribuído. Em 2013, as despesas somaram R$ 82 bilhões e as receitas foram de R$ 6 bilhões, com um resultado negativo de R$ 76 bilhões. Para efeito de comparação com os urbanos, as necessidades de financiamento em 2009 eram de R$ 57 bilhões, com elevações subsequentes para R$ 63 bilhões, R$ 64 bilhões e R$ 71 bilhões entre 2010 e 2012. Outro aspecto que merece reflexão refere-se às isenções de contribuição, tal como previstas na legislação. Existe um conjunto expressivo de entidades e setores econômicos que não recolhem a contribuição previdenciária. É o caso das instituições filantrópicas, das empresas do Sistema Integrado de Imposto e Contribuições das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte (Simples), atividade exportadora rural e outros. O total das renúncias previdenciárias dessa natureza alcançou R$ 29 bilhões em 2013. Isso equivale a quase 60% do suposto déficit anunciado para o conjunto do RGPS, que chegou a R$ 50 bilhões no mesmo ano. Dessa forma, a polêmica que se trava em torno de um eventual “déficit” ou “superávit” do modelo previdenciário é um falso debate. A existência de “necessidades de financiamento” do RGPS apenas aponta para o fato de que há um buraco de receitas previdenciárias que deve ser coberto. No entanto, tais necessidades não estão associadas a nenhum desequilíbrio estrutural do regime administrado pelo INSS. Essa deformação tem sido amplificada ao longo dos anos mais recentes, desde que teve início a política de desoneração da contribuição patronal vinculada à folha de salários. A medida determina que as empresas deixem de recolher o equivalente a 20% dos salários dos trabalhadores para o RGPS, passando a ser tributadas por uma alíquota variável (entre 1% a 2%) incidente sobre o seu faturamento. Ocorre que esses novos valores são insuficientes para cobrir o montante que seria devido na sistemática anterior. Até o momento, o Tesouro Nacional tem sido chamado a providenciar o crédito da diferença a favor do INSS. No entanto, esse procedimento não 47

1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 assegura o ingresso de Públicas recursos nae frequência adequada e Revista de Políticas 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 nem nos valores equivalentes. 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 Gestão Governamental 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 Vol.Assim, 13 noo 2que se verifica é a permanência de riscos de 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 desequilíbrio do regime por razões estranhas aos aspectos 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 Jul/Dez 2014 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 puramente previdenciários. Tais distorções dificultam a 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 avaliação das reais condições de sustentabilidade do atual 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 modelo e de eventuais necessidades de correções para 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 adequação à nova realidade do mercado de trabalho Previdência Social: avaliação do regime atual e e às 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 mudanças de natureza demográfica que o Brasil tem 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 sugestões de mudança 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 apresentado ao longo das últimas décadas. 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123 1234567890123456789012345678901212345678901234567890123

Propostas

Tendo em vista o diagnóstico exposto, as propostas para evitar a continuidade dos riscos a que vem sendo exposto o RGPS poderiam assim ser resumidas: 1. Revogação da política de desoneração da folha de pagamentos para efeitos de arrecadação previdenciária e sua imediata substituição pela antiga contribuição patronal equivalente a 20% do salário do trabalhador. 2. Definição de um cronograma de restituição ao RGPS pelo Tesouro Nacional do diferencial acumulado entre os valores arrecadados pela contribuição sobre o

faturamento e o que teria sido arrecadado pelo sistema anterior a 2011. 3. Alteração do mecanismo de contabilização dos valores no interior do RGPS, passando o Tesouro Nacional a creditar regularmente o equivalente à arrecadação dos beneficiários do subconjunto dos rurais que não contribuíram para o sistema. 4. Alteração do mecanismo de contabilização dos valores no interior do RGPS, passando o Tesouro Nacional a creditar regularmente o equivalente aos valores relativos à arrecadação das entidades de filantropia, micro e pequenas empresas e demais atividades isentas da contribuição previdenciária. 5. Convocação de uma grande conferência nacional sobre previdência social, envolvendo entidades dos empresários, trabalhadores, aposentados e especialistas no tema. A intenção é promover um debate a respeito das perspectivas futuras do modelo e eventuais necessidades de ajuste em médio e longo prazos, em razão de mudanças verificadas na dinâmica demográfica e do próprio mercado de trabalho.

Paulo Kliass é servidor público concursado da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) do Governo Federal; doutor em Economia pela Universidade de Sorbonne, em Paris. Como EPPGG, já ocupou diversos cargos, dentre eles o de secretário de Previdência Complementar no Ministério da Previdência Social. E-mail: [email protected].

48

Especial Eleições Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental

Ciência, Tecnologia e Inovação como alavancas para o crescimento econômico: propostas para um Brasil Digital Por Rafael Henrique Rodrigues Moreira

49

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental Vol. 13 no 2 Jul/Dez 2014

Ciência, Tecnologia e Inovação como alavancas para o crescimento econômico: propostas para um Brasil Digital

50

Introdução Um dos principais desafios para o desenvolvimento do Brasil diz respeito à sua inserção internacional, mais precisamente à capacidade de gerar conhecimento científico, tecnologia e inovação. Esse conhecimento consiste no alicerce dos processos de transformações estruturais, aptos a assegurar o crescimento econômico ambientalmente sustentável conjugado com a inclusão social. Nesta perspectiva, o tripé constituído pela ciência, tecnologia e inovação (C,T&I) se soma à educação, contemplando todos os seus ciclos, do ensino básico à pós-graduação, para formar o elemento fundamental a ser obrigatoriamente mobilizado com a finalidade de solucionar os grandes problemas nacionais e, assim, impulsionar o desenvolvimento econômico e social do País, criando as condições efetivas para que problemas históricos da sociedade brasileira possam ser finalmente superados. Recentemente, avanços signiûcativos foram atingidos. Desde meados dos anos 2000, os recursos ûnanceiros destinados a C,T&I aumentaram expressivamente, reforçando institucionalmente o sistema, com consequente elevação da quantidade e da qualiûcação dos recursos humanos nas diversas áreas do conhecimento. A infraestrutura de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) sofreu relevante desconcentração regional, inserindo de forma deûnitiva a ciência brasileira no cenário internacional. Entretanto, observa-se que, embora instrumentos de promoção da pesquisa e da inovação tenham sido criados e aperfeiçoados, 20 anos de recessão e de hiperinûação levaram o setor privado a inovar pouco para o mercado e a adotar uma cultura passiva em relação à transferência de tecnologia, o que só começou a mudar há pouco tempo. De acordo com essa ótica, o governo brasileiro elaborou uma série de políticas para impulsionar os investimentos público e privado em C,T&I, com destaque para a constituição dos fundos setoriais como articulação e fonte de receitas para o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) em 2000-2001; a Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (Pitce) em 2003; o Plano de Ação em Ciência, Tecnologia e Inovação (Pacti) 2007-2010; e a

própria Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (ENCTI) 2012-2015, ainda em vigor. Novos instrumentos foram criados na tentativa de tornar mais célere e eficiente o ecossistema de C,T&I, bem como para ampliar o número de empresas inovadoras e o investimento privado em P&D. Incentivos fiscais (Lei de Informática, Lei da Inovação, Lei do Bem etc.), assim como um conjunto de normas legais e infralegais foram constituídas ao longo dos últimos anos com vistas a introduzir investimentos robustos no sistema nacional de C,T&I, ampliando a competitividade das empresas brasileiras por meio da inovação. Assim, a ciência e a tecnologia devem contribuir de modo decisivo para nos tornarmos uma economia expressiva, dinâmica e moderna no cenário global. Uma das áreas de maior impacto nos últimos anos em C,T&I diz respeito às tecnologias da informação e comunicação (TICs), que são definidas pelos dispositivos de acesso, software, hardware, servidores, componentes, microeletrônica, smartphones, TVs LCD/plasma, equipamentos médico-hospitalares, sensores, equipamentos de telecomunicações, aplicativos (apps), além do software embarcado e aplicações setoriais que perpassam setores como Petróleo&Gás e aeroespacial, por exemplo. Portanto, exatamente pela capacidade de gerar inovações rápidas, disruptivas1 e de alto valor agregado, as TICs se transformaram no principal setor econômico de políticas públicas em diversos países. As tecnologias da informação e comunicação (TICs) no contexto brasileiro O mercado de TICs do Brasil situa-se entre os cinco maiores do mundo, com um valor estimado em US$ 169 bilhões2. O uso de internet e tecnologia da informação (TI) é amplamente generalizado no País, com mais de 100 milhões de usuários de internet e dezenas de milhões de usuários nas principais redes sociais globais. Conforme pode ser depreendido da figura 1, o Brasil tem posição de destaque como mercado consumidor de TICs. Se olharmos para o futuro, veremos que a evolução das TICs depende de quatro grandes blocos de tecnologias: computação em nuvem, big data, redes de banda larga de alta capacidade e “internet das coisas”. Dada a sua horizontalidade, a evolução das TICs está

Ciência, tecnologia, inovação e educação são fundamentais para impulsionar o desenvolvimento econômico e social do País, criando condições efetivas para que problemas históricos da sociedade brasileira possam ser finalmente superados. intrinsecamente ligada ao desenvolvimento econômico e social; e à competitividade tão necessária à economia do País. As partes de computação em nuvem e big data permitem a virtualização, o armazenamento e o processamento de grandes volumes de informação, de forma rápida e em qualquer lugar do mundo. Diversas possibilidades têm sido criadas a partir dessas tecnologias, sendo empregadas em diferentes cadeias produtivas; tais como supermercados, varejo, aeroespacial, mineração etc. A emergência de empresas inovadoras norte-americanas nessas áreas tem trazido novas revoluções tecnológicas e novos players para o mercado internacional, como é o caso das empresas Google, Facebook ou Netflix. Um exemplo de tecnologias emergentes, que podem também revolucionar os mercados em breve, diz respeito à “internet das coisas” (internet of things). O termo “internet das coisas” descreve várias tecnologias que permitem que a internet alcance o mundo real dos objetos físicos. Tecnologias como RFID (radio-frequency identification), redes sem fio de curto alcance, localizadores georreferenciados e redes de sensores tornam a “internet das coisas” uma realidade em várias partes do mundo. O avanço é rápido. Em 2007, o mercado de sensores era da ordem de dez milhões de unidades; hoje já ultrapassa 11 51

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental Vol. 13 no 2 Jul/Dez 2014

Ciência, Tecnologia e Inovação como alavancas para o crescimento econômico: propostas para um Brasil Digital

bilhões; e as estimativas indicam que o número de objetos e coisas conectadas à internet em 2020 esteja situado entre 50 bilhões e 100 bilhões de unidades. As dimensões astronômicas da “internet das coisas” e o potencial econômico e social dessas tecnologias demandam planos ambiciosos, com possibilidades de significativo impacto na modernização de indústrias como a da agricultura e no dia a dia das cidades brasileiras e suas populações. Os benefícios que se podem extrair da “internet das coisas” são imediatos: comodidade; controle a distância de equipamentos e serviços; ajuda nas tarefas domésticas e pessoais; suporte a sistemas de atendimento de saúde, bancários, educacionais, de comunicação ampla e de compras eletrônicas; otimização dos sistemas de energia e transporte; e tudo o mais que a imaginação

Figura 1 – O mercado mundial de TI e Telecom

Fonte: IDC Worldwide Black Book, FY2012. 52

permitir. Em um exercício de simulação, a empresa General Electric (GE) mostra que a “internet industrial”, uma combinação de “internet das coisas” e big data, pode gerar ganhos de eficiência de dimensões globais. Por exemplo, se a “internet industrial” levar à redução de 1% nos custos de capital nas atividades de exploração e desenvolvimento da indústria de óleo e gás, o ganho estimado em 15 anos alcança a cifra de US$ 90 bilhões. A pergunta natural é, portanto, a seguinte: Como o Brasil está se preparando para esse mundo novo? Propostas para um Brasil Digital A partir de uma avaliação das principais agendas digitais de diferentes países, podemos destacar União Europeia, Coreia do Sul, Estados Unidos da América (EUA), Austrália e Reino Unido, como modelos referenciais para uma avaliação criteriosa das principais políticas públicas na área digital. Partindo desses países e considerando a realidade brasileira, analisam-se as potencialidades existentes que podem ser exploradas pelo próximo governo (2015-2018). A Figura 2 expõe a visão de uma proposta, a ser debatida com a sociedade brasileira, de um Brasil Digital articulado em diferentes eixos, que exploraremos a seguir: A Figura 2 descreve a visão para uma proposta de Brasil Digital, dividida em três macroblocos: sociedade digital, competitividade digital e governo como plataforma. O primeiro bloco, sociedade digital, trata de uma integração da vida on-line em diversas dimensões ao cidadão brasileiro. Ao tratarmos temas como saúde, educação, cidades, segurança, transparência social, há um entendimento de que o brasileiro, conforme demonstrado anteriormente, passou a viver on-line em todos os aspectos de sua vida: relações sociais, trabalho, vida privada, consumo etc. O segundo bloco procura trabalhar a questão de competitividade, não da indústria de TI como sempre se observa em programas anteriores, mas da economia como um todo; pois as empresas digitais de base tecnológica – em sua grande maioria ágil, extremamente flexível e com modelos de negócios inexplorados – espalham a inovação e a produtividade em outros setores onde são aplicadas suas tecnologias. Portanto, não se trata mais de uma política industrial setorial, mas sim, de uma visão estratégica de tratar tal indústria de maneira mais

abrangente, que não se baseia na tentativa de reduzir gargalos intrassetoriais. Por fim, o terceiro bloco da proposta de um Brasil Digital passa por um governo inteligente. Isso quer dizer que o governo deve ser plataforma para alavancar a qualidade de vida, empoderamento do setor privado, redução das desigualdades por meio da geração de riqueza etc. Enfim, economias competitivas e de alto valor agregado demandam governos ágeis, inovadores, flexíveis e que criem condições para o progresso econômico. Nesse sentido, estratégias digitais colocam o tema de governos inteligentes como um dos principais tópicos, haja vista o uso permanente de tecnologias inovadoras e modelos de entrega de serviços públicos completamente disruptivos. Como plataformas transversais de suporte aos demais eixos, levamos em consideração quatro pilares: Ciência e Tecnologia, Regulação On-line, Talentos Globais e Infraestrutura de Comunicação. A seguir, apresentamos propostas organizadas nos três blocos mencionados anteriormente, para por fim tratar de propostas para plataformas transversais com seus quatro pilares. Primeiro bloco: sociedade digital O Brasil tem uma das populações mais abertas ao uso da tecnologia da informação em seu dia a dia. Apenas para citar alguns exemplos, o uso da urna eletrônica nos processos eleitorais, o número impressionante de mais de 60 bilhões de transações eletrônicas em nosso sistema financeiro, ou o segundo maior número de usuários cadastrados na maior rede social do mundo. Somados a outros exemplos, é indubitável que a sociedade brasileira é uma sociedade digital. Porém, ao compararmos com outros países, o Brasil ainda possui alguns gargalos na expansão, não apenas do número de pessoas conectadas, mas também do provimento de serviços públicos integrados, bem como para ampliação da oferta de bens e serviços digitais destinados às populações de menor renda. Dessa maneira, para uma sociedade digital inclusiva no Brasil, propomos: a. Transparência e controle social digital: facilitar a participação e o controle pela sociedade na execução de projetos públicos e parcerias público53

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental Vol. 13 no 2 Jul/Dez 2014

Ciência, Tecnologia e Inovação como alavancas para o crescimento econômico: propostas para um Brasil Digital

privadas por meio de plataformas digitais de novos meios de interação digital, por exemplo crowdsourcing, plataformas interoperáveis em estruturas de dados abertos etc. Objetivo: criar a cultura de mútua responsabilidade e participação entre governos e sociedade nas atividades que envolvam políticas públicas ou parcerias público-privadas, a fim de melhorar a transparência e eficiência dos gastos e atividades de planejamento, execução e monitoramento de ações públicas e público-privadas. b. Cidades do futuro: planejar iniciativas digitais para otimização da capacidade instalada das grandes cidades brasileiras de forma a melhorar a qualidade de vida das pessoas.

Figura 2 – Proposta para um Brasil Digital

Fonte: IDC Worldwide Black Book, FY 2012 54

Objetivo: institutir plano de desenvolvimento e implementação de projetos de Smart Cities, construindo condições para que cidades com mais de 500 mil habitantes (39 municípios com aproximadamente 55 milhões de habitantes) possuam serviços inteligentes (energia, transporte, saneamento etc.), integrando camadas de hardware, software, sensores, aplicativos, ampliando também oportunidades para que startups e novos modelos de negócio inovadores surjam nestas infraestruturas inteligentes. c. E-Educação – educação para talentos de uma geração digital: melhorar a qualidade da educação nacional por meio do ganho de eficiência, monitoramento dos resultados e tecnologias “fora da caixa”. Objetivo: adotar ações e parcerias para garantir maior e melhor uso da tecnologia da informação no setor de educação com maior foco no ensino de base, propondo formas disruptivas de ensino digital e monitoramento dos resultados por meio de novas tecnologias como big data, mobilidade, computação ubíqua, machine learning, dentre outras. d. E-Saúde – saúde para uma sociedade que vive on-line: aumentar eficiência do sistema de saúde, reduzindo seus custos e melhorando o atendimento da população mediante colaboração público-privada que impulsione o uso de novas tecnologias da informação e comunicação. Objetivo: disponibilizar e “incentivar a adoção” de sistemas homogêneos de gestão e agregação de dados, permitindo a ampliação e uma gestão mais eficiente, bem como a agregação de novas funcionalidades e o surgimento de novas soluções a partir dessas plataformas digitais constituídas, visando o bem-estar da população. e. Segurança pública e nacional – inteligência para uma sociedade digital protegida: aumentar a eficiência dos órgãos de segurança pública e, consequentemente, a segurança do cidadão pelo uso da tecnologia, bem como proteger o País de atividades lesivas à soberania nacional e assegurar a defesa dos interesses nacionais.

Objetivo: estruturar uma política nacional de segurança e defesa cibernética, integrando-a com as principais ações de segurança pública, com vistas a ampliar a proteção do cidadão digital, tanto off-line, quanto on-line. f. Identificação digital e novas formas transacionais eletrônicas: dotar o cidadão brasileiro da validação de seus direitos off-line também on-line, construindo as relações sociais e comerciais com segurança no meio digital. Objetivo: acelerar a migração com segurança de diversos aspectos transacionais do mundo físico para o mundo digital (assinaturas eletrônicas, chaves públicas, carteiras de identidade digitais, transferência de bens e serviços via formalização digital, interações governo-sociedade por meio de plataformas digitais), empoderando o cidadão digital. Segundo bloco: competitividade digital Conforme abordamos anteriormente, para 2020, estima-se um mercado global de TI na ordem de US$ 3 trilhões, dos quais US$ 900 bilhões serão das tecnologias que o Brasil é candidato competitivo a produzir. Para o mercado brasileiro, estima-se um montante de US$ 200 bilhões, sendo 10% desse valor relativo às exportações. O uso de novos dispositivos, a ampliação de empresas de alto valor agregado no segmento de TIC, ou que inovam por meio dessas tecnologias, ampliam sobremaneira as possibilidades de geração de riqueza nesta nova economia digital. Para tanto, faz-se mister que o Brasil adote um conjunto de medidas para ampliar a sua competitividade digital: a. Capital de risco: aumentar a disponibilidade de capital público e privado de risco, construindo novos formatos regulatórios que permitam a criação e o coinvestimento de veículos de investimento inovadores, tornando o mercado de capital de risco brasileiro um dos principais no mundo. Objetivo: criar politicas de incentivo à alocação de capital para investimentos de risco em tecnologia, permitindo um conjunto de incentivos de diversas formas para alavancar os fundos de investimento e a 55

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental Vol. 13 no 2 Jul/Dez 2014

Ciência, Tecnologia e Inovação como alavancas para o crescimento econômico: propostas para um Brasil Digital

destinação de portfólio individual em negócios baseados em conhecimento. b. P&D for business: aumentar a contribuição da ciência brasileira para o desenvolvimento econômico e social do País, orientando incentivos flexíveis e inovadores para o ciclo completo de P&D público e privado, destravando as amarras para a cooperação universidade-empresa no Brasil. Objetivos: construir novas formas de interação empresa-universidade; flexibilizar as regras de monetização de patentes e de transferência de tecnologia; viabilizar diferentes estruturas institucionais para a integração das instituições de ciência e tecnologia às áreas de P&D e de gestão de inovação das empresas. c. Descomoditização da indústria por intermédio das TICs: descomoditizar a produção tecnológica brasileira de forma a tornar os produtos nacionais mais competitivos e relevantes no mercado global. Objetivo: apoiar a produção da tecnologia nacional e o desenvolvimento de soluções globais, levando a fronteira do conhecimento, em novos materiais, manufatura avançada, novos processos, manufatura aditiva, dentre outras tecnologias, para os diversos setores econômicos. d. Empreendedorismo na economia do futuro: tornar o ambiente brasileiro mais propício para o empreendedorismo de alto impacto e base tecnológica. Objetivo: construir ambiência favorável para o desenvolvimento de novos negócios e o surgimento de startups, preconizando a aceleração de negócios, a prevalência de modelos de negócios flexíveis e com estruturas institucionais leves, permitindo um adequado equilíbrio fiscal e trabalhista para a evolução de negócios disruptivos. Terceiro bloco: governo como plataforma A interação das agências governamentais e dos cidadãos necessita ser completamente transformada no Brasil, tornando rapidamente a burocracia uma coisa do passado e deixando a execução de todos os níveis de

56

governo mais eficiente do que nunca. Em que pese várias iniciativas de organizar essa dimensão, tais como o programa de governo eletrônico, a infraestrutura de dados abertos, a política de software livre, dentre outras, não há uma dimensão exata e inovadora no conceito de um governo como uma startup, isto é, com capacidade de “pivotar” suas estruturas burocráticas e institucionais para permitir uma interação mais rápida, direta e objetiva com o novo cidadão digital. Assim, criamos aqui o conceito do “governo como uma plataforma” (government-as-a-platform), que se resume em uma grande plataforma digital provedora de serviços e ao mesmo tempo perpassada pela sociedade civil, por meio de elementos computacionais que permitam tais interações – ambiente da computação em nuvem; mobilidade nos dispositivos móveis; interação com APIs (application programming interface) de softwares e outras plataformas que exploram a extração de dados; robotização do cruzamento dinâmico de informações, entre outros – além de alavancar o mundo de novos negócios nascentes a partir dessas interações digitais completamente inovadoras. Para fazer um paralelo, a “economia da plataforma” tem sua origem nos dispositivos da empresa americana Apple e suas lojas virtuais que capturam tendências de consumo, visões dos consumidores, técnicas de seleção e extração de informações. Adicionalmente, várias redes sociais também adotam tal modelo, “capturando o consumidor digital” e manipulando os dados oferecidos por ele para novos modelos de negócios, sendo detentores da plataforma principal de interação. Nessa mesma ótica criada no setor privado, alguns governos já iniciam a migração para uma combinação de interação digital e decisão de políticas públicas no mundo virtual. Há exemplos de aberturas de participação digital em parlamentos, escrita de novas constituições por meio de plataformas wiki, tentativa de permitir ao cidadão participar como coder e “personalizar” seus serviços públicos digitais, bem como decisão de comunidades sobre alocações orçamentárias mediante votações on-line. Portanto, o Brasil precisa dar um passo mais consistente e inovador, construindo um novo conceito de governo inteligente: um governo como uma plataforma digital. Para isso, apresentamos as seguintes medidas:

A interação das agências governamentais e dos cidadãos necessita ser completamente transformada no Brasil para permitir um diálogo mais rápido, direto e objetivo com o novo cidadão digital. a. CIO Brasil: garantir a execução e o cumprimento das metas dos programas estratégicos voltados ao setor de TIC no governo brasileiro. Objetivo: criar órgão supraministerial de articulação, coordenação, monitoramento e expertise de politicas, programas e projetos de tecnologia da informação no governo, privilegiando projetos extremamente estratégicos para a consecução dos objetivos do Brasil Digital. b. Planejamento digital: definir, criar, monitorar e garantir a implementação de padrões, diretrizes e arquitetura de TI para o governo de forma a reduzir custo, facilitar a conectividade e a abertura de dados para o cidadão. Objetivo: redefinir a arquitetura dos sistemas de governo, disseminando as melhores práticas, padrões de API, plataformas tecnológicas e infraestruturas comuns, destravando a adoção da computação em nuvem no âmbito governamental. c. Cidadão digital: simplificar o acesso do cidadão aos serviços do governo e reduzir os custos de atendimento. Objetivo: redefinir os processos e serviços de governo de forma a simplificá-los, transformá-los em uma mentalidade digital, criando uma interface única, multicanalidade, integração de back-office e construção de conceitos de plataforma com uso de aplicativos distribuídos. 57

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental Vol. 13 no 2 Jul/Dez 2014

Ciência, Tecnologia e Inovação como alavancas para o crescimento econômico: propostas para um Brasil Digital

d. E-Compras.gov: utilizar o governo, como cliente, para fomentar o desenvolvimento da indústria nacional de tecnologia, flexibilizando as aquisições de tecnologias disruptivas ou críticas, inclusive oferecidas por startups. Objetivos: estabelecer uma metodologia de discriminação positiva em prol do ecossistema local de tecnologia, aperfeiçoando os atuais instrumentos legais para modelos inexistentes de aquisição pública ou extremamente inovadores. e. Certificação e homologação segura de software e hardware para o governo: haja vista as denúncias de espionagem realizadas pelo governo americano, o governo brasileiro precisa aumentar o nível de confiabilidade de suas redes. Objetivo: constituir metodologias de avaliação segura de software e hardware como forma de permitir a aquisição pública de sistemas e equipamentos confiáveis, sem a existência de back doors ou qualquer dispositivo intrusivo. Plataformas transversais: quatro pilares

Ciência e Tecnologia A pesquisa e o desenvolvimento em tecnologias digitais são cruciais para a prosperidade e o futuro da economia brasileira. Nesse tocante, algumas áreas podem ser definidas como estratégicas para obterem fomento contínuo, haja vista o grande efeito portador de futuro que tais áreas do conhecimento possuem. Assim, podemos destacar os seguintes tópicos prioritários para a economia digital: a. Tecnologias transdisciplinares emergentes – A visão da pesquisa em TI como uma área dissociada tende a reduzir o impacto alcançado. Novas fronteiras do conhecimento tem se fundido com as pesquisas em TIC, tais como biologia, neurociência, etologia, economia, artes, nanomoléculas, nanomateriais. Enfim, faz-se premente construir fomento e instrumentos de apoio para pesquisas que perpassem diferentes áreas em tecnologias emergentes. b. Ciências digitais, robótica e “internet das coisas” – A emergência de novas tecnologias – como sensores modernos, protocolos otimizados, ciência de 58

dados, machine learning, dentre outras – demanda um conjunto novo de pesquisadores e uma interlocução constante entre departamentos de pesquisa diferentes e outras formas de fomento público e privado, constituindo uma forte correlação entre a pesquisa aplicada e os novos modelos de negócio criados pelo setor privado. c. Componentes avançados – Extremamente estratégico para o avanço do controle de tecnologias críticas pela academia e pelo setor empresarial brasileiro, deter o conhecimento em eletrônica, eletrônica orgânica, fotônica, manufatura avançada, impressoras 3D e manufatura aditiva é elemento chave para suportar o conjunto de projetos associados aos demais planos do programa Brasil Digital, permitindo ao País implantar projetos avançados com equilíbrio no comércio internacional. d. Internet do futuro: A internet tem revolucionado recentemente o mundo em que vivemos. Dessa maneira, é premente um conjunto de pesquisas que sejam orientadas para uma nova visão da internet no futuro, priorizando a construção de protocolos inovadores, plataformas experimentais, testbeds experimentais em redes avançadas, novas estruturas tecnológicas de segurança, computação em nuvem e novas tecnologias de redes de comunicação.

Regulação on-line Obviamente que, à medida que a sociedade brasileira se aprofunda no meio digital, novas formas de regulação necessitam emergir, para estruturar direitos e garantias e para preservar o funcionamento dos mercados no âmbito virtual. Como exemplo, se utilizarmos um site de hospedagem global como o Airbnb, caso venhamos a sofrer problemas referentes ao direito do consumidor, como eles devem ser tutelados no âmbito digital? De semelhante modo, se adquirirmos uma conta em uma rede social e armazenarmos dados de vários anos de nossas vidas, se porventura o provedor privado resolva encerrar suas operações, como devemos lidar com o fato de perdermos nosso conjunto informacional da história de nossas vidas? Recentemente, o Brasil passou por discussões nacionais nesta área, como foi o caso das legislações que

puniam crimes cibernéticos e a aprovação do Marco Civil da Internet. Enfim, alguns temas precisam ser endereçados em um programa de governo, dos quais destacamos: a. Aprovar uma Lei de Proteção de Dados Pessoais, permitindo a construção da confiança e o enforcement legal para que os dados pessoais dos cidadãos brasileiros sejam resguardados, evitando a manipulação de informações, a quebra de privacidade, a transferência internacional ilegal de dados, assim como garantindo mais confiança para o desenvolvimento do comércio eletrônico. b. Regular a neutralidade de rede prevista no Marco Civil da Internet, preservando o equilíbrio econômico e a geração de novos negócios entre os detentores da infraestrutura e os provedores de aplicação. c. Constituir uma nova versão do Código do Consumidor para o meio digital, observando as necessidades de entendimento das novas demandas do consumidor, assim como garantir que novos modelos de negócio disruptivos não sejam bloqueados por regulações ultrapassadas. d. Preservar o modelo multissetorial de governança da internet, mantendo o equilíbrio entre os representantes do governo, da sociedade civil organizada, da academia e do setor empresarial, com o objetivo de permitir uma governança democrática, transparente, equilibrada e de cunho internacional. e. Desenhar novos modelos legais e regulatórios para o tema de ciberataques e segurança cibernética, mantendo a credibilidade e a confiança para que o cidadão digital brasileiro possa migrar suas operações físicas para o mundo virtual. f. Repensar o modelo de propriedade intelectual para o meio digital, buscando equilibrar o acesso da sociedade digital ao conhecimento disponível, bem como os negócios inovadores que possam surgir e necessitem se monetizar. g. Avaliar as novas formas de pagamento on-line e os novos meios digitais de fomento, tais como o 59

123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 crowdfunding, crowdsourcing, implantando redes de alta velocidade em diversas partes Revista de Políticas Públicas epagamentos digitais e 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 do País. Destacamos alguns objetivos a serem perseguidos novas moedas digitais. 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 Gestão Governamental 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 nesse novo plano: 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 Vol. 13 no 2 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 Talentos globais 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 Jul/Dez 2014 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 Na nova economia do conhecimento o principal ativo a. Implantar as redes 4G/LTE em diversos municípios 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 é o recurso humano qualificado, com visão global e brasileiros. 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 capacidade de execução de tarefas cada vez mais 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 complexas. Nesse aspecto, para quecomo a economia brasileira b. Ampliar a conectividade dos municípios com mais de Ciência, Tecnologia e Inovação alavancas 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 consiga crescer de forma sustentável no longo prazo, 300 mil habitantes, oferecendo banda larga de 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 para o crescimento econômico: propostas para um 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 ampliando sua competitividade, é urgente a criação de qualidade para que serviços digitais de maior valor 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 Brasil Digital 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 novos empregos na economia digital e a qualificação agregado possam ser utilizados pela população. 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901212345 inovadora dos recursos humanos brasileiros.

Para o mundo digital, precisamos desenvolver novas habilidades e competências, agregando conhecimentos que serão demandados em novas cadeias produtivas que estão surgindo atualmente.

c. Conectar os diversos campi das universidades e institutos federais de educação profissional e tecnológica, por meio da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), em 10 Gbps até 2018.

Infraestrutura de comunicação A partir dos esforços do Plano Nacional de Banda Larga, o Brasil ampliou o número de acessos fixos e móveis, alcançou o percentual de 44% da população com acesso à banda larga, licitou o espectro de 700 MHZ, bem como vem tentando ampliar o acesso de cidades de médio porte e áreas rurais com a recriação da Telebrás. Porém, para suportar um programa como o Brasil Digital, as redes de telecomunicações no Brasil ainda são deficientes em 70% dos municípios brasileiros. Para que haja uma expansão da oferta dos serviços de telecomunicações, deve-se constituir um novo plano para o setor, baseado em parcerias público-privadas,

d. Investir em pesquisa para a instalação de redes de comunicação sem fio em banda ultralarga. e. Constituir projetos de cabos subfluviais para conectar áreas remotas na região amazônica. f. Lançar satélite geoestacionário (GEO) como forma de desafogar posições orbitais, ampliando a soberania nacional. g. Construir cabo submarino ligando o Brasil à Europa, como forma de criar interconexão internacional em rota distinta da existente com os Estados Unidos.

Notas Tecnologia disruptiva – designação atribuída a uma inovação tecnológica (produto ou serviço) capaz de derrubar uma tecnologia já preestabelecida no mercado. 1

2

Conforme pesquisas recentes da consultoria IDC.

Rafael Henrique Rodrigues Moreira: Servidor público concursado da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) do Governo Federal. Possui graduação em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestrado em Economia pela Universidade de São Paulo (USP), mestrado em Computação pela Universidade de Brasília (UnB) e especialização em Gestão de Indústrias de Alta Tecnologia pela University of Shenzhen, China. Foi assessor econômico da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Atuou como gerente de Projeto da Secretaria de Inovação do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), Brasil. Atualmente é secretário-adjunto de Política de Informática no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). E-mail: [email protected] 60

Especial Eleições Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental

Superação das desigualdades regionais: o salto de qualidade no processo de desenvolvimento nacional Por Adriana Melo Alves e João Mendes da Rocha Neto

61

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental Vol. 13 no 2 Jul/Dez 2014

Superação das desigualdades regionais: o salto de qualidade no processo de desenvolvimento nacional

O desenvolvimento regional na agenda de políticas públicas: uma breve contextualização Mesmo considerando os avanços recentes, o Brasil ainda é um dos países mais desiguais do mundo. Essas desigualdades, que se manifestam entre regiões, em diferentes escalas, são fruto da estruturação econômica territorialmente concentrada e historicamente construída. Ao longo do tempo, os desafios de superação das desigualdades regionais no Brasil persistiram e a presença da temática regional na agenda de governo sempre foi marcada pela alternância: ora a questão regional se colocou como central para o Estado brasileiro, ora foi obscurecida por outras questões. Aqui não se pretende fazer uma extensa digressão, mas apenas identificar alguns momentos extremos desses movimentos. Alguns autores já discutiram uma provável presença do tema, nos governos Vargas e Dutra, manifestada na opção por infraestrutura, o que poderia ser explicado muito mais pelo nível de inserção que o Brasil passava a ocupar na Divisão Internacional do Trabalho, como bem destaca Celso Furtado: “[...] Esse impulso nascia da força gravitacional exercida pelo centro, graças à qual ocorria a realocação de recursos, a ativação no uso destes, a modernização. Tudo se passava como se a expansão do núcleo industrial provocasse conformação estrutural de certas regiões que iam entrando em contato [...]” (FURTADO, 1981, p. 88) Entretanto, a institucionalização do tema só é observada no Governo de Juscelino Kubitschek, com a constituição do Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN), que mais tarde viria a constituir a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). Nesse momento, o tema não só adquiriu centralidade na agenda, mas foi alçado a uma posição de prestígio, pois era tratado diretamente pelo presidente da República do período. Também existem autores que resgatam órgãos que historicamente atuaram com cortes regionais e são mencionados como embriões daquilo que ficou conhecido como sistema federal de planejamento regional, o qual se inicia com a Sudene, depois incorpora a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia

62

(Sudam), a Superintendência de Desenvolvimento do Centro-Oeste (Sudeco) e a Superintendência de Desenvolvimento da Região Sul (Sudesul). Em tese, essas instituições nasceram como órgãos de Estado que deveriam dar respostas às questões macrorregionais do País e, na sua origem, contavam com amplo prestígio e visibilidade da sociedade brasileira. No entanto, os governos autoritários foram esvaziando suas funções, em face da forte centralização que orientava o regime. Isso não se deu somente na questão regional, mas em todas as demais. Evidentemente, em algumas políticas e instituições isso foi sentido com mais ênfase, a exemplo das que possuíam mandatos para tratar do tema regional. Nesse sentido, Tânia Bacelar destaca: “A forte centralização de recursos e de poderes no poder executivo federal e o caráter autoritário do regime de governo marcaram a ação do Estado brasileiro nos anos pós-64 [...]” (BACELAR, 1994, p. 145). Percebe-se que a trajetória desse sistema foi marcada por expectativas, que logo começaram a se frustrar. A continuidade dos governos de exceção nas décadas seguintes intensificou o esvaziamento institucional e as superintendências se viram reduzidas a meras operadoras de recursos, destinados a projetos que, muitas vezes, estavam completamente dissociados das questões regionais. Esse processo de enfraquecimento do sistema deu-se paulatinamente, mas o ápice de sua crise se manifestou concomitantemente a escândalos de corrupção e à finalização de alguns instrumentos de incentivo que eram considerados fundamentais. Assim, até hoje paira uma questão: se, de fato, foram os dois fatores combinados que contribuíram para tal cenário; se a crise foi originada pelo fim dos instrumentos e os escândalos serviram para obscurecer opções de governo, por não estenderem tais instrumentos; ou ainda, se a opção fazia parte de uma estratégia que já vinha se desenhando, que era da centralização da questão regional no governo central, pela falta de uma estratégia para o tema. Sobre essa última opção cumpre destacar que, desde meados da década de 1990, o discurso do governo associou a questão regional a cortes no território brasileiro, que deveriam dialogar com espaços externos ao País, por meio da implantação de infraestruturas de grande envergadura, em uma clara opção pela inserção na economia global, capitaneada pela orientação neoliberal.

A expectativa é a de adoção de um planejamento compartilhado entre o Estado e a sociedade, por meio da construção de pactos e compromissos mútuos. Assim, constituíram-se os Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento (Enids), que instituíram uma orientação de “competição territorial”, mascarada pelo discurso da competitividade. O professor Carlos Azzoni tece críticas pertinentes ao Programa Brasil em Ação, que se orientava pelos eixos: “Esse enfoque [do Programa] contrasta com os primeiros esforços de planejamento regional da década de 1950 [...] o diagnóstico do efeito das forças ligadas ao processo de acumulação de capital sentencia regiões pobres à exclusão [...] (AZZONI, 2007, p. 238). Além dos eixos, um conjunto de outras iniciativas agravou tal quadro, a exemplo da guerra fiscal entre estados. Como o governo central nunca orientou o tema, as unidades da Federação instituíram instrumentos para atração de investimentos privados e passaram a competir entre si. Naturalmente, aquelas regiões que possuíam mais infraestrutura e capacidade técnica e institucional se tornariam as “vencedoras” nesse embate. Assim, o cenário da política regional dos anos 1990 se desenhava, rompendo a orientação que sempre esteve por trás dessas ações, que era a solidariedade regional. Quando observamos o panorama, verificamos que todo o aparato que fora construído nas décadas passadas estava colocado à prova e deslocava-se daquilo que se pretendeu na sua origem. Para que de fato o País retomasse a questão regional na sua agenda de políticas públicas faltava o principal: sensibilidade política. Embora criado em 1999 em meio a esse cenário, o Ministério da Integração Nacional surge com mandatos muito diversos em se tratando de políticas públicas, e entre elas estava a de desenvolvimento regional. Apesar 63

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental Vol. 13 no 2 Jul/Dez 2014

Superação das desigualdades regionais: o salto de qualidade no processo de desenvolvimento nacional

do esforço dos técnicos que produziram alguns documentos importantes para retomada do tema, não se pode deixar de constatar a permanência do problema: Onde inserir o tema regional? Com que institucionalidade? Com que espaço na agenda? Com que recursos e capacidades? Enfim, perpetuava-se a posição secundária da questão em face da herança recente, bem como de uma falta de orientação estratégica. A Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR) em sua primeira fase: um caminho de avanços e percalços A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, demarca uma mudança na questão da priorização do desenvolvimento regional na agenda. Embora nenhuma nova institucionalidade tenha sido criada, havia opções claras nos documentos oficiais que o tema voltava a ser central no governo e com uma considerável visibilidade. Nesse sentido, cabe destacar o texto de abertura do Plano Plurianual (2004-2007): O PPA está construído sobre o princípio de que as desigualdades sociais têm uma dimensão regional e de que seu enfrentamento passa por uma nova política de desenvolvimento regional e pelo fortalecimento do planejamento territorial no setor público. A geografia do Brasil mostra ainda uma forte concentração das atividades econômicas e da população sobre uma parcela menor do espaço territorial brasileiro, uma geografia das desigualdades sociais e econômicas onde estão regiões com reduzida capacidade de competir com os territórios mais dinâmicos. (grifo nosso) (BRASIL, 2004, p. 34). Era o reconhecimento, por parte do governo, de que a situação dos desequilíbrios regionais perpetuava-se e se acentuara, nos anos anteriores, em decorrência da acirrada competição que se estabelecera entre os territórios e aqueles agentes econômicos que os produziram e utilizaram. O documento prossegue: A consolidação da estratégia de crescimento sustentável, com inclusão social, pressupõe a substituição deste processo assimétrico de desenvolvimento socioeconômico de consequências

64

negativas, tanto para as áreas atrasadas como também para as regiões mais prósperas. [...] A geografia projetada pelo PPA para os próximos anos busca privilegiar o desenvolvimento solidário entre as diversas regiões do País, potencializando as vantagens da diversidade cultural, natural e social. (grifo nosso) (BRASIL, 2004, p. 34). Assim estavam enunciadas as orientações estratégicas do governo para o desenho de uma política de desenvolvimento regional baseada na inclusão social e na diversidade territorial, e que não se atomizasse, reconhecendo, novamente, o problema regional como nacional. O PPA assim especifica: A política regional não pode mais ser um problema de algumas regiões, mas uma política nacional que promova a coesão territorial como expressão da coesão social e econômica do País. A integração competitiva do território nacional passa pela coordenação [...] As áreas mais frágeis serão tratadas numa perspectiva sub-regional diferenciada no que tange ao gasto social e às políticas de emprego e renda. A intenção é estimular uma convergência das prioridades de gasto da União, estados e municípios, num conjunto de políticas estruturantes (transferência de renda, saneamento, habitação, saúde, educação, informação e conhecimento, meio ambiente, associadas a uma política “sob medida” de emprego e renda), gerenciadas de forma articulada, visando ao desenvolvimento local. (grifo nosso) (BRASIL, 2004, p. 35). O Plano complementava suas orientações estratégicas apontando para uma política que fosse capaz de promover a coordenação entre políticas públicas setoriais a partir de uma visão de território e, portanto, de complementaridade. Nesse reposicionamento, algumas estratégias institucionais importantes foram adotadas, talvez a mais emblemática delas tenha sido a escolha da professora Tânia Bacelar de Araújo como secretária nacional de Políticas de Desenvolvimento Regional. A biografia da professora oferecia credenciais técnicas e políticas para a ampliação do tema dentro da agenda de governo e sinalizava claramente para uma reorientação estratégica

no sentido de se constituir uma política regional mais robusta. A equipe da Secretaria debruçou-se sobre um conjunto de documentos técnicos já produzidos, buscou subsídios na Política Regional Europeia1, naquilo que se referia a sua atuação no território, inovando na questão da elegibilidade das áreas prioritárias para a intervenção do poder público, a partir de um conjunto de indicadores que buscava por em evidência o problema da desigualdade inter e intrarregional. Esse esforço da equipe técnica resultou também em um considerável acervo de documentos oficiais que tinham por finalidade orientar a elaboração de uma nova política de desenvolvimento regional para o País. No entanto, havia dispositivos criados na nova política que sofriam resistência de alguns atores com poder de veto. Um desses dispositivos, o mais importante, relacionava-se à criação de um Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional, que destinaria recursos para o poder público, tanto na escala federal quanto para os governos subnacionais, naquilo que seus projetos dialogassem com a política. Ressalte-se que a proposta de criação do fundo integrava a reforma tributária, que já vem sendo discutida no Congresso Nacional há alguns anos, com avanços e retrocessos de toda ordem. Na ocasião, além de resistências dentro do próprio Poder Executivo, havia uma indefinição de posicionamento dentro do Congresso Nacional, frente à vontade de governadores de capturarem recursos do fundo de forma mais direta. Esse complexo embate teve reflexos claros na Política de Desenvolvimento Regional, uma vez que se vislumbrava a impossibilidade de aprovar seu principal instrumento, que era o Fundo. Assim, todo o restante da proposta ficava prejudicado, pois deveria se valer daquilo que já existia e se mostrava inadequado para o novo desenho desejado. Outro pilar importante sobre o qual a política se alicerçava era a Câmara de Políticas de Integração Nacional e Desenvolvimento Regional2. Composta por secretários executivos de ministérios e coordenada pela Casa Civil da Presidência da República, ela foi criada com o objetivo de articular ações setoriais em territórios prioritários. A reinserção do tema na agenda de governo deu-se de forma pulverizada, como se pode notar analisando os instrumentos. Existiam normativos, sobretudo aqueles relacionados ao financiamento, que já vinham de décadas 65

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental Vol. 13 no 2 Jul/Dez 2014

Superação das desigualdades regionais: o salto de qualidade no processo de desenvolvimento nacional

66

passadas e que não foram modificados, ou seja, persistiram no seu desenho. Outras normas tramitaram no Congresso Nacional e se institucionalizaram, a destacar a recriação das superintendências. Assim, havia institucionalidade (Ministério da Integração Nacional, Sudene e Sudam); havia instrumentos de financiamento (fundos constitucionais e de desenvolvimento); mas faltava o principal: a política. Muito embora no final de 2006 e início de 2007 um grupo do Ministério da Integração Nacional e suas vinculadas tenha discutido uma minuta de decreto (nº 6.047), que foi aprovado e publicado no dia 22 de fevereiro de 2007, o qual instituía a Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR), o relatório de avaliação da PNDR I ainda evidencia que: “A melhor síntese para a maior parte do período 1988-2010 não é uma política sem os instrumentos, mas os instrumentos sem uma política [...]” (BRASIL, 2011, p. 86). Entre o desejável e o possível, optou-se pelo segundo, por um conjunto de contingências já expostas. Mas essa opção não foi fácil, pois trazia para dentro do instrumento legal as heranças de uma lógica que não aderia à concepção de política regional proposta inicialmente. Alguns aspectos merecem destaque. O decreto que institui a PNDR tem como objetivo “[...] a redução das desigualdades regionais, através da equidade no acesso a oportunidades de desenvolvimento [...]”, bem como propõe ser: “[...] instrumento orientador de programas e ações federais no território nacional [...]”. Isso, portanto, demandaria uma ação de coordenação entre diferentes políticas, programas e instituições. E esse foi exatamente o grande problema que se colocou para a nova PNDR. Tanto do ponto de vista horizontal, por intermédio da Câmara, quanto vertical, na relação com os governos subnacionais, a Política Nacional de Desenvolvimento Regional não logrou êxito, fato agravado pela ausência de participação e controle social durante sua formulação. Nesse aspecto, o Relatório de Avaliação da PNDR I destaca: “[...] A mediação federativa é mínima e não toca os pontos cruciais da iniciativa [...] a multiplicidade de ações setoriais termina por afastar o diálogo entre as partes interessadas, o que gera, no global, uma ação descoordenada e superposta [...]” (BRASIL, 2011, p. 105). No caso da articulação horizontal, a intersetorialidade perseguida pela Câmara não resistiu à desarticulação

interna da instância colegiada; bem como a pouca força política que lhe foi conferida, evidenciada pela ausência dos dirigentes nas reuniões. Além disso, a agenda intersetorial voltada para o desenvolvimento regional foi deslocada para o Programa Territórios da Cidadania, vinculado à Casa Civil da Presidência da República, devido a um equívoco conceitual entre política territorial e política regional que ainda persiste em algumas instituições do Governo Federal. Cabe reconhecer que, assim como a PNDR, a maior parte dos normativos sobre a questão induz a uma visão externa de integração e horizontalidade, que não ocorre na realidade. Ou seja, o caráter de coordenação é reconhecidamente um fator importante para que as políticas públicas sejam bem-sucedidas, mas a história do Estado brasileiro e suas formas de operar dizem o contrário. As heranças históricas também se refletiam em uma desconexão de instrumentos de financiamento. A ausência de novos instrumentos e a manutenção dos que já existiam, no seu formato original, tornava a política dependente das decisões dos demais órgãos de governo, uma vez que os Fundos Constitucionais e de Desenvolvimento das regiões Norte, Nordeste e CentroOeste possuem destinação específica para investimentos privados. Assim, questões relativas à infraestrutura pública, que não aquelas dadas pelos instrumentos legais3 dos fundos, estavam impedidas de ser realizadas. Há, portanto, que se considerar a existência das diferentes lógicas, tanto setoriais quanto espaciais, das políticas públicas que, quando possuem instrumentos creditícios e de incentivo, seguem orientações específicas. Portanto, a PNDR fica esvaziada na sua força de induzir investimentos nas suas áreas prioritárias. Outra herança da PNDR foram seus recortes programáticos, com destaque para o Promeso, destinado às mesorregiões diferenciadas4; o Conviver, para o Semiárido; o Proride, para as regiões integradas de desenvolvimento5; e o Programa da Faixa de Fronteira. Isso tornou o mapa da elegibilidade quase uma letra morta, pois prevaleceu um corte espacial que não considerava os critérios definidos para a ação do Governo Federal. Por fim, esse cenário ficou bastante agravado com o desenho dado para as superintendências após a tramitação no Congresso Nacional. Elas ressurgiram dotadas de novos mandatos, alguns bastante arrojados, mas sem nenhum dispositivo legal que lhes garantisse

Para que possamos garantir o salto de qualidade necessário ao processo de desenvolvimento do Brasil, há que se investir na diversidade e no potencial das regiões. (...) Construir o consenso políticoinstitucional em torno da priorização do tema no Governo Federal e em meio aos entes federados faz-se necessário, a fim de elevá-la à condição de política de Estado e enquanto parte integrante e prioritária do projeto nacional de desenvolvimento. capacidades técnicas, institucionais e financeiras para dar conta de suas novas atribuições. Nesse aspecto, o Relatório de Avaliação da PNDR I destaca: “Especificamente com relação às superintendências de desenvolvimento, os atores de sua recriação não assumiram a responsabilidade da renovação e do encaminhamento de um papel apropriado dessas superintendências à nova PNDR [...]” (BRASIL, 2011, p. 146). Assim, foi na própria implementação da nova PNDR que se observou uma trajetória de enfraquecimento do 67

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental Vol. 13 no 2 Jul/Dez 2014

Superação das desigualdades regionais: o salto de qualidade no processo de desenvolvimento nacional

68

tema na agenda de governo e de um novo cenário adverso para a questão regional brasileira, o que vai requerer a adoção de uma postura mais proativa da Secretaria de Políticas Regionais. A proposta de PNDR II enquanto parte integrante e prioritária do projeto nacional de desenvolvimento A reinserção do tema na agenda governamental demandaria um conjunto de estratégias que seria orientado pelos aprendizados dos passados distante e recente, sem desconsiderar também avanços e contribuições herdados. Assim, o primeiro momento foi rever questões conceituais para a formulação de uma proposta de Política de Desenvolvimento Regional aperfeiçoada, denominada de PNDR II. Porém, apenas a construção de documentos de referência, a exemplo do que fora feito na primeira versão da PNDR, não superaria uma questão fundamental: a baixa participação e a pouca visibilidade e legitimidade da política na sociedade. Assim, seria necessário reorientar sua construção, fortalecendo essa aproximação com múltiplos atores e grupos que possuíssem algum interesse na política, a exemplo dos governos subnacionais, dos órgãos associativos da área produtiva, das universidades e redes de ensino tecnológico e profissionalizante, outros órgãos federais, organismos paraestatais, bem como a sociedade civil de forma ampliada. Para tanto, o Ministério da Integração Nacional, por meio de sua Secretaria de Desenvolvimento Regional, realizou um amplo esforço no sentido de sistematizar uma rede que adquiriu concretude num amplo processo conferencial, envolvendo mais de 13 mil pessoas, que capilarizou o debate em 27 eventos estaduais e cinco macrorregionais, os quais culminaram na Conferência Nacional de Desenvolvimento Regional, realizada em março de 2013. A finalização do processo conferencial resultou em um documento que consolidou todas as propostas de princípios e diretrizes que subsidiariam a elaboração da nova política e que foram debatidas, priorizadas e aprovadas durante a realização da Conferência Nacional. Esse produto foi a base para elaboração de um projeto de lei enviado à Casa Civil da Presidência da República, a qual, por sua vez, deverá fazer os encaminhamentos ao Congresso Nacional.

O conteúdo da nova proposta de PNDR considerou, antes de tudo, os atuais contextos nacional e global nos quais ela está inserida. Com os novos delineamentos da globalização, a integração internacional de mercados e de estruturas produtivas passa a se pautar pelo novo paradigma da economia do conhecimento, com produção flexível de bens diferenciados e alta tecnologia. Frente a esses desafios, ao passo que o território ganha importância, visto que o processo de inovação é fortemente dependente de atributos ali enraizados, ampliam-se também as competições internas territoriais, que se mostram desbalanceadas (BRASIL, 2012). Considerando esse contexto, a proposta de PNDR II afirma, essencialmente, ser uma política de coesão, expressa no objetivo geral de fortalecer a coesão socioeconômica, política e territorial do Brasil, a partir da valorização da diversidade regional e da busca da equidade, enquanto vantagem competitiva para o País, em que o novo passa a ter um papel fundamental. A partir de então foram pensadas estratégias que deveriam orientar a política, tanto nas suas questões fundamentais quanto nos princípios e objetivos, até os desdobramentos práticos necessários, tais como ações programáticas, instâncias de coordenação e articulação horizontal e vertical, instrumentos de financiamento, modelo de gestão e sistemas para monitoramento e avaliação. Deve ser destacado que a PNDR II busca reconhecer e enfrentar as desigualdades regionais brasileiras a partir de suas problemáticas, que são territorialmente distintas. Dentre elas, sobressaem-se: a baixa geração de riquezas em algumas regiões e baixos rendimentos auferidos; o esvaziamento de significativas parcelas da população em regiões outrora dinâmicas e de alta renda; a excessiva commoditização ou especialização produtiva; além de uma frágil e desarticulada rede de cidades. Os objetivos específicos da PNDR II estão relacionados com as problemáticas apresentadas. O primeiro objetivo, chamado convergência, procura estabelecer a equidade no plano nacional, diminuindo, por meio das ações integradas do governo, as desigualdades e a cultura da competição predatória, aproximando os indicadores de desenvolvimento entre as regiões. O segundo objetivo – competitividade regional e geração de emprego e renda – se interconecta com o

primeiro, entendendo que equidade e coesão territorial passam necessariamente pela reintegração de extensas porções que se encontram à margem do processo produtivo e do desenvolvimento do País. Para isso, é necessário pensar em atividades inovadoras, denominadas de “portadoras de futuro”, que devem dialogar com as potencialidades existentes. O terceiro objetivo, que trata da agregação de valor e diversificação econômica, também dialoga com os dois anteriores. Ao se pensar em inovação, estamos falando não somente das atividades produtivas que já existem e vão requerer investimentos para que se mantenham competitivas e, portanto, garantidoras de processos de desenvolvimento, mas também de ampliar esse portfólio, evitando a excessiva especialização e a dependência de uma única ou de reduzidas opções de produção, que podem se mostrar insustentáveis com o passar do tempo. O quarto objetivo dialoga fortemente com a perspectiva espacial. A PNDR – fase II entende que uma política deve ser capaz de reordenar processos que recaem sobre o território, mas que não há possibilidades de reverter aquilo que é inexorável à própria dinâmica social: a urbanização. Nesse sentido, a política dá especial destaque à rede de cidades médias que já vêm adquirindo expressividade, mas de forma ainda muito concentrada em algumas delas, segundo dados dos últimos censos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Assim, a PNDR – fase II busca fortalecer o conjunto de serviços públicos e ampliar a oferta de bens coletivos em algumas dessas cidades, considerando suas áreas de influência. Esse é um passo fundamental para interiorizar o desenvolvimento, contribuir para a consolidação do tecido produtivo, dinamizar seus entornos e articular o processo de desenvolvimento regional e nacional. O documento traz propostas que dialogam com a complexidade do território brasileiro, reconhecendo que sua diversidade, assim como na primeira versão, constituise um potencial que a PNDR deve ativar mediante um conjunto de intervenções. Entende que múltiplas escalas de atuação permanecem necessárias para dar conta dessa complexidade e, para tanto, permite arranjos institucionais de natureza variada. Nesse sentido, são importantes as palavras do professor Carlos Brandão, quando pontua: O grande desafio da proposta multiescalar é aprender a tratar dialeticamente as heterogeneidades estruturais 69

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental Vol. 13 no 2 Jul/Dez 2014

Superação das desigualdades regionais: o salto de qualidade no processo de desenvolvimento nacional

(produtivas, sociais e regionais) de um país continental, periférico e subdesenvolvido, como o Brasil, a fim de fazer operar essa sua imensa diversidade e criatividade no sentido do avanço social, político e produtivo [...] Nesse contexto, é fundamental construir táticas e estratégias que envolvam um processo delicado de aprendizado conflituoso, que irá requerer o resgate da lógica do projeto e das ações-planejadas, participativas, pedagógicas e politizadas (BRANDÃO, 2007, p. 204205) Todo esse propósito não logrará êxito se não forem valorizados alguns princípios fundamentais da PNDR II, como a solidariedade regional, o fortalecimento do federalismo cooperativo e a transversalidade de políticas. Tais princípios refletem o avanço conceitual da política naquilo que a literatura chama de “terceira geração de políticas regionais”. Esse novo direcionamento é fruto das avaliações sobre o processo de desenvolvimento endógeno que recaíram, em última instância, no entendimento de que a globalização imporia uma competição entre sistemas industriais regionais e que, por isso, as políticas de desenvolvimento regional não poderiam ser exclusivamente locais. A coordenação horizontal de vários atores (por meio de políticas do tipo bottom-up) deveria ser complementada pela coordenação vertical entre os diversos níveis de ação (por meio de políticas do tipo topdown) (CROCCO; DINIZ, 2006, p. 14-15). A terceira geração de políticas regionais, dessa forma, propugna uma síntese de ações exógenas e endógenas. Em essência, a PNDR II vem considerar a atuação em diferentes escalas, respeitando os princípios constitucionais de autonomia de estados e municípios, mas reconhecendo o importante papel do Governo Federal na definição estratégica e no suporte aos governos subnacionais, por meio do conjunto de políticas públicas que recaem sobre o território e que devem se dar de forma coordenada. Segundo Steinberger (2006, p. 30), o Estado atual não pode desconhecer a existência de poderes plurais, sejam federativos ou de interesses contra-hegemônicos de novos atores sociais. A expectativa é a de adoção de um planejamento compartilhado entre o Estado e a sociedade, por meio da construção de pactos e compromissos mútuos. Em meio a esse esforço de coordenação e integração de políticas no território, tanto

70

horizontal quanto verticalmente, a PNDR II propõe um sistema de governança que reconhece e valoriza as instituições regionais como Sudam, Sudene e Sudeco, os governos estaduais, os consórcios públicos e demais instâncias sub-regionais que representam hoje, no Brasil, o esforço de cooperação autônoma na escala sub-regional. A estratégia adotada para reforçar a intersetorialidade da política foi a instituição de agendas bilaterais de compromissos, denominadas de pactos de metas. Trata-se de um instrumento que dá maior agilidade e confere pragmatismo no diálogo com outras agências governamentais e permite um aprofundamento maior da relação institucional. Para que essa aproximação não fique somente na dimensão pessoal e nem suscetível a decisões pessoais de dirigentes, a política institucionaliza esse novo instrumento tanto nos seus documentos de referência quanto na proposta de lei, na qual aparecem os eixos setoriais de intervenção prioritária, essenciais para alavancar processos regionais de desenvolvimento, quais sejam: educação, C&T, estrutura produtiva, infraestrutura, acesso a serviços e sustentabilidade.

Devemos destacar ainda que a PNDR II propõe o aprimoramento dos critérios de seletividade setorial e territorial dos mecanismos de financiamento explícitos da política, que são os fundos constitucionais, os de desenvolvimento e os incentivos fiscais. Também retoma a proposta de criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR), enquanto fundo público complementar, de caráter não reembolsável, para apoio aos entes e instituições nas ações e projetos de desenvolvimento regional. Para que possamos garantir o salto de qualidade necessário ao processo de desenvolvimento do Brasil, há que se investir na diversidade e no potencial das regiões. Para tanto, superar os gargalos que minimizam oportunidades às populações e territórios constitui a principal motivação de reformulação da PNDR. Construir o consenso político-institucional em torno da priorização do tema no Governo Federal e em meio aos entes federados faz-se necessário, a fim de elevá-la à condição de política de Estado e enquanto parte integrante e prioritária do projeto nacional de desenvolvimento.

Referências AZZONI, Carlos. O desafio de planejar com instrumentos limitados: aparato institucional débil, recursos financeiros escassos, recursos humanos instáveis. In: DINIZ, Clélio Campolina (org.) Políticas de desenvolvimento regional: desafios e perspectivas a luz das experiências da União europeia e do Brasil. Brasília: Ed. UNB, 2007. BACELAR, Tânia. O GTDN - da proposta à realidade: ensaios sobre a questão regional. Recife: Editora UFPE, 1994. BRANDÃO, Carlos. Território e Desenvolvimento: as múltiplas escalas entre o local e o global. Campinas; ed. Unicamp, 2007. BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Avaliação da Política Nacional de Desenvolvimento Regional. Brasília: IICA, 2011. BRASIL. Ministério da Integração Nacional. I Conferência Nacional de Desenvolvimento Regional – documento de referência. Brasília, 2012. Disponível em: www.integracao.gov.br/web/cndr/publicacoes . Acesso 01/11/2013. BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Plano Plurianual (2004-2007). Brasília: 2004. CROCCO, Marco; DINIZ, Clélio Campolina. Bases teóricas e instrumentais da econômia regional e urbana e sua aplicabilidade ao Brasil: uma breve reflexão. In: CROCCO, M.; DINIZ, C. C. (orgs.); Economia regional e urbana: contribuições teóricas recentes. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006. FURTADO, Celso. Pequena introdução ao desenvolvimento. 2ª ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1981. 71

12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 STEINBERGER, Marília (org.). Território,eambiente e políticas públicas espaciais – Introdução. In: STEINBERGER, Marília Revista de Políticas Públicas 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 (org.). Território, ambiente e 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 Gestão Governamentalpolíticas públicas espaciais. Brasília: Paralelo 15 e LGE Ed. 2006.p. 29-82. 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 Vol. 13 no 2 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 Jul/Dez 2014 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 Notas 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 1 Para maior aprofundamento, deve ser consultada a obra Política de Desenvolvimento Regional e Inovação: lições da 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 Superação das desigualdades o salto de 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 experiência europeia, de Antônio Carlosregionais: Filgueira Galvão. 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 qualidade no processo de desenvolvimento nacio2 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 Instituída pelo Decreto nº 4.793, de 23 de julho de 2003. 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 nal 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 3 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 Esses instrumentos encontram-se disciplinados pelo Decreto nº 6.674, de 2008, que regulamenta a 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567 operacionalização dos fundos e a emissão de pareceres técnicos de análise, laudos e declarações relativos aos 12345678901234567890123456789012123456789012345678901234567890121234567

incentivos e benefícios fiscais, no âmbito dos conselhos deliberativos das superintendências de desenvolvimento da Amazônia e do Nordeste, nas suas respectivas áreas de competência. São 13 as mesorregiões diferenciadas: Alto Solimões; Vale do Rio Acre; Bico do Papagaio; Chapada das Mangabeiras; Xingó; Bacia do Itabapoana; Vales do Ribeira e Guaraqueçaba; Grande Fronteira do Mercosul; Metade Sul do Rio Grande do Sul; Seridó; Águas Emendadas; Chapada do Araripe; Vales do Jequitinhonha e do Mucuri.

4

o

São três as regiões integradas de desenvolvimento (Ride): Juazeiro e Petrolina, criada pela Lei Complementar n 113, o de 19/09/2001; Grande Teresina, criada pela Lei Complementar n 112, de 19/09/2001; e Entorno do Distrito o Federal, criada pela Lei Complementar n 94, de 19/02/1998. 5

Adriana Melo Alves é servidora concursada da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) do Governo Federal. Arquiteta e urbanista, mestre em Planejamento Urbano e doutoranda em Geografia. Trabalhou na Secretaria de Programas Urbanos do Ministério das Cidades, onde foi diretora substituta do Programa de Regularização Fundiária. Na Secretaria de Desenvolvimento Regional do Ministério da Integração Nacional, atuou como coordenadora-geral de Programas e Projetos Especiais, diretora de Gestão de Políticas de Desenvolvimento e agora exerce o cargo de Secretária Nacional de Desenvolvimento Regional. E-mail: [email protected] João Mendes da Rocha Neto é servidor concursado da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) do Governo Federal. Geógrafo, mestre em Administração e doutor em Administração Pública, é coordenador-geral de Planos Regionais e Territoriais da Secretaria Nacional de Desenvolvimento Regional do Ministério da Integração Nacional. E-mail: [email protected]

72

Especial Eleições Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental

Por uma política pública de redução de homicídios no Brasil Por Gustavo Camilo Baptista

73

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental Vol. 13 no 2 Jul/Dez 2014

Por uma política pública de redução de homicídios no Brasil

74

Introdução: contexto histórico O presente artigo tem por objetivo apresentar contribuições para o debate acerca das questões de segurança pública por ocasião das eleições presidenciais de 2014. A princípio, é feita uma análise da evolução histórica desta política pública em nosso contexto. Em seguida, pormenorizam-se questões relativas às elevadas taxas de homicídio encontradas no Brasil atualmente, concluindo-se com um elenco de propostas setoriais. A amplitude do termo “segurança pública” origina um problema conceitual na delimitação dessa área. As polícias, principais organizações responsáveis pela implementação de tal política pública, lidam com uma gama bastante diversificada de assuntos. Policiais podem ser vistos ao redor do mundo auxiliando crianças e idosos a atravessar a rua; orientando e fiscalizando o trânsito de veículos; fazendo patrulhamento; investigando homicídios; garantindo o cumprimento de sentenças judiciais de despejo; escoltando políticos; fazendo a guarda de fronteiras, o controle de imigração, a regulação de produtos controlados, ações de prevenção a uso de drogas em escolas; e mediando conflitos intrafamiliares. Tal fato reduz a comparabilidade entre as políticas de segurança pública (MONET, 2001). A diversidade de atividades se relaciona à origem das instituições, que podem, em sua maioria, ser classificadas em duas categorias. Uma delas engloba as instituições policiais que se formaram no período posterior à consolidação dos Estados Nacionais na Europa, por meio do fracionamento dos exércitos nacionais. Esses exércitos passaram a se voltar para o patrulhamento do interior de seus territórios visando à manutenção da ordem pública e do poder real e deram origem a instituições policiais de cunho militar, tais como a Gendarmerie francesa. Uma segunda categoria se relaciona com as necessidades de regulação estatal decorrentes do crescimento das cidades, que originaram instituições municipais de cunho civil. Em alguns casos, elas foram centralizadas em um único corpo nacional, a exemplo da Polícia Nacional francesa; em outros, permaneceram municipais (Estados Unidos) ou regionais (Grã-Bretanha) (MONET, 2001). É comum que as histórias das instituições policiais se relacionem intrinsecamente com a formação de seus Estados Nacionais. As polícias brasileiras foram, em especial, influenciadas pelos conflitos entre concentração e

descentralização de poderes existentes desde a Independência. Essa influência resultou em um fracionamento da área, o que dificulta a implementação de políticas públicas neste campo. Esse fato pode ser percebido pela constatação de que a fundação da maioria das polícias militares brasileiras ocorreu durante os nove anos da Regência. Com a abdicação de Dom Pedro I, em 1831, houve a eclosão de movimentos separatistas e tentativas de golpe de Estado. Como algumas dessas sublevações tinham participação do Exército e da Marinha, a Regência enfraqueceu essas instituições com a criação de forças de segurança interna tais como os Corpos de Guardas Municipais Permanentes, embriões das polícias militares brasileiras (MARIANO, 2004). Os conflitos entre concentração e descentralização do poder também se refletiram no Poder Judiciário. Logo após a abdicação, os liberais, que propunham maior autonomia para as províncias, patrocinaram a criação de um novo Código de Processo Criminal em 1832. Nesse período, por inspiração do Direito Inglês, a instrução de processos criminais passou a ser prerrogativa dos juízes de paz, os quais eram nomeados pelos próprios cidadãos do município. O processo de centralização do Governo de Dom Pedro II levou a um enfraquecimento do Poder Judiciário com sucessivas reformas do Código. Na época, foram criados o inquérito policial e os cargos de delegado de polícia, os quais eram subordinados ao chefe de polícia provincial que, por sua vez, era subordinado ao presidente de província. Passou-se, assim, para o Poder Executivo a atribuição da instrução penal, mas sem retirar os poderes dos juízes de paz e dos promotores de fazer a denúncia, isto é, de representar perante o Poder Judiciário (MENDES, 2008). Com isso, hoje, para se levar um criminoso a julgamento, faz-se necessária a produção de dois processos com fins jurídicos: o inquérito policial (presidido pelos delegados de polícia) e o processo criminal (de responsabilidade do Ministério Público). Esse desenho é criticado, em especial, pelo fato de ser comum investigações criminais ficarem tramitando indefinidamente entre a Polícia Civil e o Ministério Público para pedidos de diligências, quando uma ligação telefônica poderia ser suficiente para encerrar o seu período de instrução (VARGAS, 2014; ENASP, 2014). Destaca-se ainda que a transformação dos governos provinciais em Estados dotados de autonomia fez com

A Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública é uma articulação entre o Ministério da Justiça, o Conselho Nacional do Ministério Público e o Conselho Nacional de Justiça. Sua arquitetura institucional ilustra a necessidade de que políticas públicas nessa área contemplem dois poderes. que, ao mesmo tempo, a única polícia existente até então ficasse subordinada a eles, bem como permitiu que se reestruturassem os antigos Corpos Municipais de Guardas Permanentes com diversas outras denominações (como Força Pública, Brigada Militar, dentre outros). Com tal reestruturação, essas organizações militares estaduais, que passaram a ser dotadas de unidades de cavalaria, de artilharia e até de força aérea, foram utilizadas pelos governadores para ações de segurança interna, para disputas territoriais com outros estados e disputas políticas com o Governo Federal. Como essas organizações não eram de fato polícias, alguns estados – entre eles, São Paulo e Rio Grande do Sul – começaram a criar também Guardas Civis a fim de realizar o policiamento preventivo (MARIANO, 2004). Tanto o Estado Novo quanto a Ditadura Militar tiveram papel decisivo no enfraquecimento das organizações militares estaduais como instrumentos de poder político dos governadores. Assim, elas foram direcionadas menos 75

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental Vol. 13 no 2 Jul/Dez 2014

Por uma política pública de redução de homicídios no Brasil

76

para as questões de “segurança interna” e mais para as atividades de “segurança pública”. Tal processo foi finalizado com a Ditadura Militar, que promoveu, em 1967, a divisão da área de segurança pública entre as polícias militares – como resultado da fusão das organizações militares estaduais com as guardas civis –, que passaram a ser responsáveis pela polícia preventiva, e as antigas polícias, transformadas em polícias civis, com funções de polícia judiciária e administrativa. O Exército também transformou os efetivos das polícias militares em seu contingente de reserva, ao mesmo tempo em que criou uma inspetoria para fiscalizar e restringir a compra de armamentos pelas organizações policiais. Ainda em 1967 foi criado o Departamento de Polícia Federal, que assumiu atribuições até então inexistentes, como: polícia de fronteira, de controle de estrangeiros, dentre outras (SKIDMORE, 1988; COSTA e LIMA, 2014). Após tal contextualização, deve-se destacar que a Constituição de 1988 cristalizou o sistema de duas polícias estaduais criadas pelos militares, mantendo o Departamento de Polícia Federal. Criou ainda duas outras polícias federais: uma vinculada ao patrulhamento de estradas e outra ao de ferrovias (sendo que a última não chegou a ser organizada devido à privatização da rede ferroviária federal). Previu também a criação de guardas municipais sem poder de polícia para proteção dos bens, serviços e instalações das prefeituras. Frente ao exposto, pode-se afirmar que a arquitetura organizacional da segurança pública no Brasil é atípica. Ainda que seja comum a existência de diversas polícias em um mesmo país, elas possuem, em sua maioria, atribuições de polícia preventiva e judiciária concomitantes, diferenciando-se conforme o território (no caso da França, por exemplo, a Gendarmerie cuida do interior do país, enquanto a Polícia Nacional cuida das zonas urbanas), ou de acordo com suas atribuições (nos Estados Unidos, as polícias têm competência sobre diferentes tipos de crimes). Já o Brasil é um raro país que adota o chamado “meio ciclo de polícia”, sendo a polícia militar responsável pela parte preventiva da ação policial e a polícia civil pela parte de investigação criminal (MONET, 2001; MARIANO, 2004). Destaca-se também que o fracionamento do ciclo policial tem prosseguido. Os órgãos periciais em diversos estados ganharam autonomia, constituindo assim uma terceira polícia (em alguns estados denominada Polícia Técnico-Científica). Existem também os casos dos estados

em que, além da existência de uma Secretaria de Segurança Pública e de uma Secretaria-chefe de Gabinete Militar (responsáveis basicamente pela segurança dos governadores e das sedes dos governos), foi dada autonomia ou foram criadas secretarias específicas ora para as polícias militares, ora para as polícias civis. E, por fim, as Guardas Municipais, diante da ausência da promulgação de uma lei complementar que especifique os seus papéis, passaram a exercer também algumas atribuições de policiamento preventivo. Contexto atual Apontam-se as questões supracitadas como empecilhos para a formulação de políticas nacionais nesse setor, sendo que há controvérsias acerca da viabilidade destas sem a realização de mudanças constitucionais. Os esforços do Governo Federal nos últimos 15 anos buscaram, de forma pendular, reequilibrar as relações entre as instituições e os níveis federativos envolvidos (SILVA, 2012; COSTA e LIMA, 2014). Durante o Governo Fernando Henrique Cardoso, a política de segurança, até então secundária, passou a demandar atenção em razão das greves policiais que se alastraram pelo País e do aumento da taxa de homicídios. Nesse período, foi desenvolvido pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI) um Plano Nacional de Segurança Pública, que previu a criação de uma Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) dentro do Ministério da Justiça. A instabilidade política do Ministério da Justiça no período fez com que os militares federais do GSI assumissem a coordenação do plano, o qual partia de uma percepção de que o fracionamento da área de segurança pública exigia a ação articulada entre diversos órgãos federais e estaduais (ZAVERUCHA, 2001). Em outro momento, já no primeiro mandato do Governo Lula, verificou-se uma mudança nos dirigentes da Senasp, que passou a ser conduzida por quadros acadêmicos, policiais e políticos. Manteve-se a política iniciada no governo anterior de fomento por convênios aos governos estaduais, mas ampliaram-se os leques de repasses, abandonando a ênfase na aquisição de equipamentos e enfatizando-se a necessidade de integração entre as polícias e a defesa dos direitos humanos, por meio da criação de um Sistema Único de Segurança Pública (Susp). Ele previa a articulação entre as

diferentes unidades de segurança pública, que deveriam trabalhar como redes de políticas públicas, com a criação, em especial, de Gabinetes de Gestão Integrada (GGI) entre as polícias (SILVA, 2012). Já no segundo Governo Lula, o então ministro da Justiça, Tarso Genro, propôs a criação de uma nova política pública, denominada Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci). Foi proposta uma mudança no paradigma da área, na tentativa de eliminar a dicotomia entre as ações de polícia e o campo da prevenção da violência com o estabelecimento de 94 ações que envolviam todo o Ministério (SILVA, 2012). Dentre as principais ações de prevenção estavam o Projeto Mulheres da Paz e o Projeto de Proteção de Jovens em Território Vulnerável (Protejo). Tais projetos objetivavam a mobilização social em territórios onde houvesse indícios de “descoesão” social de adolescentes em situação de rua, ou expostos à violência doméstica/ urbana, e também de mulheres. Em ambos os projetos eram pagas bolsas, sendo que o de mulheres visava promover a mobilização social. O dos jovens intencionava fortalecer a autoestima, reinseri-los em seu percurso social e desenvolver suas capacidades de conviver pacificamente na sociedade, por meio de capacitações com temáticas que incluíam direitos humanos, gênero e mediação de conflitos (IPEA, 2009). Em que pese o Pronasci ter sido uma iniciativa mais robusta do que as anteriores, ele sofreu uma ampla gama de críticas. Considerou-se que a implementação do programa era dificultada, entre outros fatores, pela combinação de um número grande de ações com temáticas e órgãos responsáveis díspares; falta de clareza nas relações entre as ações previstas e os resultados esperados; e ausência de preocupação com as questões organizacionais das instituições de segurança pública (IPEA, 2009; SILVA, 2012). Por conseguinte, no final do segundo Governo Lula e no Governo Dilma Rousseff, o Pronasci perdeu paulatinamente a sua importância, em grande parte pelos problemas de governabilidade, pela falta de indicadores que atestassem efetividade do programa e pela manutenção das altas taxas de homicídios. A meta era reduzir os homicídios no Brasil para 14 por 100 mil habitantes, mas os índices se mantiveram acima de 25 por 100 mil. 77

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental Vol. 13 no 2 Jul/Dez 2014

Por uma política pública de redução de homicídios no Brasil

78

Assim, houve uma nova mudança de paradigma. Enquanto o Pronasci buscava articulações com estados e municípios para elaboração de projetos que somassem prevenção e repressão qualificada, no Governo Dilma Rousseff os programas e ações passaram a resguardar as atribuições de cada órgão ou ente federado. As ações do Ministério da Justiça passaram a ser focalizadas em suas competências estritas, tais como o combate ao crime organizado. Desse modo, alguns ministérios também começaram a lidar com projetos de prevenção à violência, cabendo destacar o Projeto Juventude Viva, encabeçado pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) (SILVA, 2012). É necessário pontuar quatro iniciativas que se destacaram no período: a criação da Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública (Enasp), o Programa Brasil Mais Seguro, o Programa Crack é Possível Vencer e a Estratégia Nacional de Fronteiras (Enafron). A Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública é uma articulação entre o Ministério da Justiça, o Conselho Nacional do Ministério Público e o Conselho Nacional de Justiça. Sua arquitetura institucional ilustra a necessidade de que políticas públicas nessa área contemplem dois poderes. A Enasp foi estruturada por meio de três grupos de trabalho, sendo o de Persecução Penal o mais relevante para esta análise. Em síntese, foram propostas inicialmente as seguintes metas: identificar as causas de subnotificação de homicídios; concluir os inquéritos policiais de crimes de homicídios instaurados até o dia 31 de dezembro de 2007; e julgar ações penais relativas ao crime de homicídio doloso, distribuídas até 31 de dezembro de 2007 (ENASP, 2014). Para o cumprimento de tais metas cabe destacar, dentre outras ações: a criação, dentro da Força Nacional de Segurança Pública, de uma Força Nacional de Polícia Judiciária composta por policiais civis e peritos criminais que reforçou os trabalhos de investigação nos estados; a capacitação de policiais, de promotores e de outros operadores de justiça; o desenvolvimento de procedimentos de mensuração do fluxo de inquéritos e processos; e a flexibilização de alguns procedimentos policiais e processuais (ENASP, 2014). Já o Programa Brasil Mais Seguro tem como objetivo a redução da criminalidade e, em especial, dos homicídios por meio da qualificação do procedimento investigativo (nesse sentido, ele possui uma articulação com a Enasp

para redução do estoque de inquéritos), do fortalecimento do procedimento ostensivo e da articulação sistêmica. O Programa foi implementado basicamente por meio de convênios com os estados que apresentam regiões com altas taxas de homicídios (Alagoas, Sergipe, Rio Grande do Norte, Paraíba e Goiás) para modernização das polícias civis, militares e das unidades periciais e do deslocamento de efetivos da Força Nacional de Segurança Pública (incluindo equipes de policiais civis e de perícia). Em relação às estratégias adotadas em conjunto com outras pastas, cabe destacar aqui o Programa Crack é Possível Vencer, que envolve em especial os ministérios do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e da Saúde. Nesse Programa, cabe à Senasp o fomento ao policiamento comunitário por meio de viaturas providas de câmeras de videomonitoramento e de tecnologias de menor potencial ofensivo. Também se sobreleva a Estratégia Nacional de Fronteiras (Enafron), na qual os ministérios da Justiça e da Defesa atuam no fortalecimento e na articulação das organizações policiais e militares nos municípios da faixa de fronteira, em especial para o combate aos tráficos de drogas e de armas. Dentro desse contexto, provavelmente o problema mais grave relativo à segurança pública brasileira sejam os crimes letais intencionais, categoria que inclui os homicídios, os latrocínios e as lesões corporais seguidas de morte. Pelos últimos dados do Ministério da Saúde, morreram no Brasil, em 2012, 56.337 pessoas por homicídio, o que resulta uma taxa de 29 homicídios por 100 mil habitantes. Desde 1997, o índice brasileiro oscila entre 25 e 29 homicídios por 100 mil habitantes, um dos mais altos do mundo (UNODC, 2014; WAISELFISZ, 2013, 2014). Ainda que o número de homicídios no Brasil tenha diminuído em algumas regiões, os fatores que parecem estar associados a essa queda não estão claros. Andrade e Diniz (2013) observaram que os crimes de homicídio têm aumentado em regiões que passaram por uma reestruturação das atividades econômicas. Não existe exatamente uma interiorização dos crimes contra a vida, pois eles não aumentaram em todos os municípios com reduzido número de habitantes. A criminalidade tem se concentrado em regiões específicas como algumas cidades de fronteira (Coronel Sapucaia, por exemplo, que é rota do tráfico da maconha que vem do Paraguai) e, em

As dificuldades enfrentadas pelo Ministério da Justiça, desde a redemocratização, para articular os atores desta política pública de forma sistêmica poderiam ser mais facilmente superadas com a constituição de Gabinetes de Gestão Integrada voltados não para resolver a questão da arquitetura organizacional das instituições de segurança pública, mas para a resolução de problemas específicos, como é o caso dos homicídios. especial, em regiões que tiveram uma súbita alteração em suas atividades econômicas (como a região de expansão da soja, no sul do Amazonas e do Pará e no norte do Mato Grosso). Ademais, deve-se considerar que o homicídio é um crime de custo social bastante significativo. Sachsida e Mendonça (2012) estimaram, calculando a produtividade que as vítimas teriam se tivessem permanecido vivas, que os cerca de 50 mil homicídios 79

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental Vol. 13 no 2 Jul/Dez 2014

Por uma política pública de redução de homicídios no Brasil

80

anuais que são observados no País desde 1997 custaram R$ 19,6 bilhões por ano (valores atualizados para maio de 2014). Tais números sugerem que a repressão e a prevenção de homicídios deveriam estar entre as prioridades das polícias estaduais. Assim, é importante sobrelevar que, de uma forma geral, políticas que estabelecem relações entre diversos atores que se ligam como uma cadeia ou rede possuem, por si só, maiores dificuldades para serem implementadas. Para Wildawsky (apud HILL e HUPE, 2002), nesses casos, a cooperação entre atores tem que ser próxima da total, porquanto pequenas falhas de implementação de cada ator levam cumulativamente ao fracasso da política pública. Ainda que não existam estatísticas nacionais acerca da resolução dos crimes de homicídio, pesquisas feitas com amostras em alguns estados revelaram que a porcentagem dos inquéritos policiais que geram pelo menos uma denúncia por parte do Ministério Público (o que não significa ainda que resultarão em uma condenação judicial) é próxima a 15%. Pode-se inferir, por conseguinte, que nossas taxas de esclarecimento são inferiores a de países da Europa (em média 85%), Ásia (80%) e América (50%). A impunidade é assim um fator que termina colaborando para a manutenção dessas taxas (COSTA, 2014; UNODC, 2014). Frente ao exposto, a Enasp tem mostrado que os esforços desta natureza geram alguma melhoria no fluxo de investigação e no processamento de homicídios. Recente relatório mostrou que dos 134.944 inquéritos englobados na meta inicial, que abrangia aqueles instaurados antes de 31 de dezembro de 2007, 43.123 foram finalizados, o que levou a 8.287 denúncias por parte do Ministério Público – um percentual de 19% de esclarecimento, o que não é desprezível considerando que são inquéritos antigos (ENASP, 2014). Ademais, observa-se, por meio de avaliações preliminares, a redução de taxas de homicídios nas áreas abrangidas por alguns programas pontuais da Senasp, como é o caso de Maceió, foco do Programa Brasil Mais Seguro (redução de 20% desde o seu início) e da região de fronteira, foco da Enafron (queda de 11% entre 2012 e 2013). Todavia, são necessários novos estudos para verificar se tais programas realmente estão causando esse impacto.

Propostas Expostas tais questões, surge o seguinte questionamento: “quais ações deveriam ser consideradas para o desenho de uma proposta de redução de homicídios?”. É importante, primeiramente, destacar que todos os estados brasileiros possuem altas taxas de homicídios (superiores a 10 por 100 mil habitantes). Logo, é relevante que os estados tenham unidades especializadas na investigação de homicídios estruturadas e qualificadas para essa atividade em número suficiente, o que ainda não acontece. Tal investigação depende, muitas vezes, da coleta adequada de informações, pois ainda que, em grande parte dos casos, o autor seja conhecido da vítima (cônjuges, parentes, amigos, vizinhos e colegas de trabalho), o inquérito policial não resulta em um indiciamento pela falta de recursos materiais e de pessoal (COSTA, 2014). O fato de que parte significativa dos crimes letais intencionais tenha como autores pessoas conhecidas pela vítima mostra a importância de serem incluídos numa estratégia de redução de homicídios programas e projetos de prevenção. Ressalva-se que, em conformidade com a Pesquisa Nacional de Vitimização, os crimes mais frequentes no Brasil são os contra a pessoa, tais como as agressões (14,3%) e a discriminação (10,7%). Sendo assim, devem ser promovidas ações focadas que consigam articular as polícias militares e civis e as guardas municipais com organizações voltadas para a prevenção à violência, em especial contra grupos vulneráveis, visto que estas possuem mais efetividade do que aquelas que são feitas de forma isolada (ANDRADE e PEIXOTO, 2007). Além disso, o fato de a dinâmica dos homicídios ser influenciada pela modificação das atividades econômicas dificulta a previsibilidade por parte dos governos estaduais. Em tal contexto, a ampliação da Força Nacional de Polícia Judiciária seria uma alternativa para auxiliar os estados que não possuem um número razoável de unidades especializadas nesse crime a terem tempo para estruturá-las. Tal constatação coaduna com as reflexões de Beato e Zilli (2014) acerca da existência de um padrão no desenvolvimento das estruturas organizacionais criminosas que impactam na taxa de homicídios em uma região. Em síntese, os homicídios crescem à medida que grupos de transgressores passam a se organizar e a disputar o monopólio de determinada atividade criminal.

Quando tal disputa cessa, com a vitória ou com o acordo entre os grupos mais organizados (que sobreviveram às disputas e passaram a ter maior apoio de policiais corruptos cooptados), a taxa de homicídios cai, pois a violência passa a prejudicar a lucratividade das atividades criminais, que se tornam estruturadas sob uma perspectiva empresarial. Fatores exógenos, como o surgimento de novas drogas, ações de repressão policial qualificada e de combate à corrupção, flutuações nos mercados ilícitos, podem então fazer com que o monopólio ou oligopólio cesse e voltem a ocorrer disputas, aumentando novamente as taxas de homicídio. Ações pontuais de redução de homicídios podem, ao interferir nos mercados e nas estruturas das organizações criminosas, levar a oscilações das taxas de diversos crimes que precisam ser analisadas com conhecimentos especializados. Sendo assim, é relevante o fomento ao desenvolvimento de sistemas de dados e observatórios de análise criminal para o entendimento qualificado das oscilações dos indicadores. Também deve ser considerada a necessidade de revisão do Código de Processo Penal, com modificações pontuais nas atribuições da Polícia Civil, do Ministério Público e do Poder Judiciário. O objetivo das mudanças seria encontrar meios não apenas para desafogar os estoques processuais, como também para tentar diminuir os gargalos existentes e garantir celeridade nas punições. Por fim, deve-se considerar que a adoção de uma política pública nacional de redução de homicídios é uma medida que, tendo em vista as elevadas taxas nacionais deste tipo de crime, deveria ser considerada prioritária frente a outras frequentemente apontadas como mais relevantes. Ações de combate ao tráfico de drogas, por exemplo, possuem pouca efetividade, pois os preços das drogas em sua maioria são inelásticos, isto é, não são impactados pelo aumento de apreensões (KOOP, 1998). A adoção de uma política pública com esse objetivo, todavia, é limitada pela histórica divisão de atribuições entre as organizações policiais (e em especial entre as polícias civis e militares), o Poder Judiciário e outros órgãos vinculados com políticas de prevenção, bem como com as oscilações na divisão de tarefas entre os entes federativos. As dificuldades enfrentadas pelo Ministério da Justiça, desde a redemocratização, para articular os atores desta política pública de forma sistêmica poderiam ser mais facilmente superadas com a constituição de Gabinetes de 81

123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 Gestão voltados não para RevistaIntegrada de Políticas Públicas e resolver a questão da conseguinte, como o próprio surgimento da Força Nacional 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 arquitetura organizacional das instituições de segurança de Segurança Pública, tendem a ser mais bem-sucedidas em 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 Gestão Governamental 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 pública, mas para a resolução de problemas específicos, curto prazo, podendo ser realizadas paralelamente à 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 Vol. 13 no 2 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 como é o caso dos homicídios. Reformas incrementais, por discussão de propostas de reestruturação mais complexas. 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 Jul/Dez 2014 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 Referências 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 Por uma política pública de redução 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 ANDRADE, L. T.; DINIZ, A. M. A. A reorganização espacial dos homicídios no Brasil e a tese da interiorização. Revista 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 de homicídios noPopulacionais, Brasil 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 Brasileira de Estudos São Paulo, v. 30, supl. 2013. 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 ANDRADE, M. V.; PEIXOTO, B. T. Avaliação econômica de programas de prevenção e controle da criminalidade no Brasil. 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 Belo Horizonte, UFMG/Cedeplar, 2007. 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901 123456789012345678901234567890121234567890123456789012345678901

BEATO, C.; ZILLI, L. F. Organização social do crime In: LIMA, R. S.; RATTON, J. L. AZEVEDO, R. G. (orgs.) Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo, Contexto, 2014, COSTA, A. T. M. A investigação de homicídios no Brasil. (no prelo). São Paulo, 2014.

COSTA, A. T. M.; LIMA, R. S. Segurança Pública. In: LIMA, R. S.; RATTON, J. L. AZEVEDO, R. G. (orgs.) Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo, Contexto, 2014, ENASP (Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública). Meta 2: a impunidade como alvo. Diagnóstico da Investigação de Homicídios no Brasil. Disponível em http://www.cnmp.mp.br/portal/images/stories/Enasp/ relatorio_enasp_FINAL.pdf [acessado em 8 de junho de 2014]. HILL, M.; HUPE, P. Implementing Public Policy. London: Sage Publications, 2002. IPEA. Brasil em desenvolvimento: Estado, planejamento e políticas públicas. Brasília, IPEA, 2009. KOPP, P. A economia da Droga. Bauru, EDUSC. 1998. MARIANO, B . D. Por um novo modelo de polícia no Brasil: a inclusão dos municípios no sistema de segurança pública. São Paulo, Editora Perseu Abramo, 2004. MENDES, R. L. T. A invenção do Inquérito Policial brasileiro em uma perspectiva histórica comparada. R.SJRJ. Rio de Janeiro, nº 22, p. 147-169. 2008. MONET, J.-C. Polícias e sociedades na Europa. Tradução de Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo, EDUSP, 2001. SACHSIDA, A.; MENDONÇA, M. J. C. Evolução e determinantes da taxa de homicídios no Brasil. Texto para Discussão. Brasília, IPEA, 2012. SILVA, F. S. “Nem isto, nem aquilo”: trajetória e características da política nacional de segurança pública (2000-2012). Revista Brasileira de Segurança Pública. São Paulo v. 6, n. 2, 412-433 Ago/Set 2012 SKIDMORE, T. Brasil: de Castelo a Tancredo. 2ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988. UNODC. Global Study on Homicide 2013: trends, contexts, data. Viena, United Nations, 2014. VARGAS, J. Fluxo do sistema de justiça criminal. In: LIMA, R. S.; RATTON, J. L. AZEVEDO, R. G. (orgs.) Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo, Contexto, 2014. WAISELFISZ, J. J. Homicídios e juventude no Brasil: Mapa da Violência 2013. Brasília, Secretaria Geral da Presidência da República, 2013. WAISELFISZ, J. J. Prévia do Mapa da Violência 2014. Os jovens do Brasil. Disponível em http:// www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Previa_mapaviolencia2014.pdf. [acessado em 18 de junho de 2014].

Gustavo Camilo Baptista é servidor concursado da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) do Governo Federal. É doutor em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília; mestre em Educação e Psicólogo pela Universidade de São Paulo. Atualmente é Coordenador Geral de Pesquisa e Análise da Informação da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça. E-mail: [email protected] 82

Entrevista Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental

Servidores Públicos e Participação Social Daniel Avelino e Fernanda Machiaveli

* Entrevista realizada em 13 de junho de 2014. 83

Daniel Avelino e Fernanda Machiaveli Fernanda Machiaveli Morão de Oliveira é graduada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em ciência política pela mesma universidade. Foi aluna especial na Universidade de Harvard no programa de aperfeiçoamento em política comparada. Foi consultora da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em projeto da Controladoria-Geral da União (CGU) sobre transparência e acesso a informações públicas. Atuou como docente nos cursos de Formulação e Análise de Políticas Públicas na Fundação Getúlio Vargas (FGV-Brasília); e de Ciência Política e Política Pública na Faculdade de Direito Paulista, em São Paulo, e no Centro Universitário do Distrito Federal. Entrou na carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental em 2011 (16ª turma). Atualmente, exerce o cargo de chefe de gabinete na Secretaria Executiva da Secretaria-Geral da Presidência da República e, neste posto, está diretamente envolvida na Política Nacional de Participação Social, da qual o Fórum Interconselhos é uma das frentes. Daniel Pitangueira de Avelino é formado em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e doutor em Política Social pela Universidade de Brasília (UnB). Entrou na carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental no concurso de 2006 (11ª turma). Atua na Secretaria Nacional de Articulação Social, da Secretaria-Geral da Presidência da República, engajado, entre outras responsabilidades, na iniciativa do Fórum Interconselhos. No dia 23 de junho (Dia do Serviço Público, conforme as Nações Unidas), representou o Governo Brasileiro ao receber o Prêmio das Nações Unidas de reconhecimento pela excelência em serviços públicos, entregue na Coreia1.

84

Nesta entrevista exclusiva à ResPvblica, Fernanda Machiaveli e Daniel Avelino relembram o processo de elaboração da Política Nacional de Participação Social, analisam o papel do Fórum Interconselhos e apontam os avanços e desafios do sistema de participação social brasileiro. ResPvblica: Inicialmente, gostaríamos de conhecer um pouco a trajetória profissional de vocês. Como foram suas experiências profissionais antes de se tonarem EPPGG, o que os motivou a entrar na carreira e em quais políticas públicas trabalharam como gestores até agora? DANIEL AVELINO: Quando completei 18 anos já estava no serviço público. Passei no primeiro concurso aos 17 anos, não tinha nem idade para assumir. Antes de vir para Brasília como EPPGG em 2006 (11ª turma), eu já fazia parte da carreira estadual de gestor de Sergipe. Fui da primeira turma e, até onde eu sei, essa foi única turma de gestor de Sergipe que participou de curso de formação na Escola Nacional de Administração Pública (Enap), em 2002, aqui em Brasília. Fizemos um curso de formação com uma carga horária maior do que a do curso para gestores do Governo Federal que eu fiz em 20063. Estudamos com a turma de EPPGG federal de 2002 e depois voltamos para Sergipe, para exercer a função, trabalhando no governo estadual. Fiquei lá durante quatro anos e depois voltei para Brasília, como gestor federal, em 2006. Antes de ser gestor já havia ocupado outros cargos no Tribunal Eleitoral na Bahia e na Caixa Econômica Federal. As atribuições da carreira e as possibilidades de atuação dentro do Poder Executivo foram as principais motivações. O Poder Executivo faz com que as pessoas com uma visão mais idealista de transformação da sociedade, ou que desejam interferir nos problemas sociais, sejam atraídas para uma carreira como essa. Essa visão idealista da carreira de gestor é o que atrai. No governo estadual também é possível, mas no Governo Federal temos uma posição mais privilegiada em relação ao pensamento e ao planejamento das políticas de caráter mais nacional. Como gestor estadual, passei quatro anos em Sergipe na Secretaria Estadual de Educação, uma área muito importante e muito interessante para atuação de gestor.

Quando vim para Brasília, como EPPGG, fui para o Ministério da Educação (MEC), onde trabalhei durante vários anos. Lá tive a chance de ser conselheiro do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) e interagir com vários outros colegiados – como o Conselho Nacional de Educação (CNE)–, sempre representando o Governo Federal. Passei dois anos no Ministério da Justiça, justamente quando estavam reformulando o Conselho Nacional de Segurança Pública. Fui convidado para ajudar nesse processo de reestruturação, alcancei ainda a primeira Conferência Nacional de Segurança Pública. Estive depois afastado da carreira por um curto período4, para dar aulas na Universidade Federal da Bahia. Depois surgiu a oportunidade de trabalhar na Presidência da República, aí eu decidi voltar para atuar nessa área de participação social, onde estou até hoje. FERNANDA MACHIAVELI: Fiz o último concurso para EPPGG, sou da 16ª turma, e entrei na carreira com alguma experiência profissional. Antes mesmo de me formar, trabalhei em uma cooperativa de engenheiros, arquitetos e cientistas sociais que atuava com incubação de cooperativas na prefeitura de São Paulo e com assessoria para movimentos sociais. Saí para fazer um curso de política comparada (um programa sanduíche) em Harvard, nos Estados Unidos, e quando voltei fui trabalhar como analista política em uma consultoria econômica (Tendências), em São Paulo. Saí de lá para trabalhar na Sabesp, a empresa de saneamento do Estado de São Paulo, na qual fui assessora da Presidência. Depois me mudei para Brasília, por questões familiares, e já morando aqui prestei o concurso para EPPGG. Como demoraram muito para me chamar, terminei meu mestrado e comecei a trabalhar para organizações da sociedade civil de São Paulo, representando-as aqui em Brasília, no Congresso Nacional. Eu representava a Conectas, a Pastoral Carcerária e o Instituto Sou da Paz, em um programa da Open Society sobre justiça criminal, com o objetivo de influenciar a agenda do Congresso. Na área do sistema penitenciário, por exemplo, acompanhei a tramitação de dois projetos de lei (PL) que eram do nosso interesse: o PL que alterou o código de processo penal, instituindo novas medidas cautelares, e o PL da remissão de pena por estudo. O trabalho era informar os parlamentares, ajudá-los a formar opinião do ponto de vista dos direitos humanos. Estava trabalhando lá e dando 85

aulas. Também fiz consultoria para a Controladoria-Geral da União. Fizemos uma pesquisa com os gestores públicos para saber como eles viam o acesso a informação em seu órgão, analisar a cultura institucional em cada um dos ministérios e pensar que tipo de trabalho teria de ser feito na hora que a Lei de Acesso à Informação (LAI) fosse aprovada. A ideia era ter um diagnóstico para, na sequencia, sensibilizar os servidores para que a LAI funcionasse. Enfim, minha experiência foi mais ampla no terceiro setor. O que me motivou a fazer o concurso para EPPGG foi a oportunidade de fazer algo que eu gosto e acredito em Brasília. A carreira tem semelhança com o que já vinha fazendo em outros setores. Nunca planejei virar servidora pública, mas esse foi o caminho para continuar fazendo o que eu acredito. Ao final do curso de formação, a Enap e o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão - MP fizeram um processo bastante positivo na nossa turma: tentar conciliar as trajetórias das pessoas com as vagas disponíveis. Era por ordem de classificação e eu tive a possibilidade de escolher entre algumas opções dentro do grupo de governo. Os três primeiros escolheram a Casa Civil e eu escolhi a Secretaria-Geral da Presidência da República. Tinha trabalhado em processos participativos promovidos pela Secretaria-Geral representando a sociedade civil, mas conhecia pouco o trabalho da pasta. Foi uma escolha para dialogar com as organizações da sociedade civil, escolha por um espaço plural. ResPvblica: E como é a atuação dos EPPGGs na Política Nacional de Participação Social? FERNANDA MACHIAVELI: Atualmente, há 15 EPPGGs na Secretaria-Geral. Três de nós estamos envolvidos, mais diretamente, com a Política Nacional de Participação Social, junto com vários outros servidores da SecretariaGeral e de outros órgãos. Trata-se de uma política formulada a partir de uma série de diálogos promovidos pela Secretaria Nacional de Articulação Social com diversos atores da sociedade civil. A Política Nacional de Participação Social vem coroar um longo processo de amadurecimento das nossas instâncias participativas, estabelecendo diretrizes gerais para cada uma delas. Além disso, a Política inova ao reconhecer novas formas de participação social pela internet e as próprias ouvidorias como instâncias de participação. 86

Ter gestores na equipe faz diferença justamente por essa habilidade de traduzir as demandas para caminhos viáveis dentro da administração pública. Identificamos os problemas e o desafio é achar uma solução dentro do nosso ordenamento jurídico e da nossa estrutura administrativa. A grande novidade da Política Nacional de Participação Social é dar uma diretriz para todos nós que atuamos na administração pública federal que, ao tomarmos decisões de grande impacto para a sociedade, devemos considerar os mecanismos de participação social. A PNPS estimula os gestores públicos a considerarem esses espaços em todo o ciclo de formulação de políticas públicas e determina que sejam publicados relatórios anuais de avaliação sobre a utilização desses mecanismos de participação por cada órgão. Como há vários níveis de decisão, alguns precisam de mais consulta, outros menos. Precisamos ter clareza sobre a importância da participação da sociedade na formulação das políticas públicas. É necessário que as demandas da sociedade sejam ouvidas na definição de uma norma, que afeta a vida das pessoas. Os gestores atuaram de forma muito comprometida nesse processo. Fizemos um trabalho muito colaborativo entre as secretarias finalísticas e a Secretaria Executiva para termos um texto juridicamente correto, que refletisse as demandas da sociedade e, ao mesmo tempo, fosse factível para a administração pública. Foi muito bom poder trabalhar com isso na Secretaria-Executiva da SecretariaGeral da Presidência da República.

DANIEL AVELINO: A Secretaria-Executiva da SecretariaGeral da Presidência da República, além de tentar construir algo juridicamente aceitável e politicamente defensável, teve um papel fundamental no processo de articulação política. A Política Nacional de Participação Social precisou passar por vários debates na tentativa de construir posições consensuais mesmo dentro do governo. O fato de nós, como carreira, estarmos em vários órgãos da administração pública, de termos uma rede de gestores, ajuda bastante. Também foi fundamental a existência de gestores na Secretaria-Geral que já haviam trabalhado em outros órgãos. Profissionais como a Fernanda Machiaveli, que já tinha um background de articulação política, de contato com organizações da sociedade civil, fizeram toda a diferença, assim como o papel articulador da SecretariaGeral, dentro do governo, bastante desenvolvido em 2011 com o Fórum Direito e Cidadania, que ajudou a aumentar a credibilidade do órgão. Tudo isso faz com que sejamos vistos como bons mediadores. As pessoas não estão lá defendendo posições contra isso ou aquilo, mas a favor de algo que pode ser construído coletivamente, por consenso. Essa Política Nacional de Participação Social é um bom exemplo de um consenso que construímos, graças ao trabalho e empenho de todos os envolvidos. FERNANDA MACHIAVELI: Ao longo do processo, em certo momento, tivemos uma “minuta ideal”, fruto de consulta pública. Mas essa minuta precisava ser pactuada com os demais ministérios que também são afetados por essa política. Essa etapa de pactuação política junto com a Casa Civil foi muito importante. Agora, no debate público, a gente vê como essa etapa foi crucial. Foi esse processo que tornou a política mais passível de implementação, mais ajustada à realidade: um passo do tamanho da capacidade do Governo Federal de implementar. ResPvblica: Como vocês têm visto a atuação dos Conselhos e a evolução da participação social nos órgãos governamentais? FERNANDA MACHIAVELI: É possível realmente observar a evolução da participação social em cada um dos órgãos. Há um estudo do IPEA que aponta o aumento das interfaces socioestatais nos programas do governo. As áreas sociais são as mais avançadas no aspecto participativo. As áreas de infraestrutura e econômicas

ainda podem avançar mais. Hoje temos 35 conselhos de participação social e cinco comissões com o mesmo caráter. Há outros conselhos que não são espaços de participação social e, por isso, não estão nessa contagem. Os atos normativos de constituição de cada conselho determinam o funcionamento e a composição desses colegiados. Essas regras têm sido aprimoradas. Um bom exemplo é o Conselho Nacional dos Direitos Humanos. Ele era um conselho de notáveis, de intelectuais que pensavam os direitos humanos. Os movimentos de direitos humanos demandaram mais pluralidade, identificando que a existente ali não era suficiente. Uma lei aprovada no Congresso Nacional e sancionada pela Presidenta Dilma Rousseff tornou esse conselho um espaço ainda mais plural, no qual se misturam representantes do Senado e da Câmara e representantes de organizações de defesa dos direitos humanos. DANIEL AVELINO: Quando o conselho trata de um tema relevante para a sociedade, a tendência é que ele seja ocupado por ela. Isso significa que a sociedade vai brigar para fazer parte, vai se esforçar para estar representada naquele conselho. Mesmo que o ato normativo de criação do colegiado não determine aquela pluralidade, haverá um esforço da própria sociedade para mudar esse ato. Então, os conselhos são arenas das quais a própria sociedade se apropria. FERNANDA MACHIAVELI: Há grupos, dentro dos conselhos, que disputam entre si. No Conselho Nacional de Juventude (Conjuve), estão representadas várias juventudes. Eventualmente, algumas organizações podem até ter uma simpatia maior pelo governo, enquanto outras são extremamente críticas. Justamente, uma das diretrizes da política é que haja diversidade de atores. Alguns conselhos são deliberativos. O Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) é o mais forte no sentido normativo. O Conselho Nacional da Criança e do Adolescente (Conanda) delibera sobre o Fundo dos Direitos das Crianças e Adolescentes, ou seja, gere os recursos essenciais para as políticas públicas dessa área. Nós insistimos para criar a Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica com caráter deliberativo, mas a sociedade pleiteou que ela fosse apenas consultiva. Eles exigiram dois terços de representação da sociedade civil, mas de caráter 87

consultivo, como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). O argumento era que a responsabilidade pelas decisões deveria continuar sendo do governo. DANIEL AVELINO: Em alguns conselhos, o colegiado tem poder de decisão, como no Conselho Nacional de Saúde (CNS), por exemplo, sendo o governo apenas uma parte. Na maioria dos casos, no entanto, o governo propõe e o conselho é apenas consultado. ResPvblica: Como você avalia as atuações dos conselhos que você participou? DANIEL AVELINO: No Conselho Nacional de Educação, eu não fui conselheiro. Atuei no apoio, oferecendo subsídios para os debates. O CNE tem uma responsabilidade muito importante, estabelecida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) – Lei nº 9.394/1996. É ele que regulamenta a LDB e soluciona dúvidas na interpretação dessa lei. Tem caráter normativo muito forte e uma composição bem diversificada, com representantes de instituições de ensino públicas e privadas, representantes estudantis, das categorias dos trabalhadores e de outros segmentos da sociedade envolvidos com educação. É deliberativo, decide sobre credenciamento de instituições, reconhecimento de cursos. Essas competências do CNE chegam a ser mais fortes e mais preponderantes que as do próprio MEC, em alguns temas. E é tudo muito equilibrado. Isso se observa em vários conselhos. Fui conselheiro, representando o Governo Federal, no Conselho Nacional de Assistência Social. Na minha tese de doutorado analisei o processo decisório dentro do Conselho Nacional de Assistência Social, tentando testar a hipótese de que talvez exista uma prevalência das pautas e das demandas do Governo Federal em relação ao conjunto das deliberações do colegiado. O CNAS também é um conselho forte, com papel normativo, com tradição. O que eu percebi, investigando as deliberações, as atas e os registros de fala durante as reuniões é que há um grande equilíbrio no Conselho. Ele tem composição paritária e há, do ponto de vista de seu funcionamento e das decisões que toma, um equilíbrio também. Ele aprova, por exemplo, o orçamento da área social. Das decisões que são tomadas pelo CNAS, está mais ou menos dividida em partes iguais a presença de iniciativas do governo e 88

Os gestores podem contribuir para encontrar soluções técnicas viáveis, fazendo o vínculo entre as demandas mais políticas, tanto as que vêm de cima quanto as que chegam da sociedade. iniciativas da sociedade civil. O que eu descobri, no entanto, de maneira mais surpreendente é que o CNAS é um espaço altamente intenso em formação de consensos. São poucos, muito poucos mesmo, os assuntos que chegam a ir para uma votação, ou em que há uma contradição muito forte entre um grupo e outro. A grande maioria das deliberações é tomada por consenso. Isso significa que os conselheiros vão discutindo durante as reuniões, fazendo propostas sobre propostas e mais propostas até chegarem a um desenho que acaba atendendo razoavelmente a todas as partes interessadas. A observação pode ser extrapolada para os demais conselhos. Essa pode ser uma grande característica dos conselhos nacionais: ser um espaço de construção de consensos entre segmentos diferentes, governamentais ou não. Há conselhos onde as posições podem ser mais marcadas e mais discrepantes, mas em geral eles têm esse poder de oferecer a oportunidade de criar consensos, por meio do diálogo, em torno de temas que interessam tanto à sociedade quanto ao governo. O que eu percebo que aconteceu no Brasil, em termos de participação social, foi o desenvolvimento desses espaços participativos, que são os conselhos, de forma muito vinculada, muito dependente das políticas de cada área. Então, cada política, cada legislação própria de cada ministério, de cada área, acabou ditando as regras de seu conselho. Por isso, há perfis muito diferentes. Existem conselhos com perfil muito aberto para a sociedade, nos quais a própria sociedade indica, elege seus

representantes. Em contrapartida, outros conselhos ainda são um pouco fechados e há indicação governamental até dos representantes não governamentais. Na área de cultura, por exemplo, há uma tendência de eleger os conselheiros durante a Conferência Nacional de Cultura, o que em minha opinião é o melhor modelo. No entanto, na maioria dos colegiados, o processo eleitoral dos membros e as realizações das conferências acontecem em momentos distintos. É lógico – e dentro da linha do que a gente defende na Política Nacional de Participação Social – que o ideal é que esses espaços sejam integrados. Quanto mais íntimo um conselho estiver da conferência da sua área, maiores os ganhos de ambos os lados. A conferência multiplica o potencial de atrair novos atores para aquele debate. O conselho é democrático e inclusivo, mas pelo próprio tamanho da sua composição ele restringe um pouco o número de entidades e conselheiros que serão contemplados. ResPvblica: Como podemos evitar que os conselhos, em vez de fortalecer a participação da sociedade civil, a enfraqueçam? Por exemplo: alguém – indivíduo ou coletivo – traz uma questão e o governo responde que quem fala em nome da sociedade civil é o conselho. Isso pode acontecer? DANIEL AVELINO: Em primeiro lugar, a sociedade tem de ter autonomia para escolher seus representantes. O ideal é que os representantes da sociedade civil nos conselhos sejam escolhidos pela própria sociedade civil, e não indicados pelo governo. Que sejam eleitos pela sociedade em um processo seletivo o mais amplo possível para que realmente representem a visão da sociedade naquele setor. E se a sociedade naquele setor tem uma visão mais próxima do governo, é natural que faça alianças com o governo. Em segundo lugar, não vale a pena depositar 100% de nossas esperanças nos conselhos. O conselho é um espaço participativo, mas há vários outros: o próprio Poder Legislativo, as conferências, os processos de consulta popular, as audiências públicas etc. Então, independentemente de quem está sentado na cadeira do conselho, se aquele colegiado tiver uma prática de realizar audiências públicas e consultas públicas, a sociedade vai estar representada, não necessariamente pelo conselheiro, mas com atuação direta na pauta do conselho.

FERNANDA MACHIAVELI: Felizmente estamos com a democracia instituída e elegemos nossos representantes para os Poderes Executivo e Legislativo. Mas para algumas causas, algumas preferências são muito intensas. Há temas que nos movem mais, que nos interessam mais. Quando uma pessoa quer dedicar muito tempo e muita energia a um tema específico – que tem um impacto muito claro na vida dela –, certamente vai se envolver mais e participar mais, e é preciso ter esses canais de participação abertos. DANIEL AVELINO: Quem tem mais disponibilidade, quem tem mais preferência por um canal ou por outro, não é o governo que vai identificar. A política permite um cardápio de canais diferentes e cada um vai participar conforme o seu perfil. Tem gente que quer ser conselheiro, tem gente que prefere criticar pela internet: tudo isso são formas legítimas que precisam ser incorporadas pelo sistema. Recentemente, por exemplo, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) de São Paulo teve sua pauta atendida e ganhou as manchetes, mas há tantos outros pedidos atendidos! Movimentos rurais, indígenas, comunidades da floresta... Todos os dias recebemos uma pauta nova. Estamos fazendo processamento ágil disso no governo e procurando dar respostas a todos. FERNANDA MACHIAVELI: Para dar as respostas e estabelecer um fluxo administrativo para esse processo, temos a Mesa de Monitoramento de Demandas Sociais, que existe desde 2012, mas foi instituída pelo mesmo decreto da Política Nacional de Participação Social. As pautas chegam, são cadastradas no sistema, enviadas aos ministérios responsáveis e todas recebem respostas. As pautas que chegam para a Presidenta da República agora têm fluxo e transparência no tratamento. A Política Nacional de Agroecologia, por exemplo, foi uma demanda dos movimentos do campo. Motivado por uma demanda social, um grupo de trabalho intergovernamental foi criado. Dez ministérios trabalharam e o Plano Nacional Brasil Agroecológico foi lançado no ano passado. É um método para transformar as demandas da sociedade em políticas públicas. Não se trata de atender no varejo, demandas de alguns grupos pontualmente; mas sim transformar demandas específicas em políticas universais. Há vários exemplos disso. O Sistema Único de Saúde (SUS), o Sistema Único de Assistência Social (Suas), a Lei Maria da Penha, o Programa Cultura Viva, a Lei de Acesso à 89

Informação, o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, entre outros: todas essas conquistas são frutos de processos que começaram com a mobilização de algum grupo, a partir de uma demanda social que ganhou espaço, foi processada pelo Estado e gerou como output uma política pública, uma política para toda a sociedade. Então, esse é o processo democrático de construir políticas públicas. O processo não pode partir apenas da cabeça autocrática de burocratas. Também não podemos acreditar que só a Presidenta da República tenha capacidade de entender o que são as demandas da sociedade. É preciso dialogar constantemente em todos os níveis, ou a gente perde o vínculo. ResPvblica: Qual seria o papel dos gestores nesse processo de formulação de políticas públicas a partir de demandas vindas da sociedade? Ter EPPGGs na equipe faz alguma diferença? FERNANDA MACHIAVELI: Ter gestores na equipe faz diferença justamente por essa habilidade de traduzir as demandas para caminhos viáveis dentro da administração pública. Identificamos os problemas e o desafio é achar uma solução dentro do nosso ordenamento jurídico e da nossa estrutura administrativa. Fazer esse vínculo entre o político e o técnico é um papel importante que todos os gestores desempenham, e todos têm condições de fazer isso. Os gestores podem contribuir para encontrar soluções técnicas viáveis, fazendo o vínculo entre as demandas mais políticas, tanto as que vêm de cima quanto as que chegam da sociedade. Essa capacidade de traduzir as demandas sociais em políticas públicas implementáveis é ampliada pela mobilidade que existe na nossa carreira. Temos na equipe da Secretaria-Geral um EPPGG que veio do Ministério da Educação e ele é quem mais contribui para achar soluções sobre temas da área de educação. Graças a esse tipo de leitura, ao conhecimento dos programas que existem em cada ministério, é possível fazer o link com as demandas que chegam à SecretariaGeral. Temos outro EPPGG que veio do Ministério da Cultura e faz todo o vínculo dos movimentos culturais com as políticas que existem na área. Temos uma EPPGG que veio dos Direitos Humanos e outros que vieram de outras áreas. Há uma diversidade muito grande ali. Vemos com clareza a diferença que faz eles terem passado por 90

Vemos com clareza a diferença que faz eles terem passado por esses órgãos antes de virem para a Secretaria-Geral e o quanto isso ajuda na construção de polícias e soluções. esses órgãos antes de virem para a Secretaria-Geral e o quanto isso ajuda na construção de políticas e soluções. De forma nenhuma quero dizer que as pessoas que não são da nossa carreira não sejam também altamente qualificadas. Felizmente, temos na Secretaria-Geral um corpo muito qualificado de pessoas que não fazem parte da burocracia, mas que foram selecionadas por suas habilidades técnicas e são competentes. Mas os gestores (EPPGG), em geral, têm essa capacidade de fazer essa junção, de fazer essa tradução do político e do técnico. Você não pode também ter só a visão técnica. É necessário fazer a junção entre os dois mundos para conseguir fazer a máquina girar. ResPvblica: O Governo Federal vislumbra propor algum tipo de padronização aos diversos conselhos, de diretrizes mais amplas, como paridade para questões de gênero? DANIEL AVELINO: Acho que uniformização e imposição de modelos fechados estão fora de cogitação. As áreas de políticas públicas têm suas legislações específicas, por vezes até na Constituição Federal. Podemos fazer estímulos para que os conselhos se tornem mais participativos, mais plurais. Podemos fazer um trabalho de indução forte para, por exemplo, melhorar a equidade de gênero. FERNANDA MACHIAVELI: Nossa próxima tarefa é listar todas as instâncias de participação social existentes, que são muitas. Será um mapa e, a partir desse mapa, talvez

possamos analisar melhor a diversidade desses conselhos e difundir para os demais as práticas que apresentam resultados positivos, que funcionam melhor, no sentido de trazer pluralidade ao debate.

embora eles tenham sido uma das maiores bandeiras dos governos do PT. A questão é que estamos em um período pré-eleitoral e algumas questões tendem a ficar polarizadas.

ResPvblica: E não há o risco de a lista ser interpretada como exaustiva, restringindo formas de participação social àquelas ali listadas?

ResPvblica: Como vocês veem o futuro dessas iniciativas no governo, após as eleições presidenciais?

FERNANDA MACHIAVELI: O que a Política Nacional de Participação Social fez foi justamente ampliar o processo participativo. Hoje qualquer cidadão consegue individualmente fazer seu pleito, sem necessariamente estar vinculado a um coletivo. Um exemplo são as ouvidorias públicas, como as das agências reguladoras. Outro exemplo são os portais interativos na internet, como o Participatório da Juventude, que discute políticas para esse segmento.

FERNANDA MACHIAVELI: Esse é uma política de Estado, não de governo. Está consolidada. Existe uma demanda crescente na sociedade pela ampliação da participação, como pudemos ver com clareza em junho de 2013. Aquelas manifestações inclusive motivaram esse decreto. Hoje qualquer pessoa pode participar pela internet e dialogar sobre temas políticos nas redes sociais. As redes sociais viraram uma grande arena de discussão política. Tem muita gente que quer participar do debate político hoje, mas não quer ser conselheiro, não quer entrar em uma organização não governamental (ONG) ou concorrer à eleição. A internet permite dar esse passo mais amplo. Hoje, temos como fazer essas consultas por meio da internet. Havia um projeto que já estava em curso e agora foi ampliado, o site www.participa.br. Esse é um site do governo federal só para consultas e interação com a sociedade.

ResPvblica: Essa iniciativa do Governo Federal gerou tanta polêmica... Como evitar uma polarização? DANIEL AVELINO: O que percebemos, com as críticas, é que há muita falta de informação. Os conselhos e conferências já existiam, mas as pessoas não os conheciam e não se sentiam parte desse conjunto. Isso não ocorre porque a participação está centralizada. Formas de participação social existem em todos os municípios do Brasil, com pessoas dos mais diversos partidos e também com pessoas sem filiação partidária. As pessoas escolhem os conselheiros, mas eles vêm de processos seletivos bem mais ampliados. É o governo quem, inicialmente, convoca as conferências, mas cada município é responsável por convocar a sua, e assim o faz. Cada prefeitura convoca dentro de seu município as conferências, o que faz o processo de participação de uma conferência nacional algo muito diverso e muito maciço. FERNANDA MACHIAVELI: Alguns conselhos existem há 70 anos. Não é mérito deste governo ter criado todos os mecanismos de participação social. Eles são fruto de um processo histórico de construção da democracia e foram sendo ampliados gradualmente. Até o Bresser-Pereira reconhece a importância desses canais de diálogo,

DANIEL AVELINO: As políticas transversais talvez fiquem mais bem postas no Fórum Interconselhos, que é um fórum que reúne conselheiros representantes da sociedade civil de todos os conselhos existentes no governo federal. É um mecanismo a mais para o diálogo. FERNANDA MACHIAVELI: Não é o Estado que vai decidir o que é importante discutir. E esse é um desafio para nós (gestores, EPPGGs). Há na nossa carreira essa valorização do elemento técnico. É um exercício de humildade escutar, fazer a escuta atenta, tentar traduzir as demandas sociais e construir processos de deliberação participativa. Há um desafio enorme nessa escuta. É um desafio fazer a política de baixo para cima. DANIEL AVELINO: Uma das coisas que alimenta o populismo e a demagogia é o fato de as pessoas não saberem como funciona o governo, não conhecerem os tempos de tomada de decisão, as responsabilidades, os 91

custos e processos envolvidos. Quando você cria instancias participativas como essas, com instrução, com a prática, é um processo de educação política em evolução. Nós trabalhamos essencialmente com processos de participação no planejamento e no orçamento, que são duas áreas duras, duas áreas áridas para a população perceber como funciona. Mas a gente percebe que, quanto mais eles participam desse engajamento, vão aprendendo quem é que decide sobre o orçamento; qual o papel do Executivo e qual o papel do Legislativo; quais os tempos para tomada de decisão, as responsabilidades e os custos envolvidos; como é o processo. Quando você cria processos participativos como esses – conselhos, conferências, mecanismos virtuais de participação –, com a prática, é um processo de educação política e não há outro caminho. Isso tudo é um ganho que fica para fora do Estado por gerações. Você está fazendo um processo de formação política para a sociedade brasileira como um todo. Independentemente de quem esteja no governo, eles vão saber cobrar. Cada um precisa defender aquilo que acredita. Quem está inerte, realmente não será ouvido. Podemos criar canais alternativos para dar conta de toda a diversidade, para melhor distribuição do poder político. FERNANDA MACHIAVELI: Toda a construção de decisões na democracia é coletiva. Podemos pegar os textos de teóricos da democracia mais liberais como Tocqueville e até dos mais progressistas, todos eles vão falar sobre processos de construção coletiva e do papel da sociedade civil e de seus coletivos. ResPvblica: O Olson vai falar da captura. FERNANDA MACHIAVELI: Nenhuma instituição está imune à captura. DANIEL AVELINO: O Estado brasileiro – nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário – não está imune à captura. FERNANDA MACHIAVELI: A saída “pluralista” é quanto mais facções, melhor. Quanto mais grupos, mais interesses, melhor. Pois quanto maior a disputa pública, mais fácil e mais provável chegar ao interesse comum. Há várias interpretações sobre o que é o interesse público. Em um ambiente democrático, não faz sentido achar que o 92

Os gestores (EPPGG), em geral, têm essa capacidade de fazer essa junção, de fazer essa tradução do político e do técnico. Você não pode também ter só a visão técnica, de um analista. É necessário fazer a junção entre os dois mundos para conseguir fazer a máquina girar. melhor é ter um sistema de cima para baixo, porque isso não vai refletir a diversidade social. DANIEL AVELINO: Tem uma questão aí de equidade que é muito forte e que vai interferir fortemente na questão do poder político, porque historicamente no Brasil alguns segmentos da sociedade brasileira sempre tiveram acesso aos canais políticos. Eles têm acesso direto aos ministérios, canais diretos (explícitos ou implícitos) com os tomadores de decisão e com o Parlamento. Uma parcela da população brasileira já tem sua influência e seus interesses sobrevalorizados. Quando estabelecemos canais alternativos de participação – e esses são visíveis, explícitos, públicos –, fazemos com que os outros, que estavam excluídos desse processo mais tradicional, mais histórico, também comecem a ganhar poder. Então, equilibra-se um pouco essa diferença de influência política, esse desequilíbrio político que a gente tinha na sociedade brasileira. Por uma questão de equidade, os canais de participação social inevitavelmente acabam sendo ocupados por aqueles mais excluídos no processo histórico. O processo dos conselhos não substitui o processo do Legislativo. E mais: o fato de estarmos avançando na

constituição de um sistema de participação social, não tira a nossa responsabilidade nem a responsabilidade da sociedade civil de discutir o próprio Legislativo. O fato de termos os canais de participação instituídos não significa que esteja tudo às mil maravilhas. Precisamos pensar o papel do Legislativo e como esse poder pode cumprir melhor o seu papel, o que traz o debate da reforma política. ResPvblica: Qual seria o maior desafio para nossa carreira no próximo governo? FERNANDA MACHIAVELI: O grande desafio da nossa carreira é se abrir para a escuta. É uma etapa a mais, mas é uma etapa que faz toda a diferença na implementação da política e para a sociedade. O grande convite que está aí é para a sociedade ocupar os espaços que estão abertos. É sempre o outro que ocupa. É preciso protagonismo: escolher o canal que é mais adequado, de sua preferência, e ocupar. E para nós servidores o convite é para dialogar com a sociedade. DANIEL AVELINO: A nossa carreira, pelas suas características e formação, tem tudo para exercer um papel diferenciado nesse processo. A carreira de EPPGG pode ser o elemento de mediação. Pode ser o elemento a partir do qual a burocracia se apresenta para a sociedade, não como titular de um poder ou como detentora de um elemento técnico que a sociedade não tem, mas como alguém que vai atuar como intérprete, como tradutor, como mediador, como animador de um debate, como incentivador da participação. Pelo fato de sermos uma carreira permanente, uma carreira de Estado, nós vamos manter essa cultura, esses valores, dentro da máquina pública, independentemente do governo que esteja. Temos tudo para exercer esse papel mediador e estabelecer essa distribuição de poder, essa relação entre sociedade e governo de uma maneira continuada, sistematizada. A nossa carreira, a maneira como foi formada, dava a entender que nós éramos as pessoas que detínhamos o conhecimento e a habilidade para orientar a tomada de decisão. Esse formato de carreira tem de ser repensado. A nossa carreira tem de ser a mediadora do processo político, saber escutar. Se aprendermos isso, seremos essenciais ao processo. Pessoal articulado com os movimentos e

associações comunitárias podem saber mais do que os técnicos. Em alguns casos, quem está fora da máquina governamental sabe mais. O governo sozinho não tem como fiscalizar. Mas quando articulado com os movimentos sociais, consegue expandir a coleta de denúncias.

ResPvblica: A participação na formulação já avançou muito mesmo. Como avançar na participação no monitoramento, que tem sido uma demanda dos movimentos sociais? DANIEL AVELINO: Essa foi uma das principais reclamações e causou inclusive algumas rupturas entre governo e entidades da sociedade civil nos processos participativos para discussão do PPA. Os conselhos reclamavam que eram chamados durante a elaboração e depois eram esquecidos no momento em que o PPA estava em vigor, sendo acompanhado, monitorado. O Fórum Interconselhos tenta superar essa lacuna. Ele foi convocado não apenas em 2011 para elaboração do PPA, como também nos anos seguintes. Foi chamado em 2012 para pactuar o formato do monitoramento; em 2013, para apresentar o primeiro relatório de execução do PPA e submetê-lo à crítica da sociedade. Vai ser chamado de novo esse ano. É necessário estar atento para a ideia de que é preciso ser uma instância permanente de monitoramento, não só de elaboração. O Fórum Interconselhos deve dizer para o governo qual é o elemento de monitoramento que a sociedade quer. O Fórum Interconselhos também visa continuidade, com a missão de educar os conselheiros. Trata de um tema muito específico, o Plano Plurianual (PPA). O Fórum Interconselhos tem esse tema muito específico do planejamento público e traz representantes dos conselhos e de entidades avulsas, que também fazem esse debate no âmbito nacional, para discutir o planejamento público de igual para igual com o governo. É lógico que vários conselhos já fazem isso. Conselhos que têm papel definidor de uma política pública já discutem o seu planejamento, mas nem todos são assim. E quando você chama todos esses conselhos e coloca para todos eles essa questão de discutir o planejamento público do governo como um todo, você nivela por cima. Independentemente da atribuição de cada conselho, todos eles ali passam a ter um canal de intervenção sobre 93

o órgão central de planejamento, que é o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Qualquer pessoa hoje pode ter acesso à informação que quiser pela Lei de Acesso à Informação. Depois pode cobrar o governo, inclusive, via Judiciário. No espaço de participação, a sociedade aprende o caminho das pedras e, aos poucos, nós vamos mudando a cultura. Quem descobre esquema de favorecimento, pode levar os responsáveis à prisão. A transparência aumenta a responsabilização e, aos poucos, vamos mudando a cultura. Isso faz toda a diferença. Não podemos continuar tomando decisões dentro do governo da mesma maneira que eram tomadas no tempo da ditadura. Precisamos dos conselhos, das conferências, de tudo isso funcionando bem. Claro que essas instâncias sozinhas não resolvem. O gestor público não pode ignorar, nem manipular. E o conselho tem de ser plural, diversificado, representar vários segmentos da sociedade. ResPvblica: E quais os desafios para a Política Nacional de Participação Social e o Fórum Interconselhos? DANIEL AVELINO: Precisamos avançar em relação ao PPA e ao orçamento. Precisamos demonstrar para a sociedade, de maneira mais nítida, como enxergar o PPA no orçamento. As mudanças foram um avanço, porque transformaram o PPA em peça de planejamento. E a linguagem melhorou muito. Antes só falava aos burocratas. O PPA atual, quanto a metas e objetivos, tem linguagem direta e precisa, de fácil compreensão e acompanhamento. O ideal é que a sociedade seja a grande fiscal do governo. Fiscal de nós mesmos, sem obstáculos e sem barreiras. Hoje temos instrumentos de monitoramento on-line pela internet; há muitas ferramentas à mão para quem quer fazer essa fiscalização. Na audiência pública do orçamento, em junho, já apresentamos e vamos apresentar também no próximo fórum ferramentas na internet. Vamos refinar ainda mais. Temos como superar as dificuldades. Temos avançado. Dá para dar alguns passos a mais, com cada vez mais transparência. Uma coisa muito boa que aconteceu no debate sobre a Política Nacional de Participação Social foi colocar esse tema de participação social em evidência. Pessoas que nem falavam disso agora estão interessadas, mesmo para 94

O grande desafio da nossa carreira é se abrir para a escuta. É uma etapa a mais, mas é uma etapa que faz toda a diferença na implementação da política e para a sociedade. criticar, aprender o que é participação social. Vão dizer participação social é isso, não é aquilo, é útil para isso, tem aquelas dificuldades etc. As críticas são importantes para estarmos com tudo sempre em mente. Quando formos discutir com outros órgãos, precisamos ter as críticas em mente. Tudo que estamos fazendo é na base da recomendação, da sugestão. A regulamentação ou a falta dela não interfere na captura e na cooptação. Quanto mais gente souber que conselhos existem e brigarem para entrar nos conselhos, menores as chances de captura. Quem disputa vaga nos conselhos é quem tem pouca voz por outros meios. De fato representam as minorias. Há movimentos grandes que já têm acesso direto ao governo e abrem mão de estar em conselhos. Recebemos, logo que foi assinado o Decreto nº 8.243, de 23 de maio de 2014, convites para debater a reestruturação de alguns conselhos. O caminho é esse: pensar caso a caso. O Fórum Interconselhos, que foi premiado pelas Nações Unidas, tem como tema o PPA e a atribuição de colher demandas da sociedade. Como garantir que a sociedade seja ouvida no processo de planejamento? Cogitou-se criar um conselho novo, de planejamento. Mas já temos um conjunto vasto de conselhos. Não precisávamos criar competição entre eles, nem desprezar trabalhos já desenvolvidos. Então, optou-se por criar outro espaço que não se confundisse com os conselhos e ao mesmo tempo fosse baseado neles. Daí surgiu a ideia de um fórum. Foi criado o Fórum Interconselhos, com representantes de todos os conselhos com os quais já tínhamos diálogo. Pelo menos 38 conselhos foram chamados para o fórum. Para tirar algum viés, convidamos

entidades avulsas, isoladas, independentes de conselho, entidades que já apresentavam experiência no sentido de planejamento e orçamento, ou que já tem trabalho de militância nessa área, como o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFemea). Cerca de 250 pessoas foram convocadas e mais de 600 propostas apresentadas, debatidas previamente em seus respectivos conselhos. Chamamos conselheiros da sociedade civil, com número determinado para cada um dos conselhos, todos como titulares. Os debates foram feitos, cada um ouvindo as críticas dos outros. Os conselheiros foram reunidos conforme critérios de territorialidade e áreas de governo, seguindo a proporcionalidade da sociedade civil em cada conselho. Recebemos essas propostas e o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão fez um trabalho de análise e resposta específica para cada uma das propostas que foi essencial para o sucesso do fórum. Caso a resposta fosse afirmativa (no sentido de que isso cabia no PPA e o governo iria acatar essas propostas e inseri-las no plano), já indicava o local específico no plano (meta, iniciativa) em que a proposta poderia ser encontrada. Caso a resposta fosse de recusa, vinha com a devida justificativa. Esse processo de diálogo estimula a confiança. Isso fez com que os participantes do fórum, mesmo tendo suas propostas rejeitadas, seguissem integrados e engajados. Mas a maior parte foi incorporada. Em 2011, houve o primeiro e o segundo fóruns. Em 2012, convidamos os mesmos participantes para pactuar a estratégia de monitoramento. Em 2013, apresentamos o primeiro relatório, em relação a 2012, primeiro ano de vigência do PPA. Agora, em 2014, teremos o quinto fórum. Cada segmento da população é objeto de um relatório oficial, listando tudo o que foi feito para ele. Depois eles trazem de volta com críticas. Assim, vamos melhorando, retroalimentando o relatório seguinte. Foi essa iniciativa que apresentamos às Nações Unidas, e saímos premiados. Esse prêmio é o mais importante do mundo na área. Até onde pude pesquisar, foi a primeira vez que essas áreas do Governo Federal venceram a premiação. A iniciativa teve presença, atuação e coordenação forte de membros da nossa carreira, desde o início. Eu sou um deles. É uma iniciativa que tende a ser permanente, no Governo Federal. Não é uma iniciativa que surge e depois acaba. É extremamente estratégica, pois contempla o planejamento

A carreira de EPPGG pode ser o elemento de mediação. Pode ser o elemento a partir do qual a burocracia se apresenta para a sociedade, não como titular de um poder ou como detentora de um elemento técnico que a sociedade não tem, mas como alguém que vai atuar como intérprete, como tradutor, como mediador, como animador de um debate, como incentivador da participação. governamental como um todo e tem alcance nacional importante, com todos os programas envolvidos no PPA passando pelo Fórum. E é iniciativa de participação social. Exatamente no momento que estamos discutindo participação social no Brasil, debatendo qual o melhor formato, a melhor estratégia para fortalecê-la, recebemos a boa notícia desse prêmio, que é uma prática nossa reconhecida como de excelência em gestão pública e referência mundial. É motivo de orgulho para a nossa carreira; é motivo de orgulho para o Governo Federal e motivo de orgulho para o Brasil saber que a gente está, pelo menos nisso, no caminho certo.

95

Notas 1

Entrevista realizada em 13 de junho de 2014.

O United Nations Public Service Awards premia anualmente, há mais de uma década, conquistas criativas e contribuições de instituições do serviço público que levam a uma administração pública mais eficiente e responsiva. O prêmio tem quatro categorias: 1) aperfeiçoamento da prestação de serviços públicos – não houve ganhadores na América Latina; 2) estímulo à participação em decisões sobre políticas públicas por meio de mecanismos inovadores – o Brasil ficou em primeiro lugar com o Fórum Interconselhos; 3) promoção de abordagens integradas para todo o governo na era da informação – uma iniciativa de acesso à informação do Governo Estadual do Rio Grande do Sul garantiu o segundo lugar ao Brasil; e 4) promoção de prestação de serviços públicos responsivos a gênero – Brasil ficou em primeiro lugar com o Programa Mãe Coruja do Governo do Estado de Pernambuco. Mais informações sobre o prêmio e os demais premiados estão disponíveis na página www.unpan.org . 2

Os cursos de formação para a carreira de EPPGG têm variado sua carga horária. A primeira turma começou com 2.800 horas-aula, passando para 900 horas-aula na segunda e 921 horas-aula na terceira. A formação da turma de Daniel Avelino (11ª) teve 450 horas-aula. Esse padrão se manteve a partir de 2003, subindo para uma média de 586 horasaula após 2008. O curso de formação para a carreira estadual, de Técnico de Políticas Públicas e Gestão Governamental do Estado de Sergipe, foi realizado na ENAP em 2002 com carga de 900 horas.

3

4

96

Em licença para tratar de assunto particular, sem vencimentos.

Normas para Publicação I. A revista ResPvblica é uma publicação da Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (ANESP) com periodicidade semestral. Tem natureza profissional e opinativa, com o objetivo de divulgar artigos produzidos por membros da carreira, colaboradores e estudiosos de assuntos relativos a políticas públicas, gestão governamental, organização do Estado, economia do setor público e política. II. A editoria pertence ao cargo de Direção de Estudos e Pesquisas da ANESP, com eleições a cada dois anos. O Conselho Editorial é formado por servidores concursados da carreira de EPPGG com sólida formação acadêmica (oito doutores) e ampla experiência profissional no poder executivo do governo federal brasileiro. III. O Conselho Editorial seleciona os trabalhos em sistema de blind review pelos critérios de relevância conjuntural, originalidade, consistência, coerência, clareza e objetividade. IV. Para submeter um artigo, envie um email para [email protected] com o arquivo em anexo contendo um texto em padrão ABNT, de cinco mil a sete mil palavras, acompanhado de resumo de aproximadamente cem palavras, sem identificação dos autores. A identificação dos autores deve vir no corpo do email, com título do artigo, nome dos autores, instituição e titulação. V. Cada autor(a) de texto publicado terá direito a três exemplares da revista. VI. Informações adicionais bem como os números anteriores da ResPvblica estão disponíveis no endereço www.anesp.org ou pelo email [email protected].

ResPvblica Vol. 13, No. 2.pdf

Page 3 of 97. EVENT SCHEDULE - TRACK & FIELD. TUESDAY, AUGUST 1. RUNNING EVENT SCHEDULE. TIME EVENT/AGE GROUP RACE. 8:00 AM 1500M Run TF. (13G, 13B, 14G, 14B, 15-16G, 15-16B, 17-18G, 17-18B). 11:00 AM 400M Hurdles F. (15-16B, 17-18B, 15-16G, 17-18G). 200M Hurdles F. (13G, 13B, 14G ...

542KB Sizes 7 Downloads 386 Views

Recommend Documents

ResPvblica Vol. 13, No. 2 - ANESP EPPGG - Previdência social ...
13, No. 2 - ANESP EPPGG - Previdência social - Paulo Kliass.pdf. ResPvblica Vol. 13, No. 2 - ANESP EPPGG - Previdência social - Paulo Kliass.pdf. Open.

Respvblica Vol. 07, No. 02 - Marcelo.pdf
Percebe-se que o crescimento. no governo Lula tem sido paulatino e acompanhado bem. de perto a evolução da população economicamente ativa. (PEA).

Respvblica Vol. 07, No. 01 - Jucelino.pdf
There was a problem previewing this document. Retrying... Download. Connect more apps... Try one of the apps below to open or edit this item. Respvblica Vol.

Respvblica Vol. 06, No. 02 - Rafael.pdf
Loading… Page 1. Whoops! There was a problem loading more pages. Respvblica Vol. 06, No. 02 - Rafael.pdf. Respvblica Vol. 06, No. 02 - Rafael.pdf. Open. Extract. Open with. Sign In. Main menu. Displaying Respvblica Vol. 06, No. 02 - Rafael.pdf.

Respvblica Vol. 05, No. 02 - André.pdf
André Luis Souza Galvão, Cliffor Luiz de Abreu Guimarães, Luis. Henrique da Silva Paiva, Marcelo Pereira de Araújo, Maurício da. Cruz Gomes, Miguel ...

Respvblica Vol. 06, No. 01 - Fabio.pdf
de, no plano político, refletir o que se convencionou chamar de hegemonia. neoliberal. Page 3 of 25. Respvblica Vol. 06, No. 01 - Fabio.pdf. Respvblica Vol.

Respvblica Vol. 09, No. 02 - Luna.pdf
Page 1 of 19. Processo de licenciamento. ambiental – instrumento para. efetivação da justiça social? Página 63. Revista de Políticas Públicas e Gestão ...

Respvblica Vol. 10, No. 01 - Leonardo.pdf
setores ou níveis do próprio. Estado. Figura 1. Page 3 of 13. Respvblica Vol. 10, No. 01 - Leonardo.pdf. Respvblica Vol. 10, No. 01 - Leonardo.pdf. Open. Extract.

Respvblica Vol. 07, No. 01 - Átila.pdf
Primei- ramente, a abordagem terá como base o texto constitucional, demons- trando, em linhas gerais, quais são as diretrizes do Estado voltadas para a.

Respvblica Vol. 08, No. 01 - Alex.pdf
Page 1 of 12. O processo de elaboração. da Proposta de Lei. Orçamentária Anual: responsabilidade. compartilhada entre os. poderes Executivo e. Legislativo.

Respvblica Vol. 08, No. 01 - Igor.pdf
There was a problem previewing this document. Retrying... Download. Connect more apps... Try one of the apps below to open or edit this item. Respvblica Vol.

Respvblica Vol. 09, No. 02 - Luna.pdf
atividades efetiva ou poten- cialmente poluidoras. Page 3 of 19. Respvblica Vol. 09, No. 02 - Luna.pdf. Respvblica Vol. 09, No. 02 - Luna.pdf. Open. Extract.

Vol....13. No. 2.1_Ready_Tatas_Pengaruh ...
Vol....13. No. 2.1_Ready_Tatas_Pengaruh Kemiringan Atap Rumah.pdf. Vol....13. No. 2.1_Ready_Tatas_Pengaruh Kemiringan Atap Rumah.pdf. Open. Extract.

ResPvblica No. 02 - ANESP EPPGG - Marianne.pdf
There was a problem previewing this document. Retrying... Download. Connect more apps... Try one of the apps below to open or edit this item. ResPvblica No.

ResPvblica No. 04 - ANESP EPPGG - Fabio.pdf
There was a problem previewing this document. Retrying... Download. Connect more apps... ResPvblica N ... G - Fabio.pdf. ResPvblica No ... GG - Fabio.pdf.

NEWSLETTER No. 13 - RAKAWC
Call us: 050 487 3922 or visit our website: www.rakawc.com. Find us on ... they are trained and socialised by our staff to be top pets. To see more dogs ... Age: 1 year 10 months ... Support events we are hosting, by attending or volunteering.

ResPvblica No. 02 - ANESP EPPGG - Jefferson.pdf
ResPvblica No. 02 - ANESP EPPGG - Jefferson.pdf. ResPvblica No. 02 - ANESP EPPGG - Jefferson.pdf. Open. Extract. Open with. Sign In. Main menu.

Vol 5 Issue 13.pdf
There was a problem previewing this document. Retrying... Download. Connect more apps... Try one of the apps below to open or edit this item. Vol 5 Issue 13.

073-077 vol 13.pdf
Turquillas, que divide la sierra en dos bloques: uno. levantado, al Este, donde se alzan las principales alturas. de la sierra: Torrecilla, Alcazaba... y otro más hundido. al Oeste. Aquí es donde se halla la zona donde se. encuentra esta sima de la

048-050 vol 13.pdf
Page 1 of 3. 14/11/2012 Página 1 de 9 Profesor: Luís Rodolfo Dávila Márquez CÓDIGO: 00076 UFPS. CURSO: CÁLCULO INTEGRAL. UNIDAD 2 A. EJERCICIOS SOBRE INTEGRACIÓN. CONTENIDO. 2.1 INTRODUCCIÓN. 2.2 INTEGRACIÓN POR SUSTITUCIÓN. 2.2.1 INTEGRALE

048-050 vol 13.pdf
Wilhelm Gottlieb Rosenhauer, teniendo de éste último la referencia de quirópteros en cavidades de Andalucía más antigua. PALABRAS CLAVE:Murciélagos ...

051-054 vol 13.pdf
colaboración con Espeleo Colombia, 9 años de exploración en más de 63 cavernas en un departamento de Colombia el cual en este. momento sigue siendo el ...

015-019 vol 13.pdf
José Bermejo, Rafael Minguillón y Gaspar Herráez. Grup d'Activitats de Muntanya i Espeleo (G.A.M.E.), Palma de Mallorca. Email: [email protected].

AMH Magz Vol 13.pdf
15 Anisong. Seiyuulogy that 2COOL4U. Ai Kayano. One Piece Film : Z. Little Buster. Inferno Cop. Mass Effect. Puchim@su! SRS BSNS. OS-tan. Madobe. LOGO.